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Jorge Barbosa ESMGA Curso de Artes Visuais, 11º 7ª Janeiro, 2013 INTRODUÇÃO Apresentação de Espinosa Espinosa nasceu em Amsterdão no ano de 1632. Descartes tinha, então, 32 anos, Rembrandt tinha 23 e Christiaan Huygens, um dos mais importantes astrónomos e físicos de todos os tempos, filho do mecenas de Rembrandt, Constantijn Huygens, nasceu no mesmo ano e na mesma cidade. Os seus pais, Miguel e Hana Debora, eram judeus sefarditas portugueses que se tinham instalado em Amsterdão, para evitar as perseguições da Inquisição e, certamente também, para desenvolver mais livremente os seus negócios. Recebeu o nome próprio de Bento, um nome bem português; durante a infância e adolescência era chamado de Baruch, o termo hebreu que tem o mesmo significado; e, aos 24 anos, Espinosa adotou para si o nome de Benedictus, em Latim. Todos os seus nomes significam Bendito, mas, de certo modo, as diferentes palavras, nas diferentes línguas, descrevem uma boa parte do seu percurso de vida: era filho de portugueses perseguidos que mantiveram, na altura do seu nascimento, a ligação à sua língua (Bento), foi acolhido pela comunidade judia sefardita de Amsterdão, que traduziu o seu nome para Hebreu (Baruch) e, finalmente, justamente aos 24 anos, é expulso da comunidade judia a que pertencia, e ele próprio decide mudar o seu nome para uma língua supranacional, embora não falada, o Latim (Benedictus). Tendo sido impedido de frequentar a Sinagoga, é na mesma altura, ao 24 anos, que abandona o conforto da casa da família, e se instala em casa do pintor Van der Spijk, onde ocupa os quartos do terceiro andar. O curioso seria saber que outro nome teria dado a si próprio, se tivesse previsto o que aconteceu ao seu corpo depois da morte. As cerimónias fúnebres decorreram, em 1677, na Igreja Nova de Amsterdão, e, como era hábito, o seu corpo seria enterrado no adro da igreja, onde o esperava uma campa com uma lápide onde tinha sido inscrito o seu lema: “Caute”, que quer dizer “cuidado”. Só que o seu corpo foi roubado da igreja, não se sabe por quem, enquanto, depois das cerimónias, aguardava, no interior da igreja, o seu enterramento. E a campa lá ficou, com a lápide a recomendar cuidado, até hoje, vazia. Nos últimos dez anos da sua vida, com efeito, a sua correspondência era sempre identificada com uma espécie de logotipo em rodapé que continha a palavra caute (cuidado) por baixo de uma rosa. O seu Tratado Teológico-Político, foi publicado com um nome de impressor fictício, com um nome falso da cidade de impressão (Hamburgo), e com o espaço para o nome do autor em branco. Apesar de ter sido escrito em Latim, foi proibido pelas autoridades holandesas, e condenado pelo Vaticano. Foi considerado, por uns e por outros, um ataque à religião organizada e ao poder político. Na verdade, em coerência com a sua filosofia, limitava-se a explicar por que razão os poderosos (os déspotas, tal como os padres) tinham tanta necessidade de promover a tristeza naqueles que lhes estavam sujeitos. A tristeza dos súbditos e dos fiéis seria necessária à manutenção do poder, dado que o poder

Ideias e Afecto - Espinosa Lido por G. Deleuze

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Jorge BarbosaESMGACurso de Artes Visuais, 11º 7ªJaneiro, 2013

I N T R O D U Ç Ã O

Apresentação de Espinosa

Espinosa nasceu em Amsterdão no ano de 1632. Descartes tinha, então, 32 anos, Rembrandt tinha 23 e Christiaan Huygens, um dos mais importantes astrónomos e físicos de todos os tempos, filho do mecenas de Rembrandt, Constantijn Huygens, nasceu no mesmo ano e na mesma cidade.

Os seus pais, Miguel e Hana Debora, eram judeus sefarditas portugueses que se tinham instalado em Amsterdão, para evitar as perseguições da Inquisição e, certamente também, para desenvolver mais livremente os seus negócios. Recebeu o nome próprio de Bento, um nome bem português; durante a infância e adolescência era chamado de Baruch, o termo hebreu que tem o mesmo significado; e, aos 24 anos, Espinosa adotou para si o nome de Benedictus, em Latim. Todos os seus nomes significam Bendito, mas, de certo modo, as diferentes palavras, nas diferentes línguas, descrevem uma boa parte do seu percurso de vida: era filho de portugueses perseguidos que mantiveram, na altura do seu nascimento, a ligação à sua língua (Bento), foi acolhido pela comunidade judia sefardita de Amsterdão, que traduziu o seu nome para Hebreu (Baruch) e, finalmente, justamente aos 24 anos, é expulso da comunidade judia a que pertencia, e ele próprio decide mudar o seu nome para uma língua supranacional, embora não falada, o Latim (Benedictus). Tendo sido impedido de frequentar a Sinagoga, é na mesma altura, ao 24 anos, que abandona o conforto da casa da família, e se instala em casa do pintor Van der Spijk, onde ocupa os quartos do terceiro andar. O curioso seria saber que outro nome teria dado a si próprio, se tivesse previsto o que aconteceu ao seu corpo depois da morte. As cerimónias fúnebres decorreram, em 1677, na Igreja Nova de Amsterdão, e, como era hábito, o seu corpo seria enterrado no adro da igreja, onde o esperava uma campa com uma lápide onde tinha sido inscrito o seu lema: “Caute”, que quer dizer “cuidado”. Só que o seu corpo foi roubado da igreja, não se sabe por quem, enquanto, depois das cerimónias, aguardava, no interior da igreja, o seu enterramento. E a campa lá ficou, com a lápide a recomendar cuidado, até hoje, vazia.

Nos últimos dez anos da sua vida, com efeito, a sua correspondência era sempre identificada com uma espécie de logotipo em rodapé que continha a palavra caute (cuidado) por baixo de uma rosa. O seu Tratado Teológico-Político, foi publicado com um nome de impressor fictício, com um nome falso da cidade de impressão (Hamburgo), e com o espaço para o nome do autor em branco. Apesar de ter sido escrito em Latim, foi proibido pelas autoridades holandesas, e condenado pelo Vaticano. Foi considerado, por uns e por outros, um ataque à religião organizada e ao poder político. Na verdade, em coerência com a sua filosofia, limitava-se a explicar por que razão os poderosos (os déspotas, tal como os padres) tinham tanta necessidade de promover a tristeza naqueles que lhes estavam sujeitos. A tristeza dos súbditos e dos fiéis seria necessária à manutenção do poder, dado que o poder

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só se mantinha sem contestação, se esses súbditos ou fiéis vissem reduzida a sua força de existir ou o seu poder para agir (numa variação contínua da existência, a tristeza era justamente o pólo negativo da força de existir).

A história de Espinosa e da sua família judia é feita de grandes injustiças. A perseguição aos judeus sefarditas em Portugal era de uma crueldade extrema. Com efeito, os sefarditas, comunidade judaica de Portugal e de Espanha, formada na Península Ibérica ainda antes da ocupação Romana, conseguiram sobreviver a todas as crises e a todas as invasões até ao final do século XV. Grande parte da cabala medieval é da responsabilidade dos sefarditas, e os rabinos desta comunidade escreveram importantes tratados que ainda hoje são valorizados. Tinham um rito próprio (conhecido como Espanhol-Português) e uma forma tolerante de convívio com outras religiões ou práticas religiosas. Dedicavam-se, obviamente, a atividades artesanais (ourivesaria, por exemplo), ao comércio e ao negócio especulativo. Não há religião alguma que proíba a atividade principal do povo que a pratica. Um Deus de uma sociedade de nómadas não poderia nunca condenar o nomadismo do seu povo; um Deus de uma sociedade de negociantes não poderia nunca condenar o negócio, mesmo que fosse especulativo. Se alguém assumia com um negociante judeu um contrato que lhe fosse desvantajoso, isso só poderia dever-se ao seu afastamento dos desígnios de Deus, ou à falta de inteligência, o que, de algum modo, era a mesma coisa. Um judeu não poderia entender as coisas de outro modo. Compreendemos bem como, em qualquer época, aqueles que, acreditando que a sua atividade é protegida pelo seu Deus, (ou, mais atualmente, pelos “mercados”), não têm escrúpulos em tirar proveito da menor capacidade dos outros para o negócio, podem ser odiados por esses mesmos, sobretudo se o Deus dos desprotegidos condena e expulsa os “vendilhões do Templo”. Ora, por esta razão, por especular com a desgraça dos outros, qualquer um pode correr o risco de ser perseguido. Se o povo pensa que esta propensão para o lucro financeiro tem fundamentos religiosos, então a perseguição toma um aspeto perigosamente radical e fundamentalista.

Só que a Santa Inquisição não era o povo. Explorava a hostilidade do povo e as suas superstições xenófobas, mas não era o povo; era uma organização, com método, planos e objetivos. Se for correta a interpretação de Agostinho da Silva, segundo a qual o povo português praticava, na altura da contra-reforma, maioritariamente um catolicismo espiritualista, condenado por heresia pelo Vaticano, a perseguição aos judeus, eles próprios espiritualistas ou cabalistas da Península Ibérica, seria, antes de tudo o mais, na minha interpretação, um combate exemplar contra o que era designado de práticas pagãs dos católicos. As celebrações dedicadas ao Santo Espírito tinham de ser erradicadas do espaço territorial português. E foram. Mantêm-se, de alguma forma, no interior do país, mas sobretudo nas ilhas dos Açores que acolheram, sem possibilidade de controlo do poder central, muitos populares que lá conseguiram manter as suas crenças e os seus rituais religiosos. Eram, portanto, as práticas católicas tradicionais e populares que a Inquisição tinha de perseguir, e perseguiu, mas recorreu também à perseguição exemplar daqueles, cujas crenças estavam supostamente a influenciar o povo católico. É que tudo indica que os judeus sefarditas sempre tiveram menos dificuldade em se integrar, recebendo influências e influenciando os outros, nas comunidades ibéricas.

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Para que se perceba em toda a sua extensão a crueldade, mas também o fanatismo, a cegueira da perseguição movida em Portugal contra os judeus sefarditas, ainda falta dizer que a comunidade de judeus de origem portuguesa teve ainda a força de existir ou o poder para agir, como diria Espinosa, para construir a imponente Sinagoga Portuguesa1 de Amsterdão (denominada Esnoga), em pleno centro da cidade histórica, mesmo em frente ao atual Museu da História Judaica de Amsterdão. Foi a Sinagoga desta Congregação Portuguesa Judaica de Amsterdão que expulsou o jovem Espinosa do seu convívio.

Portugal perdeu, não só uma quantidade substancial do seu capital financeiro, mas também um importantíssimo capital intelectual. Espinosa é só um exemplo dessa perda de capital intelectual. Por exemplo, um dos fundadores da escola clássica de economia inglesa, David Ricardo, era um judeu sefardita de origem portuguesa (todos os eram, de acordo com o que preferiam dizer de si mesmos) da comunidade de Amsterdão.

Mas a maior injustiça que recaiu sobre Espinosa, para além do roubo do seu corpo após a sua morte, terá sido o pouco relevo que, durante séculos, foi dado à sua obra filosófica. Descartes, 32 anos mais velho do que ele, também teve de ter muito cuidado com o que escrevia, mas em muitas coisas, e no cuidado também, era bem diferente de Espinosa. O seu cuidado levava-o a enrolar a conversa, a fazer vénias, a fazer todo o tipo de concessões, em nome da salvação mais da pele do que da alma. Pelo contrário, o cuidado de Espinosa traduziu-se numa escrita rigorosa, sem desvios nem explicações desnecessárias. Descartes, na peugada de Galileu, preferiu ver o mundo a reger-se por leis matemáticas (geométricas) atribuídas pelo Criador; Espinosa não só partilhava deste pensamento novo na época, como ainda decidiu falar desse mundo como se estivesse a fazer demonstrações geométricas, depurando a sua conversa da redundância e das proposições não demonstráveis. Não foi um espírito tão analítico como o de Descartes, porque as suas demonstrações não eram empobrecidas pelo formalismo, mas foi mais rigoroso. Há, pelo menos, duas formas de ver esse espírito analítico: como o edifício que sustenta tudo o resto, ou como o andaime que sustenta o edifício e que tem de ser retirado para não estragar o que foi construído. Espinosa está mais próximo desta última forma de ver as coisas da análise. Por isso, as suas análises não são sem conteúdo e sem progresso, sem edifício, para usar a metáfora agora, que mais tarde não fará falta.

Façamos então alguma justiça a Espinosa. Se Descartes foi mais útil para a construção da ciência e da filosofia modernas, a verdade é que Espinosa propôs um salto de vários séculos no tempo e é,

1 Esta designação não significava que a comunidade sefardita de Amsterdão fosse exclusivamente constituída por portugueses. Com efeito, sob o reinado dos “Reis Católicos” , cerca de 130 000 judeus espanhóis refugiaram-se em Portugal, após terem sido expulsos pelo Decreto de Alhambra em 1492. No reinado de D. Manuel I de Portugal, quatro anos depois, todos os judeus, portugueses e espanhóis, foram obrigados a converter-se ao catolicismo. Esta obrigação legal foi tanto usada para perseguições seletivas, quanto para “fazer de conta” ou, como se diz agora, “para inglês (neste caso, espanhol) ver”. Em todo o caso, as perseguições seletivas eram também sentidas pelos judeus como opressoras e humilhantes. A ocupação da Portugal, em 1580, pelos Filipes, instalou em Portugal uma perseguição sistemática de todos os judeus. É nesta altura que se dá a grande fuga de judeus da Península Ibérica para a Holanda. Mas, como a Espanha estava, por essa altura, em guerra com a Holanda, os judeus peninsulares preferiram, por motivos compreensíveis, adotar oficialmente a origem portuguesa. Mesmo os que tinham origem em Espanha, assumiram, uma vez instalados em Amsterdão, ter sido sempre portugueses. Esta comunidade sefardita, francamente minoritária face às comunidades que, do centro e do oriente da Europa, rumavam para a Holanda, era muito mais rica do que qualquer outra sua congénere, e desempenhou um papel fundamental no desenvolvimento e enriquecimento dos Países Baixos.

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agora, bem mais actual. Não é por acaso que António Damásio, um dos mais importantes neurocientistas contemporâneos, inicia um dos seus livros (sobre as emoções sociais e a neurologia do sentir), com um elogio prolongado e pormenorizado da genialidade de Espinosa.

Sobre a Tradução

Todo o texto que se segue é uma tradução da transcrição integral de uma aula de Deleuze sobre Espinosa, na Universidade de Vincennes (Paris).

A tradução de uma língua para outra comporta sempre alguma forma de imprecisão, ou, se se preferir, de interpretação. Mas, quando o que se traduz é a língua falada e não a escrita, essa tradução corre ainda riscos mais sérios de alguma imprecisão. Gilles Deleuze não é do género de complicar mais esta tarefa de tradução do que o que é característico da própria tarefa sem mais. Na verdade, a sua oralidade, por vezes, tem mesmo a qualidade e a forma da linguagem escrita. Mesmo assim, encontramos alterações dos tempos verbais e do sujeito das frases num mesmo período, como acontece frequentemente quando a nossa conversa, simultaneamente, provoca a atenção dos outros e responde às reacções de quem nos ouve, desrespeitando, deste modo, o formalismo da escrita. Mas é a sua oralidade que aqui será sempre respeitada, apesar das dificuldades que uma tradução deste género implica, sobretudo para quem, como eu, entende melhor a forma de falar de Deleuze em francês do que a partir de uma eventual tradução para português, mesmo feita por mim.

A segunda ordem de dificuldades na tradução relaciona-se com as diferenças linguísticas, de suporte ou que são suportadas por diferenças culturais Por exemplo, o termos “mode de pensée” será traduzido por “modalidade de pensamento” ou “modo de pensar”. A minha interpretação é a seguinte: o termo “pensée”, em francês, tem uma energia distinta do termo “pensamento” em português. Na verdade, o termo “pensée” estabelece uma relação com a sua origem nominal muito próxima da relação que “braço” tem com “braçada”, ou “touro” com “tourada”. O sufixo “mento” em “pensamento” também tem um seu correspondente (“ment”) em francês em outras palavras. Se não é usado nesta “pensée” é porque não é o que mais lhe convém. Por isso, o termo “modalidade” em “modalidade de pensamento” visa acrescentar essa dinâmica que o termo “modo” não atribuiria; em alternativa “modo de pensar” que, em bom rigor, deveria ser “modo do pensar”, para acentuar o carácter substantivo, conceptual do termo “pensar” é uma opção que será usada, tendo exclusivamente em mente a musicalidade da língua portuguesa.

Um termo ainda mais complexo - por isso, mais interessante, como diria Deleuze - é o de afeição. “Afeição” traduz o termo affectio, do Latim, e affection, do Francês. Ora, sucede que o termo, em Português, que mais espontaneamente corresponde ao sentido atribuído por Espinosa a affectio, é afecção. Afecção corresponde a uma feição do organismo que não é nem positiva nem negativa; infecção é uma feição negativa; aqui o prefixo “in” não significa negação, mas negativo: infecção não é uma não-feição, mas uma feição negativa; perfeição será uma feição positiva. Afecção será uma feição, suscetível de ser negativa ou positiva. Pois bem, afeição é uma palavra que é vulgarmente entendida

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como algo positivo. A minha insistência em usar o termo afeição resulta justamente da necessidade de destruir o preconceito de que a afeição é sempre algo positivo: pode ser ou não. Do ponto de vista científico, afeição não é a mesma coisa que afectuosidade, tal como afecto não é a mesma coisa que afectuoso. A afeição, tal como o afecto, pode ser negativo ou positivo. E, em ambos os casos, dizem respeito a estados ou a dinâmicas do corpo. Não são vapor de água. Ora, é precisamente este o sentido que é atribuído por Espinosa a affectio. É também esta concepção que o aproxima da ciência contemporânea, em particular das neurociências. Por isso, recorrerei, por teimosia, à palavra afeição ainda que daí possam resultar algumas confusões, sobretudo para quem tenha dispensado a leitura desta introdução.

Já agora fica bem esclarecer que, para Espinosa, a afeição é uma ideia, isto é, um modo do pensar representativo, que representa alguma coisa, enquanto o afecto não é, nem se reduz nunca a uma ideia, porque é um modo do pensar não representativo, que não representa nada. Esta distinção vital no pensamento de Espinosa resulta da sua convicção de que as ideias têm sempre primazia face aos afectos. Primeiro, temos uma ideia, e só depois somos afectados por ela. Primeiro, representamos a ideia de raios de sol no nosso corpo, e só depois sentimos o conforto, ou o aconchego, ou o incómodo desses raios a bater no corpo. Esse conforto, aconchego ou incómodo não representam nada. São o que são, e mais nada. Espinosa sabia, no entanto, que um pôr do sol tanto podia estar na origem de uma profunda tristeza como de uma enorme alegria. Como seria isso possível, se a ideia conceptual, a noção de pôr de sol, era sempre a mesma? Numa imagem, ironicamente cartesiana, de um eixo de abcissas e ordenadas, numa perspetiva axial, era necessário conceber ideias não conceptuais. É aqui que surge a afeição, um modo do pensar representativo, uma ideia portanto, que, não sendo a mesma coisa que o afecto, lhe seria cronologicamente e logicamente anterior.

Na neurociência contemporânea, este conceito de afeição corresponde, de algum modo, a disposições do corpo e do cérebro, a marcadores somáticos, etc que também não seria escandaloso considerar como um modo do pensar.

Já vai longa esta introdução (que é mais uma espécie de medida cautelar), e o melhor será que ouçamos a brilhante lição de Deleuze. Vamos a isso, então.

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L I Ç Õ E S D E G I L L E S D E L E U Z E S O B R E E S P I N O S A

A U L A D E 2 4 / 0 1 / 1 9 7 8 - O A F E C TO E A I D E I A

Hoje2 vamos fazer uma pausa no nosso trabalho sobre a variação contínua, e vamos, provisoriamente, dar uma volta à história da filosofia, a respeito de um ponto muito preciso. É uma espécie de corte, pedido por muitos de vós. Esse ponto muito preciso diz respeito ao seguinte: o que é a ideia e o que é o afecto em Espinosa? Ideia e afecto em Espinosa. No próximo mês de Março, faremos também um corte, a pedido de alguns de vós, sobre o problema da síntese e o problema do tempo em Kant.

Voltar à história produz em mim um efeito curioso. Quase desejo que tomem este pedaço da história da filosofia como simplesmente uma história. No final de contas, um filósofo não é somente alguém que inventa conceitos, ele inventa talvez também formas de perceber. Vou avançar quase por enumeração. Vou começar por alguns esclarecimentos terminológicos. Suponho que a sala é relativamente heterogénea. Creio que, de todos os filósofos de que nos fala a história da filosofia, Espinosa se encontre numa situação muito excecional: a maneira como toca aqueles que entram nos seus livros não tem equivalente. Não importa que o tenham lido ou não, eu estou a contar uma história. Vou começar por algumas advertências terminológicas. No livro mais importante de Espinosa, a Ética, escrito em latim, encontramos duas palavras: affectio e affectus. Alguns tradutores, muito estranhamente, traduzem as duas do mesmo modo. É uma catástrofe. Traduzem os dois termos, affectio e affectus, por afeição3. Digo que é uma catástrofe porque, quando um filósofo utiliza duas palavras, em princípio, é porque tem uma razão, e tanto mais quanto em francês4 também temos duas palavras que correspondem rigorosamente a affectio e a affectus: afeição para affectio e afecto para affectus. Alguns tradutores traduzem affectio por afeição, e affectus por sentimento, o que é melhor do que traduzir as duas pela mesma palavra, mas não vejo a necessidade de se recorrer à palavra sentimento, uma vez que o francês dispõe da palavra afecto. Portanto quando utilizo a palavra afecto quero significar o termo affectus de Espinosa, e quando recorro à palavra afeição quero significar o termo affectio.

2 As lições aqui apresentadas referem-se a transcrições das aulas de Deleuze na Universidade de Vincennes, nas datas mencionadas para cada uma.

3 O termo erudito em português, mais próximo do francês, é afecção (palavra que aqui escrevo propositadamente na antiga grafia, para que seja mais clara a sua origem latina, tal como a correspondente em francês affection). De agora em diante, afeição (termo mais popular) será sempre o utilizado, embora o seu sentido seja sempre o erudito.

4 e em português também.

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A Ideia, modalidade de pensamento representativo.

Primeiro ponto: o que é uma ideia? O que é uma ideia, para compreender as proposições, mesmo as mais simples, de Espinosa. Neste ponto, Espinosa não é original. Ele vai tomar o termo ideia no sentido em que toda a gente sempre o tomou. Aquilo a que se chama ideia, no sentido em que toda a gente sempre a utilizou na história da filosofia, é uma modalidade de pensamento (ou um modo de pensar) que representa alguma coisa. Uma modalidade de pensamento representativo. Por exemplo, a ideia de triângulo é um modo de pensar que representa o triângulo. Ainda do ponto de vista da terminologia, é útil saber que, desde a Idade Média, a este aspeto da ideia é dado o nome de “realidade objetiva”. Num texto do século XVII ou num texto anterior, quando encontrarem (a referência) à realidade objetiva da ideia isso quer dizer sempre: a ideia concebida como representação de alguma coisa. Da ideia, na medida em que representa alguma coisa, diz-se que tem uma realidade objetiva. Ela corresponde à relação da ideia com o objeto que ela representa.

O Afecto, modalidade de pensamento não representativo

Portanto, partimos de uma coisa muito simples: a ideia é um modo de pensar definido pelo seu carácter representativo. Isto já nos dá um ponto de partida para distinguir ideia de afecto, porque chamaremos afecto a toda a modalidade de pensamento que não representa nada. O que é que isto quer dizer? Escolham ao acaso o que quer que seja a que se possa chamar afecto ou sentimento, uma esperança por exemplo, uma angústia, um amor, isto não é representativo. Temos, certamente, uma ideia da coisa amada, temos uma ideia da coisa que esperamos, mas a esperança enquanto tal, ou o amor enquanto tal não representam nada, rigorosamente nada.

Toda a modalidade de pensamento não representativo receberá o nome de afecto. Uma volição, uma vontade, implica, é certo, em rigor que eu queira alguma coisa; aquilo que eu quero é objeto de representação, aquilo que eu quero é-nos dado numa ideia, mas o facto de querer não é uma ideia, é um afecto porque é um modo de pensar não representativo.

Estão a entender (Ça marche)? Isto não é complicado.

Daqui (Espinosa) conclui imediatamente um primado da ideia sobre o afecto, o que é comum a todo o século XVII. Até aqui, ainda não entramos na especificidade de Espinosa. Há um primado da ideia sobre o afecto por uma razão muito simples, que é que para amar é preciso ter uma ideia, por muito confusa que seja, por muito indeterminada que seja, daquilo que se ama. Para querer, é preciso ter uma ideia, por muito confusa e indeterminada que seja, daquilo que se quer. Mesmo quando dizemos “não sei o que estou a sentir”, há uma representação, por muito confusa que seja, do objeto. Há, portanto um primado, ao mesmo tempo, cronológico e lógico da ideia sobre o afecto, isto é, das modalidades representativas do pensamento sobre as modalidades não representativas. Seria um contra-senso desastroso o leitor transformar este primado lógico em

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redução. Que o afecto pressuponha a ideia, isso não quer dizer que ele se reduza à ideia ou a uma combinação de ideias. Devemos partir disto: que a ideia e o afecto são duas espécies de modos de pensar que diferem em natureza, (que são) irredutíveis um ao outro, e que somente podem ser considerados numa relação em que o afecto pressupõe a ideia, por muito confusa que seja. Este é o primeiro ponto.

Realidade Objetiva - Realidade Formal

Segunda maneira menos superficial de apresentar a relação ideia-afecto. Lembram-se que partimos de uma caracterização muito simples da ideia. A ideia é um pensamento representativo, é um modo de pensar representativo, e neste sentido podemos falar da realidade objetiva de uma ideia. Só que a ideia não é unicamente uma realidade objetiva; seguindo de novo a terminologia consagrada, a ideia tem também uma realidade formal. O que é isso da realidade formal da ideia, sendo dito que a realidade objetiva é a realidade da ideia, na medida em que representa alguma coisa? A realidade formal da ideia, dir-se-á, é - e então tudo se torna mais complicado e, por isso, mais interessante - é a realidade da ideia, na medida em que ela própria também é alguma coisa.

A realidade objetiva da ideia de triângulo é a ideia de triângulo, enquanto representante da coisa triângulo, mas a ideia de triângulo é, ela própria, alguma coisa; aliás, na medida em que ela é alguma coisa, posso formar uma ideia dessa coisa, posso sempre formar uma ideia da ideia. Diria então que toda a ideia é ideia de alguma coisa - dizer que toda a ideia é ideia de alguma coisa é dizer que toda a ideia tem uma realidade objetiva, que toda a ideia representa alguma coisa -, mas diria também que a ideia tem uma realidade formal pois ela própria é alguma coisa, enquanto ideia. O que é que quer dizer a realidade formal da ideia? Não vamos poder continuar muito tempo a discutir isto, vai ser preciso pôr isto de lado. Basta acrescentar que esta realidade formal da ideia é aquilo a que Espinosa chama muitas vezes um certo grau de realidade ou de perfeição que a ideia possui enquanto tal. Cada ideia, enquanto tal, tem um certo grau de realidade ou de perfeição. Sem dúvida, esse grau de realidade ou de perfeição está ligado ao objeto que ela representa, mas não se confunde com ele: a realidade formal da ideia, a saber, a coisa que é a ideia ou o grau de realidade ou de perfeição que ela possui em si, é o seu carácter intrínseco. A realidade objetiva da ideia, a saber, a relação da ideia com o objeto que ela representa, é o seu carácter extrínseco; pode acontecer que o carácter extrínseco e o carácter intrínseco da ideia estejam fundamentalmente ligados, mas não são a mesma coisa. A ideia de Deus e a ideia de rã têm uma realidade objetiva diferente, isto é: não representam a mesma coisa, mas, ao mesmo tempo, não têm a mesma realidade intrínseca, não têm a mesma realidade formal, isto é, uma - percebe-se bem - tem um grau de realidade infinitamente maior do que a outra. A ideia de Deus tem uma realidade formal, um grau de realidade ou de perfeição intrínseca infinitamente maior do que a ideia de rã, que é a ideia de uma coisa finita.

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Se compreenderam isto, já compreenderam quase tudo. Que há, portanto, uma realidade formal da ideia, isto é, que a ideia é alguma coisa em si mesma, que esta realidade formal é o seu carácter intrínseco e que ela contém em si mesma o grau de realidade ou de perfeição que lhe é próprio.

O Afecto, variação contínua da força de existir ou do poder para agir.

Há pouco, quando definia a ideia pela sua realidade objetiva ou pelo seu carácter representativo, opunha a ideia ao afecto, dizendo que o afecto é precisamente um modo de pensar que não tem carácter representativo. Agora mesmo, acabei de definir a ideia do seguinte modo: toda a ideia é alguma coisa, não somente é ideia de alguma coisa, mas é também alguma coisa, isto é, tem um grau de realidade ou de perfeição que lhe é próprio.

Temos, portanto, que descobrir, neste segundo nível, uma diferença fundamental entre ideia e afecto. O que é que se passa concretamente na vida? Passam-se duas coisas… é curioso como Espinosa utiliza um método geométrico, sabem que a Ética se apresenta na forma de proposições, demonstrações, etc., e, ao mesmo tempo, quanto mais é matemático mais é extraordinariamente concreto. Tudo o que eu estou a dizer e todos estes comentários sobre a ideia e sobre o afecto remetem para os livros II e III da Ética. Nesses livros dois e três, ele tira-nos um retrato geométrico da nossa vida que, parece-me a mim, é muito convincente. Este retrato geométrico, consiste em nos dizer, no geral, que as nossas ideias se sucedem constantemente: uma ideia apanha a outra, uma ideia substitui outra ideia. A percepção é um certo tipo de ideia, como veremos daqui a pouco. Há um bocadinho, tinha a cabeça virada para ali, via aquele canto da sala, viro, é outra ideia; passeio-me numa rua, onde conheço pessoas, digo bom dia ao Pedro, e depois viro-me, e depois digo bom dia ao Paulo. Ou então são as coisas que mudam: olho para o sol, e o sol, pouco a pouco, desaparece e fica noite; é, portanto, uma série de sucessões, de coexistências de ideias, sucessões de ideias. Mas o que é que se passa também (para além disto)? A nossa vida quotidiana não é só feita de ideias que se sucedem. Espinosa emprega o termo “automaton”; nós somos, diz ele, autómatos espirituais, quer dizer que não somos tanto nós que temos ideias, mas as ideias que se afirmam em nós. O que é que se passa, então, para além desta sucessão de ideias?

Há outra coisa, a saber: algo em mim não cessa de variar. Há um regime da variação que não é a mesma coisa que a sucessão das ideias. Variações, isto (esta palavra) deve servir para o que queremos fazer ; o chato é que ele (Espinosa) não utiliza a palavra… O que é que é esta variação?

Retomo o meu exemplo: cruzo-me na rua com o Pedro que me é muito antipático, depois passo por ele, digo bom dia Pedro, ou então tenho medo dele e depois vejo de repente o Paulo que é muito simpático para mim, e digo bom dia Paulo, tranquilo, satisfeito. Bem. Do que é que se trata? Por um lado, uma sucessão de duas ideias, ideia de Pedro e ideia de Paulo; mas há outra coisa: operou-se em mim uma variação - aqui, as palavras de Espinosa são muito precisas, por isso vou citá-las: “(variação) da minha força de existir” ou outro termo que ele usa como sinónimo, do “poder para

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agir” - e estas variações não param. Diria que, para Espinosa, há variação contínua - existir quer dizer isso mesmo - da força de existir ou do poder para agir.

O que é que isto tem a ver com o meu exemplo estúpido, mas que é de Espinosa, bom dia Pedro, bom dia Paulo? Quando vejo Pedro que me desagrada, é-me dada uma ideia, a ideia de Pedro; quando vejo Paulo, que me agrada, é-me dada a ideia de Paulo. Cada uma destas ideias, em relação a mim, tem um certo grau de realidade ou de perfeição. Diria que a ideia de Paulo, em relação a mim, tem mais perfeição intrínseca do que a ideia de Pedro, pois a ideia de Paulo alegra-me e a ideia de Pedro desgosta-me. Quando a ideia de Paulo sucede à ideia de Pedro, a minha força de existir ou o meu poder para agir aumenta ou é favorecido; quando acontece o contrário, é o inverso; quando, após ter visto alguém que me fazia feliz, vejo alguém que me põe triste, digo que o meu poder para agir é inibido ou impedido. A este nível, não sabemos se ainda estamos a falar de convenções terminológicas, ou se já estamos a falar de algo muito mais concreto.

Diria, então, que à medida que as ideias se sucedem em nós, cada uma com o seu grau de perfeição, o seu grau de realidade ou de perfeição intrínseca, aquele que tem essas ideias, eu, não paro de passar de um grau de perfeição para outro, por outras palavras, há uma variação contínua sob a forma de aumento-diminuição-aumento-diminuição do poder para agir ou da força para existir de alguém de acordo com as ideias que tem.

Sintam como, através deste exercício penoso, pode a beleza florescer. Já não é nada má esta representação da existência, trata-se verdadeiramente da existência na rua. Podemos imaginar Espinosa a passear-se, e ele vive verdadeiramente a existência como esta espécie de variação contínua: à medida que uma ideia substitui outra, não cesso de passar de um grau de perfeição para outro, mesmo que seja (uma diferença) minúscula, e é esta espécie de linha melódica da variação contínua que vai definir o afecto, ao mesmo tempo, na sua correlação com as ideias e na sua diferença de natureza com as ideias. Tomarmos consciência desta diferença de natureza e desta correlação. Digam vocês se isto vos convém ou não.

Todos nós temos uma definição (que pensamos) mais sólida do afecto; o afecto em Espinosa é a variação (é ele que fala pela minha boca; ele nunca disse isto porque morreu demasiado novo), é a variação contínua da força de existir, na medida em que esta variação é determinada pelas ideias que temos. Num texto muito importante do fim do livro III, que tem o título “Definição geral do afecto”, Espinosa diz-nos: sobretudo não creiam que o afecto, tal como eu o concebo, depende de uma comparação das ideias. Ele quer dizer que de nada vale que a ideia seja anterior ao afecto, a ideia e o afecto são duas coisas que diferem na sua natureza, o afecto não se reduz a uma comparação intelectual das ideias, o afecto é constituído pela transição vivida, ou pela passagem vivida de uma grau de perfeição para outro, sendo essa passagem determinada pelas ideias; mas em si mesmo, (o afecto) não consiste numa ideia, constitui o afecto. Quando passo da ideia de Pedro à ideia de Paulo, digo que o meu poder para agir é aumentado; quando passo da ideia de Paulo à ideia de Pedro, digo que o meu poder para agir é diminuído. O que é o mesmo que dizer que, quando vejo Pedro, sou afectado por tristeza; quando vejo Paulo, sou

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afectado por alegria. Sobre esta linha melódica de variação contínua constituída pelo afecto, Espinosa vai determinar dois pólos, alegria-tristeza, que serão, para ele, as paixões fundamentais; a tristeza será toda a paixão, qualquer que ela seja, que envolva uma diminuição do meu poder para agir, e a alegria será toda a paixão que envolva um aumento da minha força para agir.

Esta concepção permitirá que Espinosa exponha uma certa perspetiva sobre o problema moral e político. Como pode ser que as pessoas que detêm o poder, seja em que domínio for, têm necessidade de nos afectar de maneira triste? O problema das paixões tristes como necessárias. Inspirar paixões tristes é necessário ao exercício do poder. Espinosa diz, no seu Tratado Teológico-Político, que é esse o elo profundo que liga o déspota e o padre; eles têm necessidade da tristeza nos seus sujeitos (nos que lhes estão sujeitos). Aqui compreende-se perfeitamente que Espinosa não fala da tristeza num sentido vago, ela fala da tristeza no sentido rigoroso que ele lhe atribuiu: a tristeza é o afecto que contém a diminuição do poder para agir.

Quando dizia, na minha primeira diferenciação entre ideia e afecto, que o afecto é o modo de pensar que não representa nada, diria em termos técnico que não passava de uma simples definição nominal, ou, se preferirem, exterior, extrínseca. A segunda (definição), quando digo, por um lado, que a ideia é o que tem em si uma realidade intrínseca, e o afecto é a variação contínua ou a passagem de um grau de realidade para outro, ou de um grau de perfeição para outro, já não estamos no domínio das definições ditas nominais; aqui temos já uma definição real, entendendo-se por definição real a definição que mostra simultaneamente que define a coisa e a possibilidade dessa coisa.

O que interessa agora é que compreendam como, segundo Espinosa, somos fabricados como autómatos espirituais. Enquanto autómatos, há sempre ideias que se sucedem em nós e, de acordo com essa sucessão de ideias, o nosso poder para agir ou a nossa força de existir é aumentada ou diminuída de um modo contínuo, sobre uma linha contínua, e é a isso que chamamos afecto, é a isso que chamamos existir.

O afecto é, então, a variação contínua da força de existir de alguém, sendo essa variação determinada pelas ideias que esse alguém tem.

Mas, mais uma vez, “determinado” não quer dizer que a variação se reduza à ideias que tenho, pois a ideia que tenho só tem a ver com a sua consequência, a saber, que aumenta o meu poder para agir ou, pelo contrário, o diminui relativamente à ideia que tinha antes, e não se trata de uma comparação, trata-se de uma espécie de deslize, de queda ou de elevação, do poder para agir.

Algum problema? Não há questões?

As Três espécies de ideias: afeições, noções e essências

Para Espinosa, há três tipos de ideias. Agora, já não estamos a falar de affectus, do afecto, pois, com efeito, o afecto é determinado pelas ideias que temos, não se reduz às ideias que

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temos, é determinado pelas ideias que temos; portanto, o que é essencial é ver um pouco quais são essas ideias que determinam os afectos, mantendo bem presente no nosso espírito que o afecto não se reduz às ideias que temos, é absolutamente irredutível. É de outra ordem.

Os três tipos de ideias que Espinosa distingue são ideias afeições, affectio. Vamos ver que a afeição, ao contrário do afecto, é um certo tipo de ideias: Haveria, então, em primeiro lugar as ideias affectio, em segundo lugar, acontece-nos ter também ideias a que Espinosa chama noções (conceitos), e, em terceiro lugar, para um reduzido número de nós, porque é difícil, acontece termos ideias essências.

A Afeição, modo de pensar inadequado que representa uma afecção5 do corpo

O que é uma afeição (affectio)? Vejo os vossos olhos a cair literalmente (baixar os olhos)… No entanto, isto é engraçado, tudo isto.

À primeira vista, numa interpretação literal do texto de Espinosa, isso não tem nada a ver com uma ideia, nem tão pouco tem a ver com o afecto. Tínhamos já determinado que o afecto seria a variação do poder para agir. Uma afeição, é o quê? Numa primeira abordagem, uma afeição é isto: é o estado de um corpo que sofre a acção de um outro corpo. O que é que isto quer dizer? “Sinto o sol em mim”, ou então, “um raio de sol repousa sobre vós”; é uma afecção do vosso corpo. O que é que é uma afecção do vosso corpo? Não é o sol, mas a acção do sol ou efeito do sol sobre vós. Por outras palavras, um efeito ou acção que um corpo produz sobre outro, sendo que para Espinosa, por razões que têm a ver com a sua ideia de Física, - não acredita em acções à distância: a acção implica sempre um contacto - trata-se de uma mistura de corpos6. A afeição é uma mistura de dois corpos, (em que) um corpo é dito agir sobre o outro, e o outro recolher o rasto (vestígio) do primeiro. A toda a mistura de corpos será dado o nome de afeição.

Espinosa conclui a partir daqui que, sendo a afeição definida como uma mistura de corpos, ela implica a natureza do corpo modificado, a natureza do corpo afeiçoado ou afectado; a afeição indica a natureza do corpo afectado muito mais do que a natureza do corpo afectante. Ele analisa o seu célebre exemplo: “quando olhamos para o sol, imaginamos que ele dista de nós cerca de duzentos pés” (Livro II, proposição 35). Isto é uma afeição ou, pelo menos, é a percepção de uma afeição. É claro que a percepção do sol indica muito mais a constituição do meu corpo, a maneira como o meu corpo é constituído, do que a maneira como o sol é formado. Eu vejo o sol em virtude do estado das minhas percepções visuais. Uma mosca percepcionará o sol de outro modo.

Para salvaguardar o rigor da sua terminologia, Espinosa dirá que uma affectio indica a natureza do corpo modificado, mais do que a natureza do corpo modificante (que provoca a modificação), e que

5 Guardei para agora, por razões que serão sem dúvida compreensíveis, a utilização do termo em português de Afecção. Na verdade, e em bom rigor, significa o mesmo que afeição, no sentido de Espinosa. Mas, na nossa língua, afecção é uma acção de afectar que se aplica ao corpo. Mas fique bem claro: afeição é uma afecção do corpo, no sentido em que é usado por Espinosa. Em língua francesa, o termo usado é affection em ambos os casos.

6 Neste caso, dos raios do sol com o corpo de alguém.

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inclui a natureza do corpo modificante. Eu diria que o primeiro tipo de ideia para Espinosa é todo o modo de pensar que representa uma afecção do corpo; isto é, a mistura de um corpo com outro corpo, ou então a um vestígio (la trace) de um outro corpo no meu corpo será dado o nome de ideia de afeição. É neste sentido que poderemos dizer que é uma ideia-afeição, é o primeiro tipo de ideias. Este primeiro tipo de ideias corresponde àquilo a que Espinosa dá o nome de primeiro género de conhecimento. É o mais baixo.

Porque é que é o mais baixo? É evidente que é o mais baixo porque essas ideias de afeição só conhecem as coisas pelos seus efeitos: eu sinto a afecção do sol em mim, o rasto do sol em mim. É o efeito do sol no meu corpo. Mas as causas, isto é, o que é o meu corpo, o que é o corpo do sol, e a relação entre esses dois corpos, de modo a que um produza sobre o outro um certo efeito em vez de outra coisa qualquer, delas não sei absolutamente nada. Vejamos um outro exemplo: “o sol derrete a cera e endurece a argila”. Isto já é qualquer coisa. São ideias de afeição. Vejo a cera que desliza, e depois, mesmo ao lado, vejo a argila que endurece: é uma afeição da cera e uma afeição da argila, e eu tenho uma ideia destas afecções, percepciono efeitos. Em virtude de quê a constituição corporal da argila endurece sob o efeito do sol? Enquanto me limito à percepção da afecção, não sei nada. Diremos que as ideias-afeição são representações de efeitos sem as suas causas, e é a isto precisamente que Espinosa chama ideias inadequadas. São ideias de mistura separadas das causas da mistura.

Com efeito, que, ao nível das ideias-afeições, só tenhamos ideias inadequadas e confusas, isso compreende-se muito bem, pois são o quê, na ordem da vida, as ideias-afeições? E sem dúvida muitos de nós, os que não se dediquem o bastante à filosofia, só vivem assim. Uma vez, por uma única vez, Espinosa recorre a uma palavra latina, que é muito estranha, mas muito importante, que é ocursus. Significa literalmente encontro. Enquanto só tenho ideias-afeições, vivo ao acaso dos encontros: passeio-me na rua, vejo Pedro que não me agrada, em função da constituição do seu corpo e da sua alma e da constituição do meu corpo e da minha alma. Alguém que me desagrada, corpo e alma, o que é que isso quer dizer?

Gostaria de vos fazer compreender porque é que Espinosa teve uma muito forte reputação de materialista, quando não se cansava de falar do espírito e da alma, uma reputação de ateu, quando não se cansava de falar de Deus - é muito curioso. Vê-se bem porque é que as pessoas diziam que era puro materialismo. Quando eu digo: aquele não me agrada, isso quer dizer literalmente que o efeito do seu corpo sobre o meu, o efeito da sua alma sobre a minha, me afecta desagradavelmente, são misturas de corpos ou misturas de almas. Há uma mistura nociva ou uma boa mistura, tanto ao nível do corpo como da alma. É exatamente como: não gosto de queijo. O que é que isso quer dizer? Não gosto de queijo. Isso quer dizer que essa coisa se mistura com o meu corpo de maneira que sou modificado de uma forma desagradável, não quer dizer outra coisa. Portanto, não há razão nenhuma para fazer diferença entre simpatias espirituais e relações corporais. Em “eu não gosto de queijo” existe também um assunto de alma, mas em “Pedro ou Paulo não me agrada”, existe também um assunto de corpo… Simplesmente, por que razão é uma ideia confusa, esta ideia-afeição, esta mistura? É forçosamente confusa e inadequada, porque, a este nível, não sei

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absolutamente nada (sobre) em virtude do quê e como é que o corpo ou a alma de Pedro é constituída de tal maneira que o seu corpo não convenha ao meu. Só posso dizer que isso não me convém, mas em virtude de que constituição dos dois corpos, quer do corpo afectante quer do corpo afectado, quer do corpo que age quer do corpo que sofre, a este nível não sei nada. Como diz Espinosa, são consequências separadas das suas premissas, ou, se preferirem, é um conhecimento dos efeitos independentemente do conhecimento das causas. É portanto o acaso dos encontros. E o que é que se pode passar no acaso dos encontros?

E o que é um corpo? Não vou desenvolver ; isso será objeto de uma lição especial. A teoria sobre o que é um corpo, ou então uma alma, é o mesmo, encontra-se no livro II da Ética. Para Espinosa, a individualidade de um corpo define-se assim: é quando uma certa relação composta (insisto nisto, muito composta, muito complexa) ou complexa de movimento e de repouso se mantém ao longo de todas as mudanças que afectam as partes desse corpo. É a permanência de uma relação de movimento e de repouso ao longo de todas as mudanças que afectam todas as partes até ao infinito do corpo considerado.

Compreendem que um corpo seja necessariamente composto até ao infinito. O meu olho, por exemplo, o meu olho, e a relativa constância do meu olho, define-se por uma certa relação de movimento e de repouso, através de todas as modificações das diversas partes do meu olho; mas o meu olho, ele próprio, que já tem uma infinidade de partes, é uma parte das partes do meu corpo; o olho é uma parte da face e a face, por sua vez, é uma parte do meu corpo, etc. Portanto, temos todas as espécies de relações que vão compor-se umas com as outras para formar uma individualidade deste ou daquele grau. Mas em cada um destes níveis ou graus, a individualidade será definida por uma certa relação composta de movimento e de repouso.

O que é que acontece, sendo o meu corpo assim constituído, (como) uma certa relação de movimento e de repouso que assume uma infinidade de partes? Podem acontecer duas coisas: como alguma coisa de que gosto, ou então, outro exemplo, como alguma coisa e sou envenenado. Literalmente, num caso, tive um bom encontro e, no outro caso, tive uma mau encontro. Tudo isto faz parte da categoria ocursus. Quando tenho um mau encontro, isso quer dizer que o corpo que se mistura com o meu destrói a minha relação constituinte, ou tende a destruir uma das minhas relações subordinadas. Por exemplo, como alguma coisa e fico com dores de estômago, não me mata; destruiu, portanto, ou inibiu, comprometeu uma das minhas sub-relações, uma das minhas relações compostas. Depois, como alguma coisa e morro. Neste caso, isso decompôs a minha relação composta, decompôs a relação complexa que definia a minha individualidade. Não destruiu simplesmente uma das minhas relações subordinadas que compunha uma das minhas sub-individualidades, destruiu a relação característica do meu corpo. Passa-se o inverso quando como alguma coisa que me convém.

“O que é o mal?” pergunta Espinosa. Encontramos a sua resposta na correspondência. Nas cartas que enviou a um jovem holandês que era mau como tudo. Esse holandês não gostava de Espinosa e atacava-o constantemente; perguntava-lhe: diga-me o que é para si o mal. Sabem que, naquele tempo,

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as cartas eram muito importantes, e os filósofos enviavam muitas cartas. Espinosa, que é muito simpático, pensa no início que se trata de um jovem que quer instruir-se, e só aos poucos compreende que não é nada disso, que o holandês quer a sua pele. De carta em carta, a cólera de Blyenberg (o tal jovem), que era um bom cristão, irrita-se e acaba por lhe dizer : você é o diabo! Espinosa diz que o mal não é difícil (de entender), o mal é um mau encontro. Encontrar um corpo que se mistura mal com o nosso. Misturar-se mal, isso quer dizer misturar em condições tais que uma das nossas relações subordinadas, ou que a nossa relação constituinte é, ou ameaçada ou comprometida, ou mesmo destruída. Cada vez mais entusiasmado, empenhado em mostrar que tem razão, Espinosa analisa à sua maneira o exemplo de Adão.

Nas condições em que vivemos, parecemos absolutamente condenados a só ter uma espécie de ideias, as ideias-afeições. Por que milagre poderemos sair destas acções de corpo que não esperaram por nós para existirem, como poderemos elevar-nos ao conhecimento das causas? Para já, vemos bem como, desde que nascemos, estamos condenados ao acaso dos encontros; ora, isso não é grande coisa. Isto implica o quê? Antes de mais, implica uma forte reacção contra Descartes, pois Espinosa afirma convictamente no livro II que nós só conseguimos conhecer-nos a nós mesmos, e só conseguimos conhecer os corpos exteriores através das afeições que os corpos exteriores produzem sobre o nosso.

Para aqueles que se lembram de Descartes, esta é a proposição anti-cartesiana de base, pois exclui qualquer tipo de apreensão da coisa pensante por si mesma, a saber exclui qualquer possibilidade do cogito (“penso, logo existo”). Só conheço as misturas de corpos e só me conheço a mim mesmo através da acção dos outros corpos sobre mim, e através das misturas. Não se trata só de anti-cartesianismo, trata-se também de anti-cristianismo. Porquê? Porque um dos pontos fundamentais da teologia é a perfeição imediata do primeiro homem criado, aquilo que se chama, em teologia, a teoria da perfeição “adámica” (de Adão). Adão, antes de pecar, foi criado tão perfeito quanto podia ser, e depois há a história do pecado que é precisamente a história da queda, mas a queda pressupõe um Adão perfeito como criatura. Esta ideia parece absurdamente cómica a Espinosa. A sua convicção é de que isso não é possível; supondo que pensamos na ideia de um primeiro homem, só podemos pensar nele como o mais impotente, o mais imperfeito que seja possível, pois o primeiro homem só pode existir no acaso dos encontros e das acções dos outros corpos sobre ele. Portanto, supondo que Adão existiu, ele existiu num modo da imperfeição ou da inadequação absoluta, ele existiu no modo de um bebé que é entregue ao acaso dos encontros, a não ser que esteja num meio protegido, mas aí já estou a falar demais… O que é que poderia ser um meio protegido?

O mal é um mau encontro. Isto quer dizer o quê? Espinosa, na sua correspondência com o holandês, diz: tu estás sempre a falar de Deus que proibiu Adão de comer a maçã, e tu citas isso como um exemplo de uma lei moral. A primeira interdição. Espinosa diz-lhe: mas não foi de forma nenhuma isso o que se passou, e Espinosa refaz toda a história de Adão sob a forma de um envenenamento e de uma intoxicação. O que é que se passou na realidade? Deus nunca proibiu o que quer que fosse a Adão; concedeu-lhe uma revelação. Preveniu-o do efeito nocivo que o corpo da

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maçã daquela macieira teria sobre a constituição do seu corpo, dele, Adão. Por outras palavras, a mação era um veneno para Adão. O corpo da maçã existe sob uma tal relação característica (que a maçã) só pode agir sobre o corpo de Adão, tal como ele é constituído, decompondo a relação do corpo de Adão. E se ele errou por não ouvir a voz de Deus, não terá sido no sentido de que lhe ter desobedecido; o que se passou é que não compreendeu nada. Isso também acontece nos animais, alguns têm um instinto que os afasta do que é venenoso para eles; há outros que não têm esse instinto.

Quando tenho um encontro de tal qualidade que a relação do corpo que me modifica, que age sobre mim, se combina com a minha própria relação, com a relação característica do meu corpo, o que é que se passa? Diria que a minha força de agir é aumentada; pelo menos é aumentada sob o efeito dessa relação. Quando, pelo contrário, tenho um encontro de tal qualidade que a relação característica do corpo que me modifica compromete ou destrói uma das minhas relações, ou a minha relação característica, diria que a minha força de agir é diminuída, ou mesmo destruída. Reencontramos aqui os nossos dois afectos - affectus - fundamentais: a tristeza e a alegria. Para reagrupar tudo neste nível, em função das ideias de afeição que tenho, há duas espécies de ideias de afeição: ideia de um efeito que se concilia ou que favorece a minha própria relação característica. Segundo tipo de ideia de afeição: a ideia de um efeito que compromete ou destrói a minha própria relação característica. A estes dois tipos de ideias de afeição vão corresponder os dois movimento de da variação no affectus, os dois pólos da variação: num caso, o meu poder para agir é aumentado e eu experimento um affectus de alegria, no outro caso, o meu poder de agir é aumentado e eu experimento um affectus de tristeza. Espinosa vai engendrar todas as paixões, nos seus detalhes, a partir destes dois afectos fundamentais. O que é o mesmo que dizer que cada coisa, corpo ou alma, se define por uma certa relação característica, complexa, mas eu diria também que cada coisa, corpo ou alma, se define por um certo poder para ser afectado.

Tudo se passa como se cada um de nós tivesse um certo poder para ser afectado. Tomemos o caso dos animais. Espinosa será muito assertivo a dizer-nos que o que conta nos animais, não é de forma nenhuma, os géneros e as espécies; os géneros e as espécies são noções absolutamente confusas, são ideias abstractas. O que conta é: do que é que é capaz um corpo? E lança uma das questões mais fundamentais de toda a sua filosofia (antes tinha havido Hobbes e outros), dizendo que a única questão é que nós não sabemos do que é capaz um corpo, falamos pelos cotovelos sobre a alma e o espírito e não sabemos do que é capaz um corpo. Ora, um corpo deve ser definido pelo conjunto das relações que o compõem, ou, o que é exatamente o mesmo, pelo seu poder para ser afectado7. Enquanto não soubermos qual é o poder para ser afectado de um corpo, enquanto o aprendemos assim ao sabor dos encontros, não levaremos uma vida sábia, não teremos sabedoria. Saber do que somos capazes. De forma nenhuma como uma questão moral, mas antes de mais como uma questão física, como uma questão do corpo e da alma. Um corpo tem algo de fundamentalmente escondido: poderemos falar da espécie humana, do género humano, isso não nos

7 Diríamos agora: pela sua afectividade

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dirá o que é que é capaz de afectar o nosso corpo, o que é que é capaz de o destruir. A única questão é o poder para ser afectado.

O que é que distingue uma rã de um macaco? Não são as características da espécie ou do género, diz Espinosa, é o facto de não serem capazes das mesmas afeições. Portanto, seria necessário fazer, para cada animal, verdadeiros mapas de afectos, os afectos de que um animal é capaz. O mesmo para os homens: os afectos de que cada homem é capaz. Neste momento, apercebemo-nos de que, de acordo com as culturas, com as sociedades, os homens não são capazes dos mesmos afectos. É bem conhecido o método com o qual certos governos liquidaram os índios da América do sul; foi deixar, nos caminhos onde passavam os índios, roupas de pessoas com gripe, roupas recolhidas nas enfermarias porque os índios não suportavam o afecto da gripe. Necessidade nenhuma de metralhadora, eles morriam como moscas. É evidente que nós, nas condições de vida da floresta, correríamos o risco de não viver muito tempo. Portanto, género humano, espécie humana ou mesmo raça, diz Espinosa, isso não tem qualquer importância, enquanto não fizermos a lista dos afectos de que cada um é capaz, no sentido mais forte da palavra capaz, incluindo as doenças de que somos capazes. É evidente que um cavalo de corrida e um cavalo de lavoura são da mesma espécie, são duas variedades da mesma espécie; no entanto, os seus afectos são muito diferentes, as doenças são absolutamente diferentes, a capacidade de serem afectados é completamente diferente e, deste ponto de vista, podemos dizer que um cavalo de lavoura está mais próximo de um boi do que de um cavalo de corrida. Portanto, um mapa etológico dos afectos é muito diferente de uma determinação do género ou da espécie dos animais.

Reparem que o poder de ser afectado pode ser cumprido de duas maneiras: quando sou envenenado, o meu poder de ser afectado é absolutamente cumprido, mas é cumprido de tal modo que a minha força para agir tende para zero, isto é, é inibida; Inversamente, quando experiencio alegria, isto é, quando encontro um corpo que compõe a sua relação com o meu, o meu poder de ser afectado é igualmente cumprido e a minha força de agir aumenta e tende para… quê? No caso de um mau encontro, toda a minha força de existir (vis existendi) é concentrada, tendendo para o objetivo seguinte: investir contra o rasto do corpo que me afecta para afastar o efeito desse corpo, embora o meu poder para agir tenha diminuído.

São coisas muito concretas. Temos dores de cabeça e dizemos: já nem consigo ler. Isto quer dizer que a nossa força de existir investe de tal maneira contra a dor, isso implica mudanças numa das nossas relações subordinadas, investe de tal maneira contra o rasto da dor, que o nosso poder para agir é diminuído proporcionalmente. Pelo contrário, quando dizemos : oh! Que bem que me sinto, estamos contentes porque corpos se misturaram connosco em proporções e em condições que são favoráveis à nossa relação; nesse momento, o poder do corpo que nos afecta combina-se com o nosso de tal modo que o vosso poder para agir é aumentado. Nos dois casos o nosso poder de ser afectado é completamente realizado, mas pode ser realizado de tal modo que o poder para agir diminua até ao infinito ou que o poder para agir aumente até ao… infinito. Infinito? Será verdade? Evidentemente, não, pois, ao nosso nível, as forças de existir são forçosamente finitas. Só Deus tem um poder absolutamente infinito. Bom, mas, dentro de certos limites, não deixarei de passar por essas

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variações do poder para agir em função das ideias de afeição que tenho, não deixarei de seguir a linha de variação contínua do affectus em função das ideias-afeição e dos encontros que tenho, de tal maneira que, a cada instante, o meu poder de ser afectado é completamente realizado, completamente cumprido. Simplesmente cumprido no modo tristeza ou no modo alegria. Claro, os dois ao mesmo tempo também, porque, bem entendido, nas sub-relações que nos compõem, uma parte de nós mesmos pode ser composta de tristeza e uma parte de nós mesmos pode ser composta de alegria. Há tristezas locais e alegrias locais. Por exemplo, Espinosa dá como definição das cócegas: uma alegria local, isso não quer dizer que tudo é alegria nas cócegas, pode ser uma alegria de tal natureza que implique uma irritação coexistente de uma outra natureza, irritação que é tristeza: o meu poder de ser afectado tende a ser ultrapassado. Nada é bom para alguém que ultrapasse o seu poder de ser afectado. Um poder de ser afectado é realmente uma intensidade, ou um limiar de intensidade.

O que Espinosa pretende realmente é definir a essência de alguém de uma forma intensiva como uma quantidade intensiva. Enquanto não conhecermos as nossas intensidades, corremos o ris de ter maus encontros e de nada vale dizer : como é belo o excesso e a desmesura… nada de desmesura, só o fracasso, nada para além do fracasso. Aviso para as overdoses. É precisamente o fenómeno do poder de ser afectado que é ultrapassado com uma destruição total.

É certo que na minha geração, em média, éramos mais bem formados em filosofia quando fazíamos essa formação, e, em contrapartida, tínhamos uma espécie de incultura muito evidente em outros domínios, em música, em pintura, em cinema. Tenho a impressão que, para muitos de vós, a relação mudou, isto é, não sabeis nada, absolutamente nada de filosofia, mas sabeis, ou sabeis manejar coisas como uma cor, sabeis o que é um som ou o que é uma imagem. A filosofia é uma espécie de sintetizador de conceitos, criar um conceito não é de forma nenhuma ideologia. Um conceito é um animal.

O que eu defini até agora foi unicamente o aumento e a diminuição do poder para agir, ou que o poder de agir aumenta ou diminui, sendo o afecto correspondente sempre uma paixão. Seja uma alegria que aumenta o meu poder para agir, ou seja uma tristeza que diminui o meu poder para agir, nos dois casos, são paixões: paixões alegres ou paixões triste. Mais uma vez, Espinosa denuncia uma conspiração no universo daqueles que têm interesse em nos afectar com paixões tristes. O padre tem necessidade da tristeza dos fiéis, tem necessidade de que os fiéis se sintam culpados. Ainda não defini o que é o poder para agir. As auto-afeições ou afectos activos supõem que possuímos o nosso poder para agir e que, neste ou naquele ponto, saímos do domínio das paixões para entrar no domínio das acções. É o que nos falta ver.

Como poderemos sair das ideias-afeição, como poderemos sair dos afectos passivos que consistem em aumento ou diminuição do nosso poder para agir, como poderemos sair do mundo das ideias inadequadas, sendo certo que a nossa condição parece condenar-nos a este mundo? É por aqui que podemos procurar o golpe de teatro na Ética. Vai falar-nos de afectos activos, onde já não há paixões, onde o poder para agir é conquistado, em vez de passar por todas as variações contínuas.

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Aqui, há um ponto muito claro. Há uma diferença fundamental entre ética e moral. Espinosa não trata da moral, por uma razão muito simples: ele nunca se pergunta sobre o que devemos (fazer), ele pergunta-se todo o tempo sobre o que somos capazes (de fazer), o que é que existe no nosso poder: a ética é um problema de poder, não é nunca um problema do dever. Neste sentido, Espinosa é profundamente imoral8. O problema moral, o bem e o mal, consiste em bons encontros e em maus encontros, aumentos e diminuições de poder. Assim, o seu assunto diz respeito à ética e de forma nenhuma à moral. Foi por isso que teve uma tão grande influência em Nietzche.

Nós estamos completamente encerrados neste mundo das ideias-afeição e das variações afectivas contínuas de alegria e de tristeza; o nosso poder de agir ora aumenta ora diminui; mas quer ela aumente, quer diminua, eu mantenho-me na paixão, porque, nos dois casos, não o possuo (o poder), estou ainda separado do meu poder para agir. Então, quando o meu poder de agir aumenta, isso quer dizer que eu estou relativamente menos separado dele (do poder), e o inverso; eu não sou a causa dos meus próprios afectos, e, não sendo a causa dos meus próprios afectos, eles são produzidos em mim por outra coisa: estou, portanto, passivo, estou no mundo da paixão. Mas ainda há as ideias-noção e as ideias-essência.

A Noção, modo do pensar adequado, graças à compreensão da causa

Será ao nível das ideias-noção que vai aparecer uma espécie de saída deste mundo. Estamos completamente esmagados, fechados num mundo de impotência absoluta; mesmo quando o meu poder de agir aumenta, é um segmento de variação, nada me garante que, na esquina da rua, não vou receber uma pancada na cabeça e que o meu poder de agir não vai decair. Lembram-se de que uma ideia-afeição é a ideia de uma mistura, isto é, a ideia de um corpo sobre o meu.

Uma ideia-noção já não diz respeito ao efeito de um outro corpo sobre o meu, é uma ideia que tem por objeto a conveniência ou a inconveniência das relações características entre os dois corpos.

Se há ideias deste género - ainda não sabemos se há, mas podemos sempre definir alguma coisa, antes de concluir que não podem existir - serão o que chamaremos uma definição nominal. Diria que a definição nominal da noção é que se trata de uma ideia que, em lugar de representar o efeito de um corpo sobre outro, isto é, a mistura de dois corpos, representa a conveniência ou a inconveniência interna das relações características dos dois corpos. Exemplo: se souber o suficiente sobre a relação característica do corpo chamado arsénico e sobre a relação característica do corpo humano, poderia formar uma noção daquilo em que essas duas relações não convêm (entre si), a ponto de o arsénico, sob a sua relação característica, destruir a relação característica do meu corpo. Se for envenenado, morro.

8 Talvez Deleuze quisesse dizer “amoral”; mas a palavra que ele usa é, em francês, “immoral”.

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Vê-se que, diferentemente da ideia de afeição, em vez de ser apreendida a partir da mistura extrínseca de um corpo com outro, ou do efeito de um corpo sobre um outro, a noção eleva-se à compreensão da causa, a saber, se a mistura tem este ou aquele efeito, é em virtude da natureza da relação dos dois corpos considerados e da maneira como a relação de um dos corpos se compõe com a relação do outro corpo. Há sempre composição de relações. Quando sou envenenado, é porque o corpo arsénico induziu as partes do meu corpo a entrar sob uma outra relação diferente da relação que me caracteriza. Nesse momento, as partes do meu corpo entram sob uma nova relação induzida pelo arsénico, que se compõe perfeitamente com o arsénico; o arsénico fica feliz porque se alimenta de mim. O arsénico experiencia uma paixão alegre, pois, como bem diz Espinosa, todo o corpo tem uma alma. Portanto, o arsénico está feliz, eu, evidentemente, não estou. Ele induziu partes do meu corpo a entrar numa relação que se compõe com a sua, arsénico. Eu estou triste, dirijo-me para a morte. Percebe-se que a noção, se formos capazes de chegar a ela, é um truque formidável.

Não estamos longe de uma geometria analítica. Uma noção não é de forma nenhuma abstracta, é concreta: este corpo, aquele corpo. Se eu soubesse a relação característica da alma e do corpo daquele de quem digo que não me agrada, relativamente à minha relação característica, compreenderia tudo, conheceria pelas causas, em vez de só conhecer efeitos separados das suas causas. Nesse momento, teria uma ideia adequada. Do mesmo modo, se compreendesse por que razão alguém me agrada. Tomei como exemplo as relações alimentares; não há que mudar, nem sequer uma linha no que diz respeito às relações amorosas. Não é que Espinosa conceba o amor como alimentação. A sua concepção aplicava-se a tudo, tanto à alimentação como ao amor. Consideremos uma família ao jeito de Strinberg 9, essa espécie de decomposição das relações que, depois, se recompõem para recomeçar. O que é essa variação contínua do affectus, e como é que acontece que alguma inconveniência convenha a alguns? Porque é que alguns só conseguem viver sob a forma da cena de família indefinidamente repetida? Saem dela como se tivesse sido um banho de água fria para eles.

Compreendem agora a diferença entre uma ideia-noção e uma ideia-afeição. Uma ideia-noção é forçosamente adequada, pois é um conhecimento através das causas. Espinosa, neste ponto, emprega não somente o termo noção para qualificar esta segunda espécie de ideia, mas emprega também o termo de noção comum. A palavra é muito ambígua: quer dizer comum a todos os espíritos? Sim e não. Espinosa é muito minucioso. Em qualquer caso, não confundam nunca uma noção com uma abstracção.

Uma noção comum. Define-a sempre do seguinte modo: é a ideia de alguma coisa que é comum a todos os corpos ou a vários corpos - dois, pelo menos - e que é comum ao todo e à parte. Portanto, há seguramente noções comuns que são comuns a todos os espíritos, mas só são comuns a todos os espíritos, na medida em que elas são, antes de mais, a ideia de algo que é comum a todos os corpos. Portanto, não se trata de forma nenhuma de noções abstractas.

9 Suponho que Deleuze se está a referir a August Strinberg, um escritor sueco, famoso pelas suas peças de teatro; foi um precursor do expressionismo e do surrealismo.

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O que é que é comum a todos os corpos? Por exemplo, estar em movimento ou estar em repouso. O movimento e o repouso serão objetos de noções ditas comuns a todos os corpos. Portanto, há noções comuns que designam algo de comum a dois corpos ou a duas almas. Por exemplo, alguém que eu amo. Mais uma vez, as noções comuns, isso não é abstracto, isso não tem nada a ver com espécies e géneros, é verdadeiramente o enunciado que é comum a vários corpos ou a todos os corpos; ora, como não há nenhum corpo que não seja, ele próprio, vários, podemos dizer que há coisas comuns ou noções comuns em cada corpo. De onde se volta à questão: como é que se pode sair desta situação que nos condena às misturas?

Neste ponto, os textos de Espinosa são muito complicados. Só podemos conceber essa saída da seguinte maneira: quando sou afectado, no acaso dos encontros, ou então (quando) sou afectado de tristeza ou de alegria; quando sou afectado de tristeza, o meu poder de agir diminui, quer dizer que estou ainda mais separado desse poder; quando sou afectado de alegria, ele (o poder) aumenta, quer dizer que estou menos separado desse poder. Bem. Se vocês se consideram afectados de tristeza, tudo está lixado, já não há saída por uma simples razão: nada, na tristeza que diminui o vosso poder de agir, nada vos pode induzir, na tristeza, a formar a noção comum de alguma coisa que seja comum aos corpos que vos afectam de tristeza e ao vosso. Por uma razão muito simples, é que o corpo que vos afecta de tristeza só vos afecta de tristeza, na medida em que vos afecta numa relação que não convém à vossa. Espinosa quer dizer algo de muito simples, é que a tristeza não é coisa que dê inteligência. A tristeza: estamos tramados. É por isso que os poderes têm necessidade de que os sujeitos sejam tristes. A angústia nunca foi um jogo de cultivo da inteligência ou da vivacidade. Enquanto tiverem um afecto triste, um corpo age sobre o vosso, uma alma age sobre a vossa, em condições tais e sob uma relação que não convém ao vosso. Desde logo, nada na tristeza vos pode induzir a formar a ideia comum, isto é, a ideia de alguma coisa em comum entre os dois corpos e as duas almas. Está cheio de sabedoria o que ele está a dizer. É por isso que pensar na morte é a coisa mais imunda. Ele opõe-se a toda a tradição filosófica de meditação sobre a morte. A sua fórmula é que a filosofia é uma meditação sobre a vida e não sobre a morte. Evidentemente porque a morte é sempre um mau encontro.

Outro caso. Sois afectados de alegria. O vosso poder de agir é aumentado; isso não quer dizer que o possuís sempre, mas o facto de serdes afectados de alegria significa e indica que o corpo ou a alma que assim vos afecta, vos afecta sob uma relação que se combina com o vosso (corpo) e que se compõe com o vosso, e isto vale tanto como fórmula do amor, como fórmula alimentar. Num afecto de alegria, portanto, o corpo que vos afecta é indicado como compondo a sua relação com o vosso, e não como relação que decompõe o vosso corpo Desde logo, algo vos induz a formar a noção do que é comum ao corpo que vos afecta e ao vosso, à alma que vos afecta e à vossa. Neste sentido, a alegria dá inteligência.

Sente-se que aqui há um truque dos diabos, porque método geométrico ou não, temos de concordar com tudo; ele pode demonstrar. Mas há um apelo evidente a uma espécie de experiência vivida. Há um apelo evidente a uma forma de perceber, e bem mais, a uma maneira de viver. Para já temos que odiar as paixões tristes; a lista das paixões tristes é infinita em Espinosa, ele chega mesmo

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ao ponto de dizer que toda a ideia de recompensa envolve uma paixão triste, toda a ideia de orgulho, a culpabilidade. Este é um dos momentos mais maravilhosos da Ética.

Os afectos de alegria são como uma espécie de trampolim. Fazem-nos passar através de alguma coisa, pela qual nunca poderíamos passar se só houvesse tristezas. Incitam-nos a formar a ideia do que é comum ao corpo afectante e ao corpo afectado. Pode falhar, mas também pode ser um sucesso e torno-me inteligente. Alguém que se torna bom a Latim ao mesmo tempo que se apaixona… isto vê-se nos seminários das universidades. Isto está ligado a quê? Como é que alguém faz progressos? Não fazemos nunca progressos numa linha homogénea, é uma coisa aqui que nos faz fazer progressos ali, como se uma alegria aqui fizesse disparar um clic. De novo, a necessidade de um mapa: o que é que se passou aqui para que aquilo se desbloqueie ali? Uma pequena alegria precipita-nos num mundo de ideias concretas, que varre os afectos tristes ou que começa a lutar, tudo isso faz parte da variação contínua. Mas, ao mesmo tempo, esta alegria propulsiona-nos, de algum modo, para fora da variação contínua, faz-nos adquirir pelo menos a potencialidade de uma noção comum. Temos de conceber isto de forma muito concreta, são coisas muito locais. Se conseguirmos formar uma noção comum, a partir de que ponto da nossa relação de nós com esta pessoa ou com aquele animal, dizemos: finalmente, compreendi alguma coisa, sou menos estúpido do que ontem. O “eu compreendi” que dizemos a nós próprios, por vezes, é o momento em que formamos uma noção comum. Formamo-la muito localmente, isso não nos dá todas as noções comuns. Espinosa está muito longe de pensar como um racionalista - para os racionalistas, há o mundo da razão e há o mundo das ideias: se tivermos uma (ideia), evidentemente temo-las todas: somos razoáveis. Espinosa pensa que ser razoável, ou ser sábio, é um problema de nos transformar,mos o que altera singularmente o conteúdo do conceito de razão. Temos de fazer os encontros que nos convêm.

Ninguém poderá alguma vez dizer que alguma coisa que ultrapasse o seu poder de ser afectado possa ser bom para si. O mais belo é viver nas margens, no limite do seu próprio poder de ser afectado, desde que seja uma margem alegre, pois há o limite da alegria e o limite de tristeza; mas tudo o que excede o nosso poder de ser afectado é feio. Relativamente feio - o que é bom para as moscas não é forçosamente bom para nós…

Não há noção abstracta, não há nenhuma fórmula que seja boa para o homem em geral. O que conta é qual é o vosso poder, de cada um de vós. Lawrence10 dizia uma coisa claramente espinosista: uma intensidade que ultrapasse o nosso poder de ser afectado, essa intensidade é má (cf. Os escritos póstumos). É claro: um azul demasiado intenso para os meus olhos, ninguém me fará dizer que é belo; será talvez belo para um outro qualquer. Há coisas boas para todos, dir-me-iam… Sim, porque os poderes de ser afectado se compõem. Supor que haja um poder de ser afectado que defina o poder de ser afectado do universo inteiro, é bem possível, pois todas as relações se compõem até ao infinito, mas não numa ordem qualquer. A minha relação não se compõe com a do arsénico, mas o que é que isso interessa? Evidentemente, a mim interessa muito, mas nesse momento as partes do

10 É quase certo que Deleuze se refere aqui a David Herbert Lawrence, um escritor inglês, influenciado por Freud e Nietzsche, autor do famoso romance “O Amante de Lady Chatterley”, e crítico feroz dos efeitos desumanizantes da modernidade e da industrialização.

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meu corpo entram numa nova relação que se compõe com a do arsénico11. Temos de saber em que ordem as relações se compõem. Ora, se soubéssemos em que ordem as relações de todo o universo se compõem, poderíamos definir um poder de ser afectado do universo inteiro, seria o cosmos, o mundo como corpo ou como alma.

Nesse momento, o mundo inteiro não passaria de um único corpo, seguindo a ordem das relações que se compõem. Nesse momento, teríamos um poder de ser afectado universal propriamente dito: Deus, que é o universo inteiro na forma de causa, tem por natureza um poder universal de ser afectado.

Não é preciso dizer que ele está a fazer um estranho uso da ideia de Deus. Sentimos uma alegria, sentimos que essa alegria nos diz respeito a todos nós, que ela diz respeito a algo de importante quanto às nossas relações principais, às nossas relações características. Aí, então, devemos servir-nos dela como de um trampolim, formar em nós a ideia-noção: em que é que o corpo que me afecta e o meu convêm um ao outro? Em que é que a alma que me afecta e a minha convêm uma à outra, do ponto de vista da composição das suas relações, e já não do ponto de vista do acaso dos seus encontros. Estamos a fazer a operação inversa daquela que estamos habituados a fazer.

Em geral, as pessoas fazem a soma das suas infelicidades, é aí que começa a neurose, ou a depressão, quando começamos a determinar os totais: oh merda! É isto e depois aquilo… Espinosa propõe o inverso: em vez de fazer a soma das nossas tristezas, escolher um ponto de partida local numa alegria, desde que sintamos que ela nos diz verdadeiramente respeito. Sobre ela formamos a noção comum, sobre ela tentamos ganhar localmente, estender essa alegria. É um trabalho para a vida. Tentamos diminuir a porção respectiva das tristezas relativamente à porção respectiva de uma alegria, e tentamos o seguinte golpe formidável: estamos suficientemente seguros de noções comuns que remetem para relações de conveniência entre tal e tal corpo e o meu; vamos agora tentar aplicar o mesmo método à tristeza, mas não o podemos fazer a partir da tristeza, quer dizer que vamos tentar formar noções comuns através das quais conseguiremos compreender de forma vital em que é que tal ou tal corpo não convêm ou já não convêm. Isto já não é uma variação contínua, torna-se numa curva em sino12. Partimos das paixões alegres, aumento de poder de agir ; servimo-nos (delas) para formar noções comuns de um primeiro tipo, noção do que havia de comum entre o corpo que me afectava de alegria e o meu, estendemos ao máximo as nossas noções vivas comuns e voltamos a descer no sentido da tristeza, desta vez, com noções comuns, que formamos para compreender em que é que tal corpo não convém ao nosso, que tal alma não convém à nossa.

Nesta altura já podemos dizer que alcançamos a ideia adequada pois, com efeito, passamos para o conhecimento das causas. Já podemos dizer que alcançamos a filosofia, uma única coisa interessa: as maneiras de viver. Uma única coisa interessa, a meditação sobre a vida, e a filosofia só pode ser a

11 Embora eu perca toda a força de existir, a verdade é que há partes de mim que se compõem com o arsénico… é isto o que Deleuze quer dizer.

12 Em francês: “courbe en cloche”, em termos técnicos, uma curva em sino refere-se a uma curva normal numa distribuição estatística.

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meditação da vida, e, longe de ser uma meditação da morte, é a operação que consiste em fazer com que a morte só afecte, no final de contas, a proporção relativamente mais pequena de mim, isto é vivê-la com um mau encontro. Simplesmente, sabemos bem que, à medida que um corpo se cansa, as probabilidades de maus encontros aumentam. É uma noção comum, uma noção comum de inconveniência. Enquanto sou jovem, a morte é verdadeiramente algo que vem de fora, é verdadeiramente um acidente extrínseco, salvo em caso de doença interna. Não há noção comum, pelo contrário, é verdade que quando um corpo envelhece, o seu poder de agir diminui: deixo de poder fazer aquilo que ainda ontem era capaz de fazer ; isto, isto fascina-me, no envelhecimento, esta espécie de diminuição do poder de agir.

O que é que é um palhaço, do ponto de vista vital, da vida? É o tipo que, precisamente, não aceita o envelhecimento, não sabe envelhecer à velocidade certa. Não devemos envelhecer demasiado depressa porque é também uma outra forma de se ser palhaço: fazer de velho. Quanto mais se envelhece, menos se tem vontade de ter maus encontros. É fascinante o tipo que, à medida que o seu poder de agir diminui em função do envelhecimento, o seu poder de ser afectado varia, não aceita, continua a querer fazer de jovem. É muito triste. Há uma passagem fascinante num romance de Fitzgerald13 “o número de ski náutico”; são dez páginas de completa beleza sobre saber não envelhecer… Estão a ver, os espectáculos que são incómodos para os próprios espectadores. Saber envelhecer é chegar ao momento em que as noções comuns devem fazer-nos compreender em que é que as coisas e os outros corpos não convêm ao nosso corpo. Então, será, forçosamente, necessário encontrar uma nova graça que será a da nossa idade. É uma sabedoria. Não é a boa saúde que faz dizer “viva a vida”, não é também a vontade de nos pendurarmos à vida. Espinosa soube morrer admiravelmente, mas sabia muito bem aquilo de que era capaz, sabia dizer merda aos outros filósofos. Leibniz sacar bocados de manuscritos para dizer depois que era ele (que os escrevia). Há histórias muito curiosas - era um homem perigoso, Leibniz.

Termino dizendo que neste segundo nível, alcançamos a ideia-noção onde as relações se compõem, e mais uma vez não é uma coisa abstracta, pois esforcei-me por explicar que era um empreendimento extraordinariamente vivo. Não saímos das paixões. Adquirimos a posse formal do poder de agir. A formação das noções, que não são ideias abstractas, que são literalmente regras de vida, dão-nos a posse do poder de agir. As noções comuns são o segundo tipo de conhecimento.

A Essência, acesso ao mundo das intensidades puras

Para compreender o terceiro, temos de compreender o segundo. O terceiro tipo, só Espinosa entrou nele. Acima das noções comuns… vocês notaram que se as noções comuns não são abstractas, elas são colectivas, elas remetem sempre para uma multiplicidade, mas não são menos

13 Francis Scott Fitzgerald é considerado um dos maiores escritores americanos do século XX. As suas histórias foram reunidas sob o título Contos da Era do Jazz. Faz parte da “geração perdida” da literatura americana.

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individuais. São aquilo em que tal e tal corpo convêm, no limite aquilo em que todos os corpos convêm, mas nessa altura é o mundo inteiro que é uma individualidade. Portanto, as noções comuns são sempre individuais. Para além, ainda, das composições de relações, das conveniência interiores que definem as noções comuns, há as essências singulares. Quais são as diferenças? Será necessário dizer no limite que a relação e as relações que me caracterizam exprimem a minha essência singular, no entanto não são a mesma coisa. Porquê? Porque a relação que me caracteriza - o que estou aqui a dizer não está em absoluto no texto, mas está quase -, é que as noções comuns ou as relações que me caracterizam dizem respeito também às partes extensivas do meu corpo. O meu corpo é composto por uma infinidade de partes que se prolongam até ao infinito, e essas partes entram sob tais e tais relações que correspondem à minha essência. As relações que me caracterizam correspondem à minha essência, mas não se confundem com a minha essência, pois as relações que me caracterizam são sempre regras sob as quais se associam, em movimento e em repouso, as partes estendidas (ou extensas) do meu corpo. Entretanto, a essência singular é um grau de poder (de potência), isto é, são os meus limiares de intensidade. Entre os mais baixo e o mais alto, entre o meu nascimento e a minha morte, são os meus limiares intensivos. Aquilo a que Espinosa chama essência singular, parece-me que é uma quantidade intensiva, como se cada um de nós fosse definido por uma espécie de complexo de intensidades que remete para a sua essência, e também das relações que regulam as partes estendidas, as partes extensivas. Se bem que quando tenho o conhecimento das noções, isto é, das relações de movimento e de repouso que regulam a conveniência ou a inconveniência dos corpos do ponto de vista das suas partes estendidas, do ponto de vista da sua extensão, não estou ainda na posse plena da minha essência enquanto intensidade.

E Deus, o que é que é? Quando Espinosa define Deus pela potência absolutamente infinita, ele diz bem o que pensa. Todos os termos que ele emprega explicitamente: grau, grau em Latim é gradus, e gradus remete para uma longa tradição na filosofia da Idade Média. O gradus é a quantidade intensiva, por oposição ou por diferença com as partes extensivas (ou extensas)14. Portanto deveremos conceber que a essência singular de cada um é essa espécie de intensidade, ou de limite de intensidade. Ela é singular porque, qualquer que seja a nossa comunidade de espécie ou de género, nós somos todos homens por exemplo, nenhum de nós tem os mesmos limites de intensidade do outro.

O terceiro tipo de conhecimento, ou a descoberta da ideia de essência, é quando, a partir das noções comuns, por um novo golpe de teatro, conseguimos pensar nessa terceira esfera do mundo: o mundo das essências. Aí, conhecemos na sua correlação aquilo a que Espinosa chama - de qualquer modo não conseguimos conhecer um sem o outro -, quer a essência singular que é a minha, quer a essência singular que é a de Deus e a essência singular das coisas exteriores.

Ainda que este terceiro tipo de conhecimento faça apelo, por um lado, a toda a tradição da mística judia, e por outro lado, implique uma espécie de experiência mística mesmo ateia, própria de

14 Podemos ver nesta distinção o embrião de uma outra distinção, agora, entre a “compreensão” e “extensão”, sendo a intensidade a compreensão e a extensão (ou o estendido) a extensão.; também a diferença entre compreensão e explicação, etc.

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Espinosa, creio que a única maneira de compreender este terceiro tipo, é assumir que, para lá da ordem dos encontros e das misturas, há este outro estádio das noções que remete para as relações características. Mas, para além das relações características, há ainda o mundo das essências singulares. Então, a este nível, formamos ideias que são como puras intensidades, onde a minha própria intensidade vai convir com a intensidade das coisas exteriores, neste momento estamos no terceiro tipo, porque, se é verdade que nem todos os corpos convêm uns aos outros, se é verdade que, do ponto (de vista) das relações que regem as partes extensas de um corpo ou de uma alma, as partes extensas, nem todos os corpos convêm uns aos outros; se alcançarmos o mundo de puras intensidades, todas são supostas convir uma às outras. Neste momento, o amor por nós mesmos é ao mesmo tempo, como diz Espinosa, o amor pelas outras coisas, e o amor de Deus é o amor que Deus se dá a si mesmo, etc.

O que me interessa neste ponto místico é este mundo das intensidades. Aqui (neste mundo das intensidades), nós estamos em posse, não só formal, mas realizada. Já não é a alegria. Espinosa dá-lhe o nome místico de beatitude ou de afecto activo, isto é, de auto-afecto. Mas isto continua muito concreto. O terceiro tipo (de conhecimento) é um mundo de intensidades puras.

A S O U T R A S L I Ç Õ E S D E D E L E U Z E S O B R E E S P I N O S A N A U N I V E R S I D A D E D E V I N C E N N E S ( G R AVA D A S E

T R A N S C R I TA S )

24.01.1978 - Afecto e ideia

25.11.1980 - Teologia e Filosofia

09.12.1980 - O poder e o direito natural clássico

Dezembro, 1980 - Ontologia, Ética

13.01.1981 - Correspondência com Blyenberg

17.03.1981 - Imortalidade e eternidade

24.03.1981 - As afeições da essência