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Eu, Daniel, engraxador de sapatos

Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

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Eu, Daniel, engraxador de sapatos

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Introdução

No dia 24 de outubro de 1929, quinta-feira, a Bolsa de Nova Iorque ruiu. Não houve

vidros estilhaçados, soalhos a voar em pedaços, nem paredes destruídas; porque não era o

prédio que se desmoronava, mas os algarismos que sustentavam toda a estabilidade

económica dos Estados Unidos.

Nos escombros desta catástrofe sem precedente, muitas vidas humanas se perderam.

Em 1932, perto de quarenta por cento da população branca ativa americana encontrava-se

sem trabalho e sem rendimentos, bem como cinquenta e seis por cento da população negra.

As crianças que cresceram durante a década da Grande Recessão ficariam marcadas

para sempre pela pobreza, pelo desespero e pela humilhação que assolaram a nossa

sociedade.

A minha mãe foi uma dessas crianças. Abandonada pelo pai em pleno coração da crise,

com um irmão e sete irmãs, foi educada pela minha avó, uma pequena irlandesa corajosa que,

para manter viver a sua família, pouco mais tinha do que a força do seu amor. Durante toda a

minha infância, aquando das reuniões de família, ouvi contar incansavelmente as peripécias

destes tempos difíceis Mas nesses relatos não havia amargura. Transparecia o entusiasmo e

as gargalhadas de uma família a quem a adversidade tornara mais forte e mais unida.

Foi esse espírito indomável que inspirou este livro.

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Terça-feira, 18 de outubro de 1932

Não pretendo ser um anjo. Aborrecimentos, já tive muitos; mas, até agora, nada

de grave. Coisas pequenas, como roubar maçãs dos expositores na rua 105, ou

apanhar o autocarro na Avenida Lexington sem pagar bilhete. Ninharias.

E daquela vez em que, com a Maggie Riley, atirámos pela janela uma boneca

embrulhada nos vestidos da sua irmã mais nova. Ui! Recordo ainda a tareia que levei

por causa disso. Éramos miúdos, não o fazíamos por mal. Quer dizer: nunca teríamos

feito uma coisa daquelas se soubéssemos que a mãe de Maggie estava sentada nas

escadas da rua e iria ver a boneca cair. Senti-me mesmo mal, depois disso. Maggie

disse-me que era a primeira vez que via a mãe desmaiar, embora, com nove anos, ela

já as devesse ter feito boas.

Bem, mas isto não foi nada comparado com o que se passou esta manhã na loja

do velho Weissman. Estava eu diante da montra, a olhar para o boião do dinheiro e a

pensar no que poderia comprar se ganhasse o concurso, quando chegaram os gémeos

Sullivan a discutir sobre quanto dinheiro estaria no boião.

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Eu ria à socapa: pelos meus cálculos científicos, tinha a certeza de que ia ganhar.

Disse-lhes que estavam longe da quantia exata, mas não me deram ouvidos.

E depois, Harry, que é o mais velho (dois minutos, creio eu) resolveu roubar

algumas gomas de alcaçuz. Desafiou-me a que fosse entreter o velho Weissman,

enquanto ele e Frank surripiavam o alcaçuz. Eu estava cheio de fome. Disse para mim

que o velhote devia ter à mão dois ou três rebuçados, e aceitei o desafio.

Que palerma! Ainda não o tinha conseguido levar para o armazém quando se

ouviu um grande estardalhaço! Harry tinha atirado um tijolo contra a montra.

Corremos. O boião do dinheiro tinha desaparecido, e os gémeos também,

evidentemente. Restava apenas a Sr.ª Ruiz, especada diante do escaparate da sopas

Campbell, a gritar como se lhe tivessem batido. E eu, feito palerma, em vez de ficar

calmo e fazer de conta que não sabia de nada, entrei em pânico. Aqueles gritos, o

vidro partido, subiu-me tudo à cabeça. Cheio de medo, desatei a correr como um

louco.

Para cúmulo do azar, em frente da loja tinha-se formado um círculo de mirones e,

mesmo no centro, estava o sargento Finnegan, vestido à paisana. Não sei como fez

para me apanhar, pois estava a dois ou três metros de mim, o certo é que me agarrou

pelo pescoço. É mesmo o que se diz “ter o braço comprido”… Segurava-me com força,

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aquele velho caranguejo (tem no mínimo trinta anos). Ergueu-me pela gola do casaco,

fiquei de pés a abanar como um espantalho, e depois com os olhos muito abertos

junto dos meus, perguntou-me:

— Olha lá, Danny, a procederes assim, aonde queres ir parar?

Vi que estava em maus lençóis. Comecei a ter medo, com as tripas às voltas e

toda aquela barulheira. Procurava por todos os meios uma forma de escapar, mas o

sargento Finnegan segurava-me com força. E depois, mesmo que conseguisse

escapar, onde iria esconder-me? Na estação, com os empregados do caminho-de-

ferro? Mais cedo ou mais tarde, teria de voltar para casa e então…

De qualquer modo, o sargento Finnegan não me dava hipótese.

— Devia levar-te à esquadra, só para te meter medo. Era o que faria, se não fosse

amigo do teu pai. Mas conhecendo eu o Daniel Garvey como conheço, não vale a

pena: levo-te a casa e ele trata do assunto.

Tinha vontade de lhe replicar com alguma coisa do género “Há de ganhar muito

com isso”, mas pensei que era melhor fechar a boca.

É que vocês não conhecem o meu pai. É um irlandês genuíno. Um imigrante. Com

ideias próprias do Bem e do Mal firmemente enraizadas na cabeça. Quem o ouvir, até

pensa que devia ter sido um santinho quando era novo, porque está sempre a dizer

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“Na tua idade, fazia isto. Na tua idade, não fazia aquilo.”

E, além disso, põe o nosso nome nos píncaros.

Garvey é um nome bonito, concordo. Um nome como qualquer outro… Mas, ao

ouvir o meu pai, dir-se-ia que é banhado a ouro fino. Juro que é verdade.

— O teu nome é Daniel Thomas Garvey — repete ele vezes sem conta. — É o meu

nome, era o do meu pai e já foi o do meu avô. Tens um nome de respeito, meu filho.

Isto é uma coisa que nunca ninguém te poderá tirar.

Repete-mo tantas vezes que até me dá vontade de vomitar. Não é que o meu pai

seja um mau tipo. A maior parte do tempo não o trocaria por outro pai. Mas quando

acha que o nosso nome anda pela lama, cuidado! Claro que não tenho gosto nenhum

em sujar o nome dos Garvey. Não faço de propósito. Como desta vez, por exemplo.

— Vamos, Danny — disse o sargento, empurrando-me.

Quando vi que se dirigia para Madison Avenue, comecei a ficar preocupado.

— Ó Sr. Sargento, eu vivo na Park Avenue.

— Eu sei, meu palerma, mas tenho de acabar a ronda. Um passeiozinho vai fazer-

-te bem. Não achas que está bom, esta tarde?

Oh, aquele sorriso sarcástico! Eu, com ar encolhido, segui-o sem dizer nada.

Virámos na Rua 110, precisamente no momento em que o sol se punha. Os can-

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deeiros já estavam acesos. Nas ruas, havia homens reunidos a discutir e a fumar,

como todas as tardes. Crianças brincavam às escondidas, a saltar a corda ou a dar

pontapés numa velha lata de conserva. À passagem do elétrico, afastavam-se um

pouco para, logo de seguida, retomarem o jogo. Dois ou três deles, que tinham patins,

agarravam-se ao elétrico para andarem alguns metros, a gritar de alegria até o

condutor vir expulsá-los. Pelas janelas abertas, por cima da minha cabeça, ouvia as

mulheres a chamar a família para o jantar. Eu dava o que fosse preciso para estar no

lugar de um daqueles garotos e poder ir comer calmamente a minha casa, como todas

as tardes.

O sargento Finnegan não tinha pressa. Parou diante de um vendedor clandestino

a comprar uma maçã.

— Como estás, Joe?

— Já se viu melhor… Já se viu pior…

O vendedor de maçãs falava com uma voz branca e desesperada, de olhos fixos

no passeio. Observei-o com mais atenção. Tinha os cabelos desgrenhados, uma barba

de três dias, um casaco velho que lhe dava pela anca e saltitava ora sobre um pé ora

sobre o outro. Havia qualquer coisa nele que me fazia lembrar o Sr. Smey, o subdiretor

da minha antiga escola.

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A certa altura, levantou os olhos. O meu coração deu um pulo. Era mesmo o Sr.

Smey.

Pois é! Sabia que muitos professores ficaram sem trabalho desde o início da crise,

mas nunca imaginei que também acontecesse aos subdiretores. O Sr. Smey não me

conheceu e ainda bem, pois não devia gostar que eu o reconhecesse.

Desviei o olhar. Trazia um letreiro pendurado ao pescoço:

Estou desempregadoCompre-me uma maçãSó 5 cêntimos

O sargento Finnegan meteu a maçã ao bolso e fomos embora. Ao chegarmos à

esquina de Park Avenue, ouvi o barulho do comboio aéreo quando passava à altura do

terceiro andar, mesmo diante das nossas janelas. Desde pequeno que o vejo passar

várias vezes ao dia. Então, por hábito, levantei a mão para o saudar.

O sargento Finnegan pôs-se a rir.

— Gostavas mais de estar no comboio do que aqui, não, Danny?

Encolhi os ombros. Fora de questão deixá-lo adivinhar no que eu pensava.

Estávamos a aproximar-nos da nossa casa. Cheio de vergonha, caminhava de

cabeça baixa, na esperança de não ser reconhecido pelos vizinhos. Uma carroça

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passou mesmo ao meu lado e até me assustei ao ouvir os cascos dos cavalos a bater

no chão. Viraram para o túnel da Rua 107: recolhiam à cavalariça.

Estaria o meu pai à porta? Esta ideia não me largava. Mas diante do nº 1446, o

edifício vizinho do nosso, uma multidão especada à entrada tapava a vista do 1444.

Senti um arrepio gelado. Outro despejo, o terceiro num mês. Pouco a pouco, todos os

nossos vizinhos vão para a rua.

Desta vez, era a família White. Luther White, o filho, anda comigo no 4º ano na

escola Patrick Henry. Todos fazem troça dele por o pai ser negro e a mãe branca. E

ainda por cima ele chama-se White! Daí a nossa brincadeira favorita: “Pobre Luther” —

dizemos nós — “já sabes de que cor és?”

Nunca se zanga. Chama-nos idiotas ou burros albardados e, de vez em quando,

dá um empurrão a um ou outro de nós, mas não vai além disso. É isto que eu aprecio

no Luther: tem sentido de humor.

O pai também se chama Luther, e está desempregado há mais tempo do que os

outros. Antes da crise, era porteiro num daqueles hotéis chiques de um bairro fino.

Mas puseram-no na rua logo a seguir à queda da bolsa, mal os empregos começaram

a faltar. Deram o lugar dele a um branco. Passou-se o mesmo com muitos negros que

eu conheço.

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Depois da queda da bolsa, toda a gente ficou como louca. As pessoas suicidavam-

-se. Todos os dias havia quem se atirasse pela janela, ou de um telhado, ou se

lançasse à água. Quando perguntei ao meu pai o que é que tinham todos para se

matarem daquela maneira, respondeu-me que o dinheiro não fazia a felicidade e que

podia perverter os espíritos. Deve ter razão. No meu caso, por exemplo, o boião do Sr.

Weissman foi a minha desgraça!

O sargento Finnegan obrigou-me a parar para ver o que se passava no nº 1446.

Por fim lá me largou e disse:

— Vais esperar aqui por mim, Danny, e nada de asneiras, hein?

O olhar que me lançou bastava para paralisar um bando de assassinos a soldo.

Dirigiu-se ao pai do White.

— Bom dia, Luther.

— B’dia, sargento Finnegan — respondeu Luther num sotaque arrastado.

Adoro ouvi-lo falar. Tem o sotaque do Sul, como muitos negros do bairro, porque

viveram lá antes de virem para Nova Iorque. Quando chegaram, havia muito trabalho

para eles, e a cidade vibrava de risos e música.

Ainda me lembro dos belos serões de verão em que o meu pai e a minha mãe me

levavam a Harlem, para os lados da Rua 125, a ver os ricos a entrar no Cotton Club. Os

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acordes de jazz ouviam-se da rua. Agora, a minha mãe já não quer que se vá passear

para Harlem. Diz que é muito perigoso, que o desespero semeou a violência e o ódio.

— Então, Luther! — perguntava o sargento Finnegan. — O que é que se passa?

— É o que está a ver, sargento. Estão a pôr-nos na rua.

Demoraram-se a falar durante uns instantes.

A multidão olhava com inveja para os haveres dos White, móveis e caixotes

espalhados em cima do passeio. A mãe de Luther estava sentada no meio daquela

tralha, na sua velha cadeira de cozinha, com Rhetta, a filha mais pequena, ao colo, e

as duas irmãs de Luther agarradas à saia. Parecia uma rainha com a cabeça inclinada

para trás e olhar altivo. Algumas pessoas, como abutres, atreviam-se a remexer nos

seus bens, mas ela não lhes prestava atenção. Eu, só de a ver, tinha orgulho nela.

O sargento Finnegan bateu com o cassetete na armação de uma cama de ferro e

gritou:

— Toca a andar. Embora daqui, não há nada para ver.

Os abutres afastaram-se apenas alguns metros, prontos a regressar na primeira

oportunidade.

— Vocês deviam ir para o hospital de Santa Cecília — aconselhou o polícia ao Sr.

White. — Dão-vos abrigo por um ou dois dias, o tempo de procurarem qualquer coisa.

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O pai de Luther disse que sim com ar muito triste e Finnegan apertou-lhe a mão.

Depois tirou a maçã do bolso e deu-a à pequena Rhetta. Eu disse para mim: “Afinal,

este tipo não é assim tão mau… Bem, mas não deixa de ser polícia.”

Até parece que me adivinhou o pensamento. Virou-se para mim e disse:

— Ala, Danny! Pensas que me esqueci de ti?

No momento em que começámos a andar, Luther (o filho, meu colega) veio à

porta.

Trazia debaixo do braço uma pasta velha de couro a desfazer-se. Os nossos olhos

cruzaram-se por um segundo, depois desviámos o olhar.

Não sei qual dos dois sentia mais vergonha.

♦♦♦♦♦♦

2

Felizmente que o meu pai não estava à porta. Em compensação, o bando dos

miúdos Riley tinha saído para ver o espetáculo que havia cá fora. Eles é que não

correm o risco de serem despejados: a mãe é a porteira do prédio e, como tal, não têm

renda a pagar.

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Ao verem-me chegar sob a guarda do sargento Finnegan, ficaram de olhos

arregalados. A pequena Dotty tirou a boneca da caixa dos sapatos que lhe serve de

cama e apertou-a contra si, com medo que Finnegan a levasse para a cadeia.

Gritei-lhe:

— Buh! — e ela deu um salto de pelo menos um metro.

A pressão do sargento sobre o meu pescoço redobrou.

— Julgas-te esperto por meteres medo às meninas? Hein?

— Eeh… Nnn… Não.

Gaguejava tanto que até tive vergonha de mim.

— Então não repitas isso. Não vale a pena agravares o teu caso.

A entrada do edifício cheirava terrivelmente a desinfetante.

A Sr.ª Riley passa o tempo a espalhar Lysol por todo o lado, mas não me queixo.

Nem queiram saber como cheiram mal a maior parte dos edifícios! O nosso prédio não

é lá muito bonito, mas pelo menos é limpo. Os Riley trabalham na limpeza como um

exército bem organizado. Um esfrega o chão, outro encera as madeiras, um terceiro

lava os vidros… Dos onze membros da família, o pai é o único que não mexe uma

palha. E Marion, é claro: só tem dezoito meses. Ao passarmos pelo hall, dei uma

olhadela à caixa do correio: a correspondência ainda lá estava, sinal de que o meu pai

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ainda não tinha entrado. O meu coração saltou de alegria. Talvez o sargento não

tivesse tempo de esperar por ele…

Ele quis tocar à campainha, mas não o deixei.

— Não vale a pena. A fechadura está partida.

Empurrei a porta. Nas escadas, mesmo acima de nós, Maggie Riley e a irmã Kitty

desciam a bater com os pés. Carregavam ambas um balde de carvão. Ao verem-nos,

pararam de repente. Maggie encostou-se à parede e ficou a olhar para mim, com olhos

de pescada frita, e Kitty, mal virámos costas, pôs-se a cacarejar. Ah, as raparigas, que

praga!

Atrás da porta do nosso apartamento, a minha mãe cantava. Ouvia-se do primeiro

andar. Como canta bem, a minha mãe… Um dia li um conto em que um passarinho

maravilhoso fazia chorar o imperador da China. O pássaro que assim cantava era um

rouxinol. A minha mãe canta como um rouxinol, tenho a certeza, mesmo sem nunca

ter ouvido nenhum. O meu pai diz que, quando ela canta, revê as suas colinas

verdejantes, as famosas colinas da Irlanda... Também diz que, quando formos ricos, há

de comprar-lhe um piano.

A minha mãe está sempre a cantar quando passa a ferro. Diz que ajuda a passar

o tempo. E Deus sabe quanto tempo ela passa a engomar! Trabalha para um hotel

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chique da Rua 89, um hotel não muito católico, sabem o que quero dizer, em que os

pensionistas são só mulheres. Fazia lá a limpeza antes de nascer a minha irmãzinha

Maureen e, desde que é obrigada a ficar em casa, entregaram-lhe o tratamento da

roupa.

O meu pai brinca com ela por causa do trabalho e diz-lhe:

— Molly, sabes o que vamos escrever sobre a tua pedra tumular? Aqui jaz Molly

Garvey com o seu ferro de passar. Não pudemos arrancar-lho das mãos.

Os meus pais não têm o mesmo sotaque que eu: cresceram na Irlanda, enquanto

eu fui educado em Nova Iorque. Foi na escola que aprendi a falar como toda a gente,

mas neles nota-se bem o sotaque irlandês.

Ao chegar à porta, o sargento tirou o chapéu e obrigou-me a fazer o mesmo,

como quando vamos à igreja, por respeito à minha mãe. Ela causa sempre este efeito

nas pessoas.

Do outro lado do corredor, no apartamento dos Riley, ouvia-se um alarido

estranho, uma zaragata. O pai devia estar outra vez bêbedo. No quinto andar, alguém

estava a cozer couves, e o mau cheiro chegava ao nosso patamar, lutando

corajosamente com o cheiro do Lysol que vinha do rés-do-chão. Mas nem o barulho

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nem o cheiro desviaram a atenção do sargento Finnegan. Aproximou-se da porta e

bateu com firmeza.

A minha mãe parou de cantar para perguntar quem era.

— Sou eu, Mike Finnegan, Sr.ª Garvey. Trago-lhe o Daniel.

Ouviu-se lá dentro um grande reboliço. A minha mãe abriu a porta de olhos

arregalados, esperando já ver-me ferido ou algo pior. O seu alívio não durou mais do

que um instante. Quando me viu de pé, percebeu que eu deveria ter feito algum

disparate e olhou para mim, consternada, como se tivesse sido atingida de morte.

— Danny, meu filho, o que fizeste tu desta vez?

Eu, sem responder, revolvia os rebordos do chapéu.

Finnegan mandou-me entrar para a cozinha.

— O seu Daniel ainda não veio, Sr.ª Garvey?

— Não. Mas não demora. Quer sentar-se um bocadinho, Michael?

O sargento não se fez rogado. Puxou de uma cadeira e sentou-se com uma perna

dobrada e a outra esticada, como se fosse de pau. Estava decidido a esperar até o

meu pai voltar, o que não me agradava nada.

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Pus-me a olhar em volta. As imagens, os crucifixos, os quadros de Jesus e de

Maria fixavam-me todos com ar desolado, olhos cheios de tristeza, como se lhes

houvesse destroçado o coração. De repente, tive um acesso de calor. Pousei o chapéu

em cima do frigorífico e o casaco no cabide.

A tábua de passar a ferro estava armada perto do fogão, com uma toalha ainda

amarrotada que esperava pelo ferro. Na banheira, um pouco atrás, um monte de

roupa branca mergulhava na água azulada, e fora, estendidos numa corda por cima

das escadas exteriores, lençóis brancos abanavam ao vento.

No meio de toda aquela roupa, sobressaía Maureen, a minha irmãzinha, sentada

numa manta no centro da sala, tão ocupada a desmontar a cafeteira que ainda nem

tinha olhado para nós. Respirava aos sacões e um fio de baba, sinal da sua intensa

concentração, escorria-lhe do lábio inferior.

Fiz-lhe sinal:

— Ei! Olá, Mo…

Ergueu a cabeça toda sorridente, e respondeu-me — Da — batendo palmas.

Chama-me assim porque ainda não sabe dizer “Dan” e, muito menos, “Danny”.

Depois, resolveu levantar-se.

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Cada vez que se levanta é uma aventura, porque foi há muito pouco tempo que

aprendeu a andar sozinha. Começa por se apoiar nas mãos, depois junta os pés

debaixo dela e levanta o rabinho. Endireita-se por fim num equilíbrio instável, muito

admirada por ter conseguido. Às vezes volta a cair para trás, o que a obriga a

recomeçar.

Mas desta vez conseguiu. Pôs-se a caminhar na minha direção, a palrar: — Da…

Da… — com os braços estendidos para mim. Eu, a falar verdade, fiquei contente por

ter algo com que me ocupar. Peguei nela com um ímpeto de ternura. É mesmo querida

a minha irmãzinha! Adoro-a. Até ela nascer, sempre pensei que não ia ter mais irmãos.

A minha mãe tem dificuldade em ter bebés, perdeu alguns entre mim e Maureen. Mas,

quando a minha irmã estava para nascer, tínhamos dinheiro suficiente para pagar o

hospital. Foi assim que a minha mãe conseguiu: esteve muito mal, mas acabou tudo

bem.

Segurava a minha irmã contra mim e meti o nariz no pescoço dela. Cheirava ao

creme de barbear do meu pai, que se compra em Coney Island. Pôs-se a rir e meteu o

dedo polegar na minha boca. Durante todo este tempo, a minha mãe girava como um

pássaro na gaiola, a apanhar a manta e a cafeteira, a arrumar a tábua de passar no

quarto de hóspedes, e o ferro em cima do fogão. Por fim pôs água a ferver, pedindo

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desculpa pela desordem que reinava na casa. Qual desordem? Claro que ela estava

morta de curiosidade para saber que asneira é que eu tinha feito, mas não se atrevia a

perguntar…

Quanto ao sargento, esse não parava de puxar pelo colarinho, como alguém que

tem muito calor, e fazia um esforço enorme por manter a conversa. Acabou por contar

a expulsão dos White. Quando a minha mãe soube, ficou parada. Deixou-se cair para

uma cadeira a torcer nervosamente um lenço entre as mãos.

— Oh, Michael, o que vai ser agora daqueles infelizes?

— Não faço ideia. Têm família?

— Do lado da Ana, não. Desde que casou com o Luther, os pais nunca mais

quiseram vê-la. Mas talvez pudessem ir para o Sul. Foi de lá que o Luther veio …

— Se forem espertos, não vão para o Sul. Li hoje no jornal que um grupo de

brancos atirou um empregado negro pela janela do comboio e depois, com um tiro,

acabaram com ele, só para ficarem com o seu posto de trabalho! E não é a primeira

vez que isto acontece. Agora veja: se o Luther chegasse ao Sul à procura de emprego,

corria sério risco de ser linchado.

Ao ouvir estas palavras a minha mãe ficou pálida.

— Sinto-me tão culpada…— murmurou ela. — Devia ter-lhes oferecido alojamento

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e comida… Mas não temos meios. Mesmo nós, só Deus sabe até quando...

Uma olhadela rápida na minha direção e calou-se. Porém, eu sabia como a frase

devia acabar: só Deus sabe até quando teremos dinheiro para pagar o aluguer. Com o

meu pai desempregado e as nossas economias esgotadas, quanto tempo mais

poderemos viver de passar a ferro e do meu trabalhito de engraxador de sapatos?

O fervedor pôs-se a assobiar e a minha mãe levantou-se para preparar o chá. A

porta da rua do edifício bateu. Reconheci o passo do meu pai a subir as escadas e a

barriga começou a doer-me. Que podia eu fazer? Apertei Maureen nos braços e fiquei

à espera.

♦♦♦♦♦♦

3

Era mesmo o meu pai que chegava. Só de ouvir os passos, via-o subir

pesadamente as escadas, com o sobretudo a bater-lhe nas pernas e os olhos tristes

como céu em dia de chuva. O meu pai não é parecido connosco, com a sua farta

cabeleira preta e os olhos da mesma cor. Maureen e eu saímos ao lado da minha mãe.

Mas gostava mais de me parecer com ele, juro…

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Oh, a minha mãe é muito linda, mas sardas e cabelos ruivos ficam melhor numa

mulher do que num homem. Por exemplo, vejam Maureen: é linda como um anjo,

aquele cor-de-rosa! Mas eu… Tenho a certeza de que as mulheres nunca vão olhar

para mim como olham para o meu pai. É lindo como tudo! É o que dizem dele.

Normalmente, as passadas do meu pai tornam-se mais leves e aceleradas à

medida que se aproxima da porta. Para um momento antes de bater, o tempo

suficiente para pôr um lindo sorriso. Sei, porque um dia apanhei-o de surpresa.

Encontrava-me no patamar do quarto andar e ele não podia ver-me, mas eu via-o.

Depois, bate à porta e entra com o seu ar jubiloso como se tudo estivesse bem. A mãe

e eu recebemo-lo da mesma forma, com grandes sorrisos feitos e ar feliz.

Porém, as coisas não vão lá muito bem desde que ficou desempregado. É

carpinteiro, e até ao mês de março passado trabalhava na construção do Empire State

Building. Naquela altura, subia as escadas quatro a quatro a assobiar jigas irlandesas,

e quando entrava na cozinha punha-se a contar histórias incríveis, levantava a minha

mãe nos braços e fazia-a rir. E depois sentávamo-nos todos à mesa, a jantar.

— Construímos mais um andar! — dizia ele cheio de orgulho. — Estão a ver, um

andar por dia? E três mil empregados num estaleiro? Ah, dá gosto ver…

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Depois de jantar, acendia o cachimbo e punha-se a ler o jornal. Quando veio da

Irlanda, o meu pai não sabia ler. Frequentou a escola à noite depois do trabalho, para

aprender a ler e a escrever e, depois disso, considera a leitura do jornal um dever

sagrado.

— Meu filho, o teu pai não passava de um pobre criado de lavoura irlandês, um

camponês iletrado! — repetia-me, brandindo o estojo do cachimbo. — E agora o teu

pai constrói o edifício mais alto do mundo. Ah, a América… É de facto o país da sorte!

Agora, depois da Crise, o meu pai já não diz nada disso. Aliás, já quase nem fala.

Levanta-se todas as manhãs, lava-se, faz a barba com cuidado e sai à procura de

trabalho pelos quatro cantos da cidade. Às vezes vai ao Centro de Emprego de Nova

Iorque e põe-se na fila de espera para disputar com cinco mil outros desempregados

os poucos postos de trabalho que aparecem diariamente. De vez em quando, pega na

minha caixa de engraxador e vai trabalhar. Não quer que eu saiba, mas vi-o uma vez

ajoelhado no chão a engraxar sapatos.

O meu pai, o meu grande e orgulhoso pai que sabe ler o jornal, que construiu o

edifício mais alto do mundo, de joelhos na lama a engraxar sapatos… Nunca irá saber

que o vi.

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Desta vez, ao subir as escadas, os seus passos não se tornaram leves ao chegar

ao terceiro andar. E quando abriu a porta não trazia nenhum sorriso no rosto. Olhei

para ele: as mãos a tremer, o coração agitado aos saltos como peixe fora de água.

— Olá, pai.

A minha voz saiu como grito de rato.

Segurava Maureen diante de mim como um escudo e ela estendia as mãozitas

para ele com gritos de alegria.

Esboçou um sorriso forçado e tomou-a nos braços. Mas, pelo olhar que me lançou,

percebi que os colegas, na rua, o tinham informado da minha desventura. Aproximou-

se da minha mãe e deu-lhe um beijo, entregando-lhe Maureen. Depois, virou-se para o

sargento Finnegan e estendeu-lhe a mão.

— Boa noite, Mike. Não vieste aqui para conversar, pois não?

— Pois não, Daniel, receio bem que…

E Mike Finnegan contou-lhe tudo.

O meu pai, imóvel, escutava-o sem dizer palavra. Mas eu podia avaliar a sua

cólera por um sinal que nunca engana: o tremer impercetível das narinas.

Quando a minha mãe se irrita, fica tão vermelha que não se distinguem as sardas,

e os seus olhos verdes faíscam. Quando o meu pai se irrita, o olhar endurece, as

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pupilas tornam-se frias como gelo e as narinas tremem como as de um cavalo

selvagem.

Durante o discurso de Finnegan, a minha mãe já me lançava uns olhares de

preocupação, mas quando se referiu à montra partida e ao boião das moedas, ela

benzeu-se dizendo “Santo Deus!” como se eu fosse o diabo em pessoa.

Depois de ouvir tudo, o meu pai virou-se para mim. Fiquei petrificado.

— Daniel!

— Sim, pai?

— Anda cá.

Avancei a custo, como se os sapatos fossem de chumbo.

— És culpado, meu filho? Quero saber a verdade.

Como dizer “não” diante daquele olhar que me penetrava até à alma? Impossível

mentir.

— Eles tinham-me dito que só tiravam uma ou duas gomas de alcaçuz. Não sabia

que iam partir a montra, juro.

— Eles? Eles quem?

Fixei os olhos no linóleo. Isso é que ninguém no mundo me obrigaria a revelar.

Não sou um traidor.

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O meu pai pegou-me pelo queixo e obrigou-me a fixá-lo nos olhos.

— Diz-me lá de quem se trata, Danny.

Aguentei o seu olhar, com um aperto na garganta. Nem pensar. Eu não iria abrir a

boca.

O meu pai aproximou o seu rosto do meu e gritou-me na cara:

— Sabes quanto custa uma montra, hã?

— Não, pai.

— Muito mais dinheiro do que o nosso, e até mais do que o do pobre Weissman.

Então vi uma escapatória.

— O pobre Weissman? Estás a brincar! Toda a gente sabe que aquele velho

caranguejo está cheio de dinheiro.

Teria feito melhor se ficasse calado. Se há coisa que o meu pai não suporta é que

lhe respondam com impertinência e se falte ao respeito às pessoas de idade.

Eu tinha acertado no alvo e com uma só frase! Os olhos saltaram-lhe das órbitas

e, por momentos, julguei que me ia deixar estendido. Mas não. Limitou-se a respirar

fundo e a olhar-me nos olhos por um instante que me pareceu durar séculos. Depois,

com um grande suspiro, afastou-me com a mão e virou-se para o sargento Finnegan.

— Obrigado, Mike, por te teres dado ao trabalho de mo vires trazer. Eu vou tratar

Page 26: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

do assunto, acredita.

— Não duvido.

Finnegan pegou no chapéu, despediu-se da minha mãe e foi-se embora.

Num silêncio de morte ouvimos os seus passos a afastar-se e, por fim, o bater da

porta da rua. O meu pai virou-se então para mim.

— Veste o casaco. Vamos sair.

— Para onde? — perguntou com angústia a minha mãe.

— A casa do Weissman. Janta sossegada e dá de comer à Maureen. Não sei

quanto demoraremos e, para te dizer a verdade, já nem tenho fome.

Numa tristeza de morte, a minha mãe acenou que sim com a cabeça.

O meu pai passou-me o chapéu. A minha mãe viu-o abrir a porta e notei que tinha

os olhos húmidos, brilhantes como quem vai chorar. Pus o chapéu na cabeça, vesti o

casaco que estava pendurado no cabide e desci as escadas atrás dele.

Page 27: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

4

Pelo caminho o meu pai não abriu a boca. Dava grandes passadas e eu ia atrás.

Sentia uma vontade terrível de lhe falar mas, ao vê-lo de costas, quadradas como uma

parede, não me atrevi.

Quando chegámos à loja, já o Sr. Weissman tinha saído. Na porta via-se um

letreiro que dizia «FECHADO» e tábuas velhas a tapar o buraco da montra. Para evitar

que, mesmo assim, alguém fosse tentado a roubar, rondava por ali um polícia no

passeio em frente. O vidro partido pareceu-me feio como uma ferida aberta. Ainda

olhei para o chão a ver se havia sangue.

O meu pai atravessou a rua para ir falar com o polícia. Trocadas algumas

palavras, olhou para mim por cima do ombro e eu fiquei vermelho como uma papoila.

Será que o meu pai foi dizer-lhe para me levar para a esquadra? O polícia rosnou

qualquer coisa e apontou na direção de Madison Avenue. O pai agradeceu e pôs-se a

andar sem dizer palavra.

— Que vamos fazer, pai? — perguntei eu.

Não obtive resposta. Como o polícia nada fizesse para me prender, fui atrás do

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meu pai. Segui-o assim, sempre calado, até à Rua 102, onde parou diante de um

prédio semelhante ao nosso (o que não é muito original, uma vez que neste quarteirão

os prédios são todos parecidos. A única coisa que os distingue é que uns têm as

escadas na parte da frente e os outros na parte de trás). Em resumo, perguntava-me

porque é que o meu pai se interessava de repente por aquele prédio.

— O que vamos fazer? — perguntei novamente.

Sempre sem resposta, empurrou a porta do prédio que me bateu na cara e fiquei

sozinho na rua.

Olhei à minha volta. Também ali nada havia de especial. Nos passeios vagueavam

desempregados e, à luz dos candeeiros, havia indivíduos a fumar e a conversar. Dois

deles puseram-se a rir e eu tive a impressão de que se riam de mim, que sabiam tudo

o que se tinha passado. Isso assustou-me. Empurrei a porta e entrei.

O hall estava vazio.

Fiquei ali um minuto a pensar no que fazer. A entrada era exatamente como a

nossa, com o chão em mosaico e, nas paredes, painéis de madeira escura. Sem luz,

apenas a que vinha da porta vidrada que dava para o exterior. O meu pai devia estar

nas escadas. Empurrei a porta, não estranhando que a fechadura, tal como a da nossa

casa, estivesse partida. Certamente, com o frio que faz e todos estes sem-abrigo à

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procura de um telhado para dormir…

Nas escadas, pequenas lâmpadas elétricas emitiam, em cada patamar, uma luz

amarelada, o que tornava a obscuridade ainda mais assustadora. Também neste

aspeto era como em nossa casa: parecia haver em cada recanto seres

fantasmagóricos, prontos a atacar-nos. Felizmente ouvi os passos do meu pai por cima

da minha cabeça. Desatei a correr e apanhei-o no quarto andar. Também os

patamares estavam dispostos como em nossa casa: um apartamento à direita, outro à

esquerda, e o quarto de banho, que era comum, em frente das escadas.

Tinha muita vontade de ir ao quarto de banho mas, ao empurrar a porta, dei-me

conta de que estava terrivelmente escuro. Como em nossa casa, também aqui as

pessoas roubam as lâmpadas elétricas dos quartos de banho, porque estão baixas.

Considerando ser preferível ter medo em nossa casa, resolvi deixar para mais tarde as

minhas necessidades.

O meu pai estava a bater à porta 4B. Fez-me sinal para me aproximar e tirou-me

o chapéu da cabeça como já tinha feito o sargento Finnegan. Comecei a ficar nervoso

cá por dentro. Porque é que todos acham que não sou capaz de ser eu a tirar o

chapéu? Não sou nenhum palerma!

Um barulho abafado, dentro do apartamento, indicou-nos que alguém ia receber-

Page 30: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

-nos… A porta entreabriu-se a ranger e uma senhora baixinha de cabelos brancos

deitou a cabeça de fora.

— Quem é? — perguntou ela numa voz trémula.

— É a Sr.ª Weissman? — perguntou o meu pai.

— Sim, sim…

Eu nem acreditava no que via. A Sr.ª Weissman? Com tanto dinheiro e a viver

num prédio daqueles, horrível, sem água quente?

O meu pai retomou a palavra.

— Podemos entrar um bocadinho, minha senhora?

— Não sei — replicou ela, franzindo o sobrolho. — A comida já é pouca para nós,

os mendigos…

— Está enganada, não somos mendigos. Chamo-me Daniel Garvey e este é o meu

filho Danny. Trouxe-o cá para pedir desculpa ao seu marido. A montra partida, sabe…

A Sr.ª Weissman olhou para o meu pai de olhos arregalados. Por uns momentos

via-se que ficou hesitante. Depois, como juiz que decide, meneou a cabeça e

escancarou a porta.

— Entrem.

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A coxear nas suas pantufas desadequadas, o velho Weissman achava-se sentado

à mesa, com um pulôver remendado, e tendo na cabeça um chapeuzinho em forma de

semicírculo.

Não aparentava ser rico. O apartamento era muito parecido com o nosso, só não

tinha crucifixo nem imagens piedosas pregadas nas paredes. O fogão a carvão, o

frigorífico em madeira e o mobiliário reduzido era tudo tal e qual como na nossa casa.

O linóleo do chão estava desgastado e com buracos de onde em onde; os reposteiros

puídos pelo uso… A toalha de plástico da mesa onde comiam as refeições estava gasta

até ao sisal. Perguntei-me o que fariam os Weissman ao dinheiro…

Durante aquele tempo, o velho Weissman continuava a comer sem nos prestar a

menor atenção, de olhos escondidos debaixo de fartas sobrancelhas brancas.

— Ouve, — disse a Sr.ª Weissman — temos visitas.

— Visitas? Que saiba, não convidei ninguém.

— Mas vieram para te pedir desculpa.

— Não tenho tempo a perder com esse maroto — disse entredentes. — Saiam

daqui e deixem-me comer em paz.

Olhei para o meu pai. Não dizia nada, mas pelo seu olhar vi que tratarem o seu

filho de vadio era como matá-lo a ele.

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Então decidi falar.

— Sr. Weissman — disse eu, muito corado — sei que fiz uma coisa muito má, mas

não sou nenhum vadio. Os tipos que o fizeram tinham-me dito que só queriam tirar

umas gomas de alcaçuz. Pensei que fosse apenas uma partida, não tinha intenção de

fazer mal a ninguém.

O Sr. Weissman levantou a cabeça, olhou para mim e cofiou a barba. Não parecia

muito convencido.

— Então diz lá o nome dos teus companheiros. — Preguei os olhos no chão.

O Sr. Weissman continuou com um horrível ar de troça:

— Sentido da honra… A honra dos malandros, isso sim! Que graça!

— Eu não sou nenhum malandro!

Ao ouvir este grito, as sobrancelhas do velho juntaram-se num ímpeto de fúria.

Levantou-se da cadeira e deu um murro na mesa, dizendo:

— Roubo é roubo! Hoje uma goma de alcaçuz, amanhã uma maçã…E a seguir?

Um brinquedo que não podes comprar, hein? Depois, a carteira de uma idosa!

— Não! Nunca farei tal coisa.

— Então porque proteges quem o fez?

De novo pus os olhos no chão.

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— É o que eu disse — insistiu o Sr. Weissman. — És um vadio!

— Eu não sou nenhum ladrão nem nenhum vadio!

— Isso é o que tu dizes, rapaz!

De repente, a fúria voltou a assaltá-lo. Apontou-me o dedo acusador e gritou:

— Não importa! Eu sei quem fez aquilo, e mais cedo ou mais tarde, vou deitar a

mão a esses patifes!

— Ouve! — exclamou a Sr.ª Weissman. — Cuidado com o que dizes. Estás a falar

com uma criança.

O Sr. Weissman, com um espirro de desdém, virou-se para o prato a resmungar.

Não me sentia orgulhoso por ser tratado de «criança», mas era preferível a

«malandro» ou «bandido». A Sr.ª Weissman virou-se para o meu pai.

— Sentem-se. O meu marido não é tão mau como parece, vão ver.

— Muito obrigado, minha senhora, mas…

— Sentem-se — insistiu, — e o pequeno também. Vamos beber um chá e resolver

este assunto.

Ao ouvir este argumento, o meu pai sentou-se, e fez-me sinal para eu fazer o

mesmo. Deixei-me escorregar para uma cadeira no outro lado da mesa. Entretanto, o

velhote continuava a sua refeição: uma sopa demasiado aguada, um caldo, umas

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côdeas de pão e alguns frutos numa taça que não tinham aspeto de frescos.

A Sr.ª Weissman trouxe-nos dois copos de chá fumegante e sugeriu, apontando

para a taça:

— Tira uma peça de fruta, meu filho.

Tinha uma vontade louca de comer uma laranja mas, de repente, o Sr. Weissman

ergueu os braços e pôs-se a falar para o alto.

— Que mulher me deste Tu? — gritava ele. — Convida ladrões a entrar em casa e

ainda por cima lhes dá de comer!

Os meus olhos cruzaram-se com os do meu pai e desisti da fruta.

— Muito obrigado, basta o chá.

A Sr.ª Weissman lançou um ar acusador ao marido, mas não disse mais nada.

Foi então que o meu pai tomou a palavra.

— Sr. Weissman, eu queria indemnizá-lo pela montra. Eu…não tenho dinheiro

neste momento, mas posso procurá-lo daqui até sábado.

O Sr. Weissman olhou para ele com atenção, cofiando a barba branca.

— Diga-me, Sr. Garvey. O senhor é casado, não é?

— Sim. Acho que conhece a minha mulher, pois vai muitas vezes à sua loja.

Chama-se Molly Garvey.

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— Estou a ver… com uma menina, não é?

— Exatamente.

— E… têm para comer, senhor Garvey?

Perante estas palavras, e pela primeira vez na vida, vi o meu pai corar.

Perguntou:

— Onde quer chegar, Weissman?

— Não é difícil, meu amigo. Guarde o seu dinheiro. Só quero que vigie o seu filho

para não se aproximar da minha loja. Não é a primeira vez que tal desgraça me

acontece, e nem será a última. Eu cá me arranjo sozinho.

De maxilares cerrados, o meu pai pousou o copo do chá na mesa.

— Assim, não — disse ele entredentes. — Os Garvey sempre pagaram as suas

dívidas.

Eu estava a ficar doido. Sentia-me a morrer por ver o Sr. Weissman a humilhar o

meu pai. Resolvi intervir.

— A dívida é minha, pai. Quem tem de a pagar sou eu!

— O quê? Mas como? O que tencionas fazer?

Vi que esta decisão me tinha em parte reabilitado a seus olhos, o que me deu

coragem para pensar num projeto sério. O fruto do meu trabalho de engraxador não

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bastava. E a minha mãe precisava daquele dinheiro. Então propus a última hipótese

que me restava:

— Posso ir trabalhar para o Sr. Weissman todas as tardes, depois da escola.

Desta vez, o velhote desatou a rir.

— Está bem! — exclamou ele. — Que grande espertalhão. Vir trabalhar para

minha casa! Estás a ouvir esta, Golda? A raposa quer a chave do galinheiro.

O meu pai começava a ferver. Pela primeira vez, naquela tarde, tomava o meu

partido.

— O meu filho é um rapaz corajoso. Concordo que fez uma asneira, mas só está a

pedir para a reparar. Não é, Danny?

— Sim — respondi com vigor.

O meu pai tirou qualquer coisa do bolso e, com determinação, pousou-a em cima

da mesa. Era o relógio de ouro do avô Garvey, o seu bem mais precioso.

— Tome — disse. — Deixo este relógio como penhor. Se o Danny não cumprir a

palavra, será seu.

O Sr. Weissman pegou no relógio e examinou-o minuciosamente. Abriu-o, leu a

inscrição que tinha no interior, e acenou a cabeça em sinal de aprovação.

— De acordo, Sr. Garvey — respondeu, deixando-o cair para o fundo do bolso.

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E estendeu-lhe a mão. O meu pai apertou-a com força.

O negócio estava concluído.

Então o velhote virou-se para a mulher a rir com malícia.

— Golda, — disse — esqueceste as boas maneiras? De que estás à espera?

Oferece fruta aos nossos convidados…

♦♦♦♦♦♦

5

O meu pai prometeu ao Sr. Weissman que eu iria trabalhar para a loja todos os

dias depois da escola até ao Natal, para pagar a montra partida e o dinheiro que

estava no boião: doze dólares e vinte e três cêntimos. Eu estava verde de raiva.

Mesmo antes do roubo, os meus cálculos tinham-se ficado pelos doze dólares e trinta e

cinco cêntimos. Isto se eu tivesse a sorte de ganhar! Os gémeos Sullivan não foram

capazes de esperar…

Em conversa, o meu pai ficou a saber que o Sr. Weissman tinha um vidro suplente

no armazém, e insistiu em colocá-lo nessa mesma noite. Eu bem queria tê-lo

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acompanhado, mas como ainda tinha deveres por fazer, ele não me deixou: considera

os deveres escolares como uma espécie de missão sagrada, e por nada deste mundo

me deixaria protelá-los.

Portanto, voltei para casa, sozinho. Para vos dizer a verdade, tal não me agradava

nada. Já não gosto de andar à noite na cidade; as ruas estão cheias de mendigos e de

vagabundos. É claro que muitos deles são uns pobres infelizes, pais de família que,

como o meu, perderam o trabalho e simplesmente procuram um local onde dormir.

Mas, esta noite, tinham todos no fundo dos olhos um clarão preocupante. Um clarão

que eu conheço bem.

Há uns anos, um homem que tinha o mesmo olhar agrediu-me numa rua estreita

e quis arrastar-me para uma cave não longe dali. Consegui escapar mordendo-lhe a

mão, mas tive tanto medo e também tanta vergonha que não contei a ninguém.

Alguns dias depois, descobriram uma criança degolada nessa cave. E nunca

apanharam o assassino.

Por isso eu andava sempre com medo, de mão no bolso, agarrada ao cabo de um

martelo que trago sempre comigo, depois daquela aventura.

De repente, ao virar de uma esquina, alguém me chamou.

— Ó miúdo!

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Senti uma mão pousar no meu ombro. Sobressaltado, virei-me e empurrei com

quanta força tinha aquele corpo enorme que me ameaçava. O homem cambaleou,

bateu no edifício mais próximo e caiu de costas contra a parede. Puxei do martelo com

um ar ameaçador.

— Não, por favor — murmurou ele com uma voz roufenha.

De olhos aterrados, levantou os braços para proteger a cara. Foi então que vi

como era magro, pálido e fraco. Um esqueleto ambulante.

— Tem pena de mim, miúdo — repetiu ele. — Só queria pedir-te lume.

Tinha na mão uma ponta de cigarro que devia ter apanhado do chão.

Senti-me idiota. Guardei o martelo, dei-lhe a mão e pedi desculpa.

— Não tem mal —murmurou.— Mas olha lá, tens lume?

Procurei nos bolsos.

— Lamento — disse, e mostrei as mãos vazias.

— E dez cêntimos, ao menos, não tens?

Abanei a cabeça. Olhou para mim com um ar de desânimo e arrepiou caminho.

Quando cheguei a casa não me sentia com coragem de enfrentar a minha mãe.

Por isso, em vez de entrar diretamente em casa, esgueirei-me pela porta das traseiras

e fui para o pátio. Não é muito bonito este pátio: alguns metros quadrados de terra

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batida fechados por uma barreira de madeira. Mas, à noite, nunca ninguém lá vai e é o

lugar ideal para meditar em paz.

Alguém tinha deixado um balde do carvão vazio diante da cancela. Voltei-o e

sentei-me nele. Por cima de mim, entre os prédios, via-se um quadrado de céu escuro

iluminado pela lua. As cordas da roupa ressoavam ao vento, recortando o céu num

desenho absurdo, como se uma aranha louca tivesse tecido a sua teia gigante entre as

paredes.

Uma estrela cadente deslocou-se, mas tão rápido que não tenho a certeza de a

ter visto. Na dúvida, formulei um desejo. O meu desejo era que, quando eu fosse

grande, houvesse naves espaciais como no livro de Júlio Verne Da terra à lua, e que

pudesse subir numa para ver as estrelas de mais perto. Pensar que o céu e as estrelas

são infinitas deixa-me maluco… Não consigo imaginar alguma coisa que não tenha

limite. Parece-me que tem de haver algures um ângulo, uma fronteira.

A janela da nossa cozinha recortava-se como um retângulo amarelo no escuro,

atravessado de vez em quando por uma sombra rápida: a minha mãe. Sentia náuseas

por tê-la feito sofrer. Jurei que nunca mais iria magoá-la. Não era a primeira vez que

prometia tal coisa, mas desta vez era do fundo do coração, e a sério.

Havia muitas outras janelas iluminadas, muitos outros retângulos amarelos ao

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longo da fachada. Pensei em quem lá vivia há muito tempo, quem ainda não tinha sido

expulso… Havia também os que tinham partido, e os recém-chegados, os que vieram

ocupar os lugares deixados vazios.

Nas noites de verão, quando as janelas estão abertas, ouve-se a vida toda das

pessoas: os bebés que choram, as crianças que brincam, a rádio, as mães que gritam

como doidas, os casais que discutem. O curioso é que o barulho é sempre o mesmo.

As pessoas vão e vêm, mas sejam quem forem, as suas vidas produzem sempre o

mesmo barulho. É estranho, mas para mim é agradável: dá-me a impressão de fazer

parte de um todo, de um conjunto infinito, como as estrelas.

Esta noite não havia o menor ruído no pátio. Apenas o assobiar do vento nas ruas.

Em outubro, quando os ruídos do verão já desapareceram e o inverno se faz anunciar,

sinto-me um pouco triste. Dei uma olhadela às janelas dos White. Estavam escuras e

vazias, aquelas janelas que até ontem se enchiam de luz e de barulho… Senti arrepios.

O frio insinuava-se cada vez mais sob o meu casaco, e o rebordo do balde do carvão

magoava-me as nádegas. Há muito que ali estava. Eram horas de ir para casa.

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6

Ao entrar no prédio, com a obscuridade densa a envolver-me, senti medo. Acendi

a fraca luz amarela e subi as escadas quatro a quatro, parando nos patamares para

escrutinar os cantos mais sombrios. Só quando cheguei ao nosso andar, é que me

lembrei que tinha muita vontade de ir ao quarto de banho. A porta estava à minha

frente, entreaberta, deixando entrever aquele cubículo escuro. Hesitei pelo menos

cinco minutos, na esperança de que algum miúdo dos Riley saísse de casa.

Têm sorte, os Riley: quando um deles precisa de ir ao quarto de banho, pode

sempre pedir a algum dos oito irmãos e irmãs que venha vigiar. Já eu não posso pedir

o mesmo a Maureen! E agora, que tenho treze anos, não quero dar a entender aos

meus pais que sinto medo do escuro… Esperei tanto que já não aguentava mais. Enchi

a boca de ar e enfiei-me no quartinho escuro. Urinei à pressa, com os olhos sempre

fixos no ventilador da conduta do ar.

Ouve-se falar de pessoas que se metem nas condutas do ar e assassinam quem

está lá dentro… Claro que à luz do dia todas estas histórias parecem absurdas. O cano

da ventilação é tão estreito que mal lá cabe um braço. Mas de noite tudo parece

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possível. Apertei as calças, esperei um pouco antes de abrir a porta, não estivesse

alguém à espera para me matar, e desatei a correr até à nossa casa.

Maureen já estava a dormir e a minha mãe passava a ferro. Mas, desta vez, não

cantava. Nem sequer tinha ligado o rádio. Olhou para mim com uma expressão de dor.

Apeteceu-me apagar-lha como quem limpa um rasto de pó.

— O teu pai, onde ficou? — perguntou ela.

— Está a reparar a montra do Sr. Weissman.

Com um aceno de cabeça, continuou a passar a ferro.

E eu sempre de pé, ao lado dela, como um pateta. Impossível mover-me. Olhou

para mim e senti então as lágrimas virem-me aos olhos. Não, sou demasiado grande

para chorar.

— Não fiz por mal, juro.

De repente, os olhos da minha mãe iluminaram-se com uma expressão nova: o

perdão.Com um sorriso muito meigo, ergueu a cabeça e estendeu-me os braços.

Lancei-me neles como uma criança.

— Oh, Danny, — murmurava ela — que vamos fazer de ti?

— Não te preocupes, mãe. Não precisas de fazer nada. Prometo-te que nunca

mais volto a fazer asneiras. Vais ver.

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— Assim espero, meu querido — respondeu, apertando-me muito e beijando-me.

— Mas agora, tens de jantar. Senta-te.

Tinha deixado para mim uma tigela de sopa quente e uma fatia de pão.

— Não há manteiga? — perguntei.

— Não. Hoje, não.

— Não tem importância. Até nem me apetece muito.

Estava a mentir, é claro. Vendo que a minha mãe não se sentava, perguntei-lhe:

— Já comeste?

— Não. Espero pelo teu pai.

Comi os legumes da sopa e depois juntei-lhe migas de pão. Estava delicioso, mas

ainda comia um pouco mais…Ultimamente, ando sempre com fome. O meu estômago

é uma grande caverna aberta, impossível de encher. Às vezes dói-me. Mas antes

queria morrer do que pedir mais comida à minha mãe. Era bem capaz de me dar a sua

parte, fingindo não ter fome!

Uma hora depois, já tinha feito os deveres e o meu pai ainda sem regressar. Não

era que me desagradasse: cansado como estava, preferia ir para a cama sem voltar a

falar do que se passou. Abri a porta para dar uma olhadela à entrada. Alguns miúdos

Riley esperavam a vez de irem ao quarto de banho, mas ainda bem que nem Maggie

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nem Kitty estavam lá. Não tinha vontade nenhuma de lhes falar. Os pequenitos

olharam para mim a arder de curiosidade, mas retribuí-lhes com um olhar tão feroz

que não se atreveram a abrir a boca. É tão fácil meter medo a miúdos…

Depois dei um beijo à minha mãe e disse-lhe que ia deitar-me. Recomendou-me

que tivesse cuidado para não acordar Maureen. É que o nosso apartamento parece um

comboio, mas um comboio que morde a cauda, com todas as divisões seguidas,

separadas por reposteiros: é preciso passar pelo quarto dos meus pais para entrar no

meu, e assim por diante.

Junto à cama deles, na sua caminha de grades, Maureen dormia o sono dos

justos. Fiz-lhe uma festinha na cara através das grades e ela mexeu-se um pouco,

emitindo um pequeno ruído com a boca, como se estivesse a chupar. Que linda,

deitada de barriga para baixo e o rabito para o ar! Aconcheguei-lhe a roupa sobre os

ombros, embora não estivesse frio.

O quarto da minha mãe, mesmo ao lado da cozinha, está sempre quente; no meu,

já faz mais frio. Segue-se o quarto de hóspedes e depois a sala, que já tem porta. Se

todos os bebés tivessem vingado, eu dormiria agora no quarto de hóspedes ou mesmo

na sala, como Maggie e Kitty Riley que são as mais velhas da família. Vêem-se

obrigadas a empilhar todos os casacos de casa em cima da cama, para não morrerem

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de frio durante a noite. Às vezes, a brincar, Maggie diz que acorda exausta com o peso

de tanta roupa.

Como já disse, a porta da sala dá para o patamar da escada. Em miúdo, divertia-

-me a correr atrás das meninas Riley desde a cozinha até aos quartos e à sala, depois

para o patamar e outra vez para a cozinha, sempre em círculo. Outras vezes, abríamos

as duas portas do apartamento Riley, e continuávamos a brincadeira pela casa delas

fora. As nossas mães nunca nos diziam nada, mas quando os homens chegavam, alto

lá! Ao fim de duas ou três voltas, mandavam-nos ir lá para fora.

Enfiei o pijama e fui à sala espreitar pela janela que dá para a rua. E o meu pai

sem chegar.

A porta da sala dos Riley abriu-se e ouvi a voz de Kitty e Maggie, do outro lado do

patamar. Apaguei a luz à pressa e voltei para o meu quarto sem fazer barulho. Se

soubessem que estava acordado, eram bem capazes de empurrar a porta e entrar por

ali dentro, assim, sem mais. Os Riley têm a mania de aterrar em nossa casa a

qualquer hora do dia ou da noite. A mãe delas tem uma chave-mestra que abre todas

as portas do prédio. Mesmo fechados à chave, nunca estamos a salvo.

Saltei para a cama e apercebi-me que o sábado, dia de confissão, ainda vinha

longe. Três dias. Como havia eu de fazer para aguentar três dias com a alma negra

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pelo pecado? E se até lá eu morresse? De certeza que ia para o inferno… Foi então

que resolvi tentar um truque que Luther White me aconselhara.

Luther é batista; explicou-me que os batistas se confessam diretamente a Deus

sem passar por um padre. Segundo ele diz, funciona muito bem. Pensei que mal não

me haveria de fazer, e então apliquei o método.

Perdoai-me, meu Pai, porque pequei. Os meus pecados são estes…

Ia mais ou menos a meio da lista, quando ouvi o meu pai chegar. Desbobinei o

resto a toda a pressa e fiquei à escuta. Primeiro, só ouvia o barulho das colheres nos

pratos e do partir do pão. Depois, foram deitar-se e começaram logo a cochichar.

Falavam tão baixinho para não acordarem Maureen, que eu não distinguia as palavras.

Levantei-me furtivamente, e ajoelhei-me junto do reposteiro que separa os dois

quartos. Então ouvi a voz da minha mãe que dizia:

— Mas quando?

— Amanhã — respondeu o meu pai.

Ela respirava com dificuldade como alguém que se sente oprimido.

— Tão cedo? Meu Deus!

— Quanto mais cedo, melhor. Não passo de um fardo, de uma boca inútil.

— Não fales assim, Daniel. Sabes bem que não é verdade.

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— Sabes o que quero dizer. Não há trabalho para mim em Nova Iorque, e não

haverá durante muito tempo. Não posso ficar sem fazer nada.

— Mas as eleições estão próximas — insistia a minha mãe. — Roosevelt vai

certamente ganhar, e aí as coisas irão mudar.

— Com certeza, minha querida. Espero bem. Mas vai demorar muito e o tempo

joga contra nós. Toda esta cidade está doente, as pessoas morrem de fome, as

crianças roubam…

Àquela alusão, a minha mãe nada respondeu.

— Voltarei, mal tenha encontrado alguma coisa — continuou o meu pai. — E

depois levo-vos a todos comigo. Verás, Molly, vai ser maravilhoso. Teremos uma casa

no campo, e os meninos vão crescer numa atmosfera sadia…

— Mas aqui é que é a nossa casa! Os nossos amigos vivem cá todos, neste bairro.

Nunca conhecemos outro, Daniel.

O meu pai pôs-se a rir.

— Esqueces-te de onde vens, minha Molly! Atravessámos o oceano juntos,

lembras-te? Olha lá, onde está a tua coragem de outros tempos, Irlandesa?

— Isso era antes de ter as crianças, Daniel. Ser mãe tornou-me mais prudente.

Page 49: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— Mas é precisamente por eles que tenho de partir. Bem vês, Molly: o Danny nem

sabe distinguir o bem do mal, e como é que hei de zangar-me por isso? Anda sempre

de barriga a dar horas, e eu nada faço para lhe dar de comer. Cruza-se todo o dia com

traficantes e vigaristas que engordam com a miséria alheia, enquanto o pai, por muito

honesto que seja, fica de braços a abanar, a ver a família morrer de fome!

Nesta última parte, um pouco exaltado, a voz do meu pai subiu de tom. A minha

mãe, transtornada, interrompeu-o:

— Chiu! Vais acordar as crianças.

Depois não ouvi mais nada: a minha mãe falou baixinho por uns momentos, com

a sua voz tranquilizadora e a respiração do pai foi acalmando, gradualmente. E

adormeceu.

Deitado de bruços, fiquei uns momentos com o rosto no chão frio. Nunca tinha

sido tão infeliz. O meu pai ia embora e o culpado era eu.

Um pequeno ruído vinha do quarto vizinho. A minha mãe chorava.

Agora que sou grande, há muito que tal não me acontece. Mas há uma coisa que

me faz sempre chorar: é ver a minha mãe chorar. Só de a ouvir, de a imaginar, basta!

Apertou-se-me a garganta e torrentes de lágrimas inundaram-me o rosto. Virei-me e

fiquei a olhar para o teto. Para evitar fazer barulho ao fungar, deixei que as lágrimas

Page 50: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

escorressem pela cara até às orelhas. Acabaram por secar e suportei os traços frios e

salgados delas no meu rosto.

Mesmo com o pijama vestido, o chão frio e húmido gelava-me as costas até aos

ossos. Nesse dia a mãe tinha lavado tudo. Depressa os meus pés ficaram gelados, e a

garganta começou-me a doer como se tivesse engolido lâminas de barbear.

Mas não me preocupei.

Era um verme, um excremento de terra e não merecia outra coisa.

♦♦♦♦♦♦

7

Quarta-feira, 19 de outubro de 1932

Não sei como foi, mas adormeci naquela posição. No dia seguinte de manhã, o

meu pai é que me acordou ao tropeçar em mim.

— Danny, meu filho, que fazes aqui deitado no chão? — perguntou ele,

estupefacto.

Page 51: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

Esfreguei os olhos, tão admirado como ele, ainda tonto de sono… e depois

lembrei-me de tudo. Olhei para o meu pai que estava de pé, por cima de mim, com o

casaco vestido, o chapéu de lã e o cachecol que a minha mãe lhe tinha tricotado no

Natal passado.

— Vais-te embora.

Tinha tentado dizer aquilo em tom de pergunta, mas ele percebeu. Era uma

constatação e uma constatação sem esperança. Acenou que sim com a cabeça e

estendeu-me a mão.

— Estiveste a escutar-nos ontem à noite.

Fiz que sim com a cabeça. O meu pai puxou-me pela mão e eu levantei-me

tolhido de cansaço. Sentia-me tão velho e partido como a Sra.ª Mahoney, do andar de

cima, que está sempre a queixar-se do reumatismo.

O meu pai empurrou-me suavemente para a cama e pôs-me um cobertor pelas

costas.

— Estás a tremer de frio, Danny! Não podes dormir no chão, qualquer dia ainda

morres…

— Pai, vais-te embora… — repeti eu.

Deu um grande suspiro.

Page 52: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— Tem de ser, meu filho. Aqui, não consigo arranjar trabalho.

Num relance, revi todas aquelas noites em que, sendo eu pequeno, acordava a

chorar com pesadelos. Imediatamente o meu pai voava para a minha cama e

reconfortava-me, dizendo Está tudo bem, Danny, estou aqui.

De facto, estando ele ali, tudo estava bem. E se fosse embora?

— Não quero que vás.

— Também eu não quero, filho. Mas tem de ser.

Deu-me uma palmadinha no joelho.

— Vamos, veste-te depressa. Vais-me acompanhar durante um bocado?

— Está bem — murmurei.

E depois Maureen acordou a gritar e o meu pai foi vê-la. Vesti-me a toda a pressa

e fui ter com eles à cozinha. A minha mãe estava muito calma, mas com os olhos

inchados.

— O Danny vai acompanhar-me durante uma parte do caminho, Molly — disse o

pai.

— Não vai sem tomar o pequeno-almoço.

— Oh, mãe!...

— A tua mãe tem razão — continuou o meu pai — Um rapaz como tu não deve

Page 53: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

sair de casa de estômago vazio. Não há pressa.

Tempo, na verdade, não tinha lá muito.

Antes das aulas ainda tinha de ganhar algum dinheiro a engraxar sapatos.

Engoli os flocos de aveia em quatro goladas e corri para a porta enquanto vestia o

casaco. De boca cheia anunciei que estava pronto.

O meu pai virou-se para a minha mãe.

— Pronto…

— Pronto — repetiu ele.

Abraçou Maureen, pô-la nos meus braços e virou-se para a minha mãe. Agarrou-

-a com toda a força e deu-lhe um beijo na boca. Isto durou um longo momento. Depois

olharam-se tristemente, olhos nos olhos.

— Dá-me um sorriso — disse o meu pai.

O queixo dela tremia, tinha os olhos cheios de lágrimas, mas mesmo assim

esboçou um sorriso. O meu pai soergueu-lhe o queixo como se estivesse a brincar.

— Agora sim, a minha Molly voltou! Continua a sorrir assim e o tempo entretanto

passa sem dares conta. E eu depressa estarei de volta.

Pegou no saquito das provisões que ela preparara e virou-se para mim.

Page 54: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— Não te esqueças da caixa das graxas, Danny. A tua mãe conta com esse

dinheiro.

Entreguei Maureen à minha mãe e peguei na caixa.

— Não chegues tarde à escola, muita atenção — recomendou a minha mãe.

— Prometo que não.

No momento em que o meu pai abriu a porta para sair, vi-a empalidecer.

Lançou um suspiro abafado.

— Daniel…

— Sim, diz.

Virou-se bruscamente. Vacilava, os lábios entreabertos, como se quisesse dizer

alguma coisa. Finalmente, sacudiu a cabeça.

— Nada… Sim. Que Deus te guarde!

— Que Deus te guarde a ti, também, minha querida — respondeu ele com uma

piscadela de olhos.

Atirou-lhe um último beijo com a mão e foi embora.

Lá fora estava frio e cinzento. Não tardaria a chover.

Antes do virar da esquina, voltámo-nos.

Page 55: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

Dois rostos encaixilhados na janela da sala, um grande e um pequeno. O meu pai

levantou a mão para lhes mandar mais um beijo e depois entrámos na rua 107. Àquela

hora, a cidade ainda dormia. Apenas um polícia se debatia para expulsar os

vagabundos que dormiam nas entradas de prédios e de bancos.

Ao passar diante da loja do Sr. Weissman, vi a nova montra a brilhar com todo o

seu esplendor, como se nada tivesse acontecido. O meu pai nem sequer virou a

cabeça para a ver.

Eu já tinha pedido desculpa à minha mãe…. O mais difícil estava por fazer.

Não sei porquê, mas com o meu pai tais palavras ficam-me presas na garganta.

No entanto, os acontecimentos da véspera ainda não estavam resolvidos, e eu não

tinha o direito de o deixar ir embora sem nada dizer.

Pigarreei e, com uma vozinha surda, murmurei:

— Ó… pai?

Caminhava um metro à minha frente, no seu passo ágil e rápido. Não me

respondeu.

— Pai? — disse eu um pouco mais alto.

— Hein? Ah, sim… O que é, filho?

— Queria dizer-te…. Lamento o que se passou ontem à tarde. Desculpa.

Page 56: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

Virou a cabeça para mim, com um ar ao mesmo tempo terno e severo.

— Desculpo-te, Danny, mas tens de me prometer uma coisa. Daqui em diante

vais manter-te sempre afastado desses gémeos Sullivan.

— O que queres dizer com isso? Não estou a entender…

— Não penses muito. Sabes bem o que quero dizer, Danny. Conto contigo para

cuidares da Maureen e da tua mãe na minha ausência. Já és um homem. Confio em ti.

Senti o peito inchar de orgulho.

— Não te preocupes, pai. Tratarei de tudo. Quando regressares vais ter orgulho

em mim, prometo.

— Nem duvido disso, meu filho! — exclamou ele com um grande sorriso.

Quando chegámos à 5ª Avenida, o meu pai parou.

— Vamos separar-nos aqui — disse-me ele. — Ainda tens de trabalhar antes de

ires para a escola. A tua mãe precisa do dinheiro que vás ganhando, bem sabes.

— Sim, pai — respondi, com uma voz um pouco insegura.

De repente, pareceu-me que o céu ficava escuro. O meu pai ia mesmo partir.

— Vais ficar ausente por muito tempo? — perguntei, de olhos no chão.

— O tempo que for necessário. Não voltarei sem ter encontrado trabalho.

— Mas pelo menos no Dia da Ação de Graças vais estar cá?

Page 57: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— Farei os possíveis.

— E… para onde vais?

— Não faço ideia, Danny. Irei sempre em frente, a ver se arranjo trabalho. Talvez

apanhe o comboio.

— Tem cuidado, pai.

— Não te preocupes comigo, meu filho. Vai correr tudo bem.

Depois destas palavras, pegou em mim e apertou-me com muita força. Eu,

reprimindo as lágrimas que me vinham aos olhos, agarrei-me a ele como um louco.

Tinha vontade de chorar, de lhe pedir que ficasse, mas uma voz interior dizia-me para

não o fazer. Quando deixou de me abraçar, olhei-o nos olhos, sem uma lágrima, de

cabeça erguida.

— Toma bem conta das nossas mulheres, Danny.

— Prometo.

— Adeus, meu filho.

— Adeus, pai.

Rodou os calcanhares e seguiu pela 5ª Avenida.

Fiquei a vê-lo afastar-se até virar para a Rua 110.

Page 58: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

Uma forte gota de chuva espalhou-se aos meus pés, deixando uma marca

redonda e negra no passeio. Depois outra e mais outra.

E o meu pobre pai que não levara guarda-chuva…

8

Normalmente o meu trabalho de engraxador não me aborrece. Gosto de sair de

manhã com a caixa e ver o despertar da cidade. O carro do vendedor de leite faz o seu

giro, os comerciantes abrem as persianas das lojas e varrem diante da porta. E os

cavalos saídos das cavalariças passam pelos túneis do caminho-de-ferro, com carroças

carregadas de frutos e de legumes. O ano passado, entrei numa peça de teatro na

escola, e as manhãs de Nova Iorque lembram-me o momento que precede o levantar

do pano.

No entanto, hoje tudo parecia sombrio e triste. As gotas de chuva caíam-me na

cara como agulhas geladas, avivadas pela nortada. Chovia demasiado para poder ficar

no meu lugar habitual, perto do quiosque de jornais do Ike. Refugiei-me então no

abrigo do metro.

— Engraxar sapatos! Engraxar sapatos!

Page 59: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

Lançava a minha frase habitual a cada pessoa que entrasse na estação. A maior

parte passava sem olhar para mim, de cabeça enterrada nos ombros.

Finalmente, um de entre todos parou.

— Quanto custa, rapaz?

— Cinco cêntimos, senhor.

Com um aceno de cabeça, afastou-se. Apressei-me a rever o meu preço.

— Três cêntimos, para si.

Parou com ar de quem pesa uma decisão da mais alta importância.

— E se te oferecesse dois cêntimos?

— Está bem.

Pousou o pé direito em cima da caixa e eu fiz o melhor que pude para dar um ar

de elegância ao sapato, já gasto e estalado como um velho tronco de árvore.

Mas, quando pousou o esquerdo, quase me engasguei de surpresa.

— Ó senhor…. Não sei se sabe, mas os sapatos não são os dois da mesma cor!

— Chiu! — exclamou, olhando à volta com ar preocupado, como se alguém me

tivesse ouvido.

Depois, inclinou-se para mim e disse num tom confidencial:

Page 60: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— Claro que sei. Só tens de pôr graxa preta neste, e fica igual ao outro. Tenho

uma entrevista importante, para um emprego.

— Bem…

Besuntei o sapato de cera preta e esfreguei com quanta força tinha. O resultado

até a mim me surpreendeu: impossível notar a diferença, a não ser que se olhasse

para os pés a menos de cinco centímetros.

Na verdade, depois daquele impacto, e vendo bem, aquela situação não tinha

nada de especial. Nestes últimos tempos, as pessoas ficaram tão pobres que se

vestem como podem. Vê-se cada vez mais fatos desemparelhados, demasiado

grandes, ou demasiado pequenos, ou remendados. O certo é que o meu cliente ficou

contente.

— Obrigado, pequeno — disse ele, ao entregar-me os dois cêntimos.

— Boa sorte para a entrevista — respondi-lhe eu.

— Obrigado. Preciso mesmo de sorte: vai haver uma centena de candidatos.

— Ui! Mas de que trabalho se trata?

— Vendedor de sapatos, precisamente.

— Só tem de dizer que vai ser o primeiro cliente — sugeri-lhe eu a brincar.

— Bem pensado, miúdo. Vou-me lembrar dessa.

Page 61: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

Desceu para o metro e ali fiquei à espera do cliente seguinte.

Dois ricaços acabavam de entrar, de casacos de pele e chapéu de coco.

— Engraxar sapatos! — apregoei eu. — Cinco cêntimos o par, é barato…

Esboçaram um sorriso e já estavam a aproximar-se de mim quando ouvi gritar:

— Eh! Ó miúdo!

Um indivíduo espadaúdo, de ar grosseiro, com mais de trinta anos, a oscilar os

ombros, vinha na minha direção.

— Que estás aqui a fazer? Esta zona é minha. Fora daqui!

Não ia bater-me com alguém que era o dobro de mim, em altura e largura. E

estava na hora de ir para a escola… Peguei nas minhas coisas e fugi, enquanto ouvia

os berros do tipo que vociferava:

— Se volto a encontrar-te por cá, apanhas!

Pois é… Até a profissão de engraxador se torna perigosa. Que tempos estes!

Ao chegar a casa, já a minha mãe me tinha preparado a pasta.

Reparou no meu casaco molhado e franziu o sobrolho.

— Está a chover muito!

— Bastante. E há vento.

Eu não devia ter dito aquilo. Ficou à beira das lágrimas.

Page 62: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— Não te preocupes, mãe. Não é de açúcar, não derrete.

Um pequeno sorriso iluminou-lhe então o rosto.

— Tens razão, Danny.

— E ele há de voltar depressa, vais ver.

Enquanto falava com ela, tentava convencer-me a mim próprio, o que não era

fácil.

Deu-me um beijo na testa.

— Não duvido, meu filho. Agora despacha-te. Não podes chegar atrasado à

escola.

Galguei as escadas e dei com Mickey Crowley, que me esperava no átrio do

prédio. Tem catorze anos e é muito mais alto do que eu, mas estamos na mesma

classe porque começou com um ano de atraso.

— Olá, Danny! — exclamou ele ao ver-me.

Mas reparei que estava a olhar por sobre os meus ombros, para a escada. Eu bem

sabia por quem é que ele esperava.

— Ainda não chegou?

— Quem? —inquiriu Mikey, corado como uma rapariga.

— A Kitty Riley, malandro. É por ela que esperas, não?

Page 63: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— Que estás para aí a inventar? Dizes isso porque estás apaixonado pela Maggie,

aposto.

Desatei a rir com aquela saída.

— O amor põe-te tolo. Eu, apaixonado pela Maggie? Não vês que já a conheço há

tantos anos! É uma velha amiga…

Interrompeu-nos um enorme alarido. Era a tribo Riley que descia as escadas, um

lindo rancho; só faltavam Dotty e Marion, muito pequenas para irem à escola.

Johnny, Alice, Winnie, Florence e Inês ainda andam na escola primária, mas Kitty e

Maggie, as gémeas que são da minha idade, frequentam o colégio das raparigas na

Rua 111.

Kitty e Maggie são gémeas verdadeiras, quer dizer que são muito parecidas; o

mesmo não se passa com os irmãos Sullivan. Quando era pequeno, eu confundia-as a

todo o instante, mas agora parecem-se menos. Maggie é um pouco mais alta e, na

minha opinião, mais bonita.

Quanto a Johnny, coitado, é o único rapaz da família. Rodeado de oito irmãs, corre

o risco de ficar maricas… (como elas)

Quando nos viu, Kitty teve um leve sobressalto e olhou para Mickey com um

sorriso tímido. Maggie, como sempre, trazia os socos grandes.

Page 64: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— Então, Danny, o que fizeste ontem à tarde?

— Ontem à tarde? De que estás a falar?

— O Finnegan trouxe-te algemado, não?

— Olha, mete-te na tua vida — retorqui com ar de poucos amigos.

— Vá lá, não te zangues.

Sabia que não me ia deixar em paz, enquanto não soubesse tintim por tintim o

que se tinha passado. E então resolvi contar tudo.

— A culpa não foi minha. Alguém partiu a montra do Sr. Weissman e o boião do

dinheiro desapareceu.

— Bolas! E eu que tinha a certeza de ter adivinhado a quantia exata. És mesmo

um palerma, Danny.

— Mas já te disse que não tive culpa! Eu também tinha adivinhado a quantia

exata. Só com uma diferença de poucos cêntimos.

Mas Maggie olhava para mim com desconfiança.

— E como é que o teu pai reagiu?

— Reparou a montra.

— Mas tu foste bem castigado, não?

— Não.

Page 65: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

Desta feita, ficou desiludida.

— Isso era o que tu querias… Não te bateu nem sequer um bocadinho?

— Não.

— Estranho… Bem. Tenho de ir.

Puxou Kitty pelo braço e lá foram as duas. Mickey e eu seguimo-las da soleira da

porta.

Maggie dava ordens aos mais pequenos.

— Tomem o guarda-chuva. Inês, tu é que o levas. És a mais alta.

Inês, com dez anos, abriu o guarda-chuva por cima da cabeça. Os outros

apertaram-se contra ela como pintainhos à volta da mãe.

— Olhem lá, rapazes — disse Maggie. — Acompanham-nos até ao túnel? Sabem

como é, quando chove…

É preciso ir pelo túnel da Rua 106 para se chegar à escola primária. E todos os

túneis que passam por baixo do caminho-de-ferro na Park Avenue, nos dias de mau

tempo, estão cheios de mendigos e vagabundos que ali se abrigam. Mas, passar pelo

túnel, obrigava-nos a fazer um desvio, a Mickey e a mim. Eu ia recusar, quando

Mickey, de rosto sorridente, avançou para as gémeas, a cantarolar:

— Com todo o prazer!

Page 66: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

Como se lhe tivessem oferecido um bombom ou qualquer coisa do género. Não

haja dúvida, estes últimos tempos Mickey anda muito estranho…

Maggie agradeceu-lhe com um sorriso rasgado e lá fomos escoltar o rancho Riley

ao longo da avenida. As gémeas abrigavam-se da chuva com jornais velhos. As saias,

revolvidas pelo vento, voavam-lhes à volta dos joelhos.

Mickey deu-me uma cotovelada.

— A tua velha amiga Maggie e a irmã têm lindas pernas, não achas?

Ainda não tinha acabado a frase, já eu lhe tirara o chapéu, passei-lhe a mão pela

cara e zás! caiu na valeta. Meio aturdido, o pobre Mickey viu o boné aterrar numa poça

enquanto eu fugia para a escola, a dizer:

— Despacha-te, que as miúdas estão à tua espera para atravessar o túnel.

Page 67: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

♦♦♦♦♦♦

9

Não demorou que encontrasse os irmãos Sullivan. Na verdade, foram eles que

vieram ao meu encontro. Ao chegar à escola, estavam diante da porta da entrada. À

minha espera.

Ainda antes de perceber o que estava a acontecer-me, vi-me encostado à parede.

— Piaste, hein? – murmurou Harry com uma voz roufenha.

— Hein? Responde! — insistiu Frank, agarrando-me pelo colarinho.

— Está quieto, palerma, não te metas — ordenou-lhe o irmão. — Eu encarrego-

-me deste denunciante.

Depois virou-se para mim e disse-me:

— Então, seu estúpido, piaste?

— Adivinha, seu estúpido. Achas que ainda estavas aqui se eu tivesse aberto a

boca?

— Que é que queres dizer com isso? — perguntou Harry com ar espantado.

Tenho de explicar que os irmãos Sullivan não são nada inteligentes…

— Quero dizer que se eu tivesse aberto a boca, a polícia já vos tinha vindo buscar.

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Perante tais palavras, os falsos gémeos entreolharam-se em silêncio por uns

instantes, mantendo-me sempre preso contra a parede. Entretanto, Mickey chegou e,

em vez de vir ajudar-me, passou por ali com cara de parvo.

Por fim, Harry lá percebeu o que eu queria dizer. Fez sinal ao irmão com a cabeça

e libertaram-me. Vi que era a minha vez de brincar… Agarrei-lhe o polegar esquerdo e

torci-lho atrás das costas. Foi um truque que o meu pai me ensinou. Dizia sempre:

— Nunca virás a ser um colosso, Danny, por isso aprende a ser mais rápido e

mais astuto do que os teus adversários.

A primeira vez que assim me falou, senti-me um miserável, como se fosse um

pecado parecer-me com a minha mãe e não com ele. Mas, depois de refletir, decidi

que iria tornar-me tão astuto e tão rápido que, um dia, o meu pai iria ter orgulho no

filho.

Harry, a contorcer-se de dores, caiu de joelhos pedindo perdão, mas eu continuei

a torcer-lhe cada vez mais o polegar.

— Eu apanhei o castigo mas tu vais pagar-mas, estás a ouvir? E, além disso, o

boião era praticamente meu, então...

— Vamos lá ver! O que se passa aqui?

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Era o Sr. Whitelaw, o subdiretor. Tem o condão de chegar sempre no pior

momento. Tive de largar o Harry, que se levantou a massajar o polegar dorido. O

Frank nem se tinha mexido. O irmão deu-lhe um pontapé na perna a resmungar:

— Porque é que não me ajudaste, seu palerma?

— Tinhas-me dito para não me meter no assunto! — respondeu Frank recuando

um passo.

— Oh, cala a boca! — exclamou Harry num tom cansado.

Depois virou-se para mim, com os olhos a brilhar de ódio.

— Tu hás de pagar-mas, Garvey.

— Vamos, vamos — interrompeu o Sr. Whitelaw. — Parem imediatamente.

E mandou-nos para as aulas.

Cheguei atrasado à aula de inglês. Havia um lugar vago ao lado de Mickey; sentei-

me e disse-lhe baixinho:

— Obrigado pela ajuda. Felizmente que podemos contar sempre com os amigos,

não é verdade?

— Tinhas ar de te desenvencilhares bem sozinho.

— Heim… bem… Faço-te o mesmo quando te vir em apuros!

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O Sr. Proctor, o professor, mandou-nos abrir Tom Sawyer no oitavo capítulo e

pediu a Tony Maretti para ler em voz alta. Esforçava-me por ouvi-lo, mas não

conseguia concentrar-me.

De qualquer modo eu já tinha lido Tom Sawyer três dias depois de no-lo ter

indicado.

É sempre a mesma coisa: depois de ler o livro queria passar a outro, mas somos

obrigados a lê-lo na aula, capítulo por capítulo, decompô-lo em partes e, o que é pior,

fazer comentários. É tão aborrecido!

E depois, quando um professor nos pergunta o que pensamos de um romance, na

realidade, não lhe interessa para nada a nossa opinião. A única coisa que conta é o

seu ponto de vista. É por isso que não gosto de dar a minha opinião.

Vejamos por exemplo Black Beauty. De todos os livros que li, é o meu preferido e

não é, como o Sr. Proctor quis convencer-nos, por causa do tema da injustiça social. Se

gostei tanto de Black Beauty, foi por causa do Ned.

Ned é o cavalo que puxa a carroça do gelo. Há anos que somos amigos. Quando

eu era pequeno, sempre que o dono vinha entregar gelo no nosso prédio, as outras

crianças precipitavam-se para a carroça, subiam e desciam, e pilhavam pedaços de

gelo…Mas eu, enquanto isso, ficava a falar com Ned.

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Acariciava-lhe a espinha curvada pelos trabalhos e pela velhice, e interrogava-me

como teria sido quando era jovem e possante. Com os dedos penteava-lhe as crinas

emaranhadas e, por vezes, se a minha mãe me autorizava, dava-lhe uma cenoura ou

uma maçã.

E Ned olhava sempre para mim com aqueles olhos grandes e tristes. Sentia que

tinha qualquer coisa para me dizer, mas nunca consegui perceber o que seria. Até ao

dia em que li Black Beauty. Nesse dia percebi o que Ned tinha para me contar.

Pois bem, tudo o que acabo de vos dizer, escrevi-o na minha redação e nem

sequer tive suficiente!

— Olá, Dan!

Era a voz de Mickey, que interrompia as minhas reflexões.

— O que é?

— O Luther falta, já reparaste?

Dei um suspiro ao ver a cadeira vazia de Luther, do outro lado da sala.

— Desalojaram a família, ontem.

— A sério? — replicou Mickey no seu ar endomingado. — Estou em melhor

posição do que tu para o saber, porque moro no número 1446. Mas…

A voz do professor soou naquele preciso momento.

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— Garvey?

— Hã… Sim, senhor professor?

— Queres explicar-nos, por palavras tuas, o que Mark Twain quis mostrar nesta

passagem?

Pois é. Fui apanhado. Tossiquei um pouco para aclarar a voz e murmurei:

— Hum…

♦♦♦♦♦♦

10

Fui obrigado a ficar depois das aulas para conjugar em todos os tempos e modos

a expressão: «estar atento na aula». Claro que isto me fez chegar atrasado ao trabalho

na loja do Sr. Weissman.

Quando cheguei, não me disse nada. Limitou-se a tirar do bolso o relógio do meu

pai e a olhá-lo com ar enamorado.

— Desculpe, Sr. Weissman. Atrasei-me porque… hum, um dever suplementar.

Nunca mais voltará a acontecer.

— Diz-me lá, rapaz. Já sabias hoje que terias de chegar atrasado?

— Não.

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— Então não podes prometer que isso não volta a acontecer. Ficas um quarto de

hora a mais no fim. Pega, põe este avental.

— Obrigado, senhor.

— Este é o livro das contas. Não é novidade, mas tens de aprender a fazer ao

contrário: meter o dinheiro na caixa, em vez de o tirares.

— Sr. Weissman, já lhe expliquei que não sou nenhum ladrão.

— Sim, sim. Eu sei que és um anjinho. Bem, finges que és. Veremos.

E, enquanto falava, sacudia o bolso do casaco.

Mostrou-me como se fazem as contas. Até achei engraçado.

— Cuidado! — disse ele. — Sei exatamente quanto há na caixa, portanto, nada de

histórias.

— Sim, senhor — respondi, cansado de protestar.

O Sr. Weissman mostrou-me o grande pote de leite atrás do balcão.

— Quando os clientes vêm com a garrafa, tu enche-la até à base do gargalo, nem

mais nem menos. O mesmo em relação à farinha: colocas o saco na balança e pesas

exatamente o que pediram, nem mais nem menos. Quanto aos bombons…

— Eu sei — respondi. — Dar exatamente a quantidade pedida, nem mais nem

menos.

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— Pronto, agora vamos passar a este registo: é aqui que anoto as contas dos

clientes habituais, aqueles a quem concedo crédito. Se alguém te pedir fiado, primeiro

vens ver a este livro. Se o nome não constar aqui, não há fiado!!!

Falara num tom ameaçador, como se eu tivesse pedido crédito para mim.

— Percebido?

— Sim, Sr. Weissman.

— Bom. Agora abre este caixote e arruma as latas de conserva naquela prateleira,

lá em cima.

— Posso utilizar a escada?

Desde sempre me encantaram as escadas de mercearia, mas nunca me atrevi a

pensar que ainda viria a usá-las.

— Que te parece? — respondeu o Sr. Weissman em tom ríspido. — Vais atirá-las lá

para cima? Claro que tens de servir-te da escada.

— Espantoso! — respondi eu.

O meu novo patrão levantou os olhos ao céu, meneando a cabeça, mas não disse

nada.

Estava eu empoleirado na escada, quando entrou uma senhora na loja. Notei logo

que vestia melhor do que as mulheres do bairro, com um casaco de gola de pele e um

Page 75: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

chapéu de veludo preto muito elegante. Mas havia qualquer coisa de azedo na sua

expressão, e a boca contraída não me agradava nada. Dir-se-ia que estava a comer

algo amargo.

De braço estendido, segurava na ponta dos dedos um saco de papel, com um ar

tão enojado como se ali estivesse um rato morto.

— Sr. Weissman!— vociferou ela numa voz autoritária e aguda. — Há um verme

na sua farinha. Um verme!

— Bom dia, menina Perkins — respondeu o senhor Weissman num tom de voz o

mais amável possível. — Que prazer vê-la por aqui!

O nome desta mulher dizia-me qualquer coisa, mas não conseguia reconhecer

aquele rosto. Porém, os cumprimentos do merceeiro não produziam nela qualquer

efeito.

Com uma fungadela de desprezo, pousou o saco da farinha no balcão. O Sr.

Weissman inclinou-se para espreitar o interior.

— Tem razão — declarou doutamente. — Há de facto um verme aqui dentro e

bem gordinho! Foi muito simpático da sua parte ter vindo mostrar-mo!

Levantou os olhos para a menina Perkins, e, de sobrolho franzido, pôs-se a afagar

a sua barba branca.

Page 76: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— A senhora é uma boa cliente. Por isso não lhe vou cobrar nenhum extra. Pode

guardar a farinha e o bichinho também pelo mesmo preço.

A boca da menina Perkins abriu-se de orelha a orelha, como para protestar, e eu,

de tanto reter o riso, quase caía. Mas o caso era grave. Os olhos da senhora

faiscavam.

— Sr. Weissman, não se ponha a troçar de mim.

— Longe de mim tal ideia, menina Perkins.

— Exijo um saco de farinha novo — disse ela num ar feroz, com os braços

cruzados sobre o peito.

O Sr. Weissman virou-se para mim a suspirar.

— A satisfação do cliente acima de tudo, é este o meu lema. Danny, pesa uma

libra de farinha à menina Perkins.

— Sim, senhor.

Pesei exatamente uma libra de farinha, nem mais, nem menos, e entreguei-a

àquela impertinente senhora. De súbito fez-se luz na minha cabeça e lembrei-me onde

tinha ouvido aquele nome. A menina Perkins era a antiga professora de Maggie

quando esta andava na escola primária. Pobre Maggie!

Page 77: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

A professora arrancou-me literalmente o saco das mãos sem um «obrigada» e

saiu porta fora.

— Agora percebo porque lhe chamavam “o coronel” — disse eu.

— Como? — quis saber o Sr. Weissman.

— As raparigas, na escola onde ela ensinava, chamavam-lhe “coronel”.

Por um instante pareceu-me ver um esboço de sorriso nos lábios do Sr.

Weissman.

— Toma — disse-me ele entregando-me o saco. — Tira o bicharoco e deita a

farinha na arca.

— Na arca?

— Claro! Não vais deitá-la fora, pois não?

De olhos fixos no alto, fez do Céu testemunha.

— Tanta confusão por causa de um bichinho de nada! Dir-se-ia tratar-se de um

acontecimento histórico…

Entretanto, apesar da minha repugnância, lá tirei o verme do saco e deitei a

farinha na arca. Não sabia o que fazer daquele animal repugnante. O Sr. Weissman

olhava para mim com ar de gozo.

— Come-o. É carne barata, não? — exclamou ele.

Page 78: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

Respondi com uma eloquente careta.

— O que é que tens, Danny, não gostas de carne crua? Nesse caso, leva-o para

casa e pede à tua mãe que faça um guisado com ele. Bem, basta de brincadeira, vou-

-me lá para o armazém. Não faças asneiras nas minhas costas, olha que te

arrependes.

Fiquei especado no meio da loja, com o bicho nas mãos, sem saber o que fazer

dele, um pouco agoniado com aquelas brincadeiras. Mal o Sr. Weissman desapareceu,

a porta tilintou. A Sr.ª White entrou e ficou muito embaraçada por me encontrar ali.

— Olha o Danny… Mas o que fazes aí atrás do balcão?

— Eu… Vim ajudar o Sr. Weissman por algum tempo.

— Olha que bem! És um rapaz valente, Danny. Tenho a certeza de que a tua mãe

tem orgulho em ti.

— Eu… sei — respondi com ar incomodado.

— Mas… o que tens na mão?

— Nada.

Inclinou-se para ver e, rapidamente, meti o verme no bolso do meu avental.

— O que deseja? — perguntei com ar de profissional.

A Sr.ª White baixou a cabeça, muito corada e puxou do porta-moedas.

Page 79: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— Sabes que fomos… quer dizer, mudámos de casa. Como juntámos algum

dinheiro ao vendermos algumas bugigangas, vim pagar o que devo.

— Muito bem — disse eu, enquanto pegava no livro de registo de contas. — Já

sabe onde vai morar?

— Não temos… ainda não decidimos — respondeu a Sr.ª White cada vez mais

corada.

— Então diga ao Luther que me escreva quando estiverem instalados, por favor.

— Com certeza. Obrigada.

Tinha aberto o livro na folha do “W” e ia dizer a quantia, quando chegou o Sr.

Weissman, vindo do armazém, e me tirou o livro das mãos.

— Eu trato da senhora, Danny. Acaba de arrumar as latas de conserva.

Um pouco atarantado, voltei a subir para a escada.

O Sr. Weissman olhava para a Sr.ª White a sorrir.

— Como está, minha querida senhora?

— Bem, obrigada — respondeu ela com um sorriso tímido.

— E os filhos?

— Estão bem.

— Ótimo, ótimo… soube que nos ia deixar, tenho pena…

Page 80: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— Também nós, Sr. Weissman. Mas… em relação à minha dívida…

— Sim, com certeza. Espere que eu faço as contas…

Enquanto falava, seguia com o dedo o registo. Empoleirado no alto da escada, eu

via o que ele fazia.

— Sete dólares e vinte e dois cêntimos — disse ele por fim.

Pouco faltou para cair da escada. Tinha lido com os meus olhos, instantes antes, a

quantia registada no livro das contas. Trinta e três dólares e oitenta e sete cêntimos.

Também a Sr.ª White estava admirada.

— Deve haver aí algum engano. Eu… Bem, acho que deve ser mais do que isso,

Sr. Weissman.

— Não — replicou o merceeiro a olhar atentamente para o rol. — Está aqui escrito

em letras garrafais.

— Garanto-lhe…

— Então, acha que não sei fazer contas?

— Ai, não. Longe de mim tal ideia.

— Portanto deve-me, minha querida senhora, sete dólares e vinte e dois

cêntimos. Tem dinheiro que chegue?

Page 81: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— Sim, sim — respondeu a Sr.ª White enquanto procurava no porta-moedas. — E

depois… ainda precisava de algumas coisas…

O Sr. Weissman deu-lhe tudo o que ela lhe ia pedindo, mas, no momento de

pagar, recusou o dinheiro.

— É a minha prenda de despedida — explicou ele.

— Impossível, não posso aceitar…

— Sou eu que quero oferecer! Tenho por hábito dar um presente aos meus

clientes quando deixam o bairro. É a base do ofício de comerciante.

Acompanhou-a gentilmente até à porta, e ali pegou num punhado de gomas de

alcaçuz e entregou-lhas:

— É para as crianças!

A Sr.ª White já não corava. Disse simplesmente:

— Que Deus o abençoe, Sr. Weissman!

— Obrigado — respondeu ele. — Aqui está uma bênção que me será bem útil.

Mal a porta se fechou, saltei da escada.

— Diga-me lá, Sr. Weissman, eu tinha aberto o livro e pareceu-me que vi lá

escrito…

Um ruído de papel amarrotado interrompeu-me.

Page 82: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

O Sr. Weissman acabava de deitar para o lixo a folha dos White.

— Não estás aqui para falar — disse ele. — Mandei-te arrumar as latas de

conserva. Vai fazer mas é o teu trabalho!

♦♦♦♦

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11

Hoje jurei que nunca mais voltava a roubar.

Morria de fome ao fim da tarde, e então surripiei um punhado de amendoins,

julgando que o Sr. Weissman não dava conta.

Tinha-os metido no bolso do avental e, de cada vez que ele virava costas, comia

um à socapa. Até ao momento em que trinquei um amendoim estranho, que não

estalou como os outros. Qualquer coisa pegajosa e amarga se espalhou na minha boca

e eu cuspi aquele alimento imundo na mão com uma expressão de asco:

— Que nojo!

— O que foi? — perguntou o Sr. Weissman.

— Acabo de comer o verme da menina Perkins — respondi eu com uma careta.

O Sr. Weissman pôs-se a rir, depois tomou um ar grave e apontou com o dedo

para o teto:

— Apanhou-te.

Perplexo, olhei para cima. Apenas uma borboleta noturna, adormecida ao canto

da trave, podia representar aquele misterioso “ele”, mas não estava a ver como é que

ela podia intervir na minha história.

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— Quem? — perguntei.

— Ele — respondeu o Sr. Weissman, apontando outra vez para o teto.

De repente fez-se luz no meu espírito. Queria dizer Ele, com «E» maiúsculo. Deus,

pois.

— Castigou-te por me teres roubado amendoins — prosseguiu o Sr. Weissman.

As minhas faces ficaram rubras.

— Então tinha visto?

— Claro. Tenho dois olhos atrás da cabeça. Não se veem, mas estão lá.

Indispensável na minha profissão.

— Desculpe, Sr. Weissman. Disponho-me a trabalhar mais tempo para lhos pagar.

— A questão não é essa, menino. Mas da próxima vez, pede. Não roubes.

Censurei-me muito, não só porque tinha faltado à palavra para com o meu pai,

mas também porque gostava deste velho rabugento, com as suas maneiras severas e

o seu coração de ouro. Queria que tivesse de mim uma boa opinião. Não demorei a

perceber porque é que os Weissman viviam tão pobremente. Não é por falta de

clientes, pois a campainha da porta não para de tilintar durante todo o dia. Mas pelo

que está na caixa registadora…

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— Ponha isso na minha conta — dizem todos, e os algarismos sobem no registo

das compras a crédito. Mas o porta-moedas do Sr. Weissman emagrece dia após dia.

A mim, o facto de trabalhar na mercearia, criou-me problemas inesperados.

Desde que correu a notícia de que eu trabalhava ali, todos os meus colegas

desfilaram, convencidos de que os deixaria levar tudo o que queriam, sem pagar. Era

difícil, sobretudo no início, antes de descobrir a verdadeira personalidade do Sr.

Weissman. Como era tido por um velho cheio de dinheiro, todos os meus colegas

esfomeados me pediam com que encher a barriga e não compreendiam por que

motivo eu recusava.

Se aceitasse, passaria por ladrão aos olhos do meu patrão e do meu pai. Ao

recusar, passava por traidor aos olhos dos meus amigos. Foi assim que passei a

traidor. E há pior. Esta tarde, quem vi eu entrar na loja? Os irmãos Sullivan em pessoa!

Que desplante!... Enfim, são tão atrevidos como tontos, isto diz tudo.

O Sr. Weissman estava ocupado com um cliente, e tinha de ser eu a atendê-los.

— Olha, olha — disse Harry a troçar — mas é o nosso querido Danny. Que fazes

aqui, Garvey?

— Sabes bem, Sullivan — murmurei entre dentes.

— Ajuda o seu querido velho Weissman, hein? Que lindo! Não achas, Frank?

Page 86: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— Sim — disse Frank.

— Que querem? — perguntei num ar ameaçador.

— Mas que simpático que tu és! — comentou Harry. — Não tardas a ser

aumentado, já que fazes tão bem o teu trabalho. Que achas, Frank?

Interrompi-o.

— Cala a boca.

— Mas ele está a enervar-se! Não é assim que se fala aos clientes, Danny.

— Tu não és cliente, Harry.

— Sou, sou — protestou, exibindo uma moeda de dez cêntimos. — Olha, tenho

com que pagar.

Entretanto, o Sr. Weissman, que tinha terminado de atender alguém, observava-

nos sem dizer nada.

— Então, o que é que queres? — prossegui eu.

— A minha mãe quer um bocado de pão e três cêntimos de açúcar.

Foi então que o Sr. Weissman interveio… Mas não da forma que eu esperava.

— Trata tu destes senhores, Danny. Tenho coisas a fazer no armazém — disse ele.

Eu nem acreditava. Era mesmo o momento ideal para me deixar sozinho! No

entanto, ele bem sabia que os Sullivan queriam sarilhos…

Page 87: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

Embrulhei o pão, pesei o açúcar e meti tudo num saco de papel.

— Aqui está, Harry. São dez cêntimos.

— Vai-te lixar, cretino! — replicou, metendo o dinheiro no bolso.

Deitei uma olhadela na direção do armazém.

— Então, Dannizinho, vais chamar a mamã? Olha, Frank, o bebé da mamã quer

pedir ajuda!

— Oh… — resmungou Frank.

Comecei a enervar-me.

— Dá cá o dinheiro, Harry.

— Aponta aí na minha folha. Anda, Frank, vamos pôr-nos a andar.

— Tu não tens cá conta, Sullivan — respondi eu. — Dá-me os dez cêntimos.

Sacudiu os ombros e dirigiu-se para a porta. Eu tinha de fazer qualquer coisa e

rápido. Não queria que o Sr. Weissman julgasse que eu era cúmplice dos Sullivan. Num

piscar de olhos, saltei o balcão e cortei-lhes a saída.

— O dinheiro, Harry. E depressa.

— Olha, olha, — notou ele — há qualquer coisa a bloquear a porta. Vamos atacá-

-lo, Frank?

— Vamos a isso.

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Agarraram-me, cada um por seu braço, e levantaram-me como uma pluma. Mas

eu, rápido como um raio, enrolei a minha perna direita na de Frank e a esquerda na de

Harry. Com esta dupla rasteira, caímos os três com grande estrondo.

— Que se passa aqui? — perguntou o Sr. Weissman a sair do armazém.

— Nada, sor — respondi eu, levantando-me tranquilamente. — Harry e Frank

preparavam-se para me pagar as compras, dez cêntimos certos. Não é verdade,

amigos?

Harry olhava para mim com olhos de pescada frita. Sem dizer nada, tirou a moeda

de dez cêntimos e entregou-ma. Apanhei o saco todo amarrotado pela queda.

— Lamento pela fatia do pão. Podem fazer pão ralado.

Harry, a resmungar um palavrão entre dentes, tirou-me o saco das mãos. E

saíram os dois porta fora sem dizer palavra.

— Obrigado! — gritei eu desde a porta — Até à próxima.

O Sr. Weissman estava à minha espera dentro da loja, com um grande sorriso.

— Porque me deixou sozinho? — perguntei eu. — Bem viu que vinham para fazer

zaragata. Sabe bem como eles são!

Não respondeu. Limitou-se a cofiar a barba, sem parar de sorrir. Então de

repente, percebi.

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— Fez isto para me experimentar, hein, diga lá?

Mas no momento em que ia responder-me, a campainha da porta tilintou. Entrou

uma cliente e, sem dizer mais nada, avançou para ela.

— Bom dia, Sr.ª Salinas. Que vai ser hoje?

♦♦♦♦♦♦

12

Já era noite quando voltei para casa. Normalmente, faço este trajeto com muita

cautela, mas naquela noite era sexta-feira, e eu ia a pensar no que ia fazer no dia

seguinte. Algo que me desse o maior prazer possível!

Não devia ter descurado a atenção. Estava quase perto da minha rua quando, de

repente, alguém me agarrou por trás como uma tenaz e me torceu os braços. Logo vi

surgir à minha frente Harry Sullivan, e recebi em cheio no estômago um golpe

magistral que me cortou a respiração.

Dobrei-me sufocado e a tossir. Frank (era ele, sem dúvida) soltou-me os pulsos e

arrastaram-me para uma ruela escura, aproveitando o facto de estar atordoado

Page 90: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

demais para poder defender-me. Vi-me de novo encostado contra uma parede, mas

desta vez esmagavam-me a cara contra os tijolos.

— Olhem para isto! — chiava Harry. — O bufo, o traidor, com um ar tão fino!

Ao falar, batia o meu rosto contra a parede. Apesar das dores, recuperei fôlego e

perguntei:

— Afinal, o que é que vocês querem?

— O que queremos? Pois bem, um pedido de desculpas.

Virou-me, sempre a torcer-me os braços, com um sorriso odioso. Num relance,

lembrei-me do conselho que o meu pai me dera. Quando o caso se torna sério, começa

por refletir. Se não és o mais forte, sê o mais astuto.

Ali, diante daqueles dois brutamontes, eu tinha de ser o mais astuto.

Não era o momento de brincar aos heróis.

— Então, essas desculpas saem ou não? — gritou Harry, a torcer-me cada vez

mais o braço.

— Desculpa! — murmurei.

— Mais alto!

— Desculpa!

Gritei tão alto como ele, com raiva. Continuava a torcer-me o braço.

Page 91: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— Tem mesmo ar de quem não está a pensar no que diz, não te parece, Frank?

— Acho que sim.

— Vamos dar-lhe uma lição. De joelhos, seu filho da mãe.

De uma estocada empurrou-me, e fiquei de joelhos, de cara contra a parede.

Tinha o rosto ferido e senti um líquido morno a escorrer dos lábios. Era sangue. Harry

e Frank estavam de novo atrás de mim, um imobilizava-me e o outro…o que estaria

ele a fazer? O meu coração começava a falhar-me.

De repente, ouvi o ruído de uma faca de mola a abrir. Gelou-se-me o sangue nas

veias.

Quis abrir a boca para gritar, mas não saiu qualquer som.

Mas, para minha surpresa, o garrote que segurava o meu braço abrandou de

repente.

Com cuidado, virei a cabeça, temendo uma nova surpresa, e o que vi fez-me

soltar um suspiro de alívio. Não fora Harry quem puxara da navalha. Era Mickey

Crowley, que aparecia à entrada da ruela e os ameaçava a ambos com ar feroz. Num

tom de voz o mais decidido de que fui capaz, disse:

— Olá, Mickey. Folgo em ver-te.

Harry e Frank não se mostraram intimidados.

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— Não tens nada a ver com o assunto, Crowley — resmungou Harry. — Sai daqui.

— Esborracha-o, Sullivan — ripostou Mickey. — Tu não deves saber o que significa

esta palavra, mas olha que o Danny é meu amigo e estou aqui para o defender.

Avançou, de navalha na mão, e os irmãos Sullivan recuaram um passo. Mickey

deu-me umas palmadas nos ombros.

— Estás bem? Não te fizeram mal?

— Estou bem — respondi eu ao levantar-me.

Mas as pernas tremiam-me contra a minha vontade.

Mickey levou-me para junto de um candeeiro para observar a minha cara

ensanguentada.

— Filhos da mãe…— murmurou cheio de raiva. — Hão de pagar pelo que fizeram.

Virou-se para os gémeos e exclamou num ar feroz:

— Está ferido. O meu amigo está ferido. Para o vingar, tenho de fazer correr

sangue, Sullivan!

Os gémeos, mais mortos do que vivos, encostaram-se contra a parede. Frank

começou a choramingar, mas o irmão fê-lo calar com um murro no estômago:

— Cala a boca ou apanhas.

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De repente senti pena de Frank. Nascera alguns minutos depois do irmão e,

embora não sejam parecidos, é obrigado a viver à sombra dele.

— Deixa-os lá — disse eu a Mickey.

— Nem pensar. Vou sangrá-los como se faz aos porcos.

— Não, Mick. Deixa-os ir embora.

Lançou-me um olhar de desilusão.

— Não tens graça nenhuma, meu. Mas pronto, já que me pedes…

Guardou a navalha e, com um gesto, indicou que podiam ir.

— Ponham-se a andar. No vosso lugar, daqui em diante, não me metia noutra.

Os gémeos não o fizeram dizer duas vezes. Frank desatou a correr como uma

lebre, enquanto o irmão caminhava devagar, com toda a calma. É preciso reconhecer

uma coisa neste brutamontes, é que ele tem uma certa coragem.

Do fundo da ruela, virou-se para trás e disse:

— Ninguém dá ordens a Harry Sullivan. Hei de voltar.

Mickey e eu desatámos a rir. Peguei na navalha para a observar de perto.

— Onde é que foste arranjar uma coisa destas? — perguntei eu.

— Foi o meu pai que a confiscou a um tipo ontem à noite.

— Foste maluco ao teres trazido isto! Se sabe, esfola-te vivo.

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— Não, ele nem dá conta. Quando chegar a casa, vou logo pô-la na gaveta e

pronto. Ora diz lá se não foi bem útil!

— Isso sim — disse eu a rir — e tu no papel de sanguinário. Para o vingar tenho de

fazer correr sangue, Sullivan… Onde foste arranjar esta réplica? Nalgum filme?

— Não, fui eu que a inventei.

— Pobre Frank! Por pouco não se urinava todo, tal era o medo.

— Bem feito — retorquiu Mickey.

— Não, ele não é mau. O outro é que o arrasta e manda nele. O Frank nunca

aprendeu a decidir por si. Desde que nasceram, o Harry é que dita as leis. Imagino-o

muito bem, mal saiu da barriga da mãe, a dar um pontapé no rabo ao irmão e a dizer-

lhe chora, palerma!

Mickey desatou a rir.

— Deves ter razão.

Meteu a navalha no bolso e fomos para Park Avenue. Quando passámos debaixo

de um lampadário, examinou de novo a minha cara.

— Não é assim tão grave — constatou ele. — Alguns arranhões. Vai deixar-te

algumas marcas, mas também eras bonito demais.

Respondi-lhe com um soco bem aplicado.

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— Mas olha lá, — retomou ele — estava à tua espera para te pedir uma coisa.

— O quê?

Naquele momento, facto estranho, Mickey perdeu a compostura. Pôs-se a

titubear.

— Hum…é, hum…

— Diz lá! Afinal o que é?

— Hum… Que dizes, se convidássemos a Kitty e a Maggie para irmos todos ao

cinema amanhã?

Parei.

— Convidá-las para ir ao cinema? Onde estás a querer chegar?

— Bem, não sei… Uma coisa diferente.

— Como? Sermos nós a pagar?

— E porque não? Não há mal nenhum nisso.

— Estás maluco, pá! É isso, estás maluco. Não vejo outra explicação.

— O que é que está errado, Danny?

— Não estou para pagar um bilhete de cinema a uma rapariga! Se a Kitty e a

Maggie têm vontade de ir ao cinema, que paguem o bilhete, como toda a gente.

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— Mas tu sabes bem que não têm um centavo! Com tanta pequenada para

alimentar e o pai sem trabalho…

— Isso não me diz respeito. Não sou o Rockefeller!

— Escuta, Danny, eu pago a todos, está bem?

Olhei para ele com preocupação. Estava mesmo maluco.

— Vamos lá ver… Assaltaste um banco ou recebeste uma herança?

— Nada disso. Acontece que tenho neste momento um pouco de dinheiro

adiantado…

Olhei-o nos olhos.

— Não roubaste, pelo menos? — perguntei eu. — É que jurei ao meu pai que

nunca mais entrava, nem de perto nem de longe, em histórias de roubo.

— Não, não roubei. Se queres mesmo saber, eu conto-te: a minha avó veio

ver-nos no fim-de-semana passado e deu-me um dólar.

— Um dólar a sério? Dez vezes dez cêntimos?

— Um dólar, sim.

— Alto lá! Estou impressionado, Mick. Não sabia que tinhas ricos na família.

— Mais devagar. Bom, queres ir ao cinema com as gémeas e comigo, sim ou não?

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— Não sei. Acho que deves estar um pouco avariado! Já pensaste no que podes

comprar com um dólar? Podes ir dez vezes ao cinema, ou comprar vinte caramelos, ou

cinquenta gomas de alcaçuz ou…

— Cala-te lá com isso! Bem sei o que posso comprar.

— Então, porque queres gastar tudo de uma vez com aquelas palermas?

— Porque já não sou nenhum miúdo.

Fiz um pouco de beicinho que queria dizer muito.

— Ficaste homem de um dia para o outro…— disse eu com ar de troça.

— Exatamente. Sou muito mais adulto do que tu.

De tanto rir, por pouco perdi o fôlego, mas Mickey bateu-me nas costas e trouxe-

me à razão.

— Cresce um pouco, miúdo. Encara as coisas de frente. Sozinho não posso

convidar as raparigas. Preciso que tu venhas.

— Eu? Prefiro morrer!

— Bem, se pensas assim… Quer queiras, quer não, Danny, lembra-te que estás

em dívida para comigo.

Perante aquilo, parei de rir. Apanhara-me.

— Está bem — disse eu — farei o que quiseres. Mas acho que elas nunca irão

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aceitar. A Maggie Riley vai perder-se de riso quando ouvir as primeiras palavras.

— Veremos — replicou Mickey com um sorrisinho. — Veremos…

Entretanto, tínhamos chegado a minha casa. Estendi-lhe a mão.

— Até amanhã, meu caro.

— Eh, espera aí um bocadinho. Quando é que lhes vais falar? Esta tarde?

— Claro que não! Não queres que vá com a cara toda ensanguentada, pois não?

— Bem — respondeu Mickey com o seu ar sombrio. — Amanhã, então. Não tentes

escapar-te, não arranjes desculpas, hein?

Sacudi a cabeça e ele lá foi, de mãos nos bolsos do casaco.

Como todas as sextas-feiras, Maggie e Kitty estavam a lavar o chão da entrada.

Ao vê-las, estranhamente, corei.

— Olha, olha… — disse Maggie. — O falso irmão de Danny.

— Está tudo bem! — repliquei eu.

— Com que então, abandonaste-nos à entrada do túnel?!

— Tinha as minhas razões.

— E quais são essas razões, diz-me lá?

— Noutra ocasião.

Tinha avançado um passo sob o candeeiro elétrico e ela viu a minha cara.

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— O que é que te aconteceu?

— Nada, caí.

— Valha-te Deus! Olha lá, tem cuidado! Vais sujar as escadas com os sapatos

cheios de lama. Descalça-te.

— Vai à fava!

Desatei a correr pelas escadas, saltando os degraus quatro a quatro, sem olhar

para trás. Maggie e Kitty ficaram a falar com risinhos abafados. Do alto do meu

patamar, fiquei a observá-las durante um ou dois minutos. Mickey tinha razão: Maggie

começava a ficar uma mulher…e era a minha melhor amiga… Mas porque é que tudo

muda com o tempo? Porque é que a gente cresce? Ultimamente, a vida tem ficado

demasiado complicada para o meu gosto…

♦♦♦♦♦♦

13

Pela primeira vez na vida a minha mãe não estava a passar a ferro. Quando entrei

na cozinha, os lençóis e as toalhas já estavam dobrados, empilhados, prontos para

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serem entregues no dia seguinte pela manhã. Maureen brincava na banheira e a

minha mãe, sentada diante da mesa, escrevia uma carta.

— A quem estás a escrever?

— Ao teu pai — respondeu, sem levantar a cabeça.

— Mas ainda não recebeste notícias dele!

— Não importa. Escrevo-lhe, mesmo assim.

— E para onde tencionas enviar a carta?

— Para a direção que me mandar quando estiver instalado algures. Até lá, vou

guardá-la.

Não entendia nada.

— Mãe, — perguntei — porque fazes isso?

— Porque quero pô-lo ao corrente de tudo o que se passa aqui, meu querido. E,

depois, sinto-me reconfortada. Parece que estou a falar com ele.

— Então diz-lhe “olá” por mim — concluí eu.

A minha mãe sorriu e olhou para mim.

— Santo Deus! — exclamou ela ao ver-me. — O que é que te aconteceu?

— Nada… Uns arranhões.

Mas já tinha saltado da cadeira para vir examinar-me.

Page 101: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— Danny, Danny, o que é que se passou?

— Nada de grave, asseguro-te. Escorreguei e caí.

— Bateste com a cara no chão?

— É verdade.

— Mostra lá as mãos, Danny.

Ai! Não acreditava em mim. Pousei as minhas mãos nas dela e ela virou-as para

examinar as palmas que estavam intactas.

— Mentiste-me, Danny. Conta-me lá a verdade.

Fosse qual fosse a resposta, cravei os olhos no chão.

Zangada e ao mesmo tempo com pena, a minha mãe largou-me as mãos.

— Teimoso como um burro — suspirou. — És tal e qual o teu pai!

— Então, se me pareço com o pai, não está nada mal! — retorqui a sorrir.

A minha mãe fingiu que estava zangada.

— E ainda por cima sedutor como ele! Chega aqui, amostra de Garvey, que eu

limpo a tua ferida de guerra.

Inclinou-se diante da banca da loiça e tirou um frasco castanho. Fiquei com os

cabelos em pé.

— Oh, não! Água oxigenada, não.

Page 102: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

Fiz que ia fugir e corri para a banheira. Maureen tinha o cabelo molhado e eu dei-

-lhe um beijo na cabecita redonda. Estendeu para mim os bracitos cheios de sabão e

murmurou:

— Da!

Mas quando eu ia pegar numa toalha para a limpar, senti que a minha mãe me

segurava com firmeza pelo braço.

— Ai! — protestei. — Não, não quero.

— Não te pedi opinião — replicou ela com calma. — Inclina-te sobre o lava-loiça.

Assim, muito bem…

— Não, mãe, sê boazinha…

— Fecha os olhos…Inclina um pouco mais a cabeça… Assim.

— Não, escuta…

Quis levantar a cabeça, mas ela segurava-me pela orelha.

Percebi que seria inútil resistir.

— Pronto, está bem — resmunguei eu, serrando os dentes.

Mas quando a água oxigenada escorreu sobre a carne viva, não pude conter-me:

gritei e desviei-me. A minha mãe voltou a pôr-me a cabeça no guarda-loiça. Gritei:

— Meu Deus, vais matar-me com o teu desinfetante!

Page 103: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

Mas já tinha acabado. Entregou-me uma toalha e, com um ar severo:

— Acabou. Da próxima vez, antes de começares uma briga, vais pensar duas

vezes. E peço-te que não invoques o nome do Senhor em vão, se não tenho de te lavar

a boca com sabão!

Era bem capaz disso. A minha mãe é pequenina, mas é cá de uma autoridade…

Maureen olhava para nós do fundo da banheira com os seus olhos redondos. Deve

ter pensado que a nossa mãe estava a matar-me ou a esfolar-me vivo. Peguei na

toalha e tirei-a da água.

— O Da está bem — expliquei-lhe eu. — Não te preocupes.

Um vapor suave vinha do seu corpinho corado, todo envolto numa toalha branca.

Esfreguei-a e fiz-lhe cócegas para a fazer rir. Depois, pus-lhe a fralda, vesti-lhe o

babygrow e os carapins de lã que a minha mãe tricotara. Parecia um anjo com as suas

faces rosadas e os caracóis ainda húmidos. Peguei nela e lancei-a ao ar. Parecia

sufocar de tanto rir. Ao virar-me, deparei com a nossa mãe a olhar para mim. Já não

tinha ares de zangada.

— É verdade — murmurou ela a sorrir. — És mesmo como o teu pai.

Ri um pouco forçado e pousei Maureen na sua cadeirinha diante da mesa.

— Mãe, estou a morrer de fome. O que há para o jantar?

Page 104: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

O sorriso da minha mãe desapareceu.

— Só flocos de aveia — respondeu ela.

Que imbecil fui ao fazer aquela pergunta! É claro que não havia mais nada. Vi a

minha mãe meter os três últimos dólares no saco do pai, antes de partir. Tínhamos de

nos contentar com flocos de aveia e leite em pó durante uns dias.

— Que bom! — exclamei eu. — Adoro flocos de aveia. E amanhã é dia de te

pagarem!

— Deves achar que sou maluca por ter dado as últimas moedas ao teu pai —

murmurou ela com ar pesaroso.

— Nada disso! Achas que podia comer tranquilo, imaginando que o pai morria de

fome? Gostava que lhe tivesses dado mais, mas era tudo o que tínhamos.

Já mais tranquila, a minha mãe pousou as tigelas em cima da mesa, e depois tirou

o tacho do lume. Pelo menos, os flocos de aveia eram doces, e aquela massa espessa

e quente encheu-me o estômago por uns momentos. Tínhamos já acabado, quando

olhei para a janela e vi um pano que se balançava na ponta de uma corda.

— Mãe, a Sr.ª Mahoney está a chamar-te.

A Sr.ª Mahoney é viúva e vive mesmo por cima de nós. Tem uma perna de pau

que faz “toc, toc, toc” o dia inteiro no teto mas já nos habituámos, tal como ao barulho

Page 105: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

dos comboios que passam na linha férrea. A minha mãe deitou a cabeça fora da

janela.

— Chamou, Rosa?

— Sim, Molly. Suba, venha beber uma chávena de chá.

A mãe virou-se para mim, toda contente.

— Podes deitar a Maureen?

— Claro, mãe. Anda, vai lá.

— Vou já! — gritou ela pela janela.

A cozinha da Sr.ª Mahoney é o quartel-general de todas as mulheres do prédio. O

chá que finge servir-lhes em chávenas de porcelana é de facto vinho feito por ela. É

um segredo de polichinelo, mas nós, as crianças, não somos míopes. Quando as

nossas mães regressam da casa da Sr.ª Mahoney com um sorriso mais feliz do que o

costume, rimo-nos às escondidas. Não se pode comercializar vinho nem cerveja por

causa da Proibição. É o motivo pelo qual tantas pessoas fabricam bebidas alcoólicas

em casa. Penso que não é ilegal, desde que não seja para vender.

E depois a polícia anda tão ocupada a perseguir os gangsters e os traficantes de

álcool que não se vai pôr a aborrecer a Sr.ª Mahoney! O meu pai diz que a Proibição só

Page 106: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

faz engordar um montão de escroques e bandidos e que já é tempo de acabar com

ela.

A minha mãe apressou-se a lavar a loiça. Depois, tirou o avental e compôs o

cabelo.

— Tens a certeza de que não vais ter problemas? — perguntou-me ela.

— Não, mãe, podes ir descansada.

— Não te esqueças de tomar banho.

— Oh, que chatice!

— Deixa-te de histórias, Danny. Queres ouvir o rádio?

Deu um beijo a Maureen e, antes de sair, ligou o rádio. A voz de Kate Smith

encheu a sala. Era uma canção sentimental, e a minha mãe ficou a ouvi-la de olhos

semicerrados. Quando acabou, acenou com a cabeça em sinal de admiração.

— Canta muito bem.

— Não tanto como tu! — respondi-lhe eu. — Também podias ter sido cantora de

rádio.

Riu-se, de cabeça inclinada para trás, com um riso musical e cristalino, como

quando se passa a mão sobre o teclado de um piano.

— Sim, se tivesse casado com o rei, seria rainha de Inglaterra!

Page 107: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

E ainda se ria pelas escadas acima.

Pus a água do banho a aquecer e, entretanto, meti Maureen na cama.

Se há coisa que eu deteste é tomar banho. Não pensem que gosto da sujidade,

não é isso. Mas com a banheira no meio da cozinha, mesmo com os estores baixos e a

porta fechada, tenho sempre a impressão de estar nu no meio da rua.

Uma vez, já lá vão uns anos, Maggie entrou quando eu só tinha o sabão para

proteger o meu pudor… E aquela rabugenta ainda hoje me relembra a cena! Depois

disso, já cresci muito e um sabão não seria suficiente… Mandámos colocar uma

corrente na porta da cozinha mas, mesmo assim, fico sempre em pânico quando ouço

passos no patamar.

O banho estava quente. Ensaboei-me o mais que pude, a ouvir Amós e Andy, o

par de cómicos que me fazem rir como um tolo. Mas, de repente, alguém bateu à

porta.

— Danny?

Misericórdia! Era a voz de Maggie. Mergulhei na água cheia de sabão.

— Danny? Vens jogar Monopólio?

Não respondi. Nem pensar dizer-lhe que estava na banheira.

— Danny, eu sei que estás aí. Ouvi-te rir. Porque não respondes?

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Ouvi um risinho abafado e depois o ruído da chave na porta. Abriu um pouco mas,

crac! a corrente parou-a.

— D-a-a-a-n-n-y? — repetiu aquela peste de voz cantante — Estás na banheira?

Fiquei imóvel e mudo como um morto. Já não estava no seu campo de visão,

graças a Deus, mas o olhar de Maggie Riley penetrava no compartimento onde eu

estava encerrado, nu como uma minhoca. Até transpirei dentro da água!

♦♦♦♦♦♦

14

Sábado, 22 de outubro de 1932

Normalmente, ao sábado de manhã não tenho muitos clientes. Mas hoje foi pior:

dir-se-ia que ninguém quer engraxar os sapatos. Fiquei ao lado do quiosque do Ike

durante uma boa hora e só ganhei cinco cêntimos. Ike deve ter tido pena de mim

porque, quando me preparava para ir embora, estendeu os pés.

— Não precisam de graxa! — protestei.

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— Precisam! Esta tarde vou ter com a minha namorada. Tenho de estar elegante

— respondeu com um piscar de olhos.

Não acreditei, mas para que havia de protestar? Um tostão é um tostão, e como

as coisas andam…

Quando cheguei a casa entreguei os dez tristes cêntimos à minha mãe, dizendo:

— Foi tudo o que consegui.

Olhou para as duas moedas de cinco cêntimos e devolveu-mas com um sorriso.

— É para ires ao cinema.

— Não, obrigado, mãe. Não preciso. Mickey convidou-me a ir ver um filme esta

tarde.

— Convidou-te? E a que propósito?

— É uma longa história. Depois conto-te. Agora tenho de ir.

— Pega nos dez cêntimos. Bem os mereces.

— A sério? Obrigado, mãe!

Acariciou-me os cabelos.

— Agora corre à casa da Sr.ª Emily levar a roupa passada a ferro. E não te

demores.

Pus a grande pilha de roupa no carrinho, como faço todos os sábados, e lá fui eu!

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O lar de meninas da Sr.ª Emily não fica longe. Sadie, a cozinheira, mandou-me

entrar pela porta das traseiras. Gosto muito dela, com as suas faces brilhantes como

ébano e uns olhos risonhos.

— Olá, rapaz! — exclamou ao ver-me — Como estás?

— Bem, Sadie. E tu?

Não sei como é que ela consegue trabalhar para aquela bruxa da Sr.ª Emily e

andar sempre bem-disposta. São como o dia e a noite, uma redonda e calorosa, a

outra só ossos e gelo.

Sadie foi avisar a patroa que eu tinha chegado. A cozinha cheirava a chocolate e a

bolos.

Através das portas, chegavam sons de conversas filtradas e de talheres. Uma

empregada chegou com os pratos das meninas, cheios de restos suculentos. Eu nem

acreditava no que via! A maior parte delas mal tinha tocado no pequeno-almoço.

Havia montanhas de ovos, crepes, torradas, muitas fatias grossas de presunto e

pãezinhos. À vista de tanta coisa boa, a minha barriga pôs-se a reclamar e começou a

crescer-me água na boca.

Sadie, ao voltar, encontrou-me em contemplação diante de toda aquela comida.

— Sem ofensa! — murmurou ela, meneando a cabeça. — Estas senhoras comem

Page 111: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

como passarinhos para manter a linha! E eu que passo o tempo a repetir-lhes que os

homens preferem as mulheres bem rechonchudas. É ou não verdade, meu rapaz?

Fiquei vermelho que nem uma papoila.

— Eh… Sim, sem dúvida.

Mas eu não conseguia concentrar-me noutra coisa que não fosse aquela comida.

Que fome tinha!

Sem dizer nada, Sadie tirou um pãozinho de um prato, abriu-o a meio, barrou-o

com manteiga e meteu lá duas enormes fatias de presunto.

— Pega — disse. — É tolice deitar fora todas estas coisas boas, não achas?

— Obrigado, Sadie, mas já comi.

— Também não vais dizer que queres manter a linha! — replicou, metendo-me na

mão a sanduíche.

Mas eu mantinha-me firme.

— A minha mãe proíbe-me de aceitar esmolas.

— Isto não é esmola. Pelo contrário, estás a fazer um ato de caridade. Salvas uma

alma em perigo.

— Uma alma em perigo?

— Sim! Nunca ouviste dizer que é pecado deitar comida fora?

Page 112: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— Já.

— Ora vês. Ao comer, estás a salvar a alma destas meninas que deixam presunto

no prato.

O raciocínio era um pouco estranho, mas tinha tanta fome que decidi aceitar. Dei

uma dentada na sanduíche e era como a antecâmara do paraíso. Nunca comera nada

tão bom em toda a minha vida! Esfomeado com estava, mastiguei lentamente aquela

dentada, saboreando-a bem para prolongar o prazer antes de engolir.

No momento em que ia dar uma segunda dentada, surgiu a Sr.ª Emily com uma

nota de dez dólares na mão. Mal olhou para mim, mas uma chispa de desprezo saltou-

-lhe dos olhos.

— Sadie — exclamou. — Já lhe disse centenas de vezes para não dar os restos a

estes miúdos vagabundos! Isso só os faz mais preguiçosos.

Pousou a nota em cima da mesa e, sem esperar resposta, saiu. Sadie ficou

irritada. Entregou-me os dez dólares e disse:

— Não ligues ao que aquela velha coruja disse.

Era demasiado tarde: o gosto da sandes tinha passado a amargo. Pousei-a na

mesa e procurei nos bolsos as duas moedas de cinco cêntimos que a minha mãe me

tinha dado. Por um instante, pensei nos caramelos que podia comprar, depois revi o ar

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de desprezo da Sr.ª Emily. Tirei os dez cêntimos do bolso e pu-los em cima da mesa,

ao lado da sandes trincada.

— Por favor, dá isto da minha parte à Sr.ª Emily — disse eu a Sadie.

Olhou para mim, embaraçada. Depois, lentamente, um sorriso de satisfação foi-

-se-lhe desenhando no rosto.

— Farei o que dizes, meu rapaz! — disse ela — Podes ter a certeza.

Sublinhou o que disse com uma piscadela de olhos.

Já não pensava nos caramelos. Estava tão aliviado que compreendi uma coisa:

nunca o meu dinheiro fora tão bem gasto.

♦♦♦♦♦♦

15

Quando cheguei a casa, a minha mãe estava com um mau humor de se lhe tirar o

chapéu. Sacudiu um envelope debaixo do meu nariz a dizer:

— Olha para isto! Não volta a fazer outra! Orgulhoso e cabeçudo como ele é.

Peguei no envelope, de coração a palpitar…

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— Mas é uma carta do pai!

— Pois. Abre-a! — respondeu a minha mãe, sobrolho franzido, com os braços

cruzados diante do peito.

Ao abrir o envelope, compreendi imediatamente o que a tinha deixado tão

irritada. Os três dólares que a mãe lhe tinha dado antes de partir estavam ali

dobradinhos com um recado que dizia:

Molly, minha querida,Eu, roubar o pão da boca da minha mulher e dos meus filhos? Era o que faltava!

Preferia morrer de fome.Um beijo. O teu queridoDaniel

Não pude deixar de sorrir.

— Onde é que está a graça? — perguntou a minha mãe.

— É mesmo do pai. É incorrigível, mas…

— Ah não! — exclamou, levantando os olhos ao céu. — Não vais defendê-lo, pois

não?

A campainha da entrada tocou.

Page 115: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— Quem poderá ser?

— Eu vou ver, mãe.

Abri a porta e dei de caras com o Sr. Twiddle.

Desagradável surpresa. Não suporto este tipo. Não é que seja má pessoa, mas

trabalha para uma companhia de seguros, e todas as semanas vem tirar-nos vinte e

cinco cêntimos, sem nunca nos dar seja o que for em troca. Isto tem um nome:

assalto.

— Só um minuto, por favor, Sr. Twiddle — disse-lhe eu.

Corri a prevenir a minha mãe. Ao saber quem tinha tocado, fez uma careta.

— Não lhe dês nada! — bradei eu— Não precisamos de seguro.

— Não, Danny. É importante ter-se um seguro.

Tirou cinco moedas de cinco cêntimos do pote onde todos os dias meto a receita

do meu trabalho de engraxador e entregou-mas, dizendo:

— Vai lá pagar, por favor.

Uma a uma, depositei as cinco moedas na mão do Sr. Twiddle. Vinte e cinco

cêntimos que eu tinha ganho, muito a custo, durante a semana. Tirou o chapéu, a

sorrir com todos os dentes.

— Até à semana!

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— É isso mesmo, até à próxima semana — respondi eu, o mais delicadamente

possível.

Ia fechar a porta quando ouvi que alguém galgava as escadas. Era Mickey.

— Despacha-te, Garvey! — gritou — São horas!

Ai, a catequese! Quase me tinha esquecido… Já eram dez menos dez. Corri para o

meu quarto, peguei no missal e gritei para a minha mãe:

— Vou à catequese!

Juntamente com Mickey, corremos como loucos pelas ruas atulhadas de gente

para chegarmos à igreja de Santa Cecília antes das dez e um minuto, esbaforidos, mas

contentes: chegámos quase à hora!

Essa não era a opinião da Irmã Maria Francisca. Olhou para nós com aqueles

lábios contrafeitos e olhos negros pequeninos.

— Estamos outra vez atrasados, pelo que vejo — fez notar.

Não consegui segurar a língua. A réplica disparou sem eu querer:

— Ai sim, então a Irmã também está atrasada?

Sempre que diz “nós” em vez de “vós” apetece-me retorquir qualquer coisa deste

género. Desta vez é que foi bonito! Uma vaga de gargalhadas sacudiu a classe e a

irmã Maria Francisca arregalou os olhinhos.

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— Senhor Garvey, — anunciou ela — vai passar a hora inteira de joelhos, ali, à

nossa frente.

Alguns risos aplaudiram aquele castigo. Mas a Irmã Francisca abafou-os com uma

palavra:

— O próximo a abrir a boca vai fazer companhia ao Garvey.

Num silêncio de morte, fui ajoelhar-me no chão de cimento frio e duro. Primeiro,

quis fazer um pouco de batota e sentar-me sobre os calcanhares, mas a Irmã tinha

olho. Com uma palmada certeira, bateu-me nas costas com a régua e disse:

— Não suavize!

Uma rapariga deu uma gargalhada.

— Menina Riley, vá para junto do seu colega.

Alto lá! Estava mesmo de mau humor. Era a primeira vez que castigava uma

rapariga daquela maneira. Maggie veio ajoelhar-se ao meu lado, com um ar de falso

arrependimento e os olhos a faiscar como uma brasa, pronta a desatar a rir.

— Há mais candidatos? — perguntou a religiosa.

A resposta foi um silêncio absoluto.

— Está bem. Abram os vossos catecismos.

Mas mal ela virou as costas, Maggie aproveitou para me meter um bilhetinho no

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bolso. Desdobrei-o e li o seguinte:

Querido Danny,Ontem à noite vi-te nu na banheira.Assinado: Maggie

Mas a irmã Maria Francisca, tal como o Sr. Weissman, tem olhos atrás da cabeça.

A sua voz retiniu como um trovão.

— Senhor Garvey!

— Eh… Sim, Irmã?

— Quer fazer o favor de ler esse bilhetinho em voz alta?

— Eh… Sabe, irmã, não sei se será…

— Leia!

— Bem…

♦♦♦♦♦♦

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16

Em jeito de penitência, a irmã Maria Francisca mandou-nos rezar, a Maggie e a

mim, cinco terços antes de adormecermos. E, sendo eu rapaz, tinha de receber um

castigo suplementar, ou antes, uma tortura particularmente refinada. É essa a lógica

da irmã Maria Francisca: um rapaz é sempre mais culpado. De calças arregaçadas, tive

de ficar de joelhos em cima de um monte de grãos de arroz até ao fim da aula. Devo

dizer que como tortura é eficaz.

— E se eu a matasse? — disse eu a Mickey ao descermos as escadas depois das

aulas.

Coxeava horrivelmente.

— Qualquer dia — retomei eu — acho que vou matá-la.

— A quem? À irmã Francisca?

— Não. À Maggie.

Desatou a rir.

— Boa ideia, mas hoje não. Hoje vamos convidá-las a ir ao cinema.

— Antes queria morrer.

Empurrei a porta. Um sol radioso iluminava as ruas. Nem pensar em ir ao cinema.

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Mas Mickey agarrou-me pelo pescoço, com aquele ar sombrio e ameaçador de

quando está maldisposto, e rosnou-me na cara:

— Prometeste, Garvey. Estás em dívida.

— Está bem, seu ditador… Mas juro que não me vou esquecer. Da próxima vez

que me deveres alguma coisa, vou fazer-te pagar até ao fim!

— Está bem, está bem… Olha, lá vêm elas. Vai perguntar-lhes.

— Eu?

— Vai, e deixa-te de histórias.

Maggie e Kitty saíam da igreja a cacarejar como duas tontas. Mickey

empurrou-me para elas.

— Olha o Danny — exclamou Maggie a rir cada vez mais — Fizeste-me rir a valer!

Julguei que a velha ia ficar doente!

— É mesmo para rir — ripostei eu. — Vai ser muito divertido passar o serão a

rezar terços.

— O quê? Vais cumprir mesmo? Não estás bom da cabeça!

Olhei para ela com estupefação. Nunca me tinha passado pela cabeça não rezar

os cinco terços.

— Porquê? — perguntei. — Tu não vais cumprir?

Page 121: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— Claro que não, palerma.

— Mas é um pecado mortal!

— Oh, Danny, — cacarejou ela — és tão engraçado!

Estava farto de a ver troçar de mim. Enchi o peito de ar e respondi com ar

emproado:

— Claro que não vou rezar esses terços todos. Disse aquilo para te enganar.

Ao falar, todo eu tremia cá por dentro. Será que ia ser fulminado pela ira divina?

Não, não aconteceu nada disso. Maggie respondeu simplesmente:

— Achas que me enganas?

Depois, Mickey avançou e deu-me uma cotovelada. Fingi que não percebia e ele

recomeçou.

— Então adeus — concluiu Maggie.

Desta vez, Mickey bateu-me com tanta força que quase me fazia cair. Lancei-lhe

um olhar feroz e chamei as raparigas que já se afastavam. Maggie virou-se com

aquele seu ar malicioso.

Quanto a Kitty, essa dirigiu de imediato o olhar para Mikey. Ambos coraram e

desviaram o olhar em uníssono. Pus-me a coçar o pescoço.

— O que é que se passa? — indagou Maggie.

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— Ah… querem, ah… ir..., bem,… ir ao cinema?

— O que é que estás para aí a dizer?

— Ir ao cinema connosco — concluí eu precipitadamente, de cara a arder.

Maggie olhou para mim como se estivesse maluquinho.

— A que propósito?

— Pergunta…

Mickey deu-me de novo uma cotovelada.

Maggie virou o olhar para ele, depois para Kitty, que continuava de olhos fixos no

chão e ar confuso. Desatou a rir.

— Estou a ver! — exclamou. — Bem, e porque não? Diz-me só qual é o programa.

— Isso eu sei! É Tom Mix, no…

Não pude acabar. Mickey tinha-me agarrado o braço com tanta força que quase

caí. Desta vez tinha ultrapassado os limites. Virei-me para ele, furioso, e rosnei

entredentes:

— Se voltas a tocar-me, parto-te a cara, entendido?

— Sim, mas fala mais baixo.

Inclinou-se para mim, a cochichar como um conspirador.

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— Não vamos levá-las à matinée, seu cretino incurável. Vamos à sessão da noite

ver um filme.

— A que propósito?

— Porque eu quero, mais nada.

— Mas eu gosto é dos filmes de Tom Mix! Queria mesmo ver aquele…

— Tanto pior para ti.

— Não és nada fixe, Mickey.

— Talvez, mas vamos ver O Adeus às Armas, e ponto final.

— O Adeus às Armas? É um ignóbil drama sentimental!

— Exatamente, uma estupidez. É disso que as raparigas gostam. O Tony Maretti

levou a namorada a ver O Adeus às Armas e ela chorou tanto que deixou que ele a

abraçasse pela cintura no regresso.

— Altamente! — repliquei com ironia.

— Não passas de um catraio, Garvey. Vê se cresces um bocadinho. Bem, vai-lhes

lá dizer o que vamos ver.

— Porque não vais tu dizer-lhes, já que a brilhante ideia veio de ti?

— Porque me deves…

— Está bem, está bem.

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Virei-me para as raparigas e declarei:

— Vamos ver O Adeus às Armas.

— Com o Gary Cooper e a Helen Hayes?— perguntou Maggie, de olhos a brilhar de

entusiasmo.

Mickey acenou que sim com a cabeça.

Virou-se para a irmã, que sorria com um risinho tímido, e depois dirigiu-se a mim.

— Quer dizer que nos estão a convidar?

— É isso mesmo.

— Espetacular! A que horas nos encontramos?

— Por volta das seis e meia — respondeu Mickey, de repente loquaz.

— Espetacular! — repetiu Maggie. — Até logo!

E lá foram embora abraçadas, a rir e a tagarelar como de costume.

E nós ficámos a vê-las afastarem-se.

Mickey voltou a dar-me uma cotovelada.

— Eh, Danny?

— O que é?

— É verdade que ela te viu nu?

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♦♦♦♦♦♦

17

Às seis horas em ponto, ouvi bater à porta.

Gritei:

— Eu vou abrir, mãe. Deve ser o Mickey.

Era de facto ele, mas ao vê-lo quase sufocava a rir. Trazia um chapéu muito

macio, emprestado não sei por quem, e um casaco de pele completamente roído da

traça, onde cabiam dois como ele, a arrastar, e com as mangas a cobrirem-lhe as

mãos. Gravata, calças de flanela e, a completar a sua vestimenta ridícula, umas

polainas.

— Que disfarce é esse, Mickey?

— Qual disfarce? — respondeu ele, ofendido. — Não sei de que falas!

Entrou na cozinha e eu quase desmaiava com o cheiro da água de colónia barata

com que se tinha perfumado.

— Bom dia, Michael — disse a minha mãe. — Mas que elegante!

— Elegante? Não estás a ver bem! — exclamei. — Parece um palhaço!

— Danny, não fales dessa maneira. Assim vestido, o teu amigo fica bem elegante!

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— Elegante, é isso. Totalmente elegante, Michael! — repeti eu com vozinha de

troça.

Mickey cerrou os punhos com ar ameaçador, mas antes que pudesse abrir a boca,

a minha mãe interveio.

— Danny, não tens graça nenhuma. Era melhor que seguisses o exemplo do teu

amigo e te vestisses para sair.

— Claro — reforçou Mickey.— Vai vestir-te. Já devias estar pronto.

— Mas eu já estou vestido!

— Não vais sair com essa roupa toda suja! — exclamou a mãe. — Andaste toda a

tarde a jogar basebol! Muda ao menos de camisa.

Dois contra um é batalha perdida. Enchi o jarro de água quente e corri para o

quarto a fazer uma limpeza rápida. Quando voltei, Mickey andava para diante e para

trás com ar muito aborrecido.

— Despacha-te! Vamos chegar atrasados.

— Olha, tem calma! Tu é que quiseste que eu me metesse nisto…

Quando ia despedir-me da minha mãe, antes de sair, reparei que estava com um

ar estranho.

— É o teu primeiro encontro, meu filho — disse, fazendo uma careta.

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Não percebi se era para rir ou para chorar.

De qualquer modo, eu não a ouvia. Enfiei o chapéu na cabeça com um ar altivo e

disse:

— Não é o meu primeiro encontro, mãe. Só vou ao cinema.

— Vem para casa mal acabe o filme — respondeu ela. — Ainda és muito novo

para andares a passear por aí de noite.

Foi Kitty quem nos abriu a porta, vermelha como um pimento. Trazia o vestido

dos domingos, um laçarote no cabelo, e meias de seda… que deviam ser da mãe, a

julgar pelas folgas nos tornozelos. Mas seja como for, eram bonitas, apenas um

bocadinho passajadas (como é que a mãe lhas emprestou?). Ficámos mudos por uns

instantes, incapazes de encontrar o quer que fosse para dizer, com toda a pequenada

Riley a rir e a correr à nossa volta. Felizmente Maggie e a mãe acabaram por chegar.

Maggie trazia vestida a saia de todos os dias e peúgas altas. Por fim, alguém

normal! Cumprimentei a Sr.ª Riley e lá fomos. Mickey ofereceu o braço a Kitty para

descer as escadas, e lá ia de casaco a arrastar como um manto real. Dei um toque

com o cotovelo a Maggie e apontei para ele sem dizer nada. Ela desatou a rir.

— De que estão a rir?— perguntou Mickey, a morder os lábios.

Virou-se e continuou a descida triunfal, acompanhado dos eflúvios de perfume.

Page 128: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

Desta vez foi Maggie quem me fez sinal, apertando o nariz com o dedo.

Desatei a rir como um tolo.

Mickey estacou, subiu os degraus que nos separavam, agarrou-me no braço e

disse:

— Meninas, desculpem por um momento.

Sob o olhar trocista das gémeas levou-me para um canto do patamar.

— Ouve bem o que te digo, rapaz!— murmurou — Sei que é pedir-te demasiado,

mas para uma vez por todas de te comportares como um bebé. Pelo menos esta noite.

— Mas com certeza, senhor Crowley — respondi. — Esqueci-me que eras um

adulto.

— Pois é, eu cresci. Aprende comigo.

— Estás a gozar? Sou tão homem como tu, Mickey.

— Então, dá provas disso— replicou, com uma lógica imparável.

Dito isto, voltou-se para Kitty e ofereceu-lhe o braço. Fiquei furioso. Tinha-me

chamado “criança”, aquele animal! Meti as mãos nos bolsos das calças e disse para

Maggie:

— Vamos.

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Como eu tinha pensado, o filme não prestava. Era uma história adocicada, em

que um condutor de ambulância se apaixona por uma enfermeira durante a guerra.

Quando penso que trocámos um Tom Mix por esta ninharia! No final, quando a

enfermeira morre, todo o público estava a fungar e a choramingar. Até julguei que iam

inundar a sala, aqueles palermas!

Ao dar uma olhadela para o lado de Mickey, apercebi-me que tinha aproveitado a

ocasião para passar o braço pelos ombros de Kitty. Viu-me voltar a cabeça para ele e

apontou-me Maggie com o queixo, a indicar-me que fizesse o mesmo com ela.

Respondi com uma careta que significava ”Antes morrer!” Depois, dei uma cotovelada

a Maggie e segredei-lhe que olhasse para os dois palermas. Mas ela, em vez de se rir,

fez-me sinal que me calasse, e limpou os olhos com a manga da blusa.

No regresso a casa, Mickey e Kitty iam de mão dada, e Maggie estava muito

estranha. Não disse nada durante um longo momento, mas não parava de suspirar, e

ao fim de algum tempo, pôs-se a proferir pequenas frases do género ”Era mesmo

romântico, não achas?” ou “ Como são lindas as estrelas, esta noite…”

Nunca tinha visto Maggie naquele estado, nem sabia o que lhe responder.

Passámos diante de um baile com entrada paga e pôs-se de novo a suspirar.

— Olha — murmurou ela, a puxar-me pela manga.

Page 130: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

No interior da sala, algumas jovens sentadas esperavam que algum cavalheiro

viesse convidá-las. Mas, para isso, eles tinham primeiro de pagar dez cêntimos. Que

desperdício, na minha humilde opinião…

— É maravilhoso — prosseguiu Maggie. — Quando tiver idade, venho para aqui

trabalhar como bailarina.

A orquestra pôs-se a tocar Esta noite estou só, e Maggie, apertando os braços à

volta dos seus próprios ombros, esboçou uns passos de valsa no passeio. Imaginei-a a

dançar com um daqueles tipos lá dentro e não achei piada nenhuma.

— Porque é que essa profissão estúpida te atrai? — perguntei-lhe eu.

— Mas é tão romântico, Danny! Todos aqueles senhores tão elegantes prontos a

pagar para terem a honra de dançar com uma senhora…

Não me agradava nada aquela maneira arrastada de falar dos “senhores

elegantes”. Então, e o que era eu a seus olhos? Um saco velho? Retorqui:

— Mas era preciso que um daqueles senhores tão elegantes tivesse a fantasia de

dançar consigo, minha senhora.

Maggie voltou-se e olhou-me nos olhos, em silêncio. Caí na armadilha. Com os

seus cabelos negros, brilhantes e espessos a flutuar sobre os ombros e os olhos azuis

iluminados pelos candeeiros, estava extraordinariamente bela. Mas, desde quando

Page 131: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

está assim tão linda e crescida? Nunca me tinha apercebido. Nos últimos tempos toda

a gente cresceu. Todos, menos eu.

— Não era eu que pagava para dançar com uma palerma! — resmunguei

entredentes.

Mas não desarmou. Continuou a olhar-me com um sorrisinho e aproximou a sua

cara da minha para sussurrar:

— Não te preocupes, Danny Garvey. Hás de crescer.

Falara com uma voz que eu não lhe conhecia, roufenha e meiga, e num instante

secou-se-me a boca. Arderam-me as orelhas e o coração começou a bater com muita

força. Mas Maggie desatou a rir e, com passos desajeitados, foi a correr em direção a

Mickey e a Kitty. O mais que pude fazer foi virar-me para eles e gritar com todas as

minhas forças:

— Mete-te na tua vida!

Mas não me sentia lá muito orgulhoso de mim.

Page 132: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

♦♦♦♦♦♦

18

Quando cheguei a casa, a minha mãe ainda estava a escrever ao meu pai ao som

do rádio.

— As tuas cartas vão empilhar-se — disse eu com ar de graça.

A minha mãe sorriu.

— Estava a comunicar-lhe que tiveste o teu primeiro encontro amoroso. A

propósito, como correu?

— Não foi um encontro amoroso. E, se queres saber, foi aborrecido.

De repente, fui interrompido por um barulho proveniente do outro lado do

patamar. Assustei-me, mas a minha mãe limitou-se a menear a cabeça:

— Está nisto desde o início da noite. Julguei que acalmasse quando as filhas

chegassem…

Ainda ouvi uma pancada surda seguida de grito abafado. A minha mãe levantou-

-se de um salto e, sem dizermos nada, corremos para fora. Já a Sr.ª Mahoney descia

do quarto andar a coxear, com ar muito preocupado. Ouvia-se o choro das crianças

dos Riley.

Page 133: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— Pai, para, por amor de Deus!

Era a voz de Maggie.

— Ou calas a boca — respondeu o pai com brutalidade, — ou é a tua vez de

apanhares.

Precipitei-me para a porta e sacudi-a com fúria. Estava fechada à chave.

— Deixem-nos em paz! — gritou Riley atrás da vedação.

Repetiram-se pancadas, depois soluços. A minha mãe disse-me baixinho:

— Vai chamar a polícia.

Hesitei por uns instantes. Não queria deixá-la sozinha.

— Corre, Danny, — insistiu — antes que seja demasiado tarde.

Havia um tom na sua voz que me fez decidir. Desatei a correr pelas escadas,

cruzando-me com moradores que tinham sido atraídos pelo barulho. Lá fora, tinha-se

formado um pequeno ajuntamento, mas quanto a polícia, nem vê-la!

A esquadra encontra-se algures, na rua 104, entre Park Avenue e Lexington

Avenue. Corria eu naquela direção quando vislumbrei a silhueta de um uniforme a sair

do túnel.

— Senhor Guarda! Venha cá, depressa…— gritei.

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O polícia correu para mim, os passos a ecoarem na calçada. Reconheci, com

grande alívio, o sargento Pete Murray. Vive no bairro desde criança e conhece toda a

gente. Não era preciso explicar-lhe os pormenores do que acontecera.

— Que se passa, Danny?

— É outra vez o Sr. Riley a fazer das suas.

Pete fez uma expressão de desagrado e precipitou-se para o nosso imóvel, tão

rápido que tive dificuldade em acompanhá-lo. Havia uma multidão em frente da porta.

Afastaram-se para nos deixarem passar.

A minha mãe estava sã e salva, de pé, diante da porta dos Riley, e a Sr.ª Mahoney

estava sentada no último degrau das escadas. Ambas com lágrimas nos olhos.

— Até que enfim, Peter, graças a Deus — disse a minha mãe. — Acho que desta

vez enlouqueceu.

O sargento Murray bateu à porta e gritou:

— Polícia! Abra, Riley.

— Vai passear! — replicou a voz embriagada de Riley.

— Socorro, soco…

Reconheci a voz de Maggie, mais uma vez, mas o pai interrompeu-a com uma

bofetada. Fiquei doido de raiva.

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— Arromba-se a porta, sargento! Se quiser, eu posso ajudar.

— Não vale a pena, Danny.

Com toda a calma, tirou do bolso um passe e meteu-o na fechadura. O trinco não

resistiu mais de dez segundos e a porta abriu-se com rangido… mas parou a meio,

bloqueada por um cadeado. Pete Murray franziu o sobrolho.

— Vamos experimentar a outra porta.

— Impossível — disse a minha mãe — É o quarto das meninas e puseram lá uma

fechadura de segurança.

Por descargo de consciência, ainda tentou mas em vão. Então virou-se para mim

e disse:

— Pois é, Danny. Vou precisar da tua ajuda.

Meteu o bastão na abertura da porta, como se fosse um pé-de-cabra, empurrou

com toda a força, enquanto eu forçava o batente, mesmo por baixo dele.

— Vamos, força! — gritou-me ele.

Empurrámos com quanta força tínhamos. A porta rachou mas não cedeu.

— Outra vez!

Desta vez, a minha mãe e a Sr.ª Mahoney também colaboraram: fizeram força

Page 136: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

contra nós, e empurrámos tanto que julguei que rebentava. Mas, de repente, a porta

cedeu e fomos todos mergulhar na cozinha dos Riley.

O bêbedo estava de pé diante do fogão com o ferro de passar na mão, pronto

para dar com ele no Pete Murray. Felizmente que o álcool o deixara lento e

desajeitado.

Com um golpe de matraca, Murray fez voar o ferro e, num abrir e fechar de olhos,

dobrou o Riley sobre a mesa, com os braços atrás das costas, para o algemar.

Entretanto, a minha mãe tinha ido ajudar Kitty a levantar-se, e confortava a Sr.ª Riley,

prostrada no chão ao lado do frigorífico, com a cabeça entre as mãos. Maggie tinha

marcas de pancada por baixo do olho direito. Todos os irmãozitos e irmãs estavam

agarrados a ela a chorar e ela ia distribuindo carícias por todos.

— Sr.ª Riley — perguntou o sargento Murray.— O que faço do seu marido?

— Faça com que nunca mais ponha aqui os pés — respondeu a Sr.ª Riley com voz

cansada e o rosto banhado em lágrimas escondido entre as mãos.

O marido parecia não ter ouvido. Continuava de pé, hirto, os olhos injetados de

sangue e a boca num esgar de desprezo.

Voltei-me para Maggie e notei que ela olhava para o pai com os olhos rasos de

lágrimas. Mas apercebeu-se da atenção que eu lhe dedicava e então, muito rapida-

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mente, desviou os olhos.

Pete Murray empurrou o bêbedo para a porta.

— Vou mandar cá alguém para reparar os estragos, Sr.ª Riley. Amanhã de manhã

venho cá para elaborarmos o processo verbal.

Em silêncio, a Sr.ª Riley fez que sim com a cabeça. Permanecia com o rosto

escondido.

O polícia levou o Sr. Riley. A minha mãe virou-se para mim, com um sorriso um

pouco forçado, e disse-me:

— Danny, ajuda a Sr.ª Mahoney a ir para casa. E vai dizer aos vizinhos que podem

regressar a casa. Já está tudo resolvido.

Fiz o que me mandou. Quando desci, a Sr.ª Riley estava sentada à mesa da

cozinha.

Tinha os olhos marcados de nódoas e uma ferida aberta no rosto. Com um lenço

molhado enxugava as lágrimas que não paravam de correr.

— Molly, — dizia ela a chorar — esta crise mudou os homens…

A minha mãe apercebeu-se da minha presença.

— São horas de te deitares, Danny. Vai, que eu não demoro.

— Mas, mãe…

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— Faz o que te digo. E trata da Maureen.

— Está bem.

♦♦♦♦♦♦

19

Maureen dormia como um anjo, não tinha dado conta de nada. Enfiei-me na

cama, mas sentia uma espécie de mal-estar na barriga e tentava em vão compreender

o que tinha acontecido.

Sempre ouvi dizer bem do Sr. Riley. Do Sr. Riley de antigamente. Nasceu no

bairro e os pais, tal como os meus, eram imigrantes irlandeses. Dizia-se que tinha um

coração de ouro. E toda a gente gostava dele. Apaixonou-se pela mãe de Maggie era

ela ainda muito jovem. Chamava-se Katherine Gerky e vivia a uns metros daqui.

Estavam noivos quando a América resolveu entrar na Grande Guerra. E, como tantos

outros rapazes do bairro, o Sr. Riley partiu e alistou-se no exército.

Contrariamente ao que aconteceu a muitos outros, acabou por voltar. Mas já não

era o mesmo. A maior parte dos amigos morreram diante dos seus olhos e nunca mais

ficou bem da cabeça. Apesar de tudo, casou com Katherine, mas nunca foi capaz de

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tratar corretamente da família. Estava desempregado a maior parte do tempo, e ficava

por casa a beber cerveja fabricada pela mulher. Quando ficava bêbedo, descarregava

nos filhos. De vez em quando, como nesta noite, conseguia arranjar uma garrafa de

whisky adulterado e aí começavam os aborrecimentos…

Depois do que presenciei esta tarde, sinto vontade de o odiar por tudo o que fez

passar à Maggie e à mãe. Mas talvez não seja justo fazê-lo. Afinal, a culpa não é toda

dele. Foi a guerra que o deixou maluco… Mas então, quem é o responsável por tudo

isto?

Ao fim de um espaço de tempo que me parecera bastante longo, ouvi a porta da

cozinha abrir-se. Tinha deixado o reposteiro do meu quarto aberto para ver a minha

mãe quando voltasse.

Debruçou-se sobre o berço de Maureen, e ali ficou um longo momento, a embalar

a minha irmãzinha e a acariciar-lhe os cabelos enquanto dormia. Depois, sentou-se na

cadeira de baloiço e meteu a cabeça entre as mãos. Ouvi-a suspirar.

— Mãe, estás bem? — perguntei eu baixinho.

— Danny… pensei que estivesses a dormir.

— Não consigo.

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Veio sentar-se na beira da minha cama. E afastou-me os cabelos com a ponta dos

dedos para me acariciar o rosto.

— Compreendo — respondeu com tristeza. — De facto era terrível ver aquilo.

— Porque é que a Sr.ª Riley casou com ele, se a guerra o tinha deixado maluco?

— Porque gostava dele, Danny. Pensava que a força do seu amor bastaria para o

curar. E realmente, durante algum tempo parecia andar melhor. Depois do nascimento

da Kitty e da Maggie, ganhou novo alento, agarrou-se ao trabalho e nunca mais tocou

numa gota de álcool…

Um sorriso sonhador flutuava nos seus lábios e ficou a olhar no vazio… para

melhor se recordar.

— Ricos tempos, esses. Estávamos sempre com os Riley. Lembras-te? Os

piqueniques em Coney Island, os passeios ao jardim zoológico… Não, ainda eras tão

pequenino!

— Lembro-me muito bem.

— Fico contente por isso. Então, quando pensares no Johnny Riley, lembra-te dele

como era nesse tempo, não como o viste esta noite.

— Mas, o que é que se passou para ficar assim?

— Não sei. Algo nele se quebrou, sem dúvida. À medida que os outros bebés

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foram nascendo, a vida foi ficando cada vez mais dura para eles. O Johnny começou a

beber, a não trabalhar. Depois veio a Crise…

Parou, com o olhar perdido no céu escuro, para lá da janela.

— Mãe — perguntei eu — o que tens?

— Nada…

Virou-se para mim com os olhos marejados de lágrimas.

— É de novo a miséria — prosseguiu. — Julgava que já lhe tinha escapado ao

emigrar. Mas deve ser o meu lado irlandês: ando sempre à procura do tesouro

escondido, como se de facto existisse.

Sorria um pouco por entre as lágrimas. Eu sorri também.

— Estás arrependida de teres deixado a Irlanda?

— Oh, sinto falta das minhas verdes colinas, sem dúvida, e além disso, de toda a

minha família. Mas não voltaria para lá. Aqui tudo é diferente, apesar do que acabo de

dizer. O teu pai aprendeu a ler, e encontrou um bom trabalho. Tu vais à escola e a

minha querida Maureen também há de receber uma boa educação, mesmo sendo

rapariga. Aqui, todas as pessoas têm a sua oportunidade, por muito pobres que sejam.

Até tu, Danny, poderias vir a ser presidente, como o Sr. Lincoln, se de facto quisesses.

Desatei a rir.

Page 142: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— Eu, um irlandês católico, chegar a ser presidente? Mãe, estás a sonhar!

— Olha que não! — protestou ela, um pouco vexada. — E depois não te esqueças

que são os sonhadores como eu que fazem mudar o mundo.

— E tu não te aborreças por tão pouco. Só disse isso para te espicaçar.

Tomou uma expressão terna, pegou-me nas mãos e apertou-as entre as suas com

muita força.

— Eu sei, meu filho.

Depois, examinando as mãos que segurava:

— Mas… Já voltaste a crescer!

— O que é que estás a dizer?

— Sim, sim, olha: as tuas mãos. Já são muito maiores do que as minhas.

— É verdade?

Verifiquei, e com um arrepio de alegria, constatei que tinha razão.

— É espantoso!

— Fala por ti! — replicou ela a rir. — Fazeres surpresas destas à tua pobre mãe.

Daqui a pouco vais dizer-me que és demasiado grande para ouvires as minhas

histórias.

— Isso nunca. Adoro as tuas histórias.

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Até o meu pai gosta, encanta-se com os contos irlandeses. O avô da minha mãe

era um seanachi, um contador, e transmitiu-lhe o dom, como dizem na Irlanda.

— Queres ouvir uma história?

— Oh, sim!

— Então mete-te na cama, tapa-te com os cobertores e fecha os olhos!

Fiz tudo o que ela me disse, feliz por me deixar conduzir às colinas encantadas da

Irlanda, que, graças a estes contos, conheço tão bem como as ruas de Nova Iorque!

Estão repletas de gnomos e de fadas, de tesouros escondidos e também de fantasmas

medonhos e de feiticeiras atraídos pelo grito da Dama Branca. Mas, acima de tudo,

são o domínio dos meus pais e um pouco o meu também, graças ao sangue irlandês

que me corre nas veias.

E a minha mãe contava, contava…

— Eu disse ao teu tio Thomas: Não tires os olhos dele nem por um instante, que

eu vou buscar uma espada. Corri como se a Dama Branca viesse atrás de mim, mas,

quando voltei, o duende tinha desaparecido e o teu tio Thomas dormia como um bebé.

— E foi desta maneira que o duende, mais uma vez, te roubou o tesouro? — disse

eu a rir.

— É verdade!

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Descansou uns momentos e depois retomou a história.

— Naquela noite, no estábulo, deitados na esteira, o meu irmão Thomas

perguntou-me: Molly, se encontrássemos o tesouro e tu pudesses escolher o que te

apetecesse, o que é que pedias?

Voltou-se para mim, de olhos a brilhar.

— Pois bem, Danny, sabes o que respondi?

— Não, mãe. O que foi?

— Eu disse: Uma panela de leite-creme. Vê que sonho de criança mais louco, o

meu: uma panela de leite-creme. Imagina só!

E meneando a cabeça com um pouco de nostalgia, desatou a rir.

♦♦♦♦♦♦

20

Domingo, 23 de outubro de 1932

— Danny, que fazes aí, deitado no chão, meu filho? Caíste da cama?

A voz da minha mãe acordou-me de sobressalto. Demorei alguns instantes a

reconhecer o lugar onde me encontrava.

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— Danny, — repetiu — caíste da cama?

— Aaa… Não, mãe. Estava de joelhos a rezar as minhas orações e acho que

adormeci.

— Meu querido, fazes bem em rezar as tuas orações… Mas despacha-te, se não

vamos chegar tarde à missa.

— Está bem!

Eu não lhe revelei que aquelas piedosas orações não passavam de um castigo da

Irmã Maria Francisca… A verdade é que, na véspera à noite, adormeci logo sem me

lembrar de rezar os terços. A meio da noite, tive um pesadelo terrível: a Irmã Maria

Francisca tinha-me atirado para os esgotos da cidade e lançava-me flores.

Acordei a tremer, julgando que era uma advertência divina, e pus-me logo de

joelhos ao pé da cama para rezar os cinco terços. Mas estava tão cansado que devo

ter adormecido naquela posição e depois caído para o chão. O pior é que, quando

acordei, não sabia se, antes de adormecer, tinha chegado a rezar tudo. Para ficar de

consciência tranquila, fui rezando em surdina enquanto me vestia, enquanto tomava o

pequeno-almoço e a caminho da igreja.

Os Riley já lá estavam.

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Tal como a mãe, Maggie trazia um chapéu, um daqueles chapéus com uma

redinha que tapa a cara. A minha mãe tinha convidado toda aquela gente para vir

almoçar a nossa casa e mandou-me à padaria, com vinte e cinco cêntimos no bolso,

comprar rissóis para o jantar.

— Gasta-o todo — ordenou-me com grande surpresa minha.

— Todo? Queres assim tantos bolos?

— Sim. Tenho a certeza de que os Riley vão passar a tarde e o serão connosco.

— Mas, mãe, vinte e cinco cêntimos…

— Não discutas, Danny. Os Riley precisam de um pouco de mimo e nós também.

A padaria estava cheia de gente, mas isso não me incomodava. Antes pelo

contrário: adoro ficar o mais tempo possível no meio de todas aquelas coisas boas que

cheiram tão bem. Aquele cheirinho a pão quente, a bolos e a manteiga fresca é como

uma antecipação do Paraíso.

Quando chegou a minha vez, olhei para o expositor de bolos com ares de quem

pode dar-se ao luxo de comprar tudo o que quer: havia-os de queijo fresco, de

framboesa, de maçã, de canela, de limão, enfim dez variedades diferentes ao todo.

— Dois de cada, por favor — disse eu.

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Sentia-me rico como Cresus, ao pousar a moeda de vinte e cinco cêntimos em

cima do balcão. Mal saí da padaria, começou a chover. Para proteger os preciosos

bolos, escondi-os debaixo do casaco. Estavam quentinhos. Quando entrei na cozinha,

um cheiro delicioso avisou-me que a minha mãe tinha preparado uma canja de

galinha. Estava uma enorme panela em cima do fogão.

— Já chegaste? — perguntou ela. — Olha, meu filho, sobe ao quarto andar e

convida aquela pobre criatura, a Sr.ª Mahoney, a juntar-se a nós.

Trata sempre aquela nossa vizinha por “aquela pobre Sr.ª Mahoney” e não sei

exatamente porquê. Não tem assim um ar tão lamentável como isso. Talvez por causa

da perna de pau ou por ser viúva…

— Vamos, despacha-te. Não podemos deixá-la sozinha em casa. Há comida para

todos!

A Sr.ª Mahoney não se apressou. Desceu calmamente com um pote daquele

famoso chá debaixo do braço, e eu segui atrás dela com a caixa de trabalho. Ela

distrai-se a fazer pequeninas pérolas com que forra cadernos. Não sei quanto ganha,

mas pede-nos sempre para a ajudarmos, e dá dois cêntimos por cada caderno forrado.

Há que aproveitar! Por isso, quando temos um pouco de tempo livre, vamos para casa

dela, para a cozinha, e enfiamos pérolas, enquanto nos vai contando

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histórias de quando era jovem, e o marido ainda era vivo.

O Sr. Mahoney andava na marinha mercante e, nos primeiros tempos de casados,

a esposa acompanhava-o nas viagens. Segundo ela diz, foi aí que perdeu a perna:

levada por um tubarão, um dia em que caiu ao mar. Mas, quando conta isso, a minha

mãe olha para mim, pisca-me o olho e responde:

— A Sr.ª Mahoney mete-nos cada patranha!

Quando descemos, já os pequenos Riley enchem o patamar, em fila indiana, como

patinhos, com cadeiras, pratos e outros utensílios. Maggie e Kitty fechavam o séquito,

trazendo com grande esforço uma mesa suplementar. Pousei a caixa do trabalho para

as ajudar e, os três, levámos a mesa para a cozinha.

Em breve, as duas mesas reunidas e cobertas por uma grande toalha estavam

enfeitadas como para uma refeição de festa: tigelas de canja a fumegar, pedaços de

pão fresco, manteiga e leite. Que festim!

Sempre gostei das tardes do domingo, mas ainda gosto mais depois da Crise. É o

único dia em que comemos o suficiente para matar a fome. Mesmo que a minha mãe,

durante a semana, só tenha podido dar-nos umas papas de aveia, arranja-se sempre

para nos dar um bom almoço e, mais tarde, ao serão, comemos sempre bolos e

chocolate quente.

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Também é o dia das visitas. Todos os domingos, uma ou várias famílias do prédio

vêm a nossa casa e as mulheres sentam-se na sala para falarem, tricotarem e

beberem chá, enquanto os homens se instalam na cozinha a jogar cartas e beber

cerveja caseira. Os miúdos vão todos brincar para um dos quartos, enquanto nós, os

maiores, andamos pela casa a beber um ou dois goles à socapa, metemos os miúdos

na ordem se começam a brigar, e pomo-nos à escuta das conversas dos adultos.

É mesmo bom o domingo à tarde!

Tenho a certeza de que os ricos, nas suas lindas casas, não os passam tão bem!

Mas, naquele domingo, não havia homens para jogar as cartas. Ficámos todos na

cozinha onde estava mais quente.

— Não vale a pena ligar o aquecimento na sala — dissera a minha mãe.

A princípio, apesar de sermos muitos, aquele domingo pareceu-me

estranhamente calmo. Devíamos sentir todos o mesmo, porque falávamos muito alto e

ríamos por tudo e por nada, como para ocupar o silêncio. Mas, depois da refeição, toda

a gente se descontraiu e as coisas retomaram o seu ritmo normal.

Lavada a loiça, deitámos Maureen e Marion no quarto da minha mãe. Os miúdos

foram brincar para a cozinha dos Riley, para as bebés não acordarem com os seus

gritos.

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A minha mãe preparou chocolate quente para Maggie, Kitty e para mim, as

senhoras tomaram um pouco de chá, e a seguir toda a gente começou a enfiar pérolas

para aplicar nos livrinhos da Sr.ª Mahoney. Sentia-me aliviado: Mickey não estava

presente, ele que já não queria enfiar pérolas pois dizia ser um trabalho de meninas…

Eu cá penso que dois cêntimos fazem sempre jeito. E, depois, que outra coisa há para

fazer num dia de chuva?

Além disso, este trabalho serve-nos de desculpa para ouvirmos as conversas dos

adultos. O chá da Sr.ª Mahoney desata-lhes a língua… Mas hoje só falavam de política.

É normal: as eleições vão ser dentro de quinze dias. A Sr.ª Mahoney dizia:

— Aposto que vai haver uma grande derrota!

— Seria uma grande coisa — respondia a minha mãe. — Aquele Hoover não fez

nada na Casa Branca. Só sabe dar-nos fome. O melhor que fazia era ir viver numa das

suas Hoovervilles, para saber o que é a Crise!

As Hoovervilles são aqueles bairros de lata que se multiplicaram desde o início da

Recessão. Forçados pela miséria a deixar as suas casas, os desempregados

construíram barracas de lata, onde acabam por morrer à fome juntamente com as

suas famílias.

Eu nunca as vi. A minha mãe proíbe-me de me aproximar, diz que é perigoso.

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Mas sei que há uma Hooverville em Central Park e outra entre Riverside Drive e o rio.

As pessoas vivem ali, em abrigos precários que foram construindo. Pergunto-me onde

é que arranjam materiais, mas nestes tempos apanha-se o que se pode…

— E ele que se apresentava como o salvador da humanidade, que tinha

alimentado a Europa esfomeada depois da guerra… — suspirava a Sr.ª Mahoney. —

Como pode ter-se desinteressado a este ponto do seu próprio povo?

— O Daniel diz que o governo Hoover se recusou voluntariamente a intervir

porque pensa que a economia se vai levantar por si só — respondeu a minha mãe. —

Mas já esperámos demasiado e a retoma não chega.

— Não aguentamos mais! Toda esta gente na rua, com as crianças, isto é demais!

A Sr.ª Riley, que até ali se mantivera muda, meneou a cabeça num ar aprovador.

— Chegou a hora de dar lugar às ideias novas. O Roosevelt preocupa-se com os

pobres, tenciona ajudar os agricultores e os operários a encontrar trabalho. Tem os

pés assentes na terra. É de um homem como ele que precisamos para levantar o país.

— Tens toda a razão — acrescentou a minha mãe. — O Hoover vive nas nuvens.

Naquele instante ouviu-se um grande ruído e o batalhão dos miúdos Riley entrou

pela cozinha dentro aos gritos e a baterem uns nos outros. A algazarra acordou Marion

e Maureen, que desataram a chorar.

Page 152: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

As mães procuraram de imediato restabelecer a calma.

— Vamos lá, silêncio — disse a Sr.ª Riley — O que é que se passa?

— É o Johnny que não quer fazer de pai — explicou Alice — Quer fazer de mãe.

Johnny estava especado diante da mãe, com uma boneca nos braços e um ar de

amuo no rosto.

— Estou farto! — gritou ele. — Sou sempre o pai! Vou ter de andar sempre

bêbedo e de ir para a cadeia!

Perante estas palavras, a Sr.ª Riley mordeu os lábios e os olhos encheram-se-lhe

de lágrimas. Desviou imediatamente o olhar. A minha mãe e a Sr.ª Riley entreolharam-

se com um ar estranho. E eu fiquei a olhar para o Johnny, que apertava a boneca nos

braços. Pobre miúdo! Já não era nada fácil com todas aquelas irmãs, mas agora, sem o

pai, o que iria ser dele?

Pousei o livrinho que estava a cobrir e estendi-lhe a mão.

— Anda comigo. Vem ver uma coisa que tenho ali para te mostrar.

No meu quarto, fi-lo sentar-se na cama.

— Muito bem. Tenho um brinquedo engraçado para te mostrar. Conheces o Super-

Homem?

— Estás a brincar!

Page 153: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— Pois olha, tenho o anel-apito do Super-Homem.

— A sério?

Olhava para mim com uns olhos que pareciam dois discos. Abri a minha caixa dos

tesouros, pus o anel e servi-me dele como assobio. Um silvo muito agudo atravessou o

quarto.

Há anos, colecionara as etiquetas dos pacotes de cereais comprados durante

semanas para conseguir este anel. Naquela altura o Super-Homem era o meu herói

preferido. Mas agora, cresci, não é verdade?

Então, meti o anel no dedo do Johnny.

— Dou-to, é para ti.

— Estás a brincar?

— Falo a sério.

— Oh, obrigado! És mesmo fixe, Danny!

O garoto levantou-se de um salto para ir mostrar o anel-assobio a toda a gente,

mas segurei-o pela manga.

— Espera um pouco, miúdo. Há condições que tens de respeitar. Não, não te

preocupes que não to vou tirar. Mas compreendes que, quando se tem um objeto

destes, tem de se estar à altura dele…. É preciso ser corajoso, honesto e forte como o

Page 154: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

Super-Homem. Um verdadeiro homem. Então, prometes?

— Prometido.

— Não vais ser nenhum medricas?

— Nem penses, agora com um anel de Super-Homem…

— Assim está bem, pá!

Correu para a cozinha a gritar:

— Mãe, olha o que me deu o Danny!

Ao levantar os olhos apercebi-me que Maggie estava ali, na entrada da porta.

Tinha ouvido tudo e sorria.

— Obrigada — disse-me ela.

— De nada — respondi.

Mas havia uma coisa que eu não disse.

No fundo, compreendo o Johnny. Como poderia ele ter vontade de ser homem,

perante o que vira o pai fazer? Todos os homens que conhece são uns incapazes, uns

inúteis, uns desempregados ou uns vigaristas. A continuar assim, quando formos

grandes, os homens serão uma espécie em vias de extinção, como os dinossauros.

Maggie entrou, deitou uma olhadela à minha caixa dos tesouros e tirou uma

almofada de carimbos de borracha.

Page 155: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— O selo do Tom Mix! — exclamou ela a rir. — Sempre desejei tanto consegui-lo!

Mas a minha mãe não queria comprar-nos os cereais Ralston, e assim nunca pude

juntar as etiquetas necessárias…

— Não te lamentes! Eu colecionei as caixas e também comi. O que não era nada

bom!...

Desatámos a rir.

Maggie voltou a colocar a almofada na caixa e olhou à sua volta. Há muito que

não punha os pés no meu quarto.

— Lembras-te, Danny, quando jogávamos ao Búfalo Bill com as pistolas de água?

— Claro que lembro, Calamity Jane!

Voltámos a rir mas, bruscamente, o rosto de Maggie entristeceu-se.

— Foi há tanto tempo — murmurou ela deslizando a mão pelos varões da cama.

— As coisas mudaram tanto desde então, não foi?

Percebi.

— Maggie, queria dizer-te… Em relação ao teu pai, também eu sinto muito.

Virou-se para mim. Os seus olhos mergulhavam nos meus, mas via para lá de

mim, com uma tristeza infinita.

— Que tristeza! — murmurou ela.

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♦♦♦♦♦♦

21

Terça-feira, 8 de novembro de 1932

Decorreram duas semanas e o meu pai sem escrever.

— Podia ao menos mandar-nos um postal — dizia eu à minha mãe ao

pequeno-almoço. — Só gastava um centavo.

— Um centavo é um centavo — respondeu ela.— Se não o tiveres, não podes

comprar um postal nem uma fêvera para o jantar.

Pousei os olhos no prato de aveia cozida. A ideia de que o meu pai pudesse andar

sem um centavo no bolso não me deixava feliz. A minha mãe apercebeu-se e então

disse-me:

— Come tranquilo, meu filho. Tenho a certeza de que em breve vamos ter notícias

dele.

— E porque é que tu não comes nada? Não te estás a privar por nossa causa,

espero bem!

— Não. Não como porque não tenho fome.

Page 157: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— Já ontem de manhã não comeste nada. O que é que se passa? — Examinei-a

com toda a atenção. Estava mais pálida que o habitual, com olheiras. — Diz-me a

verdade. Estás doente?

— Não! — Exclamou ela com um sorriso nervoso.

Não podia crer no que me dizia. Um medo insidioso apertava-me as entranhas.

Que seria de nós se ela adoecesse?

— Mãe, quero saber a verdade. Andas com mau aspeto.

— Não se te pode esconder nada. Pois bem, estou um pouco constipada. Foi a Sr.ª

Mahonay que me pegou, na semana passada. Lembras-te que ela andava adoentada?

Dei um suspiro de alívio.

— Antes assim. Mas então devias ficar na cama. A escola está fechada, hoje, por

causa das eleições. Posso tomar conta da Maureen.

— Estás tolo? Não vou ficar na cama num dia histórico como este! Mas se

quiseres ficar com a Maureen enquanto eu vou votar, prestas-me um grande serviço.

— Vais votar no Hoover, não é?

A minha mãe faz-me rir. Cai sempre neste tipo de armadilha. Saltou da cadeira a

gritar:

— Nem pensar…

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É curioso. Normalmente a minha mãe não se interessa nada pela política. Mas

nestas eleições, parece que tomou partido! O que a deixou louca de raiva contra

Hoover foi aquele episódio da Marcha dos Veteranos, no verão passado. Desde então,

só fala no Roosevelt. Está sempre a repetir:

— Quando penso que o nosso presidente mandou atirar sobre os pobres

veteranos que se tinham batido pelo país durante a guerra! Matar homens

desarmados e até um pobre bebé inocente, que vergonha!

Eu conheço bem essa história. Um grupo de veteranos da Grande Guerra

juntaram-se para, com as mulheres e os filhos, irem até Washington suplicar ao

presidente que lhes antecipasse a pensão de guerra, o que lhes permitiria fazer face à

Recessão. Mas, em vez de os receber, Hoover enviou-lhes o general MacArthur e o

exército para dispersar a manifestação. Os soldados, armados de baionetas e

granadas de gás lacrimogéneo, mataram vários veteranos. Um rapazinho apanhou um

golpe de baioneta numa perna e um bebé recém-nascido morreu asfixiado pelos gases

lacrimogéneos.

Desde então, a minha mãe não cessa de rezar pelo bebé. Chamava-se Bernard

Myers, um nome judeu. Uma vez perguntei-lhe se o terço fazia efeito num bebé judeu.

Page 159: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— Daniel, — respondeu-me ela — já te esqueceste que Nosso Senhor também foi

um bebé judeu?

Quando voltou de votar, a minha mãe vinha corada e com ar feliz.

— Toda a gente vota pelo Roosevelt! — exclamou, apertando-me nos braços. —

Danny, Danny, tenho a certeza de que vai ganhar…

— E então as coisas vão mudar? O meu pai vai voltar para casa?

— Sim, meu querido — respondeu de olhos a brilhar. — Vai voltar.

Pancadas surdas soaram na porta e Mickey gritou com uma voz forte:

— Estás pronto?

Fui a correr buscar a meu bastão de basebol (na verdade não era mais do que o

cabo de uma vassoura velha) e respondi no mesmo tom:

— Já vou! Bem… se a minha mãe não precisar de mim — acrescentei eu num tom

um pouco mais baixo.

— Vai divertir-te, meu querido. Aproveita, porque quando começar a nevar, não

vais poder brincar lá fora.

— Tens a certeza de que não precisas de nada?

— Vou portar-me muito bem. Corre!

Encontrei Mickey no patamar. Mal chegámos lá abaixo, agarrou-me e disse-me ao

Page 160: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

ouvido:

— És capaz de guardar um segredo?

— Claro. O que foi?

— Anda ver. Tenho uma coisa para te mostrar.

Levou-me para um pequeno jardim no outro lado da rua. À noite, os mendigos

dormem ali em cima dos bancos, e de tarde as mães sentam-se a ver os filhos brincar.

Era demasiado cedo para as mães e demasiado tarde para os mendigos, portanto

estávamos sós.

Mickey foi para junto de um banco e, depois de me ter feito jurar mais uma vez

que guardaria segredo, mostrou-me uns sarrabiscos na parede, mesmo atrás do

banco. Era um coração gravado com a ponta de um canivete, e no interior as iniciais

entrelaçadas “ M. C. ama K.R.”

— Quem poderá ter feito uma brincadeira destas?

— Fui eu que o gravei — respondeu Mickey com ar emproado.

— O quê? Estás maluco, pá. O que é que te passou pela cabeça? Não vês que a

Kitty pode dar conta?

— Ela está ao corrente. Pedi-lhe autorização antes de o fazer.

— E ela que disse?

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— Disse que sim, palerma.

— Ai, ela disse “Sim, palerma”?

— Não, estúpido. Ela disse sim, que estava de acordo. Tu é que és palerma.

Não percebia nada.

— Mickey, não deves andar bem da cabeça. Há seis meses atrás, terias

esmurrado a cara a quem se atrevesse a pôr as tuas iniciais ao lado das de uma

rapariga. E agora, és o primeiro a fazê-lo, e para mais, gravado na pedra! O que é que

se passa contigo?

— É o amor, simplesmente! — respondeu ele com um ar sublime.

— Para com isso! Até me fazes vomitar.

— E tu, pá, vê lá se cresces um bocadinho.

Então, percebi que falava mesmo a sério. Fiquei embasbacado, de olhos

arregalados e boca aberta, sem saber o que responder. Mickey desatou a rir.

— Anda, vamos embora — disse ele. — Os nossos amigos estão à espera e, se

ficas aí de boca aberta, ainda vais engolir alguma mosca.

Fui atrás dele, de cabo de vassoura na mão, a brincar com a minha bola. Mickey,

calado, sorria com um ar extasiado. Pensava nela, certamente.

— Então o amor é assim? — arrisquei-me a perguntar.

Page 162: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— É.

Silêncio.

— E como é que tu sabes?

— Sei. Ponto final.

— Está bem, mas como? Como é que se conhece o amor?

— Não te preocupes, pá. No dia em que o encontrares, deixas de fazer perguntas

dessas.

— A verdade é que até hoje não me tem tirado o sono.

Para qualquer resposta, Mickey sacudia a cabeça e alongava o passo. Achava-o

cada vez mais esquisito e a dúvida voltou a minar-me o espírito. Não estaria ele a

fazer troça de mim?

— Eh, Mick!

— O que é?

— Com o que se parece?

Deitou a cabeça para trás como que a observar o céu e respondeu com um ar

sonhador:

— É a empatia, Dan. É a coisa mais assombrosa que te pode acontecer. Estou

sempre a pensar nela e quando tenho a mão dela na minha é… É como se fosse Natal,

Page 163: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

o dia dos meus anos e a festa nacional, tudo junto.

— Ui!...

— E sabes que mais?

— Não.

— Se disseres uma só palavra sobre isto aos colegas, massacro-te.

Naquele momento, um carro buzinou atrás de nós. Póóó! Póóó!

Demos um salto. Parecíamos dois coelhos loucos. É muito raro os carros dos

bairros chiques entrarem nas nossas ruas, mas quando isso acontece é sempre um

espetáculo divertido.

Refugiados no passeio, vimos passar o majestoso Pierce Arrow amarelo.

— Viste aquilo? — perguntou-me Mickey.

— Que beleza!

De olhos esbugalhados, eu comia com o olhar aquele grande e majestoso carro de

cromados a faiscar. O tipo que ia ao volante tinha a elegância espaventosa dos

escroques, chapéu de coco, fato branco e camisa preta.

— Mais um traficante de álcool — adiantou Mickey.

— Parece. Quem mais é que pode ter um carro destes?

— Se calhar também nós devíamos entrar nisso. Fabricar whisky não é assim tão

Page 164: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

difícil…

Desatei a rir.

— Boa ideia! Este é o momento ideal, agora que Roosevelt vai ser eleito. Sabes

bem que ele tenciona acabar com a lei da Proibição, seu burro. Os traficantes vão ficar

na miséria!

Também Mickey desatou a rir e pôs o braço sobre o meu ombro.

— Tens razão, Bugsy! — respondeu-me ele imitando a voz nasalada de gangster.

— Devíamos pensar em mudar de vida. E que tal se assaltássemos um banco?

♦♦♦♦♦♦

22

Quarta-feira, 9 de novembro de 1932

Esta manhã fui acordado pelo rádio. A minha mãe tinha posto o volume no

máximo e um comentador dizia em altos berros:

— Os dias felizes estão de volta…

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— Roosevelt ganhou! — exclamou a minha mãe ao ver-me entrar na cozinha —

Uma vitória esmagadora!

Quando saí para trabalhar com a caixa da graxa na mão, notei uma atmosfera

fora do habitual. Toda a gente estava bem-disposta e parecia confiar no futuro. Ganhei

cinquenta cêntimos em menos de meia hora.

Na escola explicaram-nos o Novo Contrato do Sr. Roosevelt e o que este projeto

significava para o nosso país. Pela primeira vez, o governo dos Estados Unidos irá

financiar as caixas de segurança social, deixando estas de ficar a cargo dos Estados e

das cidades. Irão ser feitas grandes obras públicas para dar trabalho aos

desempregados. De futuro haverá abono para os desempregados, e os agricultores

receberão subsídios para reduzirem a produção e assim estabilizarem os preços.

Não percebi tudo, mas o Sr. Brewster, o professor de História, explicou-nos que

isto representava uma ajuda importante para todos os que têm fome ou que não têm

alojamento e, antes de mais, trabalho para quem o não tem. É evidente, disse-nos ele,

tudo isto leva ainda muito tempo. Mas isso já nós sabíamos. Roosevelt só tomará

posse no próximo dia 4 de março, e teremos de esperar pelo menos até ao final do

verão para que a Recessão chegue ao fim. Mas já não tenho medo. Agora que foi dado

um prazo, arranjaremos coragem para aguentar o inverno!

Page 166: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

O Sr. Weissman estava tão bem-disposto quando cheguei à loja que me deu a

tarde livre. Nem acreditava no que ouvia!

Pus-me a caminho da casa de Mickey. Aquela tarde livre deixou-me excitadíssimo.

Que rico dia! À entrada do prédio encontrei o Sr. Moriarty, o cangalheiro.

— Morreu alguém?— perguntei eu sem rodeios.

— Não, Danny. Ando só a visitar as pessoas.

O Sr. Moriarty vem regularmente cumprimentar os inquilinos para se lembrarem

dele “no momento oportuno”, como costuma dizer com ar elegante.

— Hoje há algum velório?— continuei.

— Pois bem… o Sr. Milke morreu esta tarde. O velório é na casa dele, na Rua 101.

— Quem é esse Sr. Milke?

O cangalheiro endireitou-se, e bateu com o forno do cachimbo no tacão do

sapato, com ares de quem vai fazer revelações extraordinárias.

— O Sr. Milke era taxidermista no Museu de História Natural.

— Ah… E o que é um taxidermista?

— É a pessoa que empalha os animais para melhor se conservarem e serem

expostos ao público.

— Mesmo os tigres?

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— Tigres e até elefantes.

— Está bem… Que rica profissão! E de que morreu esse senhor?

— Do coração — respondeu o Sr. Moriarty, com ar oprimido.

— Que tristeza!

— É verdade. É verdade…

Tinha um ar tão desolado que não pude deixar de lhe perguntar.

— Era seu amigo?

— Todos os clientes são de algum modo meus amigos — respondeu com um

profundo suspiro.

— Deve ser muito infeliz com tantos amigos desaparecidos…

— Aí está um pensamento profundo, jovem. Bem, vou-me, que tenho de continuar

a minha ronda. Tu vais lembrar-te de mim em tempo útil, não é?

Estendeu-me a mão descarnada e eu apertei-a com um arrepio. Era fria e branca.

Arrepiei-me todo, só de pensar que já tinha tocado em centenas de cadáveres.

O Sr. Moriarty desapareceu no seu passo lento, como se carregasse toda a

miséria do mundo, e eu fiquei na entrada do prédio. Precisamente nesse momento

surgiu Mickey, vindo de casa.

— Que estás a ver, Danny?

Page 168: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— O Sr. Moriarty.

— Porquê?

— Aquele tipo tem mesmo, como se costuma dizer, cara de enterro.

— Evidentemente, seu palerma. É o trabalho dele.

— Tens razão. A propósito, há um velório na Rua 101.

— Quem morreu?

— Um tal Milke. Vamos lá?

— Por mim, sim, mas tu trabalhas, não?

— O Weissman deu-me folga esta tarde. Vens comigo?

Mickey mostrou-se incomodado.

— É que… Tinha prometido à Kitty que ia a casa dela.

— Outra vez?

— O que queres dizer com isso?

— Já a viste ontem!

— E então?

— Então quer dizer que me largas como a um sapato velho? Julguei que fôssemos

amigos, Mickey. Já quase nunca nos vemos!

— O que estás para aí a dizer? Ainda ontem jogámos basebol.

Page 169: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— Pois… uma hora só, até ela chegar.

As minhas palavras tinham produzido efeito. Mickey estava num grande dilema.

Mas naquele instante abriu-se a porta do 1444, dando passagem às gémeas Riley. Ao

ver a sua preciosa Kitty, Mickey iluminou-se como um candeeiro ao cair da noite.

— Tive uma ideia! — exclamou. — Vamos todos.

Correu para dar o braço à sua querida Dulcineia e disse-lhe:

— Anda, vamos a um velório. Não é, Danny? Porque esperas? Vamos!

Eu faiscava. De mãos nos bolsos, pus-me a caminho sem dizer palavra.

Maggie continuava de pé no traço da porta.

— Vens? — perguntou Mickey.

Olhou para mim com ar interrogativo, mas eu, sempre mudo, limitei-me a dar um

pontapé numa pedra.

— Parem lá com esses amuos — retomou Mickey. — Até é giro, um velório.

— Maggie, vem connosco — suplicou Kitty com a sua voz meiga.

Levantei a cabeça e Maggie veio ter connosco a sorrir.

Mickey e Kitty, de mão dada, desapareceram a correr como miúdos na direção da

rua 101. Maggie seguiu-os com os olhos, fazendo um pouco de beicinho.

— Cá estamos outra vez os dois, Búfalo Bill.

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— Pois é, Calamity… Vamos vingar-nos!

Saquei dos bolsos dois revólveres imaginários que empunhei na direção de

Mickey. Maggie fez o mesmo à irmã e pusemo-nos a disparar, gritando:

— Pum! Pum!

Os dois apaixonados voltaram-se para trás e lançaram-nos um olhar de desprezo:

“Ainda tendes de crescer um bocadinho!”, lia-se-lhes nos olhos.

— Eu não reconheço a minha irmã — constatou Maggie com um suspiro.

— E o Mickey? Esse é que mudou!...

Depois desta troca de palavras parámos com o tiroteio e caminhámos em silêncio.

Maggie deu-me uma olhadela, depois virou a cabeça.

Eu olhei também para ela, à socapa. Não encontrávamos nada para dizer.

Não sei porquê, mas acho que corei. É estranho, mas cada vez tenho mais

dificuldade em falar com Maggie. Nós que somos amigos há tanto tempo…

Alguns passos à frente, Mickey e Kitty caminhavam de mão dada a falar e rir

baixinho. É um pouco culpa de ambos, parece-me. Desde que estão apaixonados um

pelo outro, já tudo é diferente.

— E então — perguntou finalmente Maggie com uma voz um pouco afetada —

porque é que não estás na loja esta tarde?

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— Hoje, o Weissman deu-me folga.

— A que pretexto?

— Não sei. Se calhar, por causa das eleições. Estava muito bem-disposto.

— É verdade! — constatou ela com um sorriso.— Hoje toda a gente anda alegre.

E de novo se instalou o silêncio entre nós.

— A tua mãe como está?— perguntou ela de repente.

— Muito bem… Porquê?

— Pareceu-me ouvi-la vomitar esta manhã, muito cedo. Não te parece que está à

espera de bebé?

De repente, senti-me invadido por uma grande angústia.

Uma angústia de cortar a respiração.

— Não!— resmunguei eu.

— Foi a Sr.ª Mahoney que lhe pegou a constipação. É só isso!

Voltei a cabeça para a olhar nos olhos. Precisava que acreditasse em mim, que

fosse da minha opinião. Se não, como podia eu próprio acreditar?

Fez que sim com a cabeça e logo me senti melhor.

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♦♦♦♦♦♦

23

Mal entrámos na rua 101, vimos imediatamente uma porta enfeitada com uma

coroa mortuária encimada por um dossel. Era num prédio chique, na esquina da

Madison Avenue, com uma escadaria e varandas em ferro forjado, onde

desabrochavam flores em vasos.

Na coroa, uma fita cor-de-rosa indicava que o defunto, o Sr. Milke, era um homem

de idade madura. Quando é uma criança que morre, põem uma fita branca, e quando

é um velho, uma fita roxa. A minha mãe fica sempre com lágrimas nos olhos quando

vê uma coroa de fita branca numa porta.

Juntámo-nos a Mickey e Kitty ao fundo das escadas.

— Devia ser um ricaço — notou Mickey.— Afinal, quem era ele?

— O Sr. Milke — respondi — era taxidermista no Museu de História Natural.

Mickey deu ares de querer fazer mais perguntas, mas às escondidas olhou para

Kitty e ficou por ali. Sacudimos o pó dos nossos fatos, cuspimos nos sapatos e

esfregámos com as mangas até brilharem.

— Estamos todos prontos? — perguntou Mickey.

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Todos acenaram que sim.

— Então, vamos!

O hall daquele prédio era enorme, sombrio e frio, com tijoleira de mármore no

chão e lambris na parede, o que há de mais chique… Assaltado pela dúvida, toquei no

ombro de Mikey.

— Era melhor voltarmos para trás. Têm um ar demasiado rico para nós.

— Não sejas tolo, Danny. Não é um hotel particular, e além disso, os tipos que

têm essas profissões, apesar dos nomes empolgados que se atribuem, não ganham

assim tanto como isso.

— Está bem, então.

Subimos as escadas em fila indiana e constatámos que os apartamentos estavam

dispostos como no nosso prédio, com a porta da cozinha virada para as traseiras e a

da sala para a rua. Claro que não havia quartos de banho no patamar. Neste tipo de

edifícios acho que as pessoas têm os quartos de banho dentro de casa.

No quarto andar, onde tinha lugar o velório, havia algumas pessoas no patamar.

Pessoas bem vestidas que olharam para nós de esguelha, mas nós entrámos

corajosamente pela porta do salão. Lá estava o caixão, pousado sobre um catafalco e

rodeado de centenas de flores.

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Nunca tinha visto tantas flores juntas. O seu perfume tornava pesado o ar da sala

repleta de mulheres com olhos vermelhos e inchados, vestidas de preto e a fungar,

enquanto cochichavam através do lenço das mãos que punham diante da boca. À

volta, em cima das mesas e das cómodas, animais empalhados olhavam para nós,

com olhos de vidro.

Aproximámo-nos valentemente do caixão e ajoelhámo-nos, fazendo o sinal da

cruz.

Mickey inclinou-se para me segredar ao ouvido:

— Para que achas que servem todos estes animais mortos? É um rito egípcio ou

quê?

— Está calado e reza — respondi no mesmo tom de voz.

E voltei a fazer o sinal da cruz.

Senhor, murmurei, se este homem era bom, acolhei-o no Vosso Paraíso e, se era

mau, não o trateis muito mal. Vós que sois Deus, perfeito em tudo, talvez tenhais

dificuldade em compreender como é difícil para nós sermos sempre bons. Tentamos, é

certo, e tenho a certeza de que o Sr. Milke fez o melhor que pode. Obrigado, meu

Deus. Ámen.

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Levantámo-nos e ficámos de pé à volta do caixão. Embora a sua pele fosse de um

rosa pálido, o Sr. Milke lembrava-me também ele um animal embalsamado, todo

enfeitado pelos agentes da funerária. Os cabelos, pretos e finos, esticados sobre a

testa, estavam impecavelmente penteados, e até pensámos que também lhe frisaram

o bigode, pois as pontas erguiam-se direitas e luzidias, ameaçando quebrar se se lhes

tocasse. Tinha pó de arroz nas faces rosadas, batom nos lábios e sobrancelhas

desenhadas a lápis preto.

— Até parece que está vivo, não acham?

Os outros concordaram com um suave murmúrio. Chegara o momento das

condolências. Com um suspiro profundo dirigi-me a uma senhora de preto que estava

sentada do outro lado do caixão e que as outras senhoras chorosas tratavam como

sendo a mais importante…

— Os meus pêsames, minha senhora.

A senhora deixou por um instante de limpar os olhos e olhou para mim com um ar

admirado. Também olhou para os outros três e ergueu as sobrancelhas.

— Vocês quem são, meus meninos?

— Amigos do Sr. Milke. Íamos visitá-lo muitas vezes ao Museu.

Não parecia muito convencida.

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— Era tão simpático — sussurrou Maggie. — Gostava tanto de crianças…

Sem se dar conta, tinha batido na tecla. A viúva desatou a chorar e a dizer:

— É verdade, ele adorava crianças. Sabem, nós nunca tivemos filhos….

A viúva, dirigindo-se a Mickey, retomou:

— Mas não percebo como é que podiam encontrar-se com o meu marido no

Museu, pois o seu trabalho quase nem lhe permitia o contacto com o público.

No espaço de um instante, Mickey olhou para mim com ar espantado. Depois,

recuperou o seu ar seguro e respondeu:

— Encontrámo-lo num passeio.

— Num passeio?

— Sim, quer dizer… Quando acabava o trabalho levava-nos a passear.

— A passear… — repetia a viúva com um ar pensativo. — Deve haver aí qualquer

confusão, menino.

— Não… — insistia Mickey já corado. — Sabe, era no táxi…

Quando contei aquela história à minha mãe, ri-me tanto que até me engasguei.

— Daniel, — protestou ela a rir — não se fala com a boca cheia!

— Desculpa, mãe. Conclusão: expliquei a Mickey que um taxidermista não con-

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duzia nenhum táxi, mas que o seu trabalho consistia em embalsamar animais. E sabes

o que me respondeu? (Só de pensar desatei outra vez a rir.) Disse-me: como querias

que eu soubesse? Julguei que fosse uma palavra cara para dizer que era motorista de

táxi!

De tanto rir quase caí da cadeira. Doíam-me os maxilares, as lágrimas corriam-

-me pela cara e eu sempre a rir. A minha mãe ria comigo, mas de repente pôs-se

pálida e muda. Fiquei preocupado.

— Que tens?

— Nada, nada. Só preciso de um copo de água.

A cambalear, dirigiu-se para a pia, mas parou apoiada no bordo. Dei um pulo.

— Estás bem?

Não teve tempo de me responder. Aos vómitos, com o rosto mais branco do que

um lençol, pôs as mãos na boca e correu para fora.

Sentada na sua cadeirinha, Maureen começou a chorar. Abracei-a e ficámos ali os

dois, agarrados, à espera.

♦♦♦♦♦♦

Page 178: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

24

Naquela tarde, véspera do Dia de Ação de Graças, continuávamos sem notícias do

meu pai. Quando cheguei à loja, estava nervoso e triste, furioso com ele e ao mesmo

tempo preocupado. Como é que não encontrara maneira de vir ter connosco? Não é

assim tão complicado!

O Sr. Weissman recebeu-me como todas as tardes. Depois, pegou-me na mão

direita e meteu lá qualquer coisa e disse-me:

— Feliz Dia de Ação de Graças!

Era o relógio do meu pai.

— Obrigado,— respondi — mas porque mo entrega hoje?

— Porque já pagaste a dívida, meu rapaz. Este é o teu último dia aqui na loja.

— Mas… Ainda só estamos no Dia de Ação de Graças. Eu devia trabalhar até ao

Natal. O meu pai prometeu-lhe…

O Sr. Weissman interrompeu-me com um gesto.

— Foste tu que partiste a montra?

— Não.

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Fez um pequeno movimento com a cabeça e, depois, sob as sobrancelhas

desalinhadas, existia um brilho malicioso nos olhos...

— Estás a ver. Feliz Dia de Ação de Graças!

— Obrigado — limitei-me a dizer.

Mais do que a recuperação da minha liberdade, a sua confiança em mim deixava-

-me feliz.

E ele percebeu. Desenhou-se-lhe um sorriso no rosto e deu-me uma palmadinha

nas costas. Eu não tirava os olhos do relógio.

— Deve ser muito valioso, não?

— Dois dólares, mais ou menos — respondeu o Sr. Weissman.

Fiquei com cara de palerma. Dois dólares por um relógio de ouro? Estava a

brincar, certamente.

— Está a brincar, Sr. Weissman. Vale muito mais do que isso, não?

— Diz-me, Daniel — disse-me ele sem sorrir. — O teu avô, na Irlanda, era rico?

— Claro que não, mas…

— Dois dólares.

Não disse mais nada.

Page 180: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

Pus-me a examinar o relógio com cuidado. É verdade, nos bordos a cintilação do

ouro já não existia. Era um metal cinzento sem brilho. Será que ele tinha razão? O

relógio não valia nada? Aproximei-me do balcão.

— Há uma coisa que não compreendo. Se sabia que o relógio não tinha valor,

como é que o aceitou como penhor?

De novo, o Sr. Weissman franziu o seu vasto sobrolho.

— Sem valor? Quem te disse que não tem valor?

— Mas… Acabou de mo dizer…

— Avaliei-o em cerca de dois dólares. Isso não tem nada a ver com o seu valor.

Olga, vê o que está aqui…

Tirou-me o relógio das mãos, abriu-o e mostrou-me a inscrição que tinha no

interior. Eu conhecia-a de olhos fechados. O meu pai já ma tinha lido muitas vezes:

16 de junho de 1917

Que Deus te abençoe, meu filho

D. T. G.

Daniel Thomas Garvey, o meu avô.

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Os meus olhos ficaram embaciados e tive de fazer uma careta para afastar as

lágrimas que teimavam a aparecer.

— Vês quanto vale este relógio? — voltou a dizer o Sr. Weissman. — Não há

dinheiro que o pague, meu rapaz. Vamos, pega nele e vai para junto da tua mãe. Diz-

-lhe que lhe desejo um bom Dia de Ação de Graças.

Eu estava tão comovido…. Quando pude falar, disse-lhe:

— De facto, queria pedir-lhe… Talvez eu pudesse continuar a trabalhar para si, se

precisar, claro. Não lhe pedia muito. O que me pudesse pagar…

O Sr. Weissman fechou o livro de registos e deixou escapar um forte suspiro.

Abanou a cabeça com um ar estranho, ao mesmo tempo comovido e triste.

— Bem precisava da tua ajuda, Danny. E tu és um trabalhador sério. Mas…

Olhei-o nos olhos, só um instante, mas depois desviei a cabeça. Que ar triste ele

tinha!

Pensativo, acariciava a capa do livro. Depois levantou-o como se fosse muito,

muito pesado, e colocou-o na prateleira. Eu já previa o que ia dizer.

— Estás a ver, meu rapaz…

— Eu sei, Sr. Weissman. Não importa. Obrigado por tudo.

Abanou a cabeça e estendeu-me a mão, que apertei com quanta força tinha.

Page 182: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— O teu pai tinha RAZÃO, Danny. És um bom rapaz.

— Obrigado. Quem dera que o meu pai nos ouvisse…

— Prometo-te que hei de dizer-lho quando ele voltar.

— Obrigado.

Dirigi-me para a porta mas, quando ia a sair, passou-me uma ideia pela cabeça.

— Olhe, eu podia talvez vir quando a Crise tiver acabado…

Desatou a rir.

— Boa ideia, Danny — respondeu. — Quando a Crise tiver acabado…

♦♦♦♦♦♦

25

Quando entrei em casa, o edifício cheirava a carne assada e a bolos. Em cada

andar, as cozinhas tinham as portas escancaradas, as pessoas entravam e saíam,

emprestando uns aos outros a colher da sopa ou o espeto de assar carne.

A atmosfera era de véspera de festa, leve e alegre.

Page 183: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

Mas sobretudo, pela primeira vez há semanas, ouvi a minha mãe cantar. O meu

coração dilatou-se dentro do peito. Aquele canto cheio de alegria e de esperança só

podia ter uma causa: o meu pai!

Subi os degraus quatro a quatro e entrei pela cozinha dentro. Diante do forno, a

minha mãe preparava o jantar, o rosto radiante de alegria. Virou-se para mim de

braços abertos e eu lancei-me neles como uma criança.

— O pai voltou?

— Não, meu querido — respondeu a sorrir. — Mas olha o que chegou.

Tirou uma carta do bolso do avental e eu peguei nela com avidez. Naquela

exaltação, deixei cair algumas notas que se encontravam no envelope, mas tinha

tanta pressa de ler a carta do meu pai que nem me dei ao trabalho de as apanhar.

Que linda era aquela carta mesmo com erros ortográficos! Apetecia-me apertá-la

contra o coração. No último momento detive-me com receio que a minha mãe

considerasse isso uma idiotice. Todo emproado, sentei-me à mesa e li:

Querida Molly

Desculpa, mas não pude escrever-te mais cedo. Não tinha com que comprar o

papel nem os selos. Finalmente encontrei trabalho por uns dias: ardeu uma quinta e é

preciso reconstruí-la.

Page 184: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

Não estarei aí no Dia de Ação de Graças, minha querida, mas, com o dinheiro que

te mando, podes fazer um bom jantar para ti e para os meninos. O meu coração estará

convosco. Ouvi dizer que pedem moleiros mais lá para cima, junto à costa. Vou ver se

consigo alguma coisa. Molly querida, farei tudo para estar convosco no Natal. Abraça

por mim o meu Danny e a minha Maureen e tu recebe mil beijos do teu

Daniel

Fiquei muito desiludido por o pai não poder passar o Dia de Ação de Graças

connosco, mas a promessa de vir passar o Natal connosco aqueceu-me o coração.

Observei o envelope com atenção para descobrir o carimbo dos correios: vinha de

New London, no Connecticut.

— Mãe, onde fica New London?

Tirou do bolso um velho mapa dos Estados Unidos, que abriu em cima da mesa.

Tinha pensado o mesmo que eu…

— Não tenho bem a certeza, mas, segundo diz a Sr.ª Mahoney, deve ser por aqui.

Com o dedo indicou um lugar na costa. No mapa ficava quase a um centímetro da

nossa casa.

— Não é muito longe — fiz notar.

A minha mãe meneou a cabeça com um sorriso radioso.

Page 185: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— E vem para o Natal — continuei.

Novo sorriso e novo menear de cabeça.

— O que é que te aconteceu, mãe? Já não sabes falar?

— Estou tão feliz que nem posso dizer nada.

Sempre com aquele sorriso de anjo, pegou na carta e apertou-a contra o coração.

Desatei a rir.

— Essa agora! Eu não fiz isso porque julguei que te ias rir de mim.

— Sim, vamos rir os dois — respondeu a minha mãe. — Rir é maravilhoso!

Entregou-me o papel todo amarrotado e apertei-o contra mim como se fosse o

meu pai em pessoa. Desatou a rir e abraçámo-nos com quanta força tínhamos, meio a

rir meio a chorar de alegria. Maureen, que brincava em cima da colcha, correu para

nós, a tremer em cima das pernitas, e pegámos nela para a fazer participar daquele

regozijo geral.

Quando me fui deitar, ainda estava meio aturdido de felicidade. Por uns

momentos, recordei as coisas boas que aconteciam e pensei nas que ainda estavam

para vir.

Amanhã de manhã, Dia de Ação de Graças, todas as crianças se vão disfarçar de

pequenos mendigos e vão de porta em porta pedir dinheiro. Nos outros anos, guardei

Page 186: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

o que recolhi para comprar bombons para mim, mas este ano tenho intenção de dar

quase tudo à minha mãe e guardar só uma pequena parte para comprar uma prenda

de Natal para o meu pai.

Amanhã, no final da manhã, depois do peditório, vamos ver o desfile em

Lexington Avenue, e depois almoçamos com os Riley. Vai ser maravilhoso! A única

coisa que poderia fazer-me ainda mais feliz era que o meu pai estivesse connosco.

Mas vai vir para o Natal… Vai vir para o Natal… Vai vir para o Natal…

♦♦♦♦♦♦

26

A meio da noite acordei sobressaltado por um ruído.

Percebi de imediato do que se tratava. A tremer, pus-me de pé em cima da cama,

mas a minha mãe já estava junto de mim vestida de roupão.

— Eles vêm por aqui — murmurei.

— Sim, sim…

— Vamos ver?

Page 187: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— Se quiseres, mas agasalha-te com um cobertor. Está frio.

Fomos até à sala, sem acender a luz e espreitámos pela janela. Sem fazer

barulho, a minha mãe afastou o cortinado não mais do que uns centímetros.

Em baixo, na rua, três grandes limusinas pretas chegavam à Avenue Park. A

primeira ziguezagueava a toda a velocidade por entre os quarteirões de casas para

escapar às outras duas que, perseguindo-a, cada vez se aproximavam mais.

As armas automáticas lançavam chamas na noite. No momento em que iam a

passar diante da nossa casa, baixámo-nos. O barulho do tiroteio fez estremecer os

vidros. Pedaços de tijolo voavam pelos ares. Depois a algazarra abrandou e nós

erguemo-nos, ainda a tremer, para vermos as limusinas desaparecer para norte. Um

silvo de sirene irrompeu e três carros da polícia passaram como um furacão. De novo o

silêncio regressou.

Instantes depois, passou o comboio na ponte aérea. Os poucos passageiros, de

rosto colado à janela, procuravam distinguir no escuro a causa de toda aquela

agitação.

A minha mãe abraçou-se a mim. Tremia tanto como eu. Levantei uma ponta do

meu cobertor e agasalhei-a o melhor que pude.

Page 188: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— Malditos traficantes! — exclamou ela em voz baixa. — Se querem matar-se uns

aos outros, porque não vão para um descampado? Pelo menos não corriam o risco de

ferir inocentes!

Nunca a tinha ouvido falar tão duramente.

Ao notar a minha estupefação, justificou-se.

— Desculpa, Danny. Não devia exaltar-me desta maneira, mas estou farta de ver

estes gangsters enriquecer quando toda a gente morre de fome. Estou farta de sofrer

com a guerra deles. Passam o tempo a disparar uns contra os outros para saberem

quem tem direito a vender wiskhy falsificado…

— Em breve tudo irá acabar, sossega. Roosevelt prometeu que ia acabar com a

Proibição. Verás que é a vez de os gangsters irem para o desemprego!

— Oxalá! E que as ruas fiquem transitáveis... Já reparaste na nossa figura? —

Frisou ela com um sorriso nos lábios.— Estamos aqui os dois a tremer de frio. Nem

parecemos nós!

— Não, mas, das outras vezes, o pai estava connosco.

Meneou a cabeça e suspirou. Depois, voltou a olhar pela janela. Lá fora, a noite

estava pesada e silenciosa.

Page 189: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— Sabes, Danny, quando eu era criança, na quinta, no inverno, nunca tínhamos

comida suficiente. Todos os anos o meu pai atravessava o mar e ia trabalhar para

Inglaterra a fim de arranjar algum dinheiro. Na sua ausência, nunca estávamos

tranquilos. Tudo nos metia medo, sentíamo-nos isolados. A família parecia uma

carroça a que faltava uma roda e não conseguíamos seguir em frente.

Ao ouvir estas palavras, olhei para a minha mãe, com o coração a transbordar de

amor.

É maravilhosa, a minha mãe. A diferença dos outros adultos é que ela lembra-se

do que era ser criança. Basta olhar para o fundo do seu coração para me

compreender. E é tão reconfortante para mim sentir-me compreendido!

De repente, senti uma necessidade enorme de lhe dizer que a amava muito.

— Mãe, gosto muito de ti!

As palavras recusavam-se-me a sair dos lábios. Quando era pequeno era fácil

dizer isto, mas, agora, há qualquer coisa que me impede… Devo ter crescido sem me

dar conta.

Levantou-se com um sorriso nos lábios e disse:

— Anda, meu filho. Já passou. Aqueles estúpidos massacraram-se. Só espero que

não tenham ferido ninguém...

Page 190: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— Olha, mãe, posso ir amanhã com os outros a ver se há sangue no chão? —

perguntei enquanto pegava no cobertor.

— Danny! — exclamou com um ar surpreendido.— Vai para a cama. E ponto final.

— Deixa, mãe…

— Nem mais um pio! Que ideia, francamente… Vamos para a cama!

Veio aconchegar-me a roupa e sentou-se na beira da cama, a olhar para mim com

muita ternura, sem dizer nada. No momento de começar a adormecer, apercebi-me

que ela acariciava a barriga com muita ternura. Eu conhecia aquele gesto. Fazia-o com

muita frequência quando andava grávida de Maureen.

Então, como o pai chegaria em breve, arranjei coragem para fazer a pergunta que

andava a torturar-me desde há tempos.

— Mãe, estás à espera de bebé?

Embora estivesse escuro, vi-a corar.

— Que pergunta, Danny!...

— Já não sou nenhuma criança. Eu sei o que isso é.

— Mas que sabes tu ao certo? — murmurou com um sorriso.

— Sei como tu és, quando estás à espera de bebé.

— Então, tu é que me vais dizer se sim ou não…

Page 191: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— Mãe! Não brinques comigo. Quero saber a verdade.

— Então aí vai, estou à espera de um bebé. Ficas contente, seu sabichão? Lá para

o fim de maio, se tudo correr bem, terás um irmãozinho ou uma irmãzinha.

Um arrepio gelado percorreu-me a espinha.

— Mas o doutor disse que não podias ter mais… Que uma gravidez poria em risco

a tua vida!

— Quem te disse isso?

— Eu ouvi a vossa conversa.

Franziu o sobrolho.

— Bem me parecia que andavas com maus hábitos nos últimos tempos. Não se

deve escutar atrás das portas.

— A questão não é essa. Quero que me digas …

— Que te diga o quê?

— Já sabias quando o pai foi embora?

— Eu… não tinha a certeza.

— Então estavas na dúvida.

— Sim.

— E, então, porque não lhe falaste do assunto? Se soubesse, não teria ido

Page 192: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

embora.

— Gostavas que tivesse feito uma coisa dessas, Danny? Que o tivesse impedido

de sair e lhe anunciasse ainda mais uma boca para alimentar?

— Mas ele teria ficado, não percebes?

— Sim, teria ficado.

Com um gesto de desgosto esfregou os olhos.

— Disso tenho eu a certeza. Hesitei muito. Tinha tanta vontade de lhe dizer… Mas

não tinha o direito de o obrigar a ficar. Ele morreria…

— O quê? Morria?

— Claro. Então não vês, todos esses homens tristes, nas escadas e nas esquinas

das ruas? Obrigados a não fazerem nada, com a família a morrer de fome, homens

inteligentes com braços fortes que só pedem trabalho… À força de tanta inatividade

até perdem o brilho dos olhos! Ficam loucos, Danny, e acabam por morrer. As suas

vidas são vazias de tudo: de honra, de esperança. Vi tantos mortos-vivos… Todos os

dias me cruzo com dezenas deles nas ruas. Por nada deste mundo queria que o teu pai

ficasse como eles.

Tinha razão, a minha mãe. Mas eu não disse nada, porque estava muito triste e

cansado... Estou farto de me armar em adulto. Não quero ser um menino sensato!

Page 193: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

A única coisa que quero é que o meu pai volte para casa e que trate ele de tudo,

como dantes. Não sou um homem adulto. Quero cá o meu pai e quero voltar a ser

criança.

♦♦♦♦♦♦

27

Sábado, 24 de dezembro de 1932

No Natal, Nova Iorque é a cidade mais linda do mundo. Quando digo isto, a minha

mãe desata a rir e pergunta-me:

— Já viajaste assim tanto? Como é que sabes?

Sei e é tudo. As ruas cheiram a pinheiro cortado de fresco e a castanhas quentes

assadas e, por apenas uns centavos, pode-se andar de metro e ir ao centro da cidade

ver as montras animadas das lojas. Os comboios elétricos circulam o dia inteiro e

também há carros, barcos, aviões…

Claro que nunca vou ter acesso a nenhum daqueles tesouros, mas que importa?

Page 194: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

Basta olhar para eles para ser feliz. E depois, nas ruas, toda a gente tem um ar

contente. As pessoas sorriem e dizem-te “Feliz Natal”, apesar da crise e das

preocupações.

E hoje é dia de Consoada! Há um mês que o meu pai não escreve, e ainda não

chegou, mas não vou preocupar-me. Prometeu que estaria connosco e vai cumprir a

promessa. Além disso, é mesmo o seu estilo de chegar de improviso, a meio da ceia,

para nos fazer uma surpresa…

Infelizmente não pude comprar-lhe um presente com o dinheiro do Dia de Ação de

Graças, e isso por uma boa razão: o peditório não rendeu nada. Nem um centavo.

Toda a gente está pobre e as pessoas guardam o dinheiro para o essencial. Portanto

tive de economizar algum do dinheiro ganho a engraxar sapatos na praça. Ao todo,

sessenta cêntimos. Não é nenhuma fortuna, mas tenho de me contentar.

A prenda que tinha em vista era uma caixa de chocolates Fanny Farmer que vira

na loja do Sr. Weissman. O meu pai adora chocolate. O problema é que a caixa custa

um dólar e, mesmo que eu conseguisse juntar mais quarenta cêntimos para a

comprar, não sobrava nada para a minha mãe e para Maureen. Então, pus de lado a

ideia e logo, depois de entregar os lençóis, vou à loja dos saldos para ver se encontro

alguma coisa.

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Quando abriu a porta de serviço do hotel, Sadie mostrou-me um sorriso ainda

mais largo do que o habitual. Parecia a mulher do Pai Natal, uma mulher toda de

chocolate.

— Feliz Natal! Feliz Natal! — exclamou.

— Feliz Natal, Sadie! — respondi.

Mandou-me entrar para a cozinha e estendeu-me um prato enorme cheio de bolos

de chocolate. Recuei instintivamente.

— Não, obrigado.

— Não te faças esquisito! É Natal, não te esqueças. Hoje, até Miss Emily tem

coração. Vou avisá-la que chegaste.

Sadie saiu da cozinha e uns instantes depois voltou e fez-me sinal que a

acompanhasse. Obedeci com uma careta. Atravessámos a grande sala de jantar,

depois o salão, que era enorme e sombrio com reposteiros verde-escuro. Ali, sentada à

secretária, Miss Emily escrevia qualquer coisa. Estava de costas para nós.

Sadie deu-me uma cotovelada. Tirei o chapéu, avancei para a secretária, mas

Miss Emily parecia não se ter dado conta. Quando me virei, Sadie já tinha

desaparecido.

Fiquei ali plantado alguns minutos a apertar o chapéu sem saber o que fazer.

Page 196: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

De repente, Miss Emily exclamou:

— Porque estás assim a mexer-te?

Estremeci ao ouvir aquela voz e fiquei paralisado. Passaram dois ou três longos

minutos... Tinha cãibras e comichão por todo o lado, mas não me atrevia a mexer-me

um milímetro que fosse. Finalmente, Miss Emily terminou o que estava a escrever,

guardou a caneta no estojo e abriu a gaveta para tirar o porta-moedas. Sem dizer

palavra, abriu-o, contou dez notas de dólar e voltou a fechá-lo secamente. Depois,

como se estivesse dominada por remorso, voltou a abri-lo para tirar mais um dólar.

Por fim, virou-se para mim, entregou-me os onze dólares e resmungou:

— Feliz Natal!

Pegou de novo na caneta e pôs-se a escrever.

Contei os dez dólares e pousei o décimo primeiro dólar à frente dela, em cima da

secretária e disse-lhe:

— A minha mãe proíbe-nos de aceitar esmolas.

— Não sejas parvo, rapaz. Uma prenda pelo Natal não é uma esmola.

Com ar aborrecido, meteu-me a nota na mão.

— Vá, sai daqui.

À porta da sala, Sadie, que aparecera como por encanto, fazia-me sinal que

Page 197: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

saísse. Lá me resignei.

— Hum… Obrigado, minha senhora. Feliz Natal também para si — balbuciei.

A resmungar, Sadie conduziu-me para a cozinha:

— A cavalo dado não se olha o dente! És muito delicado, rapaz. É que a tua mãe

trabalhou duro, durante todo o ano. Merecia uma gratificação!

— De acordo, minha senhora.

— Não vais pôr-te a tratar-me por minha senhora! Vá, vai lá para casa e passa

uma boa consoada, seu maroto.

— Para si, também.

Quando cheguei à rua, o ar fresco aclarou-me as ideias. Foi então que me dei

conta de que já tinha o dólar necessário para comprar a caixa de chocolates para o

meu pai! A minha consciência sussurrava-me que o dólar em questão não me

pertencia, que a minha mãe é que o tinha ganho, mas mandei a consciência estar

calada.

Só o facto de imaginar a cara do meu pai quando abrisse a caixa valia bem aquela

desonestidade. Por fim, de consciência completamente tranquila, entrei na loja do Sr.

Weissman com um grande sorriso.

Page 198: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

Quando pousei em cima do balcão a famosa caixa com uma nota nova em cima, o

Sr. Weissman arregalou os olhos com um ar de grande surpresa.

— É uma prenda de Natal para o meu pai — expliquei muito ufano. — Vai chegar

esta noite.

— Muito bem, muito bem…— respondeu o Sr. Weissman.— Então vai ser uma

consoada muito especial.

Pegou na nota, fez tilintar a caixa registadora e entregou-me duas moedas de

vinte e cinco cêntimos.

— O que vai fazer?— perguntei.

— O preço dos chocolates baixou 50%. É a promoção da semana.

— Que sorte! — exclamei.

Mas, de repente, percebi que não era verdade. Vi-lhe fazer muitas destas quando

trabalhava na loja dele.

— Nem pensar! — protestei, voltando a colocar as moedas em cima do balcão. —

Tenho com que pagar o preço normal.

— Mas…

Não o deixei acabar. Corri para a porta com a caixa dos chocolates debaixo do

braço, a gritar:

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— Feliz Natal, Sr. Weissman!

Dali segui para a loja dos saldos, onde encontrei um magnífico batom de lábios de

marca Flamme para a minha mãe. Acho que vai adorar o vermelho escarlate! Para

Maureen, encontrei umas lindas contas em madeira e, com os poucos cêntimos que

sobravam, comprei papel de embrulho com imagens do Pai Natal.

Entrei em casa com os tesouros escondidos debaixo do casaco. Felizmente que

há Natal, senão rebentava!

Quando entreguei os dez dólares de Miss Emily à minha mãe, esta ficou com ar

desiludido. Ouvi-a murmurar qualquer coisa do género “Velha avarenta!”, e foi então

que compreendi, com grande remorso, que estava a contar com um extra. Até talvez

já o tivesse gasto, na sua imaginação.

Por um instante, quase lhe revelava o que tinha feito, mas contive-me. Pelo

menos não queria estragar a surpresa que tinha preparado.

— Este ano o nosso Natal vai ser um pouco magro… — disse-me ela.

É verdade. Não preciso de prendas, este ano. A presença do meu pai vale por

todos os presentes do mundo!

A minha mãe continuava com aquele ar desiludido, mas a minha consciência

estava definitivamente sossegada. Se lhe tivesse entregado o dólar, tê-lo-ia gasto

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numa prenda para mim, e eu preferia mil vezes gastá-lo com o meu pai!

Por fim, pegou numa nota e disse:

— Vamos ter, pelo menos, uma árvore de Natal.

— Pois claro! Vamos lá, rápido!

Adoro ir procurar o pinheiro de Natal.

Fico tão feliz como quando abro as prendas pela manhã.

A minha mãe anuiu com um sorriso terno.

Fomos com a minha irmã até ao centro da cidade. Queria ver todos os pinheiros,

para ter a certeza de escolher o mais lindo. Precisava de qualquer coisa muito, muito

bonita para festejar a chegada do meu pai!

Depois de os ver todos, lá me decidi por um dos primeiros que vimos, mesmo

perto da nossa rua. A minha mãe fingiu zangar-se, alegando que a tinha feito

caminhar tanto para nada, mas eu sabia que aquilo era só teatro. Pelo Natal, ainda fica

mais criança do que eu!

♦♦♦♦♦♦

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28

Quando regressámos a casa, o meu pai ainda não chegara. No olhar da minha

mãe via-se que começava a ficar preocupada.

— Não te preocupes — disse-lhe eu. — Daqui a pouco está aí.

Anuiu, mas não parecia convencida. Surgiu-me uma ideia.

— Talvez tenha telefonado. Vou saber à confeitaria.

O único telefone de toda a vizinhança é da Sr.ª Deluca, que o tem na loja.

— Ter-nos-ia avisado — retorquiu a minha mãe.

— Talvez tenha cá vindo quando estávamos fora!

— Está bem. Se isso te sossega, vai lá perguntar.

Havia pelo menos vinte pessoas na loja da Sr.ª Deluca. Esta não sabia para onde

se virar. Respondeu-me com mau humor.

— Um telefonema? É coisa que não falta, telefonemas. Esta porcaria não para de

tocar desde manhã. Apetece-me arrancar o fio!

Mal acabou de dizer aquilo, o telefone começou a tocar. A Sr.ª Deluca não

mostrava ares de querer atender: continuou a servir o cliente com um pequeno

abanar de cabeça.

Page 202: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

A cada toque o meu coração pulava.

— Posso atender, se quiser.

Fui para trás do balcão, levantei o auscultador e, em bicos de pés, ergui o queixo

e gritei:

— Está lá?

A voz da telefonista vinha de muito longe, por entre ruídos e parasitas.

— Estou… estou… Uma chamada de longe para a Sr.ª…

— Para quem?

— Sr.ª Clark. Posso falar com a Sr.ª Clark?

As minhas esperanças ruíram.

— Um momento, por favor.

E, virando-me para a multidão de clientes:

— Sr.ª Clark, estão a chamá-la ao telefone.

— Vou já, vou já!

Uma senhora baixinha, de cabelos grisalhos, com avental azul às bolinhas

brancas, corria a toda a pressa. De olhos a brilhar, confiou-me:

— É a minha filha. Está a chamar da Califórnia! Estive toda a manhã à espera do

telefonema dela!

Page 203: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— Ainda bem! — E entreguei-lhe o recetor.

A deceção era grande. A Sr.ª Deluca deve tê-la lido no meu rosto, porque quando

me virei, vi que o seu mau humor tinha desaparecido. Pediu licença ao cliente e veio

ter comigo.

— Olha, Danny, se o teu pai telefonar, aviso-te. Está bem? Seja hoje ou amanhã,

venho cá abaixo à loja atender. Podes ficar descansado. Quero ver essa carinha mais

alegre. É Natal!

— Está bem. Obrigado, Sr.ª Deluca.

— Olha! — acrescentou ao entregar-me uma bengala de açúcar de cevada. —

Uma prenda para ti.

— Obrigado, Sr.ª Deluca, mas não tenho muita fome.

— Então pendura-a no pinheiro. E não te esqueças de dizer à tua mãe que lhe

desejo Bom Natal.

— Obrigado e Feliz Natal também para si, Sr.ª Deluca.

Ao chegar a casa, estava a tribo Riley instalada diante da porta de entrada do

prédio. Sujos e despenteados como um bando de vagabundos.

— Porque estão assim todos disfarçados? É Natal, não é o Dia de Ação de Graças!

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— As senhoras da Associação para a Caridade estão a distribuir os cabazes de

Natal, no parque — explicou Maggie com um piscar de olhos — Quanto maior for o ar

de miséria, mais comovidas ficam… e mais elas nos dão!

— Bem, se é assim, vocês vão apanhar tudo!

— Ri-te!— replicou Maggie, deitando a língua de fora. — Enquanto estás aí à

espera, mais te valia se viesses connosco. Um pequeno suplemento tanto jeito dava à

minha mãe como à tua…

— Nós não aceitamos esmolas.

Corou ao ouvir aquelas palavras. A cólera fazia-lhe faiscar os olhos.

— Ai, sim? Sua excelência é um aristocrata, não haja dúvida! E quando vieres

comer a nossa casa, não vais comer destas esmolas?

O argumento era forte. Pelo Natal, devíamos ir consoar a casa dos Riley. Estava

eu ainda à procura de uma resposta condigna, quando Maggie me virou as costas,

gritando por cima do ombro:

— Ah, os homens! São todos iguais. Não servem para nada.

Os outros Riley foram atrás dela, e o pequeno Johnny lançou-me um olhar

interrogador. Trazia o anel de Super-Homem.

Com as mãos nos bolsos, segui na direção deles.

Page 205: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— Pronto, já vou!

Mas Maggie não me deu ouvidos.

Ao chegar ao portão do parque, virou-se bruscamente para trás.

— Porque vens atrás de nós?

Embaraçado, pus-me a dar pontapés nos tufos de erva.

— É que… Se calhar, tens razão. A minha mãe ficaria contente com uma ajuda.

— Posso considerar isso como um pedido de desculpa?

— Porque não, se fazes questão disso?

Maggie não é rancorosa. Amansou imediatamente.

— Sabes, não há que ter vergonha. As nossas mães trabalham o mais que podem

e nós também. Não somos responsáveis pela situação que se vive.

— Deves ter razão. O que é que tenho de fazer?

— Vem comigo. Verás que não custa.

Sentia um nó na garganta só de pensar que recorria à caridade.

Fui atrás dos Riley até um estrado com uma grande mesa onde quatro senhoras

muito elegantes, com casacos de pele e uns chapeuzinhos muito esquisitos, estavam

sentadas. À esquerda havia um monte enorme de cabazes decorados com fitas

vermelhas. As pessoas faziam fila diante do estrado para onde subiam à vez. As

Page 206: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

senhoras falavam com elas, entregavam o cesto e depois mandavam-nas embora. Ao

aproximar-me, dei-me conta de que faziam perguntas e escreviam as respostas num

bloco de notas.

— O que é que elas querem saber? — perguntei em surdina a Maggie.

— Nada, é só para terem a certeza de que mereces o cabaz.

— O quê???

— Chiu! Só tens de responder ao que se te pergunta, nada de importante.

Chegou a vez de Maggie. Ela e a irmã empurraram os pequenos Riley para cima

do estrado. Ofereciam um autêntico espetáculo, todos vestidos com fatos andrajosos!

As senhoras entreolhavam-se cheias de dó.

— Os vossos pais?— perguntou a primeira.

— A nossa mãe está a trabalhar — respondeu Maggie. — É porteira.

— E o vosso pai?

— Está… na cadeia.

— Por que motivo?

Maggie fixou os olhos no chão enquanto murmurava qualquer coisa.

— Fala mais alto, por favor.

— Batia-nos — repetiu Maggie, muito corada.

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As senhoras trocaram olhares e menearam a cabeça.

— Muito bem. Venham cá, meus meninos. Vamos dar-vos dois cabazes.

— Muito obrigada, minhas senhoras. E Feliz Natal!

Eu estava furioso. E indignado. Tinha vontade de fugir, mas já não podia: ia a

meio da escada e a multidão empurrava-me para a frente.

— O seguinte!

Avancei. Quatro pares de olhos escrutinavam-me dos pés à cabeça.

— Os teus pais onde estão, rapaz?— perguntou-me uma das senhoras.

— O meu pai foi para fora procurar trabalho.

— Mas para onde?

— Eu… Eu não sei.

A mulher abanou a cabeça, como se já estivesse à espera da minha resposta.

— E a tua mãe?

— Está em casa.

— Não trabalha?

— Sim, em casa. Lava roupa.

— Tens irmãos e irmãs?

— Uma irmãzinha, e…

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— E o quê?

— Um outro bebé que vem a caminho.

Uma outra senhora lançou-me um olhar duvidoso.

— Há quanto tempo é que o teu pai foi embora?

Mantive o olhar firme.

— Ainda não foi assim há tanto tempo.

Quem cedeu foi ela, mergulhando os olhos nos papéis.

— Muito bem! — disse a primeira. — Pega no cabaz e vai para casa.

A que me entregou o cabaz tinha um ar muito mais simpático. Sorria, mas eu

tinha demasiada vergonha para lhe responder nos mesmos moldes.

— Feliz Natal, rapaz.

— Sabe, minha senhora, nós não estamos verdadeiramente na miséria. O meu pai

vai regressar e tudo vai correr melhor.

— Fico feliz por saber — respondeu a senhora.

♦♦♦♦♦♦

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29

Natal de 1932

Mal acordei, saltei da cama para ir ver ao quarto da minha mãe se o pai lá estava.

Ao abrir o reposteiro, rezava para que ele tivesse chegado enquanto eu estava a

dormir. Mas havia só um vulto na cama da mãe.

Voltou-se e sorriu para mim.

— Feliz Natal!

— Feliz Natal, mãe!

— Anda cá, Danny — chamou ela, enquanto ajeitava a cama ao lado dela.

Do bolso do avental pendurado na cabeceira da cama tirou um papel dobrado em

quatro e pôs-mo nas mãos. Reconheci imediatamente a letra do meu pai.

— Pega, — disse ao desdobrá-la — lê aqui.

— Molly, minha querida, farei tudo para estar convosco na noite de Natal. O…

A minha mãe interrompeu-me:

— Estás a ver? Ele disse “tudo o que puder”, Danny. Talvez o pai não tenha

podido. Não vais estragar o teu Natal por tão pouco, pois não? Ele virá quando puder.

Mas as lágrimas subiram-me aos olhos.

Page 210: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— Não, escrevia ou telefonava. Não pode fazer-nos isto, não vir e não prevenir.

Muito menos no Natal. Tenho a certeza de que vai vir.

Uma lágrima deslizava-me pela cara abaixo.

A minha mãe estendeu-me a mão, mas eu afastei-me.

— Bem, bem… Vamos então esperar, mas não te iludas…

Maureen tinha acordado. Pôs-se a chorar para a tirarmos do berço, o que me

impediu de ouvir o resto da frase. Antes assim, pois eu não estava nada interessado

em ouvir. Lavámo-nos, vestimo-nos e fomos receber os Riley. Como este ano não

podiam comprar uma árvore de Natal, deixámos recado ao Pai Natal para deixar as

prendas debaixo da nossa.

A minha mãe e a Sr.ª Riley foram as primeiras a entrar, depois vieram Maggie e

Kitty. Os miúdos tinham de ficar em frente da porta, à espera de que acendêssemos as

velas, e competia-me a mim mantê-los na ordem. Doidos de excitação, não paravam

de perguntar:

— Veio? Veio?

Finalmente a minha mãe afastou o reposteiro e disse:

— Vede com os vossos olhos.

Page 211: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

Corremos para dentro do compartimento como uma grande vaga. Os miúdos

atiraram-se aos presentes enquanto nós ficámos a fruir daquele espetáculo.

A manhã entrava pela janela, triste e fria, mas a nossa sala, iluminada pelas

velas, parecia bem mais calorosa e alegre. A minha mãe tinha acendido o fogareiro a

querosene e estava bem quente. Quanto à árvore, era opinião geral que nunca se vira

nenhuma mais linda. Com as bolas de algodão, as grinaldas de milho estalado e de

mirtilo, e as decorações feitas à mão, estava muito mais elegante do que os pinheiros

demasiado garridos do centro da cidade.

Para manterem a ordem, a minha mãe e a Sr.ª Riley aventuraram-se por entre os

pequenos, que faziam uma grande algazarra. Pus-me a observar a minha mãe com

muita atenção. Há algum tempo que já não tem enjoos pela manhã. Ainda está

elegante, faces bem rosadas e, à parte de estar um pouco mais volumosa, o que faz

esticar os botões da camisola, apresenta um ar perfeitamente normal. Esqueci por um

instante que estava à espera de bebé, que o meu pai não estava connosco e …

deixei-me arrebatar pela alegria do Natal.

Os miúdos já todos tinham aberto os presentes. Enquanto se divertiam com os

piões, os berlindes, as bolas e as bonecas a dormir nos bercinhos feitos de caixas de

sapatos, passei a oferecer os meus próprios presentes. A minha mãe adorou o batom,

Page 212: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

disse que ia guardá-lo para as grandes ocasiões. Quanto a Maureen, acho que gostou

das contas pois sacudiu-as em todos os sentidos e até as meteu à boca.

— E este — perguntou Maggie, apontando para a caixa de chocolates — para

quem é?

— Para o meu pai.

— Ah!...

Eu tinha um ar muito desiludido.

— Há algum problema?

— Não, nada.

Entregou-me um pequeno embrulho que tinha atrás das costas.

— Toma, é para ti.

As orelhas ardiam-me.

— Para mim?

— Sim. E não te preocupes se não tiveres nada para mim, não tem importância.

— De modo algum… Precisamente tinha uma prenda para ti, olha…

Estava a mentir. Dei volta à árvore a fingir que procurava qualquer coisa.

— Oh! Devo tê-la deixado cair quando trazia as outras. Espera um bocadinho.

Fui para o meu quarto e fiquei um momento a roer a unha do polegar. O que é

Page 213: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

que havia de lhe oferecer? Comecei a vasculhar no gavetão da cómoda e, ao dar com

a minha caixa dos tesouros, tive uma ideia.

Não era grande coisa, mas era melhor do que nada. Apanhei um pedaço de papel

do cesto dos papéis e, com a minha prenda sumariamente embrulhada, voltei para a

sala.

— Vês, Maggie, já a encontrei. É tão pequena que nem dei conta de a ter deixado

cair.

Olhou com ar cético para o embrulhinho que tinha na palma da mão.

— Demoraste a encontrá-la.

— Ah, sim… Estava, hem… tinha rolado para debaixo da cómoda.

— Ah!

— Então, não a abres?

— Abre a tua, primeiro.

— Então abrimos ao mesmo tempo, está bem?

Rasguei o papel. Era Black Beauty, um exemplar usado, com a lombada um pouco

estragada, mas eu fiquei tão contente! Finalmente um exemplar meu!

— Com que então! Onde é que o desencantaste?

— Não importa. Sabia que gostavas muito dele.

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E enquanto falava ia abrindo a prenda dela. Um sorriso ia-se delineando nos seus

lábios.

— O teu selo do Tom Mix.

— É. Querias um, não?

Anuiu a rir, depois abriu a tampa, como para espreitar. Deitou-me um olhar tão

estranho … e antes de eu reagir, marcou-me a testa como se faz aos animais.

Todos desataram a rir.

— Olha! — gritou Johnny. — O Danny agora pertence à Maggie!

♦♦♦♦♦♦

30

Pensava que o meu pai iria ter connosco à igreja para nos fazer uma surpresa.

Durante toda a missa, estive a olhar para a porta, mas ele não veio. Depois, pus-me a

imaginar que estaria em casa à nossa espera, mas também não estava.

Naquele dia, mais de cem vezes, julguei que o meu coração ia parar de bater

sempre que a porta do prédio batia ou ouvia passos no hall. Por fim, durante o jantar

Page 215: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

em casa dos Riley, ouvimos passos de homem nas escadas. Alguém bateu.

Olhei para a minha mãe, com o coração a pular. Ela esforçava-se por parecer

calma, mas as faces estavam coradas de um rosa vivo e, tal como eu, tinha

dificuldade em respirar.

— Entre— disse a mãe de Maggie. — Está aberta.

Vi rodar o manípulo da porta e o batente girou, lentamente, como num sonho. Por

fim, o homem entrou. Era o Sr. Riley.

Engoli a minha deceção dando uma mordidela num pedaço de peru. A Sr.ª Riley

endireitou-se na cadeira.

— O que queres, John?

O Sr. Riley avançou de passo pesado e hesitante. Trazia um saco de laranjas na

mão, que abanava para mostrar. Com voz pastosa, disse:

— Vim trazer um presente de Natal aos meus meninos.

— Deixaram-te sair? Quando? — perguntou a mãe de Maggie.

— A semana passada.

O Sr. Riley deu mais um passo.

— Maggie,— disse a mãe —pega nas laranjas que o teu pai trouxe, por favor.

Maggie levantou-se, contornou a mesa e aproximou-se do pai.

Page 216: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— Olá, bebé — murmurou, estendendo a mão para lhe acariciar a face.

Mas aquele gesto fê-lo perder o equilíbrio e cair para a frente. No último instante

apoiou-se nos ombros da filha.

Maggie esperou que se levantasse, e depois afastou-se para pousar as laranjas

em cima da banca. Permaneceu imóvel por uns momentos mas depois, com o rosto

escondido entre as mãos, fugiu para o quarto. Um silêncio constrangedor pairava na

assistência.

A Sr.ª Riley pôs-se a aclarar a voz:

— Obrigada pelas laranjas, John. E agora adeus.

Mas ele não mostrava intenção de ir embora. Ainda avançou um passo.

— Pensei que talvez…

— Adeus, John — repetiu a Sr.ª Riley.

— E tu, Kitty — retomou o Sr. Riley, enquanto dava volta à mesa, — não queres

dizer à tua mãe para…

A Sr.ª Riley levantou-se bruscamente. Tremia-lhe a voz.

— Não faças isso, John. Não lhes estragues o Natal.

O Sr. Riley olhou para ela por um longo momento, a respirar com dificuldade e a

balançar-se de um pé para o outro. Depois baixou a cabeça e saiu sem dizer nada.

Page 217: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

Com o rosto entre as mãos, a Sr.ª Riley deixou-se cair na cadeira. Enquanto Kitty

se levantava para a ir consolar, deitei uma olhadela à minha mãe.

— Vou ver a Maggie.

Aprovou com um aceno de cabeça.

No quarto fazia escuro e lá fora chovia. A silhueta de Maggie destacava-se contra

a janela. Tinha afastado o cortinado fino mas, quando me viu entrar, voltou a fechá-lo.

Na penumbra vi traços de lágrimas no seu rosto. Ao longe, através do cortinado, vi a

silhueta do pai a afastar-se no túnel da rua 107. Ela seguiu-o com o olhar.

Respirei fundo, à procura do que dizer.

— Queres falar disto comigo?

Sacudiu a cabeça.

— Não há nada a dizer.

De pé, no meio do quarto, com as mãos nos bolsos, senti-me um inútil.

Maggie permanecia imóvel.

— Queres… queres que me vá embora?

— Não!

Virou-se para mim de olhos rasos de lágrimas. Murmurou qualquer coisa baixinho,

tão baixo que tive dificuldade em ouvir.

Page 218: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— Ele pegava em mim ao colo. A minha mãe estava sempre ocupada com as

crianças, mas o meu pai pegava em mim ao colo.

Os lábios tremiam-lhe. As lágrimas começaram a deslizar pela face. Não sei o que

se passou comigo que a apertei nos meus braços. Com a cabeça apoiada no meu

ombro, soluçou por uns momentos. Como devia sofrer para chorar daquela maneira!

Maggie não é nada choramingas. Fui invadido por uma espécie de ternura, algo que

nunca tinha experimentado até então.

Ao fim de um momento, os seus soluços acalmaram. Parecia sentir-se bem, assim

encostada a mim, a cabeça apoiada no meu ombro…E eu contente por ela estar tão

quieta… Era bom tê-la assim apertada nos meus braços, quentinha. Cheirava a sabão

e a ar fresco, e os cabelos a tocarem na minha cara causavam-me uma sensação

muito suave.

De repente, vi que estávamos da mesma altura. A minha mãe tinha razão, é

mesmo verdade que cresci. Quando finalmente nos separámos, Maggie beijou-me

suavemente na face. E eu corei. Murmurou:

— Obrigada, Danny.

— Porquê?

— Por estares aqui.

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♦♦♦♦♦♦

31

Terça-feira, 2 de janeiro de 1933

Passaram-se as férias de Natal e nós sem notícias do meu pai. Cada dia que

passava, o peso no coração ia aumentando. A minha mãe e eu surpreendíamo-nos

alternadamente diante da janela da sala, e cada um procurava sempre uma má

desculpa para justificar o que fazia ali, a espreitar. Não queríamos mostrar quão

preocupados estávamos.

A minha mãe ia ficando cada vez mais pálida.

Imagino o peso que também traz no coração.

Ontem era o Dia de Ano Novo. A minha mãe queria deitar fora a árvore de Natal,

mas eu não estava de acordo. Custou tanto a escolher, e eu queria tanto que o meu

pai a visse… Esta manhã, antes de sair para a escola, fiz a minha mãe prometer que

não lhe tocava. Mas quando voltei, a árvore desaparecera. Fiquei furioso.

— Tinhas-me prometido!

— Não me deste liberdade de opção. Se não prometesse, não irias para a escola.

— Mesmo assim, faltaste à promessa!

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— Preferias que o teu pai encontrasse a casa queimada quando regressasse?

— Não quero saber! Não quero saber!

Os meus olhos viraram-se para a caixa de chocolates, embrulhada em papel de

prenda. A minha mãe pusera-a em cima da mesa baixa. Louco de raiva e de tristeza,

atirei-a contra a parede. Partiu-se ao meio e os chocolates rolaram sobre o tapete. A

minha mãe soltou um grito.

— Danny, basta! Vai para o teu quarto e…

Não ouvi o resto. Corri para a entrada, bati com a porta e desci os degraus quatro

a quatro.

A neve caía desde manhã. Era a primeira vez que nevava. Normalmente, eu

ficava radiante como uma criança mas, desta vez, o mau tempo era mais um

obstáculo.

Pus-me a andar e ia dando pontapés na neve, ao acaso, sem saber para onde ia.

Dei por mim no Central Park. À minha volta, brincavam crianças em grande

algazarra. Atiravam bolas de neve umas às outras, e escorregavam nos declives com

trenós de cartão… Uma bola de neve veio esmagar-se contra as minhas costas e

Mickey chamou-me. Mas continuei o meu caminho. As vozes dos meus amigos

afastaram-se. Eu segui sempre, e entrei nas zonas mais afastadas do parque. Há anos

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que não me aventurava a ir tão longe. No final do caminho, rapidamente me apercebi

de grandes massas cinzentas. Uma descarga de lixo público? Não, isso não, não no

Central Park.

Ao aproximar-me, vi que se tratava de uma Hooverville - aquela de que a minha

mãe me falara, sem dúvida. Parei por uns instantes a recordar as suas advertências,

mas a curiosidade empurrava-me.

Avançava lentamente, a olhar de revés para aqueles abrigos improvisados,

construídos uns com tábuas de caixotes, outros de cartão. Havia também algumas

tendas do exército, um camião velho do leite, destroços enferrujados de carros, de

tudo um pouco desde que fosse, suficientemente grande para lá poderem abrigar-se.

Aqui e ali, pessoas entravam e saíam daqueles abrigos. Quase todos homens. Vi

uma mulher ou outra, mas era quase tudo homens. Nem uma só criança.

Reuniram-se à volta de um bidão onde ardia fogo. Traziam casacos esfarrapados

e trapos à volta da cabeça e das mãos. Havia quem tivesse os pés envolvidos em

farrapos. Alguns olharam para mim com ar curioso, outros com ar hostil, mas a maior

parte deles nem sequer reparou em mim, ou olhava com olhos vazios, como se fossem

cegos.

Lembrei-me do que a minha mãe dizia.

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Ao passar por ali, perguntava-me incessantemente se o meu pai estaria no

mesmo estado, sujo e esfarrapado, a aquecer-se numa braseira de lata. Já no fim do

bairro, avistei algo que me deixou pasmado: uma mulher enrolada dentro de uma

caixa de piano. O rosto fazia-me recordar algo… Fiquei por uns momentos a vasculhar

na minha memória e de repente percebi.

Era a mãe de Luther White!

Não podia ser, eu devia estar enganado! A Sr.ª White andava sempre limpa e bem

arranjada, e aquela mulher, em cima de um colchão sujo, enrolada numa manta

indescritível, metia nojo, com os cabelos reluzentes de sujidade! Mas assemelhava-se-

-lhe de uma forma espantosa.

Atrevi-me a falar-lhe.

— Sr.ª White?

A mulher não reagiu. Dir-se-ia que era surda.

— Sr.ª White?

Desta vez falei mais alto. Meneou um pouco a cabeça na minha direção e, por um

instante, pude ver-lhe os olhos sem expressão. Estremeci ao ouvir um roçar nos

silvados atrás de mim. No momento em que me voltei, choquei contra alguém que

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vinha na minha direção. Enquanto recuperava o equilíbrio, o desconhecido, que

deixara cair qualquer coisa com o choque, debruçava-se para a apanhar.

Inclinei-me para o ajudar, mas quando vi do que se tratava, recuei enojado. Dois

pombos mortos, de cabeça pendida e o pescoço torcido.

— Ó senhor, o que é que…

A minha voz ficou estrangulada na garganta. Acabava de reconhecer Luther

White. Chamei-o pelo nome mas, em vez de responder, escondeu os pombos debaixo

do casaco, e disse:

— Sai daqui para fora!

— Mas, Luther, sou eu, o Danny!

Deu uns passos para atirar os pombos para dentro da caixa de piano, depois

voltou atrás e agarrou-me pela gola do casaco.

— Fora daqui, já disse.

Olhei-o nos olhos.

— Luther, estou aqui para te ajudar.

A pressão da mão no meu pescoço redobrou.

— Não me chamo Luther. Não te conheço e, se não sais daqui dentro de cinco

minutos, dou cabo de ti. Percebes?

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— Percebo.

Largou-me e olhou-me por uns instantes. Os seus olhos faiscavam de orgulho e

raiva.

Eu disse:

— Desculpe, devo ter-me enganado.

♦♦♦♦♦♦

32

A neve tornara-se mais espessa. Demorei a chegar a casa. Ao dobrar a esquina da

rua, já os candeeiros estavam acesos e um enorme monte de neve acumulava-se

diante da porta do prédio. Toda a pequenada da vizinhança brincava ao “rei da

montanha”.

— Olá, Dan! — gritou Mickey. — Onde estiveste? Anda brincar connosco!

— Não. Tenho deveres a fazer.

— Anda! — insistiu Maggie. — Amanhã não há aulas!

Uma bola de neve veio esmagar-se contra a minha cabeça e recebi outra em

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cheio na boca. Bruscamente, tive vontade de jogar ao “rei da montanha”. Pus-me a

trepar pelo monte de neve como um doido, derrubando todos os que se atravessavam

à minha frente.

Mickey estava no topo. Com um empurrão fi-lo rolar pela neve derretida e gritei:

— Eu é que sou o rei da montanha!— a bater no peito com os punhos fechados.

Mas Maggie surgiu por detrás de mim e bateu-me nas pernas para me fazer

perder o equilíbrio. Agarrei-a pela cintura, arrastando-a comigo na queda.

Rolámos de cambalhota e aterrámos no fundo da “montanha”, eu por cima e ela

por baixo.

Eu disse:

— Rende-te!

Maggie debatia-se como um diabrete: preferia morrer a dar-se por vencida.

Eu ria-me, cá por dentro, feliz por esta luta corpo a corpo.

— Vamos, rende-te!

Mas, de repente, senti-me empurrado com toda a violência e caí. Alguém

caminhava em cima da minha cabeça, mergulhando-me a cara na neve. Ergui-me a

cuspir, mas ainda a tempo de ver Harry Sullivan passar em cima de mim para subir o

monte de neve. Não consegui segurá-lo por uma perna e lá se plantou no cimo do

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monte a rir, com ar de triunfo.

— Eu sou o rei da montanha!

Num ápice, trepei pelo monte para o destronar. Pôs-se a berrar:

— É isso, anda cá que te esfrego a cara na neve!

Quando já estava perto dele, deu-me um pontapé em cheio na cara. Foi mesmo a

sério! Se não tivesse virado a cabeça, tinha-me partido o maxilar. Evitei a pancada na

cara, mas a orelha é que apanhou.

Ao virar-me, agarrei o pé e torci-lho. Harry atirou-se para cima de mim com todo o

peso e rolámos ambos pelo monte abaixo. Para meu azar, ficou ele por cima.

— E agora — rosnou-me ele — vais render-te.

Com o esforço que fiz, consegui prender-lhe um joelho no meio das minhas

pernas.

Até bufava com dores.

— Rende-te — repetiu com ar agressivo — ou vais chamar o teu pai para te defen-

der? Ah, não. Já me esquecia que se despediu à francesa, não foi? Abandonou-vos…

Toda a raiva acumulada durante semanas surgiu em mim, como um vulcão. Pus-

-me a esbracejar em todos os sentidos, a atacar com os pés, punhos e dentes.

Não sei como foi possível, mas acabei por cima e Harry por baixo. Tinha os

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punhos cerrados à volta do pescoço dele e gritava:

— Não nos abandonou! Vais retirar imediatamente o que disseste.

Harry abafava, sem conseguir libertar-se. Os meus braços ficaram duros como

duas barras de aço. Podia tê-lo morto naquele instante, e ele sabia. Pôs-se a gaguejar:

— F…Frank, socorro!

Levantei os olhos, pronto a atacar Frank no caso de ele fazer um gesto. Mas não,

mantinha-se afastado, sem esboçar um só gesto de ajuda ao irmão. Na verdade,

sorria, como se tudo aquilo lhe desse prazer. Foi isso que me acalmou, acho eu: o

facto de Harry, o próprio irmão, ter raiva dele. Larguei-o. Ficou uns momentos deitado

a esfregar o pescoço e a pigarrear para retomar fôlego. Depois lá se levantou. Eu não

me sentia lá muito orgulhoso do que tinha feito.

— Olha lá, Harry…

— O que é?

Ele estava furioso.

— E se esquecêssemos tudo isto e recomeçássemos do zero?

Estendi-lhe a mão. Harry olhou para a palma da mão que lhe oferecia, depois para

o grupo que se tinha formado à nossa volta. Cuspiu-me na mão e fugiu.

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Abanei a cabeça e limpei a mão na neve. Frank continuava ali. Olhámos um para

o outro, e depois estendeu-me a mão. Apertei-lha com um sorriso. Retribuiu-me o

sorriso e lá seguiu no rasto do irmão.

— Tenho de ir.

— Ninguém te obriga.

Frank olhou à volta, e depois na direção do irmão. Respondeu:

— Sim. É meu irmão.

— Compreendo. Mas volta quando quiseres, está bem?

— Está… Talvez. Obrigado.

Mickey correu ao assalto da “montanha” de neve aos berros:

— Anda, Dan!

— Não, obrigado. Estou estourado.

Sentado na base, fiquei a vê-los por uns momentos.

Mas Luther White e a mãe não me saíam do pensamento. Como teriam vivido

estes últimos meses para terem chegado àquele ponto? Onde estariam os outros

membros da família? E o pai, será que os abandonou?

De repente, interroguei-me sobre o meu próprio pai. Ter-nos-á abandonado, como

afirmou Harry? Não, eu conhecia o meu pai, ele nunca teria… Mas … e se tivesse

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mudado como Luther e a mãe? Como sabê-lo? Quanto tempo mais poderíamos ficar à

espera dele, a minha mãe e eu?

Subi para jantar, com a cabeça cheia destas perguntas. Mas, ao abrir a porta,

deparei com a minha mãe sentada à mesa, com papel de carta à frente.

Continuávamos à espera.

♦♦♦♦♦♦

33

Quinta-feira, 17 de fevereiro de 1933

Não sei lá muito bem quando é que a ideia de ir à procura do meu pai me veio à

cabeça, mas desde então não me larga. Tornou-se o mais importante da minha vida.

Ainda não sei quando partirei. Tenho de esperar pelo menos até o bebé nascer e

talvez até ao final das aulas. Ouvi um programa de rádio sobre “histórias verídicas de

detetives” para aprender como se resolvem enigmas e como se faz uma fábrica de

fiação.

Já tenho um indício: New London no Connecticut. Foi de lá que o pai nos mandou

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a carta. Não deve ser difícil encontrar alguém que o tenha conhecido: mostro uma

fotografia e logo me dizem que direção tomou. Passo o tempo a imaginar como será

quando o encontrar, o que dirá quando me vir e como reagirá a minha mãe quando eu

o trouxer de volta para casa. Todos estes projetos, e o facto de saber que vou sair de

casa, tiram-me um peso do coração.

Gostava de poder falar deste assunto à minha mãe, para a ajudar a suportar a

espera, mas é impossível. Nunca me deixaria ir.

Agora, tem muitas vezes dores de cabeça e as pernas inchadas, como quando

estava à espera de Maureen.

Há quinze dias, mais ou menos, estava ela a passar a ferro, quando pousou de

repente o ferro e se deixou cair para uma cadeira com a cabeça entre as mãos. Dei

um pulo:

— Vou chamar o Dr. Davis.

— Não, não! São tonturas. Isto vai passar.

— Sabes que não é verdade, mãe. É de novo aquela doença. Olha para as tuas

pernas: estão tão grossas como as da Sr.ª Tharp, que já é velha.

Dirigiu-me um sorriso tímido.

Page 231: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— Obrigada pelo elogio. Mas está tudo bem, garanto. Se precisar do médico, eu é

que o chamo.

— Não acredito. És demasiado orgulhosa para o chamares, sem teres dinheiro

para lhe pagar.

— Tenho orgulho sim, Danny. Mas não sou assim tão tola que sacrifique a minha

vida.

Fui demasiado ingénuo ao acreditar nas suas palavras. Fiz mal. Hoje, quando

cheguei a casa, vi o chapéu do Dr. Davis em cima da mesa da cozinha, o quarto da

minha mãe com a cortina corrida e a Sr.ª Riley a lavar panos ensanguentados na

banca da cozinha.

Viu-me empalidecer e disse-me:

— Não te preocupes assim tanto, Danny. Não tem ares de estar muito mal. São só

algumas perdas de sangue. Vai lá para fora agora. Chamo-te quando o doutor tiver

acabado.

— Não!

Já ia a caminho do quarto, mas a Sr.ª Riley barrou-me a passagem.

— Se entrares agora, só vais incomodar a tua mãe. Vamos, vai lá para fora.

— Não vou.

Page 232: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

De mãos na cintura, sacudiu a cabeça.

— És teimoso como uma mula! Está bem, podes ficar, mas sentas-te numa

cadeira, quietinho até o doutor sair do quarto!

Maureen estava sentada no chão a brincar.

Peguei nela ao colo e fiz o que a Sr.ª Riley me disse.

De trás da cortina vinha um murmúrio de vozes e eu pus-me à escuta, mas a Sr.ª

Riley não parava de falar sozinha como se quisesse impedir-me de ouvir. A conversa

foi subindo de tom e a Sr.ª Riley pôs-se a falar cada vez mais alto para eu não ouvir.

— Porque grita tão alto?— perguntei eu.

Mostrou-me um riso nervoso.

— Eu grito? É o hábito. Lembra-te que tenho nove filhos. As meninas estão

sempre a dizer: “Mãe, falas demasiado alto”, e eu nem sequer dou conta. Às vezes

digo para os meus botões que…

Eu já não ouvia o que ela dizia. A minha mãe e o doutor estavam também a falar

muito alto e ouvia-os perfeitamente

— Não quero! — dizia a minha mãe.

— Olhe que põe em perigo a vida do bebé e a sua!

— E passar a roupa a ferro, quem o faz?

Page 233: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— Devia ter pensado nisso há seis meses … Eu bem a preveni. Se tivesse mais

uma gravidez, a sua vida corria perigo.

Senti um arrepio gelado na espinha e pus-me a apertar Maureen com mais força.

A resposta da minha mãe foi imediata:

— Sou católica, doutor.

— Você é uma tonta, sabe? Não vê que tem dois filhos que precisam de si?

No pesado silêncio que se seguiu, lancei um olhar à Sr.ª Riley.

Meneou a cabeça e fez uma careta:

— Não faças caso. Exagera sempre, gosta de assustar as pessoas.

O médico retomou a palavra mas num tom mais calmo.

— Vou tratá-la a si e ao bebé, mas aconselho-a seriamente a ficar de cama. Virei

vê-la sempre que puder. Ao primeiro sinal de sangue, mande o seu filho chamar-me.

Está bem?

A minha mãe murmurou qualquer coisa.

Instantes depois, o doutor afastou o reposteiro do quarto. Dirigiu-nos um pequeno

gesto com a cabeça e saiu sem proferir palavra.

A Sr.ª Riley olhou para ele com ar recriminatório.

— Que mal-educado! Se não fosse tão bom médico, já o tinha mandado dar uma

Page 234: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

volta há muitos anos.

Depois pegou na minha irmã e fez-me sinal que podia entrar no quarto.

A minha mãe estava deitada na cama, os olhos virados para o alto, prestes a

chorar.

— Danny, o que vamos fazer?

Lembrei-me do que ela me tinha dito: escrever ao meu pai dava-lhe coragem,

mesmo não sabendo para onde enviar as cartas. Então, fui direito ao armário e trouxe-

lhe papel de carta.

— Mãe, toma. Vais escrever ao pai e eu vou aprender a lavar e a passar a roupa a

ferro.

♦♦♦♦♦♦

34

Sexta-feira, 11 de março de 1933

Parecia tudo tão fácil quando a minha mãe trabalhava! Nunca me tinha dito que

era preciso um jeito particular para tratar da roupa. E no entanto…

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Ao fim de uma semana, já andava com dores nas costas de manhã à noite, e

tinha as mãos vermelhas e esfoladas em carne viva… e não conseguia tirar do nariz

aquele cheiro a sabão, por mais que me assoasse, a ponto de quase arrancar o nariz.

As mãos e os braços tinham marcas de queimadura, e até o queixo — não me

perguntem como é que fiz isto!

Multiplicando por dois estas torturas, já fazem ideia de como estava no final da

segunda semana. Não sabia com que fazer de comer, e não teríamos sobrevivido sem

a ajuda dos nossos vizinhos.

Sábado passado, apesar do encorajamento da minha mãe, sentia-me

completamente desanimado! A única coisa que me animou foi a cerimónia de posse

de Roosevelt: tinha esperança que compusesse as coisas. A minha mãe e eu ficámos

junto do rádio a ouvir o seu discurso.

— Estou certo — disse ele — que os meus compatriotas americanos esperam de

mim, no dia da minha chegada à presidência, que me dirija a eles com toda a

franqueza e lhes fale das soluções que a situação atual da nação exige.

Pronunciou ainda mais umas palavras muito solenes e depois disse algo que me

deu esperança:

— Esta grande nação durará como durou até aqui, voltará a viver e prosperará. E

Page 236: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

para começar, eis a minha mais firme convicção: a única coisa que devemos temer é o

próprio temor.

Continuava a falar e eu comecei a acreditar nele.

A América é capaz de sair da Crise, e se ela é capaz disso, o que me impede a

mim de levar até ao fim a tarefa de lavagem de roupa? Voltei pois ao trabalho, mais

determinado do que nunca e, ao fim de uma semana, resolvi cientificamente o

problema do tratamento de roupa.

À noite, ponho a roupa de molho na banheira. Levanto-me às quatro e meia da

manhã, esfrego-a, ensaboo-a e passo-a por lixívia. Depois enxaguo-a. Volto a

mergulhá-la na banheira com branqueador. Saio a engraxar sapatos e regresso. E é só

enxaguar, torcer, estender.

Depois de tudo isto, vou para a escola. Quando volto, apanho a roupa, borrifo-a,

enrolo-a. Deveres, preparação do jantar. Enquanto passo a ferro, ouço rádio. Dou

banho à minha irmã, meto-a na cama e ponho outro monte de roupa de molho para o

dia seguinte.

Depois, continuo a passar a ferro até ir dormir.

Não tenho tempo para mais nada. Há semanas que não vejo nem Mickey nem

qualquer outro colega, a não ser na escola.

Page 237: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

Mas começo a ficar perito e, esta manhã, quando estava a carregar o carro de

roupa lavada para levar a Miss Emily, sentia-me mesmo vaidoso.

Sadie recebeu-me na cozinha, mas contrariamente ao habitual, tinha ares de

maldisposta.

— O que tens?

— Nada, meu menino. Não te preocupes.

De ar distante, ia e vinha da banca para o forno com um pano da loiça na mão, e

não havia meio de ir avisar Miss Emily de que eu tinha chegado.

— Diz lá, Sadie, bem vejo que estás preocupada.

Olhou para mim com um ar esquisito e as lágrimas começaram a correr pela cara

abaixo.

— Foi o banco. Fecharam as portas assim sem mais, sem prevenir.

— Ah! Já sei disso. Não te preocupes. — Na escola explicaram-nos o que é a crise

bancária. Até me senti inteligente.— O presidente Roosevelt fechou os bancos para

evitar que as pessoas entrem em pânico e levantem todo o dinheiro, mas é por pouco

tempo. O teu banco vai abrir: a maioria já o fez.

— Gostava de acreditar no que dizes, mas o prazo acabava na quinta-feira e o

meu banco continua fechado.

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É verdade que muitos bancos fecharam desde o início da crise, e muita gente

perdeu as suas economias. É muito provável que o banco de Sadie acabe por abrir as

portas, mas compreendo que ela esteja preocupada.

— Puseste muito dinheiro de lado?

A enrolar o pano nas mãos, lá foi dizendo:

— Há dez anos que todas as semanas ponho qualquer coisa de lado. Nunca disse

nada a ninguém, nem ao meu marido. O meu filho Jim é muito inteligente. Então dizia

cá para os meus botões “Sadie, o teu filho vai ser alguém na vida. Tem estofo, o rapaz.

Mais tarde, vais ter de lhe pagar os estudos.”

Grossas lágrimas saltavam-lhe dos olhos que limpava com o pano da cozinha.

— Estás a ver, — dizia entre soluços — agora que chegou o momento, o banco

fecha. Quem podia prever uma coisa destas?

Um suspiro de cortar o coração fê-la erguer o largo peito. Eu não sabia o que

dizer. Algo forte e reconfortante… De repente, lembrei-me do discurso do presidente

Roosevelt. Pousei a mão no braço dela e declarei solenemente:

— Sadie, só temos de ter medo do próprio medo!

Olhou-me fixamente por um instante, e depois o seu rosto abriu-se num largo

sorriso. Um riso irreprimível subiu do mais fundo de si, inclinou a cabeça para trás, deu

Page 239: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

umas fortes gargalhadas até que as lágrimas lhe correram pela face. Eu olhava para

ela com estupefação.

— Santo Deus!— exclamou ela, retomando o fôlego. — Não há como uma boa

gargalhada para pôr as ideias no sítio. Obrigada, meu rapaz!

Sacudi os ombros, contente por lhe ter prestado um serviço, mas duvidoso quanto

à certeza das coisas.

— Um minuto, menino. Vou dizer à Miss Emily que chegaste.

Pus-me a descarregar o carrinho. Instantes depois, Sadie voltou para a cozinha,

estranhamente pálida. Pegou-me na mão para me dar o dinheiro e manteve-a

apertada nas suas. Comecei a ficar com medo.

— Sadie, o que se passa?

Apertou-me ainda mais, com ar desolado.

— Miss Emily… Miss Emily disse que o trabalho da tua mãe deixa muito a desejar,

ultimamente. Já arranjou outra tratadora de roupa.

Fiquei de boca aberta.

— Oh, não, Sadie. Não é possível. Tem de compreender… A culpa é minha. A

minha mãe está à espera de bebé, está doente. Há duas semanas que sou eu que

trato das roupas, mas agora já sei como se faz. Olha, está impecável…

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Tirei uma toalha do monte para lhe mostrar.

— Estás a ver? Leva-lha, por favor, e pede-lhe que me dê outra oportunidade.

— Calma, calma — respondeu Sadie com a toalha na mão. — Lembra-te do que

me disseste sobre o medo. Vou ver o que se pode fazer.

Voltou a desaparecer. Pus-me de joelhos e comecei a rezar.

— Meu Deus, por favor, faz com que me dê uma segunda oportunidade.

Por uns momentos, não ouvi nada. Depois, Sadie desatou a berrar:

— Acabo de lhe dizer que a mãe está doente! Sacrificou-se tanto! Veja esta

toalha, está bem passada, não está?

— Tem aqui um vinco!

— É tão pequeno que mal se vê. Pense na mãe dele, Miss Emily. Trabalhou

sempre bem para si.

— É verdade, mas para isso lhe paguei. Não lhe devo nada. Nos tempos que

correm, essa gente não devia reproduzir-se como coelhos. É uma estupidez.

Imediatamente a seguir, Sadie entrou de rompante na cozinha e pôs-me de pé.

— Não te ponhas de joelhos, rapaz. Aqui é a casa do pecado!

Tirou o avental e pendurou-o num prego, depois pegou no casaco comprido.

— Vamos os dois embora, tu e eu! E nunca mais cá pomos os pés!

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Apesar da cólera e da angústia, eu ainda intuía que tinha o dever de não a deixar

cometer uma tal asneira. Puxei-lhe pela manga do casaco:

— Não, Sadie. Não vais fazer uma tolice dessas.

— Ai, sim! Podes crer.

— Escuta o que te digo. Pensa no Jim e nos outros filhos. Não é fácil encontrar

trabalho nos tempos que correm, sabe-lo bem. Até me disseste que o teu marido

estava desempregado. Não podes fazer isso à tua família.

Acalmou. Imóvel, de ombros descaídos, lançou um enorme suspiro, como para se

libertar. Lentamente, tirou o casaco e voltou a pendurá-lo. Depois, deu-me um abraço

muito apertado.

— Lembra-te duma coisa, rapaz. O caminho que agora percorremos é curto, muito

curto. A grande estrada virá mais tarde. E então, podes ter a certeza duma coisa:

gente como Miss Emily, que passa esta vida a desprezar os outros, não será tão altiva

no outro mundo.

♦♦♦♦♦♦

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35

Sexta-feira, 31 de março de 1933

A minha mãe não deu a saber aos vizinhos que tinha perdido o emprego. Não

queria que se privassem para nos ajudar, disse que nos desenvencilharíamos bem

sozinhos.

Andei de porta em porta, de loja em loja a pedir trabalho, o que quer que fosse,

mas não encontrei nada. Todos os momentos livres, passei-os na rua com a caixa de

engraxar, mas cada vez há mais engraxadores e menos clientes.

Na hora das refeições, pensava no meu pai. Não suportava ver-me a comer

porções que podiam estar no prato da minha mãe ou no de Maureen. Eu, com força e

saúde, a tirar o pão à boca de uma criança e de uma doente! Até que me ocorreu dizer

à minha mãe que tinha encontrado trabalho num restaurante onde, a troco de lavar a

loiça, me davam de comer ao meio-dia. Protestou que era escravatura, mas insisti

tanto que ela acabou por me autorizar.

Então, deixei de vir a casa almoçar e à noite, ao jantar, a pretexto de que ainda

estava saciado com a refeição do meio-dia, dava metade do meu quinhão à minha

Page 243: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

mãe e a Maureen.

Tudo correu bem durante duas semanas. Mas hoje, ao subir as escadas, de

repente senti que tudo girava à minha volta e caí. Quando vim a mim, estava ao fundo

das escadas, com dores nas costas e na cabeça, rodeado de um bando de Rileys.

— O que é estão para aí a olhar?

— Para ti— respondeu Maggie.

— Porquê?

— Acabas de desmaiar e quase nos ias fazendo cair pelas escadas abaixo. Não

achas que temos o direito de achar isso estranho?

A resmungar, lá me levantei. Mas de repente luzes de todas as cores começaram

a dançar diante dos meus olhos e caí de novo.

— Danny?

A voz de Maggie chegava até mim através de um nevoeiro cerrado.

— Queres que chamemos alguém, Danny?

— Não, deixem-me em paz.

Ouvi-a dizer aos irmãos que subissem. Depois, pôs-me o braço dela debaixo da

cabeça.

— Anda, levanta-te devagarinho… Não faças força. Apoia-te em mim.

Page 244: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

Quase sem força para discutir, obedeci.

Sentia a cabeça às voltas e custava-me estar sentado.

— Baixa a cabeça e segura-a entre os joelhos por uns instantes.

Fechei os olhos e fiz como ela dizia.

As vertigens passaram e abri de novo os olhos. Já nada dançava…

Maggie olhava fixamente para mim.

— Estás morto de fome.

— Não, palerma. É só…

— Não sou palerma. Bem vi que já não havia lençóis a secar há pelo menos

quinze dias. A tua mãe e Maureen parecem andar bem, mas tu, tu andas morto de

fome. Porquê?

É muito esperta, a Maggie. Ninguém a engana. Contei-lhe tudo, até mesmo o

estratagema do restaurante. Abanou a cabeça.

— Não está mal o que fizeste, mas esqueceste-te duma coisa.

— De quê?

— Se continuas assim sem comer, não terás força para engraxar sapatos. E,

depois, o que é que fazes?

— Não sei. Só sei que não posso comer ao lado delas. Não há comida para todos.

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— Mas podes fazer doutra maneira.

— Como?

Antes de responder, perguntou-me a sorrir:

— Podes levantar-te?

— Acho que sim.

Maggie pegou-me pelo braço, levantei-me e fiquei parado, de pé, ao lado dela.

— Podes andar?

— Sim, já estou melhor.

— Então vamos.

— Onde?

— Jantar.

— Jantar?

— Segue-me e não faças perguntas.

Levou-me para trás da padaria e bateu à porta de serviço. Um homem gordo de

avental veio abrir. Tinha os braços peludos cheios de farinha. Um perfume delicioso a

pão quente pairava no ar e começou-me a crescer água na boca. O padeiro parecia

bem-disposto.

— Bom dia, Maggie. Como vais?

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— Bem, Sr. Lizauskas. Tem pão atrasado?

— Guardei-te uns bons nacos fresquinhos.

Entregou-lhe um pequeno saco de papel.

— Obrigada, Sr. Lizauska.

— De nada, Maggie, de nada.

Mal a porta se fechou, abriu o saco num gesto afirmativo.

— Uau! Formidável…

— Mas, Maggie, — protestei — isso é mendigar!

Tomou ares de quem se finge chocada.

— Não! Ora essa!

— Não sejas parva. Sabes que não devemos andar a pedir.

— Muito bem, senhor aristocrata. Sente-se no seu trono e deixe-se lá ficar até

quando quiser! Mas arriscas-te a morrer à fome.

Furiosa, virou-me as costas e levou o saco.

A ideia de que aquele pão saboroso me passara debaixo do nariz era insuportável.

Corri atrás dela.

— Desculpa, Maggie, tens razão. Somos demasiado pobres para sermos

exigentes.

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Fez beicinho até à loja de cachorros quentes do Sérgio, ao fundo da rua.

Chegados ali, tirou os dois pedaços de pão e barrou-os abundantemente com

mostarda. Pensava que Sérgio se zangasse, mas ele nada disse. Ela cumprimentou-o

com ar muito gracioso.

— Obrigada, Sérgio.

— Ao seu dispor, Miss Maggie — respondeu, cumprimentando-a no mesmo tom.

Depois, virando-se para mim e entregou-me uma fatia.

— Toma, mas não a comas imediatamente.

Custou-me obedecer-lhe. Crescia-me água na boca. Continuámos o nosso

caminho até à charcutaria, onde Maggie recebeu um pedaço de salame e outro de

queijo. Entregou-me o salame com uma explicação.

— Provoca-me mau hálito. Agora podes comer. Tudo o que recolhermos daqui

para a frente, levamo-lo para casa.

Sentados numa ruela, saboreámos aquela refeição. E, apesar dos protestos da

minha consciência, regalei-me bendizendo aqueles comerciantes.

— São sempre assim tão generosos?

— Achas? Alguns até te cospem em cima, mas a esses evitamo-los. A maior parte

das pessoas dispõem-se a partilhar aquilo que lhes sobra.

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— Mas está muito bem assim.

— Sem dúvida. Sentes-te melhor?

— Muito melhor.

— Ótimo. Então, vamos embora.

A etapa seguinte era a bancada do dono das Quatro Estações que nos deu alguns

tomates rachados e algumas batatas um pouco estragadas. Um comerciante de fruta

deu-nos bananas demasiado maduras, e outro, cebolas que começavam a apodrecer.

O homem do talho, uns ossos e pescoços de frango.

Por fim, chegámos às traseiras do convento de Santa Cecília, onde um grupo de

crianças esperava pelos restos do almoço das religiosas. Para minha grande surpresa,

Kitty estava lá. Quando me viu, ficou tão incomodada como eu, aliás como os outros

miúdos.

— Não há problema — declarou Maggie.— Este é o Danny e responsabilizo-me por

ele.

Bastaram aquelas palavras para restabelecer a calma.

— Cada um tem o seu trajeto — explicou-me ela.— Recolhemos o máximo que

pudermos, e depois vimos aqui partilhar. Vou mostrar-te outros trajetos e podes

desenvencilhar-te sozinho.

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— Eu, sozinho?

— Claro. Assim conseguimos mais coisas.

— Estás a dizer que… Tenho de mendigar?

Maggie recuou como se lhe tivesse dado uma bofetada, com os olhos a brilhar de

cólera. Arrancou-me o saco da comida que me tinha dado e, sem mais palavra, foi-se

embora.

Depois, Kitty dirigiu-se a mim, corada de vergonha.

— Não fales disto ao Mikey.

E foi a correr atrás da irmã.

Os miúdos olhavam para mim, incomodados, alguns com antipatia. Para eles

voltei a ser um elemento hostil. Reuniam-se em segredo, levados pela necessidade, e

um novo membro no grupo significava uma diminuição do seu quinhão. No entanto,

tinham-me aceitado. E agora, para cúmulo, dava-me ao luxo de os desprezar!

Incapaz de suportar aqueles olhares acusadores, desatei a correr em direção ao

túnel para me juntar às gémeas. Gritei:

— Maggie, espera por mim!

Mas ela fez de conta que não ouviu e pôs-se a correr ainda mais depressa.

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Apanhei-a à saída do túnel e segurei-a pelo braço, enquanto Kitty continuava a

correr. Maggie debatia-se e batia-me com a mão livre:

— Larga-me!

Bruscamente, comecei a ver tudo à roda. Tinha corrido demasiado depressa e por

muito tempo. Senti-me cair para trás, bati com a cabeça na parede do túnel e

desmaiei. Antes de perder a consciência, ouvi Maggie a fugir.

— Danny? Danny? Estás bem?

Entrevi o rosto de Maggie que se deformava-se de uma forma estranha diante dos

meus olhos.

— Julguei… Julguei que tinhas ido embora.

— Sim, e tinha feito melhor se não voltasse atrás.

— Mas voltaste.

— Voltei e não me perguntes porquê. Estás melhor, sim ou não?

Apalpei a bossa da cabeça. Não havia sangue.

— Mais ou menos, acho eu.

— Então adeus.

Ia fugir outra vez! De um salto pus-me de pé.

— Espera, Maggie!

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Mas voltei a vacilar e tive de segurar a cabeça com as mãos.

Depois, senti um braço em redor dos meus ombros. Maggie resmungava:

— És mesmo um palerma de primeira! Anda, vou levar-te a casa.

Apoiado nela, saí do túnel. Quando chegámos diante do prédio, sentei-me na

soleira da porta até recuperar forças.

— Agora já podes ir sozinho — disse Maggie.

— Espera— respondi, pegando-lhe na mão.

Desta vez não a afastou.

— Maggie, lamento muito o que disse há pouco. Não me considero melhor do que

tu, juro. Pelo contrário, tu és superior a mim. O que acontece é que não estou

habituado a pedir. O meu pai sempre me disse que a nossa dignidade…

Aqui interrompeu-me num ímpeto fogoso.

— Tu sabes o que é a dignidade? É uma palavra inventada pelos ricos para aliviar

a consciência quando pensam nos pobres. “Não os ajudamos para não os ferir na sua

dignidade…” Eu, Danny, não posso ser digna enquanto não tiver nada para comer.

— Não concordo.

Desviou os olhos. Então eu disse:

— Obrigado por tudo.

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— Porquê?

— Por me teres mostrado os teus companheiros. Também me vou habituar.

— Não! — respondeu tranquilamente. — Mendiga-se porque se é obrigado, mas

nunca nos acostumamos.

♦♦♦♦♦♦

36

Quando cheguei a casa, encontrei a minha mãe sentada à mesa da cozinha. Tinha

vestido o roupão mais bonito dos dois que possuía de grávida, mas preocupou-me a

sua palidez.

Estava esgotada.

— Que fazes a pé?

— Saí.

— Onde foste?

— Ao centro de ajuda social.

Aquelas palavras atingiram-me como um soco.

— Pediste ajuda?

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Desviou os olhos sem dizer palavra.

— Mas porquê, mãe?

— Não sou cega, Danny. Tu estás a definhar. Esse restaurante que te alimenta ao

meio-dia não existe.

Era a minha vez de desviar os olhos sem dizer nada.

A minha mãe abanou a cabeça, com um suspiro.

— Eu devia ter duvidado mais cedo.

Tinha um ar tão triste, tão desanimado, que me pus de joelhos junto dela.

— Não tem importância, mãe. Não vamos precisar de ajuda pública por muito

tempo, é só um mau bocado. Olha: eu também andei a pedir.

Entreguei-lhe o saco que Maggie me tinha dado.

— Tu fizeste isso, Danny?

— Abre o saco e já vês.

— Meu Jesus, ao que chegámos!

A minha mãe já não sabia se era para rir ou para chorar.

Então sorri e desatámos os dois à gargalhada.

— É horrível!— dizia ela entre soluços.

— Espantoso!

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E ríamos à farta. De repente, o riso da minha mãe apagou-se e desatou a chorar,

com o rosto entre as mãos.

— Mãe, o que foi?

— Desculpa. Tu, meu filho, andares a mendigar… E depois essa gente, no

gabinete da ajuda social… Se soubesses… Viraram-se para mim, fizeram perguntas

sem fim, para no final me darem isto!

Despejou o porta-moedas em cima da mesa. Seis dólares e mais uns trocos.

— Só isso?

— É tudo. Seis dólares e sessenta cêntimos por semana. Dá para pagar o aluguer,

mas não sei como vamos comer.

— Havemos de conseguir, de uma maneira ou de outra. Não te preocupes.

Abracei-a e ficou mais calma. Depois teve uma ideia:

— Claro! Como é que não pensei mais cedo? Vamos vender os móveis da sala.

— Os móveis da sala?

Eu não podia acreditar no que estava a ouvir. Aqueles móveis eram a menina dos

seus olhos. O meu pai e ela tinham feito economias durante anos para os pagarem.

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Lembro-me ainda do dia em que foram entregá-los. A minha mãe pegou na saia

com as duas mãos e instalou-se no sofá, feliz como uma adolescente, e perguntou

Quem pareço?

— Uma rainha, meu amor— respondeu o meu pai. — És linda como uma rainha…

Não, por nada deste mundo deixaria vender aquela linda mobília de sala.

— Nem pensar.

— A minha decisão está tomada — declarou. — Amanhã, ponho um anúncio à

entrada do prédio.

— Mas não te vão dar sequer um décimo do que valem! Mais vale dá-los!

— Um décimo é melhor do que nada.

E calou a boca com ares de quem diz: acabou-se a discussão.

Naquele momento bateram à porta.

— Vai ver quem é, Daniel.

Fui abrir a porta da sala. Ao olhar para os móveis tive vontade de chorar. E para

cúmulo, a porta abriu-se e dei de caras com… o Sr. Twiddle!

— Venho receber as quotas do seguro!— declarou com um sorriso rasgado.

Deu-me vontade de lhe cuspir na cara. Mas contive-me.

— Um momento, por favor.

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De regresso à cozinha, anunciei com ar de enfado:

— É aquele vampiro do Twiddle.

A minha mãe elevou os olhos ao céu.

— Mãe, não lhe pagues. Já viste o que podemos comprar com esses vinte e cinco

cêntimos?

Mas a minha mãe pegou numa moeda que estava em cima da mesa, lentamente,

como se estivesse muito cansada.

— Não. Tem de se pagar. O teu pai dizia que acontecesse o que acontecesse, não

se devia …interromper… o seguro.

Pronunciara aquelas últimas palavras com uma voz tão fraca, tão apagada…

Quando olhou para mim, li neles um pavor atroz. Respirava por saltos, como quem vai

começar a chorar.

— Mãe, que tens?

— Nada, nada, meu querido.

Desviou a cabeça e apertou as mãos sobre o peito.

— Tens a certeza? Não é o bebé, ao menos? Não estás doente?

— Não, meu querido. É… Vai pagar ao Sr. Twiddle, não te preocupes comigo.

Quando voltei para a cozinha, a minha mãe respirava normalmente, mas conti-

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nuava muito pálida.

— Ajuda-me a ir para a cama, Danny. Sinto-me um pouco fraca.

Instalei-a sobre as almofadas. Tinha de facto um ar muito cansado.

— Queres que chame o doutor?

— Não vale a pena. Deixa-me dormir um pouco.

Tapou a cara com o lençol e adormeceu.

Voltei para a cozinha e meti os pescoços de frango numa panela.

Detestava o Sr. Twiddle, que tantos aborrecimentos causava à minha mãe.

♦♦♦♦♦♦

37

Acordei a meio da noite com uma vontade terrível de fazer chichi.

Que ideia a minha de ter bebido três malgas de caldo antes de ir para a cama!

Não me apetecia nada trocar a minha cama fofa pela escuridão repugnante do

quarto de banho. Fiquei de pé, imóvel por uns instantes, a tentar convencer-me que

podia esperar até de manhã.

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Mas o meu corpo não quis ouvir-me. Ou me levantava ou molhava a cama. Ora,

como já não tenho idade de molhar a cama, com muito esforço lá saí dos cobertores.

Para não acordar a minha mãe nem a minha irmã, passei pela sala. Tonto de

sono, às apalpadelas, lá encontrei a porta que dava para o patamar da escada. No

momento de rodar o puxador, o batente abriu-se de repente e alguém, muito alto,

precipitou-se para dentro da sala. No escuro, era impossível saber se se tratava de um

homem ou de um demónio.

Inspirei com quanta força tinham os pulmões, o que produziu um enorme ruído:

— Huuuuuh!

A sua estatura dominava-me, olhos loucos a saltarem das órbitas e a respirar com

grande ruído. Eu estava paralisado de medo. Queria correr, pedir ajuda, mas não

conseguia emitir qualquer som.

O homem avançou para mim. Desta vez gritei. Uma grande mão abateu-se sobre

a minha boca, e com a outra agarrou-me para me apertar contra o seu peito. Debatia-

-me como um bom diabrete, mas ele era muito mais forte do que eu.

Depois, bruscamente, a luz acendeu. A minha mãe estava na porta da cozinha

com uma faca na mão. Nesse instante, os Riley desarvoraram de casa como um dique

que rebenta.

Page 259: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

O homem largou-me e levantou os braços em sinal de submissão.

— Não lhe queria fazer mal, juro.

A minha mãe avançou de ar ameaçador. A faca tremia-lhe na mão, mas o rosto

apresentava uma determinação feroz.

O homem não parava de repetir:

— Eu não lhe queria fazer mal, minha senhora. Acredite que não faço mal a uma

mosca. Só que… Meteu-me medo a gritar daquela maneira.

— Quem é o senhor?— perguntou a minha mãe sempre com a faca apontada para

o homem.

— Chamo-me Powers. Hank Powers.

Agora, à luz, tinha um aspeto muito mais inofensivo. Muito alto, pouco faltaria

para dois metros, com cara de bom americano: um pouco como Abraham Lincoln, mas

de cabelos louros. A sua magreza era extrema e tinha dois círculos negros à volta dos

olhos.

— Powers?— repetiu a Sr.ª Riley olhando para ele com ar perscrutador, de cabeça

inclinada.

O intruso passou a língua pelos lábios secos e gretados.

Notei também que transpirava fortes gotas de suor.

Page 260: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— Sim, m’nha senhora — respondeu. — Conhece certamente o meu irmão Bert:

vive aqui no prédio. Subia as escadas para o visitar e parei neste patamar. Devo

ter-me encostado à porta por uns instantes e nesse momento o menino abriu, foi o

que aconteceu.

A minha mãe e a Sr.ª Riley trocavam olhares de entendimento. Vendo bem,

aquele desconhecido parece-se um pouco com o tal Powers do quarto andar.

A minha mãe baixou a faca.

— Mas… Bert Powers saiu daqui com toda a família, há dois meses.

O homem ficou desnorteado.

Vacilou e começou a gaguejar. Os olhos davam voltas dentro das órbitas.

— Mmmmudou de casa? Mas…co…co…como foi?

— Foram expulsos. Não podiam pagar a renda.

O homem sucumbiu, pôs-se a abanar a cabeça, de olhos fixos no chão como

alguém que já não pode mais. A minha mãe tomou a palavra.

— O senhor sente-se bem?

Não respondia. Continuava a abanar a cabeça como se a quisesse separar do

pescoço.

A Sr.ª Riley avançou para ele e tocou-lhe nos ombros.

Page 261: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— Ó senhor?

Àquele contacto, o homem deu um passo em frente, deixou-se abater sobre um

joelho, deslizou para o lado e ficou estendido no chão a todo o comprimento. Rápida

como um relâmpago, a Sr.ª Riley pousou-lhe a mão na testa.

— Meu Deus! Está a arder com febre. Maggie, Kitty, ajudem-me a levá-lo para o

divã. Danny, veste-te e vai chamar o Dr. Davis.

Olhei para ela e depois virei-me para a minha mãe:

— Não vamos metê-lo em casa!

A minha mãe hesitou por uns instantes. Depois, foi pousar a faca em cima da

mesa e debruçou-se sobre o doente.

— Faz o que a Sr.ª Riley te disse, Danny.

— Mas, mãe, não o conhecemos de lado nenhum!

— Está doente e precisa de nós, isso basta.

— Mas, mãe…

Pôs o dedo sobre os lábios a indicar que me calasse.

— Talvez a esta hora alguém esteja a fazer o mesmo pelo teu pai.

♦♦♦♦♦♦

Page 262: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

38

Quinta-feira, 6 de abril de 1933

Hank não tardou a recompor-se.

“Não é uma qualquer gripe que deita abaixo um tipo do Oklahoma”, dizia ele com

frequência.

O doutor tinha falado de pneumonia. Segundo ele, morto de fome e sem forças,

Hank tivera muita sorte em ter escapado à morte. Mas, pneumonia ou não, Hank

estava a pé ao fim de uma semana e tratava de nós melhor do que nós tínhamos feito

por ele.

Um dia em que lavávamos ambos a loiça, perguntei-lhe:

— Afinal, o que vieste fazer a Nova Iorque? É tão longe do Oklahoma…

— É verdade.

E prosseguiu:

— Sabes, perdi a minha quinta, depois morreu a minha mulher e durante uns

tempos fiquei meio maluco. Uma manhã acordei deitado no chão e o rosto cheio de

terra, e disse para comigo “Hank, não podes descer mais baixo. Tens de sair disto.”

Page 263: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

Levantei-me então, sacudi o pó e escrevi ao meu irmão Bert. Disse-lhe “ Caro irmão,

vou ter contigo à cidade. Não sei quando chegarei, mas vou meter-me a caminho”.

— E como vieste?

— A pé.

— Desde o Oklahoma?

— Pois… Fiz alguns pedaços do caminho à boleia ou pendurado em comboios,

aqui e ali. Mas a maior parte foi a pé.

— Quanto tempo levaste?

Enquanto refletia, Hank verteu um pouco de água quente na pia.

— Ora bem, estamos em março, não é?

— Não, princípios de abril.

Entregou-me uma tigela lavada para eu limpar, e pôs-se a contar pelos dedos.

— Dezembro, janeiro, fevereiro, março… Cerca de quatro meses, creio eu.

Abanei a cabeça enquanto limpava a tigela.

— O meu pai saiu daqui há quatro meses.

— Não é fácil fazer este caminho. Acontecem tantas coisas…

— Que tipo de coisas?

Hank areava o tacho dos flocos de aveia e esfregava com força.

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— A vida está difícil em todo o lado, nada menos do que aqui. Em todas as

cidades que atravessares encontras os mesmos cartazes “ Fechado”, “Vende-se”, nas

lojas, fábricas, em toda a parte. Até vi uma terra, na Pensilvânia, onde ninguém tinha

trabalho. Ninguém. E, depois, há muita gente na estrada. Homens, mulheres, famílias

inteiras. Camponeses que vão para a cidade. Gente da cidade que vai para o campo.

Todos pensam que é melhor noutro lugar. Uma vez contei mais de cem homens a

tentarem trepar para um comboio de mercadorias.

Hank esfregava cada vez com mais força, como se descarregasse a sua raiva

sobre a panela. Aterrado com o que ele me contava, começava a recear pelo meu pai.

Deve ter-se apercebido e mudou de tom.

— Felizmente que não é sempre assim tão duro. As pessoas entreajudam-se de

uma forma extraordinária. Uma vez, no Missouri, vi uma quinta que ia ser vendida em

leilão. A viúva já não tinha com que pagar. Pois bem, os vizinhos vieram às centenas

com pás, picaretas, enxadas e machadas, para impedir os leiloeiros de lá entrarem. É

verdade! Ninguém se atrevia a adquiri-la. Finalmente, um deles comprou a quinta por

um dólar e entregou-a à viúva. Em momentos difíceis como este, a solidariedade é

mais forte do que tudo o resto e, graças ao facto de as pessoas se ajudarem umas às

outras, havemos de sair da Crise.

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Era bonita a história que contava, mas não sei em que podia ajudar o meu pai.

Hank secou as mãos e agarrou-me amavelmente pelos ombros.

— Há montes de pessoas corajosas prontas a ajudar os que sofrem, meu amigo.

Pessoas como a tua mãe. Portanto, não percas a esperança, compreendes?

— Está bem, Hank.

— Bem, meu amigo. Agora vai ver se a tua mãe já acabou os flocos de aveia,

antes que eu deite fora a água da loiça.

A minha mãe estava na cama e tinha acabado de comer.

— Como está o Sr. Powers, esta manhã?— perguntou.

— Fresco como um alho!

Abanou a cabeça preocupada.

— Que se passa, mãe?

Baixou a voz.

— É que… não temos meios para o mantermos connosco, Danny. Mal há para

comer, e vamos ter de vender os móveis da sala. Tenho a renda atrasada dois meses.

Eu estava estranhamente triste. Era tão bom ter um homem em casa nestes

últimos tempos. Mas disse que sim.

— Vou falar com ele.

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Quando voltei para a cozinha, Hank estava a reunir as suas coisas dentro de um

lenço das mãos. Tinha o casaco vestido. Talvez nos tivesse ouvido.

— Vais-te embora?

— Sim. Vou mudar de casa!

— Para onde vais?

— Ainda não sei.

— Podias prestar-me um serviço?

— Claro, meu amigo.

— Se encontrares um Irlandês, alto, chamado Daniel Garvey, diz-lhe que volte

para casa.

A minha voz tremia um pouco. Desviei o olhar. Hank passou a mão pelos meus

cabelos.

— Prometo, amigo. Podes contar comigo.

♦♦♦♦♦♦

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39

Nessa mesma tarde, quando estava a acabar os deveres, ouvi uma pancada

suave na porta. Corri a abrir, mas a princípio vi apenas dois sacos enormes de papel,

cheios de comida, pousados em cima de duas pernas muito compridas.

A minha mãe chamou-me do fundo do quarto.

— Quem é?

Um imenso sorriso desenhou-se sobre os sacos. Gritei:

— É o Hank!— Nem acreditava no que via.

— Então? Não me mandas entrar, meu amigo? Não vais querer que fique aqui no

patamar a comer sozinho isto tudo…

Abri a porta para trás e Hank foi pousar os sacos em cima da mesa da cozinha.

— Mas, o que é que te aconteceu? Assaltaste um banco?

— Não, palerma, nos bancos não há dinheiro!

— Mas então…

— Eu explico, só tens de ter um pouco de paciência. Primeiro trata de arrumares

todas estas coisas boas. Vou buscar a tua mãe.

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Por sorte ainda estava suficientemente frio e usávamos o guarda-alimentos

porque já não tínhamos frigorífico. Arrumei todas as provisões, enquanto Hank ia

buscar um cadeirão para a cozinha e ajudava a minha mãe a sentar-se nele, com

almofadas e mantas. Para terminar, pôs-lhe os pés em cima de um tamborete.

Depois, pegou na minha irmã e sentou-se com ela ao colo. Fingia não nos ver, à

minha mãe e a mim, e só falava para ela.

— Sabes, Maureen, sempre ouvi contar histórias de tipos que tiveram sorte, que

estavam no lugar certo na hora certa. E eu dizia para comigo “Tu, Hank Powers,

porque estás sempre onde não deves estar, ou na hora errada?”

Maureen ouvia-o com atenção. Era estranho vê-la de boca aberta, a testa bem

vincada com ar de quem compreende exatamente o que estão a contar-lhe!

— É verdade — prosseguiu Hank, — era o que sempre me perguntava. E depois,

sabes? Vou muito bem a andar pela rua fora, esta manhã, e de repente, aí está! Estou

no sítio certo, na hora certa.

Interrompi-o a arder de curiosidade.

— Hank, vais contar-nos o resto, sim ou não?

Levantou-se de um salto, pousou Maureen nos meus joelhos e pôs-se a dançar a

jiga na cozinha, saltitando nos seus pés enormes como um frango gigante.

Page 269: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— Estava, portanto, na rua, não longe daqui, e eis que à minha frente surge…

Adivinha o quê? Um cavalo!

Desatei a rir. Falava como se se tratasse de um milagre.

— Há muitos cavalos por aqui, Hank. É por causa das cavalariças, na outra ponta

da rua.

— Sim, agora sei tudo isso, mas horas atrás não. Só vi vir um cavalo embalado na

minha direção a arrastar um pobre rapaz com os pés enrolados nas rédeas. Se há

coisa que sei fazer bem, é tratar de cavalos. Saltei-lhe então para as rédeas, ao

mesmo tempo que lhe ia falando para o acalmar. Agarro-me a ele, falo-lhe e corro ao

mesmo tempo que ele… Por fim, começou a abrandar, até que parou completamente.

Instantes depois, vejo chegar um bando de rapazes assustados e a gritar, desvairados.

Debruçam-se sobre o rapaz que fora arrastado pelo cavalo, e começam a opinar. Um

diz:

— Não morre, mas durante uns tempos não vai poder trabalhar!

— Meu Deus!— diz o outro…— Oh, desculpe, Sr.ª Garvey. — E agora, onde é que

vamos arranjar um tipo que saiba tratar dos cavalos como o velho Jack?

Naquele momento, Hank parou de falar. Ficou plantado no meio da cozinha,

ufano, com um sorriso rasgado. Dei um grito.

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— Tu? Arranjaste trabalho?

— É verdade! — respondeu, esboçando uma vénia.

Pus-me de pé para lhe dar uma palmada nas costas.

— Parabéns, Hank. É espantoso!

A minha mãe sorria, mas não abria a boca.

— Que se passa, Sr.ª Garvey?

— Nada, nada… Fico muito contente, Sr. Powers.

— Já sei. Ficou a pensar no pobre Jack, não é?

— Sim. Não consigo abstrair-me dele.

Tinha um ar quase envergonhado. Hank soltou um profundo suspiro.

— É sempre assim! A infelicidade de uns é a sorte de outros. Talvez eu não

devesse ter aceitado.

Mas a minha mãe já se tinha refeito.

— Não, não pense nisso. Afinal, salvou a vida àquele pobre homem e se não está

em condições de trabalhar… E depois também já teve a sua quota-parte de infortúnio,

Sr. Powers. Bem merece um pouco de sorte.

Ele ria-se de novo.

— Obrigado, minha senhora. Fico contente por saber que pensa assim, porque

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tenho uma proposta a fazer-lhe.

— Ai sim?

— É o seguinte: agora que tenho trabalho, preciso de alojamento. E… o seu divã

pareceu-me bastante confortável. Não será que…

De repente a minha mãe ficou muito corada. Abanou a cabeça.

— Lamento muito, Sr. Powers, mas não seria correto. Não estando cá o meu

marido, compreende…

— Mas não lhe propunha nada de imoral! Só pensava numa solução vantajosa

para ambas as partes.

Estava agitado, mudava de um pé para o outro, a revolver os cabelos louros.

A minha mãe levantou os olhos e ele retomou a palavra.

— Está a ver, minha senhora, que é tolice, com todo este dinheiro e não saber

onde me alojar, tendo a senhora aqui duas divisões livres e… Bem, eu poderia pagar

quatro ou cinco dólares por semana e não os incomodava. A minha higiene pessoal

podia fazê-la nas cavalariças e comer fora. E, depois, Nova Iorque é tão grande, minha

senhora, e eu que não conheço mais ninguém além de vocês… Podia ficar a viver nas

cavalariças, mas não cheira bem e tem moscas…

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À medida que falava, eu via os olhos da minha mãe alegrarem-se. A certa altura,

levantou a mão para o mandar calar.

— Quatro dólares por semana é o suficiente, Sr. Powers.

Fiquei pasmado.

— Mas, mãe…

— Cala-te, Danny.

— Não me vou calar! Não podes aceitar. O que é que os vizinhos vão dizer?

Fez um risinho.

— Falar, vão falar sempre, isso é certo e seguro.

— Estás doida ou quê?

O seu sorriso apagou-se. Olhou-me nos olhos.

— Daniel, há muito que rezo por um milagre que nos permita continuarmos a

viver neste apartamento. A proposta do Sr. Powers é um sinal do Céu. Consideremo-lo

como o nosso anjo da guarda.

Hank sorriu, mas um olhar da minha mãe apagou-lho imediatamente.

— Desculpe, minha senhora. Não queria faltar ao respeito ao Céu, mas é a

primeira vez que me comparam a um anjo.

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— Os caminhos do Senhor são insondáveis— respondeu a minha mãe com um

sorriso.

— Não duvido, minha senhora. Sendo assim, está de acordo?

Estendeu a sua mão enorme. A minha mãe fez o mesmo.

— Sim, Sr. Powers. De acordo.

— Preferia que me chamasse Hank — declarou ao apertar-lhe a mão.

— “Sr. Powers” também está bem — respondeu, largando a mão.

♦♦♦♦♦♦

40

Segunda-feira, 24 de abril de 1933

Desde uns tempos para cá, a minha mãe já não parece a mesma. Por momentos

fica tão calma e descontraída que até parece que não se apercebe da minha presença.

Outras vezes, sobressalta-se ao mais pequeno movimento. Nada a distrai.

Por exemplo, no dia em que o governo levantou a Proibição sobre o vinho e a

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cerveja, estava a ler-lhe uma anedota do jornal e, de repente, desata a chorar…

Julguei que gostasse… É o primeiro passo para acabar com a Proibição!

Procuro ouvir o mais possível o presidente Roosevelt, quando fala na rádio. Dá

conferências a que chama “conversas ao serão” e que pessoalmente me fazem muito

bem. Está sempre a repetir que somos todos americanos, passámos todos por duras

provas ao longo da História, e que somos capazes de ultrapassar a crise se

trabalharmos para tal. Às vezes, a minha mãe também fica um pouco mais animada

ao ouvi-lo, mas é por pouco tempo.

Tenho a impressão de que estão a suceder muitas coisas boas. Os bancos abrem

as portas e o CCC (Civilian Conservation Corps) vai ajudar a encontrar trabalho para

muitos desempregados. Dão alojamento e comida e são pagos a um dólar por dia!

Quando for um pouco mais velho, também vou pedir que me admitam.

No mês passado, os veteranos do exército voltaram a Washington. Mas, desta

vez, alimentaram-nos, alojaram-nos e cuidaram deles, e o presidente chamou-os à

Casa Branca para dialogarem. A Sr.ª Roosevelt até foi visitar o acampamento onde

eles estavam.

Parece interessar-se pelas pessoas, a Sr.ª Roosevelt, e toda a gente a aprecia:

dizem que é uma verdadeira senhora. Hoje, quando dizia isto à minha mãe, ela pôs-se

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a resmungar:

— Também eu seria uma verdadeira senhora se estivesse no lugar dela!

Não é nada o estilo da minha mãe dizer coisas deste género.

Falei do assunto a Hank quando voltou do trabalho, mas não se mostrou

preocupado. Riu-se.

— As mulheres, quando estão para dar à luz, ficam sempre assim, um pouco

estranhas. Não andes sempre de volta dela. Verás que, quando o bebé chegar, volta a

ser como dantes.

— Mas, Hank, ainda é preciso aguentar um mês! Não posso abandoná-la por tanto

tempo.

Riu à farta.

— Sabes que mais, filho? Vou à mercearia comprar coisinhas boas. E vamos jantar

como uns príncipes. Depois, conto-vos histórias e tenho a certeza de que a tua mãe

vai animar-se. O que te parece?

— Espetacular!

A maior parte do tempo, Hank fica no seu canto mas, de vez em quando, vem

escondido atrás de um saco enorme cheio de coisas boas e a minha mãe convida-o

para jantar connosco. Acaba sempre o serão a contar-nos histórias. A minha mãe

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gosta muito dele. Diz que, no seu género, é um verdadeiro seanachie1 do Oklahoma!

Esta tarde, Hank chegou com legumes e carne picada, e preparámos um guisado.

Enquanto descascávamos as batatas, pedi-lhe:

— Fala-me do Oklahoma, Hank.

— O que queres saber?

— Da Crise… Era tão dura como aqui?

— Pior.

— Pior… Ainda pode haver pior?

— Sim. Em primeiro lugar, porque, para nós, tudo começou muito mais cedo. Logo

a seguir à guerra. Durante o conflito, tudo corria bem para os agricultores. O exército

americano e os Aliados precisavam de alimentos em massa. As colheitas davam muito

dinheiro, e então pusemo-nos a semear cada vez mais. Depois, de repente, a guerra

parou.

Claro, eu não estava descontente por ela acabar: a guerra é horrível e, quanto

menos tempo durar, melhor. Mas naquele ano, os preços agrícolas baixaram para

metade. E como não somos nada finórios, nós, os agricultores, julgávamos que se

1 seanachie - um contador de histórias tradicionais irlandês.

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semeássemos o dobro dos cereais, vendíamos também a dobrar, e assim ganhava-se

mais.

— Não está mal visto, como raciocínio.

— Mas esquecemo-nos de uma coisa, Danny. Quanto mais semeássemos, mais

tínhamos para vender. E como a oferta ultrapassava a procura, os preços baixaram

muito. Neste momento, uma tonelada de milho compra-se a três dólares e trinta e três

centavos. Sabes quanto é uma tonelada?

— Hum… Mais ou menos.

— Duas mil libras, Danny. E fazes ideia do trabalho para semear e ceifar duas mil

libras de milho?

Na verdade, não fazia a menor ideia. Mas Hank ia lançado e nem esperou pela

resposta.

— Um vagão cheio de aveia não chega para pagar um par de sapatos. Estás a ver

que não se pode viver com esse preço! As pessoas ficaram doidas. Ouvi falar de um

pastor que tinha três mil ovelhas para vender na feira. Mas era preciso um dólar e dez

cêntimos por cabeça para as transportar, e só pagavam um dólar por cada ovelha.

Como não tinha maneira de as levar para o mercado e nem um cêntimo para as

alimentar, degolou-as e atirou-as para uma vala.

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O meu estômago até se agoniou só de pensar em três mil ovelhas mortas.

— Ah! Mas isso é horrível!

— Pois. Mas ainda não é o pior.

Pousou a batata que estava a descascar, ergueu os olhos ao céu e pôs-se a

pensar em voz alta.

— O pior é que a isto tudo veio juntar-se a seca. Começou em 30 e, daí para cá, a

situação nunca mais se recompôs. Sabes o que é a seca? Um sol que bate sem parar,

o céu branco e o calor abrasador, dia após dia. Primeiro secou o milho, na terra. De

noite ouvia-o estalar como papel. Os rios e ribeiros secaram, a seguir as vacas

deixaram de dar leite. Lisbeth, a minha mulher…

Hank calou-se por instantes para passar a língua pelos lábios, como se a

lembrança da canícula também os tivesse secado. Era a primeira vez que me falava da

mulher, e sentia-se uma grande tristeza na sua voz.

— Lisbeth ficou magra como um corvo. Não tínhamos filhos. Até ali isto era, para

nós, motivo de tristeza… Mas, ao vermos os filhos dos vizinhos, magros, com os olhos

encovados e a barriga inchada por falta de alimentos, estávamos contentes por não

termos filhos para os deixarmos morrer à fome.

Enquanto falava, Hank ia descascando as batatas. Parou por uns momentos, como

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se estivesse a arrumar as recordações.

— Depois veio a poeira. A terra estava tão seca que se pulverizava e o vento

levantava nuvens de pó ardente. Fazia tão escuro que tínhamos de acender as

lâmpadas durante o dia e, à noite, já não se viam as estrelas. O pó infiltrava-se por

todo o lado. Tapávamos as frinchas das portas e janelas com roupa molhada, mas não

havia nada a fazer, entrava sempre. Comíamos pó, respirávamos pó e colava-se-nos à

pele, de manhã à noite. Os campos desapareceram. Só se viam hectares e hectares de

areia negra que mudava conforme o vento. A terra movia-se debaixo dos pés.

Arriscávamo-nos a qualquer instante a cair em taludes muito fundos capazes de

engolir uma criança ou uma vaca.

Ao fim de pouco tempo, Lisbeth começou a tossir. A doença estava a espalhar-se:

as pessoas tossiam poeira, grandes escarros negros que, pouco a pouco, passavam a

ser de sangue. Como não havia dinheiro para pagar ao médico, as pessoas morriam

como moscas. Em outubro passado, os do banco vieram tirar-nos a nossa quinta.

Assistimos à venda dela em leilão, e depois a Lisbeth caiu por terra e tossiu, tossiu, até

que morreu.

A narrativa de Hank chegou ao fim. E ali ficou, sem dizer mais nada, imóvel como

uma estátua, com o rosto petrificado. Uma lágrima brilhava ao canto dos olhos.

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Desviei o olhar, emocionado, e fiz um grande esforço para não chorar.

Mas já se pusera de novo a descascar as batatas. Pigarreou para aclarar a voz.

— Não tenho jeito para fazer rir as pessoas, sobretudo quando tenciono fazê-lo.

Virei-me para ele e desatámos ambos a rir.

— Prefiro assim — concluiu Hank.

Com o jantar feito, fomos buscar a minha mãe para a cozinha. Depois de uma boa

refeição e com a minha irmã a dormir, a minha mãe e Hank puseram-se a contar

histórias da Irlanda e do Oklahoma.

Hank tinha tanta graça que a minha mãe se riu bastante e tinha as faces rosadas

como nos bons velhos tempos. E eu, ao rirmos daquela maneira, sentados à mesa,

esqueci por uns instantes que o meu pai não estava presente e que não éramos uma

família.

Mas, de repente, a memória avivou-se-me. Fiquei furioso por me ter esquecido do

meu pai por um instante, e virei-me contra a minha mãe.

— Não quero estragar-te a festa, mas já são quase nove horas. Não achas que são

horas de ele ir embora?

De repente, a minha mãe parou de rir. Ficou escarlate.

— Daniel, o que acabas de dizer é muito indelicado. Por favor, pede desculpa ao

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Sr. Powers.

— Não, minha senhora — declarou Hank. — O Danny tem razão, são horas de os

deixar em paz.

Despediu-se e foi para a sala pela porta que dá para o patamar. Hank nunca

passa pelos quartos. A porta da sala bateu e a minha mãe virou-se para mim.

— Não foste nada simpático, Daniel. O que é que te passou pela cabeça?

— E tu, o que se passa contigo, afinal? Andas sempre triste, já nem sequer cantas.

Mas quando ele aparece, eis-te de novo feliz. E depois, porque já não escreves ao meu

pai?

Os olhos encheram-se-lhe de lágrimas. Pousou a cabeça nas mãos, deu um

profundo suspiro e eu senti-me completamente idiota. Eu é que pedi a Hank que

viesse para a distrair e causar-lhe agrado, e aqui estou eu a entristecê-la! O que se

passava comigo?

— Mãe, lamento o que disse. Fui eu que chamei o Hank. Não sei porque fico assim

irritado.

A minha mãe olhou para mim com ar pacífico.

— Compreendo-te, Danny. Eu também penso no teu pai. Mas não é pecado

apreciar a companhia do Hank. Somos uns infelizes que procuramos conforto junto

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uns dos outros.

— Tens razão. Anda, eu ajudo-te a ires para a cama.

Agarrei-a pelo braço e levantou-se, a tremer.

De repente esboçou-se um sorriso no seu rosto.

— Olha lá, meu rapaz, estás mais alto do que eu! Já vai longe o tempo em que

tinha de me baixar para te dar um beijo…

Abanei a cabeça, cheio de vaidade. Não sei exatamente quando é que isto

aconteceu, mas desde o inverno passado que estou mais alto do que a minha mãe.

— O pai vai ter uma grande surpresa quando vier!

A minha mãe olhou-me de forma estranha. No espaço de um segundo quis dizer-

me qualquer coisa. Depois, desviou os olhos a murmurar:

— Sim, meu querido, vai ficar muito surpreendido.

Levei-a para a cama e aconcheguei-lhe a roupa, como ela fazia quando eu era

pequeno. Tem a barriga mesmo muito grande agora, mas está tão delgada e tão

pálida que até me pergunto se o bebé não será uma espécie de monstro que a devora

por dentro.

Que se despache a chegar! Que nasça, vivo ou morto, quero lá saber. É um

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pecado o que digo, mas quero lá saber. A única coisa que lhe peço é que deixe a

minha mãe em paz.

♦♦♦♦♦♦

41

Sexta-feira, 28 de abril de 1933

Hoje, depois da escola, lá consegui arrancar Mickey à sua querida Kitty para

jogarmos uma partida de basebol. Estava frio e havia muita humidade no ar. Mas era

bom voltar a encontrar-me com os amigos como noutros tempos.

Quando regressei, encontrei a minha mãe prostrada no sofá. Respirava com

dificuldade.

— Mãe, estás bem?

— Estou. Sinto-me um pouco cansada, nada mais. Por favor, Danny, leva a

Maureen até lá fora para apanhar um pouco de ar, antes do jantar. A pobrezita há dias

que não vai lá fora, até já se deve ter esquecido do mundo que está para lá desta

porta.

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Levei a minha irmã a passear até ao parque. Ao cair da noite, o tempo arrefeceu:

aquele mês de abril ia fresco, um pouco menos do que março. Espero que o bom

tempo não tarde para que o meu pai não passe frio e a minha mãe fique mais alegre.

Mas, segundo dizem, este ano arriscamo-nos a não ter primavera. Empurrei Maureen

no carrinho, depois pu-la no chão e ela divertiu-se a correr atrás dos pombos. Corri

atrás dela e rimo-nos muito, mas o frio e o cansaço obrigaram-nos a recolher a casa…

Quando chegámos, a minha mãe estava na cama com uma cor de papel pardo, e

ainda respirava com mais dificuldade do que anteriormente.

— Mãe, que tens?

— Daniel, meu querido, parece-me que está a começar.

Os seus olhos revelavam medo. O meu coração deu um salto.

— O que é que está a começar?

— O bebé. Chega quase um mês mais cedo.

Fechou os olhos. Lágrimas brotavam das pestanas.

— Vai correr tudo bem, mãe, vais ver. Vou chamar o doutor.

Chamei Hank com toda a força, mas ainda não tinha chegado.

Então fui procurar a Sr.ª Riley e as filhas, e confiei-lhes a minha mãe.

O doutor não estava em casa, mas a esposa disse-me que devia chegar de um

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momento para o outro. Nada mais podia fazer senão esperar na sala de espera. Peguei

numa revista, uma qualquer, e comecei a folhear, sem sequer olhar.

A sala estava atafulhada de livros e naperões de renda, e cheirava a desinfetante.

Na parede, um relógio grande de madeira fazia um tiquetaque ensurdecedor. Eu não

tirava os olhos dos ponteiros. A cada minuto que passava, sentia o meu coração bater

mais rápido e o sangue a apressar-se nas veias.

Cinco minutos, dez minutos, um quarto de hora… Parecia-me que a cabeça ia

estalar. Levantei-me de um salto e comecei a andar para a frente e para trás.

Passaram mais cinco minutos. Transpirava grossas bagas de suor. O médico, onde

estaria? Finalmente, a Sr.ª Davis entrou na sala de espera.

— Ainda não chegou?

— Não! É absolutamente necessário preveni-lo. Onde está?

— Tinha várias visitas a fazer. É urgente?

— Claro! A minha mãe está a ter um bebé.

— Oh… Se é só isso!

— Mas a senhora não sabe…

A Sr.ª Davis sacudiu a cabeça com um sorriso.

— Vocês, homens, fazem do parto uma complicação. Mas é a coisa mais natural

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do mundo! Recordo-me, quando a Sr.ª Flaherty …

— Sr.ª Davis, suplico-lhe!

— Está bem, está bem. Vou dar-te a lista das visitas. Mas vou dizer-te um

segredo: a tua mãe terá o bebé sem qualquer problema, acredita no que te digo, com

ou sem a ajuda do meu marido.

Enquanto falava, ia copiando as direções. Quase lhe arrancava a lista das mãos e

saí a correr, sem lhe agradecer. Quando cheguei à rua, olhei para a lista. Tinha

copiado, sem dúvida, as direções por ordem de visitas. Comecei pela última: era ali

que seria mais provável encontrar o médicor.

Acontece que a Sr.ª Davis, esperta como eu, tinha copiado os endereços ao

contrário. De qualquer modo, não serviu de nada, porque o doutor tinha seguido a sua

fantasia e efetuara as visitas como ele entendeu. Acabei por ir aos quatro locais

indicados, para descobrir que ele já tinha regressado a casa. Voltei lá, e bati à porta

como um danado. Havia quase uma hora que tinha deixado a minha mãe, estava louco

de preocupação.

Finalmente, a porta abriu-se e surgiu a cabeça da Sr.ª Davis.

— Já vou, já vou… Oh, és tu outra vez? O meu marido acaba de sair. Não te

cruzaste com ele?

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— Saiu? Para onde?

— Mas… Ver a tua mãe, claro. Porque não me disseste que era uma urgência?

Estava tão frustrado que não sabia se devia chorar ou barafustar. Limitei-me a

abanar a cabeça. Só apanhei o doutor no cruzamento seguinte: corria desenfreado.

Quando me viu pôs-se a berrar:

— Porque não me avisaste mais cedo?

— Mais cedo? Mas há uma hora que ando a correr à sua procura, já atravessei

metade da cidade e…

— Pensaste ao menos em telefonar para o hospital?

— Que hospital?

— O da Quinta Avenida.

— Não, não pensei nisso. Nunca me tinha dito que telefonasse para o hospital! Só

me disse que o avisasse!

— E tu não tens cabeça para pensar, não? A tua mãe está gravemente doente,

lembra-te.

— Eu bem sei que está doente!

O Dr. Davis não disse mais nada. Corria sempre. Quando chegámos ao prédio,

subimos os degraus quatro a quatro e foi direito ao quarto da minha mãe.

Page 288: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

A Sr.ª Riley estava junto à banca da cozinha a beber uma chávena de chá.

— Bom dia, Dr. Davis — saudou ela à sua passagem.

Depois, virou-se para mim e piscou-me o olho.

— Já tens um irmãozinho.

Dissera aquilo com uma tal calma como se dissesse que o carteiro já tinha

passado, ou que tínhamos feijão para o jantar. E acrescentou:

— A tua mãe está muito bem.

Comecei a tremer. Tinha de me sentar ou então caía.

A Sr.ª Riley deu-se conta: correu a colocar uma cadeira atrás de mim.

— Então, então. Tiveste medo, hein, meu querido?

— E a minha mãe — murmurei — como está?

— Muito bem.

— É um rapaz?

— Um menino encantador. Um pouco magrito, mas cá se aguentará.

— E já acabou tudo?

— Ah, sim. Como vês, é muito simples.

Instantes mais tarde, o Dr. Davis voltou à cozinha.

Parecia uma pessoa a quem tinham roubado alguma coisa.

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♦♦♦♦♦♦

42

E agitava o dedo diante do nariz da Sr.ª Riley.

— Tem de ir para o hospital, repito.

Mas a voz da minha mãe chegou do fundo do quarto:

— Nem pensar!

A Sr.ª Riley sorria. Empurrou-me suavemente pelos ombros:

— Vai lá. Vai ver o teu irmãozinho, enquanto converso com este bom Doutor.

A minha mãe estava encostada a uma pilha de almofadas. Tinha ares de cansada,

mas feliz. Com um lindo sorriso, abriu-me os braços e eu lancei-me neles.

— Adoro-te, meu Danny.

— Também eu, mãe. Estás bem?

— Muito bem. Olha o teu irmão.

No outro lado da cama, o bebé dormia num velho berço emprestado pelos Riley.

Olhei para ele com atenção.

— É tão pequenino!

— Pois, tu também eras pequenino.

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— Assim como ele?

— Não tanto. Ele nasceu um pouco antes do tempo mas, pelo que diz o Dr. Davis,

vai recuperar bem. Podes pegar nele, que não parte.

Ergui aquele homenzinho nos meus braços. Era mole como uma boneca de

trapos.

— Tem cuidado com a cabeça — disse a minha mãe.

— Eu sei. Ainda me lembro de quando nasceu a minha irmã…

E coloquei o cotovelo debaixo da cabeça do meu mano. A minha mãe sorria cada

vez mais.

— Esqueço-me sempre que já és um homem, Danny.

O bebé era bochechudo e rosado, com um tufo de cabelos castanhos frisados a

cair-lhe para a testa. Assim, nos meus braços, estava quentinho. E de repente senti

vergonha das coisas horríveis que tinha pensado no outro dia.

Estava bem contente que o meu irmãozinho tivesse nascido! De punhos fechados

como um boxeur, pronto a enfrentar o mundo. Toquei com a ponta dos dedos numa

das suas mãos que se abriu e fechou imediatamente com a pressão.

— Tem força!

Ao som da minha voz, abriu os olhos e olhou-me de frente.

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— Mãe! Ele olhou para mim.

— Claro. Tenho a certeza de que nos vê, apesar do que dizem as parteiras.

— Tens razão. Olha como franze o nariz! Está a dizer: espero não ser da família

deste tipo. Tem cá uma cara!

A minha mãe desatou a rir.

— Não, ele não pensa nada disso.

Ao contemplar a carinha do meu irmão, senti uma espécie de beliscadura no

coração: o ciúme.

— Parece-se com o pai como duas gotas de água. Ele é que devia chamar-se

Daniel júnior, não eu.

A minha mãe virou a cara para o lado com os olhos marejados de lágrimas.

— Desculpa, mãe. Não queria magoar-te.

— Não me magoas. Anda cá, chega-te a mim.

Limpou as lágrimas com as costas da mão e eu sentei-me em cima da cama com

o bebé nos braços. A minha mãe agarrou-me pelo queixo.

— Ouve bem o que te digo. Nunca mais quero ouvir-te falar daquela MANEIRA. És

o filho mais velho do teu pai, deu-te esse nome e tu merece-lo. Cada dia que passa te

pareces mais com ele.

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Fiz uma careta, pensando que estava a brincar comigo, mas falava mesmo a

sério.

— Não tens os seus traços nem a cor dos cabelos, mas no teu coração, Danny, és

como ele. Tens a mesma coragem e foi com ele que aprendeste a ser homem. Sim,

Danny, és mesmo o filho do teu pai e honras o seu nome.

Aquelas palavras aqueciam-me o coração. E prosseguiu:

— Além disso, este anjinho tem um nome muito próprio. Vou chamá-lo Padraic.

— Padraic?

— Sim. Era o nome do meu pai.

— Bem sei, mãe, mas…

— Mas quê?

— Padraic, é um pouco… um pouco irlandês.

Arregalou os olhos.

— Com certeza. Não vais querer que lhe dê um nome judeu ou espanhol.

— Não, mãe. Um nome americano.

— Americano…

— Pois. Nós somos americanos.

— Sim, sim…

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Os seus olhos cinzentos perturbaram-se um pouco.

— Danny, não vais esquecer as tuas raízes irlandesas?

— Claro que não. Orgulho-me de ser irlandês. Mas se lhe chamares Padraic, toda

a gente se vai rir dele na escola.

A minha mãe olhou para mim sem dizer nada durante um longo momento.

Depois, acariciou a face do bebé, dizendo:

— Estás a ver? O teu irmão grande já está a defender-te. Que dizes a isto?

E como resposta o meu irmão soltou um vagido.

— Dorme bem! — retomou a minha mãe. — Estás em boas mãos.

Depois virou-se para mim:

— Um nome americano, diz tu! Então pode ser Patrick Seamus Garvey.

— Seamus?

— Será que também não gostas deste?

— Sim, sim. Podes chamá-lo Seamus se quiseres.

Mas quando pus Patrick no berço, disse-lhe ao ouvido:

— Não te preocupes que ninguém te vai chamar pelo segundo nome!

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♦♦♦♦♦♦

43

Finalmente, o Dr. Davis foi embora. Tinha havido um empate: um ponto para ele e

outro para a minha mãe. Aceitou que não desse entrada no hospital, mas ela, por seu

lado, comprometeu-se a não dar de mamar ao Patrick.

— Está demasiado fraca — argumentava — e o seu filho vai adaptar-se bem ao

leite de vaca.

— Sim, quando as galinhas tiverem dentes! — protestava a minha mãe.

Mas ela acabou por ceder.

Com tudo isto fez-se muito tarde. Fui deitar-me, exausto, o que não me impediu

de saltar da cama quando ouvi Patrick chorar, a meio da noite. Maureen estava a

dormir no meu quarto e tinha receio que acordasse. Levantei-me para lhe dar o

biberão: assim a minha mãe podia descansar.

Devia estar extremamente cansada, porque ainda dormia quando fui buscar o

bebé para o meu quarto. Trouxe-o para a cozinha e, enquanto esperava pelo leite,

entretive-o com a tetina de açúcar que Maggie lhe preparou. Esteve muito caladinho

enquanto aqueci o leite.

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Alguém bateu suavemente à porta e eu fui abrir. Era Hank.

— Ouvi o nosso homenzinho a chorar. Precisas de ajuda?

— Sim, se souberes mudar uma fralda.

— Então não hei de saber? Fui o segundo de uma família de catorze irmãos.

— Essa agora! E eu que achava que os Riley eram uma família numerosa…

Hank deitou o Patrick em cima da mesa e pôs-se a retirar os alfinetes.

— Não é nada gordo… A propósito, como está a tua mãe?

— Está a dormir.

Hank olhou para mim, arregalando os olhos.

— Está a dormir?

— Sim.

— Queres dizer que não acordou quando ele chorou?

— Hã… Não. Deve estar muito cansada…

Fiquei a tremer de medo. Hank coçava a cabeça com ar pensativo.

— Nunca vi uma mãe tão cansada que não acordasse ao ouvir chorar o

recém-nascido. Eu vou ver.

— Não, não, vou lá eu. Tenho a certeza que está bem.

Mas a minha voz tremia contra a minha vontade.

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Em bicos de pés fui ao quarto da minha mãe. O rosto pálido e magro estava como

que perdido no tufo de cabelos ruivos espalhados na almofada.

Uma perna pendia da cama, como se pertencesse a alguém que tivesse querido

levantar-se e tivesse mudado de opinião no último instante. Olhei para o peito sob os

cobertores, para ver se respirava. Passou um segundo, depois outro, depois dez e uma

eternidade, mas a colcha não mostrava qualquer movimento. A tremer, pus a mão

diante da boca aberta e sustive a respiração. Por fim, lá saiu uma lufada de ar quente

dos pulmões.

Respirei também eu, de alívio, e depois pus-lhe a mão na testa. A pele estava

húmida e estranhamente fria. Chamei baixinho:

— Mãe?

Não obtive resposta.

— Mãe, estás a dormir?

Continuei sem resposta. Dei um passo em frente. O meu joelho tocou no dela e,

debaixo do meu pé descalço, senti qualquer coisa pegajosa e húmida.

Baixei os olhos e vi então uma mancha escura no soalho. Com o coração aos

pulos e as mãos a tremer, puxei os cobertores para trás.

Soltei um grito:

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— Meu Deus… Meu Deus, Hank! Anda cá depressa!

♦♦♦♦♦♦

44

Sábado, 29 de abril de 1933

Louco de raiva, o Dr. Davis saiu da sala de operações a gritar:

— Eu bem a avisei! Que tolice, uma tolice dos diabos!...

— Doutor?

Uma enfermeira avançava para ele, com ar reprovador, para lhe indicar o banco

onde estávamos sentados, Hank e eu. Sem largar aquele ar furioso, o médico

dirigiu-se a nós. Olhou para nós os dois, depois fez sinal a Hank que se aproximasse.

Dei um salto.

— Não! É a minha mãe, tenho de saber.

Olhou para mim com atenção.

— Bem… A tua mãe perdeu muito sangue. Já estava fraca, agora entrou em

coma. Sabes o que significa?

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— Não.

— O cérebro esteve privado de oxigénio durante uns instantes, e daqui em diante

só funciona a um nível muito rudimentar.

— E então?

— Então respira e pouco mais.

Os modos rudes, as palavras acutilantes, tudo aquilo era difícil de suportar, mas

eu tinha de saber.

— Mas vai recuperar? — perguntei.

— Melhorar… Ou piorar.

Fiquei sem palavras. A última pergunta que me vinha à cabeça, não ousava

fazê-la. Tinha medo de não ser capaz de ouvir a resposta.

Hank pousou a mão no meu ombro.

— Estás bem, filho?

Estremeci.

— Claro que estou bem. E não sou teu filho.

Mergulhei os meus olhos nos do médico:

— Acha que vai morrer?

— Não sei.

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— Não sabe como? Que resposta é essa? É ou não médico?

— Sou médico, mas não sou Deus. Fiz tudo o que estava ao meu alcance. Se

acreditas em Deus, podes rezar por ela. Se não, só tens de esperar.

— Mas quanto tempo?

— Dias, semanas, talvez meses. Embora… duvido que resista durante meses. Não

posso dizer nada.

— E se viver, em que estado fica?

— Também não posso dizer-te. Não sei se o cérebro ficou gravemente atingido.

Pode voltar a ficar completamente normal, mas também pode ficar sempre neste

estado.

Era demasiado. Deixei-me abater sobre um banco.

— Devias ir para casa — disse o Dr. Davis.

— Para casa? Está doido? Não a vou deixar aqui sozinha! Se lhe acontece alguma

coisa, se precisar de mim?

— À menor alteração, mando-te chamar. Juro-te.

— Não, não… Por favor, não quero ir para casa.

— Ouve, rapaz — retomou, — já te expliquei que esta situação pode durar

semanas, até meses. Não podes ficar aqui indefinidamente.

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— Mas pelo menos posso vê-la?

— Hoje, não. Amanhã talvez.

Ditas estas palavras, pôs-se a andar. Eu repeti:

— Por favor!

— Amanhã!— repetiu, sem se voltar.

Senti a manápula de Hank pousar-se no meu ombro, mas afastei-me.

— Anda, vamos os dois para casa.

Sem dizer palavra, descemos pelo elevador, ao longo de corredores sombrios. À

saída do hospital, o sol fez-me piscar os olhos. Constatei com tristeza que a primavera

tinha finalmente chegado.

Numa manhã assim, a minha mãe ter-se-ia passeado pela casa e escancarado as

janelas para deixar entrar o sol… Será que ainda voltará a cantar?

O médico tinha-me dito “Volta para casa.” Mas onde era, daqui em diante, a

minha casa? Naquele apartamento, quatro paredes e um soalho, onde ninguém me

esperava? Aquela caixa vazia, não era “a minha casa”. Faltava-me o riso do meu pai,

as canções da minha mãe, para chamar àquilo “a minha casa”.

Quem me restava daqui para a frente?

— Hum… Hank, acreditas em Deus?

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— Sim.

— Porque fazes essa pergunta?

— Por uma questão de segurança.

— De segurança?

— Sim.

— Não estou a perceber.

Puxou os cabelos para trás.

— Sabes, acho que não tens muito por onde escolher, quer acredites em Deus,

quer não. Se acreditas e, de facto existir, ganhaste. Se acreditas e não existir, não

perdeste grande coisa. Mas… se não acreditas e de facto existe… Então aí, meu

amigo, não queria ver-me no teu lugar!

Acabado o discurso, olhou para mim com um grande sorriso. Mas eu não sorria.

— Não é altura de te pores com brincadeiras

— Claro. Não estou a brincar, sabes. Não é fácil para um tipo como eu explicar

isto, mas penso que as pessoas não são só carne e osso. Disso estou certo. E neste

mundo, há mais a descobrir do que o que veem os nossos olhos.

— E como o sabes? Nunca pões nada em causa?

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— Ah sim, claro! Em momentos como este, ponho tudo em causa. Se assim não

fosse, não era humano. Mas, digo-te, volto sempre à minha fé. Há alguém lá em cima

que trata deste pobre Hank. Sinto, aqui, que é assim.

E pousou a sua grande mão sobre o coração. Eu disse:

— Também gostaria de sentir assim.

— Hás de sentir, filho. Lá chegará a altura.

Então Hank pôs o braço sobre os meus ombros, mas desta vez deixei que o

fizesse.

♦♦♦♦♦♦

45

Passei a noite acordado. Com medo de adormecer, creio. Era como se o facto de

ficar de vigília pudesse ajudar a minha mãe a continuar viva. Se adormecesse, receava

que se deixasse ir para o outro lado.

As palavras do médico ecoavam na minha cabeça “Dias, semanas, meses…”

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Aguardara tanto tempo pelo regresso do meu pai, pensando a cada momento que

talvez chegasse no dia seguinte, esperando-o na esquina de cada rua… Onde havia de

ir buscar forças para acreditar que a minha mãe se restabelecesse?

De repente, compreendi que não podia esperar. Não podia ficar assim deitado e

continuar à espera, nem mais um minuto. Os músculos do corpo, todos os meus

nervos, gritavam “Faz alguma coisa!”

Mas o quê? A ideia brotou, luminosa.

Ia à procura do meu pai. Agora, esta noite mesmo. Havia de o trazer e, graças à

sua presença, a minha mãe voltaria à vida.

Levantei-me e vesti-me sem fazer o menor ruído, lutando contra as vagas de

medo que me assaltavam. E se a minha mãe me reclamasse e eu estivesse ausente? E

se…

Não queria pensar nisso. Tinha de ir, de trazer o pai. Tirei as coisas que tinha

preparado na altura em que projetara realizar a viagem: o relógio de ouro do meu avô

e algumas fotos do meu pai. Meti-as no saco com algumas peças de vestuário.

Depois, debrucei-me sobre o berço de Maureen e, com a ponta dos dedos,

depositei-lhe um beijo na cara. Segredei-lhe:

— Vai correr tudo bem. O Hank trata de ti enquanto eu vou procurar o nosso pai.

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Mexeu-se a dormir e aconcheguei-lhe a roupa com cuidado. Deitei uma última

olhadela ao quarto da minha mãe. Gostava de beijar o Patrick, mas Hank dormia no

quarto para tratar dele. Não podia arriscar-me a acordá-lo.

Então, limitei-me a enviar um beijo em direção ao reposteiro, e depois dirigi-me

para a sala, sem fazer barulho. Uma vez no patamar, fiquei por uns instantes na

penumbra a olhar para a lua pálida, sem me decidir a arrancar de vez. Teria eu o

direito de os abandonar? A minha mãe, Maureen e Patrick, qual deles o mais débil…

Então ocorreu-me a ideia de os confiar a Maggie. Ela ao menos era forte, sensata,

e saberia tomar conta deles na minha ausência. Bati levemente à porta.

Ninguém respondeu. Bati mais uma vez, com um pouco mais de força, e desta

vez respondeu-me um ruído de passos. Uma voz ensonada perguntou:

— Quem é?

— Chiu! Sou eu, o Danny. Abre.

O ferrolho deslizou e a porta abriu-se contra Maggie, em camisa de dormir, os

olhos encarquilhados pela angústia.

— Que se passa? A tua mãe…

Sacudi a cabeça de imediato para a serenar e fiz-lhe sinal que se aproximasse, no

patamar. Fechou a porta sem barulho e aproximou-se de mim, junto da janela.

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Ao ver o meu saco, mudou de aspeto. Com um olhar severo, perguntou:

— Vais fugir?

— Não. Vou procurar o meu pai.

Olhou para mim sem dizer nada durante um bocado, depois meneou a cabeça.

— É o que eu digo. Estás a fugir. Tal como o meu pai e o teu.

— O meu pai não fugiu. Aliás, o teu também não. Foi a tua mãe que o pôs na rua.

Maggie já não olhava para mim.

Tinha os olhos perdidos na noite fria, do outro lado da janela.

— Há anos que o meu pai fugiu. Numa garrafa de whisky.

— Talvez, mas o meu, esse não desertou. Foi à procura de trabalho.

Virou-se para mim.

— Admitamos. O teu pai tinha motivo para ir, mas tu? Porque vais embora?

— Tenho de o encontrar.

— Tu não vais dar com ele. Não tens a menor ideia onde o procurar.

— Quero lá saber. Tenho de o trazer de volta.

— Porquê?

— Porque…

— Porquê?

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As minhas ideias já não estavam lá muito claras. Enervado, virei-me para a janela

e os meus olhos deram com as linhas do caminho-de-ferro que atravessavam a rua.

Por que razão Maggie tinha desorganizado tanto os meus pensamentos? Queria

estar já lá fora, na noite, e que o comboio me levasse para longe. Longe das

constantes perguntas de Maggie, longe do hospital onde a minha mãe estava

moribunda, longe de Patrick, tão pequenino e tão frágil, e de Maureen que gritava

Mamã!

Tomado por uma fraqueza repentina apoiei a cabeça contra o vidro húmido e frio.

De olhos fechados, ouvia dentro da minha cabeça o barulho do comboio, tão familiar, e

as rodas que repetiam: Vai embora, vai embora, vai embora…

Uma mão suave pousou no meu braço.

— Não procures fora — sussurrava Maggie.

— O quê?

— O que procuras não é fora que o encontras.

— Dizes cada coisa! É o meu pai que procuro.

— Tens a certeza?

— Claro! Deixa-me em paz.

Fechei de novo os olhos.

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Lágrimas de revolta borbulhavam sob as minhas pálpebras.

E cá dentro, uma vozinha dizia: “Estás a mentir. Não é o teu pai que procuras.

Agora já não é isso. A Maggie tem razão. Estás a querer fugir. Estás a fugir.”

Toda a minha raiva fundiu em tristeza. Pousei o saco no parapeito da janela e

levantei os olhos para o céu.

— O que é que procuro?— perguntei em voz alta.

— A força— disse Maggie. — A força para enfrentares o que está para vir.

Era verdade o que ela dizia. As suas palavras fizeram-me chorar de novo.

— E onde é que a vou encontrar?

— Aqui— respondeu Maggie.— Em tua casa.

— Já não tenho casa.

— Claro que tens.

Avançou para mim e tomou-me nos braços. Era aconchegante, agora. Repetiu:

— Em tua casa, Danny. Em nossa casa.

♦♦♦♦♦♦

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46

Domingo, 30 de abril de 1933

Acordei sobressaltado, furioso por ter adormecido, a rezar para que nada tenha

acontecido à minha mãe enquanto dormia. Era tão cedo que os bebés ainda dormiam.

Mas um ruído de loiça proveniente de cozinha indicava que Hank estava a pé. O saco

estava pousado ao fundo da minha cama. Abri-o depressa e retirei as minhas coisas:

não queria que Hank o visse. Levei logo o relógio e as fotos para o quarto da minha

mãe: não iria precisar mais deles.

No momento em que ia guardar o relógio no toucador da minha mãe, sem querer,

deitei ao chão um maço de cartas que ela escrevera e não tinha podido enviar por

falta de endereço. Mas havia lá qualquer coisa com um objeto que eu conhecia muito

bem…

A carteira do meu pai!

Como terá vindo ali parar? O meu pai deve tê-la levado, porém… Abri. Continha

um envelope grande dobrado a meio, todo manchado como se tivesse apanhado

chuva. Mas podia ainda ler-se a direção: era a da minha mãe.

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No interior estava uma carta. De repente, senti um medo atroz, como se estivesse

perante um perigo. As minhas mãos tremiam. Teria eu o direito de a ler? Era para a

minha mãe… Mas já que tinha chegado ali, devia arranjar coragem para ir até ao fim.

Tirei a carta do envelope e desdobrei-a.

Cara Sr.ª Garvey.

Escrever-lhe é para mim um dever muito penoso, mas que tenho de cumprir.

Tenho más notícias para si.

Ao que parece, os nossos maridos, o seu e o meu, encontraram-se num comboio

de mercadorias, no passado mês de dezembro. Quando o comboio chegou à estação,

tiveram de saltar, para escaparem à polícia ferroviária. O seu marido escorregou e

teve morte instantânea. Lamento ter de lho comunicar. Se isto a pode aliviar, diz

Harold, o meu marido, que ele não sofreu.

O que se passou a seguir, é com dificuldade que lho vou contar. Harold roubou a

carteira do seu marido. Seja indulgente para com ele, Sr.ª Garvey. Harold é um bom

cristão, foi a fome e o desespero que lhe ditou aquele gesto.

Desde então, guardou a carteira, cheio de remorsos pelo que fizera. Ontem, ao

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chegar a casa pediu-me que lha enviasse sem demora e que lhe pedisse desculpa em

seu nome. Bem gostaria de ser ele a escrever esta carta, mas não sabe escrever.

Howard diz que o seu marido era um homem bom e que amava muito a família. Estava

de regresso para os ver no Natal, quando o acidente ocorreu.

Que Deus a abençoe!

Os meus cumprimentos.

Hannah Bartlett

P. S.: A carteira estava vazia.

Li duas vezes aquelas linhas: “Estava de regresso para vos ver no Natal quando

ocorreu o acidente” Voltava para nos ver…

Brotaram lágrimas dos meus olhos.

Sofria, mas não tanto como esperava. Talvez estivesse entorpecido pela dor.

Ou talvez já tivesse feito o meu luto. Centenas de vezes. Todas as vezes que

batiam à porta nestes últimos meses, sempre que ouvia passos aproximarem-se, para

depois sumirem-se nas escadas, sempre que tinha a impressão de o reconhecer na rua

e corria como louco em direção a um indivíduo moreno…. Não se pode perder

indefinidamente alguém que se ama.

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Virei o envelope e descobri a data do correio: 2 de abril. Quer dizer que a minha

mãe estava ao corrente de tudo isto há já duas ou três semanas. Era por isso que

andava tão estranha… E não me disse nada!

Podia tê-la ajudado. Quando a dor é partilhada, torna-se mais leve.

Fui para a cozinha e pousei a carteira em cima da mesa. Hank estava debruçado

sobre o forno. Anunciei:

— O meu pai morreu.

Hank ficou imóvel, com o biberão do meu irmão na mão.

Pousou o tacho e virou-se para mim, com os olhos cheios de compaixão.

— Eu sei— disse com doçura.

Demorei uns instantes a compreender. Mas quando compreendi, a fúria apoderou-

se de mim.

— Tu sabias? Como é que sabias? Ela falou-te a ti e a mim não me disse nada?

Corri para Hank e arranquei-lhe o biberão das mãos. Não era capaz de me

controlar.

— Mas o que é que se passa nesta casa? O que há entre ti e a minha mãe? Estás

contente, hein, que o meu pai tenha morrido?

Hank agarrou-me pelos ombros.

Page 312: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

— Ouve o que te digo. Não se passou nada e tu sabe-lo bem. Estava aqui no dia

em que a carta chegou, é tudo. A tua mãe pediu-me que tratasse do seguro. Ela ia

falar-te do assunto, mas ia esperar que o bebé nascesse. Dizia que era demasiado

para ti.

Já me tinha afastado do seu abraço. Gritei a plenos pulmões, queria ter a quem

acusar.

— Não acredito no que dizes! És um mentiroso… Todos os moradores do prédio

estão ao corrente, e eu, ingénuo, não acreditava nos mexericos. Detesto-te, Hank

Powers. És um… um malandro!

Hank olhava para mim, sem fôlego, os olhos a faiscar de raiva. Mas de repente

acalmou-se e limitou-se a abanar a cabeça.

— Falas sob o efeito da dor. É por isso que nem te corrijo. Mas não tens o direito

de insultar a tua mãe dessa maneira. Acalma-te e encara as coisas de frente. Achas

que a tua mãe, à espera de bebé, teria tido uma… uma aventura com quem quer que

fosse? E eu, no papel de aproveitador!

Sorria com ar sincero.

— Honestamente, achas que tenho ares de quem desempenha tal papel?

Contemplei o seu ar de camponês americano corajoso, e toda a minha raiva se

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desvaneceu. Involuntariamente, comecei a rir através das lágrimas.

— Peço que me desculpes, Hank. Isto é porque…

— Eu sei, meu filho. Eu também já passei por isso.

♦♦♦♦♦♦

47

Sábado, 10 de junho de 1933

Ao princípio, no hospital, eu tinha companhia. Maggie vinha muitas vezes comigo

e também Mickey, a Sr.ª Riley, a Sr.ª Mahoney e muitos outros vizinhos. Até o bom

velho Sr. Weissman foi algumas vezes visitar a minha mãe. Mas as semanas passam e

as pessoas têm os seus assuntos. Agora, só eu e Hank ou Maggie de vez em quando.

Mas a maior parte do tempo estou só.

Hank sugeriu mandar celebrar uma missa pelo meu pai, mas eu recusei. Sem a

minha mãe, nem pensar.

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Todos os dias, depois da escola, venho sentar-me à cabeceira da cama e pego-lhe

na mão. Conto-lhe histórias, digo anedotas. Leio-lhe os seus livros preferidos e canto-

-lhe canções. Falo-lhe de Maureen e de Patrick. Mas ela continua imóvel, deitada, sem

nunca sorrir nem pestanejar. Está cada vez mais magra, cada vez mais pálida. A boca

é uma linha azul, e os olhos encovados, sob as pálpebras cinzentas, são como dois

buracos naquele rosto.

Um dia, o Dr. Davis entrou quando eu estava a ler Black Beauty. Ao ver-me,

sorriu. Nunca o tinha visto rir antes. Levantou as pálpebras da minha mãe e observou-

-lhe os olhos com uma luzinha. Depois pegou-lhe no pulso e pôs-se a escutar o

coração.

— Como está, doutor?

— Cada vez mais fraca.

— Quanto tempo mais se vai aguentar?

Deu um suspiro e falou-me com muita gentileza, muito mais do que o habitual.

— Olha, meu rapaz, eu nem sei o que é que a tem mantido viva até aqui.

Mergulhei o nariz no livro. Pousou a mão sobre o meu ombro.

— Devias sair a tomar ar. Na tua idade é preciso fazer exercício. Porque não vais

jogar basebol?

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— Prefiro ficar aqui.

— Ela nem dá conta que estás aqui.

— Eu sei.

Abanou a cabeça e saiu. Pouco tempo depois, uma enfermeira espreitou pela

porta.

— A hora da visita terminou, Sr. Garvey. Tem de sair.

— Está bem.

Fechou a porta, deixando-me a sós com a minha mãe. Levantei-me para a beijar

na face e murmurei-lhe ao ouvido:

— Mãe, sou eu, o Danny. Estou aqui. Por favor, toma consciência de que eu estou

aqui. Estou à tua espera, estamos todos à tua espera, a Maureen, o Patrick e eu. Nós

gostamos muito de ti. Precisamos de ti. Por favor, faz com que isto chegue ao fim.

Mas ela não reagiu. Parecia morta.

Hank tinha preparado o jantar: salsichas de Frankfurt e feijões. Tinha acabado de

me sentar à mesa quando bateram à porta. Era Ângela, a neta da Sr.ª Luca, a

vendedeira de bombons. Olhou para mim com aqueles grandes olhos castanhos, muito

tímida. Tinha a impressão que bastava um pequeno encontrão para a fazer

desaparecer. Perguntei:

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— O que há, Ângela?

Levantou a mão e contou pelos dedos as frases da mensagem e foi-mas dizendo.

— A minha mãe disse que telefonaram do hospital para ti. Houve alteração. Tens

de ir lá depressa.

O quarto dedo permanecia no ar.

— Esqueceste-te de alguma coisa?

Meteu o dedo à boca e refletiu um momento. Depois, sacudiu a cabeça. O meu

coração ficou destroçado. Agradeci-lhe com uma voz estranha, abafada. A mensagem

era clara. Se houvesse boas notícias, tinham-me avisado. Ninguém anuncia uma morte

pelo telefone.

O meu coração estava como que entalado num torno de ferro e julguei que ia

rebentar com tanto desgosto. Mas, felizmente, uma espécie de nevoeiro anestesiante

abateu-se sobre mim e deixei de sentir fosse o que fosse. Virei-me para Hank. Parecia-

me distante, como quando olhamos pela extremidade de um telescópio. O seu rosto

estava deformado pelo sofrimento.

Eu disse num tom cansado:

— Pelo menos não esperamos mais.

— Eu vou contigo — respondeu Hank com uma voz ausente.

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— Não. Quero estar só.

Uma lágrima deslizou pela face burilada de Hank.

— Está bem. Mas lembra-te de que estou aqui, meu rapaz. Chamas-me, se

precisares.

Percorri a pé os dois blocos que me separavam do hospital.

O nevoeiro anestesiante cerrava-se à volta do meu coração.

O rosto da minha mãe dançava diante dos meus olhos enquanto estava parado

junto aos semáforos, enquanto atravessava as ruas, abria as portas e subia no

elevador do hospital.

Não sei donde veio tanta força para lá chegar.

A enfermeira da receção disse-me qualquer coisa mas nem ouvi. O nevoeiro

servia de ecrã. Abri a porta do quarto, entrei, e fiquei ali, imóvel, a tentar recuperar

forças.

O corpo da minha mãe jazia em cima da cama, com o rosto de lado sobre os

lençóis. Estava nua até à cintura e lavavam-na duas enfermeiras. Zangaram-se

quando me viram entrar.

— Sr. Garvey! Espere no corredor. Não pode entrar enquanto estamos a preparar

a doente.

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Bruscamente, uma espécie de abanão fez estremecer a cama.

O meu coração parou numa fração de segundo.

Tomado por uma emoção religiosa, vi o braço magro da minha mãe levantar-se e

apoiar-se no colchão. Depois, milagre! Ergueu a cabeça e virou-se para mim.

Os seus olhos esbugalhados brilhavam.

Um suave sorriso dançava-lhe no rosto. Murmurou:

— Sim, deixem-no estar aqui. Deixem!

— MÃE!

♦♦♦♦♦♦

48

Junho de 1934

Depois que a minha mãe se restabeleceu, os nossos vizinhos quotizaram-se todos

entre si para oferecermos ao meu pai um funeral digno. Acalentou-nos o coração o

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facto de vermos que toda a gente veio prestar-lhe uma última homenagem. Estou

certo de que lá em cima, no céu, o meu pai sentia todo o amor que lhe era dirigido.

É estranho, porque afinal de contas foi o meu pai que nos tirou da miséria: aquele

seguro que eu tantas vezes amaldiçoara proporcionou-nos uma quantia suficiente que

nos permitiu viver confortavelmente. O New Deal do Sr. Roosevelt começa a produzir

efeito: pouco a pouco, a Recessão atenua-se, mas sei que vai demorar. Mais do que

imaginara.

Passou mais de um ano desde o inverno de 1933. Nunca hei de esquecê-lo.

Se um dia vier a ser o homem mais rico do mundo, não hei de esquecer nunca o

que é passar fome, ser obrigado a mendigar, e nunca desprezarei ninguém que esteja

na miséria.

A propósito, um dia destes encontrei Sadie. Contou-me que o banco voltou a abrir

as portas e que pôde recuperar todo o seu dinheiro.

— E levaste-o para casa para o esconderes no colchão?

— Nem pensar!— respondeu com o seu belo riso caloroso. — Mentia se te

dissesse que nunca pensei nisso, mas acho que compete a cada um de nós dar o

passo para se recuperar a confiança!

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Se a Grande Recessão tivesse heróis, tal como as guerras, penso que Sadie seria

uma heroína. Como a minha mãe, Hank, a Sr.ª Riley e a multidão de pessoas vulgares

que esperam, dia após dia, e que mantêm a coragem.

A minha mãe e Hank celebraram o casamento esta manhã. Dia memorável para

as comadres da vizinhança! Nunca se viu tanto piscar de olhos, meneios de cabeça, e

frases do género “Eu bem tinha dito”, desde o dia em que um dos dois rapazes do

primeiro andar fechou o outro no patamar, vestido de camisa de dormir às flores.

Quando a minha mãe e Hank me anunciaram que queriam casar-se, fiquei

doente.

Mas não fiquei zangado por muito tempo. Este ano, Hank apoiou tanto a minha

mãe! Sempre presente, sempre atento… Não admira que a amizade se tivesse

transformado em amor.

Além disso, a minha mãe explicou-me que o seu amor por Hank não ia ocupar o

lugar do do meu pai. Sempre há de amar o meu pai, e Hank sempre amará Lisbeth,

mas sobra amor suficiente a ambos para se casarem.

A minha mãe diz que é o milagre do amor: nunca se esgota. Penso que

compreendo aquilo de que ela fala, porque comigo passa-se algo de similar em relação

ao meu pai e a Hank.

Page 321: Eu, Daniel, engraxador de sapatos - Jackie French Koller

É engraçado, o Hank. Quanto mais o conhecemos mais o apreciamos. A minha

mãe diz que é a sua beleza interior que brilha no seu rosto, e acho que é mesmo

assim.

Foi um casamento muito íntimo: só nós, os Riley, a Sr.ª Mahoney e… Mickey,

claro. A minha mãe e Hank designaram-nos, a Maggie e a mim, como cavalheiro e

dama de honor. Maggie estava deslumbrante, num vestido cor-de-rosa novo e flores

nos cabelos.

No momento em que a minha mãe e Hank deram o “sim” solene, deitei-lhe um

olhar tranquilo… e imaginem que ela também estava a olhar para mim! Começo a

compreender o que é a empatia de que falava o bom velho Mickey…

Hank vai adotar Maureen e Patrick.

De início, a ideia não me agradava, mas acabei por me habituar. Ninguém pode

amá-los como ele, isso é verdade. E acho que será mais fácil para eles crescerem com

o nome de uma mãe e de um pai.

A minha mãe e eu falamos-lhes frequentemente do nosso pai, para que não o

esqueçam. E da Irlanda, também, para que saibam donde provêm. Segundo a minha

mãe, estou a tornar-me um autêntico seanachie. Hank também queria adotar-me; mas

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eu recusei. Afinal, já tenho quinze anos, sou quase um homem. Sou tão alto como era

o meu pai, e quase tão forte. E desde há uns tempos já faço a barba.

Mas, e acima de tudo, chamo-me Daniel Thomas Garvey.

Era o nome do meu pai e do meu avô.

Este nome honra-me. E a honra é a única coisa que nunca ninguém poderá tirar-

-me.

FIM

Jackie French KollerMoi, Daniel, cireur de chaussures

Paris, Hachette Jeunesse, 1997(Tradução e adaptação)