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O dito cujo
Catarina Carvalheiro, Rita Marquilhas, Clara Pinto, Fernanda Pratas
22/10/2014, APLFaculdade de Letras da Universidade do Porto
Em todas as fases da língua: palavra relativa que
exprime uma relação semântica de “posse material ou
jurídica, mas também de parentesco ou relação entre a
parte e o todo” (Paiva Raposo 2013: 906)
Até ao séc. XVI: variante de “de quem” (pronome
interrogativo e relativo) (cf. Martins 2003: 57)
(1) Emtam lhe pregumtou Lionel: ‒ Estes tindilhõões cujos sam?
(DSG172,1.18/ID)2
Cujo: valor possessivo (1)
O d
ito
cu
jo
cujo possessivo desempenha duas funções:
retoma o antecedente nominal que corresponde ao possuidor
(2) b. A Ana, cujo colar desapareceu, queixou-se à polícia.
atribui interpretação definida ao “sintagma nominal que forma o
constituinte relativo”, sendo assim proibida a sua ocorrência com
um determinante com valor (in)definido
(3) *comprei um livro as cujas páginas vinham rasgadas
(Veloso 2013: 2097)
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Cujo: valor possessivo (2)
O d
ito
cu
jo
Encontramos, no entanto, um outro uso de cujo (4), não
possessivo:
(4) […] e foi a mulher quem salvou a situação oferecendo um
copo de água à velhota e um anis ao senhor, cujo vestia um
casaco de quarto agaloado, no fio, e calças creme compridas de
mais […](António Lobo Antunes, Fado Alexandrino, 1983)
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Cujo – uso não possessivo (1)
O d
ito
cu
jo
O que dizem as gramáticas:
“A fórma cujo apparece uma ou outra vez, todavia usada apenas
por pessoas de limitada leitura e pretenciosas [e] por pessoas
letradas, de certo por descuido”
“A sua construcção, porém, afasta-se da que é ensinada pelos
grammaticos”(Moreira 1907: 40)
Estas observações tomavam como exemplos frases como as que
se seguem, de uma personagem que Camilo satiriza:
(5) […] tudo em nome do seu particular amigo José Bernardo e do
mano conde, cujos, dizia, são meus íntimos […]
(Camilo Castelo Branco, A Corja: Continuação de Eusébio Macário,1880)
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O d
ito
cu
jo
Cujo – uso não possessivo (2)
Cujo, uso não possessivo no P.S.
Corpus P.S. – Post Scriptum
- coleção de cartas privadas do século XVI ao XIX, escritas
por autores de vários estratos sociais, (dados extraídos de cerca
de 800 cartas)
- contém atestação de cujo, começando no século XVII,
com uso semelhante ao condenado por Moreira (1907)
(6) hum arratel de xá bom cujo he de preso 1600 [réis]
(CARDS2160 - 177-)
6
O d
to c
ujo
Questão
Como é que cujo, que, além de
relativo, tem um valor possessivo, pode
surgir nestes contextos?
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O d
ito
cu
jo
Objetivos
1. conjeturar uma proposta quanto à
distribuição desta palavra, a que chamamos,
para o presente efeito, ‘cujo não possessivo’
2. descrever as suas propriedades distributivas,
de modo a testar essa hipótese
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O d
ito
cu
jo
A nossa proposta (1)
Dado linguístico
documentos anteriores ao século XVII atestam
comutações dentro do complexo paradigma dos
morfemas relativos/interrogativos, entre:
- por um lado: que / quem / qual / o qual (não possessivos)
e
- por outro lado: cujo / de quem / do qual (possessivos)
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O d
ito
cu
jo
A nossa proposta (2)
Dado extralinguístico, relativo ao ensino das primeiras letras
entre os séculos XVI e XVIII
discurso político – discurso crítico do sistema – condenava o uso
de textos burocráticos enquanto instrumentos didáticos
(Demandas e Feitos)
Dado textual, relativo às marcas próprias do registo de
Demandas e Feitos em todo o Ocidente Europeu
- emprego invulgarmente alto de anáforas
- presença de formas latinizantes, incluindo as mais artificiais do
paradigma totalmente flexionado dos pronomes relativos (Fiorentino 2007,
e.o.)
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O d
ito
cu
jo
estavam criadas as condições para uma imperfeita
aquisição dos inventários de pronomes e suas comutações
legítimas
O d
ito
cu
jo
Crítica ao ensino – João de Barros
João de Barros, 1540, “Dialogo em louvor da nossa linguagem”,
Grammatica da Lingua Portuguesa, Lisboa: Luís Rodrigues, fl. 50v-60v
Crítica ao ensino – João de Barros
Porque havendo de ser por uma cartinha que aí há de letra
redonda, por que os meninos levemente saberão ler, e
assim os preceitos da nossa fé que nela estão escritos,
convertem-nos a estas doutrinas morais de bons costumes:
“saibam quantos esta carta de venda”. E depois disto:
“aos tantos dias de tal mês”; “e perguntado pelo
costume disse ‘nihil’”. De maneira que quando um
moço sai da escola não fica com “nihil”, mas pode fazer
melhor uma demanda que um solicitador delas porque
mama estas doutrinas no leite da primeira idade.
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O d
ito
cu
jo
A nossa proposta (3)
Assim, pelo menos a partir do século XVII e na
escrita das camadas sociais não privilegiadas,
cujo passou a ser usado em comutação com o
qual, um morfema relativo não possessivo
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O d
ito
cu
jo
Paralelismo entre cujo e o qual em
contextos de coordenação especificante (1)
Cardoso (2008, 2010, 2011) descreve o uso de o qual, uma
expressão relativa sem valor possessivo que até ao século XVII
ocorria em contextos de coordenação especificante.
(7) entrego e outorgo. ao Mosteiro de san Saluador de Moreyra.
Hũu casal que e en Rial de Pereyra. o qual casal a dita dona
Mayor uëegas (...) mandou ao dito Mosteiro.
(Martins 2001; Doc. Portugueses do Noroeste e da Região de Lisboa; 1282,
apud Cardoso 2011)
Cujo não possessivo parece aproximar-se deste uso de o qual.14
O d
ito
cu
jo
Paralelismo entre cujo e o qual em
contextos de coordenação especificante (2)
Núcleo interno
Pode ocorrer ou não
O núcleo interno e o antecedente podem não ser idênticos
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O d
ito
cu
jo
intregara ao portador desta a
quantia de Sem mil reis em moeda
papel e fixadas dentro de huma
carta pois he para livramento de
hum nosso companheiro q(eu) se
acha prezo nessa Cadeia e cujo
d(inhei)ro he p(ar)a sua soltura
(CARDS0087 - 1824)
mostrarõ logo e Jujzo húú testameto
[...] na qual mãda fazía meçom
Antre as outras coussas que A
mãdara fazer Sancha gíl.
(Martins 2001; Doc. Portugueses do
Noroeste e da Região de Lisboa; 1328)
Paralelismo entre cujo e o qual em
contextos de coordenação especificante (3)
O núcleo interno pode também conter modificadores do nome
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O d
ito
cu
jo
vindo de palmela para as
virtudes ca por esta banda
encontrei hum almocreve e o
cujo dito almocreve trazia duas
bestas dezocopadas
(CARDS0002 - 1827)
o quall casal com suas
perteenças disse que trazia e
pregã
(Martins 2001; Doc.
Portugueses do Noroeste e da Região de Lisboa; 1472)
Paralelismo entre cujo e o qual em
contextos de coordenação especificante (4)
Antecedente
Pode ser oracional; mesmo nesse caso, o núcleo interno é
nominal
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O d
ito
cu
jo
Paçado o emtrudo paçamos a
Almada fazer a Correição, em
cuja ouCazião hei de paçar a
essa Ci(da)de
(CARDS0292 -1827)
os ditos cassaaes fforõ
cõprados dos dinheiros do
dito mosteiro polla quall
Razom de derejto perteçem e
perteçyam ao dito mosteiro
(Martins 2001; Doc.
Portugueses do Noroeste e
da Região de Lisboa; 1437)
Paralelismo entre cujo e o qual em
contextos de coordenação especificante (5)
Extraposição
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O d
ito
cu
jo intregara ao portador desta a quantia
de Sem mil reis em moeda papel e
fixadas dentro de huma carta pois he
para livramento de hum nosso
companheiro q(ue) se acha prezo
nessa Cadeia e cujo d(inhei)ro he
p(ar)a sua livre soltura e no cazo
q(ue) a isto falte lhe deitaremos fogo
as Cazas e a tudo quanto pessue e
de cuja quantia. sera embolcado da
mesma maneira q(ue) praticar emte o
dia 24 do prezente mez sem falta
(CARDS0087 - 1824)
— Senhor, chegou ally o
allmocade , e pareçe-me que
diz que lhe he neçessario
de vosfallar llogo amte que
amanheça.
O qual comde mamdou
que viesse.
(Brocardo 1997; séc. XV)
Paralelismo entre cujo e o qual em
contextos de coordenação especificante (6)
Força ilocutória
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O d
ito
cu
jo
Fasme o favor de ajuntares a
demasia q(u)e te pedi q(u)e são
240 o q(u)e te ficarei obrigado pois
estou nesta ora sem hum vintem
em casa cujo favor eu to
agradeçerei
(CARDS6069 - 1828)
Com o teor do qual mandei passar
esta carta testemunhável ao dito Bento
Henriques, à qual mando que seja
dada tanta fé e autoridade, em juízo e
fora dele, e onde quer que fôr
apresentada, quanta por direito se lhe
deve dar. O qual uns e outros assim
cumpram e al não façais
(Pereira 1987, ano1578)
Paralelismo entre cujo e o qual em
contextos de coordenação especificante (7)
Conjunção coordenativa
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ito
cu
jo
Parâmetros (ainda) por atestar no nosso corpus:
-pied-piping de DP
-núcleo interno pode ser também um nome próprio
-coordenação do pronome relativo com um grupo nominal
-antecedente descontínuo
Desta tua mulher e que munto te
quer e a cuja te deseja para meu
emparo de teus filhos.
(CARDS5256 - 1825)
custumarõ dauer e ouuerom no dicto
Monsteiro bõa raçom e mãtijmeto de
pam aluo boroa. carne e vıho e o
qual mãtijmeto os Priores [...] auiã e
som theudos de dar ao dicto conueto
(Martins 2001, ano 1364)
Notas finais (1)
A coordenação especificante com o qual vai desaparecendo da
documentação escrita do séc. XVII em diante, embora no século
XX ainda se encontre em “contextos literários ou registos de
grande formalidade” (Veloso 2013: 2096, Brito 1991)
A coordenação especificante com cujo permanece ao longo dos
séculos XVII, XVIII e XIX (P.S.)
No XX, surge:
- condenada nas gramáticas normativas (Moreira 1907)
- abonada na dialetologia do Português Europeu (Barreiros 1917)
e na descrição de variedades não europeias de português (Brito
2001)
…
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O d
ito
cu
jo
Notas finais (2)
…
- consagrada no registo literário:
Ali, descendo ao longo da falda da serra de Abodi, pela banda do
noroeste, corre um rio, o Irati, que, nascido em França, vai
desaguar no Erro, espanhol, por sua vez afluente do Aragón, o qual
é tributário do Ebro, cujo finalmente levará e lançará no
Mediterrâneo as águas de todos.
(José Saramago, Jangada de Pedra, 1986)
[…] e foi a mulher quem salvou a situação oferecendo um copo de
água à velhota e um anis ao senhor, cujo vestia um casaco de
quarto agaloado, no fio, e calças creme compridas de mais […](António Lobo Antunes, Fado Alexandrino, 1983)
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O d
ito
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ReferênciasBARREIROS, F.B. (1917) Vocabulário Barrosão. Revista Lusitana, 20 (1-2), pp. 137-161.
BRITO, A. (1991) A Sintaxe das Orações Relativas em Português. Porto: INIC & CLUP.
BRITO, A. (2001) Relativas de genitivo no Português Europeu e no Português de Moçambique.
Actas do XVI Encontro Nacional da APL, pp. 115-129.
CARDOSO, A. (2008). “Relativas com núcleo interno e relativo de ligação na história do
português”. In S. Frota & A. L. Santos (orgs.). Actas do XXIII Encontro Nacional da Associação
Portuguesa de Linguística [Évora, 2007] (pp. 77-92). Lisboa: APL. CARDOSO, A. (2010).
Variation and change in the syntax of relative clauses: new evidence from Portuguese. Tese de
Doutoramento, FLUL. Corpus Dialectal com Anotação Sintáctica – CORDIAL-SIN, CLUL
(http://www.clul.ul.pt/sectores/cordialsin/projecto_cordialsin.html). CARDOSO, A. (2011). “Orações
apositivas em português: entre a sincronia e a diacronia.” In
Estudos de lingüística galega, 3, 5-29.
FIORENTINO, G. (2007) European relative clauses and the uniqueness of the Relative Pronoun
Type. Rivista di Linguistica 19.2, pp. 263-291.
MARTINS, A. M. (2003). Relatório da cadeira de História da Língua Portuguesa, apresentado a
concurso para Professor Associado, FLUL.
MOREIRA, J. (1907). Estudos de Lingua Portuguesa, Livraria Clássica Editora, Lisboa. 2.ª ed.
1922.
PAIVA RAPOSO, E. B. et al. (2013). Gramática do Português. Lisboa: Fundação Calouste
Gulbenkian.
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Básta de sentim(en)to vamos ao q(ue) sérve.
Tudo aceito, tudo agradeço, pois de tudo percizo. (CARDS0212 – 1824)
Catarina, Clara, Rita & Fernanda,
cujas são muito obrigadas
URL: http://ps.clul.ul.pt/
E-mail: [email protected]
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