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Gilles deleuze a filosofia crítica de kant

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Text of Gilles deleuze a filosofia crítica de kant

  • Nesta coleo publicam-se

    textos considerados representativos dos nomes importantes da Filosofia,

    assim como de investigadores de reconhecido mrito

    nos mais diversos campos do pensamento filosfico.

  • 1 - A EPISTEMOLOGIA

    Gaston Bacheland 2 - IDEOLOGIA E RACIONALIDADE NAS CINCIAS DA VIDA

    Georges Canguilhem 3 - A FILOSOFIA CRITICA DE KANT

    Gilles Deleuze 4 - O NOVO ESPRITO CIENTFICO

    Gaston Bachclard 5 - A FILOSOFIA CHINESA

    Max Kaltenmark 6 - A FILOSOFIA DA MATEMTICA

    Ambrosio Giacomo Manno 7 - PROLEGMENOS A TODA A METAFSICA FUTURA

    Immanuel Kant 8 - ROUSSEAU E MARX

    Galvano Delta Volpe 9 - BREVE HISTRIA DO ATESMO OCIDENTAL

    Jantes Thrower II) - FILOSOFIA DA FSICA

    Mario Bunge 11 - A TRADIO INTELECTUAL DO OCIDENTE

    J. Bronowsk e Bruce Mazlish 12 - A LGICA COMO CINCIA HISTRICA

    Galvano DeIla Volpe 13 - A HISTRIA DA LGICA - DE ARISTTELES A BERTRAND RUSSEL

    Robert Blanch 14 - A RAZO

    Gilles-Gaston Granger 15 - HERMENUTICA

    Richard E. Palmer 16 - A FILOSOFIA ANTIGA

    Emanuele Severino 17 - A FILOSOFIA MODERNA

    Emanuele Severino 18 - A FILOSOFIA CONTEMPORNEA

    Emanuele Severino 19 - EXPOSIO E INTERPRETAO DA FILOSOFIA TERICA DE KANT

    Felix Grayeff 20 - TEORIAS DA LINGUAGEM. TEORIAS DA APRENDIZAGEM

    Massimo Piattelli - Palmarini (org.) 21 - A REVOLUO NA CINCIA 1500-1700

    A. Rupert HalI 22 - INTRODUO FILOSOFIA DA HISTRIA DE HEGEL

    Jean Hyppolite 23 - AS FILOSOFIAS DA CINCIA

    Rum Harr 24 - GALILEU E NEWTON LIDOS POR EINSTEIN

    Franoise Balibar 25 - A S RAZES DA CINCIA

    Ludovico Geymonat e Giulio Giorello 26 - A FILOSOFIA DE DESCARTES

    John Cottingham 27 - INTRODUO A HEIDEGGER

    Gianni Vattmo 28 - HERMENUTICA E SOCIOLOGIA DO CONHECIMENTO

    Susan J. Hekman 29 - EPISTEMOLOGIA CONTEMPORNEA

    Jonathan Dane),30 - HERMENUTICA CONTEMPORNEA

    Josef Bleicher 31 - CRTICA DA RAZO CIENTFICA

    Kurt Hbner

  • A FILOSOFIA CRTICA

    DE KANT

  • Ttulo original: La philosophie critique de Kant

    1963, Presses Universitaires de France

    Traduo de Germiniano Franco

    Capa de Edies 70

    Todos os direitos reservados para lngua portuguesa por Edies 70, Lda. Lisboa Portugal

    Depsito legal n 84760/94

    ISBN: 972-44-0289-4

    EDIES 70, LDA. Rua Luciano Cordeiro, 123 - 2. Esq. 1069-157 Lisboa / Portugal

    Tel.: 21 3190240 Fax: 21 3190249

    Esta obra est protegida pela lei. No pode ser reproduzida, no todo ou em parte, qualquer que seja o modo utilizado,

    incluindo fotocpia e xerocpia, sem prvia autorizao do Editor. Qualquer transgresso lei dos Direitos do Autor ser passvel

    de procedimento judicial.

  • Introduo

    O MTODO TRANSCENDENTAL A razo segundo Kant

    Kant define a filosofia como a cincia da relao entre todos os

    conhecimentos e os fins essenciais da razo humana; ou como o amor que o ser racional experimenta pelos fins supremos da razo humana (1). Os fins supremos da Razo formam o sistema da Cultura. Reconhecemos j nestas definies uma dupla luta: contra o empirismo, contra o racionalismo dogmtico.

    Para o empirismo, a razo no , falando com propriedade, faculdade dos fins. Estes remetem para uma afetividade primordial, para uma natureza capaz de os estabelecer. A originalidade da razo consiste antes numa certa maneira de realizar fins comuns ao homem e ao animal. A razo faculdade de ajustar meios indiretos, oblquos; a cultura manha, clculo, rodeio. Decerto que os meios originais reagem sobre os fins e os transformam; porm, em ltima instncia, os fins so sempre os da natureza.

    Contra o empirismo, Kant afirma que h fins da cultura, fins inerentes razo. Mais ainda, s os fins culturais podem ser considerados absolutamente derradeiros. O fim ltimo um ______________________

    (1) Crtica da Razo pura (CRP), e Opus postumum.

  • fim de tal ordem que a natureza no pode bastar para o efetuar e realizar em conformidade com a idia, pois tal fim absoluto (2).

    Os argumentos de Kant a este respeito so de trs espcies. Argumento de valor: se a razo apenas servisse para realizar fins da natureza, vemos mal como poderia ela ter um valor superior simples animalidade ( evidente que deve possuir, na medida em que existe, uma utilidade e um uso naturais; mas ela no existe seno em relao com uma utilidade mais elevada donde retira o seu valor). Argumento por absurdo: se a Natureza tivesse querido... (Se a natureza tivesse querido realizar os seus prprios fins num ser dotado de razo teria feito mal em confiar-se ao que h nele de racional, tendo sido prefervel que se entregasse ao instinto, tanto pelos meios como pelo fim.) Argumento de conflito: se a razo no passasse de uma faculdade dos meios, no se percebe de que modo dois gneros de fins poderiam opr-se no homem, como espcie animal e como espcie moral (por exemplo, deixo de ser uma criana do ponto de vista da Natureza quando me torno capaz de ter filhos; mas sou ainda uma criana do ponto de vista da cultura, j que no possuo ofcio, que me falta apren-der tudo).

    O racionalismo, por seu lado, reconhece sem dvida que o ser dotado de razo persegue fins propriamente racionais. Mas, neste caso, o que a razo apreende como fim ainda algo exterior e superior: um Ser, um Bem, um Valor, tomados como regra. da vontade. Por conseguinte, h menos diferena do que se poderia crer entre o racionalismo e o empirismo. Um fim uma representao que determina a vontade. Enquanto a representao a de alguma coisa exterior vontade, importa pouco que ela seja sensvel ou puramente racional; de qualquer maneira, ela s determina o querer pela satisfao ligada ao objeto que representa. Quer se considere uma representao sensvel ou racional, o sentimento de prazer pelo qual elas formam o princpio determinante da vontade... de uma nica e mesma espcie, no apenas na medida em que ele nunca pode ser conhecido seno empiricamente, mas tambm em virtude de afetar uma nica e mesma fora vital (3).

    Contra o racionalismo, Kant pe em realce que no somente os fins supremos so fins da razo, como ainda a razo no estabelece outra coisa seno ela prpria ao estabelec-los. Nos fins ________________________

    (2) Crtica do Juzo (CJ), 84. (3) Crtica da Razo prtica (CRPr), Analtica, esclio 1 do teorema 2.

  • da razo, a razo que se toma a si mesma como fim. H, pois, interesses da razo, mas, alm disso, a razo o nico juiz dos seus prprios interesses. Os fins ou interesses da razo no so julgveis nem pela experincia nem por outras instncias que permaneam exteriores ou superiores razo. Kant recusa de antemo as decises empricas e os tribunais teolgicos. Todos os conceitos, inclusive todas as questes que a razo pura nos prope, residem no na experincia, mas na razo... Foi a razo que engendrou sozinha estas idias no seu seio; incumbe-lhe portanto a ela dar conta do respectivo valor ou inanidade (4). Uma Crtica imanente, a razo como juiz da razo, tal o princpio essencial do mtodo dito transcendental. Este mtodo prope-se determinar: 1. A verdadeira natureza dos interesses ou dos fins da razo; 2. Os meios de realizar estes interesses.

    Primeiro sentido da palavra faculdade

    Toda a representao est relacionada com algo diferente de si, objeto e sujeito. Distinguimos tantas faculdades do esprito quantos os tipos de relaes existentes. Em primeiro lugar, uma representao pode ser referida ao objeto do ponto de vista do acordo ou da conformidade: este caso, o mais simples, define a faculdade de conhecer. Mas, em segundo lugar, a representao pode entrar numa relao de causalidade com o seu objeto. Tal o caso da faculdade de desejar: faculdade de ser pelas suas representaes causa da realidade dos objetos destas representaes. (Objectar-se- que existem desejos impossveis; mas, neste exemplo, est ainda implicada na representao como tal uma relao causal, se bem que esta depare com uma outra causalidade que acaba de contradizer. A superstio mostra ampla-mente que nem sequer a conscincia da nossa impotncia pode refrear os nossos esforos) (5). Enfim, a representao est em relao com o sujeito, visto que tem um certo efeito sobre ele, visto que o afeta intensificando ou entravando a sua fora vital. Esta terceira relao define, como faculdade, o sentimento de prazer e de dor.

    Talvez no haja prazer sem desejo, desejo sem prazer, prazer e desejo sem conhecimento..., etc. Mas a questo no

    ____________________

    (4) CRP, Metodologia, da impossibilidade em que se v a razo em desacordo consigo mesma de encontrar a paz no cepticismo.

    (5) CJ, introd., 3.

  • esta. No se trata de saber quais as misturas de fato. Trata-se de saber se cada uma destas faculdades, tal como definida de direito, capaz de uma forma superior. Diz-se que uma faculdade tem uma forma superior quando ela acha em si mesma a lei do seu prprio exerccio (ainda que, desta lei, decorra uma relao necessria com uma das outras faculdades). Sob a sua forma superior, uma faculdade , pois, autnoma. A Crtica da Razo pura comea por perguntar: h uma faculdade de conhecer superior? A Crtica da Razo prtica: h uma faculdade de desejar superior? A Crtica do Juzo: h uma forma superior do prazer e da dor? (Durante muito tempo, Kant s admitiu esta ltima possibilidade.)

    Faculdade de conhecer superior

    Uma representao no basta s por si para formar um conhecimento. Para conhecermos alguma coisa, necessrio no s termos uma representao mas tambm sairmos dela para reconhecer uma outra como estando-lhe ligada. O conhecimento , portanto, sntese de representaes. Pensamos encontrar fora do conceito A um predicado F que estranho a este conceito, mas que julgamos dever unir a ele; afirmamos do objeto de uma representao algo que no est contido nesta representao. Ora, uma tal sntese apresenta-se sob duas formas: a posteriori, quando ela depende da experincia. Se digo esta linha reta branca, trata-se realmente de um encontro entre duas determinaes indiferentes: nem todas as linhas ratas so brancas e as que o so no o so necessariamente.

    Ao invs, quando digo a linha reta o mais curto caminho, tudo aquilo que muda tem uma causa, opero uma sntese a priori : afirmo B acerca de A supondo o primeiro necessria e universalmente ligado ao segundo. (B , pois, ele prprio, uma representao a priori ; quanto a A, pode s-lo ou no.) Os caracteres do a priori so o universal e o necessrio. Mas a definio do a priori : independente da experincia. Pode acontecer que o a priori se aplique experincia e, em certos casos, no se aplique seno a ela; mas no deriva dela. Por definio, no h experincia que corresponda s palavras todos, sempre, necessariamente... O mais curto no um comparativo ou o resultado de uma induo, mas uma regra a priori pela qual gero uma linha enquanto linha reta. Causa tambm no o produto de uma induo, mas um conceito a priori pelo qual reconheo na experincia alguma coisa que acontece.

  • Sempre que a sntese for emprica, a faculdade de conhecer aparece sob a sua forma inferior: encontra a sua lei na experincia e no em si mesma. Mas, a sntese a priori define uma faculdade de conhecer superior. Com efeito, esta j se no pauta por objetos que lhe dariam uma lei; pelo contrrio, a sntese a priori que atribui ao objeto uma propriedade que no estava contida na representao. E ento preciso que o prprio objeto seja submetido sntese de representao, que ele mesmo se paute pela nossa faculdade de conhecer, e no o inverso. Quando a faculdade de conhecer acha em si mesma a sua prpria lei, legisla desta sorte sobre os objetos de conhecimento.

    Eis porque a determinao de uma forma superior da faculdade de conhecer ao mesmo tempo a determinao de um interesse da Razo: Conhecimento racional e conhecimento a priori so coisas idnticas, ou os juzos sintticos a priori so igualmente princpios do que se deve denominar as cincias teorticas da razo (6). Um interesse da razo define-se por aquilo por que a razo se interessa, em funo do estado superior de uma faculdade. A Razo experimenta naturalmente um interesse especulativo; e experimenta-o pelos objetos que so necessariamente submetidos faculdade de conhecer sob a sua forma superior.

    Se perguntarmos agora: quais so esses objetos?, vemos imediatamente que seria contraditrio responder as coisas em si. Como que uma coisa tal qual ela em si poderia ser submetida nossa faculdade de conhecer e pautar-se por ela? S o podem em princpio os objetos tais como eles aparecem, ou seja, os fenmenos. (Assim, na Crtica da Razo pura, a sntese a priori independente da experincia, mas no se aplica seno aos objetos da experincia.) V-se, pois, que o interesse especulativo da razo incide naturalmente sobre os fenmenos e apenas sobre eles. No se creia que Kant tem necessidade de longas demonstraes para chegar a este resultado: um ponto de partida da Crtica, o verdadeiro problema da Crtica da Razo pura comea para l dele. Se s houvesse o interesse especulativo, seria bastante duvidoso que a razo se empenhasse alguma vez em consideraes sobre as coisas em si.

    Faculdade de desejar superior

    A faculdade de desejar pressupe uma representao que determina a vontade. Mas bastar, desta vez, invocar a

    __________________

    (6) CRPr, prefcio; CRP, introd. 5.

  • existncia de representaes a priori para que a sntese da vontade e da representao seja ela prpria a priori ? Na verdade, o problema coloca-se de forma assaz diversa. Mesmo quando uma representao a priori , ela determina a vontade por intermdio de um prazer ligado ao objeto que representa: a sntese permanece assim emprica ou a posteriori; a vontade, determinada de maneira patolgica; a faculdade de desejar, num estado inferior. Para que esta alcance a sua forma superior, preciso que a representao deixe de ser uma representao de objeto, mesmo a priori . E preciso que seja a representao de uma pura forma. Se tirarmos por abstrao a uma lei toda a matria, ou seja, todo o objeto da vontade como princpio determinante, nada mais resta que a simples forma de uma legislao universal (7). A faculdade de desejar , pois, superior, e a sntese prtica que lhe corres-ponde a priori , quando a vontade j no determinada pelo prazer, mas pela simples forma da lei. Ento, a faculdade de desejar j no encontra a sua lei fora de si mesma, numa matria ou num objeto, mas em si mesma: diz-se autnoma (8).

    Na lei moral, a razo por si mesma (sem o intermdio de um sentimento de prazer ou de dor) que determina a vontade. H, pois, um interesse da razo correspondente faculdade de desejar superior: interesse prtico, que se no confunde nem com um interesse emprico nem com o interesse especulativo. Kant no cessa de lembrar que a Razo prtica profundamente interessada. Pressentimos assim que a Crtica da Razo prtica vai desenvolver-se paralelamente Crtica da Razo pura: trata-se, antes de mais, de saber qual a natureza deste interesse e o que ele abarca. Isto : achando a faculdade de. desejar a sua prpria lei em si mesma, qual o campo de incidncia desta legislao? Quais os seres ou os objetos que se encontram submetidos sntese prtica? Todavia, no est posto de parte que, mau grado o paralelismo das questes, a resposta seja aqui muito mais complexa do que no caso precedente. Ser-nos- assim permitido adiar para mais tarde o exame desta resposta. (Mais ainda: ser-nos- provisoriamente permitido no examinar a questo de uma forma superior do prazer e da dor, porquanto o sentido desta questo pressupe tambm as duas outras Crticas.)

    ___________________ (7) CRPr, Analtica, teorema 3. (8) Para a Crtica da Razo prtica, deve consultar-se a introduo de M.

    ALQUI, na edio das Presses Universitaires de France, e o livro de VIALATOUX, na coleo SUP-Initiation philosophique.

  • Basta-nos reter o princpio de uma tese essencial da Crtica em geral: h interesses da razo que diferem em natureza. Estes interesses formam um sistema orgnico e hierarquizado, que o dos fins do ser racional. Acontece que os racionalistas s retm o interesse especulativo: afigura-se-lhes que os interesses prticos apenas decorrem daquele. Mas tal inflao do interesse especulativo tem duas conseqncias aborrecidas: -se induzido em erro quanto aos verdadeiros fins da especulao, mas, acima de tudo, restringe-se a razo a um s dos seus interesses. A pretexto de desenvolver o interesse especulativo, mutila-se a razo nos seus interesses mais profundos. A idia de uma pluralidade (e de uma hierarquia) sistemtica dos interesses, em conformidade com o primeiro sentido da palavra faculdade, domina o mtodo kantiano. Esta idia um autntico princpio, princpio de um sistema dos fins.

    Segundo sentido da palavra faculdade

    Num primeiro sentido, faculdade remete para as diversas relaes de uma representao em geral. Mas, num segundo sentido, faculdade designa uma fonte especfica de representaes. Distinguir-se-o assim tantas faculdades quantas as espcies de representaes existentes. O quadro mais simples, do ponto de vista do conhecimento, o seguinte: 1. Intuio (representao singular que se refere imediatamente a um objeto de experincia e que tem a sua fonte na sensibilidade); 2. Conceito (representao que se refere mediatamente a um objeto de experincia, por intermdio de outras representaes, e que tem a sua fonte no entendimento); 3. Idia (conceito que supera igualmente a possibilidade da experincia e que tem a sua fonte na razo) (9).

    No entanto, a noo de representao, tal como a empregamos at agora, permanece vaga. De uma maneira mais precisa, devemos distinguir a representao e o que se apresenta. O que se nos apresenta , em primeiro lugar, o objeto tal como ele aparece. Ainda aqui a palavra objeto est a mais. O que se nos apresenta ou o que aparece na intuio , antes de tudo, o fenmeno enquanto diversidade sensvel emprica (a posteriori). Vemos que, em Kant, fenmeno no quer dizer aparncia, mas apario (10). ___________________

    (9) CRP, Dialctica, Das idias em geral. (10) CRP, Esttica, 8 (No digo que os corpos se limitam a parecer existir

    fora de mim... Enganar-me-ia se no visse seno uma pura aparncia naquilo que deveria olhar como um fenmeno).

  • O fenmeno aparece no espao e no tempo: o espao e o tempo so para ns as formas de toda a apario possvel, as formas puras da nossa intuio ou da nossa sensibilidade. Enquanto tais, so por sua vez apresentaes: neste caso, apresentaes a priori . O que se apresenta no , pois, unicamente a diversidade fenomenal emprica no espao e no tempo, mas a diversidade pura a priori do espao e do tempo em si mesmos. A intuio pura (o espao e o tempo) precisamente a nica coisa que a sensibilidade apresenta a priori .

    Falando com propriedade, no diremos que a prpria intuio a priori seja uma representao nem que a sensibilidade seja uma fonte de representaes. O que conta na representao o prefixo: re-presentao implica uma retomada ativa daquilo que se apresenta, portanto, uma atividade e uma unidade que se distinguem da passividade e da diversidade inerentes sensibilidade como tal. Deste ponto de vista, j no temos necessidade de definir o conhecimento como uma sntese de representaes. a prpria reapresentao que se define como conhecimento, isto , como a sntese do que se apresenta.

    Devemos distinguir, por um lado, a sensibilidade intuitiva como faculdade de recepo e, por outro, as faculdades ativas como fontes de verdadeiras representaes. Tomada na sua atividade, a sntese remete para a imaginao; na sua unidade, para o entendimento; na sua totalidade, para a razo. Temos assim trs faculdades ativas que intervm na sntese, mas que so do mesmo modo fontes de representaes especficas, quando se considera uma delas em relao a outra: a imaginao, o entendimento, a razo. A nossa constituio de tal ordem que possumos uma faculdade receptiva e trs faculdades ativas. (Podemos supor outros seres diferentemente constitudos; por exemplo, um ser divino cujo entendimento seria intuitivo e produziria o diverso. Mas ento todas as suas faculdades se reuniriam numa unidade eminente. A idia de um tal Ser como limite pode inspirar a nossa razo, mas no exprime a nossa razo nem a sua situao relativamente s nossas outras faculdades.)

    Relao entre os dois sentidos da palavra faculdade

    Consideremos uma faculdade no primeiro sentido: sob a sua forma superior, ela autnoma e legislativa; legisla sobre objetos que lhe esto submetidos; corresponde-lhe um interesse da razo. A primeira questo da Crtica em geral, pois: quais so essas formas superiores, que interesses so esses e sobre

  • que incidem eles? Mas sobrevm uma segunda questo: como se realiza um interesse da razo? Isto : o que garante a submisso dos objetos, como so eles submetidos? O que que legisla verdadeiramente na faculdade considerada? E a imaginao, o entendimento ou a razo? V-se que, ao definir-se uma faculdade no primeiro sentido da palavra, de tal sorte que lhe corresponda um interesse da razo, devemos ainda procurar uma faculdade, no segundo sentido, capaz de realizar esse interesse ou de garantir a tarefa legisladora. Por outras palavras, nada nos garante que a razo se encarregue por si mesma de realizar o seu prprio interesse.

    Seja o exemplo da Crtica da Razo pura. Esta comea por descobrir a faculdade de conhecer superior, portanto, o interesse especulativo da razo. Tal interesse incide sobre os fenmenos; com efeito, visto que no so coisas em si, os fenmenos podem ser submetidos faculdade de conhecer, e devem s-lo para que o conhecimento se torne possvel. Mas, perguntamos por outro lado, qual a faculdade, enquanto fonte de representaes, que garante esta submisso e realiza este interesse? Qual a faculdade (no segundo sentido) que legisla na prpria faculdade de conhecer? A clebre resposta de Kant que s o entendimento legisla na faculdade de conhecer ou no interesse especulativo da razo. No , pois, a razo que vela, aqui, pelo seu prprio interesse: A razo pura abandona tudo ao entendimento (11) ...

    Devemos prever que a resposta no ser idntica para cada Crtica: assim, na faculdade de desejar superior, por conseguinte, no interesse prtico da razo, a prpria razo que legisla, no deixando a mais ningum o cuidado de realizar o seu prprio interesse.

    A segunda questo da Crtica em geral comporta ainda um outro aspecto. Uma faculdade legisladora, enquanto fonte de representaes, no suprime todo o emprego das outras faculdades. Quando o entendimento legisla no interesse de conhecer, a imaginao e a razo nem por isso deixam de desempenhar um papel inteiramente original, mas adaptado a tarefas determinadas pelo entendimento. Quando a prpria razo legisla no interesse prtico, o entendimento que deve por seu turno desempenhar um papel original, numa perspectiva determinada pela razo ..., etc. Segundo esta Crtica, o entendimento, a razo e a imaginao entraro em relaes diversas, sob a presidncia de uma das faculdades. H, pois, variaes sistemticas na relao entre faculdades, __________________

    (11) CRP, Dialctica, das idias transcendentais.

    FK - 2

  • consoante consideramos um ou outro interesse da razo. Em suma: a uma certa faculdade no primeiro sentido da palavra (faculdade de conhecer, faculdade de desejar, sentimento de prazer ou de dor) deve corresponder uma certa relao entre faculdades no segundo sentido da palavra (imaginao, entendimento, razo). E por tal motivo que a doutrina das faculdades forma um verdadeiro entrelaamento, constitutivo do mtodo transcendental.

  • Captulo I

    RELAO DAS FACULDADES NA CRTICA DA RAZO PURA

    A priori e transcendental

    Os critrios do a priori so o necessrio e o universal. O a priori define-se como independente da experincia, mas precisamente porque a experincia nunca nos d nada que seja universal e necessrio. As palavras todos, sempre, necessariamente ou mesmo amanh no remetem para coisa alguma na experincia: no derivam da experincia, ainda que a ela se apliquem. Ora, quando conhecemos, empregamos tais palavras: dizemos mais do que aquilo que nos dado, ultrapassamos os dados da experincia. Falou-se muitas vezes da influncia de Hume sobre Kant. Hume, de fato, foi o primeiro a definir o conhecimento por uma tal superao. Conheo, no quando verifico: vi mil vezes o Sol nascer, mas quando julgo: o Sol nascer amanh, todas as vezes que a gua est a 100, entra necessariamente em ebulio ...

    Kant comea por perguntar: qual o fato do conhecimento (quid facti)? O fato do conhecimento termos representaes a priori (graas s quais julgamos). Sejam simples apresentaes: o espao e o tempo, formas a priori da intuio, intuies elas prprias a priori , que se distinguem das apresentaes empricas

  • ou dos contedos a posteriori (por exemplo, a cor vermelha). Sejam representaes propriamente ditas: a substncia, a causa, etc., conceitos a priori que se distinguem dos conceitos empricos (por exemplo, o conceito de leo). A questo quid facti? o objeto da metafsica. Que o espao e o tempo sejam apresentaes ou intuies a priori , tal o objeto do que Kant denomina a exposio metafsica do espao e do tempo. Que o entendimento disponha de conceitos a priori (categorias), os quais se deduzem das formas do juzo, tal o objeto do que Kant denomina a deduo metafsica dos conceitos.

    Se superamos o que nos dado na experincia, em virtude de princpios que so nossos, princpios necessariamente subjetivos. O dado no pode fundar a operao pela qual ultrapassamos o dado. Todavia, no suficiente que tenhamos princpios; no menos necessrio que disponhamos da ocasio de os exercer. Digo o Sol nascer amanh, mas amanh no se torna presente sem que o Sol nasa realmente. No tardaramos a perder a ocasio de exercer os nossos princpios se a prpria experincia no viesse confirmar e como que efetivar as nossas superaes. Importa, pois, que o prprio dado da experincia seja submetido a princpios do mesmo gnero que os princpios subjetivos que pautam as nossas diligncias. Se o Sol umas vezes nascesse e outras no; se o cinbrio fosse ora vermelho ora negro, ora pesado ora leve; se um homem se transformasse ora num animal ora noutro; se durante um longo dia a terra apare-cesse coberta ora de frutos ora de gelo e neve, a minha imaginao emprica no encontraria ocasio de receber no pensamento o pesado cinbrio com a representao da cor vermelha...; a nossa imaginao emprica nunca teria algo para fazer que fosse conforme sua potncia e, por conseguinte, quedar-se-ia enterrada no fundo do esprito como uma faculdade morta e desconhecida de ns mesmos (1).

    Vemos assim em que ponto se realiza a ruptura entre Kant Hume. Hume tinha visto muito bem que o conhecimento implica princpios subjetivos, pelos quais superamos o dado. Mas estes princpios pareciam-lhe apenas princpios da natureza humana, princpios psicolgicos de associao concernentes s nossas prprias representaes. Kant transforma o problema: o que se nos apresenta de maneira a formar uma Natureza deve necessariamente obedecer a princpios do mesmo gnero (mais ainda, aos mesmos princpios) que aqueles que regulam o curso _________________

    (1) CRP, Analtica, 1. ed., da sntese da reproduo na imaginao.

  • das nossas representaes. So os mesmos princpios que devem dar conta dos nossos procedimentos subjetivos e tambm do fato de o dado se submeter aos nossos procedimentos. O que equivale a dizer que a subjetividade dos princpios no uma subjetividade emprica ou psicolgica, mas uma subjetividade transcendental.

    Eis porque, questo de fato, sucede uma mais alta questo: questo de direito, quid juris? No basta verificar que, de fato, temos representaes a priori . ainda indispensvel que se nos torne claro por que motivo e de que modo tais representaes se aplicam necessariamente experincia, conquanto dela no derivem. Por que motivo e de que modo est o dado que se apresenta na experincia necessariamente submetido aos mesmos princpios que os que regulam a priori as nossas representaes (portanto, submetido s nossas prprias representaes a priori )? Tal a questo de direito. A priori designa representaes que no derivam da experincia. Transcendental designa o princpio em virtude do qual a experincia necessariamente submetida s nossas representaes a priori . Assim se explica que exposio metafsica do espao e do tempo suceda uma exposio transcendental. E deduo metafsica das categorias, uma deduo transcendental. Transcendental qualifica o princpio de uma submisso necessria dos dados da experincia s representaes a priori e, correlativamente, de uma aplicao necessria das representaes a priori experincia.

    A revoluo copernicana

    No racionalismo dogmtico, a teoria do conhecimento fundava-se na idia de urna correspondncia entre o sujeito e o objeto, de um acordo entre a ordem das idias e a ordem das coisas. Este acordo tinha dois aspectos: implicava em si mesmo uma finalidade; e exigia um princpio teolgico como fonte e garantia dessa harmonia, dessa finalidade. Mas curioso verificar que, numa perspectiva muito diferente, o empirismo de Hume recorria a um expediente semelhante: para explicar que os prin-cpios da Natureza estivessem de acordo com os da natureza humana, Hume era forado a invocar explicitamente uma harmonia preestabelecida.

    A idia fundamental do que Kant denomina a sua revoluo copernicana consiste no seguinte: substituir a idia de uma harmonia entre o sujeito e o objeto (acordo final) pelo princpio de uma submisso necessria do objeto ao sujeito.

  • A descoberta essencial que a faculdade de conhecer legisladora ou, mais precisamente, que h algo de legislador na faculdade de conhecer. (De igual modo, algo de legislador na faculdade de desejar.) Assim, o ser dotado de razo descobre em si novos poderes. A primeira coisa que a revoluo copernicana nos ensina que somos ns que comandamos. H aqui uma inverso da antiga concepo da Sageza: o sbio definia-se de uma certa forma pelas suas prprias submisses, de uma outra forma pelo seu acordo final com a Natureza. Kant ope sageza a imagem crtica: ns, os legisladores da Natureza. Quando um filsofo, aparentemente muito afastado do kantismo, anuncia a substituio de Parere por Jubere, mostra-se mais devedor a Kant do que ele prprio pensa.

    Seria legtimo esperar que o problema de uma submisso do objeto pudesse ser facilmente resolvido do ponto de vista de um idealismo subjetivo. Mas nenhuma soluo mais estranha ao kantismo. O realismo emprico uma constante da filosofia crtica. Os fenmenos no so aparncias, mas tambm no so produtos da nossa atividade. Afetam-nos na medida em que somos sujeitos passivos e receptivos. Podem ser-nos submetidos, precisamente porque no se trata de coisas em si. Mas como o sero, sabendo-se que no somos ns que os produzimos? Como que um sujeito passivo pode ter, por outro lado, uma faculdade ativa de tal ordem que as afeces que ele experimenta sejam necessariamente submetidas a esta faculdade? Em Kant, o problema da relao do sujeito e do objeto tende, pois, a interiorizar-se: converte-se no problema de uma relao entre faculdades subjetivas que diferem em natureza (sensibilidade receptiva e entendimento ativo).

    A sntese e o entendimento legislador

    Representao quer dizer sntese do que se apresenta. A sntese consiste, portanto, no seguinte: uma diversidade representada, ou seja, tida como encerrada numa representao. A sntese tem dois aspectos: a apreenso, pela qual fixamos o diverso como ocupando um certo espao e um certo tempo, pela qual produzimos partes no espao e no tempo; a reproduo, pela qual reproduzimos as partes precedentes medida que chegamos s seguintes. A sntese assim definida no incide somente sobre a diversidade tal como aparece no espao e no tempo, mas sobre a diversidade do espao e tempo em si mesmos. Sem ela, com efeito, o espao e o tempo no seriam representados.

  • A sntese, quer como apreenso quer como reproduo, sempre definida por Kant como um ato da imaginao (2). Mas a questo : ser inteiramente exato dizer, como fizemos precedentemente, que a sntese basta para constituir o conhecimento? Na verdade, o conhecimento implica duas coisas que extravasam a prpria sntese: ele implica a conscincia ou, mais precisamente, a pertena das representaes a uma mesma conscincia na qual devem estar ligadas. Ora, a sntese da imaginao, tomada em si mesma, no de modo algum conscincia de si (3). Por outro lado, o conhecimento implica uma relao necessria com um objeto. O que constitui o conhecimento no simples-mente o ato pelo qual se faz a sntese do diverso, mas 'o ato pelo qual se refere a um objeto o diverso representado (recognio: uma mesa, uma ma, tal ou tal objeto...).

    Estas duas determinaes do conhecimento tm uma relao profunda. As minhas representaes so minhas enquanto esto ligadas na unidade de uma conscincia, de tal sorte que o Eu penso as acompanha. Ora, as representaes no esto assim unidas numa conscincia sem que o diverso que sintetizam esteja no mesmo passo referido a um objeto qualquer. Sem dvida, conhecemos unicamente objetos qualificados (qualificados como tal ou tal por uma diversidade). Mas nunca o diverso se referiria a um objeto se porventura no dispusssemos da objetividade como de uma forma em geral (objeto qualquer, objeto = x). Donde vem esta forma? O objeto qualquer o correlato do Eu penso ou da unidade da conscincia, a expresso do Cogito, sua objetivao formal. Por isso, a verdadeira frmula (sinttica) do Cogito : penso e, pensando-me, penso o objeto qualquer ao qual se refere uma diversidade representada.

    A forma do objeto no remete para a imaginao, mas para o entendimento: Sustento que o conceito de um objeto em geral, que no possvel encontrar na mais clara conscincia da intuio, pertence ao entendimento como a uma faculdade particular (4). Com efeito, todo o uso do entendimento se desenvolve a partir do Eu penso; mais ainda, a unidade do Eu penso o prprio entendimento (5). O entendimento dispe de

    ________________________ (2) CRP, Analtica, passim (cf. 1. ed., da relao entre o entendimento e

    objetos em geral: H uma faculdade ativa que opera a sntese dos elementos diversos: denominamo-la imaginao, e sua ao que se exerce imediatamente nas percepes, chamo-lhe apreenso).

    (3) CRP, Analtica, 10. (4) Carta a Herz, 26 de Maio de 1789. (5) CRP, Analtica, 16.

  • conceitos a priori que se chamam categorias; se perguntarmos como que as categorias se definem, veremos que so ao mesmo tempo representaes da unidade da conscincia e, como tais, predicados do objeto qualquer. Por exemplo, nem todos os objetos so vermelhos, e os que o so no o so necessariamente; mas no h objeto que no seja necessariamente substncia, causa e efeito de outra coisa, que no esteja em relao recproca com outra coisa. A categoria confere assim sntese da imaginao uma unidade sem a qual esta nos no proporcionaria conhecimento algum propriamente dito. Em suma, podemos dizer o que incumbe ao entendimento: no a prpria sntese, mas a unidade da sntese e as expresses desta unidade.

    A tese kantiana : os fenmenos esto necessariamente submetidos s categorias, de tal modo que, pelas categorias, somos os verdadeiros legisladores da Natureza. Mas a questo , antes de mais: por que motivo precisamente o entendimento (e no a imaginao) o legislador? Por que motivo ele que legisla na faculdade de conhecer? Para encontrar a resposta a esta questo, talvez baste comentar os respectivos termos. E evidente que no poderamos perguntar: porque que os fenmenos esto submetidos ao espao e ao tempo? Os fenmenos so o que aparece, e aparecer estar imediatamente no espao e no tempo. Como unicamente mediante estas puras formas da sensibilidade que uma coisa pode aparecer-nos, isto , tornar-se objeto de intuio emprica, o espao e o tempo so puras intuies que contm a priori a condio da possibilidade dos objetos como fenmenos (6). Eis porque o espao e o tempo so objeto de uma exposio, no de uma deduo; e a sua exposio transcendental, comparada exposio metafsica, no levanta qualquer dificuldade particular. No possvel, portanto, dizer que os fenmenos esto submetidos ao espao e ao tempo: no s porque a sensibilidade passiva, mas sobretudo porque ela imediata, alm de a idia de submisso implicar, ao invs, a interveno de um mediador, isto , de uma sntese que refira os fenmenos a uma faculdade ativa capaz de ser legisladora.

    Por conseguinte, a imaginao tambm no faculdade legisladora. A imaginao encarna precisamente a mediao, opera a sntese que refere os fenmenos ao entendimento como nica faculdade que legisla no interesse de conhecer. por isso que Kant escreve: A razo pura abandona tudo ao entendimento, o qual se aplica imediatamente aos objetos da intuio ou, antes, ______________

    (6) CRP, Analtica, 13.

  • sntese destes objetos na imaginao (7). Os fenmenos no so submetidos sntese da imaginao, so submetidos por esta sntese ao entendimento legislador. Ao contrrio do espao e do tempo, as categorias como conceitos do entendimento so, pois, objeto de uma deduo transcendental, que coloca e resolve o problema particular de uma submisso dos fenmenos.

    Eis como o problema resolvido nas suas grandes linhas: 1. Todos os fenmenos esto no espao e no tempo; 2. A sntese a priori da imaginao incide a priori sobre os prprios espao e tempo; 3. Os fenmenos esto, portanto, necessariamente submetidos unidade transcendental desta sntese e s categorias que a representam a priori. E realmente neste sentido que o entendimento legislador: sem dvida, ele no nos diz as leis a que estes ou aqueles fenmenos obedecem do ponto de vista da sua matria, embora constitua as leis a que todos os fenmenos esto submetidos do ponto de vista da sua forma, de tal maneira que eles formam uma Natureza sensvel em geral.

    Papel da imaginao

    Perguntamos agora o que faz o entendimento legislador com os seus conceitos ou as suas unidades de sntese. Ele julga: O entendimento no pode fazer destes conceitos outro uso alm do de julgar por seu intermdio (8). Perguntamos ainda: que faz a imaginao com as suas snteses? Segundo a clebre resposta de Kant, a imaginao esquematiza. No se confundiro, pois, na imaginao, a sntese e o esquema. O esquema pressupe a sntese. A sntese a determinao de um certo espao e de um certo tempo, pela qual a diversidade referida ao objeto em geral conformemente s categorias. Mas o esquema uma determinao espao-temporal, ela mesma correspondente categoria, em qualquer tempo e em qualquer lugar: no consiste numa imagem, mas em relaes espao-temporais que encarnam ou realizam relaes propriamente conceptuais. O esquema da imaginao a condio sob a qual o entendimento legislador faz juzos com os seus conceitos, juzos que serviro de princpio a todo o conhecimento do diverso. No responde questo: __________________

    (7) CRP, Dialctica, das idias transcendentais. (8) CRP, Analtica, do uso lgico do entendimento em geral. A

    questo de saber se o juzo implica ou forma uma faculdade particular ser examinada no captulo III.

  • como que os fenmenos so submetidos ao entendimento?, mas a estoutra questo: como que o entendimento se aplica aos fenmenos que lhe so submetidos?

    Na circunstncia de relaes espao-temporais poderem ser adequadas a relaes conceptuais (apesar da sua diferena de natureza) reside, na opinio de Kant, um profundo mistrio e uma arte escondida. Mas no devemos apoiar-nos neste texto para pensar que o esquematismo o ato mais profundo da imaginao ou a sua arte mais espontnea. O esquematismo um ato original da imaginao: s ela esquematiza. Mas s esquematiza quando o entendimento preside ou tem o poder legislador. Ela. apenas esquematiza no interesse especulativo. Quando o entendimento se encarrega do interesse especulativo, por conseguinte, quando se torna determinante, ento e s ento a imaginao determinada a esquematizar. Veremos mais adiante as conseqncias de tal situao.

    Papel da razo

    O entendimento julga, mas a razo raciocina. Ora, conformemente doutrina de Aristteles, Kant concebe o raciocnio de maneira silogstica: dado um conceito do entendimento, a razo procura um meio-termo, isto , outro conceito que, tomado em toda a sua extenso, condicione a atribuio do primeiro conceito a um objeto (assim, homem condiciona a atribuio de mortal a Caio). Deste ponto de vista, pois relativamente aos conceitos do entendimento que a razo exerce o seu gnio prprio: A razo chega a um conhecimento por meio de atos do entendimento que constituem uma srie de condies (9). Mas, precisamente, a existncia de conceitos a priori do entendimento (categorias) coloca um problema particular. As categorias aplicam-se a todos os objetos da experincia possvel; para encontrar um meio-termo que fundamente a atribuio do conceito a priori a todos os objetos, a razo j no pode dirigir-se a um outro conceito (mesmo a priori ), antes deve formar Idias que superam a possibilidade da experincia. assim que a razo induzida de uma certa maneira, no seu prprio interesse especulativo, a formar Idias transcendentais. Estas representam a totalidade das condies sob as quais se atribui uma categoria de relao aos objetos da experincia possvel; representam ento algo __________________

    (9) CRP, Dialctica, das idias transcendentais.

  • de incondicional (10). o caso do sujeito absoluto (Alma) relativamente categoria de substncia, da srie completa (Mundo) relativamente categoria de causalidade, do todo da realidade (Deus como ens realissimum) relativamente comunidade.

    Tambm aqui se v que a razo desempenha um papel que s ela capaz de assumir; mas determinada a desempenhar tal papel. A razo s tem propriamente como objeto o entendimento e o seu emprego conforme ao seu fim (11). Subjetivamente, as Idias da razo referem-se aos conceitos do entendimento para lhes conferir ao mesmo tempo um mximo de unidade e de extenso sistemticas. Sem a razo, o entendimento no reuniria num todo o conjunto das suas diligncias respeitantes a um objeto. Eis porque razo, a no prprio momento em que abandona ao entendimento o poder legislativo no interesse do conhe-cimento, no deixa de conservar um papel ou, melhor, recebe em troca, do prprio entendimento, uma funo original: constituir focos ideais fora da experincia, para os quais convergem os conceitos do entendimento (mximo de unidade); formar horizontes superiores que refletem e abarcam os conceitos do entendimento (mximo de extenso) (12). A razo pura abandona tudo ao entendimento, que se aplica imediatamente aos objetos da intuio ou, antes, sntese destes objetos na imaginao. Reserva somente para si a absoluta totalidade no uso dos conceitos do entendimento e procura impelir a unidade sinttica concebida na categoria at ao incondicional absoluto (13).

    A razo tem tambm um papel, objetivamente, pois o entendimento s pode legislar sobre os fenmenos do ponto de vista da forma. Ora, suponhamos que os fenmenos se encontram submetidos unidade da sntese mas apresentam, do ponto de vista da sua matria, uma diversidade radical: igualmente aqui, o entendimento deixaria de ter ocasio de exercer o seu poder (desta vez: a ocasio material). J nem sequer haveria conceito de gnero, ou conceito geral, e, por conseqncia, entendimento (14). , portanto, necessrio, no apenas que os fenmenos do ponto de vista da forma estejam submetidos s categorias, mas ainda que os fenmenos do ponto de vista da matria correspondam ou simbolizem com as Idias da razo. __________________

    (10) CRP, bd. (11) CRP, Dialctica, apndice, do uso regulador das idias. (12) CRP, ibid.. (13) CRP, Dialctica, das idias transcendentais. (14) CRP, Dialctica, apndice, do uso regulador das idias.

  • Reintroduzem-se a este nvel uma harmonia, uma finalidade. Mas v-se que, neste caso, a harmonia simplesmente postulada entre a matria dos fenmenos e as Idias da razo. No lcito dizer, com efeito, que a razo legisla sobre a matria dos fenmenos. Ela deve supor uma unidade sistemtica da Natureza, deve fixar esta unidade como problema ou, como limite e pautar todas as suas diligncias pela idia deste limite at ao infinito. A razo , pois, a faculdade que diz: tudo se passa como se... No afirma de modo algum que a totalidade e a unidade das condies so dadas no. objeto, mas apenas que os objetos nos permitem tender para esta unidade sistemtica como para o mais alto grau do nosso conhecimento. Assim, os fenmenos na sua matria correspondem de fato com as Idias, e as Idias com a matria dos fenmenos; porm, em vez de uma submisso necessria e determinada, temos aqui apenas uma correspondncia, um acordo indeterminado. A Idia no uma fico, diz Kant; tem um valor objetivo, possui um objeto; mas este objeto igual-mente indeterminado, problemtico. Indeterminada no seu objeto, determinvel por analogia com os objetos da experincia, carregando o ideal de uma determinao infinita relativamente aos conceitos do entendimento: tais so os trs aspectos da Idia. A razo no se contenta, pois, em raciocinar relativamente aos conceitos do entendimento, ela simboliza relativamente matria dos fenmenos (15).

    Problema da relao entre as faculdades: o senso comum

    As trs faculdades ativas (imaginao, entendimento, razo) entram assim numa certa relao, que funo do interesse especulativo. E o entendimento que legisla e julga; mas, sob o entendimento, a imaginao sintetiza e esquematiza, a razo raciocina e simboliza, de tal maneira que o conhecimento tenha um mximo de unidade sistemtica. Ora, todo o acordo das faculdades entre si define aquilo a que se pode chamar um senso comum.

    Senso comum uma expresso perigosa, demasiado marcada pelo empirismo. Portanto, no deve definir-se como um sentido particular (uma faculdade particular emprica). Designa, pelo contrrio, um acordo a priori das faculdades ou, mais

    ___________________ (15) A teoria do simbolismo s aparecer na Crtica do Juzo. Mas a

    analogia, tal como ela descrita no apndice Dialctica da Crtica da Razo pura, o primeiro esboo desta teoria.

  • precisamente, o resultado de um tal acordo (16). Deste ponto de vista, o senso comum aparece, no como um dado psicolgico, mas como a condio subjetiva de toda a comunicabilidade. O conhecimento implica um senso comum, sem o qual no seria comunicvel e no poderia aspirar universalidade. Nesta acepo, Kant nunca renunciar ao princpio subjetivo de um senso comum, ou seja, idia de uma boa natureza das faculdades, de uma. natureza s e reta que lhes permite conciliarem-se umas com as outras e formar propores harmoniosas. A mais alta filosofia, relativamente aos fins essenciais da natureza humana, no pode conduzir mais longe do que o faz a direo concedida ao senso comum. Mesmo a razo, do ponto de vista especulativo, desfruta de uma boa natureza que lhe permite estar em acordo com as outras faculdades: as Idias so-nos dadas pela natureza da nossa razo, e impossvel que o prprio tribunal supremo de todos os direitos e de todas as pretenses da nossa especulao encerre iluses e prestgios originais (17).

    Busquemos, antes de mais, as implicaes da teoria do senso comum, ainda que elas devam suscitar um problema complexo. Um dos pontos mais originais do kantismo a idia de uma diferena de natureza entre as nossas faculdades. Esta diferena de natureza no aparece unicamente entre a faculdade de conhecer, a faculdade de desejar e o sentimento de prazer e de dor, mas tambm entre as faculdades como fontes de representaes. Sensibilidade e entendimento diferem em natureza, uma como faculdade de intuio, a outra como faculdade de conceitos. Tambm aqui, Kant ope-se simultaneamente ao dogmatismo e ao empirismo, que, cada qual sua maneira, afirmavam uma simples diferena de grau (quer diferena de claridade, a partir do entendimento, quer diferena de vivacidade, a partir da sensibilidade). Mas ento, para explicar como a sensibilidade passiva se concilia com o entendimento ativo, Kant invoca a sntese e o esquematismo da imaginao que se aplica a priori s formas da sensibilidade em conformidade com os conceitos. Mas, assim, o problema apenas deslocado: visto que a imaginao e o entendimento diferem tambm, em natureza, e o acordo entre estas duas faculdades ativas no menos misterioso. (O mesmo sucede com o acordo entendimento-razo.)

    Parece que Kant se debate com uma dificuldade temvel. Vimos que ele recusava a idia de uma harmonia preestabelecida

    ______________________ (16) CJ, 40. (17) CRP, Dialctica, apndice, do objetivo final da dialctica.

  • entre o sujeito e o objeto: substitua-se pelo princpio de uma submisso necessria do objeto ao prprio sujeito. Mas acaso no reencontra ele a idia de harmonia, simplesmente transposta para o nvel das faculdades do sujeito, que diferem em natureza? No h dvida de que tal transposio original. Mas no basta invocar um acordo harmonioso das faculdades nem um senso comum como resultado deste acordo; a Crtica em geral exige um princpio do acordo, com uma gnese do senso comum. (O problema de uma harmonia das faculdades to importante que Kant tem tendncia a reinterpretar a histria da filosofia na sua perspectiva: Estou persuadido de que Leibniz, com a sua harmonia preestabelecida, que ele estendia a tudo, no pensava na harmonia de dois seres distintos, ser sensvel e ser inteligvel, mas na harmonia de duas faculdades de um nico e mesmo ser, no qual sensibilidade e entendimento se conciliam para um conhecimento de experincia (18). Mas esta reinterpretao igual-mente ambgua: parece indicar que Kant invoca um princpio supremo finalista e teolgico, da mesma maneira que os seus predecessores. Se queremos ajuizar da origem destas faculdades, ainda que uma tal pesquisa seja de todo em todo feita para l dos limites da razo humana, no podemos indicar outro fundamento que no seja o nosso divino criador (19).)

    Todavia, abordemos com mais mincia o senso comum sob a sua forma especulativa (sensos communis logicus). Ele exprime a harmonia das faculdades no interesse especulativo da razo, ou seja, sob a presidncia do entendimento. O acordo das faculdades aqui determinado pelo entendimento, ou, o que vem a dar no mesmo, faz-se sob conceitos determinados do entendimento. Devemos prever que, do ponto de vista de um outro interesse da razo, as faculdades entram numa outra relao, sob a determinao de outra faculdade, de maneira a formar outro senso comum: por exemplo, um senso comum moral, sob a presidncia da prpria razo. E por isso que Kant diz que o acordo das faculdades capaz de vrias propores (consoante esta ou aquela faculdade que determina a relao) (20). Mas, todas as vezes que nos colocamos assim do ponto de vista de uma relao ou de um acordo j determinado, j especificado, fatal que o senso comum se nos afigure uma espcie de fato a priori , para l do qual no podemos avanar. ___________________

    (18) Carta a Herz, 26 de Maio de 1789. (19) Ibid. (20) CJ, 21.

  • O mesmo dizer que as duas primeiras Crticas no podem resolver o problema originrio da relao entre as faculdades, mas apenas indic-lo, e remeter-nos para este problema como para uma tarefa ltima. Todo o acordo determinado pressupe, com efeito, que as faculdades, mais profundamente, sejam capazes de um acordo livre e indeterminado (21). E somente ao nvel deste acordo livre e indeterminado (sensus communis aestheticus) que poder pr-se o problema de um fundamento do acordo ou de uma gnese do senso comum. Eis porque no devemos esperar da Crtica da Razo pura, nem da Crtica da Razo prtica, a resposta a uma questo que s adquirir o seu verdadeiro sentido na Crtica do Juzo. No que diz respeito a um fundamento para a harmonia das faculdades, as suas primeiras Crticas s na ltima acham o seu acabamento.

    Uso legtimo, uso ilegtimo

    1. Apenas os fenmenos podem ser submetidos faculdade de conhecer (seria contraditrio que as coisas em si o fossem). O interesse especulativo incide, portanto, naturalmente sobre os fenmenos; as coisas em si no so objeto de um interesse especulativo natural. 2. Como que os fenmenos so precisa-mente submetidos faculdade de conhecer, e a qu nesta faculdade? So submetidos, pela sntese da imaginao, ao entendimento e aos seus conceitos. E pois o entendimento que legisla na faculdade de conhecer. Se a razo assim levada a abandonar ao entendimento o cuidado do seu prprio interesse especulativo, porque ela no se aplica aos fenmenos e forma Idias que superam a possibilidade da experincia. 3. O entendimento legisla sobre os fenmenos do ponto de vista da sua forma. Como tal, aplica-se e deve aplicar-se exclusivamente ao que lhe submetido: no nos fornece conhecimento algum das coisas tais como elas so em si.

    Esta exposio no aflora um dos temas fundamentais da Crtica da Razo pura. A ttulos diversos, o entendimento e a razo so profundamente atormentados pela ambio de nos fazerem conhecer as coisas em si. Uma tese constantemente recordada por Kant a de que h iluses internas e usos ilegtimos das faculdades. Acontece s vezes a imaginao sonhar, em lugar de esquematizar. Mais ainda: em lugar de se aplicar ______________

    (21) Ibid.

  • exclusivamente aos fenmenos (uso experimental), acontece ao entendimento pretender aplicar os seus conceitos s coisas tais como elas so em si (uso transcendental): E ainda no o mais grave. Em vez de se aplicar aos conceitos do entendimento (uso imanente ou regulador), acontece razo pretender aplicar-se diretamente a objetos e querer legislar no domnio do conhecimento (uso transcendente ou constitutivo). Porque isto o mais grave? O uso transcendental do entendimento pressupe apenas que este se abstraia da sua relao com a imaginao. Ora, tal abstrao teria apenas efeitos negativos se porventura o entendimento no fosse impelido pela razo, que lhe d a iluso de um domnio positivo a conquistar fora da experincia. Como diz Kant, o uso transcendental do entendimento vem unicamente da circunstncia de este negligenciar os seus prprios limites, ao passo que o uso transcendente da razo nos ordena que transponhamos os limites do entendimento (22).

    neste sentido que a Crtica da Razo pura merece o seu ttulo: Kant denuncia as iluses especulativas da Razo, os falsos problemas para os quais ela nos arrasta, a respeito da alma, do mundo e de Deus. Kant substitui o conceito tradicional de erro (o erro como produto, no esprito, de um determinismo externo) pelo de falsos problemas e de iluses internas. Estas iluses so ditas inevitveis e at tidas como resultantes da natureza da razo (23). Tudo o que a Crtica pode fazer conjurar os efeitos da iluso sobre o prprio conhecimento, mas no impedir a sua formao na faculdade de conhecer.

    Abordamos, desta vez, um problema que respeita plenamente Crtica da Razo pura. Como conciliar a idia das iluses internas da razo ou do uso ilegtimo das faculdades com estoutra idia, no menos essencial ao kantismo: que as nossas faculdades (incluindo a razo) so dotadas de uma boa natureza e se acordam umas com as outras no interesse especulativo? Por um lado, -nos dito que o interesse especulativo da razo incide natural e exclusivamente sobre os fenmenos; por outro, que a razo no pode coibir-se de sonhar com um conhecimento das coisas em si e de se interessar por elas do ponto de vista especulativo.

    Examinemos com mais preciso os dois principais usos ilegtimos. O uso transcendental consiste no seguinte: o entendimento pretende conhecer alguma coisa em geral (logo, independentemente

    __________________ (22) CRP, Dialctica, da aparncia transcendental. (23) CRP, Dialctica, dos raciocnios dialcticos da razo pura e

    apndice,

  • F K-3

    das condies da sensibilidade). Por conseguinte, esse alguma coisa s pode ser a coisa tal como ela em si; e s pode ser pensada como supra-sensvel (nmeno). Mas, na verdade, impossvel que um tal nmeno seja um objeto positivo para o nosso entendimento. O nosso entendimento tem, sem dvida, como cor-relato a forma do objeto qualquer ou o objeto em geral; mas, precisamente, este s objeto de conhecimento na medida em que qualificado por uma diversidade que se lhe refere sob as condies da sensibilidade. Um conhecimento de objeto em geral, que no fosse restringido s condies da nossa sensibilidade, simplesmente um conhecimento sem objeto. O uso puramente transcendental das categorias no de fato um uso e no tem objeto determinado, nem sequer objeto determinvel quanto forma (24).

    O uso transcendente consiste nisto: a razo pretende por si mesma conhecer alguma coisa de determinado. (Ela determina um objeto como correspondendo Idia.) Tendo embora uma formulao aparentemente inversa do uso transcendental do entendimento, o uso transcendente da razo leva ao mesmo resultado: s podemos determinar o objeto de uma Idia supondo que ele existe em si conformemente s categorias (25). Mais ainda, esta suposio que conduz o prprio entendimento ao seu uso transcendental ilegtimo, inspirando-lhe a iluso de um conhecimento de objeto.

    Por muito boa que seja a sua natureza, penoso para a razo ter de se desfazer do cuidado do seu prprio interesse especulativo e remeter para o entendimento o poder legislativo. Mas, neste sentido, nota-se que as iluses da razo triunfam sobretudo enquanto esta permanece no estado de natureza. Ora, no deve confundir-se o estado de natureza da razo com o seu estado civil, nem mesmo com a sua lei natural que se cumpre no estado civil perfeito (26). A Crtica precisamente a instaurao deste estado civil: semelhana do contrato dos juristas, ela implica uma renunciao da razo, do ponto de vista especulativo. Mas quando a razo renuncia assim, o interesse especulativo no deixa de ser o seu prprio interesse, e ela realiza plenamente a lei da sua prpria natureza.

    __________________ (24) CRP, Analtica, do princpio da distino de todos os objetos em

    geral em fenmenos e nmenos. (25) CRP, Dialctica, do objetivo final da dialctica natural. (26) CRP, Metodologia, disciplina da razo pura relativamente ao seu

    uso polmico.

  • Todavia, esta resposta no suficiente. No basta referir as iluses ou perverses ao estado de natureza e a s constituio ao estado civil ou at lei natural. Pois as iluses subsistem sob a lei natural, no estado civil e crtico da razo (mesmo quando elas j no tm o poder de nos enganar). Uma nica sada se abre ento: que a razo, por outro lado, experimenta um interesse propriamente legtimo e natural pelas coisas em si, mas um interesse que no especulativo. Como os interesses da razo no permanecem indiferentes uns aos outros, antes formam um sistema hierarquizado, inevitvel que a sombra do mais alto interesse se projete sobre o outro. Ento, at a iluso toma um sentido positivo e bem fundado, a partir do momento em que cessa de nos enganar: exprime sua maneira a subordinao do interesse especulativo num sistema dos fins. Jamais a razo especulativa se interessaria pelas coisas em si se estas no fossem primeiro e verdadeiramente objeto de um outro interesse da razo (27). Devemos, portanto, perguntar: qual esse interesse mais alto? (E justamente porque o interesse especulativo no o mais alto que a razo pode remeter-se para o entendimento na legislao da faculdade de conhecer.)

    ________________ (27) CRP, Metodologia, do objetivo final do uso puro da nossa razo.

  • Captulo II

    RELAO DAS FACULDADES NA CRTICA DA RAZO PRTICA

    A razo legisladora

    Vimos que a faculdade de desejar era capaz de uma forma superior: quando ela era determinada no por representaes de objetos (sensveis ou intelectuais), no por um sentimento de prazer ou de dor que ligaria representaes deste gnero vontade, mas pela representao de uma pura forma. Esta forma pura a de uma legislao universal. A lei moral no se apresenta como um universal comparativo e psicolgico (por exemplo: no faas aos outros, etc.). A lei moral ordena-nos que pensemos a mxima da nossa vontade como princpio de uma legislao universal. E pelo menos conforme moral uma ao que resiste a esta prova lgica, ou seja, uma ao cuja mxima pode ser pensada sem contradio como lei universal. O universal, neste sentido, um absoluto lgico.

    A forma de uma legislao universal pertence Razo. Com efeito, o prprio entendimento nada pensa de determinado se as suas representaes no forem as de objetos restritos s condies da sensibilidade. Uma representao independente, no s de todo o sentimento, mas tambm de toda a matria e de toda a condio sensvel, necessariamente racional. Mas, aqui,

  • a razo no raciocina: a conscincia da lei moral um fato, no um fato emprico, mas o fato nico da razo pura que se anuncia deste modo como originariamente legisladora (1). A razo , pois, a faculdade que legisla imediatamente na faculdade de desejar. Sob este aspecto, chama-se razo pura prtica. E a faculdade de desejar, encontrando a sua determinao em si mesma (no numa matria ou num objeto), chama-se, falando com propriedade, vontade, vontade autnoma.

    Em que consiste a sntese prtica a priori ? As frmulas de Kant variam a este propsito. Mas, quando se pergunta qual a natureza de uma vontade suficientemente determinada pela simples forma da lei (logo, independentemente de toda a condio sensvel ou de uma lei natural dos fenmenos), devemos responder: uma vontade livre. E quando se pergunta qual a lei capaz de determinar uma vontade livre enquanto tal, devemos responder: a lei moral (como pura forma de uma legislao uni-versal). A implicao recproca de tal ordem que razo prtica e liberdade talvez se identifiquem. Todavia, a questo no esta: Do ponto de vista das nossas representaes, o conceito da razo prtica que nos leva ao conceito da liberdade como a algo que est necessariamente ligado quele primeiro conceito, que lhe pertence e que no entanto no reside nele. Na verdade, o conceito de liberdade no reside na lei moral, visto ser ele mesmo uma Idia da razo especulativa. Mas esta idia permaneceria puramente problemtica, limitativa e indeterminada, se a lei moral nos no ensinasse que somos livres. E pela lei moral, unicamente, que nos sabemos livres, ou que o nosso conceito de liberdade adquire uma realidade objetiva, positiva e determinada. Achamos assim na autonomia da vontade uma sntese a priori que confere ao conceito da liberdade uma realidade objetiva determinada, ligando-o necessariamente ao da razo prtica.

    Problema da liberdade

    A questo fundamental : sobre que incide a legislao da razo prtica? quais os seres ou os objetos que so submetidos sntese prtica? Esta questo j no a de uma exposio do princpio da razo prtica, mas a de uma deduo. Ora, dispomos de um fio condutor: s seres livres podem ser submetidos _________________

    (1) CRPr, Analtica, esclio da lei fundamental.

  • razo prtica. Esta legisla sobre seres livres, ou, mais exatamente, sobre a causalidade destes seres (operao pela qual um ser livre causa de alguma coisa). Consideramos agora j no o conceito de liberdade por si mesmo, mas o que representa um tal conceito.

    Enquanto apreciamos fenmenos, tais como eles aparecem sob as condies do espao e do tempo, nada encontramos que se assemelhe liberdade: os fenmenos esto estritamente submetidos lei de uma causalidade natural (como categoria do entendimento) segundo a qual cada um o efeito de outro at ao infinito, ligando-se cada causa a uma causa anterior. A liberdade, ao invs, define-se por um poder de comear de si mesmo um estado, cuja causalidade no se situa por seu turno (como na lei natural) sob outra causa que a determina no tempo (2). Neste sentido, o conceito de liberdade no pode representar um fenmeno, mas apenas uma coisa em si que no dada na intuio. H trs elementos que nos levam a tal concluso.

    1. Ao incidir exclusivamente sobre os fenmenos o conhecimento forado no seu prprio interesse a pr a existncia das coisas em si como no podendo ser conhecidas, mas devendo ser pensadas para servir de fundamento aos prprios fenmenos sensveis. As coisas em si so, pois, pensadas como nmenos, coisas inteligveis ou supra-sensveis que marcam os limites do conhecimento e o remetem para as condies da sensibilidade (3). 2. Pelo menos num caso, a liberdade atribui-se coisa em si, e o nmeno deve ser pensado como livre: quando o fenmeno a que ele corresponde goza de faculdades ativas espontneas que se no reduzem simples sensibilidade. Temos um entendimento e sobretudo uma razo; somos inteligncia (4). Enquanto inteligncias ou seres racionais, devemos pensar-nos como membros de um mundo inteligvel ou supra-sensvel, dotados de uma causalidade livre. 3. Mesmo assim, o conceito de liberdade, tal como o de nmeno, permaneceria puramente problemtico e indeterminado (ainda que necessrio), se a razo no tivesse outro interesse alm do seu interesse especulativo. Vimos que s a razo prtica determinava o conceito de liberdade dando-lhe uma realidade objetiva. Com efeito, quando a lei moral a lei da vontade, esta acha-se inteiramente independente das

    _____________________ (2) CRP, Dialctica, soluo das idias cosmolgicas da totalidade da

    derivao.... (3) CRP, Analtica, do principio da distino fenmenos-nmenos.... (4) CRP, Dialctica, esclarecimento da idia cosmolgica de liberdade.

  • condies naturais da sensibilidade que ligam qualquer causa a uma causa anterior: Nada anterior determinao da vontade (5). E por isso que o conceito de liberdade, como Idia da razo, desfruta de um privilgio eminente sobre todas as outras Idias: em virtude de poder ser determinado praticamente, o nico conceito (a nica Idia da razo) que d s coisas em si o sentido ou a garantia de um fato e que nos faz efetivamente penetrar no mundo inteligvel (6).

    Parece, portanto, que 'a razo prtica, ao conferir ao conceito de liberdade uma realidade objetiva, legisla precisamente sobre o objeto deste conceito. A razo prtica legisla sobre a coisa em si, sobre o ser livre enquanto coisa em si, sobre a causalidade numenal e inteligvel de um tal ser, sobre o mundo supra-sensvel formado por tais seres. A natureza supra-sensvel, tanto quanto dela podemos fazer um conceito, no mais do que uma natureza sob a autonomia da razo prtica; mas a lei desta autonomia a lei moral, que assim a lei fundamental de uma natureza supra-sensvel...; a lei moral . uma lei da causalidade por liberdade, por conseguinte, uma lei da possibilidade de uma natureza supra-sensvel (7). A lei moral a lei da nossa existncia inteligvel, isto , da espontaneidade e da causalidade do sujeito como coisa em si. Eis porque Kant distingue duas legislaes e dois domnios correspondentes: a legislao por conceitos naturais aquela em que o entendimento, determinando esses conceitos, legisla na faculdade de conhecer ou no interesse especulativo da razo; o seu domnio o dos fenmenos como objetos de toda a experincia possvel, na medida em que formam uma natureza sensvel. A legislao pelo conceito de liberdade aquela em que a razo, determinando esse conceito, legisla na faculdade de desejar, isto , no seu prprio interesse prtico; o seu domnio o das coisas em si pensadas como nmenos, na medida em que formam uma natureza supra-sensvel. Tal o que Kant denomina o abismo imenso entre os dois domnios (8).

    Os seres em si, na sua causalidade livre, so, pois, submetidos razo prtica. Mas em que sentido se deve compreender submetidos? Enquanto o entendimento se exerce sobre os fenmenos no interesse especulativo, ele legisla sobre algo diferente de si. Mas, quando. a razo legisla no interesse prtico, ela legisla sobre

    _______________

    (5) CRPr, Analtica, exame crtico. (6) CJ, 91; CRPr, Prefcio. (7) CRPr, Analtica, da deduo dos princpios da razo pura prtica. (8) CJ, introduo, 2, 9.

  • seres racionais e livres, sobre a sua existncia inteligvel independente de toda a condio sensvel. , pois, o ser racional que se atribui a si mesmo uma lei pela sua razo. Contrariamente ao que se passa quanto aos fenmenos, o nmeno apresenta ao pensamento a identidade do legislador e do sujeito. No enquanto a pessoa est submetida lei moral que tem em si sublimidade, mas na medida em que, no tocante a essa mesma lei, ela ao mesmo tempo legisladora e s nesta qualidade lhe est subordinada (9). Eis, pois, o que significa submetido no caso da razo prtica: os mesmos seres so sbditos e legisladores, de tal modo que o legislador faz aqui parte da natureza sobre a qual ele legisla. Pertencemos a uma natureza supra-sensvel, mas na qualidade de membros legisladores.

    Se a lei moral a lei da nossa existncia inteligvel, no sentido em que ela a forma sob a qual os seres inteligveis constituem uma natureza supra-sensvel. Com efeito, ela encerra um mesmo princpio determinante para todos os seres racionais, donde deriva a sua unio sistemtica (10). Compreende-se, portanto, a possibilidade do mal. Kant sustentar sempre que o mal se acha numa certa relao com a sensibilidade. O que no obsta a que ele se funda igualmente no nosso carcter inteligvel. Uma mentira ou um crime so efeitos sensveis, mas nem por isso deixam de ter uma causa inteligvel fora do tempo. at por este motivo que no devemos identificar razo prtica e liberdade: h sempre na liberdade uma zona de livre-arbtrio pela qual podemos optar contra a lei moral. Quando optamos contra a lei, no cessamos de ter uma existncia inteligvel, apenas perdemos a condio sob a qual esta existncia faz parte de uma natureza e compe com as outras um todo sistemtico. Cessamos de ser sbditos, mas antes de tudo porque deixamos de ser legisladores (na verdade, recebemos da sensibilidade a lei que nos determina).

    Papel do entendimento

    , pois, em dois sentidos assaz diferentes que o sensvel e o supra-sensvel formam cada qual uma natureza. Entre as duas Naturezas h somente uma analogia (existncia sob leis). Em virtude do seu carcter paradoxal, a natureza supra-sensvel ________________

    (9) Fundamentos da Metafsica dos Costumes (FMC), II. (10) Ibid.

  • nunca completamente realizada, visto que nada garante a um ser racional que os seus semelhantes harmonizaro a existncia deles com a sua e formaro essa natureza que apenas possvel pela lei moral. Assim, no basta dizer que a relao das duas naturezas de analogia; convm acrescentar que o prprio supra-sensvel s pode ser pensado como uma natureza por analogia com a natureza sensvel (11).

    Vemo-lo bem na prova lgica da razo-prtica, onde se investiga se a mxima de uma vontade pode tomar a forma prtica de uma lei universal. Pergunta-se, primeiramente, se a mxima pode ser erigida em lei terica universal de uma natureza sensvel. Por exemplo, se toda a gente mentisse, as promessas destruir-se-iam por si mesmas, j que seria contraditrio que algum nelas acreditasse: a mentira no pode, portanto, ter o valor de uma lei da natureza (sensvel). Conclui-se da que, se a mxima da nossa vontade fosse uma lei terica da natureza sensvel, cada um de ns seria obrigado a dizer a verdade (12). Donde: a mxima de uma vontade mentirosa no pode sem contradio servir de lei prtica pura a seres racionais, de maneira a que eles componham uma natureza supra-sensvel. E por analogia com a forma das leis tericas de uma natureza sensvel que indagamos se uma mxima pode ser pensada como lei prtica de uma natureza supra-sensvel (isto , se uma natureza supra-sensvel ou intelig-vel possvel sob uma tal lei). Neste sentido, a natureza do mundo sensvel aparece como tipo de uma natureza inteligvel (13).

    evidente que o entendimento desempenha aqui o papel essencial. Na realidade, nada retemos da natureza sensvel que se refira intuio ou imaginao. Retemos unicamente a forma da conformidade lei tal como ela se encontra no entendimento legislador. Mas, justamente, servimo-nos desta forma, e do prprio entendimento, segundo um interesse e num domnio onde este j no legislador. Porquanto no a comparao da mxima com a forma de uma lei terica da natureza sensvel que constitui o princpio determinante da nossa vontade (14). A comparao no passa de um meio pelo qual investigamos se uma mxima se adapta razo prtica, se uma ao um caso que se inscreve na regra, isto , no princpio de uma razo a partir de agora nica legisladora.

    ______________ (11) Ibid. (12) CRPr, Analtica, da deduo dos princpios da razo pura prtica. (13) CRPr, Analtica, da tpica do juzo puro prtico. (14) CRPr, ibid.

  • Eis que encontramos uma nova forma de harmonia, uma nova proporo na harmonia das faculdades. Segundo o interesse especulativo da razo, o entendimento legisla, a razo raciocina e simboliza (determina o objeto da sua Idia por analogia com os objetos da experincia). Segundo o interesse prtico da razo, a prpria razo que .legisla; o entendimento julga ou inclusivamente raciocina (se bem que este raciocnio seja muito simples e consista numa singela comparao) e simboliza (extrai da lei natural sensvel um tipo para a natureza supra-sensvel). Ora, nesta nova figura, devemos manter sempre o mesmo prin-cpio: a faculdade que no legisladora desempenha um papel insubstituvel, que s ela capaz de assumir, mas ao qual deter-minada pela legisladora.

    Como se explica que o entendimento possa desempenhar por si mesmo um papel de acordo com uma razo prtica legisladora? Consideremos o conceito de causalidade: ele est implicado na definio da faculdade de desejar (relao entre a representao e. um objeto que ela tende a produzir) (15). Est, pois, implicado no uso prtico da razo concernente a esta faculdade. Mas quando a razo persegue o seu interesse especulativo, relativamente faculdade de conhecer, ela abandona tudo ao entendimento: a causalidade atribui-se como categoria ao entendimento, no sob forma de uma causa produtora originria (visto que os fenmenos no so produzidos por ns), mas sob forma de uma causalidade natural ou de uma conexo que liga os fenmenos sensveis at ao infinito. Quando, pelo contrrio, a razo persegue o interesse prtico, retira ao entendimento o que lhe havia emprestado unicamente na perspectiva de outro interesse. Determinando a faculdade de desejar sob a sua forma superior, ela une o conceito de causalidade ao de liberdade, isto , d categoria de causalidade um objeto supra-sensvel (o ser livre como causa produtora originria) (16). Perguntar-se- como que a razo pode retirar o que abandonara. ao entendimento e de certo modo alienara na natureza sensvel. Mas, precisamente, se verdade que as categorias nos no fazem conhecer outros objetos que, no sejam os da experincia possvel, se verdade que elas no formam um conhecimento de objeto independentemente das condies da sensibilidade, nem por isso deixam de conservar um sentido puramente lgico relativamente a objetos

    _____________________ (15) CRPr, Analtica, do direito da razo pura no uso prtico a uma

    extenso...: no Conceito. de Uma Vontade est j contido o da causalidade. (16) CRPr, Prefcio.

  • no sensveis, e podem aplicar-se a eles com a condio de que tais objetos sejam determinados por outra parte e de um ponto de vista diferente do conhecimento (17). Assim, a razo deter-mina praticamente um objeto supra-sensvel da causalidade e determina a prpria causalidade como uma causalidade livre, apta a formar uma natureza por analogia.

    O senso comum moral e os usos ilegtimos

    Kant lembra amide que a lei moral no tem necessidade alguma de raciocnios subtis, antes assenta no uso mais vulgar ou mais comum da razo. Nem sequer o exerccio do entendimento pressupe qualquer instruo prvia, nem cincia nem filosofia. Devemos, pois, falar de um senso comum moral. Decerto que h sempre o perigo de compreender senso comum maneira empirista, de o tornar um sentido particular, um sentimento ou uma intuio: no haveria pior confuso, atingindo a prpria lei moral (18). Mas definimos um senso comum como um acordo a priori das faculdades, acordo determinado por uma de entre elas enquanto faculdade legisladora. O senso comum moral o acordo do entendimento com a razo, sob a legislao da prpria razo. Reencontramos aqui a. idia de uma. boa natureza das faculdades e de uma harmonia determinada em conformidade com tal interesse da razo.

    Porm, no menos que na Critica de Razo pura, Kant denuncia os exerccios ou os usos ilegtimos. Se a reflexo filosfica necessria, porque as faculdades, no obstante a sua boa natureza, engendram iluses nas quais elas no podem livrar-se de cair. Em lugar de simbolizar (ou seja, de se servir da forma da lei natural como se fosse um tipo para a lei moral), acontece por vezes ao entendimento procurar um esquema que refere a lei a uma intuio (19). Mais ainda: em lugar de comandar, sem nada conceder, no que diz respeito ao princpio, s inclinaes sensveis ou aos interesses empricos, acontece razo acomodar o dever com os nossos desejos: Resulta da uma dialctica natural (20). Importa, pois, perguntar, tambm neste caso, como se conciliam os dois temas kantianos, o de __________________

    (17) CRPr, Analtica, do direito da razo pura no uso prtico a uma extenso...,

    (18) CRPr, Analtica, esclio 2 do teorema IV. (19) CRPr, Analtica, da tpica do juzo puro prtico. (20) FMC, I (fim).

  • uma harmonia natural (senso comum) e o dos exerccios discordantes (contra-senso).

    Kant insiste na diferena entre a Crtica da Razo pura especulativa e a Crtica da razo prtica: esta ltima no uma crtica da Razo pura prtica. Com efeito, no interesse especulativo, a razo em si mesma no pode legislar (olhar pelo seu prprio interesse): , pois, a razo pura que fonte de iluses internas, a partir do momento em que pretende assumir um papel legislador. Ao invs, no interesse prtico, a razo no remete para mais ningum o cuidado de legislar: Depois de se mostrar que existe, ela j no necessita de crtica (21). O que tem necessidade de uma crtica, o que fonte de iluses, no a razo pura prtica, mas, isso sim, a impureza que se lhe vem misturar, na medida em que os interesses empricos nela se refletem. critica da razo pura especulativa corresponde ento uma crtica da razo prtica impura. No entanto, algo de comum subsiste entre as duas: o mtodo dito transcendental sempre a determinao de um uso imanente da razo, conformemente a um dos seus interesses. A Crtica da Razo pura denuncia assim o uso transcendente de uma razo especulativa que pretende legislar por si mesma; a Crtica da Razo prtica denuncia o uso transcendente de uma razo prtica que, em vez de legislar por si mesma, se deixa condicionar empiricamente (22).

    Seja como for, o leitor tem o direito de se interrogar se este clebre paralelo que Kant estabelece entre as duas Crticas responde suficientemente questo formulada. O prprio Kant no fala de uma nica dialctica da razo prtica, antes emprega a palavra em dois sentidos bastante diferentes. Mostra, de fato, que a razo prtica no pode deixar de instituir uma ligao necessria entre a felicidade e a virtude, mas cai assim numa antinomia. A antinomia consiste na circunstncia de a felicidade no poder ser causa da virtude (porquanto a lei moral o nico princpio. determinante da vontade boa) e de a virtude no parecer igualmente poder ser causa da felicidade (porquanto as leis do mundo sensvel se no pautam de modo algum pelas intenes de uma boa vontade). Ora, no h dvida de que a idia de felicidade implica a satisfao completa dos nossos desejos e inclinaes. Hesitar-se-, no obstante, em ver nesta antinomia (e sobretudo no seu segundo membro) o efeito de uma simples projeo dos interesses empricos: a razo pura prtica exige

    _____________ (21) CRPr, Introduo. (22) Ibid.

  • ela prpria uma ligao da virtude e da felicidade. A antinomia da razo prtica exprime na verdade uma dialctica mais profunda que a precedente; implica uma iluso interna da razo pura.

    A explicao desta iluso interna pode ser reconstituda como segue (23): 1. A razo pura prtica exclui todo o prazer ou toda a satisfao como princpio determinante da faculdade de desejar. Mas, quando a lei a determina, a faculdade de desejar experimenta por isso mesmo uma satisfao, uma espcie de fruio negativa exprimindo a nossa independncia a respeito das inclinaes sensveis, um contentamento puramente intelectual exprimindo imediatamente o acordo formal do nosso entendimento com a nossa razo. 2. Ora, esta fruio negativa no deve ser confundida com um sentimento sensvel positivo, ou at com um mbil da vontade. No se confunda o contentamento intelectual ativo com algo de sentido, de experimentado. ( inclusive desta maneira que o acordo das faculdades ativas surge ao empirista como um sentido especial.) H a uma iluso interna que a prpria razo pura prtica no pode evitar: H sempre a ocasio de cometer a falta a que se chama vitium subreptionis e, de certo modo, de ter uma iluso de ptica na conscincia do que se faz, diferentemente do que se sente, iluso que at o homem mais experimentado no pode evitar na totalidade. 3. A antinomia assenta, pois, no contentamento imanente da razo prtica, na confuso inevitvel deste contentamento com a felicidade. Cremos assim umas vezes que a prpria felicidade causa e mbil da virtude, outras vezes, que a virtude por si mesma causa da felicidade.

    Se verdade, de acordo com o primeiro sentido da palavra dialctica, que os interesses ou os desejos empricos se projetam na razo e a tornam impura, tal no obsta a que esta projeo tenha um princpio interior mais profundo, na prpria razo prtica pura, em conformidade com o segundo sentido da palavra dialctica. A confuso do contentamento negativo e intelectual com a felicidade uma iluso interna que nunca pode ser inteiramente dissipada, sendo apenas possvel escon-jurar o seu efeito atravs da reflexo filosfica. Acrescentemos que a iluso, neste sentido, s aparentemente contrria idia de uma boa natureza das faculdades: a prpria antinomia prepara uma totalizao, que ela , sem dvida, incapaz de operar, mas que nos fora a procurar, do ponto de vista da reflexo, como sua soluo prpria ou chave do seu labirinto. A antinomia

    _______________ (23) CRPr, Dialctica, soluo crtica da antinomia.

  • da razo pura, que se torna manifesta na sua dialctica, de fato o erro mais benfazejo em que alguma vez caiu a razo humana (24).

    Problema da realizao

    A sensibilidade e a imaginao no tm at agora qualquer papel no senso comum moral. Isto no causar admirao visto que a lei moral, tanto no seu princpio como na sua aplicao tpica, independente de todo o esquema e de toda a condio da sensibilidade; visto que os seres e a causalidade livres no so objeto de intuio alguma; visto que a Natureza supra-sensvel e a natureza sensvel esto separadas por um abismo. H realmente uma ao da lei moral sobre a sensibilidade. Mas a sensibilidade considerada aqui como sentimento, no como intuio; e o prprio efeito da lei um sentimento mais negativo que positivo, mais prximo da dor que do prazer. Tal o sentimento de respeito da lei, determinvel a priori como o nico mbil moral, mas minimizando mais a sensibilidade do que dando-lhe um papel na relao das faculdades. (Vemos que o mbil moral no pode ser fornecido pelo contentamento intelectual, de que. falvamos mais atrs; este no de modo algum um sentimento, mas apenas um anlogo do sentimento. S o respeito pela lei fornece um tal mbil; ele apresenta a prpria moralidade como mbil) (25).

    Mas o problema da relao da razo prtica e da sensibilidade no fica assim resolvido nem suprimido. O respeito serve antes de regra preliminar para uma tarefa que continua por efetivar positivamente. Um nico contra-senso perigoso, no que respeita ao conjunto da Razo prtica: crer que a moral kantiana permanece indiferente sua prpria realizao. Na verdade, o abismo entre o mundo sensvel e o mundo supra-sensvel no existe seno para ser preenchido: se o supra-sensvel escapa ao conhecimento, se no h uso especulativo da razo que nos faa passar do sensvel ao supra-sensvel, em compensao este deve ter uma influncia sobre aquele, e o conceito de liberdade deve realizar no mundo sensvel o fim imposto pelas suas leis (26).

    _________________________ (24) CRPr, Dialctica, de uma dialctica da razo pura prtica em geral. (25) CRPr, Analtica, dos mbiles da razo pura prtica. (Sem dvida que o

    respeito positivo, mas somente pela sua causa intelectual.) (26) Cf, Introduo, 2.

  • Eis que o mundo supra-sensvel arqutipo e o mundo sensvel, ctipo, porque contm o efeito possvel da idia do primeiro (27). Uma causa livre puramente inteligvel; mas devemos considerar que o mesmo ser que fenmeno e coisa em si, submetido necessidade natural como fenmeno, fonte de causalidade livre como coisa em si. Mais ainda: a mesma ao, o mesmo efeito sensvel que remete, por um lado, para um encadeamento de causas sensveis segundo o qual ele necessrio, mas que, por outro, com as suas causas, remete igualmente para uma Causa livre da qual sinal ou expresso. Uma causa livre nunca tem o seu efeito em si prpria, dado que nela nada acontece nem comea; a livre causalidade no tem efeito algum que no seja sensvel. Por conseguinte, a razo prtica, como lei da causalidade livre, deve ter causalidade relativamente aos fenmenos (28). E a natureza supra-sensvel, que os seres livres formam sob a lei da razo, deve ser realizada no mundo sensvel. E neste sentido que se pode falar de uma ajuda ou de uma oposio entre a natureza e a liberdade, consoante os efeitos sensveis da liberdade na natureza so conformes ou no lei moral. Oposio ou ajuda s existem entre a natureza como fenmeno e os efeitos da liberdade como fenmenos no mundo sensvel (29). Sabemos que h duas legislaes, logo, dois domnios, correspondendo natureza e liberdade, natureza sensvel e natureza supra-sensvel. Mas h somente um campo, o da experincia.

    Kant apresenta assim o que ele designa por o paradoxo do mtodo numa Crtica da razo prtica: nunca uma representao de objeto pode determinar a vontade livre ou preceder a lei moral; mas, ao determinar imediatamente a vontade, a lei moral determina tambm objetos como conformes a esta vontade livre (30). Mais precisamente, quando a razo legisla na faculdade de desejar, a faculdade de desejar tambm legisla sobre objetos. Estes objetos da razo prtica formam aquilo a que se chama o Bem moral ( em ligao com a representao do bem que experimentamos o contentamento intelectual). Ora, o bem moral , quanto ao objeto, algo de supra-sensvel. Mas ele representa objeto como a realizar no mundo sensvel, isto , como um efeito possvel pela liberdade (31). E por isso que, na sua

    _____________________ (27) CRPr, Analtica, da deduo aos princpios da razo pura prtica. (28) CRP, Dialctica. (29) CJ, Introduo, 9. (30) CRPr, Analtica, do conceito de um objeto da razo pura prtica. (31) CRPr, Ibid.

  • definio mais geral, o interesse prtico se apresenta como uma relao da razo com objetos, no para os conhecer, mas para os realizar (32).

    A lei moral inteiramente independente da intuio e das condies da sensibilidade; a Natureza supra-sensvel independente da Natureza sensvel. Os prprios bens so independentes do nosso poder fsico de os realizar e so s determinados (conformemente prova lgica) pela possibilidade moral de querer a ao que os realiza. Resta dizer que a lei moral nada , separada das suas conseqncias sensveis; nem a liberdade, separada dos seus efeitos sensveis.. Bastaria, ento, apresentar a lei como legislando sobre a causalidade de seres em si, sobre uma pura natureza supra-sensvel? Certamente que seria absurdo dizer que os fenmenos esto submetidos lei moral como princpio da razo prtica. A natureza sensvel no tem a moralidade por lei; nem sequer os efeitos da liberdade podem causar dano ao mecanismo como lei da Natureza sensvel, j que eles se encadeiam necessariamente uns nos outros, de maneira a formar um nico fenmeno exprimindo a causa livre. Jamais a liberdade produz qualquer milagre no mundo sensvel. Mas, se verdade que a razo prtica s legisla. sobre o mundo supra-sensvel e sobre a causalidade livre dos seres que o compem, tal no obsta a que toda essa legislao faa deste mundo supra-sensvel algo que deve ser realizado no sensvel e desta causalidade livre, algo que deve ter efeitos sensveis exprimindo a lei moral.

    Condies da realizao

    Falta ainda saber se uma tal realizao possvel. Se o no fosse, era a lei moral que desabaria por si mesma (33). Ora, a realizao do bem moral pressupe um acordo da natureza sensvel (segundo as suas leis) com a natureza supra-sensvel (segundo a sua lei). Este acordo apresenta-se na idia de uma proporo entre a felicidade e a moralidade, ou seja, na idia do Soberano Bem como totalidade do objeto da razo pura prtica. Mas, se se perguntar como que o Soberano Bem por sua vez possvel, logo, realizvel, depara-se com a antinomia: est posto de parte que o desejo da felicidade seja mbil da virtude; mas tambm parece excludo que a mxima da virtude seja causa da _________________

    (32) CRPr, Analtica, exame crtico. (33) CRPr, Dialctica, a antinomia da razo prtica.

  • felicidade, visto que a lei moral no legisla sobre o mundo sensvel e que este regido pelas suas prprias leis que permanecem indiferentes s intenes morais da vontade. Todavia, esta segunda direo deixa aberta uma soluo: que a conexo da felicidade com a virtude no seja imediata, mas se faa na perspectiva de um progresso que v at ao infinito (