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66 DEMOCRACIA VIVA Nº 44 CULT Fórum Social Mundial, a construção de um outro mundo possível 66 DEMOCRACIA VIVA Nº 44 CULTURA Cândido Grzybowski Sociólogo, diretor do Ibase

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c u l t u r ac u l t u r aFórum Social Mundial, a construção de um outro mundo possível

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c u l t u r acândido Grzybowski

Sociólogo, diretor do Ibase

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Em fins de janeiro de 2001, na cidade de Porto Alegre, realizou-se a primeira edição do

Fórum Social Mundial (FSM). Surgiu com marca de ousadia e inovação, contestando a

hegemonia do pensamento neoliberal simbolizado pelo Fórum Econômico Mundial, em

Davos, na mesma data, reunia os autoproclamados senhores e donos do mundo. De um

lado, a surpresa, a festa barulhenta de encontros e desencontros, em uma verdadeira

praça da democracia, de identidades e línguas diversas, e a constatação de que, afinal,

não somos tão poucos os que acreditam que “outro mundo é possível”, a expressão

agregadora do FSM. Do outro lado, o hotel de luxo da estação de esqui, misto de cele-

bração retórica das benesses do mercado de um capitalismo globalizado, sem fronteiras,

e de pura negociação em vista de mais e mais lucros, sem amarras.

Assim começou o FSM: um espaço aberto que, sem negar a marca de origem con-

testadora do neoliberalismo, quer ser uma espécie de recarregador de baterias da cidadania

ativa, agora, necessariamente de dimensões planetárias, pois é dela que depende a solução

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contradições deste capitalismo levado ao seu extremo. Surgido como um evento, o FSM de-sencadeou uma onda que, ao longo dos últimos anos, foi ganhando força, com realizações de fóruns mundiais, continentais e regionais, nacio-nais, locais, temáticos. Perdeu-se a conta, e ela ainda não acabou. Agora, em 2010, já iniciamos o décimo ano desse processo que vai penetrando no mundo e alimentando a esperança.

o Fórum já conferiu fundamental contri-buição para a emergência de uma cultura cidadã em escala mundial. Hoje, é um processo que segue seu próprio curso, apropriado por orga-nizações de cidadania ativa, movimentos sociais e redes em diferentes partes do mundo. Inspira um modo de tentar construir uma inteligência política coletiva sobre os problemas, os desafios e as possibilidades das lutas que empreendemos – cada qual a seu modo – no lugar onde nos en-contramos no planeta, mas que, pelas circunstân-cias, nos tornam interdependentes, obrigados a compartir um mesmo mundo para dele fazer “um outro mundo”. Para a nossa grande diversidade de identidades e culturas, a nossa pluralidade de visões e perspectivas, todas legítimas, mas sempre negadas, o FSM nos oferece um espaço aberto – uma espécie de usina para nova cultura política – para que nos reconheçamos iguais como humanidade e parte do mesmo e único sistema planetário para compartir entre todas e todos.

Não pretendo relatar aqui a história do FSM. Deixo a história para a história. Mas mudou muito o contexto cultural, político e econômi-co do mundo de 2001 a 2010. As múltiplas e articuladas crises recentes são expressões das

contradições e dos limites sob as quais o capi-talismo globalizado submete a humanidade e a sustentabilidade da própria vida no planeta. Hoje, “outro mundo possível” torna-se uma urgência e uma necessidade inadiável.

Quero pensar, por isso, nos desafios daqui para diante, para além do FSM. Não estou pro-pondo uma mudança da iniciativa em si, pois, penso que deve continuar a tarefa inspiradora que é sua marca. os encontros do FSM ainda alimentam o sonho e a esperança para muitos mundo afora. E o mundo é ainda enorme para as dimensões reais que o processo de realizações do FSM conseguiu até agora. Muita semente precisa ser espalhada por diferentes territórios de nosso planeta e fazer ressurgir a vontade de mudança. Que o FSM siga o seu curso e sua capacidade mobilizadora, especialmente cativando as jovens gerações, como vimos em janeiro de 2009, em Belém. Sou dos que pensam que ninguém segura essa “onda de cidadania”, pois o FSM já em nada depende do nosso bando de velhos cúmplices – quase todos homens, além do mais. o FSM poderá mudar muito, como, aliás, mudou a cada ano, mas erra quem decreta seu fim. Hoje é um patrimônio da humanidade. É ela que necessita de um espaço aberto como o FSM para se repensar.

Como a minha reflexão está ainda em elaboração, faço apenas uma espécie de guia para minha atuação como diretor do Ibase, para dentro e para fora, aquém e além do FSM, e uma contribuição aberta aos parceiros e parcei-ras em redes, articulações e lutas democráticas que, juntos, empreendemos.

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A contribuição mais evidente do FSM foi reacender uma força galvanizadora ao se contrapor a Davos e simplesmente afirmar que “outro mundo é possível”. Isso foi possi-bilitado ao deslocar o foco quase exclusivo no Estado e na economia para a capacidade de ação transformadora dos múltiplos e diversos sujeitos coletivos, organizados em entidades, movimentos, redes, coalizões e alianças, que resistem, formulam propostas concretas e vão à luta por sua concretização.

Em certo sentido, não é o FSM que ins-pira, simplesmente, um convite a uma reflexão compartilhada de experiências e saberes que se desenvolvem na prática, nas mais diversas situações, para, com abertura ao mundo, potencializar a própria ação, segundo as pos-sibilidades de cada sujeito e em cada contexto. o FSM cria bases de uma nova cultura política de transformação exatamente por estabelecer como um imperativo o diálogo planetário horizontal, sem protagonismos, racismos ou patriarcalismos, diálogo intra e inter sujeitos, uns e umas reconhecendo os outros e as outras igualmente como sujeitos.

A nova cultura política não é uma inven-ção do FSM, mas ele é um grande propulsor e indutor. Por seu caráter de espaço aberto à diversidade e pluralidade – como definido na Carta de Princípios –, o FSM tem conseguido se tornar uma referência de encontros e trocas, sem hierarquias ou prioridades. No seu interior, – forjam-se legítimos consensos e dissensos (na verdade, outros consensos), extraindo, assim, da diversidade social e cultural, do encontros e desencontros, e da pluralidade política a energia que o mantém como referência de uma nova cultura política de caráter planetário.

Forçoso reconhecer que, se bem é uma nova cultura política que está presente no FSM, é apenas algo emergente, em construção. Nós todos e todas trazemos ao FSM nossas estru-turas mentais, nossos valores e nossas práticas, com todas as suas contradições. Começando pelo mais simples: confundimos diversidade com cada qual fazer o que quer, mesmo que seja uma atividade para os seus pares, dificultando aglutinações, fusões e buscas coletivas, razão de ser do espaço FSM. Não nos iludamos com o tamanho da tarefa pela frente. Nosso modo de pensar e agir de esquerda no seio do capitalismo ainda vem carregado por determinismos concei-tuais e políticos que priorizam, hierarquizam e

O FSM como inspiração e como limite

protagonizam os sujeitos, o que no FSM, muitas vezes, manifesta-se na ocupação do território e na disposição de atividades.

Apesar da massiva presença de organi-zações e movimentos feministas, o machismo encrustado nas relações não confere às mulhe-res a devida relevância nos diálogos e trocas. língua e diversidade cultural são patrimônios e riquezas a preservar, mas não sabemos lidar com o problema da tradução, apesar das tecno-logias de informação e comunicação ao nosso alcance. Isso, talvez, porque está na tradução – no sentido que Boaventura Souza Santos lhe dá – o básico para aceitar e reconhecer os

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outros e as outras como detentores de saberes tão ou mais importantes que os nossos, em diálogo com os quais, como dizia Paulo Freire, poderemos, juntos, criar um novo saber, sobre nós mesmos, a sociedade, o mundo. Enfim, sem ser exaustivo, assinalo esses problemas só para acentuar o caráter ainda incipiente da nova cultura política.

um aspecto, que considero o grande legado do FSM, até aqui, é o resgate e a valo-rização da política como a arena por excelência da construção de outro mundo e da ação cidadã como força transformadora. Em um mundo ca-pitalista, cada vez mais dominado por grandes corporações de negócios, cada vez mais privati-zado, mais mercantilizado, mais cínico e violento, de um consumismo desenfreado, destruidor do patrimônio comum da vida, criador de exclusões e acentuada desigualdade social, o FSM res-significa o público e a política e traz ao centro os princípios e os valores éticos para pensar a natureza, a vida, a economia e o poder.

Considero três os pontos fortes do FSM como inspiração: reacender a esperança e re-colocar a história no seu lugar, como produção humana e não determinação metafísica; pôr em questão os determinismos e protagonismos pró-prios da cultura de esquerda; valorizar a energia da diversidade de sujeitos coletivos.

Mas aí vem os limites. Não dá para ig-norar que o modo de acontecer do FSM como espaço aberto, centrado em eventos como sua grande realização, é o que é: um processo de eventos que vem despertando consciências e vontades para um novo fazer. Contudo, ainda não é o fazer de um outro mundo. É apenas um passo, um começo fundamental, um abrir de portas. o FSM é uma condição necessária mas insuficiente do novo, no meu modo de ver. Para surgirem forças transformadoras do que aí está, será preciso fazer um caminho para além do FSM, não mais como Fórum, e sim como invenção de sujeitos que acordam entre si ações concretas de incidência que julgarem adequadas nas diferentes situações e conjunturas, sobre relações, estruturas e processos de poder em crise, mas ainda muito vivos e dominadores. os desafios se vislumbram e ecoam no FSM. Seu enfrentamento, porém, exige uma nova criati-vidade políticocultural. Aí reside o dilema: como espaço, penso que o FSM é indispensável ainda, mas por causa do próprio Fórum, sinto-me empurrado a iniciativas para além dele, iniciativas de incidência do plano local ao mundial, construindo as articulações necessárias.

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o ponto de partida é repolitizar a vida, a relação com a biosfera, o poder, a cultura e a economia e agir com uma perspectiva planetária e cos-mopolita. Como já assinalei, o FSM ressignifica a política e o poder, dando-lhes centralidade em contraposição às relações de mercado e à economia. Aponta, nesse sentido, para o poder instituinte, constituinte e transformador da cidadania ativa. Não elabora e não define, enquanto tal, a agenda ou as agendas de luta. legitimamente, as agendas de cada sujeito coletivo, individual ou as construídas em redes, coalizões e alianças, são trazidas, debatidas e, muitas vezes, atualizadas nos eventos do FSM. A responsabilidade por elas é de quem as adota, não podendo ser impostas ao conjunto dos(as) participantes do Fórum.

Não sendo o FSM o objetivo da ação política transformadora, mas apenas um meio de fortalecê-la, a questão da agenda política é crucial para cada participante, como expressão de seu direito e responsabilidade humana e ci-dadã. É nesse sentido que penso ser um dever, como participante, priorizar a agenda política no antes e no pós evento Fórum. o além FSM a que me refiro tem o sentido de intervenção com uma agenda que se elabora, até inspirada por ele, mas sem se limitar, tomando o FSM apenas como um momento de reflexão e troca. A minha prioridade é avançar na agenda de luta e buscar as parcerias e alianças possíveis para melhor incidir nas diferentes situações e nos contextos nos quais vivo.

Hoje, penso que a questão central de uma agenda de enfrentamento do capitalismo é a busca de alternativas à “crise de civilização” que tem por base o seu domínio colonial e

imperialista sobre povos e a nature-za e o desenvolvimento industrial,

produtivista e consumista, que o capitalismo promove em função da acumulação desenfreada. Destruição ambiental e injustiça social são condições intrínsecas

Elementos para uma agenda além FSM

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do capitalismo, exacerbadas com a globalização a serviço dos grandes conglomerados econô-micos e financeiros, sob a guarda militarizada imperialista. A fratura social só se aprofunda, e a ruptura com a biosfera e os bens comuns da vida para todas e todos chega ao limite do irreversível. Não é possível tornar sustentável tal civilização, daí a crise.

Para tornar sustentável toda a forma de vida, os povos e suas sociedades, é fundamental enfrentar a injustiça em sua dupla face: social e ambiental, injustiça socioambiental. Para tanto, se impõe como prioridade a disputa do ideal do bem viver e uma busca sistemática de alternativas de poder e economia ao modelo de desenvolvi-mento industrial, produtivista e consumista do capitalismo. Mas não é mais possível limitar-se à mudança das relações sociais de produção para dar vazão às forças produtivas, como posto no ideal dominante das esquerdas. trata-se de por em questão o tipo de desenvolvimento de forças produtivas. ou seja, o ideal da sociedade indus-trial, dos bens e serviços que propicia e do estilo de consumo e de vida que gera, é parte da in-justiça socioambiental que precisamos enfrentar. A ideia de resistência à mercantilização de tudo, dos bens comuns e da própria vida, está bem presente no clima do FSM. Mas isso é pouco. É todo o imaginário de sociedades sustentáveis que precisa ser refeito, do local ao mundial, se-gundo as possibilidades e os limites da biosfera e da criatividade cultural, científica e técnica de cada povo, em um espírito de interdependência e solidariedade planetária.

um elemento-chave da nova cultura política e de uma agenda de transformação social é descolonizar e libertar nossos modos de pensar e agir. Muitas formas de ver as questões da exclusão social e pobreza nos tornam pre-sas fáceis de uma agenda de desenvolvimento imposta pelo poder colonial e imperialista do capitalismo. Não conseguimos pensar alterna-tivas de criação de maior justiça social fora de um quadro estreito de crescimento.

No contexto de “crise de civilização” no qual vivemos é outro poder e outra economia que precisam ser pensados. Precisamos, ainda, desnaturalizar as relações que condenem mui-tos à pobreza, exclusão, às múltiplas formas de desigualdade e dominação. Não é a falta de desenvolvimento que explica tais situações, pelo contrário, é por causa dele. o desenvolvimento, como símbolo da civilização no qual vivemos alia o velho e o novo e deles se alimenta. reinventa constantemente o racismo para dominar e ex-

cluir. É visível a territorialização do racismo, no interior das socidedades (favela versus asfalto), entre cidades e regiões, entre cidade e campo, entre agronegócio e formas sociais diversas de produção e vida de grupos excluídos, e nas relações entre povos e nações, em um verda-deiro processo de racismo ambiental. o velho patriarcalismo é renovado e naturalizado pelo capitalismo. Com isso, domina e desvaloriza, mas se beneficia de uma economia do cuida-do, impõe uma dupla jornada de trabalho às mulheres. A publicização e politização dessa agenda que emerge das lutas das mulheres é tarefa da cidadania como um todo, do local ao mundial.

Em termos de agenda política, tendo presente o contexto de crise profunda no qual está o sistema hoje e mirando o caminho a cons-truir para a transformação desta civilização de injustiça socioambiental, é fundamental pensar no processo necessário de rupturas cumulativas. A questão que se impõe é política e ética ao mesmo tempo. A legalidade institucional deve ser tensionada pela legitimidade da mudança. o arcabouço institucional que nos confina a Estados-nação se revela como uma arena ne-cessária, mas extremamente limitada da luta por “outro mundo possível” ou, como hoje prefiro, “outra civilização possível”. Estamos diante da necessidade inadiável de contrapor a soberania cidadã e dos povos aos Estados so-beranos e seu monopólio na esfera mundial do poder (mesmo quando Estados subordinados e subservientes, como a maioria dos quase 200 países do mundo).

Isso implica tensionar a legalidade exis-tente, dentro e fora, em nome de uma legitimi-dade e responsabilidade ética de rever processos e estruturas, políticas e econômicas, que negam direitos iguais e destroem as bases naturais da vida. Considero fundamental radicalizar uma concepção emergente no processo FSM: a cidadania não é uma dádiva dos Estados, mas condição política de ser parte da humanidade. tirando as consequências de tal afirmação, surge, necessariamente, a agenda de repensar e refundar o Estado como expressão política do poder que as “cidadanias”, iguais e diversas, lhe conferem. vasta tarefa de construção política, que precisa ser feita com mente aberta e muita ousadia política.

Isso me remete a mais um elemento es-sencial da agenda: a nova arquitetura do poder. A interdependência entre povos e nações, no quadro do capitalismo globalizado de hoje, é,

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sem dúvida, um grande problema gerado pela dominação imperialista dos países desenvolvidos, particularmente dos EuA. Mas a interdepen-dência traz, contraditoriamente, uma enorme possibilidade de futuro. o próprio FSM, como espaço de uma emergente cidadania planetária, não seria possível não fosse a difusa consciência de interdependência, na qual, em nossa diversi-dade de povos, culturas e identidades políticas, somos parte de uma mesma humanidade e compartimos um mesmo Planeta.

Interdependência, porém, não pode ser pensada e praticada sem uma localização concreta, onde temos o essencial de nossas vidas e relações com os outro(as) e realizamos nossas trocas com a biosfera. Como repensar esse fundamental local, em termos de poder, cultura e economia, de uma perspectiva cidadã planetária? E como repensar o poder mundial de uma perspectiva de cidadania territorializa-da? Para não sermos pegos pelo pragmatismo mais multilateral (mas nada cosmopolita) que a crise impôs aos países dominantes do G-8, abrindo-se ao G-20, com a inclusão de novos sócios no clube do poder – incluindo o Brasil – e, assim melhor dominar o mundo, é fundamental que enfrentemos a agenda da nova arquitetura

do poder, que implica necessa-riamente uma refundação da

oNu e dos Estados-nação, no horizonte não tão

distante assim.

As cartas de Direitos Humanos – revista de uma perspectiva cosmopolita e liberta, ela também, da perspectiva civilizatória ocidental – e a emergente, das responsabilidades Humanas, fornecem elementos, mas ainda insuficientes. Em termos políticos, uma agenda fundamental é politizar e radicalizar as potencialidades que oferecem as tecnologias de informação e co-municação (tIC), por permitirem a participação horizontal em escala planetária, com formação de redes sem fronteiras de países. Não se trata só de usar a tIC, mas de politizar o espaço que oferecem como arena política de uma perspec-tiva cidadã cosmopolita.

Finalmente, como brasileiro, penso que é indispensável problematizar o Brasil no contexto mundial. Sabemos que temos muita injustiça social e ambiental para dentro com que nos ocupar. Corremos, porém, o risco de referendar uma agenda que vai contra tudo o que apontei anteriormente. Como país emergente, o Brasil tende a usar a base de recursos naturais de que é dotado, em um mundo carente de tais recursos, para, a seu modo, fazer valer a estrutura de poder regional e mundial a seu favor. A velha agenda do petróleo, como vem ficando claro no debate sobre as reservas do pré-sal, e as propaladas possi-bilidades de felicidade geral da nação podem nos levar a referendar um conjunto de políticas que reforçam o modelo de desenvolvimento ambien-talmente predatório e socialmente excludente. É deste Brasil que a cidadania planetária precisa?

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Um possível novo modo de agirAqui, quero chamar a atenção para a incon-tornável necessidade de organizar, de forma nova, as forças para impulsionar a agenda. Novamente o FSM serve como um caldo ins-pirador, mas falta a tarefa difícil e contínua de organizar os sujeitos, avaliar as oportunidades

políticas e ir à luta. Só destaco alguns pon-tos, pois, de fato, é no agir que se faz

a ação (é caminhando que se faz o caminho). Ele começa pelo

acordo sobre a agenda, que, por

mais amplo que seja sempre será dos que a ele aderem. Portanto, ele já aponta para um além FSM. A questão mais delicada é construir coalizões de sujeitos coletivos com um máximo denominador comum – para me contrapor ao mínimo denominador comum de certas decla-rações genéricas e vazias – sobre a agenda e a ação política. Falo de coalizões intermovimentos e organizações de cidadania ativa. A experiência existente, de relativo sucesso, é de campanhas temáticas. No caso, porém, falo em ações di-ferenciadas e coordenadas de uma cidadania

militante, visando tensionar estruturas e poderes constituídos, nas

mais diversas situações. A cultura política de inci-

dência internacional é intra-movimentos e organizações,

ligando o local ao mundial (confederações sindicais, via

Campesina, Plataforma de Direitos Humanos, oxfam Internacional, Alop,

Articulação Feminista Marcosul, para dar alguns exemplos). Falta-nos o inter-

movimentos, organizações e redes.um elemento metodológico a conside-

rar é a possibilidade de transformar a ideia de redes – dominantemente de diálogo político e concertação sobre agendas temáticas comuns – para algo mais no sentido da iniciativa e incidência coordenadas, como um verdadeiro

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trabalho político de cidadania desenvolvido em rede pelo conjunto diferenciado de sujeitos em coalizão. Além da agenda propriamente dita para a ação, definem-se os princípios e valores éticos norteadores, os objetivos comuns e as formas de mobilizar e compartir recursos entre os parceiros. Isso exige paciente trabalho de construção do que, potencialmente, venha a ser um sujeito político de novo tipo, com identidade e propostas, do local ao mundial.

A questão crucial do agir é a disputa e construção políticocultural de hegemonia nas sociedades locais concretas e nos vários pata-mares de incidência política, até as estruturas de poder mundial (mídia, fóruns de dirigentes políticos e empresariais, cúpulas etc.). refiro-me à disputa de hegemonia no sentido gramsciano que, em uma apropriação livre, defino como a criação de “grandes movimentos cidadãos irresistíveis”. Como fazer isso sem protagonis-mos a priori, como é da tradição de esquerda? o segredo, me parece, está na construção de coalizões abertas, que partem de reconhecer como indispensáveis os outros e outras e que de todos e todas depende a própria agenda e a construção do caminho de sua implementa-ção. Desse modo podem gestar-se consensos ativos, fundamentais para dar força na disputa de hegemonia. Mas é fundamental reconhecer que, para a cidadania, sempre o espaço público do debate e da livre-circulação de ideias é a

prioridade. A comunicação e as campanhas públicas são, assim, uma arena prioritária do modo de agir necessário.

No FSM, fala-se em democratizar a de-mocracia. Como? Como concretizar a radicalida-de do agir contido em tal afirmação? Penso que se trata de apostar na democracia como modo de transformar a sociedade, sem a opção pela violência da força armada. ou seja, a radicalidade está em fazer valer as contra-dições da disputa de hegemonia e poder que a democracia propicia, com uma estratégia de re-volução permanente, de legitimidade das demandas cida-dãs, instituindo a legalidade do direito como conquistas de-mocráticas.

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