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Andrei Netto CORRESPONDENTE / PARIS N ão bastasse a epidemia de escân- dalos que assola o País, a moral do brasileiro vem sendo enxova- lhada ao longo dos últimos meses por outras duas epidemias que abalaram não apenas a saúde de suas vítimas, mas também a coesão da socieda- de. Histórias como a do padre que suspendeu o aperto de mão e a hóstia na boca são só um exemplo rocambolesco dos sintomas de medo irracional e de desagregação social em curso no Brasil, onde zika e H1N1 deixam um rastro de in- felizes fatos concretos e receios por vezes injus- tificados e exagerados. Portar uma máscara cirúrgica inútil é um si- nal de individualismo e de rejeição do outro, tanto quanto oferecer vacinas em uma conces- sionária é um indício de elitismo e de menos- prezo pelo pobre. Mas o Brasil pode se conso- lar: os indicativos de terror e de mesquinharia não são uma particularidade verde-amarela, mas fartos na história de toda a humanidade quando o assunto são epidemias. Afinal, a me- mória de nossas sociedades ainda carrega tra- ços de tragédias como a gripe espanhola de 1918 e 1919, que deixou mais de 50 milhões de mortos em todo o mundo. Esses resquícios Pa- trick Zylberman, doutor em história da Saúde Pública e professor da École des Hautes Etu- des en Santé Publique (EHHESP), da Universi- té Sorbonne – Paris Cité, da França, chama de “memória surda das epidemias”. Em entrevista ao Estado, Zylberman lembra que, entre as reações típicas, espontâneas ou não, de sociedades ameaçadas por epidemias es- tão a fuga, os movimentos de pânico, o aumen- to vertiginoso do preconceito violento, as teo- rias conspiratórias, a xenofobia e a demofobia – ou seja, um pouco de tudo que pode ser encon- trado no Brasil da zika e do H1N1. Para o historiador, parte do medo se justifica. As instituições internacionais e os governos, os laboratórios farmacêuticos e a medicina em ge- ral estão distantes de terem identificado todas as ameaças à saúde que pairam sobre a existên- cia humana. Zika e sua súbita e ainda incom- preendida mutação em vírus preocupante é o mais recente exemplo, de uma lista que inclui o HIV e a aids há pouco mais de 30 anos. É fato que a humanidade está em meio a uma acelera- ção dos eventos epidêmicos – e o medo que os acompanha, é claro, segue o ritmo. A seguir, os principais trechos da entrevista. l Há dois anos, o senhor afirmou que nós, a humanidade, temos “temores ancestrais de grandes epidemias”. Como se explica esse medo? O medo, o terror acompanha a memória surda das epidemias. Não esqueçamos que a peste ne- gra talvez tenha ceifado em alguns anos 50 mi- lhões de vidas em uma Europa que, em meados do século 14, tinha 80 milhões de habitantes. Es- se gostinho de cataclismo sobreviveu em nossa cultura até recentemente. Nós poderíamos citar a devastação pela cólera, que a América do Sul enfrentou mais uma vez em 1991, ou ainda a po- liomielite, que gerou pânico, como em Nova York em 1916, com 27 mil casos e 6 mil mortes. O historiador grego Tucídides foi o primeiro a descrever a desintegração social causada por uma epidemia violenta: o esfacelamento das au- toridades, a desorganização brutal das estrutu- ras sociais e mentais, o rebaixamento do Estado, uma sociedade humana no limite de suas forças. De uma precisão fantástica, sua pintura nunca foi superada. A “peste” de Atenas, em 430 e em 427-26, não foi apenas uma crise sanitária, mas foi também uma crise moral de grande amplitu- de. A infecção não destrói apenas o corpo – ela também destrói as instituições, os costumes, uma sociedade. A destruição é maciça, com de- sorganização maciça: esse é o duplo resultado de uma crise epidêmica. Tucídides menciona ainda a impiedade, a humanidade sem lei nem regra – a anomia. Símbolo desse desmoronamento da civi- lização, os rituais funerários são pisoteados. Lu- crécio, Boccace e, mais perto de nós, Thomas Mann, Artaud, Giono, Camus, todos usaram este topos – essa imagem quintessencial da epidemia. l Desde a epidemia de gripe espanhola, em 1918- 19, nossos sistemas de saúde foram aperfeiçoados para detectar melhor um vírus e uma epidemia. Se, de um lado conhecemos mais vírus, de outro temos mais controle sobre eles. É razoável ter medo nos nossos dias? Mas ainda nós estamos muito longe de conhe- cer melhor os agentes microbianos presentes em nosso ambiente externo e interno. E os que nós conhecemos – algumas centenas – estão realmente sob controle? Há razões para duvi- dar. O zika, por exemplo, é uma completa sur- presa. Até 2013, era apenas um vírus anedótico. Sua presença foi verificada na Polinésia France- sa, mas havia pouquíssimos casos de síndrome de Guillain-Barré, uma afec- ção neurológica causada, nós sabemos hoje, pelo vírus. De repente, o zika se torna preocupante. Qual é a razão de tal evolução? Nós ainda não sabemos. Nossos sistemas de supervisão de ris- cos epidêmicos foram melhorados nos últimos tempos, é verdade, mas ainda estão longe da perfeição, até porque es- tão muito concentrados no Norte e mui- to ausentes no Sul. É razoável ter me- do? O medo pode existir, na verdade, quando ele engendra a prudência, fruto da tomada de consciência da necessida- de de se preparar para lutar contra os riscos epidêmicos. Ele não é razoável, por outro lado, se apenas aumenta nos- sa tendência espontânea de considerar antes de mais nada os piores cenários. l Nos últimos anos, temos vivido eventos epidêmicos frequentes: SARS em 2003, a gripe pan- dêmica H1N1 em 2009, ebola em 2013-2015, para citar exemplos. Há um aumento dos eventos epidê- micos no mundo? Estamos ameaçados? A humanidade coabita com os vírus há milhares de anos. Ao sair da 2ª Guerra Mundial, os meios de saúde pública foram tomados de um otimis- mo pouco justificado. Em 1967, por exemplo, o diretor-geral de Saúde dos Estados Unidos de- clarou que “o capítulo das epidemias infecciosas estava acabado”. Nós tínhamos então a convic- ção de ter chegado ao fim das epidemias, ao me- nos no mundo desenvolvido. Em 1980, a varíola foi erradicada. Mas, em 1981, o vírus da aids apa- receu, e o otimismo cedeu lugar a uma profunda melancolia. A complacência foi sucedida por uma preocupação às vezes exagerada, tão exage- rada que pode impedir uma avaliação objetiva do perigo. A epidemia do vírus ebola que asso- lou a África Ocidental em 2013-2015 é um exem- plo trágico dessa visão deformada das coisas. l A comunicação de uma epidemia é um tema delicado para as autoridades nacionais e mundiais. Qual é, na sua avaliação, a boa forma de falar ao público sobre o assunto? Eu sou obrigado a reconhecer que, nesse assun- to, os avanços que fizemos foram muito limita- dos. Há bons exemplos, como o Reino Unido, cu- jas campanhas de prevenção são com frequên- cia muito criativas – e lembro por exemplo da gripe pandêmica de 2009. A eficiência dessas campanhas está comprovada? É preciso se certi- ficar disso. E, além dos bons exemplos, há os muito ruins. A França e a Organização Mundial da Saúde (OMS) são dois exemplos de primeira grandeza. Paralisadas pelo risco político, as auto- ridades sanitárias francesas e a direção-geral da OMS não sabem como gerenciar a comunicação de uma crise sanitária. A diretora da OMS se es- força hoje para aplicar as recomendações do Re- latório Intermediário que experts lhe entrega- ram em julho passado a fim de tirar as lições da crise do ebola. Por que criticá-la? Que Margaret Chan desaconselhe às mulheres grávidas de visi- tarem zonas infectadas, não há nada a dizer: a OMS está cumprindo perfeitamente o seu pa- pel. Mas é surpreendente, entretanto, que seis dias após sua visita ao Brasil suas declarações en- corajem o mundo inteiro a ir aos Jogos Olímpi- cos – sob pressão do governo brasileiro, não há dúvida. A diretora-geral da OMS está autorizada a emitir um aviso sobre o risco de viagens para as gestantes, que correm alto risco de complica- ções graves após a contaminação por vírus zika. Não é inconsequente dizer o contrário? É uma contradição que pode confundir as pessoas. l No Brasil, fomos confrontados a duas epidemias simultâneas: a de zika e agora a de H1N1. Há pessoas que usam máscaras cirúrgicas na rua ou em lugares fechados, houve um padre que pediu a seus fiéis que não deem as mãos durante uma missa, ou ainda uma concessionária de carros que ofereceu aos clientes vacinas contra o H1N1. Não estamos à beira de uma nova epidemia: a de fobia? As reações a uma epidemia são mesmo muito diferentes em cada sociedade. Em 1993, em Surat, a 200 quilômetros ao norte de Bombay, um milhão de habi- tantes, de um total de 2,5 milhões, fu- giu quando a peste foi anunciada. A fu- ga coletiva, na maior parte das vezes, mas também individual é uma prática multissecular e um divisor de águas nas sociedades sob ameaça de epide- mia. Outro exemplo: os movimentos de pânico, como o dos Flagelantes, do século 14, durante a peste negra – mo- vimentos, aliás, organizados e que não tinham nada de explosão de emoções descontroladas. Outra reação típica: o aumento vertiginoso do preconceito violento. Aconteceu contra os pobres durante o Renascimento, por causa da peste e do tifo; contra os irlandeses no século 19, por causa da cólera; mais uma vez contra os pobres no século 19, por causa da tuberculose; contra os 4H (homossexuais, haitianos, hemofílicos e vi- ciados em heroína) nos anos 1980, por causa do HIV e da aids. E, claro, aconteceu contra os judeus quando da primeira “onda” da peste ne- gra, entre 1347 e 1349. Em 1832, nos bairros ope- rários das grandes cidades, a população estava convencida de que a cólera era propagada pelo governo com o objetivo de exterminá-la. A mes- ma ideia aparece entre os moradores do vilare- jo de Norfolk, no Reino Unido, que, nos anos 1850, viram na vacina contra a varíola, tornada obrigatória por lei para as crianças, um complô das autoridades a fim de matar todas as crian- ças de menos de 5 anos. A mesma ideia se difun- diu como um rastro de pólvora nos guetos ur- banos dos Estados unidos nos anos 1980-90, no momento da epidemia de HIV/aids. E agora estamos diante, mais uma vez, dessa crença doentia pela internet. Em 2009, podia-se ler na internet que o vírus H1N1 era criado pelos laboratórios diabólicos da ONU e da OMS, cu- jos objetivos secretos eram exterminar uma parte da população do planeta. Claro que esses fantasmas têm um custo. O cantão de Genebra conheceu vários “complôs”, em 1530 e mais uma vez em 1545, quando os supostos “porta- dores da peste” – trabalhadores estrangeiros temporários empregados em funções simples para auxiliar os doentes da peste – eram perse- guidos nos tribunais e acusados de ter difundi- do a infecção. É preciso resistir à tentação de menosprezar esses clichês do obscurantismo. Em longo termo, essas “teorias conspirató- rias” irrompem e parecem inerentes à própria epidemia. Fica claro que a fobia é uma hidra de cem cabeças – e nem todas são tão atraentes como a de uma concessionária. l Na sua opinião, as redes sociais desempenham um papel positivo ou negativo quando de eventos epidêmicos? No momento em que alguns de nós têm muito medo, não estamos estimulando o medo e o preconceito, talvez até o isolamento de nossos filhos, de nossos familiares ou de nós mesmos? Crenças sofrem a influência do debate público e da pressão midiática. Então, eu pergunto, em que medida, não a percepção do risco, mas as crenças foram influenciadas pelos blogueiros? Na França, o impacto dos antivacinação na opi- nião pública nunca foi medido. Um primeiro teste muito promissor foi feito nos países angló- fonos – veja o estudo Chew et Eysenbach, PLoS ONE, de 5/11/2010. Entre mais de 2 milhões de tweets em língua inglesa – mais de 50% deles de americanos – que tinham as hashtags “H1N1” ou “gripe suína” entre 1º de maio e 31 de dezem- bro de 2009, ou seja, em média 600 tweets por dia, 5.395 foram submetidos a uma análise de conteúdo. Cerca de 13% deles continham brin- cadeiras e sarcasmos, 12% demonstravam in- quietude, 10% faziam perguntas, 4,5% apenas disseminavam “desinformação” – definida por palavras-chave como conspiração, toxina ou au- tismo. O peso relativo da “desinformação” no fluxo de tweets analisados parece relativamen- te modesto, ainda que sua proporção no tempo tenha variado muito, de 2% a 9%, entre junho e agosto, com uma parte igual a 4% e 6% entre o fim de agosto e o fim de novembro, ou seja du- rante a campanha de vacinação. Se a desinfor- mação está longe de estar ausente do fluxo emi- tido pelas redes sociais durante a epidemia de 2009, nós vemos que também não é o tsunami que alguns descrevem. Mais importante do que isso, e muito mais inquietante, foi a raridade das remissões às fontes oficiais, como Centros para o Controle e Prevenção de Doenças (CDC) ou a OMS – só 1,5% dos tweets conti- nham links para essas instituições. O que está em dúvida, nesse aspecto, é a pouca confiança das pessoas nas autoridades sanitárias. PATRICK ZYLBERMAN HISTORIADOR DE SAÚDE PÚBLICA DA UNIVERSIDADE SORBONNE ENTREVISTA ABRIL 8 São Paulo registrou 17 pessoas mortas este ano com a gripe H1N1 e 201 infectados. Nos três primeiros meses de 2015, a capital teve só um caso da doençae não houve morte. Para Patrick Zylberman, doutor em História da Saúde, a “memória surda das epidemias” aflora a cada novo sinal de alerta de risco de contaminação em massa. Só assim para explicar por que uma concessionária de carros em São Paulo oferece vacinas EPIDEMIA DE EPIDEMIAS NAROWE E1 DOMINGO, 10 DE ABRIL DE 2016 O ESTADO DE S. PAULO

Epidemia de Epidemias

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Page 1: Epidemia de Epidemias

Andrei NettoCORRESPONDENTE / PARIS

N ão bastasse a epidemia de escân-dalos que assola o País, a moraldo brasileiro vem sendo enxova-lhada ao longo dos últimos mesespor outras duas epidemias queabalaram não apenas a saúde de

suas vítimas, mas também a coesão da socieda-de. Histórias como a do padre que suspendeu oaperto de mão e a hóstia na boca são só umexemplo rocambolesco dos sintomas de medoirracional e de desagregação social em curso noBrasil, onde zika e H1N1 deixam um rastro de in-felizes fatos concretos e receios por vezes injus-tificados e exagerados.

Portar uma máscara cirúrgica inútil é um si-nal de individualismo e de rejeição do outro,tanto quanto oferecer vacinas em uma conces-sionária é um indício de elitismo e de menos-prezo pelo pobre. Mas o Brasil pode se conso-lar: os indicativos de terror e de mesquinharianão são uma particularidade verde-amarela,mas fartos na história de toda a humanidadequando o assunto são epidemias. Afinal, a me-mória de nossas sociedades ainda carrega tra-ços de tragédias como a gripe espanhola de1918 e 1919, que deixou mais de 50 milhões demortos em todo o mundo. Esses resquícios Pa-trick Zylberman, doutor em história da SaúdePública e professor da École des Hautes Etu-des en Santé Publique (EHHESP), da Universi-té Sorbonne – Paris Cité, da França, chama de“memória surda das epidemias”.

Em entrevista ao Estado, Zylberman lembraque, entre as reações típicas, espontâneas ounão, de sociedades ameaçadas por epidemias es-tão a fuga, os movimentos de pânico, o aumen-to vertiginoso do preconceito violento, as teo-rias conspiratórias, a xenofobia e a demofobia –ou seja, um pouco de tudo que pode ser encon-trado no Brasil da zika e do H1N1.

Para o historiador, parte do medo se justifica.As instituições internacionais e os governos, oslaboratórios farmacêuticos e a medicina em ge-ral estão distantes de terem identificado todasas ameaças à saúde que pairam sobre a existên-cia humana. Zika e sua súbita e ainda incom-preendida mutação em vírus preocupante é omais recente exemplo, de uma lista que inclui oHIV e a aids há pouco mais de 30 anos. É fatoque a humanidade está em meio a uma acelera-ção dos eventos epidêmicos – e o medo que osacompanha, é claro, segue o ritmo. A seguir, osprincipais trechos da entrevista.

l Há dois anos, o senhor afirmou que nós, ahumanidade, temos “temores ancestrais degrandes epidemias”. Como se explica esse medo?O medo, o terror acompanha a memória surdadas epidemias. Não esqueçamos que a peste ne-gra talvez tenha ceifado em alguns anos 50 mi-lhões de vidas em uma Europa que, em meadosdo século 14, tinha 80 milhões de habitantes. Es-se gostinho de cataclismo sobreviveu em nossacultura até recentemente. Nós poderíamos citara devastação pela cólera, que a América do Sulenfrentou mais uma vez em 1991, ou ainda a po-liomielite, que gerou pânico, como em NovaYork em 1916, com 27 mil casos e 6 mil mortes.O historiador grego Tucídides foi o primeiro adescrever a desintegração social causada poruma epidemia violenta: o esfacelamento das au-toridades, a desorganização brutal das estrutu-ras sociais e mentais, o rebaixamento do Estado,uma sociedade humana no limite de suas forças.De uma precisão fantástica, sua pintura nuncafoi superada. A “peste” de Atenas, em 430 e em427-26, não foi apenas uma crise sanitária, masfoi também uma crise moral de grande amplitu-de. A infecção não destrói apenas o corpo – elatambém destrói as instituições, os costumes,uma sociedade. A destruição é maciça, com de-sorganização maciça: esse é o duplo resultado deuma crise epidêmica. Tucídides menciona aindaa impiedade, a humanidade sem lei nem regra – aanomia. Símbolo desse desmoronamento da civi-lização, os rituais funerários são pisoteados. Lu-crécio, Boccace e, mais perto de nós, ThomasMann, Artaud, Giono, Camus, todos usaram estetopos – essa imagem quintessencial da epidemia.

l Desde a epidemia de gripe espanhola, em 1918-19, nossos sistemas de saúde foram aperfeiçoadospara detectar melhor um vírus e uma epidemia. Se,de um lado conhecemos mais vírus, de outro temosmais controle sobre eles. É razoável ter medo nosnossos dias?Mas ainda nós estamos muito longe de conhe-cer melhor os agentes microbianos presentesem nosso ambiente externo e interno. E os quenós conhecemos – algumas centenas – estãorealmente sob controle? Há razões para duvi-dar. O zika, por exemplo, é uma completa sur-presa. Até 2013, era apenas um vírus anedótico.Sua presença foi verificada na Polinésia France-

sa, mas havia pouquíssimos casos desíndrome de Guillain-Barré, uma afec-ção neurológica causada, nós sabemoshoje, pelo vírus. De repente, o zika setorna preocupante. Qual é a razão detal evolução? Nós ainda não sabemos.Nossos sistemas de supervisão de ris-cos epidêmicos foram melhorados nosúltimos tempos, é verdade, mas aindaestão longe da perfeição, até porque es-tão muito concentrados no Norte e mui-to ausentes no Sul. É razoável ter me-do? O medo pode existir, na verdade,quando ele engendra a prudência, frutoda tomada de consciência da necessida-de de se preparar para lutar contra osriscos epidêmicos. Ele não é razoável,por outro lado, se apenas aumenta nos-sa tendência espontânea de considerarantes de mais nada os piores cenários.

l Nos últimos anos, temos vivido eventosepidêmicos frequentes: SARS em 2003, a gripe pan-dêmica H1N1 em 2009, ebola em 2013-2015, paracitar exemplos. Há um aumento dos eventos epidê-micos no mundo? Estamos ameaçados?A humanidade coabita com os vírus há milharesde anos. Ao sair da 2ª Guerra Mundial, os meiosde saúde pública foram tomados de um otimis-mo pouco justificado. Em 1967, por exemplo, odiretor-geral de Saúde dos Estados Unidos de-clarou que “o capítulo das epidemias infecciosasestava acabado”. Nós tínhamos então a convic-ção de ter chegado ao fim das epidemias, ao me-nos no mundo desenvolvido. Em 1980, a varíolafoi erradicada. Mas, em 1981, o vírus da aids apa-receu, e o otimismo cedeu lugar a uma profundamelancolia. A complacência foi sucedida poruma preocupação às vezes exagerada, tão exage-rada que pode impedir uma avaliação objetivado perigo. A epidemia do vírus ebola que asso-lou a África Ocidental em 2013-2015 é um exem-plo trágico dessa visão deformada das coisas.

l A comunicação de uma epidemia é um temadelicado para as autoridades nacionais e mundiais.Qual é, na sua avaliação, a boa forma de falar aopúblico sobre o assunto?Eu sou obrigado a reconhecer que, nesse assun-to, os avanços que fizemos foram muito limita-dos. Há bons exemplos, como o Reino Unido, cu-jas campanhas de prevenção são com frequên-cia muito criativas – e lembro por exemplo dagripe pandêmica de 2009. A eficiência dessascampanhas está comprovada? É preciso se certi-ficar disso. E, além dos bons exemplos, há osmuito ruins. A França e a Organização Mundialda Saúde (OMS) são dois exemplos de primeiragrandeza. Paralisadas pelo risco político, as auto-ridades sanitárias francesas e a direção-geral daOMS não sabem como gerenciar a comunicaçãode uma crise sanitária. A diretora da OMS se es-força hoje para aplicar as recomendações do Re-latório Intermediário que experts lhe entrega-ram em julho passado a fim de tirar as lições dacrise do ebola. Por que criticá-la? Que MargaretChan desaconselhe às mulheres grávidas de visi-tarem zonas infectadas, não há nada a dizer: aOMS está cumprindo perfeitamente o seu pa-pel. Mas é surpreendente, entretanto, que seisdias após sua visita ao Brasil suas declarações en-corajem o mundo inteiro a ir aos Jogos Olímpi-cos – sob pressão do governo brasileiro, não hádúvida. A diretora-geral da OMS está autorizadaa emitir um aviso sobre o risco de viagens paraas gestantes, que correm alto risco de complica-ções graves após a contaminação por vírus zika.Não é inconsequente dizer o contrário? É umacontradição que pode confundir as pessoas.

l No Brasil, fomos confrontados a duas epidemiassimultâneas: a de zika e agora a de H1N1. Hápessoas que usam máscaras cirúrgicas na rua ouem lugares fechados, houve um padre que pediu aseus fiéis que não deem as mãos durante umamissa, ou ainda uma concessionária de carros queofereceu aos clientes vacinas contra o H1N1. Nãoestamos à beira de uma nova epidemia: a de fobia?As reações a uma epidemia são mesmo muito

diferentes em cada sociedade. Em1993, em Surat, a 200 quilômetros aonorte de Bombay, um milhão de habi-tantes, de um total de 2,5 milhões, fu-giu quando a peste foi anunciada. A fu-ga coletiva, na maior parte das vezes,mas também individual é uma práticamultissecular e um divisor de águasnas sociedades sob ameaça de epide-mia. Outro exemplo: os movimentosde pânico, como o dos Flagelantes, doséculo 14, durante a peste negra – mo-vimentos, aliás, organizados e que nãotinham nada de explosão de emoçõesdescontroladas. Outra reação típica: oaumento vertiginoso do preconceitoviolento. Aconteceu contra os pobresdurante o Renascimento, por causa dapeste e do tifo; contra os irlandeses noséculo 19, por causa da cólera; maisuma vez contra os pobres no século19, por causa da tuberculose; contra os

4H (homossexuais, haitianos, hemofílicos e vi-ciados em heroína) nos anos 1980, por causado HIV e da aids. E, claro, aconteceu contra osjudeus quando da primeira “onda” da peste ne-gra, entre 1347 e 1349. Em 1832, nos bairros ope-rários das grandes cidades, a população estavaconvencida de que a cólera era propagada pelogoverno com o objetivo de exterminá-la. A mes-ma ideia aparece entre os moradores do vilare-jo de Norfolk, no Reino Unido, que, nos anos1850, viram na vacina contra a varíola, tornadaobrigatória por lei para as crianças, um complôdas autoridades a fim de matar todas as crian-ças de menos de 5 anos. A mesma ideia se difun-diu como um rastro de pólvora nos guetos ur-banos dos Estados unidos nos anos 1980-90,no momento da epidemia de HIV/aids. E agoraestamos diante, mais uma vez, dessa crençadoentia pela internet. Em 2009, podia-se lerna internet que o vírus H1N1 era criado peloslaboratórios diabólicos da ONU e da OMS, cu-jos objetivos secretos eram exterminar umaparte da população do planeta. Claro que essesfantasmas têm um custo. O cantão de Genebraconheceu vários “complôs”, em 1530 e maisuma vez em 1545, quando os supostos “porta-dores da peste” – trabalhadores estrangeirostemporários empregados em funções simplespara auxiliar os doentes da peste – eram perse-guidos nos tribunais e acusados de ter difundi-do a infecção. É preciso resistir à tentação demenosprezar esses clichês do obscurantismo.Em longo termo, essas “teorias conspirató-rias” irrompem e parecem inerentes à própriaepidemia. Fica claro que a fobia é uma hidra decem cabeças – e nem todas são tão atraentescomo a de uma concessionária.

l Na sua opinião, as redes sociais desempenhamum papel positivo ou negativo quando de eventosepidêmicos? No momento em que alguns de nóstêm muito medo, não estamos estimulando o medoe o preconceito, talvez até o isolamento de nossosfilhos, de nossos familiares ou de nós mesmos?Crenças sofrem a influência do debate públicoe da pressão midiática. Então, eu pergunto, emque medida, não a percepção do risco, mas ascrenças foram influenciadas pelos blogueiros?Na França, o impacto dos antivacinação na opi-nião pública nunca foi medido. Um primeiroteste muito promissor foi feito nos países angló-fonos – veja o estudo Chew et Eysenbach, PLoSONE, de 5/11/2010. Entre mais de 2 milhões detweets em língua inglesa – mais de 50% deles deamericanos – que tinham as hashtags “H1N1”ou “gripe suína” entre 1º de maio e 31 de dezem-bro de 2009, ou seja, em média 600 tweets pordia, 5.395 foram submetidos a uma análise deconteúdo. Cerca de 13% deles continham brin-cadeiras e sarcasmos, 12% demonstravam in-quietude, 10% faziam perguntas, 4,5% apenasdisseminavam “desinformação” – definida porpalavras-chave como conspiração, toxina ou au-tismo. O peso relativo da “desinformação” nofluxo de tweets analisados parece relativamen-te modesto, ainda que sua proporção no tempotenha variado muito, de 2% a 9%, entre junho eagosto, com uma parte igual a 4% e 6% entre ofim de agosto e o fim de novembro, ou seja du-rante a campanha de vacinação. Se a desinfor-mação está longe de estar ausente do fluxo emi-tido pelas redes sociais durante a epidemia de2009, nós vemos que também não é o tsunamique alguns descrevem. Mais importante do queisso, e muito mais inquietante, foi a raridadedas remissões às fontes oficiais, como Centrospara o Controle e Prevenção de Doenças(CDC) ou a OMS – só 1,5% dos tweets conti-nham links para essas instituições. O que estáem dúvida, nesse aspecto, é a pouca confiançadas pessoas nas autoridades sanitárias.

PATRICK ZYLBERMAN

HISTORIADOR DE

SAÚDE PÚBLICA DA

UNIVERSIDADE SORBONNE

ENTREVISTA

ABRIL

8

São Pauloregistrou

17 pessoasmortas esteano com a

gripe H1N1 e201 infectados.

Nos trêsprimeiros

meses de 2015,a capital teve

só um caso dadoençae nãohouve morte.

Para Patrick Zylberman, doutor em História daSaúde, a “memória surda das epidemias” aflora acada novo sinal de alerta de risco de contaminaçãoem massa. Só assim para explicar por que umaconcessionária de carros em São Paulo oferece vacinas

EPIDEMIA DEEPIDEMIAS

NAROWE

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