31
UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO EPOPEIA À LUSITANA: ESCRAVIDÃO EM CABO VERDE E ANGOLA MARCELO TAVARES DOS SANTOS

História da áfrica epopeia à lusitana escravidão em cabo verde e angola

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: História da áfrica epopeia à lusitana escravidão em cabo verde e angola

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

EPOPEIA À LUSITANA: ESCRAVIDÃO EM CABO VERDE E ANGOLA

MARCELO TAVARES DOS SANTOS

SÃO PAULO

2012

Page 2: História da áfrica epopeia à lusitana escravidão em cabo verde e angola

UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO

EPOPEIA À LUSITANA: ESCRAVIDÃO EM CABO VERDE E ANGOLA

Trabalho apresentado na disciplina História da África, sob a orientação da Profa. Dra. Marina de Mello e Souza

SÃO PAULO

2012

Page 3: História da áfrica epopeia à lusitana escravidão em cabo verde e angola

Sumário

Introdução............................................................................................................3

Desenvolvimento.................................................................................................4

Considerações finais..........................................................................................21

Referências........................................................................................................22

Page 4: História da áfrica epopeia à lusitana escravidão em cabo verde e angola

Introdução

Apresentaremos aqui a forma que ocorreu a colonização portuguesa nos

territórios hoje considerados Cabo Verde e Angola e sua relação com o

comércio de escravos, do século XV aos primórdios do XIX.

O presente trabalho é importante para compreendermos de melhor

modo como se deu a expansão lusitana em África.

Deve servir para aqueles que desejam se aprofundar em História da

África.

Inicialmente, exporemos um panorama sobre a escravidão em geral.

Depois, nós abordaremos o assunto proposto, e finalizaremos com as nossas

considerações.

Page 5: História da áfrica epopeia à lusitana escravidão em cabo verde e angola

Desenvolvimento

Em “Política” e “Ética a Nicômano”, Aristóteles discorre o que pensa

acerca da escravidão. Para ele, a condição de escravo é natural e é bom para

certas classes de humanos viver desta forma. A instituição da escravidão

assegura as necessidades de vida a outros. Autoridade e submissão são

condições inevitáveis e essenciais para uma boa vida em família, a qual faz

parte da pólis. A relação entre senhor e escravo é mutuamente benéfica. O

famoso filósofo não entendia a escravidão como uma convenção, dependente

da coação física.

Sempre quando se fala em escravidão, temos que lembrar certos

aspectos comuns: a força bruta era usada à vontade, a força de trabalho do

escravo tinha que estar à mercê de seu dono. Os escravos eram mercadorias,

por isso poderiam ser comprados e vendidos. Nas sociedades escravocratas, a

liberdade deveria estar na posse da elite, enquanto os escravos tinham apenas

obrigações. As capacidades reprodutivas dos submissos podiam ser reprimidas

quando formavam um contingente indesejado. Os laços afetivos podiam ser

desfeitos sumariamente.

As formas mais complexas de escravidão foram aquelas que levaram os

cativos para os locais mais distantes de suas origens. A percepção de que eles

eram forasteiros era acentuada. A formação social da sociedade escravocrata

que aqui examinamos não conseguia sua própria manutenção. O

reabastecimento da população cativa era contínuo, em virtude da vida bastante

curta.

Para Lovejoy (2002, p. 40), “modo de produção” enfatiza “a relação entre

a organização social e o processo produtivo, por um lado, e os meios pelos

quais essa relação é mantida, por outro” e envolve conjuntamente estado,

economia e sociedade. A descoberta da América alterou profundamente a vida

africana até então, tornando a escravidão fundamental. Os cativos estavam

presentes em setores fundamentais da economia, a relação social era gerida

pela diferenciação entre livres e escravos, e instrumentos políticos tinham que

assegurar essas relações. Uma parcela importante da renda dos senhores

estava relacionada com o trabalho negreiro.

Page 6: História da áfrica epopeia à lusitana escravidão em cabo verde e angola

Na primeira parte do século XV, os portugueses estavam no continente

africano, à procura de caminhos para as especiarias das Índias e também para

o ouro. Muçulmanos impediam a movimentação lusitana no caminho

transaariano; os genoveses estavam nas ilhas do mar Mediterrâneo.

Alternativas foram criadas: caravelas começam a deixar Portugal,

percorrendo o litoral ocidental africano. Batalhas aparecem e com elas o

aprisionamento dos negros que foram derrotados. Percebeu-se que tais ações

bélicas causavam problemas de relacionamento com os povos ali presentes.

Assim, optou-se pelo câmbio de escravos por mercadorias. Deixou-se que a

captura fosse feita pelos próprios africanos. Na década de quarenta, o Infante

Dom Henrique incentiva as aventuras em África e concede licenças para

negociantes. Dinis Dias vai além do rio Senegal. Antão Gonçalves já troca

escravos por mercadorias. Algumas etnias tentaram resistir, mas se vendo

incapazes diante da opressão branca, optaram por acordos. Os primeiros

cativos eram levados à Europa para lá serem comercializados.

Os europeus se utilizaram de estratégias para o acirramento de guerras,

como o fornecimento de armas entre etnias vizinhas com a promessa da troca

futura por escravos. Levaram também novidades materiais, já inutilizadas no

Velho Continente, a fim de apresentá-las como uma forma da manutenção da

vaidade pessoal.

Não se pode esquecer que antes dos europeus já existia escravidão:

prisioneiros frutos das guerras que envolviam os diversos reinos no continente

africano, bem como criminosos, endividados e mulheres consideradas bruxas.

No entanto, o uso não era para fins comerciais, mas para uso doméstico,

tornando-se possível a integração dos escravos aos seus donos. Podiam virar

funcionários públicos: cobrar impostos e ter funções de guarda real. O

surgimento dos europeus permitiu que a escravidão tivesse outra dinâmica,

com a crescente exportação dos negros para a Europa e América.

Quando os europeus chegaram, a troca por cativos era realizada por

panos e em especial por cavalos. Os jalofos, que circundavam o rio Senegal,

mandingas e fulas, utilizavam-se de tais animais para viagens, guerras e

“status” social. No começo um cavalo podia comprar trinta escravos. Com a

expansão do tráfico, o escravo foi se tornando mercadoria cada vez mais cara.

Page 7: História da áfrica epopeia à lusitana escravidão em cabo verde e angola

O tempo das viagens, as epidemias que podiam surgir, e os fretes

influenciavam o preço deles.

O comércio de escravos podia ser feito em território, mas também em

alto-mar. Os mandatários locais chegavam a ser recebidos nas embarcações,

para as discussões dos negócios. No território, os navios das companhias

europeias paravam nas regiões de fortificações, onde as mercadorias eram

estocadas. Também se organizavam feiras que eram acordadas com as etnias

amigas. As que pertenciam às caravanas entregavam os escravos aos agentes

de tais construções. Os agentes comercializam com os barcos, que podiam

percorrer diversos pontos da costa até ficarem cheios. Na antiga Costa do

Ouro, atual Gana, acredita-se que mais de dez mil seres humanos podiam ser

guardados, em condições nada higiênicas. O embarque dos negros era o

momento de maior tensão, em virtude da possibilidade de fuga das

mercadorias. O armazenamento podia durar semanas.

Nas embarcações destinadas aos escravos, havia a cozinha, onde

ficavam as mulheres que faziam o cardápio local. O milho, a banana, a pimenta

estavam entre os mais consumidos. O castelo de poupa era um lugar destinado

aos europeus e seus eventuais convidados. Nas escotilhas, o embarque e

desembarque dos cativos eram realizados. O porão era o lugar onde os negros

eram jogados à própria sorte, separando-se homens e mulheres. Havia vigia

por todos os lados, a fim de proibir que os negros reconquistassem sua

liberdade e que atentassem contra a vida dos brancos.

Às nove horas, os cativos eram acordados para a alimentação matinal.

Depois, eles podiam fazer pequenos trabalhos ou se fazerem acompanhados

de música e dança. Ao final da tarde, ingeriam a sua segunda fonte de energia

e retornavam ao porão. A ausência de alimentação digna e o armazenamento

excessivo de pessoas geravam muitas doenças.

Na resistência africana, os cativos quando conseguiam fugir ainda em

território, encontravam locais em que se asilavam muitas vezes desprovidos de

alimentação farta. Os chefes locais podiam ter resistência em asilar os negros

fugidos, com medo de possíveis sanções por parte dos europeus. Em Angola, a

presença de diversos europeus ali já instalados, que muitas vezes disputavam

entre si a dominação territorial ou a atividade corsária, facilitou a rebelião dos

escravos.

Page 8: História da áfrica epopeia à lusitana escravidão em cabo verde e angola

Há denúncias de que funcionários públicos e religiosos participavam de

contrabando de escravos e mercadorias. Nas licenças de compra e de

transporte de cativos a quantidade era estipulada. Esse número era geralmente

desrespeitado, embarcando-se um contingente maior, utilizando-se do

estrategema da falsa declaração de falecimento. A fazenda pública era lesada.

No século XVIII, o comércio de armas, tais como facas, pistolas,

espingardas, ganha espaço. A Inglaterra começa a pressionar as outras nações

contra o tráfico de escravos. No século seguinte, ela conseguiu acordos de

cooperação com Portugal e Espanha para o combate à escravidão. As classes

sociais interessadas na manutenção da escravidão faziam pressões sobre os

governos. A Coroa portuguesa solicitava o duro combate aos conselhos

ultramarinos.

A escravização em África e a escravidão na América mantinham laços

que começaram a ser rompidos. A chegada de ideias europeias libertadoras ao

continente americano desfez a necessidade de caça aos negros, sendo que

eles começaram a ser utilizados nas cadeias produtivas e forças militares em

África.

Cabo Verde

As ilhas de Santiago, Fogo, Maio, Boa Vista e Sal formam o arquipélago

descoberto, em 1460, durante o governo de Infante Dom Henrique. Dois anos

depois, D. Afonso V as doa para António de Noli.

Page 9: História da áfrica epopeia à lusitana escravidão em cabo verde e angola

Figura 1. As ilhas de Cabo Verde. Fonte: FERNANDES, Antero da Conceição Monteiro. Guiné-Bissau e Cabo Verde: da unidade à separação, 2007, p. 137. Tese (Mestrado em Estudos Africanos) – Faculdade de Letras. Universidade do Porto, Porto.

Começou-se o povoamento por Santiago para dar continuidade às

navegações em direção ao sul e ao comércio no continente. No final da

década, a Coroa, aparentemente, não possuía condições financeiras para arcar

as despesas da colonização, sendo assim, foi feito um contrato de

arrendamento dos regates e tratos a terceiros com o cidadão honrado de nome

Fernão Gomes. Nas áreas de arrendamento, para se resgatar escravos era

necessário a compra de licença. Em 1472, foi lavrado um documento

permitindo que os moradores vendessem seus escravos serviçais e

mercadorias provenientes de suas lavouras em regiões não compreendidas

pela Coroa, desde que pagassem o “quarto”. Os navios para o escambo

deviam ser de propriedade dos moradores. A parceria com estrangeiros era

proibida. Essas limitações e outras impostas permitiram que os moradores

estivessem à margem da lei e que surgissem rusgas entre moradores e

Estado. Como exemplo disso, citamos as “mercadorias defesas” que só podiam

ser importadas pelo monarca e distribuídas pelos contratadores, sob licença.

Page 10: História da áfrica epopeia à lusitana escravidão em cabo verde e angola

No começo, os brancos portugueses, nobres ou descendentes deles, se

viram obrigados a importar da Guiné mão-de-obra a fim de explorar a

desconhecida terra. Com o passar do tempo, surgiram três grupos de cativos:

os boçais que eram os recém chegados e que se comunicavam em suas

línguas de origem; os landinos que chegaram a Santiago quando crianças e já

estavam mais adaptados ao trabalho, comunicando-se em português; e os

naturais, filhos de escravos, e que já nasceram em Cabo Verde. O número de

brancos nunca foi expressivo, mas a partir do século XVI a Coroa passou

enviar às ilhas os seres degredados, afastando-os da vida metropolitana.

Acredita-se que os primeiros negros a chegar eram os jalofos, do

Senegal. Temos os mandingas e os fulas, vindos da Guiné. Estipula-se também

que os negros banhuns, cassangas e buramos foram às ilhas de forma

espontânea.

Pouco tempo depois da descoberta, o arquipélago de Cabo Verde

começou a sofrer os primeiros ataques de corsários que buscavam alimentos

para abastecimento e mercadorias para a troca. Franceses, ingleses e

flamengos e, posteriormente, espanhóis tentaram tomar Santiago. Os escravos

e degredados se aproveitam da desorganização e fugiam para áreas mais altas

das ilhas, de difícil acesso, e que eram os melhores locais para defesa em

situações de invasão. Nesses montes, acabaram-se formando povoamentos de

pequenas casas, onde os alforriados também se instalavam. A atividade

corsária também dificultou as concentrações de moradias no litoral. A alta

frequência de estiagens fez com que escravos que lograssem fuga se

vendessem a navios de bandeira estrangeira.

Além de Santiago, a ilha de Fogo foi ganhando importância. As

atividades de agricultura (milho, legumes) e pecuária foram se intensificando. A

política de doação prosseguiu fazendo com que os donatários que exploravam

essas atividades ganhassem cada vez mais importância. A troca de produtos

oriundos do Velho Continente e da Ásia pelos de origem africana também

garantia o desenvolvimento.

Por volta de 1500, a venda de ferro aos negros é proibida, bem como a

entrada de latão e estanho em Cabo Verde. Visava-se diminuir a resistência

dos negros perante os homens da Europa. Dez anos mais tarde, a Coroa

obriga os montadores a transportarem os escravos diretamente para Lisboa, a

Page 11: História da áfrica epopeia à lusitana escravidão em cabo verde e angola

fim de que a partir daí seguissem o rumo certo, proibindo que antes

aportassem em outro lugar. Sentindo-se prejudicados, os moradores emitiram

documentos para a alteza. A condição de pobreza foi se instalando aos poucos.

Diante da frágil fiscalização, as imposições eram desobedecidas: os moradores

negociavam as “mercadorias defesas”, escravos e outros gêneros proibidos

com estrangeiros. Mesmo assim, o rei determinou que o resgate de cativos

fosse feito diretamente pela Coroa, e que não passassem sob o crivo de

arrendatários, nem tratadores.

Grupos descontentes que desobedeciam as ordens do rei não

demoraram a aparecer. Podemos falar dos “lançados” que eram formados por

brancos, mulatos e pretos forros e que exerciam atividades comerciais sem

licença oficial. O negro vindo do continente era adaptado às condições

inóspitas, levando para as ilhas seus costumes mágicos, estranhos ao modo

europeu de vida.

Da segunda década dos quinhentos começam a aparecer as primeiras

leis sobre o batismo de escravos. Com o aumento do volume do tráfico, as

primeiras divergências entre religiosos e negociantes surgem, pois o

estacionamento de embarcações nos portos para batismo comprometia as

atividades comerciais. Os donos dos navios alegavam urgência na saída e

pressionavam os padres, os quais se viam obrigados a fazerem o batismo de

forma coletiva. Entretanto, os negreiros perceberam logo as dificuldades de se

comunicarem com os cativos com grandes diversidades lingüísticas. A

catequese foi uma forma de ensinar os escravos a língua portuguesa, mesmo

que de forma rudimentar. Os religiosos se viam preocupados com o batismo

em massa, muitas vezes, feitos nos porões enquanto os escravos estavam

aprisionados. Esse descontentamento gerou críticas dos missionários em

relação à escravidão.

Também temos de destacar, paulatinamente, a presença de judeus ou

cristãos-novos, em virtude da perseguição religiosa na Península Ibérica. A

ação fora da lei destes aventureiros atrapalhou, em muito, o comércio oficial,

no entanto, ao se lançarem para a região da Guiné, eles ajudaram na difusão

de conhecimento das condições sociais e físicas do continente. Um sinal da

mestiçagem cultural é o surgimento da língua crioula, formada em menos de

cinquenta anos da descoberta de Cabo Verde e que servia de comunicação

Page 12: História da áfrica epopeia à lusitana escravidão em cabo verde e angola

também entre escravos de etnias diversas. Já nessa época, os escravos, cuja

grande maioria estava apenas em trânsito, eram exportados para Brasil,

Antilhas, Índias, Sevilha e outras partes. Uma pequena parte ali ficava junto

aos trabalhadores. Estipula-se que de Santiago chegou-se a sair no máximo

dois ou três navios para aprisionar cativos na Guiné por ano.

Por volta do século XVII, começam a surgir em Cabo Verde, Guiné e

Angola as aquisições de escravos com moedas, sobretudo as patacas de

Espanha, já que esta nação possuía grande acúmulo de metal, pois explorava

minas de prata do continente americano. Tais trocas com a utilização

pecuniária se davam entre mercadores ricos e estrangeiros. A grande massa

empobrecida realizava seus negócios utilizando-se de gêneros de vestuários e

de alimentação. A cotação da moeda espanhola era inflada na chegada de

navios.

Na época em que Portugal estava sob o domínio da Coroa de Espanha,

na tentativa de melhorar a economia local, um alvará foi feito estipulando que

as embarcações que iam para Guiné deveriam passar primeiramente em

Santiago. A Casa de Espanha tentou, em vão, diminuir a influência dos

portugueses no tráfico de escravos. Os lusitanos tinham melhor conhecimento

de portos e zonas de compra.

Em 1644, os navios que saiam do continente africano em direção ao

Brasil, não eram obrigados a irem até Cabo Verde. Em 1664, a política de

arrendamentos é substituída pela criação de companhias para comércio e

tráfico de escravos, a fim de compensar a excessiva regulamentação que

ajudou na decadência comercial da região: surgiu a Companhia da Costa de

Guiné, autorizada aos irmãos Lourenço de Pestana Martins e Manuel da Costa

Martins. Mais uma vez os naturais saíram em desvantagem: os preços dos

negros aumentaram e os representantes da Companhia pagavam o valor que

queriam sobre os produtos da terra. Em 1676, criou-se a Companhia de

Cacheu, rios e comércio de Guiné, mas desta vez, a Coroa impôs que a terça

parte da carga total fosse destinada aos produtos oriundos de Cabo Verde,

desde que não fossem os gêneros da Europa: vinhos, aguardente, ferro.

Diversas companhias, como a do Grão-Pará e Maranhão surgiram, mas de

pouco adiantaram.

Page 13: História da áfrica epopeia à lusitana escravidão em cabo verde e angola

No final dos seiscentos, o rei determinou a proibição de cativos que não

foram formalmente apresentados à fé cristã. Essa medida trouxe diminuição de

arrecadação à alfândega de Cabo Verde.

Por volta dos setecentos, os escravos comercializados em Cabo Verde

eram trocados por armas, aguardente e panos. No comércio interregional,

destaca-se o ferro e o sal. Para a Europa iam panos de cor anil, tinta feita a

partir de ervas da região. A situação da penúria se intensificava com secas

prolongadas e epidemias. Os navios que vinham de Lisboa foram ficando cada

vez mais raros, tornando os nativos cada vez mais dependentes das

embarcações de nações diversas. A metrópole não fornecia espécies

monetárias. A economia estava tão fragilizada que as cotações das moedas de

diversas nações estavam ao sabor dos proprietários de terras e dos

comerciantes. Os estrangeiros levavam suas bugigangas e as trocavam por

alimentos frescos. Os panos e algodão só saiam clandestinamente. Essa

situação durou até o século XIX.

Os indivíduos de sangue mais nobre foram desaparecendo, surgindo os

mestiços. Foi-se formando as classes: as dos senhores, as dos libertos (negros

ou mulatos) e a dos escravos. Os libertos se tornavam livres pelo nascimento

ou pela liberdade concedida pelos seus senhores, e, a partir do século XVIII, se

tornaram a maioria em Cabo Verde.

Foi no século XIX que se fez o primeiro recenseamento. A população

espalhada por locais altos e rochosos dificultou a contagem. Os senhores de

escravos não facilitavam os dados numéricos de escravos em virtude das

ideias abolicionistas. As ideias liberais trouxeram insurgências de autoridades

civis e de soldados. Em virtude dos maus tratos, os escravos se revoltavam,

tentando saquear casas e tomar posse das pequenas vilas. Eles eram

influenciados, muitas vezes, pelos degredados. Os trabalhadores livres

reclamavam da opressão exercida pelos seus patrões. A dificuldade econômica

que percorreu Cabo Verde desde a descoberta, fez com que os latifundiários,

gradualmente, tivessem que vender pequenas porções de terras aos homens

livres, diminuindo desta forma seu poder. Os negreiros das ilhas começaram

com a atividade clandestina para Cuba. As autoridades caboverdianas não

cooperaram facilmente com as europeias no combate ao tráfico.

Page 14: História da áfrica epopeia à lusitana escravidão em cabo verde e angola

Angola

Angola é formada por povos de línguas bantas e que geriam, antes dos

europeus, bovinos e cereais. Os lundas se expandiram pela caça de escravos.

A conquista de Angola pelos portugueses foi de extrema importância

para o tráfico de escravos. Essa região exportava para o Brasil, um número de

homens acima da média do continente. De fato, o tráfico gerou um

despovoamento de Angola e regiões próximas de forma surpreendente. Com a

presença portuguesa, as etnias originárias tiveram que mudar seus hábitos,

caracterizando a relação entre europeus e africanos pela dominação e

dependência. A briga entre Inglaterra e Espanha pelo Caribe também gerou

maior demanda negreira em Angola.

Em 1482, os portugueses chegaram à desembocadura do rio Zaire

(noroeste de Angola). Os chefes locais não aceitaram a postura branca e os

primeiros conflitos já surgiram.

Durante o século XVI, os portugueses foram hegemônicos no comércio

em Angola e região. Em 1520, chegaram ao Estado de Ndongo (sul do Congo)

embaixadores portugueses e foram recebidos pelo rei Ngola Kiluanje, a fim de

levantar informações sobre minas de metais.

Em 1574, o rei de Portugal doava uma capitania para Novais, o qual era

senhor civil e criminal da terra a qual era inalienável. Ele deveria dividi-la em

sesmarias, levar um número fixado de famílias e nomear ouvidores e

meirinhos, sem empréstimo monárquico. A Coroa permitia ao donatário um

terço do que era tributado e projetava aumentar seus domínios pelo sul

africano.

No ano seguinte, os portugueses fundaram a colônia de Angola. Paulo

Dias de Novais instalou-se na corte do rei, fez muitos acordos e tentou ali

povoar. O português, apoiados por jesuítas, fez sérios estudos predizendo uma

futura colonização. A metrópole pressionou o português para que tais acordos

não fossem cumpridos e assim começaram os conflitos que duraram quase um

século. Os Estados do Ndongo, Congo, Kissama, Matamba e Kassanje se

uniram para derrotar os brancos e conseguiram algumas vitórias. O governador

Novais teve que fugir para o Brasil. Os africanos sofreram perdas econômicas

Page 15: História da áfrica epopeia à lusitana escravidão em cabo verde e angola

por causa das guerras: diminuição da produção agrícola e artesanal. A união

começou a ruir. Os Estados foram desaparecendo em virtude do forte

movimento lusitano. Novos territórios surgiram diante das novas relações

exercidas pelo tráfico negreiro. Muitas vezes, os reinos negros vencidos tinham

que pagar multa com escravos.

Percebendo-se a possibilidade da exploração do tráfico e o receio de

uma possível invasão estrangeira, em 1576, fundou-se o porto de Luanda que

tinha um governador e um conselho municipal. Primeiramente, em nome do

governador, os senhores portugueses faziam contratos de vassalagem com os

chefes locais. Posteriormente, os acordos passaram a ser feitos diretamente

com o governador e capitães militares. A tributação era paga com escravos.

Com o passar do tempo formou-se uma classe média composta por

comerciantes mestiços.

Os conflitos com o rei de Angola fizeram com que os portugueses

fossem obrigados a buscar o interior. No final do século XVI, como Portugal

estava sob o domínio castelhano, houve também embates com os flamengos.

Os portugueses perceberam que os africanos que ali viviam praticavam

agricultura e pecuária avançadas quando comparadas com outros povos do

continente. Filipe II, enquanto vivo, auxiliou os desbravadores na empreitada

com importante ajuda militar. Os jesuítas se aproximaram demais da etnia

soba, defendendo os interesses desses perante os responsáveis pela

soberania portuguesa. Esse conluio dificultou a expansão. Buscando-se

diminuir a força jesuítica, foram entregues muitas paróquias ao clero secular.

As relações comerciais e bélicas que envolviam as sociedades colonial e

tradicional fizeram com que surgissem os “pombeiros”, negros e mestiços,

assimilados ao costumes português, e que compravam escravos e marfim para

revendê-los aos colonizadores. Esses elementos foram de grande importância

para a supremacia branca em África.

Os holandeses tomaram Angola em 1641, com vinte naus, conseguindo

dominar Luanda e, anos mais tarde, Benguela (oeste de Angola). Os

portugueses se locomoveram para as fortificações do interior. Os flamengos

foram expulsos sete anos mais tarde, com uma frota de quinze navios e com

mais de mil homens que vieram do Brasil, a fim de restituir o tráfico. Os

vencedores aproveitaram a empreitada e aumentaram o domínio pela região,

Page 16: História da áfrica epopeia à lusitana escravidão em cabo verde e angola

sendo que, em fins do século XVII, Angola se tornou o maior contingente de

mão-de-obra de pele escura. A grande parte dos enclausurados nos porões

negreiros era comprada de etnias amigas. Praticamente, todos os negros que

eram exportados tinham como rumo a “terra brasilis”. Criou-se uma boa

estrutura envolvendo exportadores lusitanos e brasileiros, comerciantes

africanos vendedores de cativos e caravaneiros mestiços. As perdas de

escravos durantes as viagens marítimas eram em torno de quinze por cento.

Em 1660, os jesuítas foram expulsos. As ideias cristãs não se efetivaram de

forma expressiva em território angolano. Houve casos de revoltas causadas por

populares e militares.

Os portugueses faziam uma varredura pela costa africana, comprando

sal e tecidos até chegarem em Angola, onde trocavam tais itens por ouro,

marfim e escravos. Aos poucos, os europeus foram acabando com a rede de

trocas entre os africanos, impondo seu monopólio nas feiras próximas às

feitorias. Pelo litoral africano ocidental havia inúmeros povoados de população

rarefeita.

Pelo século XVIII, os comerciantes luso-angolanos já estavam

espalhados por Benguela. Não eram vassalos e se faziam acompanhar pelos

mandatários africanos. Os brasileiros ganharam força na atividade comercial,

em virtude da derrota imposta aos holandeses. A grande maioria dos navios

que estacionavam nos portos era de origem tupiniquim. Chegou-se a ter em

solo angolano governadores brasileiros. Os portugueses tentaram sem sucesso

reaver o domínio através da diversificação de produtos no interior angolano. Na

segunda metade desse século, D. Francisco Inocêncio de Sousa Coutinho,

influenciado pelas ideias de Pombal, dirigiu políticas para o setor da agricultura

e indústria. Aboliu-se o monopólio estatal, permitindo o livre comércio para

lusitanos. As companhias, como a do Grão-Pará e Maranhão, deram novo

fôlego ao tráfico. A exploração de cobre, enxofre e ferro e colheitas de urzela e

anil se tornaram mais eficazes. Sousa Coutinho deu início a ideia de ligação

entre Angola e Moçambique. Ele permitiu também uma melhor proteção do

território, impedindo o avanço de estrangeiros.

Os donos das embarcações situadas em Luanda e Benguela eram os

armadores. Compravam os negros e os vendiam em solo brasileiro. A comida

brasileira era a que alimentava grande parte do cativo. Posteriormente, em solo

Page 17: História da áfrica epopeia à lusitana escravidão em cabo verde e angola

angolano, a atividade pesqueira para alimentá-los também ganhou grande

importância. A escravidão também gerou alguns ricos comerciantes em Angola.

Para proteger a produção que surgia lentamente, o governo teve a ideia de

ampliar a força armada local, municiando-a com artigos de ferro. Assim, foi

iniciada uma tímida produção ferrífera. O governador Sousa e Coutinho ajudou

na propagação do trabalho livre e assalariado.Começou-se a exportar para

Portugal, arroz e café. Tabaco e aguardente também começaram a ser

produzidos.

No começo do século XIX, quase noventa por cento do comércio era

feito através de cativos para o Brasil, enquanto que cerca de cinco por cento

era feito com Portugal através da exportação de marfim. Sob o comando da

monarquia, as primeiras viagens realizadas ligando as duas costas – de Angola

a Moçambique – foram bastante satisfatórias. Aos poucos, a industrialização

angolana fez com que o comércio com o Brasil perdesse importância. Abriram-

se os portos para outras nações. Era necessário que a mão-de-obra, outrora

exportada, permanecesse ali. Em 1836, o comércio de escravos foi proibido.

De forma geral, podemos dizer que os comerciantes brasileiros ficaram

muito ricos com o comércio. Portugal cobrava impostos dessa atividade

comercial e aproveitava para vender o ouro e açúcar do Brasil. Angola era a

terra explorada, a qual cabia apenas fornecer os escravos.

Page 18: História da áfrica epopeia à lusitana escravidão em cabo verde e angola

Figura 2. Angola e outras dominações portuguesas. Fonte: Ibidem, p. 136.

O poeta Francisco José Tenreiro cantou nos versos de “Epopeia” (1980,

p. 137) a história dos africanos:

Não mais a África

Page 19: História da áfrica epopeia à lusitana escravidão em cabo verde e angola

da vida livre

e dos gritos agudos de azagaia!

Não mais a África

de rios tumultuosos

– veias entumecidas dum corpo em sangue!

Os brancos abriram clareiras

a tiros de carabina.

Nas clareiras fogos

arroxeando a noite tropical.

Fogos!

Milhões de fogos

num terreno em brasa!

Noite de grande lua

e um cântico subindo

do porão do navio.

O som das grilhetas

marcando o compasso!

Noite de grande lua

e destino ignorado!...

Foste o homem perdido

em terras estranhas!...

No Brasil

ganhaste calo nas costas

nas vastas plantações do café!

No Norte foste o homem enrodilhado

nas vastas plantações do fumo!

Na calma do descanso nocturno

só a saudade da terra

Page 20: História da áfrica epopeia à lusitana escravidão em cabo verde e angola

que ficou do outro lado...

– só as canções bem soluçadas –

dum ritmo estranho!...

Os homens do norte

ficaram rasgando

ventres e cavalos

aos homens do sul!

Os homens do norte

estavam cheios

dos ideais maiores

tão grandes

que tudo foi um despropósito!...

Os homens do Norte

os mais lúcidos e cheios de ideais

deram-te do que era teu

um pedaço para viveres...

Libéria! Libéria!

Ah!

Os homens nas ruas da Libéria

são dollars americanos

ritmicamente deslizando...

Quando cantas nos cabarés

fazendo brilhar o marfim da tua boca

é a África que está chegando!

Quando nas Olimpíadas

corres veloz

é a África que está chegando!

Page 21: História da áfrica epopeia à lusitana escravidão em cabo verde e angola

Segue em frente

irmão!

Que a tua música

seja o ritmo de uma conquista!

E que o teu ritmo

seja a cadência de uma vida nova!

... para que a tua gargalhada

de novo venha estraçalhar os ares

como gritos agudos de azagaia!

Page 22: História da áfrica epopeia à lusitana escravidão em cabo verde e angola

Considerações finais

Em Cabo Verde, percebeu-se que desde o início a economia foi sempre

amparada por uma política de subsistência. O tráfico de escravos foi duradouro

e conseguiu os melhores índices econômicos. Destacou-se também a

produção de panos. As leis restritivas da Coroa e a concorrência estrangeira

foram entraves econômicos muito grandes.

Em Angola, a Coroa almejava que a terra fosse explorada pela

agricultura, mas a prática a fez como uma fonte bastante rentável com o

comércio de cativos. Angola era o primeiro passo dos sonhos lusitanos que

somente veio a se completar no século XIX: a África Austral. Sem dúvida, criou-

se um grande triângulo: Portugal, Angola e Brasil.

Percebemos a importância daqueles que foram assimilados pela cultura

do dominador e que trabalharam para a desestruturação da sua sociedade de

origem, a tradicional. A atividade perversa na escravidão deixou o racismo nas

Américas. De fato, uma boa parte existente dos livros sobre o assunto retrata,

mormente, a visão dos dominadores. Onde a elite branca foi dissolvida mais

prematuramente, os negros puderam dar vozes aos seus direitos de forma

mais integral. As forças progressistas, internas e externas, destruíram o odioso

tráfico de escravos.

Page 23: História da áfrica epopeia à lusitana escravidão em cabo verde e angola

Referências

ANDRADE, Mario de. Antologia temática de poesia africana: na noite

grávida de punhais. Editora Sá da Costa, 1980.

BOAVIDA, Américo. Angola: cinco séculos de exploração portuguesa. Rio de

Janeiro: Civilização Brasileira, 1967.

CARREIRA, Antônio. Cabo Verde: formação e extinção de uma sociedade

escravocrata (1460-1878). Lisboa: Centro de Estudos da Guiné Portuguesa,

1972.

CORTESÃO, Jaime. História da expansão portuguesa. Imprensa Nacional,

1993.

FERNANDES, Antero da Conceição Monteiro. Guiné-Bissau e Cabo Verde:

da unidade à separação, 2007. Tese (Mestrado em Estudos Africanos) –

Faculdade de Letras. Universidade do Porto, Porto.

GARNSEY, Peter. Ideas of slavery from Aristotle to Augustine. Cambridge

University Press, 1996.

História de Angola. Porto: Afrontamento.

LOVEJOY, Paul E. A escravidão na África: uma história de suas

transformações. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2002.

PRIORE, Mary Del; VENÂNCIO, Renato Pinto. Ancestrais: uma introdução à

história da África Atlântica. Rio de Janeiro: Elsevier, 2004.

UNESCO. História geral da África, V: África do século XVI ao XVIII. Brasília:

UNESCO, 2010.