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IDEOLOGIAS MUNDIAIS AUTOR: BETHÂNIA ASSY PESQUISADOR: RAFAEL ALVES ALTERAÇÕES: LEANDRO MOLHANO RIBEIRO ROTEIRO DE CURSO 2010.1 6ª EDIÇÃO

Ideologias mundiais

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ideologias mundiaisAutor: BethâniA Assy

PesquisAdor: rAfAel AlvesAlterAções: leAndro MolhAno riBeiro

ROTEIRO DE CURSO2010.1

6ª edição

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SumárioIdeologias Mundiais

APRESENTAÇÃO DA DISCIPLINA .......................................................................................................................................................3

AULAS ............................................................................................................................................................................................5

Unidade I – Ideologia .............................................................................................................. 7 Aula 1. O que é ideologia? ............................................................................................................. 7 Aula 2. Um mapa da ideologia ..................................................................................................... 13 Aula 3. Aparatos ideológicos e seu funcionamento ....................................................................... 15 Aula 4. Direito e ideologia no mundo contemporâneo ................................................................. 24

Unidade II – Liberalismo ...................................................................................................... 25 Aula 5 e 6. Indivíduo, propriedade, liberalismo e igualdade ......................................................... 25 Aula 7 e 8. Indivíduo, propriedade, liberdade e igualdade (continuação) ...................................... 31 Aula 9. Estado e democracia ......................................................................................................... 38 Aula 10. Liberalismo no Brasil ..................................................................................................... 41 Aula 11. Exercícios: reflexões, paralelos e ascendências do liberalismo no Direito ......................... 44

Unidade III – Socialismo ...................................................................................................... 45 Aula 12. Origem e contextualização do socialismo ....................................................................... 45 Aula 13. Socialismo, estado e natureza humana ............................................................................ 49 Aula 14. Socialismo e democracia................................................................................................. 54 Aula 15. Tradição socialista e política de esquerda hoje ................................................................. 57 Aula 16. Exercícios: reflexões, paralelos e ascendências do socialismo no Direito .......................... 59 Aula 17. Terminologia e espectro ................................................................................................. 60 Aula 18. As experiências das colônicas anárquicas no Brasil .......................................................... 75

Unidade V – Nacionalismo .................................................................................................... 76 Aula 19. Estado, nação e nacionalismo ......................................................................................... 76 Aula 20. Mobilização do discurso nacionalista: “nações sem estado”; “estado sem nações”; diversidade étno-cultural, tolerância e discriminação ............................................................. 84 Aula 21. Nacionalismo em um mundo globalizado ...................................................................... 90 Aula 22. Seminário ...................................................................................................................... 99

Unidade VI – Fascismo, nazismo e totalitarismo ................................................................. 100 Aula 23. Por dentro do movimento nazista ................................................................................ 100 Aula 24. Origens e fundamentos ................................................................................................ 101 Aula 25. Totalitarismo e “a vida nua” .......................................................................................... 108 Aula 26. Estado total .................................................................................................................. 115 Aula 27. Exercícios ..................................................................................................................... 122

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aPResenTaÇÃo da disCiPlina

1. ObjetivO

Proporcionar um pensamento crítico-reflexivo das principais vertentes teóricas que têm orientado a relação entre indivíduo e sociedade ao longo da história moder-na: Liberalismo, Socialismo, Anarquismo, Fascismo e Nacionalismo. Especificamen-te, abordam-se os desdobramentos históricos dessas principais matrizes ideológicas na configuração das instituições políticas no Brasil e sua relação com as temáticas fundamentais do direito brasileiro.

2. MetOdOlOgia

Análise crítica de casos e eventos atuais, com ênfase na relidade brasileira; Dis-cussão de textos teóricos; Seminários críticos-reflexivos; Aulas expositivas; Exame de documentos históricos; Análise de legislação; Oficinas; Filmes seguidos de debates.

3. bibliOgrafia

A bibliografia do curso foi estruturada de forma temática, e não monográfica, contemplando o estudo crítico-reflexivo das matrizes ideológicas em seus aspectos histórico, conceitual e político, frente às transformações teóricas e dogmáticas do Direito. Privilegiou-se desenvolver no aluno a capacidade de, ao compreender con-ceitualmente as ideologias, necessariamente fazê-lo de forma a contextualizá-las em sua composição histórica e política, a partir de casos e eventos atuais.

Estrutura: O cursO Está EstruturadO Em VI unIdadEs

4. A unidade I apresenta um panorama histórico-conceitual do que é ideologia.

5. As unidades II a VI traçam um panorama histórico-político das mais signifi-cativas ideologias: Liberalismo, Socialismo, Anarquismo, Fascismo e Nacionalismo. Serão analisadas, simultaneamente à abordagem de cada ideologia, suas respectivas influências às temáticas fundamentais do Direito.

6. fOrMas de avaliaçãO

Participação em aula; prova escrita; seminários críticos, trabalhos, oficinas.

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7. atividade COMpleMentar

Filmes e Documentários.

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aulas

Unidade i: ideOlOgia

1. O que é ideologia?2. Um mapa da ideologia3. Aparatos ideológicos e seu funcionamento4. Direito e ideologia no mundo contemporâneo – Exercícios

Unidade ii: liberalisMO

5 e 6. Indivíduo, Liberdade, Igualdade e Propriedade7 e 8. Indivíduo, Liberdade, Igualdade e Propriedade (continuação)9. Estado e Democracia10. A ideologia liberal no Brasil11. Liberalismo – Exercícios

Unidade iii: sOCialisMO

12. Origem e contextualização do socialismo13. Socialismo, Estado e natureza humana 14. Socialismo e Democracia15. Tradição Socialista e Política de Esquerda Hoje16. Socialismo - Exercícios

Unidade iv: anarqUisMO

17. Terminologia e espectro18. A experiência das colônias anárquicas no Brasil – Exercícios

Unidade v: naCiOnalisMO

19. Estado, Nação e Nacionalismo20. Mobilização do discurso nacionalista: “nações sem estado”; “estado sem na-

ções”; diversidade étno-cultural, tolerância e discriminação21. Nacionalismo em um mundo globalizado22. Nacionalismo - Exercícios

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Unidade vi: fasCisMO e tOtalitarisMO

23. Por dentro do movimento nazista 24. Origens e fundamentos25. Totalitarismo e “a vida nua”26. Estado Total27. Fascismo – Totalitarismo – Exercícios

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unidade i – ideologia

aula 1. o que é ideologia?

idéias dO CanáriOmachado de assis

“Um homem dado a estudos de ornitologia, por nome Macedo, referiu a alguns amigos um caso tão extraordinário que ninguém lhe deu crédito. Alguns chegam a supor que Macedo virou o juízo. Eis aqui o resumo da narração.

No princípio do mês passado – disse ele –, indo por uma rua, sucedeu que um tílburi à disparada, quase me atirou ao chão. Escapei saltando para dentro de urna loja de belchior. Nem o estrépito do cavalo e do veículo, nem a minha entrada fez levantar o dono do negócio, que cochilava ao fundo, sentado numa cadeira de abrir. Era um frangalho de homem, barba cor de palha suja, a cabeça enfiada em um gorro esfarrapado, que provavelmente não achara comprador. Não se adivinhava nele ne-nhuma história, como podiam ter alguns dos objetos que vendia, nem se lhe sentia a tristeza austera e desenganada das vidas que foram vidas.

A loja era escura, atulhada das cousas velhas, tortas, rotas, enxovalhadas, en-ferrujadas que de ordinário se acham em tais casas, tudo naquela meia desordem própria do negócio. Essa mistura, posto que banal, era interessante. Panelas sem tampa, tampas sem panela, botões, sapatos, fechaduras, uma saia preta, chapéus de palha e de pêlo, caixilhos, binóculos, meias casacas, um florete, um cão empalhado, um par de chinelas, luvas, vasos sem nome, dragonas, uma bolsa de veludo, dois cabides, um bodoque, um termômetro, cadeiras, um retrato litografado pelo finado Sisson, um gamão, duas máscaras de arame para o carnaval que há de vir, tudo isso e o mais que não vi ou não me ficou de memória, enchia a loja nas imediações da porta, encostado, pendurado ou exposto em caixas de vidro, igualmente velhas. Lá para dentro, havia outras cousas mais e muitas, e do mesmo aspecto, dominando os objetos grandes, cômodas, cadeiras, camas, uns por cima dos outros, perdidos na escuridão.

Ia a sair, quando vi uma gaiola pendurada da porta. Tão velha como o resto, para ter o mesmo aspecto da desolação geral, faltava lhe estar vazia. Não estava vazia. Dentro pulava um canário.

A cor, a animação e a graça do passarinho davam àquele amontoado de destroços uma nota de vida e de mocidade. Era o último passageiro de algum naufrágio, que ali foi parar íntegro e alegre como dantes. Logo que olhei para ele, entrou a saltar mais abaixo e acima, de poleiro em poleiro, como se quisesse dizer que no meio daquele cemitério brincava um raio de sol. Não atribuo essa imagem ao canário, senão porque falo a gente retórica; em verdade, ele não pensou em cemitério nem sol, segundo me disse depois. Eu, de envolta com o prazer que me trouxe aquela vista, senti-me indignado do destino do pássaro, e murmurei baixinho palavras de azedume.

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– Quem seria o dono execrável deste bichinho, que teve ânimo de se desfazer dele por alguns pares de níqueis? Ou que mão indiferente, não querendo guardar esse companheiro de dono defunto, o deu de graça a algum pequeno, que o vendeu para ir jogar uma quiniela?

E o canário, quedando-se em cima do poleiro, trilou isto:– Quem quer que sejas tu, certamente não estás em teu juízo. Não tive dono

execrável, nem fui dado a nenhum menino que me vendesse. São imaginações de pessoa doente; vai-te curar, amigo.

– Como – interrompi eu, sem ter tempo de ficar espantado. Então o teu dono não te vendeu a esta casa? Não foi a miséria ou a ociosidade que te trouxe a este cemitério, como um raio de sol?

– Não sei que seja sol nem cemitério. Se os canários que tens visto usam do primeiro desses nomes, tanto melhor, porque é bonito, mas estou vendo que con-fundes.

– Perdão, mas tu não vieste para aqui à toa, sem ninguém, salvo se o teu dono foi sempre aquele homem que ali está sentado.

– Que dono? Esse homem que aí está é meu criado, dá-me água e comida todos os dias, com tal regularidade que eu, se devesse pagar-lhe os serviços, não seria com pouco; mas os canários não pagam criados. Em verdade, se o mundo é propriedade dos canários, seria extravagante que eles pagassem o que está no mundo.

Pasmado das respostas, não sabia que mais admirar, se a linguagem, se as idéias. A linguagem, posto me entrasse pelo ouvido como de gente, saía do bicho em trilos engraçados. Olhei em volta de mim, para verificar se estava acordado; a rua era a mesma, a loja era a mesma loja escura, triste e úmida. O canário, movendo a um lado e outro, esperava que eu lhe falasse. Perguntei-lhe então se tinha saudades do espaço azul e infinito.

– Mas, caro homem, trilou o canário, que quer dizer espaço azul e infinito?– Mas, perdão, que pensas deste mundo? Que cousa é o mundo?O mundo, redargüiu o canário com certo ar de professor, o mundo é uma loja

de belchior, com uma pequena gaiola de taquara, quadrilonga, pendente de um prego; o canário é senhor da gaiola que habita e da loja que o cerca. Fora daí, tudo é ilusão e mentira.

Nisto acordou o velho, e veio a mim arrastando os pés. Perguntou-me se queria comprar o canário. Indaguei se o adquirira, como o resto dos objetos que vendia, e soube que sim, que o comprara a um barbeiro, acompanhado de uma coleção de navalhas.

– As navalhas estão em muito bom uso, concluiu ele.– Quero só o canário.Paguei-lhe o preço, mandei comprar uma gaiola vasta, circular, de madeira e ara-

me, pintada de branco, e ordenei que a pusessem na varanda da minha casa, donde o passarinho podia ver o jardim, o repuxo e um pouco do céu azul.

Era meu intuito fazer um longo estudo do fenômeno, sem dizer nada a ninguém, até poder assombrar o século com a minha extraordinária descoberta. Comecei por alfabeto a língua do canário, por estudar-lhe a estrutura, as relações com a música,

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os sentimentos estéticos do bicho, as suas idéias e reminiscências. Feita essa análise filológica e psicológica, entrei propriamente na história dos canários, na origem deles, primeiros séculos, geologia e flora das ilhas Canárias, se ele tinha conheci-mento da navegação, etc. Conversávamos longas horas, eu escrevendo as notas, ele esperando, saltando, trilando.

Não tendo mais família que dois criados, ordenava lhes que não me interrompes-sem, ainda por motivo de alguma carta ou telegrama urgente, ou visita de impor-tância. Sabendo ambos das minhas ocupações científicas, acharam natural a ordem, e não suspeitaram que o canário e eu nos entendíamos.

Não é mister dizer que dormia pouco, acordava duas e três vezes por noite, pas-seava à toa, sentia me com febre. Afinal tornava ao trabalho, para reler, acrescentar, emendar. Retifiquei mais de uma observação – ou por havê-la entendido mal, ou porque ele não a tivesse expresso claramente. A definição do mundo foi uma delas.

Três semanas depois da entrada do canário em minha casa, pedi-lhe que me re-petisse a definição do mundo.

– O mundo, respondeu ele, é um jardim assaz largo com repuxo no meio, flores e arbustos, alguma grama, ar claro e um pouco de azul por cima; o canário, dono do mundo, habita uma gaiola vasta, branca e circular, donde mira o resto. Tudo o mais é ilusão e mentira.

Também a linguagem sofreu algumas retificações, e certas conclusões, que me tinham parecido simples, vi que eram temerárias.

Não podia ainda escrever a memória que havia de mandar ao Museu Nacional, ao Instituto Histórico e às universidades alemãs, não porque faltasse matéria, mas para acumular primeiro todas as observações e ratificá-las. Nos últimos dias, não saía de casa, não respondia a cartas, não quis saber de amigos nem parentes. Todo eu era canário. De manhã, um dos criados tinha a seu cargo limpar a gaiola e pôr lhe água e comida. O passarinho não lhe dizia nada, como se soubesse que a esse homem faltava qualquer preparo científico. Também o serviço era o mais sumário do mundo; o criado não era amador de pássaros.

Um sábado amanheci enfermo, a cabeça e a espinha doíam-me. O médico orde-nou absoluto repouso; era excesso de estudo, não devia ler nem pensar, não devia sa-ber sequer o que se passava na cidade e no mundo. Assim fiquei cinco dias; no sexto levantei-me, e só então soube que o canário, estando o criado a tratar dele, fugira da gaiola. O meu primeiro gesto foi para esganar o criado; a indignação sufocou-me, caí na cadeira, sem voz, tonto. O culpado defendeu-se, jurou que tivera cuidado, o passarinho é que fugira por astuto.

– Mas não o procuraram?Procuramos, sim, senhor; a princípio trepou ao telhado, trepei também, ele fu-

giu, foi para uma árvore, depois escondeu-se não sei onde. Tenho indagado desde ontem, perguntei aos vizinhos, aos chacareiros, ninguém sabe nada.

Padeci muito; felizmente, a fadiga estava passada, e com algumas horas pude sair à varanda e ao jardim. Nem sombra de canário. Indaguei, corri, anunciei, e nada. Tinha já recolhido as notas para compor a memória, ainda que truncada e incompleta, quando me sucedeu visitar um amigo, que ocupa uma das mais belas

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e grandes chácaras dos arrabaldes. Passeávamos nela antes de jantar, quando ouvi trilar esta pergunta:

– Viva, Sr. Macedo, por onde tem andado que desapareceu?Era o canário; estava no galho de uma árvore. Imaginem como fiquei, e o que

lhe disse. O meu amigo cuidou que eu estivesse doido; mas que me importavam cuidados de amigos?

Falei ao canário com ternura, pedi-lhe que viesse continuar a conversação, naquele nosso mundo composto de um jardim e repuxo, varanda e gaiola branca e circular.

– Que jardim? que repuxo?– O mundo, meu querido.– Que mundo? Tu não perdes os maus costumes de professor. O mundo, con-

cluiu solenemente, é um espaço infinito e azul, com o sol por cima.Indignado, retorqui-lhe que, se eu lhe desse crédito, o mundo era tudo; até já

fora uma loja de belchior.– De belchior? trilou ele às bandeiras despregadas. Mas há mesmo lojas de belchior?”Texto extraído do livro “O Alienista e outros contos”, Editora Moderna – São Paulo,

1995, pág. 73.

debate sObre as idéias Centrais dO textO: qUais sUas iMpressões dO textO?

i. O conceito de ideologia

A história do termo “ideologia” é relativamente recente, datando de cerca de 200 anos e, portanto, coincidente com a nossa era contemporânea. Mais especificamen-te, o termo foi cunhado pelo pensador francês Antoine Destutt Tracy por volta de 1796. Seguindo a classificação de Andrew Vicent (1995), o estudo do conceito de ideologia pode ser dividido em quatro abordagens:

a) ideologia como uma ciência empírica das idéias;b) como filiação a um republicanismo liberal secular; ou ainda;c) ideologia entendida pejorativamente como esterilidade intelectual; ed) ideologia como uma doutrina política em geral.

a) O termo “ideologia” foi criado a partir das palavras gregas eidos+logos, ou seja, significando ciências das idéias. No bojo desse neologismo, Tracy revelava uma postu-ra anticlerical e materialista, muito próprias da Revolução Francesa e do Iluminismo. O termo foi pensado para designar uma nova ciência, que tentava se afastar de qual-quer parentesco com a metafísica e com a psicologia. Em outras palavras, pretendia-se criar uma ciência que estudasse a origem natural das idéias, suas causas de produção a partir das sensações. Para Tracy, “ideologia” seria a rainha das ciências, isto porque todas as outras ciências se utilizam necessariamente de idéias para a formulação do conhecimento. Assim, conhecendo o procedimento/lei que rege a produção das idéias seria possível compreender todas as ações humanas.

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b) Um segundo entendimento do significado de “ideologia” se explica pelo con-texto histórico em que foi criado. Certos pensadores, associados ao ideário da Re-volução Francesa, passaram a ser identificados como idéologues, ou seja, um grupo político de intelectuais ricos e liberais.

c) Desta identificação pouco precisa de idéologues, os bonapartistas e restaura-dores franceses começaram a taxá-los de intelectuais estéreis, inaptos para a prática política e, mais, portadores de sentimentos perigosos contra o trono e o altar.

d) Por fim, “ideologia”, desde a sua criação, semeou um significado pouco preci-so de nomear qualquer doutrina política em geral.

2. a ideologia alemã

O termo “ideologia” ganha projeção e repercussão com Marx e Engels. Em “Ideo logia Alemã”, Marx rotula pejorativamente como portadores de uma “ide-ologia alemã” aqueles que interpretavam o mundo filosoficamente, mas que não demonstravam capacidade para transformá-lo. De certa forma, Marx segue o mes-mo sentido dado à ideologia por Bonaparte e pelos restauradores, isto é, idéologues como metafísicos teóricos inaptos à prática política. Com Marx, o conceito ideo-logia passa a se referir a uma ineficácia prática combinada com a ilusão ou perda da realidade causada pela divisão social do trabalho. Na formulação marxista do materialismo histórico, os homens têm necessidade de subsistir, trabalhar, produzir; ao contrapasso que os intelectuais e religiosos para manterem seu status buscam proteção das classes dominantes e em troca oferecem-lhes justificativas intelectuais da ordem existente no sentido da permanência da dominação de uma classe sobre as demais. Assim, para Marx o trabalho dos intelectuais resume-se a criar ilusões, distorções da realidade; essa postura crítica está voltada à filosofia alemã de sua época (Kant, Fichte, Hegel) que privilegiaram a consciência como estruturante do mundo, o que contrariava o pensamento tanto dos materialistas, como Marx, como dos sensualistas, para os quais, inclusive Tracy, as condições materiais e as sensações é que constituem a consciência, o homem e o mundo.

A conclusão em Marx torna o termo “ideologia” sinônimo de ilusão ou distorção da realidade, e o contrapõe à realidade prática e à ciência materialista, estas, sim, significantes de “verdade”.

Partindo das reflexões de Marx, Gramsci, no início do século XX, aponta que a ideologia da classe dominante vulgariza-se no senso comum do cidadão médio. Sen-do assim, o poder não é exercido necessariamente pela força física ou violência, mas, através da cooptação das massas pela internalização da concepção de mundo da classe dominante. Diante desse quadro, Gramsci propõe aos intelectuais engajados com a luta de classes a construção de uma ideologia “contra-hegemônica” à burguesia.

3. escola do fim das ideologias

Uma terceira fase na história do termo “ideologia” é chamada de “Escola do fim das ideologias”, fruto do pós-guerra e da guerra fria nos anos pós-1945. Esse debate

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foi produzido, de certa forma, como uma reação às recordações do uso político de ideologia como doutrina e sistema político totalitários – tais como o nazismo, o fascismo, o stalinismo e todas as outras formas de sofrimento dos tempos de guerra. Assim, a “Escola do fim das ideologias” identificou as “políticas ideológicas” como sendo a causa do sofrimento humano na primeira metade do século XX.

Uma segunda perspectiva desse debate está associada ao momento de crescimen-to econômico e estabilidade dos regimes social-democratas, o que significou, para alguns pensadores, como o consenso, a convergência das metas políticas; isto é, pela primeira vez na era moderna havia sido alcançando um acordo básico sobre os valores e ações políticas. Assim, nesse contexto de paz, dispensam-se ideologias para justificar ou motivar a ação política.

Ainda podemos associar a essa “Escola do fim das ideologias” uma suposta “idade heróica da sociologia”, vez que esta ciência buscava reforçar seu estatuto científico, buscando as bases de uma ciência social empírica liberta de valores, isenta de apelos emotivos das teorias políticas ideológicas. Observa-se, portanto, uma oposição, tal qual em Marx, entre ciência, portadora da verdade, e ideologia, estrutura teórica distorcida e falsa. No intuito de sepultar as ideologias, renova-se o sentido “sujo” de ideologia.

4. ideologia e Ciência

Na última etapa deste percurso histórico do termo ideologia, a contribuição de Tho-mas Khun acerca dos paradigmas científicos aplaina o caminho para se compreender que a ciência não é feita somente por adição e confirmação empírica, mas antes, a ciência é estruturada e dinamizada dentro de um paradigma científico que lhe propõe os instru-mentos, as questões e as possíveis respostas. A concepção científica a partir de paradigmas implica uma circularidade teórica, isto é, a própria teoria determinará o caráter de reali-dade sobre o qual se debruçará. Entretanto, Khun indica que os paradigmas são periodi-camente trocados ou transformados à medida que sua coerência interna e sua capacidade de oferecer respostas às suas próprias questões tornam-se insuficientes ou incongruentes.

No mesmo esteio, a filosofia da linguagem entende que os conceitos não corres-pondem a coisas objetivamente, mas antes são criações que nos orientam no mundo. Dessa forma, “ideologia” aqui já não tem mais um significado “sujo”, antes, porém, “ideologia” é concebida como uma das formas de vida, parte do mundo e da ação.

bibliOgrafia básiCa

MARX, Karl. A Ideologia Alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

bibliOgrafia COMpleMentar

BOUDON, Raymond. A Ideologia: ou a origem das idéias recebidas. São Paulo: Editora Ática, 1989, pp. 25-46.

VICENT, Andrew. Ideologias políticas modernas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995, pp. 13-26

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aula 2. um maPa da ideologia

i. perspectiva crítica

O pensador Slavoj Zizek nos aponta a sutil diferença entre o real e o espectro do real, bem ilustrada no texto de Machado de Assis. Se considerar que a realidade nunca é apreensível diretamente por “ela mesma”, mas somente através de seus símbolos incompletos, percebe-se que a realidade tem um aspecto de ficção, ou seja, o espectro do real (ideologia) é que dá corpo (representa, projeta) àquilo que se denomina de real, que nada mais é do que uma sobreestrutura simbolicamente estruturada (mundo discursivamente construído).

Questão reflexiva: “Ideologias são corpos de conceitos, valores e símbolos que incorporam concepções da natureza humana e, assim, apontam o que é possível ou impossível aos homens realizar”. (Andrew Vicent) Nesse conceito, ideologia reivin-dica descrever o mundo e prescrever ações?

Nessa mesma trilha, ideologia pode ser compreendida como um “mapa” que, tal qual os mapas geográficos, tem primordialmente duas funções: representar e orien-tar. Ou seja, a ideologia constitui uma grande metáfora que, tal qual os mapas, “são distorções reguladas da realidade, distorções organizadas de territórios que criam ilusões credíveis de correspondência” (Boaventura de Sousa Santos). Importante ter presente que os mapas representam a realidade – logo, não são a própria realidade; as-sim sendo, a ideologia, apesar de manter pontos de coincidência com o mundo, não é o mundo em si, mas, tão somente, uma dentre várias representações possíveis.

Questão reflexiva: A segunda função de um mapa é a orientação. Nesse sentido, a ideologia, ao construir representações do mundo, serve para orientação de nossa ação sobre o mundo?

Contudo, nem sempre será possível abordar as ideologias como constructos coeren-tes que de fato descrevam ou orientem a ação política, uma vez que as ideologias, como estruturas complexas de discurso, sempre apresentam misturas e sobreposições tanto no nível fundamental (justificativa) quanto no nível operante (funcionamento).

bibliOgrafia básiCa

BOUDON, Raymond. A Ideologia: ou a origem das idéias recebidas. São Paulo: Editora Ática, 1989, pp. 71-89.

MARX, Karl. A Ideologia Alemã. São Paulo: Martins Fontes, 2002.

bibliOgrafia COMpleMentar

ARON. Raymond. O Ópio dos Intelectuais. Brasília: UNB, 1980.BELL, Daniel. O Fim da Ideologia. Brasília: UNB, 1980.

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GEERTZ, Clifford. “A Ideologia como sistema cultural”. In A Interpretação das Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.

SARTORI, Giovanni. A Teoria da Democracia Revisitada. São Paulo: Editora Áti-ca, 2004, pp.299-324.

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aula 3. aPaRaTos ideológiCos e seu funCionamenTo

CasO: ensinO religiOsO nas esCOlas: estadO, igreja e ideOlOgia

lei nº 3.459, de 14 de setembro de 2000, que dispõe sobre ensino religioso confessional nas escolas da rede pública de ensino do estado do rio de janeiro.

“O Governador do Estado do Rio de Janeiro,

Faço saber que a Assembléia Legislativa do Estado do Rio de Janeiro decreta e eu sanciono a seguinte Lei:

Art. 1º – O Ensino Religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina obrigatória dos horários normais das escolas públicas, na Educação Básica, sendo disponível na forma confessional de acordo com as preferências manifestadas pelos responsáveis ou pelos próprios alunos a partir de 16 anos, inclusive, assegurado o respeito à diversidade cultural e religiosa do Rio de Janeiro, vedadas quaisquer formas de proselitismo.

Parágrafo único – No ato da matrícula, os pais, ou responsáveis pelos alunos deverão expressar, se desejarem, que seus filhos ou tutelados freqüentem as aulas de Ensino Religioso.

Art. 2º – Só poderão ministrar aulas de Ensino Religioso nas escolas oficiais, professores que atendam às seguintes condições:

I – Que tenham registro no MEC, e de preferência que pertençam aos quadros do Magistério Público Estadual;

II – tenham sido credenciados pela autoridade religiosa competente, que deverá exigir do professor, formação religiosa obtida em Instituição por ela mantida ou reconhecida.

Art. 3º – Fica estabelecido que o conteúdo do ensino religioso é atribuição es-pecífica das diversas autoridades religiosas, cabendo ao Estado o dever de apoiá-lo integralmente.

Art. 4º – A carga horária mínima da disciplina de Ensino Religioso será estabelecida pelo Conselho Estadual de Educação, dentro das 800 (oitocentas) horas-aulas anuais.

Art. 5º – Fica autorizado o Poder Executivo a abrir concurso público específico para a disciplina de Ensino Religioso para suprir a carência de professores de Ensino Religioso para a regência de turmas na educação básica, especial, profissional e na reeducação, nas unidades escolares da Secretaria de Estado de Educação, de Ciência e Tecnologia e de Justiça, e demais órgãos a critério do Poder Executivo Estadual.

Parágrafo Único – A remuneração dos professores concursados obedecerá aos mesmos padrões remuneratórios de pessoal do quadro permanente do Magistério Público Estadual.

Art. 6º – Esta Lei entrará em vigor na data de sua publicação, revogadas as dis-posições em contrário.”

Rio de Janeiro, 14 de setembro de 2000.Anthony GarotinhoGovernador

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diálogo fecundo: sancionada no rio de janeiro em setembro a lei estadual que faculta na rede pública de ensino o ensino religioso confessional

“Por D. Filippo Santoro (bispo auxiliar do Rio de Janeiro)É um evento de grande importância a aprovação da Lei 3.459, “Sobre o Ensino

Religioso Confessional nas Escolas da Rede Pública de Ensino do Estado do Rio de Janeiro”, concretizada em setembro passado pelo governador Anthony Garotinho, e tornando executivo um projeto-de-lei de autoria do deputado Carlos Dias.

Os órgãos de imprensa registraram reação amplamente favorável à lei, dada a importância da religião na formação integral do aluno e a característica pluralista desta lei, que respeita os diferentes credos presentes na nossa sociedade.

A lei recém-aprovada no Estado do Rio de Janeiro comporta novidades significa-tivas em relação ao ensino religioso e supera várias incongruências da lei vigente em nível nacional (nº 9.475/77, que por sua vez, tinha mudado o artigo 33 da LDB). Em artigo publicado em O Globo, o cardeal D. Eugênio Sales identificava três pon-tos críticos desta lei nacional cuja solução era particularmente urgente.

Em primeiro lugar, a lei atribui ao Estado, ou seja, aos “sistemas de ensino”, de-terminar os conteúdos do ensino religioso, ouvida uma “entidade civil constituída pelas diferentes denominações religiosas”. Dizia D. Eugenio: “Não é o Estado que ensina religião, ao menos em uma democracia”. Isso depende das instituições reli-giosas, de acordo com os interesses dos pais ou do próprio aluno.

Em segundo lugar, obriga as denominações religiosas a formarem uma entidade civil, o que fere a Constituição, a qual, no artigo 5º, inciso XX, reza: “Ninguém poderá ser compelido a associar-se ou a permanecer associado”.

O terceiro problema era a afirmação de que não se deve ensinar uma religião bem definida, mas apenas elementos de antropologia que analisem o fenômeno religioso. D. Eugênio afirmava que a religião “deve ser transmitida segundo o cor-po doutrinário de cada confissão, por professores capacitados por essa missão e aprovados pela autoridade religiosa”. E concluía: “Assim se ajudará a desenvolver a personalidade do aluno segundo uma determinada visão do valor da vida e no respeito às outras”.

A lei estadual recém-aprovada responde a essas exigências, e instaura um diálogo fecundo entre as denominações religiosas e os poderes do Estado.

Os setores que se opõem à nova lei, aprovada na Assembléia Legislativa do Es-tado com 32 votos favoráveis e 16 contrários, querem voltar à situação anterior, sustentando um ensino religioso antropológico desligado de qualquer religião, com programas e professores escolhidos pelo Estado.

Alega-se que a questão é a relação constitucional entre Igreja e Estado. Mas exa-tamente uma correta relação entre Igreja e Estado comporta que o Estado respeite cada entidade religiosa, e não se constitua como fonte de doutrinas religiosas e de sua transmissão às novas gerações.

Se o ensino religioso fosse reduzido a puros elementos de antropologia, sob esse nome poderiam ser colocadas as coisas mais diversas e contrastantes, que acabariam confundindo ou mesmo desviando a religiosidade do aluno.

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Com efeito, um professor que fosse desligado de qualquer credo religioso, e não fosse autorizado por uma instituição religiosa, poderia ensinar, por exemplo, que a religião é ópio dos povos, alienação para perpetuar a opressão econômica, neurose coletiva, projeção infantil da libido, etc.

Acusa-se a lei recém-aprovada de submeter a aprovação dos programas e dos professores à autoridade das respectivas confissões religiosas. Ora – citando um hi-potético exemplo que envolve dois ilustres analistas do fenômeno religioso – Marx e Freud com certeza ganhariam um concurso público para o ensino religioso; mas, com pleno direito, as instituições religiosas negariam o mandato a quem tivesse o objetivo de destruir ou alterar uma determinada religião.

Esse tipo de ensino religioso que se caracteriza com “confessional” nada tira à importância do ecumenismo e do diálogo inter-religioso que deve realizar-se nas formas e nas sedes próprias. No ensino religioso poderá ser apresentada toda a va-riedade das religiões, como também a análise do problema do ateísmo, mas isso é diferente da normativa que, por decisão do Parlamento, presume silenciar todos aqueles aspectos de uma religião que vão além do puro senso religioso.

Os gravíssimos problemas que afetam a nossa sociedade, envolvendo menores no crime organizado, dependem, entre outros fatores, da falta de uma visão da vida que comporta a defesa da dignidade da nossa pessoa, dos outros e particularmente dos mais pobres. O ensino religioso oferece um sentido pleno à vida, e educa a do-minar qualquer forma de violência, “assegurando o respeito à diversidade cultural e religiosa do Rio de Janeiro, vedadas quaisquer formas de proselitismo”, como afirma a lei recém-aprovada.”

(Artigo extraído do jornal O Globo, edição de 3/11/2000)

trechos da entrevista com o deputado estadual Carlos dias (ppb/rj), autor da lei 3.459/2000 que instituiu o ensino religioso confessional nas escolas públicas do estado do rio de janeiro.

“Pela sua lei, o ensino religioso passa a ser obrigatório?Dias: Não, é um direito da família. No momento da matrícula dos alunos, a

escola tem obrigação de oferecer esta disciplina. O oferecimento é obrigatório, mas são os responsáveis pelas crianças quem decidem pela matrícula. No caso dos ado-lescentes, os maiores de 16 podem decidir sozinhos se querem o ensino religioso e qual o credo que desejam aprender.

Qual o papel do Estado no provimento do ensino religioso, segundo a nova Lei?Dias: A obrigação do Estado é pagar os professores, que serão indicados pelas

instituições religiosas, o material didático, a sala de aula, enfim, as condições ne-cessárias para a realização das aulas. O que estamos fazendo é resgatar o direito da família de decidir sobre a educação dos seus filhos. Esse direito era garantido na Constituição, mas o discurso do Estado laico e totalmente responsável pela educa-ção acabou retirando esse direito das famílias. O ensino religioso confessional será ministrado desde a alfabetização até o ensino complementar. É uma lei e quem não a cumprir sofrerá uma ação do Ministério Público.

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Como será feita a escolha dos professores?Dias: Os professores serão indicados pelas instituições religiosas, que deverão

indicar também o conteúdo e o material didático a ser utilizado. O Estado poderá optar pela realização de um concurso público ou pela contratação simples.

Como as entidades religiosas habilitarão os seus professores para ministrar as aulas?Dias: Foram credenciados três credos: Católicos, Judeus e Evangélicos. Os repre-

sentantes desses credos deverão manifestar o desejo de oferecer as aulas, apresentar os professores e o material didático sobre a sua doutrina à Secretaria Estadual de Educação. No caso dos evangélicos, que têm várias denominações, caberá à Secreta-ria decidir sobre a habilitação, obedecendo aos critérios de formação dos professo-res, conteúdo doutrinal e material didático. As religiões tradicionais como o Juda-ísmo e o Catolicismo terão maior facilidade, uma vez que já possuem essa estrutura montada há anos. É o caso, por exemplo, da Mater Ecclesie. Teremos professores com liberdade de ensinar aquilo em que acreditam.

A aprovação da Lei foi uma grande vitória para nós. Qual o papel da sociedade a partir de agora?

Dias: O nosso papel é incentivar os pais que nós conhecemos, cujos filhos estu-dam em escolas públicas, para que matriculem os seus filhos no ensino religioso. É importante conscientizá-los sobre a importância do relacionamento com Deus para a realização plena da nossa humanidade. É preciso também que nos movimentemos enquanto Igreja para disponibilizar professores e toda a estrutura necessária a essa missão evangelizadora.”

(Disponível em < http://www.cl.org.br/>)

trechos da entrevista como o deputado Carlos Minc (pt/rj), autor do projeto alternativo de ensino religioso de caráter histórico-antropológico que fora aprovado pela assem-bléia legislativa, porém vetado pelo governadora rosinha garotinho.

ComCiência: “Quais foram as alterações propostas em relação à lei estadual 3459/00, de autoria do ex-deputado Carlos Dias?

Minc: Na verdade, quando foi apresentado o projeto de lei do ex-deputado Carlos Dias, que implementava o ensino religioso confessional, isto é, por religião, fizemos emendas contrárias. Quando tal aberração foi aprovada, fizemos um projeto de lei alternativo para que o ensino religioso obedecesse à lei federal, sendo não confessional. Pelo nosso projeto, ele poderia ser ministrado por professores de quaisquer disciplinas, desde que devidamente capacitados. Certamente, professores formados em história, filosofia, sociologia poderiam dar noções de religião sob o enfoque antropológico.

ComCiência: Na sua opinião, a instituição do ensino religioso nas escolas públicas fere o princípio do Estado laico?

Minc: Fere. Além disso, o Estado tem que zelar pela legislação, defendendo o princípio da liberdade religiosa. Até por isso as escolas públicas não podem ensinar religião sob o enfoque confessional.

ComCiência: Na sua opinião, as aulas de religião no ensino público, de modo geral, são necessárias?

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Minc: Não. Infelizmente, falta tanta coisa nas escolas públicas que não deveria ter sido dada tal prioridade ao assunto. Acredito que haja outros interesses por trás do ensino religioso confessional defendido pela Igreja Católica conservadora.

ComCiência: Como o senhor vê a inclusão do criacionismo no currículo escolar? O senhor é partidário das críticas que apontam a incorporação do criacionismo na ementa do ensino religioso como estratégia para conseguir apoio político de lideranças religio-sas?

Minc: Trata-se de uma aberração legal e pedagógica. É claro que o oportunismo político ultrapassa fronteiras éticas e morais e pode se utilizar do atraso para con-quistar apoio político de lideranças religiosas.

ComCiência: O senhor acredita na teoria do evolucionismo? Minc: Não é questão de credo pessoal. Trata-se de ciência e, mesmo acreditando

que até as “verdades” científicas são provisórias, o evolucionismo é a teoria na qual todos acreditamos. O absurdo atual é o ensino do criacionismo em escolas públicas, desautorizando a teoria evolucionista. É o caminho de volta à Idade Média, com o risco de se incentivar as crianças a queimar os livros de Darwin.”

(Disponível em http://www.comciencia.br)

iser. ensino religioso no estado do rio de janeiro. apresentação

“Iniciado o debate público, para além da disputa de credos e concepções sobre educação e sobre o papel da escola pública, foi muito revelador observar como se posicionaram as diferentes alternativas religiosas. Em outubro de 2000, participei na Assembléia Legislativa do Rio de Janeiro de uma Audiência Pública sobre Ensi-no Religioso promovida pelo ISER e pelo deputado Carlos Minc. Naquela ocasião vimos acontecer alianças pouco usuais no campo religioso brasileiro. Por um lado, o que não é novidade, católicos divergiram entre si: a favor do ensino religioso confessional, falou seu au tor, o Deputado Carlos Dias, que se apresentou como católico convicto; contra falaram outros católicos: o deputado Padre Roque, do Paraná, e o deputado Chico Alencar, do Rio de Janeiro, considerado católico da ala progressista. Por ou tro lado, a favor da interconfessionalidade, em uma curiosa e circunstancial aliança estavam católicos de esquerda, evangélicos pentecostais, evan-gélicos históricos, espíritas kardecistas e representantes de religiões afro-brasileiras. Foi interessante observar que o Projeto alternati vo apresentado pelo Deputado Car-los Minc, ele mesmo de origem judaica, foi apoiado na tribuna não só pelo padre católico e por um católico da ala progressista, mas também por deputados ligados à Igreja Universal do Reino de Deus, denominação esta que, no geral, tem se mostra-do pouco afeita ao ecumenismo ou ao diálogo inter-religioso. A este peculiar arco de aliança, na platéia, se somaram mães de santo do Candomblé, espíritas, adeptos do Santo Daime, budistas e, ainda, outras alternativas religiosas que participam do MIR (Movimento Inter-Religioso).

Seriam muitos os fatores que poderiam expli car tais posicionamentos. Para um lado, para parte dos protagonistas o que estava em jogo era a valorização da di-versidade e da tolerân cia religiosa. Mas, por outro, havia ali uma também disputa

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de bens simbólicos, própria ao campo religioso. A defesa da lei alternativa passava por uma avaliação: o modelo confes sional proposto favoreceria, sobretudo, a Igre-ja Católica. Isto não só porque o peso institucio nal da Igreja Católica no Brasil é indiscutível. Mas, também, porque a unidade e centrali zação hierárquica católica tornam esta Igreja mais adequada para a implantação do modelo confessional. Isto, em comparação com a dis persão e a grande diversidade presente entre os centros e terreiros das religiões mediúnicas, em comparação com a segmentação das inúmeras denominações evangélicas conhecidas como históricas, pentecostais e neo-pente-costais e, ainda, em comparação com a variedade pulve rizada das novas alternativas religiosas.”

estado laico – entidade quer suspender lei que institui ensino religioso

A CNTE – Confederação Nacional dos Trabalhadores em Educação – quer sus-pender os efeitos da lei estadual do Rio de Janeiro que prevê que o ensino religioso nas escolas públicas só pode ser ministrado por professores que tenham sido creden-ciados pela autoridade religiosa competente.

A determinação está presente nos artigos 1º, 2º e 3º da Lei Estadual 3.450/00, que prevê também que o conteúdo do ensino religioso é atribuição específica das autoridades religiosas, cabendo ao estado o dever de apoiá-lo integralmente. Os dis-positivos são questionados pela entidade em Ação Direta de Inconstitucionalidade, com pedido de liminar, impetrada no Supremo Tribunal Federal.

Para a CNTE, esses artigos ferem a Constituição Federal na medida em que pre-tendem estabelecer diretrizes e bases para o ensino religioso diversas das constantes da Lei Federal 9394/96, que trata do assunto.

Segundo o STF, a entidade alegou, ainda, que a lei fere o parágrafo 1º do artigo 19 da Constituição Federal, que veda ao Estado a manutenção de relações de de-pendência ou aliança com cultos religiosos. Cita também a afronta ao que dispõe o inciso VII, artigo 5º, no que é pertinente à inconstitucionalidade da privação de direitos por motivos de crença religiosa.

ADI 3.268Revista Consultor Jurídico, 3 de agosto de 2004(http://conjur.estadao.com.br/static/text/28313,1)

qUestões

• Quaiselementosideológicospoderiamserapontadosnodebatepró-contraEnsino Religioso Confessional versus ensino religioso sob o enfoque antropo-lógico?

• Quaisreproduçõesideológicasestariamimplícitasnosdepoimentos?• AtéquepontoaimplementaçãodaLei3.459reproduzanaturalização de

um processo que de fato implica o próprio mecanismo de funcionamento da ideologia?

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i. a reprOdUçãO da ideOlOgia

Para a exposição dos aparatos ideológicos do Estado serão avaliadas, inicialmente, duas teses (Louis Althusser): 1) a ideologia representa a relação imaginária dos indiví-duos com as suas condições reais de existência, isto é, ideologia é compreendida como uma concepção de mundo, que, aliás, não corresponde à realidade, mas efetivamente se referencia nela – ou no dizer de Marx, se os homens criam uma representação alie-nada de suas condições de existência é porque essas condições de existência são, em si mesmas, alienantes; e 2) a ideologia tem uma existência material, possibilitada pela atuação dos Aparelhos Ideológicos de Estado que mediam as idéias até às práticas e atos concretos do cotidiano. Assim, o Estado apresentaria três dimensões, aqui abordadas:

a) Poder Estatal; b) Aparelho de Estado; e c) Aparelho Ideológico de Estado.

O Poder Estatal é, na teoria da revolução socialista, o objetivo da luta de classes para dominar os aparelhos do Estado burguês e convertê-los em aparelhos de um Estado proletário. Porém, num último estágio a revolução eliminará toda forma de Estado (seja burguês ou proletário) e inclusive o próprio Poder Estatal.

O Aparelho de Estado – o que inclui o governo, o exército, os tribunais, os pre-sídios, etc. – tem um caráter repressor, haja vista que sua atuação se dá, eminente-mente, por meio do uso da violência. Apresenta uma natureza monolítica e como um bem público. Por tudo isso, mais apropriado seria denominá-lo de Aparelho Repressor de Estado.

Em paralelo, os Aparelhos Ideológicos de Estado apresentam-se como poderes ou instituições privadas, sendo-lhes característicos a pluralidade de manifestações. Ao contrário do Aparelho Repressor de Estado, os Aparelhos Ideológicos de Estado atuam, essencialmente, por meio das práticas e da difusão ideológicas. Como exemplos dos Aparelhos Ideológicos de Estado têm-se os sistemas: religioso, escolar, familiar, jurídi-co, político, sindical, de informação, cultural, etc.

questão crítico-reflexiva

Caberia, assim, ao Aparelho Repressor de Estado garantir pelo uso da força as con-dições de reprodução das relações de produção; ao passo em que cabe aos Aparelhos Ideológicos de Estado também garantir tal reprodução, contudo, pelo uso da ideolo-gia? O Poder Estatal figura neste quadro teórico como o fundamento de legitimida-de da repressão em favor do status quo dominante?

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ii. O fUnCiOnaMentO da ideOlOgia

O filósofo Slavoj Zizek apresenta-nos a ideologia a partir de uma classificação tripartite:

a) A ideologia em-si é um conjunto de idéias destinadas a nos convencer acerca de sua veracidade, mas, em verdade, serve a um interesse particular de poder não confessado. Por isso, é importante em nossa análise discernir, através das rupturas, lapsos, lacunas, a tendenciosidade (o projeto de poder) não declarada no texto oficial. Como por exemplo, discernir na “igualdade e li-berdade” a igualdade e a liberdade dos parceiros nas trocas comerciais que, evidentemente, privilegiam o proprietário dos meios de produção e o livre mercado. O papel, pois, da ideologia é gerar uma rede de discursividade (constituição do mundo) em que os fatos falem por si, sejam auto-evidentes, isto é, sejam naturalizados.

b) A ideologia para-si revela, na linha do pensamento de Althusser, a necessidade de reprodução por meio dos aparelhos especiais de Estado voltados para a materialização da ideologia no cotidiano que, como Foucault diria, discipli-nam o sujeito nas microestruturas do poder.

c) A ideologia em-si-e-para-si, ou seja, a ideologia refletida em si mesma obscurece uma rede de pressupostos e de atitudes quase-espontâneas que formam um momento irredutível da reprodução de práticas “não-ideológicas”, como por exemplo os atos comerciais, legais, políticos, sexuais, etc. Ou seja, a ideologia, suas manifestações concretas, suas instituições de reprodução apresentam-se no cotidiano como “naturais”, destituídas de história, destituídas de ideologia.

questões:

• Umaspecto importante a ser considerado éque aquiloque se identificacomo uma mera contingência do real, carente de sentido, banal, em ver-dade, consiste em um símbolo cujo sentido foi internalizado, naturalizado. Talvez essa percepção da ideologia leve ao seguinte paradoxo: será que a recusa a uma determinada posição “ideológica” leva inevitavelmente o su-jeito à submissão ao seu duplo “não-ideológico”, o qual carrega os mesmos pressupostos do “ideológico”? (Zizek)

• Essealertaserveparadestacarqueumaideologianãonecessariamenteéuma“falsa” representação da realidade ou dos fatos, mas, antes, é um modo como esse conteúdo (realidade, fatos) se apresenta em uma relação de dominação? Diz-se que algo é “ideológico” quando um determinado conteúdo torna-se funcionalmente não transparente para facilitar o exercício do poder?

• Assim,pode-seconceituarideologiacomoumcomplexodeidéiasquead-quirem materialidade por meio de instituições e aparatos de tal modo que se incorporem no cotidiano e se apresentem como se fossem espontâneas, auto-evidentes?

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Segundo Gramsci, uma classe é hegemônica não só porque detém a propriedade dos meios de produção e o poder do Estado, mas principalmente porque suas idéias e valores são dominantes, e são mantidos pelos dominados até mesmo quando lu-tam contra essa dominação.

Na linha do pensamento marxista, Marilena Chauí indica três momentos fun-damentais da ideologia que serão abordados neste tópico: i) a ideologia surge como um conjunto sistemático de idéias de uma classe em ascensão que aparece como representante de todos os não-dominantes, tornando-se uma universalidade legi-timadora da luta da classe ascendente; ii) a ideologia se consolida como um senso comum a todos aqueles que não são dominantes; e iii) quando a transição se com-pleta, as idéias – antes universais a todos os não-dominantes – são, agora, negadas pela nova realidade de dominação. Mas, ainda assim, as idéias permanecem “co-muns” porque são apresentadas descoladas (emancipadas) da classe particular que as produziu segundo seus interesses.

Por fim, vale lembrar Althusser quando explicita que toda ideologia tem uma estrutura especular, ou seja, atua como se fosse uma caixa de espelhos que se re-fletem reciprocamente. Isto é, em um primeiro momento do agir da ideologia os indivíduos são interpelados como sujeitos e, em seguida, submetidos a um Sujeito (relação de dominação). Nessa etapa, ocorre um triplo reconhecimento: i) um reco-nhecimento mútuo (identidade) entre os sujeitos e o Sujeito; ii) um reconhecimen-to mútuo entre dos sujeitos entre si; e, por último, iii) um reconhecimento de si mesmo pelo sujeito. No último estágio, a ideologia apresenta uma garantia absoluta de que tudo realmente é “de fato” assim mesmo (naturalização) e que, desde que os sujeitos reconheçam o que “são” (a imagem proposta pelo Sujeito) e que se compor-tem “conformemente”, tudo ficará bem, isto é, em boa ordem.

bibliOgrafia básiCa

ALTHUSSER, Louis. Ideologia e aparelhos ideológicos de Estado (notas para uma investigação). In: ZIZEK, Slavoj (org). Um mapa da ideologia. Rio de Janeiro: Contraponto, 1996. (pp. 105-142)

bibliOgrafia COMpleMentar

ARON, Raymond. O Ópio dos Intelectuais. Brasília: UNB, 1980.BELL, Daniel. O Fim da Ideologia. Brasília: UNB, 1980.BOUDON, Raymond. A Ideologia: ou a origem das idéias recebidas. São Paulo:

Editora Ática, 1989, pp. 71-89.GEERTZ, Clifford. “A Ideologia como sistema cultural”. In A Interpretação das

Culturas. Rio de Janeiro: LTC, 1989.SARTORI, Giovanni. A Teoria da Democracia Revisitada. São Paulo: Editora Áti-

ca, 2004, pp.299-324.

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aula 4. diReiTo e ideologia no mundo ConTemPoRâneo

i. ideOlOgia nO MUndO COnteMpOrâneO

Considerando os subsídios teóricos de Althusser, Marilena Chauí expõe que: “Através do Estado, a classe dominante monta um aparelho de coerção e de re-pressão social que lhe permite exercer o poder sobre toda a sociedade, fazendo-a submeter-se às regras políticas. O grande instrumento do Estado é o Direito, isto é, o estabelecimento das leis que regulam as relações sociais em proveito dos dominan-tes. Através do Direito, o Estado aparece como legal, ou seja, como ‘Estado de di-reito’. O papel do direito ou das leis é o de fazer com que a dominação não seja tida como uma violência, mas como legal, e por ser legal e não violenta deve ser aceita. A lei é direito para o dominante e dever para o dominado. Ora, se o Estado e o Direito fossem percebidos nessa sua realidade real, isto é, como instrumento para o exercício consentido da violência, evidentemente ambos não seriam respeitados e os dominados se revoltariam. A função da ideologia consiste em impedir essa revolta fazendo com que o legal apareça para os homens como legítimo, isto é, como justo e bom. Assim, a ideologia substitui a realidade do Estado pela idéia de Estado – ou seja, a dominação de uma classe é substituída pela idéia de interesse geral encarnado pelo Estado. E substitui a realidade do Direito pela idéia do Direito – ou seja, a do-minação de uma classe por meio das leis é substituída pela representação ou idéias dessas leis como legítimas, justas, boas e válidas para todos”. (Marilena Chauí. O que é ideologia? São Paulo: Brasiliense, 1987. p. 90-91)

bibliOgrafia básiCa

BOBBIO, Norberto. Teoria geral do direito. São Paulo: Martins Fontes, 2007, pp. 03-24 (Capítulo I – O direito como regra de conduta).

LYRA FILHO, Roberto, “Ideologias jurídicas.” In: O que é o direito? São Paulo: Editora Brasiliense, 1982, 17 ed., 2005, pp. 12-24.

WOLKMER, Antônio Carlos. Ideologia, Estado e Direito. 2. ed. São Paulo: Re-vista dos Tribunais, 1995.

________. Fundamentos da História do Direito. Belo Horizonte: Del Rey, 1996.

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unidade ii – liBeRalismo

aula 5 e 6. indivíduo, PRoPRiedade, liBeRalismo e igualdade

CasO: História dO sOnHO real: CasO da reintegraçãO de pOsse de UMa área OCUpada pOr 4.000 faMílias, lOCalizada nO parqUe Oeste indUstrial, gOiâ-nia, eM 2004

“Em maio de 2004, cerca de quatro mil famílias (14.000 pessoas) ocuparam – construíram casas e barracos – uma área de 89 hectares localizada no Parque Oeste Industrial, em Goiânia, abandonada há mais de 50 anos e utilizada, até então, para desova de carros e cadáveres.

Apesar da inexistência de benfeitorias no local e do débito de cerca de dois mi-lhões de reais em impostos à prefeitura, o judiciário local entendeu que ‘não hou-ve desuso associado ao inadimplemento absoluto dos tributos capaz de induzir a presunção de abandono do imóvel ou de desnaturação de sua função social’, o que determinou em favor dos antigos proprietários a concessão de medida liminar para a desocupação do imóvel.

Contudo, em ano eleitoral que era, os candidatos a prefeitos (Íris Resende e San-des Junior) demonstraram publicamente apoio à ocupação e o governador (Marco-ni Perillo) prometeu não usar violência contra os posseiros, o que, de fato, retardou o cumprimento da ordem judicial.

Porém, sob pressão dos proprietários e do setor imobiliário temeroso frente à organização dos sem-tetos, o governo do estado autorizou em fevereiro de 2005 a polícia militar a iniciar a operação ‘Inquietação’, que durante uma semana inti-midou os moradores com sirenes, alertas durante a madrugada e bombas de efeito moral, para em seguida produzir o desfecho com a operação ‘Triunfo’, que obteve como saldo a desocupação total da área, mais 800 pessoas detidas, dezenas de feri-dos e dois mortos.”

(http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2005/02/307174.shtml)

as noções e concepções de propriedade que estão em questão

A partir deste caso, podemos identificar claramente um conflito entre os sem-tetos e os proprietários acerca do mesmo objeto – a gleba de terra localizada no Par-que Oeste Industrial. Assim, pretendemos discutir os diferentes fundamentos que sustentam tais posições. Como apoio, selecionamos algumas opiniões. Vejamos:

“A situação dos ocupantes é sim alarmante, porém não podemos deixar de lem-brar que vivemos em um país regido por leis e estas devem ser respeitadas. Mesmo que os moradores da invasão necessitem dessa área para morar, a lei assegura a pro-priedade privada e, mesmo que nossa constituição não seja eficaz em todos os casos, deve ser aplicada.” (Diuds 16/02/2005 03:19, www.midiaindependente.org)

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“A vocês sensacionalistas...(...) Primeiramente é válido lembrar que bem ou mal eles devem desocupar a

área, e se resistirem, a polícia tem o dever de agir com maior rigor, um policial foi ferido enquanto cumpria seu dever, e aí vem uma série de indivíduos Estúpidos (na minha opinião) apelando para os direitos humanos desses criminosos!!! Que absurdo!!! onde estão os direitos humanos do proprietário do imóvel invadido, que pagou pela propriedade, ou do policial ferido, que estava apenas cumprindo com o seu dever???

Eles invadiram, agora arquem com as conseqüências.” (Rafael 15/02/2005 22:04, www.midiaindependente.org)

qUestões

• Porqueojudiciárioeapolíciatêmodeverdeprotegeradefesadapropriedade?• Oqueimpedeosposseirosdaocupaçãodaáreatalqualelaocorreu?• Emquaisfundamentosseapóiamasopiniões?Oquejustificaaexistênciada

propriedade privada?• Qualofundamentoparaodireitopleiteadopelosproprietários?Qualofun-

damento para a defesa da propriedade?• QualocontextohistóricodanoçãodepropriedadenaformaçãodoEstado

moderno?• Qualarelaçãoentreindivíduoepropriedade?

i. COntextUalizaçãO HistóriCa dO pensaMentO liberal

O primeiro sentido que se deu ao termo “liberal” foi para se referir a um tipo específico de educação, abrangente e humanística, com largueza de espírito e tole-rância – virtudes típicas do homem livre moderno. Mas ao lado desse, um segundo sentido associava, de forma pejorativa, os liberais à libertinagem, à licenciosidade sexual, ao desrespeito às normas morais e à tradição. O primeiro uso político do termo foi feito na Espanha nos anos de 1810 a 1820 para designar os liberales, que pregavam um reformismo radical, secular e republicano contrário aos interesses dos monarquistas. Contudo, foram a Revolução Gloriosa Inglesa, 1680, a Revolu-ção Americana, 1776, o Iluminismo e a Revolução Francesa, 1789, que determi-naram as características e a difusão do liberalismo.

Um fator insigne a ser abordado é que a nova doutrina política foi construída a partir dos pilares da consolidação dos Estados nacionais e da expansão do modo de produção capitalista. E de modo a consolidar essa nova ordem, o movimento do constitucionalis-mo cuidou de inserir os ideais liberais em normas positivas superiores, isto é, inscrever direitos do homem e limites do Estado em Constituições escritas e rígidas.

Desse modo, será avaliado de que maneira o liberalismo delineou-se como uma ideologia baseada na defesa e na promoção das liberdades e direitos individuais, na

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separação entre esfera pública e esfera privada, no contrato como expressão da von-tade, na limitação dos governantes e, por fim, na soberania popular.

ii. a inflUênCia dO pensaMentO de jOHn lOCke

2.1 – Contraponto intelectual: Thomas Hobbes2.2 – John Locke como o principal pensador fundador do liberalismo.

Dentre os principais aspectos destacar-se-á que, para Locke, originalmente os homens viviam livres e harmoniosamente em um estado de natureza guiados unica-mente pela Razão. Ou seja, todos os homens eram igualmente livres porque livres uns dos outros, e iguais porque igualmente submetidos à superioridade de Deus e igualmente dotados de razão própria. A razão, portanto, como essência da natureza humana concedida por Deus era a única lei a que deviam se submeter os homens em estado de natureza. Nesse sentido, tentar colocar outrem sob o seu domínio constituía um ato contra a natureza humana – o mesmo que tratar um homem racional como se fosse animal irracional. Para Locke, Deus não permitiu a superio-ridade de uns sobre os outros, ao contrário, deu-lhes igual Razão e entregou-lhes em comum todos os bens da natureza.

Dessa forma, “todo homem tem uma propriedade em sua pessoa”, ou seja, o in-divíduo é soberano de si mesmo, o que faz com que “O trabalho braçal aplicado a qualquer objeto que antes pertencia a todos torne esse objeto propriedade exclusiva”. Isto porque “embora as coisas da natureza sejam dadas a todos em comum, o homem, senhor de si próprio e proprietário de sua própria pessoa e de suas respectivas ações e trabalho, tem ainda em si mesmo o fundamento da propriedade”1 (Locke). Tem-se, assim, um outro ponto fundamental a ser trabalhando durante esta aula: a unidade conceitual entre o individualismo e a propriedade privada.

A defesa dessa propriedade exclusiva evoca um dos pilares do liberalismo a ser estudado nesta disciplina: cada homem detém pela lei da razão o poder executivo de afastar qualquer tentativa de subjugação de sua pessoa ou de sua propriedade. Contudo, em certo momento os indivíduos entram em consenso de que seria mais cômodo entregar esse poder executivo a um ente criado unicamente para este fim, nascendo, assim, o Estado. De fato um Estado limitado única e exclusivamente à proteção da vida e da propriedade dos indivíduos. Isto é, os indivíduos concedem ao Estado um poder executivo para este fim específico; caso o Estado desvirtue ou viole os direitos naturais, deverá ser dissolvido e o poder retornar aos seus titulares – os indivíduos. Portanto, o único fundamento legítimo para o poder do Estado é o consenso dos indivíduos em lhe entregar o poder executivo para defender a liberdade e a propriedade. Em outras palavras, o fundamento do Estado é uma concessão da soberania individual em favor de uma comodidade na proteção da vida, da liberdade e das posses individuais.

O pensamento de John Locke oferecerá a base para os principais fundamentos do liberalismo abordado durante o curso, quais sejam: o individualismo, os direitos

1 lOckE, John, Two treatises of civil government. london, Everyman’s library, 1966, pp. 117-241. Tradução de cid kni-pell moreira.

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naturais, o Estado limitado. Nesta análise devem ser observadas simultaneamente três dimensões:

i) Uma dimensão ético-filosófica preocupada em justificar os atributos da natu-reza moral e racional do ser humano, tais como a liberdade, o individualismo e a tolerância.

ii) Uma dimensão econômica, defensora da propriedade privada, da economia de mercado, do controle estatal mínimo, da livre iniciativa, etc.

iii) Uma dimensão político-jurídica que contribui para a formação dos institutos do individualismo político, da representação política, da divisão dos poderes, da descentralização administrativa, da soberania popular, dos direitos indivi-duais, da supremacia da constituição e do Estado de direito (Wolkmer).

iii. individUalisMO e prOpriedade privada

Este tópico visa abordar o individualismo como o conceito-chave do liberalismo. A natureza humana é apreendida a partir da seguinte premissa: “o indivíduo pre-cede a sociedade”. Assim dito, para o liberalismo clássico o indivíduo encontra-se confinado em sua própria subjetividade, a qual, por sua própria natureza, é invio-lável. Por isso, o primeiro direito natural do ser humano é a propriedade sobre si mesmo e sobre seu corpo – sobre os quais o único soberano é a razão do indivíduo, sendo ilegítimas e contra a natureza toda e qualquer coação. “Ninguém pode impor nada ao indivíduo”.

Mais tarde, desse raciocínio deduzir-se-á que as extensões do corpo também são extensões da subjetividade do próprio indivíduo; portanto, será necessário estender a inviolabilidade do indivíduo também para a propriedade destes objetos.

A partir destes fundamentos, correntes no século XIX, será avaliado o enten-dimento de que “o propósito do homem é sua própria auto-realização e seria per-vertê-lo sacrificar-se pelos outros, muito menos por uma entidade fictícia chamada ‘sociedade’”. Nesse sentido H. Spencer, em “The man versus the state” (1884) discor-rendo sobre os direitos naturais dos indivíduos sobre/contra o Estado enfatiza que “Promover os que não servem para nada à custa dos que servem para alguma coisa é uma extrema crueldade”. Em paralelo, Humboldt, em “Limits of the state action” recomenda que “O Estado deve abster-se de toda solicitude para o bem-estar dos cidadãos e não ir além do que é necessário para a proteção e segurança dos cidadãos contra os inimigos estrangeiros”.

A partir de tais proposições, será discutido em que sentidos e implicações a liber-dade da razão individual – única soberana legítima sobre o indivíduo – é a condição fundamental para a realização do homem, ao passo em que o Estado e toda forma de coerção sufocam-no.

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iv. exerCíCiO: pesqUisar Os prinCípiOs liberais nO OrdenaMentO jUrídiCO brasileirO

Pesquisar os direitos naturais e os contornos do Estado de direito liberais expos-tos na Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789 e na Declaração de Independência dos EUA de 1776 foram amplamente recepcionados, ao menos no plano formal positivo, nas constituições brasileiras.

exemplo da questão da propriedade para discussão em classe:

“Medidas jurídicas a serem adotadas nos casos de risco de invasão, turbação da posse e invasão”

(Orientações da União Democrática Ruralista)[referências aos arts. do Código Civil de 1916]

risco de invasão

Ocorre o risco de invasão, quando se detecta qualquer ameaça, movimentação de pessoas, veículos, acampamento nas proximidades da propriedade, etc. Nesse caso, o proprietário deverá ingressar com Ação de Interdito Proibitório com Pedido de Concessão de Liminar. Esse remédio jurídico tem amparo nos artigos 501 do Código Civil e Artigos 932 e 933 do Código de Processo Civil.

turbação da posse

Dá-se a turbação da posse quando a propriedade é atingida por pessoas que ma-nifestam o objetivo de causar prejuízo, etc., furtando bens, destruindo cercas, etc. Nessa hipótese, deverá o proprietário ingressar com Ação de Manutenção de Posse com Pedido de Concessão de Liminar.

invasão

Havendo a invasão propriamente dita, o proprietário após proceder as comuni-cações de praxe, poderá fazer uso do seu direito ao Desforço Privado e Imediato, previsto no artigo 502 do Código Civil, que assim estabelece: Art.502: O possuidor turbado, ou esbulhado, poderá manter-se, ou restituir-se por sua própria força, con-tanto que o faça logo.

Parágrafo único: Os atos de defesa, ou de desforço, não podem ir além do indis-pensável à manutenção ou restituição da posse.

Não havendo a possibilidade jurídica do uso de tal prerrogativa, ou não sendo esta opção do proprietário, deverá então ingressar com Ação de Reintegração de Posse cumulada com Ação de Indenização por Perdas e Danos, com Pedido de Con-cessão Liminar, com respaldo no artigo 506 do Código Civil e artigos 926 a 931 do Código de Processo Civil.

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Medidas criminais

É comum nas ações de invasões de propriedade a ocorrência de diversos crimes, os quais devem ser denunciados à autoridade policial mais próxima da propriedade. Dentre os crimes que mais comumente se constata, pode-se citar:

esbulho processório

Pena: 1 a 6 meses de detenção e multa, mais a pena correspondente à violência (Código Penal, art.161, parágrafo 1º, alínea II)

dano

Pena: 1 a 6 meses de detenção ou multa. (Código Penal, art.163) Se o crime de dano for cometido com violência a pessoa ou grave ameaça, a pena é de 6 meses a 3 anos, e multa, mais a pena correspondente à violência (Código Penal, art.163, parágrafo único)

incitação ao crime

Pena: detenção de 3 a 6 meses, ou multa. (Art. 286 do Código Penal)

apologia de crime ou criminoso

Pena: detenção de 3 a 6 meses, ou multa (Art. 287 do Código Penal)

quadrilha ou bando

Pena: Reclusão de 1 a 3 anos. A pena é dobrada se a quadrilha ou bando é arma-do. (Art. 288 do Código Penal)

incêndio

Pena: 3 a 6 anos de reclusão (Art. 250 do Código Penal)

bibliOgrafia básiCa

HOBBES, Thomas. O Leviatã. São Paulo: Martins Fontes, 2004.LOCKE, John. “O segundo tratado sobre o governo civil”. In Dois tratados sobre

o governo. São Paulo: Martins Fontes, 1988.

bibliOgrafia COMpleMentar

BOBBIO, Norberto. Locke e o Direito Natural. Brasília: Editora da UNB, 1997.

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aula 7 e 8. indivíduo, PRoPRiedade, liBeRdade e igualdade (ConTinuaÇÃo)

CasO: Operações da pOlíCia federal – esCritóriOs de advOCaCia e CasO daslU

As recentes operações da polícia federal em escritórios de advogados, a prisão da dona da butique Daslu e a conseqüente reação dos setores hegemônicos da sociedade.

Princípios liberais: inviolabilidade, legalidade, igualdade. Análise dos seguintes textos:

“retrospectiva 2005 – invasão de escritórios foi momento grave para advocacia”

“Durante o ano de 2005, a Advocacia viveu um dos momentos mais graves de sua história, com a invasão dos escritórios de advogados, amparada em mandados judiciais genéricos, expedidos por alguns poucos juízes federais, que consideramos ilegais e contra os quais a classe lutou, mostrando uma união excepcional. Cerraram fileiras todas as entidades da Advocacia, OAB-SP, Aasp, Iasp e Cesa, as Seccionais da Ordem em todo o Brasil e o Conselho Federal da Ordem, desembargadores oriun-dos do Quinto Constitucional e cada advogado, individualmente. Todos unidos em torno do mesmo propósito: combater esse desrespeito à Constituição Federal e às prerrogativas profissionais. Nem nos tempos de chumbo do período militar éramos alvo de tamanha violência. Invadir escritórios de advocacia é mutilar o Estado De-mocrático de Direito.

Uma diligência da PF, amparada em Mandado de Busca e Apreensão, no escri-tório da advocacia só seria admissível se o investigado fosse o próprio advogado e desde que existisse justa causa para essa diligência, preservando os arquivos e o sa-grado sigilo entre advogado e cliente. Como essas premissas não foram observadas, essas diligências nada mais eram que invasões, amparadas em decisões genéricas, que contrariam a Constituição Federal. A OAB-SP representou contra os juízes federais na Procuradoria Geral da União, promoveu Ato de Desagravo aos colegas e de repúdio às invasões, esteve com o ministro da Justiça, Marcio Thomaz Bastos, e com a direção do Tribunal Regional Federal da 3ª Região no sentido de fazer cessar tais invasões, além de ter tomado medidas judiciais e legislativas. As invasões de escritórios pararam no Estado e essa é uma vitória integralmente creditada à classe que, em São Paulo, soma mais de 250 mil profissionais inscritos.”

Por Luiz Flávio Borges D´Urso(Revista Consultor Jurídico, 18 de dezembro de 2005)

Célio jacinto dos santos – delegado de polícia federal

“É reconhecido pela comunidade jurídica o trabalho do Dr. Durso à frente da OAB/SP, assim como pelo ótimo relacionamento com os Delegados Federais, entre-tanto, o nobre presidente continua empregando a expressão ‘invasão de escritório’.

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O que não é sabido e divulgado pela grande mídia é que a maioria dos advogados presos nas diligências da PF, ainda continuam presos, exatamente porque não houve invasão de escritório, mas, devido ao profundo envolvimento desses cidadãos com a criminalidade econômica, senão os tribunais superiores já teriam colocado em liberdade os advogados que cometeram graves desvios.

A OAB, assim como a imprensa e alguns setores com claros interesses no ar-refecimento da atividade de apuração criminal da PF, está empregando processo de estigmatização, de acusação, também, é uma faceta da dominação pelo insti-tucionalismo, onde algumas instituições (setores da OAB, do MPF, da imprensa etc.) se julgam donas da verdades e possuidoras de auréolas da divindade, e no caso específico, a PF seria de somenos importância ou carregada de vícios, partidária da ilegalidade e do arbítrio, com isso, tentam empreender uma dominação cultural. Hoje, os criminosos de colarinho branco e a criminalidade organizada, já não agem livremente, exatamente porque em algum momento um Policial Federal baterá em sua porta, para isso, basta oferecer meios, estrutura, liberdade de ação e certamente, a PF fará muito mais em 2006.”

18/12/2005 – 17:45Disponível em http://conjur.estadao.com.br/static/text/35511,1

Criminalidade de butique – alguns humanos têm mais direitos do que os outros

Em 1940, Edwin H. Sutherland publicou um ensaio na American Sociological Review intitulado “White-Collar Criminality” no qual tratava de um tipo de crimi-nalidade até então muito pouco discutida na criminologia: a criminalidade econô-mica, praticada por pessoas ocupantes de posições sociais de prestígio. A expressão “colarinho branco”, uma alusão às camisas usadas pelos empresários, tornou-se en-tão a marca do diferencial de classe nas ciências penais.

A recente prisão da dona da butique Daslu e a conseqüente reação dos setores hegemônicos da sociedade aos supostos excessos da polícia federal é a prova cabal de que há algo muito especial que difere a “white-collar criminality” ou, em uma tradução livre, a criminalidade de butique, da criminalidade genérica encontrada nas ruas das grandes metrópoles.

Tomemos a nota oficial da Fiesp (Federação das Indústrias do Estado de São Paulo) sobre o caso:

“A prisão antecipada, sem sentença, seja qual for sua natureza, só pode ter lugar para os infratores perigosos que ameaçam a ordem pública, que causam prejuízos irreparáveis à sociedade e à própria segurança dos processos judiciais.”

A criminalidade de butique não é perigosa? Os criminosos ricos não ameaçam a ordem pública? A sonegação de impostos não causa prejuízos irreparáveis à socieda-de? Os empresários não têm maior chance de fugir do Brasil e, com isso, ameaçar a segurança dos processos judiciais?

Quem afinal a FIESP considera um criminoso perigoso? O ladrão de carteiras, de carros, de bancos? Quem é mais perigoso para a sociedade o ladrão ou o sonega-dor? Quem se apropria do dinheiro privado ou do dinheiro público?

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Segue a nota afirmando que:“O combate à criminalidade não pode prescindir do respeito ao Estado de Direi-

to, sendo inadmissível que alguém possa ser preso, ou tenha sua residência, escritó-rio ou empresa violados sem que a segurança de sua prévia culpa esteja evidenciada e que, pior ainda, seja essa prisão realizada de modo extravagante, com exibição de algemas, com publicidade afrontosa, como um espetáculo pirotécnico, expondo o cidadão à condenação pública, para todo o sempre.”

Todos os dias favelas e barracos são invadidos pela polícia sem que “a segurança de prévia culpa” de quem quer que seja esteja evidenciada. Alguma vez a FIESP divulgou nota oficial sobre isso? Todos os dias ladrões e traficantes são presos, alge-mados e levados à delegacia onde são exibidos em cadeia nacional de televisão para alívio dos “homens de bem”. Isso nunca incomodou os empresários da FIESP?

O que incomoda à FIESP e à maioria dos que levantaram suas vozes para de-fender os direitos da empresária não é propriamente o desrespeito aos direitos do acusado, mas a prisão de alguém de sua classe social. O que incomoda é saber que sonegação de impostos é crime e que, pelo desencadear dos fatos, muitos colegas podem acabar em situação semelhante. O que incomoda é a perda da imunidade penal de uma classe, representada simbolicamente por esta prisão.

Enquanto a mídia se limitava a cobrir as ações policiais em favelas, reafirmando o estereótipo do pobre bandido, a FIESP nunca se indignou com a “pirotecnia” das reportagens. Bastou os colarinhos-brancos e as roupas de butique fazerem um breve desfile nas delegacias de polícia, para que novos paladinos dos direitos humanos pululassem pelo empresariado.

A criminalidade de butique não incomoda aos ricos, pois não derrama sangue, não se esconde nos morros e, principalmente, não gera medo. Mesmo quando noti-ciada na imprensa, seus personagens não são marginais, bandidos ou muambeiros. São empresários; quase cidadãos de bem. A criminalidade de butique quase não é crime.

Parafraseando Orwell: “todos têm direitos humanos, mas alguns humanos têm mais direitos do que outros.”

Revista Consultor Jurídico, 15 de julho de 2005Por Tulio Lima Vianna. Disponível em http://conjur.estadao.com.br/static/text/36297,1

sonegar é preciso?

“Mercadorias importadas que não pagam impostos ao entrar no país têm um nome: muamba. A diferença das muambas vendidas na Daslu e as comercializadas pelos camelôs nas ruas de São Paulo é que as ‘dasluzetes’, como são chamadas as vendedoras da loja, não são perseguidas e espancadas pela polícia. Pelo contrário, servem à mais ‘fina’ elite do país. Daí a indignação dos políticos em Brasília ao to-marem conhecimento da detenção da proprietária da Daslu.

O senador e presidente do PFL, Jorge Bornhausen, reagiu com extrema indig-nação. O ‘coronel’ e também cliente Antônio Carlos Magalhães foi mais longe e

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chegou a chorar ao falar por telefone com a contraventora presa. Diversos telejor-nais chegaram a criticar no ar o que chamaram de ‘abuso’ da polícia federal. A OAB e o presidente da Fiesp, o petista Paulo Skaf, também criticaram a ação da polícia, como se o crime fosse prender os bandidos, e não propriamente praticar o crime.

Essa tremenda intranqüilidade da mídia, políticos e empresários encontra ex-plicação na seguinte fala do presidente do PSDB, o senador Alberto Goldman: ‘Essa prisão pode gerar uma crise econômica. O empresário vai dizer: para que vou investir no Brasil se posso ser preso?’. Ou seja, empresário sonegar imposto é a regra. Impedir isso levaria, segundo essa lógica, o país a uma crise econômica. Esse escândalo explicitou de forma ainda mais aguda a institucionalização da corrupção não só entre os políticos, mas entre a burguesia brasileira.”

Centro de Mídia Independente (http://www.midiaindependente.org/eo/blue/2005/07/322934.shtml)

prerrogativas da advocacia – Câmara aprova projeto sobre inviolabilidade de escritório

“A Comissão de Constituição e Justiça da Câmara dos Deputados aprovou nesta quarta-feira (7/12) o Projeto de Lei 5.245/05, que reforça a garantia ao advogado da inviolabilidade de seu escritório e protege o sigilo de documentos de seus clientes. Como tramita em caráter conclusivo, a proposta segue agora para o Senado sem que precise passar pelo Plenário da Câmara.

De autoria do deputado Michel Temer (PMDB-SP), o projeto foi apresentado em maio passado, no auge da polêmica das invasões de escritórios pela Polícia Fede-ral. O relator, deputado Darci Coelho (PP-TO), emitiu parecer favorável ao texto, que modifica o Estatuto da Advocacia – Lei 8.906/94.

A proposta limita as ordens de busca e apreensão em escritórios aos casos em que há indícios de crime praticado pelos próprios advogados. Pelo texto, o mandado tem de ser ‘específico e pormenorizado, a ser cumprido na presença de representan-te da OAB, sendo, em qualquer hipótese, resguardados os documentos, as mídias e os objetos pertencentes a clientes do advogado averiguado, bem como os demais instrumentos de trabalho que contenham informações sobre clientes’.

O dispositivo atende a uma das principais reclamações dos advogados, de que invasões de escritórios têm sido baseadas em mandados genéricos, que não especi-ficam o objeto da busca.

O projeto de lei também detalha o que são os instrumentos de trabalho dos ad-vogados: ‘todo e qualquer bem móvel ou intelectual utilizado no exercício da advo-cacia, especialmente seus computadores, telefones, arquivos impressos ou digitais, bancos de dados, livros e anotações de qualquer espécie, bem como documentos, objetos e mídias de som ou imagem, recebidos de clientes ou de terceiros’. (www.conjur.com.br).

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i. a idéia de liberdade e de igUaldade para O liberalisMO e sUas iMpliCações

A liberdade será analisada no curso como um dos conceitos fundamentais para o liberalismo, seja ela negativa (abstenção de ser molestado), seja ela positiva (necessi-dade de condições para o seu exercício). Para os liberais clássicos o homem é “livre” quando “livre de coação” sobre sua pessoa ou sobre sua propriedade. Sendo o fim último o pleno desenvolvimento individual, a coação surge como a imposição de uma razão sobre outra, isto é, contraria a natureza humana que é de ser igualmente livre e dotada de razão.

Como é sabido, o liberalismo surge para a contestação do absolutismo, o que o leva a identificar o Estado como o principal violador dessa liberdade. Mas uma vez definido que o Estado é um “mal necessário”, será importante distinguir entre a re-pressão justificável e a repressão injustificável. Uma possível hipótese para discussão pode ser enunciada nos seguintes termos: entendendo que o Estado foi criado com a função única de proteger o exercício da liberdade individual, o exercício da liber-dade de um indivíduo não pode se fazer às custas da liberdade dos outros. O que implica dizer que será justificável intervir na sociedade e sobre o indivíduo quando, para o exercício de sua liberdade, injustificadamente, coagiu/reprimiu a liberdade de outros indivíduos (VICENT, 1995:50-51).

Um outro e fundamental aspecto da liberdade a ser abordado no curso consiste na reflexão a cerca da livre iniciativa econômica. A economia, segundo os pressupostos liberais, deve estar orientada para a satisfação dos interesses e para o desenvolvimento do indivíduo. Adam Smith, cujas idéias foram apropriadas pelos liberais, acreditava que havia um deísmo otimista controlando os eventos aleatórios do mercado – a mão invisível do mercado. Assim, a economia de livre mercado consistiria em um espaço regrado pelo próprio mercado no qual se sobressairiam os mais capacitados, os mais disciplinados. Essa ordem do livre mercado seria quebrada tão somente pela constituição de monopólios ou pela regulação estatal, os quais inviabilizariam a livre circulação dos agentes econômicos e restringiria a autonomia da vontade.

Com base nos pressupostos da liberdade acima enunciados, contrários a qual-quer tipo de coação sobre o indivíduo, surge a indagação, objeto de debate em sala de aula: a economia deve ser compreendida sem qualquer ente regulador ou repres-sor do livre desenvolvimento do indivíduo? Será abordada a premissa da “mão invi-sível do mercado”, que reitera a harmonia original do estado de natureza. Por outro lado, os monopólios e a regulação estatal consistem em atentados contra a natureza individual – liberdade de iniciativa e autonomia da vontade?

Neste ponto, discutir-se-á o pressuposto operacional da liberdade econômica, a idéia de contrato, ou seja, a conjunção entre a livre iniciativa e autonomia da vontade. Assim, indivíduos, porque considerados iguais perante o ordenamento (igualdade formal), podem livremente expressar sua vontade (livre iniciativa) de se vincularem mutuamente segundo as regras formuladas pelas partes (autonomia da vontade).

Destacar-se-á que as razões históricas do liberalismo explicam os contornos de sua teoria econômica: as revoluções burguesas lutaram basicamente contra os víncu-los estamentais e os obstáculos de circulação comuns à época feudal.

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Será importante refletir acerca da famosa expressão absenteísta “laissez faire”, que não foi propriamente uma criação dos liberais; mesmo os mais ortodoxos advoga-vam que a intervenção do Estado seria necessária sempre que a liberdade de mer-cado estivesse ameaçada. Nessa linha, Keynes se tornou um dos principais econo-mistas ao propor, em um momento de crise cíclica, a necessidade de supervisão do Estado na economia de mercado a fim de aumentar a eficácia do sistema capitalista por meio de um rol de medidas, dentre elas a redução do desemprego e da pobreza através de obras públicas, a distribuição de títulos de propriedades, o estímulo à poupança, tributação mínima, etc. – auxiliando, dessa forma, e temporariamente, o sistema capitalista a usar toda sua capacidade ociosa.

ii. jUstiça, individUalidade e inviOlabilidade

Abordagem do debate liberal sobre o que prevalecia: a crença na soberania indi-vidual e na inviolabilidade de sua individualidade. Surge uma questão fundamental a ser refletida:

Para a realização plena do homem bastava a não interferência do Estado ou de outrem na esfera privada do indivíduo? Se for o caso, a igualdade concebida pelos liberais foi uma igualdade abstrata e formal, ou seja, bastava a idéia da igualdade jurídica dos indivíduos para que cada qual, segundo suas capacidades e sua própria razão, buscasse a felicidade? Debate entre os alunos sobre a questão.

Outro aspecto crucial a ser investigado durante a aula diz respeito aos critérios distributivistas. Tais critérios são vistos como um arbítrio do Estado contra a nature-za das coisas na medida em que impunha uma razão de um homem sobre todos os demais? Spencer é mais enfático ao discorrer sobre a justiça, para ele “os incapazes, os ociosos e os fracos deveriam ser eliminados, pois poupá-los, distribuindo-lhes recursos é um paternalismo inoportuno e uma inversão do processo evolucionista” (apud VICEN-TE, 1995:52). Aqui será abordada a questão fundamental da influência neolibera-lista para a conceituação de justiça distributiva.

iii. exerCíCiO: pesqUisar Os prinCípiOs liberais nO OrdenaMentO jUrídiCO brasileirO

bibliografia básica

LOCKE, John. “O segundo tratado sobre o governo civil”, In Dois tratados sobre o governo. São Paulo: Martins Fontes, 1988, pp 379-405.

SARTORI, Giovanni. A Teoria da Democracia Revisitada, vol. 2. São Paulo: Edi-tora Ática, 1994, pp 59-106.

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bibliografia complementar

ANDRIOLI, Antonio Inácio. A ideologia da “liberdade” liberal. Revista Espaço Acadêmico. Disponível em <www.espacoacademico.com.br>.

VICENT, Andrew. Ideologias políticas modernas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995, pp. 33-64.

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aula 9. esTado e demoCRaCia

i. liberalisMO: UMa dOUtrina dO estadO liMitadO?

Um primeiro aspecto é mostrar que as raízes da concepção de Estado liberais confundem-se com o movimento do constitucionalismo, uma vez que este elabora os princípios e mecanismos jurídicos que irão limitar a esfera do Estado para que suas ações estejam voltadas unicamente para a proteção da liberdade e da proprie-dade privada, conforme foi expresso no artigo 2º da Declaração dos Direitos do Homem e do Cidadão de 1789: “A finalidade de toda associação política é a conser-vação dos direitos naturais e imprescritíveis do homem. Esses direitos são: a liberdade, a prosperidade, a segurança e a resistência à opressão”.

Assim posto, discutir-se-á como o Estado surge quando os indivíduos consen-tem em ceder parcela de sua soberania a um ente que terá como único fim lhes proteger contra os ataques à sua individualidade e à sua propriedade. Um aspecto fundamental a ser abordado é o ápice do processo laicizante do Estado: rompe-se, assim, com os fundamentos de soberania do Estado baseada no direito divino dos reis, passando-se a entender que todo fundamento de legitimidade do Estado encontra-se na sociedade. Aqui serão enfatizados os dois fundamentos do Estado liberal: o contrato social e a soberania popular.

Comumente se diz que o liberalismo é uma doutrina do Estado limitado porque é um Estado com poderes limitados – Estado de direito – e com funções limita-das – Estado mínimo. No que toca à limitação de poderes, será avaliado como a proposta liberal delineia, contraposto ao Estado absoluto anterior, um Estado de direito submetido às leis gerais do país (como limite formal) e aos direitos naturais fundamentais constitucionalizados (como limite material).

Para o funcionamento desse Estado de direito, avaliar-se-á como foram formula-dos os mecanismos constitucionais de tripartição e controles recíprocos entres os poderes. Assim sendo, o executivo é controlado pelo legislativo, cujos atos (leis) são monito-rados por um poder jurisdicional independente dos outros dois poderes. Aqui será promovido o debate se de fato desta forma tenta-se afastar o arbítrio estatal sobre a liberdade individual.

Ainda neste tópico será levada em consideração a limitação das funções – Estado mínimo –, os mecanismos de direito devem restringir a atuação do Estado às áreas que assim foram consentidas pela soberania popular, quais sejam, a proteção da vida, da liberdade e da propriedade – enfim, a proteção dos direitos individuais. Será que tudo o que for para além desses objetivos será considerado ilegítimo e causa para a dissolução do governo?

Todavia, será avaliado se o Estado de direito e Estado mínimo conformam ou não uma unidade conceitual, conforme se pode constatar pela existência de modelos de Estado de direito que não sejam minimalistas (como, por exemplo, o Estado de bem-estar social) e de Estados mínimos que não sejam de direito (o Leviatã, de Hobbes).

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A propriedade, como visto, é compreendida como extensão do próprio corpo do indivíduo e, portanto, sua proteção é pré-requisito do desenvolvimento da pessoa. Por isso, discutir-se-á se é papel de uma sociedade liberal garantir a todos o acesso à propriedade e a proteção jurídica contra possíveis turbações. Importante destacar que garantir o acesso não quer dizer garantir o usufruto, uma vez que, para os libe-rais, os frutos dependem exclusivamente da capacidade do indivíduo.

ii. deMOCraCia liberal

O padrão atual hegemônico da democracia liberal faz crer que haja uma interde-pendência essencial entre esses dois termos. Será analisado se por liberalismo pode-se compreender uma determinada concepção de Estado com poderes e funções limi-tados – contraposto, pois, aos modelos absolutistas e de bem-estar social. Por outro lado, por democracia há um entendimento que se trata de uma forma específica de governo em que o poder não está monopolizado por um monarca ou aristocracia. (Bobbio)

Há fortes argumentos de que os governos democráticos, porque mais limitados e controlados, garantiriam mais os direitos naturais/fundamentais. Discutir-se-á se é por essa via que os liberais tendem a aceitar a democracia como uma forma de governo e passam a conceber os direitos políticos como uma extensão natural das liberdades individual e civil.

Aproveitando-se do argumento que já era encontrado em Rousseau – de que a democracia direta somente se viabilizaria em um Estado de pequenas proporções, cujos cidadãos tivessem grande igualdade de condições e fortunas, costumes sim-ples, sem nada de luxo –, os liberais concluem que a democracia representativa seria a única possível nos Estados nacionais modernos. Desse modo, os liberais passam a compreender que, não sendo possível a democracia direta, seria necessário eleger representantes para o exercício efetivo do poder.

Com base em tais premissas, questionar-se-á se o modelo liberal converteu a democracia – que para os antigos significava “governo do povo” – em uma forma de governo em que o poder é delegado a um pequeno número de indivíduos de prova-da sabedoria que estariam em condições de avaliar e gerir os interesses de todos os cidadãos – isto é, converte democracia em oligarquia.

Dessa forma, ainda como parte deste debate, será indagado se os liberais man-tiveram suas desconfianças quanto a um governo popular e, por isso, tornaram-se férreos defensores do padrão representativo e do sufrágio restrito.

Segundo o sentido dado por Rousseau, a vontade geral, de fato, não seria a soma das vontades individuais, mas, sim, um novo ente composto durante a deliberação democrática. Porém, bem se sabe, os representantes eleitos não se vinculam aos seus eleitores, mas, ao contrário, devem, teoricamente, expressar a vontade da nação. As-sim, refletir-se-á se seria possível afirmar a criação de uma abstração chamada vontade geral, que seria administrada pelo Estado e pelos representantes eleitos e serviria de justificação dos atos da classe dirigente.

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Dessa conjunção entre liberalismo e democracia, discutir-se-á a construção de um novo padrão de igualdade mínimo necessário à democracia.

Ainda neste tópico será abordado o surgimento da corrente do neoliberalismo, a doutrina política do liberalismo, compreendida apenas como um instrumental para se realizar o liberalismo econômico – livre mercado, livre iniciativa, intervenção mí-nima do Estado.

iii. exerCíCiOs: pesqUisar Os prinCípiOs liberais nO OrdenaMentO jUrídiCO brasileirO

bibliografia básica

BOBBIO, Norberto, Liberalismo e democracia. São Paulo: Editora Brasiliense, 7. ed, 2000.

bibliografia complementar

DAHL, Robert. Poliarquia. São Paulo: Edusp, 1999.RAWLS, John, & HABERMAS, Jürgen, Debate sobre el Liberalismo Político. Bue-

nos Aires: Paidos, 1998.SARTORI, Giovanni. A Teoria da Democracia Revisitada, vol. 2. São Paulo: Edi-

tora Ática, 1994, pp 34-58 e pp.145-184.

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aula 10. liBeRalismo no BRasil

i. qUestões para a disCUssãO na perspeCtiva CrítiCa da História

Somente depois da Revolução de 1930 e com um novo arranjo político das elites é que foram reconhecidos os direitos sociais no Brasil. Discutir a máxima atribuída às nossas elites: “façamos a revolução antes que o povo a faça”. O reconhecimento de direitos sociais no período pós-1930 por governos populistas teriam a missão de acalmar as massas?

Discutir o trecho de Florestan Fernandes que aponta como a causa da ineficiên-cia revolucionária na América Latina o casamento de interesses das elites com os das classes médias que portavam alguns ideais revolucionários.

“Excluindo-se Cuba, a experiência chilena e algumas manifestações verdadeira-mente políticas da guerrilha, a América Latina foi o paraíso da contra-revolução (da contra-revolução mais elementar e odiosa, a que impede até a implantação de uma democracia-burguesa autêntica). (...)

Os partidos que deveriam ser revolucionários (anarquistas, socialistas ou comu-nistas) devotaram-se à causa da consolidação da ordem, na esperança de que, dado o primeiro passo democrático, ter-se-ia uma situação histórica distinta. Em suma, bateram-se pela democracia-burguesa (...)

O diagnóstico correto, embora terrível para todos nós, é que nunca fizemos o que deveríamos ter feito. Os “revolucionários” quiseram manter seus privilégios, ou os seus meio-privilégios, sintonizando-se com as elites no poder e com as classes do-minantes. Formaram a sua ala radical, sempre pronta a esclarecer os donos do poder sobre o que certas reformas implicariam, para evitar uma aceleração da desagregação da ordem e os seus efeitos imprevisíveis...

Não estou inventando. Voltamos as costas à organização da revolução e auxilia-mos a contra-revolução, uns mais, outros menos, uns conscientemente, outros sem ter consciência disso. E a “massa” da esquerda tem os olhos fitos no desfrute das vantagens do status de classe média. O que ameaça esse status entra em conflito com o socialismo democrático”.

(Florestan Fernandes. Apresentação. In: LÊNIN. Que fazer? SP: Hucitec, 1979)

ii. prinCípiOs liberais nO direitO brasileirO

análise da adaptação das idéias liberais européias:

I. A estrutura política patrimonialista-conservadora – importada pelos filhos da elite que se ilustravam na Europa.

II. A estrutura econômica escravista e agrária, próprias do Brasil.

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Distinção entre o liberalismo europeu e o brasileiro:

I. Em sua origem européia, o liberalismo se apresentava como uma ideolo-gia revolucionária, articulada por setores emergentes contra os privilégios da nobreza e contra as relações econômicas feudais; enfim, inicialmente uma doutrina política libertadora contra o absolutismo que, contudo, com o pas-sar do tempo tornou-se conservadora na medida em que o proletariado lhe ameaça os privilégios obtidos.

II. Contrariamente, o liberalismo no Brasil foi adaptado, desde sua chegada, para servir como uma justificação racional dos interesses das oligarquias, dos grandes proprietários, do clientelismo e do monarquismo. Isto se deve ao fato de no Brasil não ter havido uma revolução burguesa tal qual ocorrera na Inglaterra, nos EUA e na França que alterasse as bases sociais, políticas e econômicas para o desenvolvimento do liberalismo.

Perspectiva Crítica: O paradoxo do projeto liberal brasileiro

qUestões

a) Debate: Liberalismo X Patrimonialismo. Apesar de comportar uma proposta de progresso e de modernização como caminho para superar o colonialismo, aceitou a propriedade escrava e a estrutura patrimonialista de poder?

b) Liberalismo Conservador: Clientelismo? Indagação acerca de que se essa tensão entre o liberalismo e o patrimonialismo resolveu-se pela via do liberalismo conservador, via esta que conciliou a cultura do “favor” clientelista com a cultura jurídico-institucional formalista, retórica e ornamental.

c) Polêmica a ser levantada na discussão: Se até 1822 os liberais no Brasil lutavam mais propriamente contra o domínio português, e não contra as estruturas econômicas e sociais, após a independência revestiram com argumentos ra-cionais a fachada do absolutismo reformista vigente.

proposta de debate

O liberalismo brasileiro pode ser identificado com os valores conservadores, eli-tistas, antidemocráticos, antipopulares, mantendo as formas jurídicas autoritárias, formalistas e ornamentais – enfim, o contrário do que se pretenderam os primeiros liberais europeus?

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bibliOgrafia básiCa

ALONSO, Angela. Idéias em movimento: a geração de 1870 na crise do Brasil-Im-pério. São Paulo: Paz e Terra, 2002, pp.104-120.

Entrevista com Jacob Gorender. “Liberalismo e Escraviao” In Estudos Avança-dos. vol.16 no.46 São Paulo Sept./Dec. 2002 (http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S0103-40142002000300015&script=sci_arttext)

bibliOgrafia COMpleMentar

GOMES, Orlando, Raízes históricas e sociológicas do código civil brasileiro. São Paulo: Martins Fontes, 2003.

WOLKMER. História do Direito no Brasil. Cap. 3. Rio de Janeiro: Editora Fo-rense, 3 ed. 2005.

links e sites

www.institutoliberal.org.brhttp://www.liberal-social.org/principioswww.udr.org.br [depjurídico]www.pl.org.br [institucional]www.udr.org.br

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aula 11. exeRCíCios: Reflexões, PaRalelos e asCendênCias do liBeRalismo no diReiTo

i – reflexões, paralelOs e asCendênCias dO liberalisMO nO direitO

nas principais ideologias jurídicas

a. Positividade dos Direitos Naturais. Como exposto por LYRA FILHO, a bur-guesia ao contestar o poder aristocrata feudal defendeu a existência dos di-reitos naturais como sendo um direito legítimo acima das leis aristocráticas que não lhe favorecia. Em outras palavras, disse que Direito é mais do que a lei imposta pelo monarca. Contudo, uma vez conquistado o poder, a bur-guesia passa a defender a ordem vigente que lhe é favorável, não admitindo a existência de quaisquer outros direitos fora, além ou acima de seu próprio “direito”. Desse modo, o que antes eram apresentados como direitos naturais é reduzido à positividade da lei que é promulgada segundo seus interesses.

b. Duas etapas das ideais liberais: I. Num primeiro momento foram calcados na pré-existência do indivíduo e de direitos naturais, o que levou a consi-derar o Estado como mero mecanismo de proteção desses direitos. II. Em um segundo momento, o liberalismo, enquanto a ideologia de uma classe em ascendência, aproximou-se ainda mais do constitucionalismo de modo a positivar, estatificar, os direitos naturais. Pode ser vista essa preocupação como mais uma garantia (formal) concedida pelo Estado burguês aos direitos naturais, ou como um estratagema de restringir a descoberta ou a leitura de novos direitos naturais por outras classes.

c. Jusnaturalismo e juspositivismo. Neste quadro teórico se analisará de que for-ma o liberalismo serviu-se tanto do jusnaturalismo quanto do juspositivismo. O primeiro quando ainda era uma ideologia em ascensão, e o segundo quan-do já hegemônico para sua manutenção. Esta dupla leitura dos direitos pode ser exemplificada com os principais institutos jurídicos contemporâneos.

Exercício: Um exercício exegético e crítico dos direitos de personalidade e os direi-tos individuais positivados e, em especial os referentes à liberdade e à propriedade:

a. No campo civil, observar os requisitos de validade do contrato e suas causas de nulidade. Ainda observar as formalidades para aquisição da propriedade imóvel, as formas de sua perda e os instrumentos processuais de proteção.

b. No campo criminal, observar a proporcionalidade entre os crimes contra o patrimônio e os crimes contra a pessoa.

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unidade iii – soCialismo

aula 12. oRigem e ConTexTualizaÇÃo do soCialismo

“Estou à espera, em dias não muito remotos, da maior mudança que já ocorreu no âmbito material da vida, para os seres humanos no seu conjunto. Nos vemos livres para voltar a alguns dos maiores seguros e tradicionais princípios da religião e da virtude tradicional – de que a avareza é um vicio, a usura uma contravenção, o amor ao dinheiro algo detestável. Valorizemos novamente os fins acima dos meios e preferimos o bem ao útil. Honraremos os que nos ensinam a passar virtuosamente e bem a hora e o dia, as pessoas agradáveis capazes de ter um prazer direto nas coisas, os lírios do campo não mourejam nem fiam”. (John Maynard Keynes)

CasO: fórUM sOCial MUndial: a reinvençãO da pOlítiCa

Exercício: pesquisar documentos do Fórum Social MundialSite para consulta: http://www.forumsocialmundial.org.br/

tópicos para debate

• OFórumSocialMundial:fimecomeçodasutopias• Fimdosocialismoereinvençãodapolítica• Etimologiadapalavrasocialismo• Socialismorevolucionário:materialismohistóricoelutadeclasses• Conflitoedivisãosocialdotrabalho• Social-democracia:Estadocapitalistaeobjetivossocialistas

i. OrigeM e COntextUalizaçãO HistóriCa dO pensaMentO sOCialista

Etimologicamente, o termo socialismo tem sua origem em duas palavras latinas, o que, inicialmente, já nos revelam dois sentidos. “Sociare” diz respeito ao comparti-lhar, ao companheirismo, à comunidade. A segunda palavra latina, “societas”, refere-se a indivíduos livres que firmam um contrato obrigando-se entre si.

Conceitos conexos abordados

Outros termos encontram-se intimamente ligados à ideologia do socialismo, ainda que nem sempre propostos por pensadores ou em contextos socialistas. Veja-mos alguns: a) o coletivismo consiste em uma estratégia de uso do Estado de forma planejada e centralizada no controle da economia e da sociedade civil; b) comunis-mo, termo que pode se referir i) a uma organização primitiva em que o consumo era regulado de forma igualitária; ou ii) a uma etapa madura da revolução socialista,

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tal qual descrita por Marx, em que não haveria mais classes nem Estado; c) o termo social-democracia está mais relacionado com a corrente do socialismo reformista que propõe mudanças no Estado capitalista para se alcançar objetivos socialistas.

ii. a tipOlOgia dO pensaMentO sOCialista

Não se pode dizer que haja um e genuíno socialismo (nem mesmo o marxismo), mas vários socialismos. Assim, propõe-se compreender as origens do pensamento socialista a partir de grupos:

a) Socialismo utópico: associado a Saint-Simon, Fourier e Owen, pensadores estes que tentaram descrever, minuciosamente, e de fato projetar comunidades alter-nativas nas quais se superaria a exploração e imperaria a harmonia entre os homens.

b) Socialismo revolucionário – A contribuição de Marx: materialismo his-tórico e luta de classes: aqui se apresentam as correntes de maior consistência teórica e política, todas identificadas com o pensamento marxista. Partem de uma análise histórica das sociedades, revelando que as condições materiais econômicas conformam a base de todas as estruturas políticas e sociais e a própria consciência humana. Ou seja, as relações de produção são os alicerces das superestruturas políti-ca, jurídica e cultural. Nesse quadro, o Estado, como superestrutura, reflete a luta de classes, conflito este que surge com a divisão social do trabalho, é reproduzido pelo uso privatístico da propriedade privada e que encontrará seu termo final somente com a derrocada revolucionária do capitalismo.

Como variante, temos as correntes “pluralistas” ou sindicalistas, que atribuem o fracasso das experiências socialistas ao fato de se ter atribuído unicamente ao Estado a missão de implementar o socialismo. Defendem que o socialismo só terá lugar a partir de uma “pluralidade” de agentes, e não somente o Estado. Confia-se, então, a missão implementadora às associações, grupos e sindicatos de trabalhadores. Aqui temos Lênin (todo poder aos soviets), Gramsci (gestão sindical) e os anarquistas – to-dos propondo uma revolução para além do Estado.

c) Socialismo reformista: surge de forma mais vigorosa no pós-1945 em uma onda revisionista dos preceitos marxistas. Apresentando a social-democracia e o Esta-do de bem-estar social como alternativas à revolução socialista, ou seja, pretende por estas instituições alcançar os ideais socialistas apesar de em um contexto de econo-mia de mercado e de Estado liberal. Nos anos 90, com o fim da era bipolar, a via re-formista torna-se a opção hegemônica para a implementação de ideais socialistas.

O socialismo ético é uma variante do socialismo reformista que, contudo, colo-ca ênfase na dimensão ética, melhor dito, não se é contra o capitalismo por se ele ineficiente, mas porque é eticamente deficiente. Nessa visão, as reformas sociais via os procedimentos democráticos não são suficientes para se alcançar os objetivos socialistas. Para isso, defendem que a mudança moral precede qualquer forma de

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mudança política. Suas principais fontes teóricas estão no marxismo humanista e no socialismo cristão.

d) Socialismo de mercado. Por fim, o socialismo de mercado, por contraditório que possa parecer, entendeu, a partir do fracasso das experiências do socialismo re-formista e do revolucionário no século XX, que o mercado tem um poder alocatório melhor que o apresentado pelo Estado. Ou seja, acreditam que não sendo o capi-talismo sinônimo de mercado, esse pode ser desacoplado dos objetivos capitalistas e redirecionado para a distribuição mais igualitária dos bens. Têm uma profunda desconfiança da ação do Estado e defendem que a tomada de decisão econômica seja descentralizada. Associam a esta frente tanto as redes de solidariedade do coo-perativismo comunitarista quanto os programas neoliberais de políticas compensa-tórias e de responsabilidade social empresarial.

iii. O ideáriO da igUaldade

Talvez a unidade conceitual das diversas correntes socialistas esteja na busca por igualdade. Segundo os pressupostos do materialismo histórico, a história humana é marcada pelo conflito de classes, isto é, uma classe detém a propriedade privada sobre os meios de produção e, com estes, explora todas as demais classes. Para o findar essa exploração do homem pelo homem, os socialistas defendem a revolução proletária e, pela ditadura do proletariado, a constituição de uma nova sociedade baseada na igualdade, isto é, uma sociedade sem classes em disputa, sem a violência do Estado ou do direito.

Contudo, é importante destacar que para os socialistas utópicos era possível a constituição de uma nova sociedade sem exploração conciliando com a existência de diferenças, hierarquias e classes desde que em uma ordem harmônica. Os valores da ordem e da harmonia são, portanto, mais prioritários que a igualdade.

Marx assinala que os argumentos e reivindicações normativas por igualdade con-sistiam em uma abstração ilusória do liberalismo burguês. Lembrava que em um primeiro momento a luta proletária consistia na defesa dos salários. Contudo, pos-síveis vitórias seriam sempre pontuais e efêmeras. Somente a partir de uma luta po-lítica, organizada a partir do partido dos proletários, poderia fazer frente ao sistema e ter suas demandas reconhecidas em uma nova estrutura econômica e política.

A igualdade comporta, ainda, outras concepções “socialistas”:Para o socialismo de mercado, a igualdade pode ser um valor a ser defendido

porque aumentaria a eficácia do sistema alocatício dos bens: em um mercado mais homogêneo o fluxo de trocas não tenderia a se acumular em um ponto em detri-mento dos demais.

Para o socialismo ético a igualdade está associada à igualdade cristã das almas, sendo todos criado em igual substancia, seríamos merecedores de igual considera-ção. Ao lado, os socialistas com uma vertente culturalista defendem a igualdade em outras dimensões para além da igualdade econômica material.

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Por fim, mas fundamental, é o debate entre igualdade e liberdade. Haveria uma relação causal entre ambas? Para alguns, a liberdade é condição (meio) para se atin-gir a igualdade (fim); para outros, a liberdade somente se realiza quando pressupõe a igualdade entre os homens.

Nesse quadro de idéias, qual é o papel da igualdade? Meio ou fim? Para os socia-listas reformistas, a realização da igualdade (fim) não se pode fazer às custas da liber-dade (meio). Contudo, para os revolucionários a liberdade é uma ilusão burguesa, pois somente se é verdadeiramente livre (fim) se livre de exploração e dispondo de igualdade material (meio).

iv. a prOpriedade para Os sOCialistas

O segundo conceito estruturante do pensamento socialista é uma concepção acerca da propriedade. Marx ensina que a origem do conflito de classes está na divisão social do trabalho e, conseqüente, apropriação privada e exclusiva dos bens de produção por uma classe, que os utiliza para a submissão e exploração de todas as demais.

Por isso, para o fim da exploração do ser humano é preciso acabar com o funda-mento dessa exploração, ou seja, acabar com a propriedade privada burguesa. As-sim, o primeiro passo pós-revolução é a coletivização dos bens de produção, isto é, orientar a reprodução material para o bem de todos e não de uma classe particular. Ou seja, deve-se abolir a propriedade privada que é utilizada única e exclusivamente para o proveito e acumulação individual.

Todavia, Marx lembra que “o que caracteriza o comunismo não é a abolição da propriedade geral, mas a abolição da propriedade burguesa”. Por isso, nos estados socialistas existem três tipos propriedades: a propriedade estatal, a propriedade co-munal ou cooperativa e a propriedade pessoal – essa última garantida para os rendi-mentos do trabalho, a casa e os objetos domésticos.

bibliOgrafia

MARX, Karl (1978). “Prefácio à contribuição para a crítica da economia políti-ca” In Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural.

_________ (2004). O Manifesto Comunista. São Paulo: Editora Boitempo.

bibliografia Complementar

PIANCIOLA, Cesare. “Socialismo”. In: BOBBIO, Norberto et alli, Dicionário de Política volume II. Brasília: Editora UNB, 2004

VICENT, Andrew. Ideologias políticas modernas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. pp. 93-103

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aula 13. soCialismo, esTado e naTuReza humana

CasO: a devastaçãO dO katrina. desigUaldade eCOnôMiCa, neCessidade e estadO

depois da tragédia, a degradação da alma humana

A devastação do Katrina: crise social lembra obras como “Leviatã”, de Hobbes, e “Ensaio sobre a cegueira”, de Saramago

Ausência de poder do Estado rompe sociedade organizada e deixa sobreviventes à mercê da barbárie de seus semelhantes

Primeiro foram os saques a farmácias e lojas de conveniências. Remédios, água e co-mida. Depois, começaram a aparecer caixas de cerveja abarrotando carros nas partes não submersas de Nova Orleans. Em questão de horas, joalherias e bares do turístico Bairro Francês passaram a ser o alvo. Começaram os casos de assaltos a casas abandonadas e a pessoas. Relataram-se espancamentos. Nos centros que reúnem refugiados, como o estádio Superdome, comida começou a ser roubada e, na sexta-feira, houve estupros. Helicópteros dos bombeiros que tentavam resgatar pacientes num hospital sem energia elétrica foram recebidos a tiros por assaltantes. No Centro de Convenções da cidade, seis esquadrões com 11 policiais cada um foram impedidos de entrar por bandidos armados.

À fúria da natureza, que varreu a costa de Louisiana, Mississipi e Alabama com o furacão Katrina, seguiu-se um processo de degradação humana que, para muitos, lembrou uma espécie de retorno ao estado de natureza, condição descrita pelo fi-losofo político inglês Thomas Hobbes como a fase do ser humano anterior à orga-nização social. Como no livro “Ensaio sobre a cegueira”, do escritor português José Saramago, em que uma epidemia de cegueira lançou uma cidade no caos devido à ausência de comando, cenas de vandalismo, banditismo e violência se multiplicam e a vida em sociedade acaba, ou se transforma numa guerra.

“necessidade do poder coercitivo do estado”

“Durante o tempo em que os homens vivem sem um poder comum capaz de mantê-los todos em temor respeitoso, eles se encontram naquela condição a que se chama guerra; e uma guerra que é de todos os homens contra todos os homens”, es-creveu Hobbes em seu livro “Leviatã”, publicado em 1651. “Desta guerra de todos os homens contra todos os homens também isto é conseqüência: que nada pode ser injusto. As noções de certo e errado, de justiça e injustiça, não podem aí ter lugar. Onde não há poder comum não há lei, e onde não há lei não há justiça. Na guerra, a força e a fraude são as duas virtudes cardeais”.

Hobbes, no entanto, possivelmente se surpreenderia com os acontecimentos numa das maiores cidades do país mais rico do mundo. No mesmo livro, ele afirma que a Humanidade nunca passou pelo estado da natureza.

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Especialistas consultados pelo GLOBO afirmam que as interações humanas em momentos de crise quando não existe um poder com força suficiente para se impor podem degenerar-se.

– É a lei do mais forte. O poder coercitivo deixou de existir. A sensação de im-punidade permite que as pessoas tentem satisfazer seus desejos mais imediatos. Por que deixar de beber cerveja? O dono da mercearia está morto, não há policiais para impedir – disse Williams Gonçalves, professor de relações internacionais da UFF. – Isso mostra a necessidade do poder coercitivo do Estado.

desigualdade econômica alimenta crise da sociedade

Gonçalves ressalta que, ao contrário do que está ocorrendo nas áreas afetadas, a população americana está demonstrando solidariedade, doando alimentos, roupas e dinheiro.

– Onde o Estado continua organizado, a sociedade está disciplinada, há senti-mento de solidariedade e compaixão. Agora, onde não há Estado, as paixões vêm à tona. Essa história que vemos nos filmes, primeiro idosos e crianças, isso não existe.

O sociólogo José Vicente Tavares dos Santos concorda com o fato de a ausência da coação institucional tornar possível cenas como as de Nova Orleans, e cita como exemplos as greves policiais em alguns estados brasileiros em 1997, 1999 e 2001, ou mesmo áreas carentes do Rio.

– Isso mostra uma crise das relações sociais na sociedade contemporânea. A falta de controle social democrático permite que apareça uma latente crise das relações sociais. O único recurso passa a ser um Estado policial, que é contrário à democra-cia, ao contrato social no qual o cidadão delega poder – critica ele.

Tavares dos Santos, presidente da Associação Latino-Americana de Sociologia, diz que há uma crise da sociedade contemporânea, provocada não apenas pela po-breza, mas principalmente pela desigualdade:

– Alguns chamam de modernidade líquida, são instituições como generosidade, solidariedade se liquefazendo. Uma perda da herança do Iluminismo.

Tom Dwyer, sociólogo neozelandês radicado no Brasil, concorda, dizendo que o fato de as pessoas se sentirem em desvantagem social é por vezes mais significativo que a pobreza em si. Mas alerta para o fato de a tragédia não necessariamente pro-vocar reações como a de agora.

– Não precisa ser assim. No apagão de Nova York em 1965, nada houve. Em 1977 houve outro apagão que teve resultado contrário. Na tsunami, não houve registro de saques. No Iraque, os saques foram generalizados.

A afirmação de Dwyer foi muito usada durante a semana por pessoas envolvidas na operação de resgate da tsunami no sul da Ásia.

– Estou enojada. Depois da tsunami, nosso povo, mesmo quem perdeu tudo, queria ajudar os outros que estavam sofrendo – disse Sajeewa Chinthaka, moradora de Colombo, no Sri Lanka, o país que, proporcionalmente, foi mais afetado pelo maremoto, à agência Reuters. – Com o que está acontecendo

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agora nos EUA podemos ver facilmente onde a parte civilizada da população mundial está.

Moacir Duarte, especialista em ações emergenciais da Coppe/UFRJ, diz que a violência e a barbárie em Nova Orleans são exceção e não regra em grandes catás-trofes, e talvez sejam reflexo da sociedade americana.

– Desde que o homem vive em sociedade a solidariedade, e não a barbárie, é a norma em grandes eventos catastróficos. Se não fosse isso, não sobreviveríamos. O que vemos em Nova Orleans é uma exceção, um provável sintoma do individualis-mo característico da sociedade americana.

O Globo. 04/09/2005, Caderno Mundo, p. 39.

qUestões

• “Ondenãohápodercomumnãohálei,eondenãoháleinãohájustiça.Naguerra, a força e a fraude são as duas virtudes cardeais”. (Hobbes). A barbárie em Nova Orleans seria mais uma comprovação da guerra de todos os homens contra todos os homens hobbesiana e do imprescindível poder coercitivo do Estado?

• Qualseriadefatoaorigemdanaturezahumana?Ohomeméumsersocialou egoísta? Há de fato uma natureza humana ou ela é uma construção so-cial?

• AviolênciaemNovaOrleanspodeseravaliadacomoreflexodasociedadeamericana?

• Ofatodeaspessoassesentirememdesvantagemsocialéporvezesmaissig-nificativo que a pobreza em si?

• Existeumvalorsocialsimbólicodapropriedade?• Oideáriodaigualdade.Interprete:“Desdequeohomemviveemsociedade

a solidariedade, e não a barbárie, é a norma em grandes eventos catastróficos. Se não fosse isso, não sobreviveríamos. O que vemos em Nova Orleans é uma exceção, um provável sintoma do individualismo característico da sociedade americana.”

i. OrigeM sOCial da natUreza HUMana

Os socialistas de modo geral têm uma visão otimista dos seres humanos; acre-ditam na perfectibilidade humana, na possibilidade de aprimoramento moral dos homens e na inevitabilidade do comunismo. Segundo o materialismo histórico, as raízes da natureza humana estão na vida social, nas condições materiais históricas comuns. Em outras palavras, o sujeito não preexiste em essência, mas é determina-do, construído, pelos processos históricos materiais.

É importante de ser dito que o socialismo apresenta-se como uma doutrina racional modernizadora, o que faz dela parte do projeto iluminista de explicar e

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transformar a realidade utilizando-se os princípios da razão, livre de superstição e de tradição. Nesse sentido Engels, quando da morte de Marx, declarou que “assim como Darwin descobrira a lei do desenvolvimento da natureza orgânica, Marx des-cobriu a lei do desenvolvimento da história humana”. O que demonstra a pretensão do pensamento socialista de descobrir as leis que governam a ação e a evolução humana.

2. a COnCepçãO sOCialista de estadO

Para os socialistas utópicos o Estado, enquanto ente de organização social, poderia ser substituído por uma administração pública, privada ou comunitária que eficien-temente mantivesse a ordem e a harmônica entre os homens. A dimensão política não era de todo importante; os objetivos do socialismo utópico estavam em garantir uma vida digna sem exploração e com distribuição eficiente de bens.

Nos escritos de Marx, as condições materiais são primordiais, ou seja, são a base das estruturas políticas e sociais. Assim o Estado é construído por e reflete o conflito de classes da base material. O Estado, assim, é o instrumento que promove a opres-são em favor da classe dominante.

O processo histórico dialético indicava que, com a revolução proletária, haveria um Estado de transição, fadado logo em seguida a desaparecer. Pois sendo o Estado e o direito superestruturas e meros instrumentos de dominação da classe dominan-te, findo o conflito entre classes, igualmente findar-se-iam aqueles.

Marx e Engels tinham uma concepção negativa da política. E, uma vez definido o Estado como instrumento de domínio da classe dominante, acreditavam que não bastava a substituição de uma forma “má” por outra “boa”, mas só se resolveria o problema do poder com a eliminação de qualquer forma de governo “político”. Enfim, a extinção do Estado significava também o fim da política. Nesse sentido, o mundo comunista seria um mundo puramente “econômico”, de distribuição e fruição isonômica dos bens.

Um aspecto importante a ser avaliado é que a originalidade de Marx está em denunciar que o Estado é tão somente um instrumento e é um instrumento que serve à realização de interesses particulares de uma classe – e não interesses gerais, como entendia o pensamento político até então. De Hobbes a Hegel, todos viam o estado como a mais alta forma de convivência entre os homens. Para Marx, ao contrário, o estado, longe de superar o estado de natureza é, num certo sentido, sua perpetuação, enquanto é, como estado natural, o lugar do antagonismo permanente e insolúvel. Assim, para abolir definitivamente o estado natural é necessário não aperfeiçoar o Estado, mas aboli-lo.

Contudo, com o passar do tempo, tanto os teóricos quanto os políticos tende-ram a confiar demasiadamente a missão socialista ao Estado, reduzindo, assim, a proposta comunista ao tão só coletivismo dos meios de produção.

Uma questão fundamental diz respeito aos atores geradores do socialismo. Para Marx, esse papel deveria ser desempenhado pela “classe trabalhadora”. Para Lênin,

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haveria uma elite revolucionária de vanguarda que introjetaria a consciência revolu-cionária na classe trabalhadora. Para Gramsci, haveria ainda um papel importante a ser exercido pelos intelectuais engajados com a causa socialista: produzir uma ide-ologia contra-hegemônica. Para Mao Tse Tung, seria o campesinato a classe revolu-cionária. E para os reformistas, seria a burocracia especializada, os agentes internos ao Estado.

bibliOgrafia:

MARX, Karl (1978). “Prefácio à contribuição para a crítica da economia políti-ca” In Os pensadores. São Paulo: Abril Cultural.

_________ (2004). O Manifesto Comunista. São Paulo: Editora Boitempo.

bibliOgrafia COMpleMentar

BOBBIO, Norberto. Qual socialismo?: debate sobre uma alternativa. São Paulo: Paz e Terra, 3 ed., 1983.

VICENT, Andrew. Ideologias políticas modernas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. pp. 103-120.

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aula 14. soCialismo e demoCRaCia

CasO: a sOCial deMOCraCia COMO fenôMenO HistóriCO (adaM przewOrski).

i. socialismo e democracia

A democracia não parece ser um tema central para o socialismo. Ao contrário, considerada como uma superestrutura ou mais uma ilusão burguesa, há sérias des-confianças quanto ao padrão representativo e legitimidade das decisões.

Contudo, para o socialismo reformista os avanços socialistas devem se dar por meio da democracia representativa – processo eleitoral e reformas constitucionais graduais – através da qual se torna possível conquistar o Estado e utilizá-lo com o propósito de aumentar a eficiência social e econômica.

Nessa trilha foi concebido o Estado de bem estar social, um modelo de Estado voltado para a garantia de níveis mínimos de renda, alimentação, saúde, educação.Garantias que são asseguradas a todos os cidadãos, não como caridade, favor ou boa vontade do governo, mas como um direito. Esses direitos sociais foram sen-do reconhecidos e realizados conforme a democracia se alargava e possibilitava aos movimentos sociais expor ao Estado e inserir no processo legislativo suas demandas sociais.

Dois princípios guiam esse modelo: a universalidade e a interdependência. O Princípio da Universalidade obriga o Estado a garantir a todos, independentemente de seu status social, o mínimo existencial positivado como direitos sociais. O Prin-cípio da Interdependência de direitos reconhece que sem a efetividade dos direitos sociais prestacionais os direitos individuais não podem se realizar plenamente.

Contudo, esse tipo de intervenção estatal na melhoria das condições de vida da sociedade sempre foi vista como ameaças ou obstáculos à livre iniciativa liberal. O Estado não deveria, segundo os liberais, se imiscuir nos circuitos de produção e de distribuição de bens. Contudo, foi exatamente por essa via que os reformistas encontraram os meios para a realização dos ideais socialistas em uma economia de livre mercado.

Todavia, para a garantia dos direitos sociais, o Estado cresceu desmensuradamen-te e, a partir da década de 70, começa a apresentar déficits fiscais em decorrência dos custos dos direitos sociais. Esse desequilíbrio contábil leva diversos Estados de bem estar a restringir sua intervenção, de modo que, nos anos 80, ressurgem as propostas liberais de reestruturação do Estado para minimizar a crise fiscal e reduzir os direitos sociais. Desburocratização e desregulamentação tornam-se as palavras de ordem.

De conclusão, pode-se observar uma certa incompatibilidade presente no Estado de bem estar social em atender simultaneamente as demandas da sociedade (direitos prestacionais) e as demandas de mercado (economia livre).

Contudo, seguindo Bobbio, deve-se refletir que a experiência histórica mostrou que um sistema socialista surgido de modo não-democrático (ditadura do proleta-riado) não consegue transformar-se em um sistema político democrático, e igual-mente mostrou que um sistema capitalista não se transforma em um socialista pela

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via democrática de eleições e reformas legislativas – no máximo organiza-se como um welfare state com prazo de validade determinado.

Enfim, propor a discussão: se por um lado a democracia capitalista é um método para se barrar os avanços socialistas, por outro lado, a concentração de poder no partido único torna extremamente difícil a realização da democracia nos Estados socialistas.

Bobbio apresenta, ainda, a seguinte questão: a União Soviética teria sido um estado socialista? Para os defensores do socialismo, certamente não, ou pelo menos não plenamente. Porém, para os anti-socialistas, certamente o foi, e isso ratifica a incompatibilidade entre democracia e socialismo.

ii. surgimento e consolidação das idéias socialistas no direito: positivação dos direitos sociais

a. Positivação das demandas sociais. O socialismo tem por base o materialismo histórico, o que por si só já explica a não pré-existência de direitos sociais fora do processo dialético de luta de classes. Nesse sentido, as leis trabalhistas inglesas no século XIX foram as primeiras legislações que recepcionaram os princípios socialis-tas. Tais leis vinham reconhecer as demandas dos trabalhadores que reivindicavam frente ao Estado absenteísta e ao mercado garantias mínimas de trabalho e de sobre-vivência. Os trabalhadores, organizados em sindicato, utilizaram a greve como seu principal instrumento de pressão; produção paralisada significava perda de lucros para o capitalista e um risco de revolta contra o Estado.

Esses temores levaram a positivação das demandas sociais. Esse processo funcio-nou como um acordo, mediado pelo Estado, entre a classe dominante e as classes exploradas para a manutenção do status quo. A positividade das demandas tem o condão de aferir legitimidade a exploração até que novas demandas se desenvolvam e requeiram novos acordos, novos direitos.

b. Direitos individuais e direitos sociais. É importante contrastar as diferenças entre os direitos individuais e os direitos sociais. Enquanto os direitos individuais se caracterizam como “direitos subjetivos”, ou seja, uma garantia do indivíduo de po-der-fazer oponível contra todos, observa-se que os direitos sociais são oponíveis tão somente contra o Estado, mais especificamente contra o poder executivo, e muito mais sob forma de pressão social do que em formas institucionalizadas.

Quando ameaçados ou violados os direitos individuais gozam de diversos insti-tuições e instrumentos processuais de garantia. Todavia, não existem instrumentos processuais tão facilmente manejáveis para os direitos sociais. Excetuam-se certos direitos trabalhistas que podem ser interpostos no judiciário contra o emprega-dor porque, aí, são facilmente reconhecidos os pólos passivo e ativo da demanda. Quanto aos outros direitos sociais, somente por meio de ações coletivas podem ser efetivados judicialmente contra o Estado e, mesmo assim, quando não prevalece o princípio de discricionariedade do poder executivo.

Essa prevalência da discricionariedade do poder executivo transforma os direitos sociais, muito das vezes, em normas programáticas – o que implica dizer que são

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direitos dependentes da vontade política ou liberdade de escolha do executivo. Ora, se os direitos sociais tornam-se dependentes da vontade política do governo perdem sua natureza de direito. Ou são direitos, ou são benesses do Estado.

Essas diferenças podem ser explicadas em parte pelo fato de os direitos sociais terem surgido como demanda dos movimentos sociais, ou seja, como um discur-so contra-hegemônico. Contudo, mesmo quando positivados, as demandas sociais não deixam de contrastar com a ordem jurídica, que foi estruturada primeiramente pelos princípios liberais e posteriormente revista sob os princípios sociais.

iii. exerCíCiOs: analisar prinCípiOs sOCialistas nO OrdenaMentO jUrídiCO brasileirO

bibliografia básica

PRZEWORSKI, Adam. “A social-democracia como um fenômeno histórico”. In: Capitalismo e social democracia. São Paulo: Cia das Letras, 1999. Cap 1 (pp 19 a 65)

bibliografia Complementar

ELEY, Geoff. Forjando a Democracia: a história da esquerda na Europa, 1850 – 2000. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2005.

CARONE, Edgard, Socialismo e anarquismo. São Paulo: Vozes, 1996.DAVID, René, Os Grandes sistemas do direito contemporâneo. Trad. Hermínio

Carvalho. São Paulo: Marins Fontes, 2002.GOMES, Orlando, Raízes históricas e sociológicas do código civil brasileiro. São

Paulo: Martins Fontes, 2003.

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aula 15. TRadiÇÃo soCialisTa e PolíTiCa de esqueRda hoje

CasOs: a “esqUerdizaçãO” da aMériCa latina

Exercício: Analisar os movimentos atuais de esquerda na América Latina

exemplo: O programa socialista hoje

Uma segunda proposta de trabalho pretende atualizar o programa político e os prin-cípios socialistas delineados a partir do Manifesto Comunista. Para tanto, servirão de subsídio dois movimentos convergentes na crítica aos efeitos perversos da globalização:

O “Movimento ao Socialismo”, corrente política boliviana que surge da base dos movimentos sociais indígenas, avulta-se com a mobilização da população para a de-posição dos últimos presidentes bolivianos e atinge prestígio interno e externo ao ele-ger Evo Morales primeiro presidente indígena no continente americano. Em paralelo para a análise, apresenta-se a Declaração Final da III Cúpula dos Povos da América que, produzida em Buenos Aires em contraponto à Cúpula das Américas [reunião dos chefes de Estado], serve de ponto de referência à vitória dos movimentos sociais na luta pelo fim das negociações da ALCA (Área de Livre Comércio das Américas) e for-talecimento das propostas de uma ALBA (Alternativa Bolivariana para as Américas).

Princípios do “Movimiento al socialismo”www.mas.org.bo

Declaración final de la III Cumbre de los Pueblos de Americahttp://www.cumbredelospueblos.org/article.php3?id_article=124

questões:

• OqueexplicaarecenteviradapolíticaàesquerdanaAméricaLatina?• Apósumlongoperíododehegemonianeoliberal,anovatendênciaesquer-

dista na América Latina seria o reflexo de lutas sociais comprometidas com soberania e a integração regional?

• A esquerdaquandonopoder temdemonstradomoderação ebom senso?Uma possibilidade de redesenhar o mapa político da América Latina?

• Democraciaesocialismo:críticaaolivremercadoeaocapitalismo?• Estatendênciadeesquerdizaçãoteriademonstradoqueosprincípiosestru-

turais do neoliberalismo – estabilidade macroeconômica, abertura da eco-nomia, redução do papel do Estado e ajuste estrutural – comporta efeitos destrutivos e regressivos?

• Apresentadacomoconseqüênciainevitáveleindesejáveldocaminhodarecupe-ração dos países, a pobreza seria, na verdade, uma produção deste receituário?

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• Interprete: “A devastação neoliberal, imposta pela ditadura financeira, resul-tou na explosão de insatisfação e revolta na região. O desejo de mudanças, de superação do neoliberalismo, tem levado os “excluídos” a votarem em milita-res rebeldes, em operários sindicalistas e em líderes camponeses. A frustração desta esperança, entretanto, pode reverter a alentadora guinada à esquerda da América Latina em luta por soberania, integração, democracia e justiça social.”

i. desafiOs aO sOCialisMO

Um ponto unificador das vertentes do socialismo a ser abordado nesta aula con-siste na crítica ao livre mercado e ao capitalismo. Em alternativa, propõem uma economia planejada e centralizada pelo Estado, isto é, coletivismo. (livre mercado, liberalismo, expansão capitalista, exploração do proletário X economia planejada, pro-dução orientada para o bem comum, igualdade).

Se na antiguidade, a economia era considerada um conjunto de regras para go-vernar bem a família, estando, pois, subordinada à política, na modernidade a eco-nomia se emancipa da esfera política e, segundo o materialismo histórico, é deter-minante da esfera política. Dessa forma, o ideal comunista de extinção do Estado revela uma pré-compreensão de dispensabilidade da política – o Estado como mero instrumento de dominação. Ou outras palavras, o ideal comunista de fim do estado é também o fim da política. (Bobbio)

bibliOgrafia básiCa

ELEY, Geoff. Forjando a Democracia: a história da esquerda na Europa, 1850 – 2000. São Paulo: Fundação Perseu Abramo, 2005, pp 535-557.

atividade COMpleMentar

Leitura: George Orwell. Revolução dos bichos.

links e sites

www.mst.org.brwww.vermelho.org.brwww.cut.org.brwww.psol.org.br

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aula 16. exeRCíCios: Reflexões, PaRalelos e asCendênCias do soCialismo no diReiTo

i. reflexões, paralelOs e asCendênCias dO sOCialisMO nO direitO

questões para a discussão na perspectiva critica da história.

1. A hegemonia do patrimonialismo, patriarcalismo e clientelismo, sob a for-ma de um liberalismo conservador, adiaram o máximo possível o reconhe-cimento dos direitos sociais no Brasil. Sabidamente o Código Civil de 1916 foi uma obra do liberalismo clássico associado ao patrimonialismo colonial brasileiro.

Segundo as palavras de Clóvis Beviláqua, a regulamentação de serviços de-veria se traduzir em “normas gerais e amplas para que dentro delas as classes e os indivíduos desenvolvam livremente suas energias úteis”. Ou seja, dever-se-ia respeitar os pressupostos do liberalismo: individualismo e liberdade de contratar.

Após 86 anos, aprovou-se um novo Código Civil (2002). Teriam, então, sido atualizado os institutos jurídicos sob a perspectiva dos ideais socialistas? Para responder, observar comparativamente os seguintes institutos: propriedade, contrato, família.

2. Compreender como o processo de democratização nos anos 80 como um processo de afirmação de demandas sociais. Observar como os movimentos sociais orientaram suas ações para a proposição de suas demandas à Assem-bléia Constituinte como um passo para a institucionalização dos direitos sociais.

3. Fazer um estudo em perspectiva dos estatutos aprovados na década de 90 como regulamentação dos artigos constitucionais. Estatuto da Criança e do Adolescente, Lei da Assistência Social, Lei do SUS, Estatuto da Cidade, Es-tatuto do Idoso, Código de Defesa do Consumidor, Lei de Diretrizes e Bases da Educação, Lei da Reforma Agrária, etc.

4. Como se apresentam as demandas por direitos sociais? Quais as propostas de mudanças rumo ao socialismo? Existe um projeto socialista, hoje? O sindica-lismo ainda se apresenta como portador da ideologia socialista? Há partidos políticos portadores de um projeto socialista para o Brasil?

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aula 17. TeRminologia e esPeCTRo

“Quando o sistema é injusto, se quisermos ser sérios temos que ser marginais.” Roberto Lyra Filho

CasO: tUtte bianCHe. O COrpO COMO arMa da desObediênCia Civil

A desobediênciA civil AtivA! UmA bAtAlhA inspirAdA nos zApAtistAs

“Os Tutte Bianche (macacão branco) chegaram a Praga para participar dos pro-testos contra o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM). Centenas de jovens ativistas italianos dos Centros Sociais, da Associação Ya Basta, parlamentares e até religiosos, executaram novidades táticas de desobediência ci-vil frente à polícia checa, que lhes jogou gases e espancou com seus cacetetes. A imaginação política e o traje – ou a falta dele – destes globalifóbicos chamaram a atenção dos jornalistas e surpreenderam aos manifestantes de outros países que os acompanhavam.

Duas forças se encontraram corpo a corpo na ponte Nusle de Praga, cada uma defendendo uma idéia de mundo diferente. De um lado, um contingente de ho-mens e mulheres vestidos com trajes brancos, protegidos com espuma, cascos, máscaras antigases, escudos feitos com tampas de lixo e toda uma parafernália de instrumentos dos mais incríveis, desde redes de gol coloridos até barreiras com câ-maras de pneus. Do outro, um fosso de policiais uniformizados como Robocops e protegidos com tanques lança-chamas, escudos e cacetetes. Um muro inquebrável que bloqueava a passagem.

A polícia estava para proteger aos representantes dos poderes financeiros e eco-nômicos do planeta. Os manifestantes questionaram a globalização em nome de milhões de pessoas que sofrem suas conseqüências: fome, miséria e morte. No meio das duas forças, um jovem passeava nu, com seu corpo tatuado com denuncias con-110

Aula 13: Terminologia e espectro

“Quando o sistema é injusto, se quisermos ser sérios temos que ser marginais.”

Roberto Lyra Filho

Caso: Tutte Bianche. O corpo como arma da desobediência civil

A DESOBEDIÊNCIA CIVIL ATIVA! Uma batalha inspirada nos zapatistas

“Os Tutte Bianche (macacão branco) chegaram a Praga para participar dos protestos

contra o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Banco Mundial (BM). Centenas de

jovens ativistas italianos dos Centros Sociais, da Associação Ya Basta, parlamentares

e até religiosos, executaram novidades táticas de desobediência civil frente à polícia

checa, que lhes jogou gases e espancou com seus cacetetes. A imaginação política e

o traje – ou a falta dele – destes globalifóbicos chamaram a atenção dos jornalistas e

surpreenderam aos manifestantes de outros países que os acompanhavam.

Duas forças se encontraram corpo a corpo na ponte Nusle de Praga, cada uma

defendendo uma idéia de mundo diferente. De um lado, um contingente de homens e

mulheres vestidos com trajes brancos, protegidos com espuma, cascos, máscaras

antigases, escudos feitos com tampas de lixo e toda uma parafernália de instrumentos

dos mais incríveis, desde redes de gol coloridos até barreiras com câmaras de pneus.

Do outro, um fosso de policiais uniformizados como Robocops e protegidos com

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tra o capitalismo selvagem, nos entremeios de cada choque.No meio da batalha, don Vitaliano, pároco de Avellino, ajudava aos manifestan-

tes em suas tentativas para romper o cerco que protegia os milhares de delegados do FMI e do BM.

‘Com os nossos corpos, com o que somos, viemos defender os direitos de mi-lhões, a dignidade e a justiça. Ainda com a vida. Frente ao domínio total do mundo que exercem os donos do dinheiro, somente teremos nossos corpos para protestar e rebelarmos contra a injustiça’, disse.

Luca, porta-voz dos Tutte Bianche, anunciou ante aos jornalistas que chegaram a Praga:

‘Não estamos armados, atuamos como cidadãos que colocamos em risco nossa gente, para demonstrar que a democracia do FMI e do BM são os tanques e os policiais armados. Não somos criminosos, eles reprimem os cidadãos que fazem uso de seus direitos. Queremos demonstrar que é possível rebelar-se contra a ordem utilizando como arma nossos corpos’.

Se como escreveu Foucault, o corpo é o objeto da microfísica do poder, se todo o controle social e político exerce seu domínio sobre o corpo, se a economia de mer-cado tem convertido o corpo a uma mercadoria, os Tutte Bianche têm convocado a uma ‘rebelião dos corpos’ contra o poder mundial, reflete Sergio Zulián, um dos organizadores.

Em meio às transformações que produzem a globalização e as mudanças tecno-lógicas, frente à crise de alternativas ao modelo imperante, ante o debilitamento dos Estados, os partidos tradicionais e as formas de fazer política clássicas, aparecem os Tutte Bianche, que se autodenominam como zapatistas italianos. Este movimento integrado por velhos militantes autônomos (ligados a Toni Negri), membros da Associação Ya Basta, jovens dos centros sociais das principais cidades da Itália, gru-pos ecologistas, camponeses e associações civis. Todos eles promovem uma forma criativa de protesto, a desobediência civil ativa.

‘Mas, de onde saíram estes militantes com idéias que rompem os esquemas polí-ticos tradicionais e aparecem disfarçados como se estivessem indo a um carnaval?’

a busca de uma nova linguagem.

‘Depois de Chiapas e Seattle, a desobediência civil se converteu numa referência internacional, uma maneira de dizer a milhões de pessoas que queremos viver em novas condições de sociedade, mas lutando’, afirma Federico Mariani, presidente da Associação Ya Basta, um dos principais animadores da ação de Praga.

Ainda que a desobediência civil tenha sua história com Gandhi, a luta pelos direitos civis nos Estados Unidos nos anos sessenta ou as expressões pacíficas de protesto em todo o mundo, Federico Mariani explica que ‘depois de 1994 foi a mudança. Os zapatistas fizeram uma grande contribuição com suas propostas de construir uma nova política sem lutar pelo poder. Nós tentamos metabolizar a men-sagem e as formas que propõe’.

‘Para nós – disse Mariani, que foi um dos 140 observadores italianos expulso de

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Chiapas em 1998 –, foi um símbolo muito forte ver um exército de indígenas com rifles brancos. Conhecer um exército que espera o momento de deixar de ser exército. Gente que luta pelos direitos do seu povo. As mulheres zapatistas protestando frente aos tanques podem equipar-se, em distintas condições, aos trajes brancos, os cascos e escudos para proteger-se dos golpes e gases da polícia. Esse é nosso referente’.

‘A princípio discutíamos das experiências anteriores da ação direta, da sabota-gem, da violência revolucionária. Concluíamos que nas novas condições da desobe-diência civil utilizando nossos corpos como uma arma, pode liberar forças cidadãs que já respondem aos velhos esquemas’, sublinha.

‘É uma maneira imaginativa – disse Mariani – de colocar o outro em um proble-ma. Com métodos pacíficos de ação direta, a linguagem da violência fica do lado da polícia, dos governos. As manifestações clássicas já não incomodam. Em mudança, agora nós desobedecemos como cidadãos e eles reprimem, mas nos defendemos. Isso chama a atenção da sociedade, que faz eco do nosso protesto.’

Federico Mariani conta que faz mais de um ano que começaram a praticar as ações de desobediência civil.

‘Nos preparamos para resistir à polícia. Construímos escudos, máscaras antigás, câmaras de pneus para utilizar como barreira e fizemos proteções para o corpo. Uti-lizamos o corpo como uma arma de luta política’.

‘Chegou Seattle, e com ele veio a confirmação de um movimento renovador que resgata a participação da sociedade civil, ainda que não tenha programa. Na Itália até poucos anos, a luta de rua era um monopólio de uns ultras que praticavam formas excluentes, grupos que queimavam carros e quebravam vitrines. A maioria das pessoas se assustava por chegar a esse nível, incorporamos um fator novo, uma forma de enfrentamento radical que supera as manifestações clássicas e que nos dá a possibilidade de participação massiva com métodos seguros’, sintetiza Federico Mariani.

Outro dos grandes êxitos – conclui Mariani:‘É a participação dos jovens, que são conscientes de que sua intervenção, com seu

próprio corpo, protegido da violência da polícia, tem efeitos claros. O movimento está crescendo. Este é um grande lucro, que todo mundo reconhece, a gosto de que podemos tomar um trem para ir a Praga. Se nos abrem grandes espaços. Não é um grupo político, é um movimento horizontal onde cada um que contribui ao debate e a organização de uma maneira particular. Tudo se permeia, tem gente de todas as idades, todos estão em possibilidade de compartilhar paritariamente. Se têm caído esquemas antigos de vanguardas e dirigências’.

“quando o mundo está à venda, rebelar-se é natural”

A primavera de Praga dos Tutte Bianche de Roma, Nápoles, Bolonha, Gênova, Pádua, Milão e outras cidades foi intervir, milhares de corpos e mentes contra as estruturas ilegítimas e inaceitáveis dos poderes internacionais. Nada os controla, a nada rendem contas.

‘Fizemos de Praga a capital das alternativas ao modelo imperante, das reivin-

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dicações para um futuro distinto, para um mundo novo’, escreveram os jovens cabeludos, e punks dos Centros Sociais na Carta de Milão, um manifesto difun-dido em Praga.

‘Os Tutte Bianche inspirados pelo levantamento indígena de Chiapas têm-se lançado a uma nova reta para emergir do subsolo e assim introduzir-se na sociedade para promover a autogestão e a auto-organização construídas nestes anos. Para pas-sar da resistência a uma nova ofensiva sobre o terreno dos sonhos, dos direitos, da liberdade, pela conquista do futuro hoje negado para as novas gerações’, sustenta.

Max, um jovem do Centro Social de Pádua, informa as ações contra os Mc Donald’s em Veneza, Pádua, Roma e Milão, que fizeram para solidarizar-se com José Bové, líder dos camponeses franceses que se opõe à globalização.

Massimo, vocalista do grupo de rock 99 Posse, surgido no Centro Social de Nápoles, esteve em Praga com os Tutte Bianche para levar ‘nossa música e nossa presença’. Posse tem participado em muitas jornadas em apoio a Chiapas, pela lega-lização das drogas, contra o fascismo e contra a repressão aos imigrantes.

Orlando, do grupo Milk Warriors (guerreiros do leite), um grupo de ecologistas de Milão, conta como fizeram em Praga performances pacíficas em frente ao Mc Donald’s, com espigas de milho e uma bandeira com o emblema de uma vaca, para protestar contra os alimentos transgênicos que essa empresa transnacional vende.

‘Queremos construir uma humanidade onde todos estejamos incluídos, onde ninguém morra de fome, onde ninguém sofra injustiças’, comenta don Vitaliano, o mesmo que participa da desobediência ativa que organiza concertos de rock e en-contros no convento de San Miguel em Avelino, para manifestar-se a favor dos di-reitos dos imigrantes, pela despenalização das drogas, contra a guerra e a repressão.

Vilma Mazza, da Radio Sherwood, estação de rádio independente com sede em Pádua e que se difunde no norte da Itália, informa que a radio transmite ao vivo de Praga os dias dos Protestos. ‘É nossa forma de informar do que se passava a todos os que não puderam vir, mas que nos apóiam’.

Vilma, uma ativista veterana das lutas sociais na Itália nas últimas décadas, ex-plica que o movimento dos Tutte Bianche abrange muitos setores aos quais nos são comuns estes temas da globalização e seus efeitos na Itália.

Depois de mais de 20 anos organizando manifestações tradicionais, incluindo algumas muito numerosas, revela que estas ações têm-se desgastado.

‘Por isso nos lançamos com os Tutte Bianche primeiro numa marcha pelos direi-tos dos migrantes em 1999. Todos de branco enfrentamos a polícia. Mais de 10 mil manifestantes permaneceram atrás, apoiando sem mover-se. Cada um participava do seu lugar. Nós enfrentamos com formas defensivas, não ofensivas. Essa deso-bediência civil abria o espaço para que participassem as pessoas que não queriam enfrentar a polícia, mas cada um desafiou a polícia do seu lugar’, disse Vilma.

‘A partir daí – explica –, temos realizado ações para combater os efeitos do neo-liberalismo em nosso país, desde fechar os campos de migrantes sem documentos em Trieste, Milão, Bolonha (ao grito de ‘todos somos clandestinos’), a protestar contra os cultivos de transgênicos em Gênova e Veneza; opondo-se à devastação do ambiente (‘a terra é de todos, não das transnacionais’) e à exploração das mulheres

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e homens com a flexibilidade trabalhista e o emprego precário”.‘Também temos aberto centros sociais como espaços solidários dos jovens. Te-

mos ocupado fábricas e edifícios velhos para alojar ali trabalhadores migrantes que não têm casa. Também temos apoiado os refugiados de guerra albaneses e levamos um barco até as costas da Albânia para exigir o fim das fronteiras e o respeito aos direitos de todos’.

Outra das lutas que têm sido desenvolvidas ultimamente é contra a privatização do transporte público e para que seja um serviço gratuito para estudantes, deso-cupados e aposentados. De outro, uma carta para jovens menores de 30 anos que garantisse o acesso a determinados serviços, à cultura e à diversão.

‘Assim como os desempregados franceses têm assaltado a Bolsa de valores de Pa-ris, fomos capazes de caucionar uma nova modalidade de luta político-social mais tradicional, falando a toda a sociedade, aumentando o conflito, invadindo canais de comunicação, restituindo uma garantia a todos os excluídos de todas as cores que hoje sentem a fragilidade do seu próprio futuro’, escreveram os Tutte Bianche em seu manifesto de apresentação no ano passado.

A locutora e animadora da Radio Sherwood explica que na Europa milhares de pessoas vivem excluídas, sem direitos, nem vida digna, por essa razão agora estão promovendo ‘o direito ao salário universal de cidadão’. Isto é descrito num docu-mento como ‘arma para agredir o novo milênio, a demanda ideal para colocar-se na batalha pela redução de horário, para eliminar o trabalho precário, intermitente, pelos direitos aos serviços e à qualidade de vida, pela redistribuição da riqueza, para dar vida a um grande movimento de liberação de nosso ser. Falamos de um salário e do acesso gratuito aos serviços fundamentais e à cultura, para todos’.

‘Estamos juntos àqueles que continuam a luta começada em San Cristóbal de las Casas, Seattle e que chegou agora a Praga. Falamos dos direitos das pessoas sobre as leis do mercado, do rechaço dos mitos de segurança pública, e falamos de uma sociedade real, de participação horizontal, para decidir nosso destino’, foi uma das mensagens que deixaram na reunião do FMI.

(http://www.midiaindependente.org/pt/blue/2003/01/45152.shtml)

qUestões

• Interprete:“Nomeiodasduasforças,umjovempasseavanu,comseucorpotatuado com denúncias contra o capitalismo selvagem, nos entremeios de cada choque: ‘Com os nossos corpos, com o que somos, viemos defender os direitos de milhões, a dignidade e a justiça.’”

• Oanarquismoseriaumaformaderomperosesquemaspolíticostradicionais?• Seriaumaformadepromovernasociedadeaautogestãoeaauto-organização?• Épossívelpassardaresistênciaaumanovaofensivasobreoterrenodosso-

nhos, dos direitos, da liberdade, pela conquista do futuro hoje negado para as novas gerações, apenas com o uso de métodos pacíficos de ação direta?

• “Queremos construir uma humanidade onde todos estejamos incluídos,

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onde ninguém morra de fome, onde ninguém sofra injustiças.”• PerspectivaCrítica. AnarquismoXEstado-Nação. A constituição dos Es-

tados-nações europeus: Um empreendimento político ligado à ascensão e consolidação do capitalismo, sendo, portanto, expressão de um processo de dominação e exploração?

• Paraosanarquistas,éinconcebívelqueumalutapolíticapelaemancipaçãodos trabalhadores e pela construção de uma sociedade libertária possa se res-tringir a uma ou a algumas dessas unidades geopolíticas às quais chamamos países. Da defesa de um internacionalismo da revolução, que só teria sentido se fosse globalizada?

i. terMinOlOgia e Origens dO pensaMentO anarqUista

Visa apresentar uma genealogia histórica da terminologia do anarquismo. O anarquismo é um termo aplicado às correntes de pensamento que defendem em comum uma forma de organização horizontal e libertária em substituição do Es-tado e de toda forma de hierarquia e autoridade. A palavra tem sua origem no grego an (sem, ausência) + arkhê (governo). Contudo, na linguagem comum, anar-quia denota ora um modo de vida sem Estado, ora a desordem total, o caos, um insulto.

Um aspecto a ser realçado é o primeiro uso do conceito de anarquismo, feito por Pierre-Joseph Proudhon, em seu livro “Que é a propriedade? Uma investigação sobre o princípio de direito e de governo” (1840). Desta obra, serão destacadas como aspecto crítico as célebres frases:

“Toda propriedade é um roubo”.Anarquia: “A ausência de um mestre, de um soberano”.

Até que ponto pode se interpretar a assertiva de Proudhon de que a propriedade privada, sendo a exploração da força de trabalho de um homem sobre o outro, não era outra coisa senão um roubo? Contra isso, propunha que cada pessoa deveria comandar os meios de produção sobre os quais trabalha, substituindo a autoridade do Estado e do capitalista por uma organização federalista de comunas governadas por autogestão, sem um governo central.

Ainda neste tópico, serão avaliadas as origens do pensamento anarquista a partir de três eixos de interpretação:

a) O anarquismo como uma disposição moral libertária, a-histórica, difusa e universal inerente ao ser humano;

b) O anarquismo historicamente datado como um modo de vida próprio das comunidades primitivas acéfalas;

c) O anarquismo visto como um produto tardio do Iluminismo e da Revolução Francesa.

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O pensamento anarquista também pode ser visto como uma variante entre o liberalismo e o socialismo. Com o primeiro se aparenta por ter como objetivo fun-damental a liberdade, e com o segundo, segundo algumas correntes anárquicas, por pressupor que a liberdade somente se realiza plenamente em uma sociedade de iguais livre de autoridade.

Serão abordadas ainda duas fases expoentes do anarquismo:

a) A chamada fase áurea do anarquismo, dos anos 1880 a 1930, quando ocor-reu a difusão da ideologia e várias tentativas revolucionárias: a guerra civil espanhola em particular;

b) Um certo retorno do anarquismo nos movimentos de contracultura dos anos 60.

ii. O espeCtrO dO pensaMentO anarqUista Neste tópico apresentaremos as principais dentre as diversas variantes da ideolo-

gia anárquica:a) Anarquismo individualista: muito próximo do liberalismo, tem como objetivo

a realização total da liberdade do indivíduo e de seu projeto de vida – ambos pree-xistentes à sociedade.

b) Anarquismo coletivista: Seu principal defensor, Bakunine, propôs a coletiviza-ção dos meios de produção e a distribuição segundo o critério do trabalho; acredita em uma certa espontaneidade revolucionária, mas contrário ao cânon marxista. Criticou o comunismo de Estado por ser uma proposta autoritária de socialismo.

c) Anarquismo comunista: acredita que a propriedade, a produção e a habi-tação deveriam ser de domínio comum, e a distribuição dos bens obedecer ao critério da necessidade de cada qual. Kropoktin, seu principal representante, acreditava que a cooperação e a solidariedade eram sentimentos inerentes à con-dição humana.

d) Anarquismo mutualista: acreditam que a organização política fundada no Es-tado seria substituída por uma organização fundada nas relações econômicas. Ou seja, os indivíduos se relacionariam através de contratos econômicos mútuos, exceto no seio familiar, onde permaneceria a hierarquia patriarcal. Conhecido como “ga-rantismo” ou “anarquia contratante” baseia-se na propriedade privada e no trabalho por conta própria, sendo atingida uma sociedade justa quando todos tiverem igual liberdade de contratar e cujos contratos forem respeitados. Filiam-se aqui os anarco-capitalistas.

e) Anarco-sindicalismo: baseado no sindicalismo revolucionário comprometido com a derrubada do Estado e do capitalismo, utilizando-se como principal instru-mento a greve geral e propunham, como alternativa, uma forma de organização social baseada em uma federação de sindicatos de trabalhadores.

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iii. liberdade e igUaldade: realizaçãO dO anarqUisMO

Como já dito, a liberdade consistia em uma condição concreta para a realização vital do ser humano e qualquer dever de obediência nesse contexto implicaria a perda da autonomia. Logo, se o Estado representava o monopólio da coerção, da violência, deveria ser abolido em nome da liberdade.

iii.1. liberdade negativa

Os anarquistas mais ortodoxos, individualistas, compreendiam a liberdade ape-nas como uma dimensão negativa, tal qual os liberais clássicos. Ou seja, a liberdade era um estado de ausência de coerção e de violência. E, por isso, a abolição do Es-tado, principal fonte de coerção, significaria por si só um incremento da liberdade. Tal conclusão descende de outra mais básica: se o indivíduo tem o direito absoluto de posse sobre o seu próprio corpo, então ninguém é legítimo para poder coagi-lo.

iii.2. liberdade positiva

Já os anarquistas comunistas percebiam que a liberdade deveria incorporar uma dimensão positiva, contudo, não atribuíam, claro, ao Estado tal função substantiva. Assim, a liberdade implicava a ausência de coerção para que o indivíduo pudesse perseguir a meta positiva na coletividade, não em um projeto particular de vida.

Quanto ao tema da igualdade, deve ser vista como derivada da premissa de que, sendo os anarquistas contrários a toda e qualquer forma de hierarquia, dever-se-ia compreender os indivíduos como em iguais em natureza. Serão avaliadas duas das principais compreensões de igualdade.

iii.3. igualdade como condição da liberdade

Para os anarquistas coletivistas comunistas, a igualdade deveria ser substantiva e como condição para a realização da liberdade. Kropotkin destaca que a igualdade deve se fundar na igual satisfação de suas necessidades.

iii.4. igualdade formal

Em contraponto, os anarquismos individualistas satisfazem com a igualdade for-mal, ou seja, um igual direito à liberdade de agir (contratar) sem ser coagido.

iv. açãO direta e desObediênCia Civil

“Na luta pelos Direitos dos trabalhadores e trabalhadoras do campo não podemos abrir mão do que nos dá força, que são as ocupações e a desobediência civil. Essas são for-

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mas de exercer pressão para que os direitos básicos e fundamentais sejam respeitados”.Foi assim que Dom Tomás Balduíno, presidente da Comissão Pastoral da Terra

encerrou sua intervenção no Encontro Nacional de Direitos Humanos, promovido pela CPT, de 27 a 29 de agosto, em Goiânia.

Outro conceito fundamental no pensamento anarquista a ser discutido nesta aula é o de ação direta, entendido como um método para a implementação da revolução anarquista. Isto é, os próprios interessados na mudança promovem atos que visem a abolição da coerção e autoridade e a realização da liberdade. Enfim, a “ação direta” é o método revolucionário contraposto às correntes do reformismo que propõem mudanças a partir dos mecanismos de Estado – eleições, representan-tes, governo, lei, etc.

Como exemplos de ação direta, refletiremos acerca das seguintes manifestações: greves, lockouts, bloqueio de estradas, sabotagens, boicotes – sempre associados à desobediência civil. Contudo, há ações diretas construtivas como os mutirões, voluntariado, etc.

Ainda serão abordadas duas formas essenciais de ação anarquista:

a) Revolução pacífica. Algumas correntes pregam a revolução pacífica, por meio de ações diretas de mudança cultural e formação autônoma de comunidades alternativas.

b) Revolução violenta. Outros propõem ações diretas como uma revolução vio-lenta, o que seria o uso legítimo da violência libertária.

desobediênciA: virtUde originAl do homem (oscAr Wilde)Pode-se até admitir que os pobres tenham virtudes, mas elas devem ser lamentadas.

Muitas vezes ouvimos que os pobres são gratos à caridade. Alguns o são, sem dúvida, mas os melhores entre eles jamais o serão. São ingratos, descontentes, desobedientes e rebeldes – e têm razão. Consideram que a caridade é uma forma inadequada e ridí-cula de restituição parcial, uma esmola, geralmente acompanhada de uma tentativa impertinente, por parte do doador, de tiranizar a vida de quem a recebe. Por que deveriam sentir gratidão pelas migalhas que caem da mesa dos ricos? Eles deveriam estar sentados nela e agora começam a percebê-lo. Quanto ao descontentamento, qualquer homem que não se sentisse descontente com o péssimo ambiente e o baixo nível de vida que lhe são reservados seria realmente muito estúpido.

Qualquer pessoa que tenha lido a história da humanidade aprendeu que a deso-bediência é a virtude original do homem. O progresso é uma conseqüência da de-sobediência e da rebelião. Muitas vezes elogiamos os pobres por serem econômicos. Mas recomendar aos pobres que poupem é algo grotesco e insultante. Seria como aconselhar um homem que está morrendo de fome a comer menos; um trabalhador urbano ou rural que poupasse seria totalmente imoral. Nenhum homem deveria estar sempre pronto a mostrar que consegue viver como um animal mal alimentado. Deveria recusar-se a viver assim, roubar ou fazer greve – o que para muitos é uma forma de roubo.

Quanto à mendicância, é muito mais seguro mendigar do que roubar, mas é me-

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lhor roubar do que mendigar. Não! Um pobre que é ingrato, descontente, rebelde e que se recusa a poupar terá, provavelmente, uma verdadeira personalidade e uma grande riqueza interior. De qualquer forma, ele representará uma saudável forma de protesto. Quanto aos pobres virtuosos, devemos ter pena deles, mas jamais admirá-los. Eles entraram num acordo particular com o inimigo e venderam os seus direitos por um preço muito baixo. Devem ser também extraordinariamente estúpidos. Posso entender um homem que aceita as leis que protegem a proprieda-de privada e admita que ela seja acumulada enquanto for capaz de realizar alguma forma de atividade intelectual sob tais condições. Mas não consigo entender como alguém que tem uma vida medonha graças a essas leis possa ainda concordar com a sua continuidade.

Entretanto, a explicação não é difícil, pelo contrário. A miséria e a pobreza são de tal modo degradantes e exercem um efeito tão paralisante sobre a natureza humana que nenhuma classe consegue realmente ter consciência do seu próprio sofrimento. É preciso que outras pessoas venham apontá-lo e mesmo assim muitas vezes não acreditam nelas. O que os patrões dizem sobre os agitadores é totalmente verdadeiro. Os agitadores são um bando de pessoas intrometidas que se infiltram num determi-nado segmento da comunidade totalmente satisfeito com a situação em que vivem e semeiam o descontentamento nele. É por isso que os agitadores são necessários. Sem eles, em nosso estado imperfeito, a civilização não avançaria. A abolição da escravatura na América não foi uma conseqüência da ação direta dos escravos nem uma expressão do seu desejo de liberdade. A escravidão foi abolida graças à conduta totalmente ilegal de agitadores vindos de Boston e de outros lugares, que não eram escravos, não tinham escravos nem qualquer relação direta com o problema. Foram eles, sem dúvida, que começaram tudo. É curioso lembrar que dos próprios escravos eles recebiam pouquíssima ajuda material e quase nenhuma solidariedade. E quan-do a guerra terminou e os escravos descobriram que estavam livres, tão livres que podiam até morrer de fome livremente, muitos lamentaram amargamente a nova situação. Para o pensador, o fato mais trágico da revolução francesa não foi o de que Maria Antonieta tenha sido morta por ser rainha, mas que os camponeses famintos da Vendée tivessem concordado em morrer defendendo a causa do feudalismo.

(Extraído da Obra “A Alma do Homem Sob o Socialismo”, de 1891. Disponível em www.culturabrasil.org)

v. a natUreza HUMana: entre individUalisMO e COletividade

As diferentes vertentes do anarquismo não convergem acerca da natureza huma-na; mas em geral, apenas coincidem em aceitar a imperfectibilidade humana e seu caráter instável. Abordaremos basicamente duas vertentes:

a) Anarco-individualista. Uma primeira corrente de análise, os anarco-individua-listas, compreende os seres humanos como seres autônomos, com seus pró-prios projetos de vida independentes da sociedade. Tais defensores entendem

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que a verdadeira felicidade estaria no desenvolvimento da individualidade. Somente o indivíduo poderia ser juiz de si mesmo e de sua utilidade. Tudo que é comunal, que leva o indivíduo a pensar primeiramente na sociedade é uma invasão da individualidade. A sociedade não é primordial ao indivíduo e, assim, concluem: o indivíduo independe da sociedade.

b) Anarquismo. Já para uma outra vertente, anarquismo comunitarista, com-preende os homens como seres comunitários, que perfazem sua liberdade e sua subjetividade apenas em e por meio da comunidade. Esta tendência defendida por Kropotkin conceitua a solidariedade econômica e a ajuda mú-tua como naturais ao humano. Observando os animais, Kropotkin conclui que o desenvolvimento só é possível em comunidade; por isso, seu otimismo com as sociedades primitivas. Em outras palavras, a anarquia é natural a toda forma de vida. “As formigas e os cupins renunciaram à guerra hobbesiana e se saíram melhor.”

vi. CrítiCa dO estadO: aUtOridade e OrdeM eCOnôMiCa

A unidade formal do pensamento anarquista está em buscar a libertação do ho-mem de toda forma de poder superior, seja sobrenatural, política, econômica, jurí-dica ou social. E sendo o Estado o principal órgão repressor, detentor do monopólio da violência, deve ser abolido em favor da realização plena do homem.

Bakunine compreende que o Estado produz uma ordem econômica desigual e autoritária, ou seja, inverte o modelo teórico de Marx para apontar que a superes-trutura político-jurídica reproduz sua autoridade na infra-estrutura material.

A principal crítica anarquista ao Estado está na centralização e monopólio da co-erção e da violência. Surge então a questão crítica: A existência de Estado implica a exclusão da liberdade? Para muitos anarquistas o Estado é uma forma difundida por intelectuais e sacerdotes para a negação da liberdade dos indivíduos. Assim, o Estado constituía uma forma abominável de coletividade, uma fase brutal do desenvolvi-mento humano. Kropotkin assinalava que o Estado não destruía o indivíduo, mas sim todas as formas de organização social naturais e harmoniosas. Por isso a tarefa do anarquismo estava em encorajar a reaparição dessas formas associativas naturais.

Discussão crítica da assertiva de Proudhon:

Ser governado é...Ser guardado à vista, inspecionado, espionado, dirigido, legislado, regulamentado,

parqueado, endoutrinado, predicado, controlado, calculado, apreciado, censurado, comandado, por seres que não têm nem o título, nem a ciência, nem a virtude (...) Ser governado é ser, a cada operação, a cada transação, a cada movimento, notado, regis-trado, recenseado, tarifado, selado, medido, cotado, avaliado, patenteado, licenciado, autorizado, rotulado, admoestado, impedido, reformado, reenviado, corrigido.

É, sob o pretexto da utilidade pública e em nome do interesse geral, ser submeti-do à contribuição, utilizado, resgatado, explorado, monopolizado, extorquido, pres-

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sionado, mistificado, roubado; e depois, à menor resistência, à primeira palavra de queixa, reprimido, multado, vilipendiado, vexado, acossado, maltratado, espanca-do, desarmado, garroteado, aprisionado, fuzilado, metralhado, julgado, condenado, deportado, sacrificado, vendido, traído e, no máximo grau, jogado, ridicularizado, ultrajado, desonrado.

Eis o governo, eis a justiça, eis a sua moral!

vii. anarqUisMO: nOvas bases para a OrganizaçãO pOlítiCa? aUtOgestãO, COMUnas e revOlUçãO sOCial

Bakunine é enfático: “O Estado é a negação da humanidade!”. Os anarquistas talvez tenham sido os pensadores que mais alternativas políticas construíram, talvez precisamente por sua postura germinal contrária ao Estado. A partir de Bakunine, avaliaremos:

a. A questão da anomia. Importante destacar que a negação do Estado não leva ao estado de anomia (ausência de regras); ao contrário, os anarquistas refleti-ram, e muito, sobre as novas bases organizativas da sociedade.

b. O livre medado. O anarco-capitalismo defende que grande parte dos serviços hoje realizados pelo Estado poderia ser feita, e com maior eficiência, pelos indivíduos em um contexto de livre mercado. Até mesmo os tribunais de justiça e a segurança policial poderiam ser contratados no livre mercado.

c. Comunas descentralizadas. Os anarquistas comunistas alternativamente ao Estado propõem comunas descentralizadas de pequena escala e federaliza-das, a partir de grupos de afinidade e não hierárquicas. Kropotkin assinala o caráter orgânico dessas comunidades.

Em outra direção, ainda será abordada a perspectiva defendida por Proudhon, que sugere uma federação instituída a partir de contratos entre os indivíduos e grupos, o que substituiria o governo. Não é contra a propriedade privada em si, mas contra a apropriação de receita a partir do trabalho de outrem (aluguel, juros, assalariamento), isto sim, que seria um roubo.

O sindicalismo revolucionário e o anarco-sindicalismo antevêem uma sociedade formada por uma federação de sindicatos de trabalhadores. Criticam o Estado de bem-estar como sendo uma artimanha burguesa para melhorar a eficiência capitalista e disciplinar a sociedade. E para a transformação anárquica o uso da violência torna-se legítimo e os sindicatos seriam os principais atores da revolução por meio das greves.

Porém, Proudhon em uma carta dirigida a Marx (1846) contesta tal posição afirmando que “não devemos colocar a ação revolucionária como um meio para alcançar a reforma social, já que esse pretenso meio seria apenas um apelo à força, à arbitrariedade, em resumo, uma contradição”.

Substituir um governo por outro, definitivamente, não é o objetivo do anar-quismo. A anarquia pretende ser uma sociedade na qual ninguém possa impor sua

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vontade a outrem.Uma diferença radical entre o anarquismo e o socialismo russo está em que o

primeiro propõe a organização dos trabalhadores de maneira horizontal, federaliza-das, ao contrário dos soviets russos, que eram controlados pelo partido bolchevique de maneira vertical.

Democracia. Existe ainda uma difícil relação entre o pensamento anarquista e a democracia. Sendo a democracia representativa uma forma de governo, por si só já seria o bastante para ser repudiada. E ainda mais porque, segundo os anarquistas, a representação é uma ficção a serviço do despotismo, da autoridade opressora, não superada nem mesmo com o sufrágio universal. Propõem a abstenção eleitoral.

Para Karl Marx, 1846Lyon, 17 de maio de 1846Meu caro Senhor Marx,Concordei de bom grado em ser uma das pessoas incumbidas de receber suas

cartas cujos objetivos e organização são, a meu ver, extremamente úteis. Porém não posso prometer respostas muito extensas ou freqüentes, já que minhas múltiplas ati-vidades, combinadas a uma preguiça natural, pouco favorecem tais esforços epistola-res. Devo também tomar a liberdade de fazer certas ressalvas que me foram sugeridas por várias passagens da sua carta.

Em primeiro lugar, embora minhas idéias quanto à organização e realização do movimento estejam no momento mais ou menos definidas, pelo menos no que diz respeito aos seus princípios básicos, creio ser meu dever – como é dever de todos os socialistas – manter ainda por algum tempo uma atitude crítica e dubitativa. Resu-mindo: eu em público professo um anti-dogmatismo quase absoluto.

Procuremos juntos, se assim o desejar, as leis da sociedade, a forma pela qual essas leis poderão ser executadas, o processo que utilizaremos para descobri-las. Mas, por Deus, depois que tivermos destruído a priori todos os dogmatismos, não sonhemos por nossa vez em doutrinar as pessoas; não nos deixemos cair na contradição de seu compatriota Martin Lutero que, depois de ter demolido a teologia católica, lançou-se imediatamente à tarefa de criar as bases de uma teologia protestante, utilizando-se da excomunhão e do anátema. Nestes últimos três séculos, uma das principais preo-cupações da Alemanha tem sido desfazer o mau trabalho de Lutero. Não deixemos, pois, à humanidade a tarefa de desfazer uma embrulhada semelhante como resultado de nossos esforços.

Aplaudo, de todo o coração, sua idéia de trazer todas as opiniões à luz. Iniciemos sim uma boa e leal polêmica; tentemos dar ao mundo um exemplo de tolerância sá-bia e perspicaz, mas não nos transformemos, pelo simples fato de que somos os líde-res de um movimento, em líderes de uma nova forma de intolerância; não posemos de apóstolos de uma nova religião, mesmo que seja a religião da lógica e da razão.

Vamos reunir e estimular todas as formas de protestos, vamos rechaçar toda a aristocracia, todo o misticismo; jamais consideremos qualquer tema esgotado e, quando tivermos lançado mão do nosso último argumento, comecemos outra vez – se preciso for – a discussão, com eloqüência e ironia. Sob tais condições eu alegre-

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mente unir-me-ei a vós. De outra forma – não!Também tenho algumas observações a fazer sobre esta frase da sua carta – o

momento da ação. Talvez o senhor ainda mantenha a opinião que no momento é impossível haver qualquer reforma sem que haja um coup de main, sem o que era antes chamado revolução e que na verdade não é nada mais do que um choque. Esta segunda idéia que eu entendo, perdôo e que estaria disposto a discutir, tendo eu mes-mo compartilhado dela durante um longo tempo, meus estudos mais recentes me fizeram abandoná-la totalmente. Não creio que tenhamos de lançar mão dela para triunfar e, conseqüentemente, não devemos colocar a ação revolucionária como um meio para alcançar a reforma social, já que esse pretenso meio seria apenas um apelo à força, à arbitrariedade, em resumo, uma contradição. Eu coloco assim o problema: provocar o retorno à sociedade, por meio de uma combinação econômica, da riqueza que ela perdeu graças a uma outra combinação. Em outras palavras, utilizar a Econo-mia Política para transformar a teoria da Propriedade contra a Propriedade de forma a criar aquilo que os socialistas alemães – vocês – chamam de comunidade e que eu pessoalmente me limitarei, por ora, a chamar de liberdade ou igualdade. Creio pos-suir os meios para resolver este problema dentro de muito pouco tempo: preferiria, portanto, queimar a propriedade em fogo lento a lhe dar novo alento fazendo uma noite de São Bartolomeu com aqueles que a têm nas mãos.

Pierre-Joseph Proudhon(in Correspondência, 1874 – 1875) www.culturabrasileira.org.br

viii. jUstiça, prOpriedade e eCOnOMia

justiça e lei

Um primeiro ponto a enunciar é a não coincidência entre Justiça e Lei; esta últi-ma é entendida como expressão do governo, do Estado, da autoridade – tudo o que deve ser abolido. Justiça denota um termo muito mais próximo da realização do ser humano – para os anarco-individualistas, realização do projeto de vida pessoal; para os anarco-comunistaristas, realização da liberdade em comunidade.

Modelo processual de justiça

Há que se destacar um modelo processual de justiça para os anarco-capitalistas, para os quais uma economia de mercado totalmente desregulamentada favoreceria a mais “justa” distribuição dos bens e, portanto, a realização do indivíduo.

justiça e contrato

Para Proudhon, caminhando-se em direção à anarquia, o governo seria suplantado pelo contrato, vez que o contrato denotando mutualidade, uma relação voluntária, livre de coação, opunha-se à autoridade. O contrato justo seria o contrato econômico

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realizado em iguais condições e garantia da liberdade. Entendia que qualquer justiça distributivista implicava a necessidade de uma autoridade, governo, ou alguém que, arbitrariamente, aplicaria seu próprio critério, projeto, sobre todos os demais.

justiça distributiva

Para os anarquistas comunistas e coletivistas, a justiça a ter lugar na anarquia havia de ser a distributivista, transmutando o critério atual de mérito (a cada um segundo o seu trabalho) para o de necessidade (a cada um segundo a sua necessida-de); isto levaria a uma redefinição tanto nos circuitos da produção quanto nos do consumo, esferas essas conexas. Kropotkin ensinava que sendo toda a produção co-letiva, a riqueza consistiria em uma apropriação ilegítima efetuada por uns poucos. A propriedade privada, então, estaria em desacordo com a natureza da produção (bem coletivo). Toda a produção deve ser dirigida à distribuição e à satisfação de todos.

bibliOgrafia

VICENT, Andrew. Ideologias políticas modernas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995. pp. 121-139.

bibliOgrafia COMpleMentar

BALIBAR, Etienne, & WALLERSTEIN, Immanuel, Race, Nation, Class – Am-biguous Identities. London/New York: Verso, 1991.

CARONE, Edgard, Socialismo e anarquismo. São Paulo: Vozes, 1996.COSTA, Caio Túlio, O que é anarquismo. Coleção Primeiros Passos, São Paulo,

Brasiliense, 1980.MINTZ, Frank; LEVAL, Gaston; BERTHIER, Rene, Autogestão e Anarquismo.

São Paulo: Imaginário, 2002.

links e sites:

Confederación Nacional del Trabajo (Espanha): http://www.cnt.es/home.phpFederação Anarquista do Rio de Janeiro: http://farj.entodaspartes.org/O anarquismo hoje: uma reflexão sobre as alternativas libertárias: http://www.

agrorede.org.br/ceca/edgar/Anarhoje.html

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aula 18. as exPeRiênCias das ColÔniCas anÁRquiCas no BRasil

anarqUisMO nO brasil

i – Colônia anarquista de guararema em são paulo e Colônia Cecília no paraná

Avaliar a influência européia nos movimentos libertários brasileiros. Os movimen-tos libertários brasileiros andaram pelo Rio Grande do Sul, Paraná, Santa Catarina, Pernambuco, Rio de Janeiro e São Paulo; anarquistas adeptos de Proudhon e Baku-nine e revolucionários da Comuna de Paris chegados clandestinamente ao Brasil em busca de asilo político. Segundo Edgar Rodrigues, a história do anarquismo no Brasil começou a ser escrita efetivamente em 1888 com a chegada de Artur Cam-pagnoli. Foi este militante italiano quem teve o mérito de fincar o mais visível mar-co anarquista no Brasil. Chegou a São Paulo em 1888, comprou uma área de terra considerada improdutiva e fundou a Colônia Anarquista de Guararema, com ajuda de libertários russos, franceses, espanhóis, italianos (a maioria) e nas décadas de 20 e 30 teve a colaboração de brasileiros. Dois anos mais tarde, Giovani Rossi e cerca de 200 imigrantes da Itália, em duas levas, fundaram a Colônia Cecília no Paraná. Esta experiência resistiu de 1890 a 1894.

A partir das experiências históricas do anarquismo no Brasil, tentar correlacioná-las às experiências de economia solidária e de produção cooperativa hoje inseridas nas plataformas políticas dos movimentos pela reforma agrária. E em paralelo, ob-servar as formas utilizadas pelos movimentos de sem-teto na organização das ocu-pações urbanas hoje presentes nas grandes cidades.

ii – exercícios – anarquismo

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unidade v – naCionalismo

aula 19. esTado, naÇÃo e naCionalismo

CasO: rapOsa dO sOl – deMarCaçãO das terras indígenas eM rOraiMa

O impasse em torno da demarcação das terras indígenas da região de Raposa Serra do Sol, em Roraima.

Análise do capítulo II: “Conflitos e Interesses em Questão” do Relatório da Comis-são Externa Destinada a Avaliar, in loco, a situação da demarcação na área contínua da “Reserva Indígena Raposa Serra do Sol,” no Estado de Roraima. Principais tópicos:

trechos “Os trabalhos da Comissão Externa demonstram que a questão da defesa na-

cional tem sido negligenciada no debate sobre a situação de reservas indígenas em faixas de fronteira.

Órgãos de inteligência do governo, inclusive das Forças Armadas, têm apontado que se mantida a demarcação nos moldes da Portaria nº 820, de 1998, poderá trazer problemas à segurança do País.

Na oportuna observação do jornal O Estado de S. Paulo, publicada no edito-rial ‘Em causa a segurança nacional’, edição de 22/01/2004, p. A3, “não são só os setores de inteligência do governo e militares que vêem nessa questão um risco à segurança nacional. Também setores acadêmicos revelam a mesma preocupação. O coordenador do Núcleo de Análise Interdisciplinar de Políticas e Estratégias (Nai-ppe) da USP, Braz Araújo, e o pesquisador Geraldo Lesbat Cavagnari, do Núcleo de Estudos Estratégicos da Unicamp, sustentam que a demarcação da área indígena de Roraima em terras contínuas vai pôr em risco a segurança das fronteiras brasileiras. ‘Não existe outro país que permita que alguém ou um grupo tenha soberania na faixa de fronteira’, argumenta Cavagnari, enquanto Araújo diz que ‘o Brasil vem fazendo demarcação de terras indígenas sem visão estratégica clara, apenas atenden-do a demandas demagógicas’. E o cientista da USP salienta, em matéria publicada ontem neste jornal, o que nos parece o aspecto mais grave na questão, ao lembrar que a região amazônica não está apenas em solo brasileiro e que há ‘contenciosos territoriais entre países da região’.

Vale ressaltar que o Conselho de Defesa Nacional não foi ouvido quanto à de-marcação, malgrado possuir competência constitucional para propor os critérios e condições de utilização de áreas indispensáveis à segurança nacional e opinar sobre seu uso efetivo, especialmente em faixa de fronteira. Ao invés, a FUNAI tem prevale-cido no processo demarcatório da área indígena Raposa Serra do Sol, sem que outras instituições interessadas tenham tido a voz necessária. Portanto, cabe afirmar que a FUNAI não tem condições políticas de avaliar se a criação de uma reserva indígena

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em uma determinada zona de fronteira atenta contra os interesses nacionais ou não.Vários fatos investigados pela Comissão levam à conclusão de que a região com-

preendida pela Área Indígena Raposa Serra do Sol enfrenta problemas que poderão se constituir, futuramente, em riscos à soberania nacional, à segurança das popula-ções índias e não índias. (...}

3. Resistência à presença do Estado e das Forças Armadas Por estar a pretendida área Raposa Serra do Sol em região de fronteira, sujeita

a atividades como garimpo ilegal, contrabando, narcotráfico e biopirataria, é fun-damental que as Forças Armadas e a Polícia Federal tenham ampla liberdade de atuação na região.

Autoridades ligadas à defesa nacional, entre elas alguns militares que comanda-ram tropas na Região Amazônica, dão conta da dificuldade em transitar pelas áreas de proteção ambiental e pelas reservas indígenas. O ponto levantado pelos setores ligados aos órgãos de segurança do Estado é que, depois de realizado um processo de demarcação, existe um questionamento quanto à legalidade da realização de pa-trulhamento e ao estabelecimento de unidades no interior dessas regiões.

Acerca desse aspecto a Constituição Federal confere às Forças Armadas a seguin-te missão:

‘Art. 142 – As Forças Armadas, constituídas pela Marinha, pelo Exército e pela Aeronáutica, são instituições nacionais permanentes e regulares, organizadas com base na hierarquia e na disciplina, sob a autoridade suprema do Presidente da Re-pública, e destinam-se à defesa da Pátria, à garantia dos poderes constitucionais e, por iniciativa de qualquer destes, da lei e da ordem.’

Com a mesma clareza, a Lei Complementar nº 97, de 1999, também detalha esse mister. Fica claro que não pode haver uma área do território nacional que seja excluída da necessária proteção.

Quanto à Polícia Federal, a Constituição lhe assinala a competência para policiar as fronteiras do País, reprimir infrações que tenham repercussão internacional, bem como o contrabando e o descaminho (CF, art. 144, § 1º, III).

Chegou ao conhecimento desta Comissão que, em algumas oportunidades, os segmentos mais radicais da proteção aos indígenas se utilizam do termo ‘nação in-dígena’, com a finalidade de intimidar a atuação das forças de segurança no interior de áreas demarcadas, como se fosse um território interdito ao patrulhamento ou à realização de operações.

É oportuno esclarecer que a utilização do termo ‘nação indígena’ é inócua, pois a Constituição Federal não deixa dúvida de que a terra tradicionalmente ocupada pelos indígenas é bem da União, conforme o inciso XI, do art. 20 da Carta Magna. Esse território não deixa de fazer parte do território nacional e o Estado brasileiro não perde a sua capacidade de atuar, por meio dos seus diversos órgãos, no interior de qualquer reserva indígena.

No entanto, é necessário garantir a tranqüilidade do trabalho e a presença dos meios de defesa nacional por questões preventivas, pois, em grande parte, essas áreas se encontram localizadas nos limites com outros países.

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Além disso, também sob o ponto de vista preventivo, demarcar as terras indíge-nas significa garantir o respeito aos direitos dessa minoria, evitando que a opinião pública mundial questione a capacidade do Brasil em bem gerir esse assunto de forma adequada.

Apesar da clareza com que a Constituição Federal trata esse tema, algumas orga-nizações não-governamentais articulam ações com o objetivo de impedir o acesso das forças de segurança ao interior da área indígena. A Comissão Externa constatou que a oposição sistemática do CIR à ação das Forças Armadas – a ponto de ajuizar ação judicial para tentar, sem êxito, evitar a instalação de um pelotão do Exército no município de Uiramutã – constitui um entrave às atividades de defesa nacional, não obstante a liberdade de trânsito garantida às Forças Armadas e à Polícia Federal pelo Decreto no 4.412, de 2002, para movimentação de suas tropas em áreas indígenas.

Apesar de ser manifestamente impertinente, essa articulação, realizada por al-gumas organizações não-governamentais, pode atrasar uma determinada operação, militar ou policial, o suficiente para torná-la ineficaz, o que não é desejável, nem pela ótica da defesa nacional, nem pela da segurança pública.

Adicionalmente, a FUNAI tem, baseando-se numa interpretação equivocada de suas atribuições administrativas, expedido “autorizações” para a Polícia Federal e as Forças Armadas entrarem em terras indígenas, embaraçando o exercício das funções constitucionais desses órgãos. Não obstante a FUNAI exercer “o poder de polícia nas áreas indígenas e nas matérias atinentes à proteção dos índios”, tal atribuição não alcança o exercício de polícia judiciária, de repressão ao crime e de defesa de fronteiras. Essas atividades hão de ser executadas pela Polícia Federal e pelas Forças Armadas, em coordenação com a FUNAI – e nunca sob sua autorização.

Na verdade, a referida Fundação vem exorbitando de suas funções tão claramen-te que chegou ao ponto de enviar a esta Comissão Externa uma ‘autorização’ para entrada na futura terra indígena Raposa Serra do Sol. Cabe lembrar que o Con-gresso Nacional é um dos Poderes da República e instância representativa máxima da Nação, possuindo competência constitucional para fiscalizar os atos do Poder Executivo (CF, art. 49, X). O Congresso Nacional ou qualquer de suas Casas não dependem, portanto, de autorização de órgão administrativo subordinado ao Mi-nistério da Justiça para desenvolver suas atividades constitucionais.

Merece registro que no recente episódio do assassinato de 29 garimpeiros na Terra Indígena Roosevelt, em Rondônia, a Polícia Federal teve de esperar por oito dias pela autorização da FUNAI para entrar naquela reserva, prejudicando o traba-lho daquele órgão na identificação dos culpados e o resgate dos corpos. O ocorrido revela a fragilidade da presença das forças policiais em áreas indígenas, e enfatiza a premente necessidade de reformulação da prática do policiamento e da atuação das Forças Armadas naquelas terras, para que não se repitam mais massacres dessa natu-reza e não se incremente ainda mais o conflito em reservas indígenas no Brasil.

Esta Comissão Externa entende que, apesar da clareza legislativa na garantia do livre trânsito das forças militares e policiais para a proteção da integridade do território nacional e o combate de ilícitos na faixa de fronteira, deve-se considerar garantias adicionais que facilitem aos militares e aos órgãos de segurança pública

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previstos no art. 144 da Carta Magna o cumprimento integral de suas missões cons-titucionais. Não deve restar dúvida de que, garantidos os direitos constitucionais aos indígenas brasileiros, os órgãos do Estado devem ter plenas condições de inter-vir, oportunamente, sem qualquer impedimento, no sentido de prevenir e coibir a ocorrência de delitos transnacionais no interior da reserva Raposa Serra do Sol e de outras regiões demarcadas. (...)”

Disponível em:Relatório Raposa do Solhttp://www2.camara.gov.br/comissoes/temporarias/externas/encerradas/cexrapos/re-

latorio.html

qUestões

• Pelaleituradorelatório,quaisasprincipaiscaracterísticasdaáreasobcon-flito?

• Aproximidadecomoutrospaíseséoquetornaaregiãoconflituosa?• Aocupaçãodaregiãosomenteporíndiosatornariamenos“nacional”?• Emquesentidoéutilizadootermo“naçãoindígena”?Qualasuarepercussão

jurídica?• Aocupaçãodaregiãoporagricultoresfoiguiadaporquaisinteresses?• Poderiasedizerqueosbrancoslevamconsigoa“naçãobrasileira”?• Identifique a atuação e os interesses preponderantes dos seguintes atores:

Exército brasileiro; FUNAI; Conselho Indígena de Roraima; Prefeitura de Uiramutã; agricultores; indígenas.

i. terMinOlOgia e COnCeitOs fUndaMentais dO naCiOnalisMO

Visa apresentar uma genealogia básica do termo nacionalismo. A palavra nação em sua origem latina – nasci, natio – denota nascer, lugar de nascimento; o que nos leva a compreendê-la como uma forma natural de associação humana a partir do local de nascimento. Mais comumente passou-se a entender nação como um grupo de pessoas com ancestrais, história, língua e cultura em comum e constituintes dos laços de lealdade e de afeição entre seus membros.

Alguns conceitos conexos auxiliarão na tarefa de compreender a genealogia do nacionalismo:

1. Autodeterminação dos povos. O conceito de autodeterminação dos povos indi-ca que cada nação tem um direito à soberania, ou seja, o poder de livremente controlar um território e manter sob sua jurisdição as pessoas que aí se en-contram.

2. Nacionalidade. O termo nacionalidade define a cidadania jurídica, isto é, quem está ou não sob a proteção e submissão de um Estado-nação.

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3. Caráter nacional. A categoria de caráter nacional está eivada do cientificismo iluminista que pretendia identificar as características específicas de cada “tipo nacional”.

4. Patriotismo. Apesar de pertencer a outra raiz etimológica, o patriotismo reve-la a lealdade, a fidelidade, o amor e o orgulho pelo país.

5. Etnicidade e Raça. A etnicidade tenta agregar fatores biológicos que deno-tem uma identidade ou parentesco, culminando no conceito de raça como a identificação de uma comunidade a partir de seu patrimônio genético co-mum.

Outra característica importante do nacionalismo ainda abordada neste tópico refere-se a uma constante reivindicação de antiguidade, que leva a uma dimensão natural ou imemorial do conceito de nação.

questão reflexiva

Apesar das tentativas de caracterização geral, o nacionalismo como ideologia só pode ser identificado na experiência singular? Ou seja, há como identificar um com-plexo de idéias que sejam válidas e identificáveis universalmente, mas tão somente experiências de cunho nacionalistas localizadas no tempo e no espaço?

ii. Origens HistóriCas dO pensaMentO naCiOnalista

sociobiologia

Uma versão um tanto inverossímil da origem histórica do nacionalismo se localiza nas tribos e grupos étnicos primitivos remotos da antiguidade. Para tanto, pensa-dores da sociobiologia consideram que exista um instinto natural de se associar a partir de uma identidade gênica. Anthony Smith pontua que a etnicidade, enquanto fator congregador, é substituído na era moderna pelo nacionalismo; isto é, “as nações modernas simplesmente estendem, aprofundam e tornam mais efetivas as maneiras de associação e comunicação dos membros de uma etnia” (apud VICENT, 1995:241).

estado-nacional

Outra fonte histórica do nacionalismo pode ser encontrada na Revolução Fran-cesa com o crescimento e modernização do Estado-nacional.

Porém, a vertente que será abordada, mais precisamente, aponta para uma evo-lução história do nacionalismo:

i) Inicia-se como um complexo de idéias das classes médias e altas. ii) Com o passar do tempo, tais idéias se aprofundam e criam uma doutrina

política

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iii) Os nacionalismos de massas, logo em seguida, seriam sepultados com o fim da 2ª Guerra Mundial.

iv) Contudo, observadores apontam para um reavivamento do nacionalismo nos anos 90, tanto como um resgate de identidades regionais frente ao Esta-do-nação fragilizado pela globalização quanto como um movimento contra-hegemônico de países ou culturas frente ao movimento de homogeneidade global.

promoção do processo de modernização

Teoricamente, o nacionalismo sustenta que Estado tem a função de promover o processo de modernização, conservando-o e mediando os conflitos nele produzidos. A nação tem o condão de integrar o indivíduo no seio do Estado como forma de preservar a comunalidade ou solidariedade rumo ao desenvolvimento progressivo, racional, moderno e contínuo.

Comunidade e sociedade

Para os nacionalistas, a nação tem o importante papel de intermediar uma co-munalidade mais tradicional (comunidade – Gemeinschaft) e uma forma moderna de associação (sociedade – Gesellschaft). Mais claramente, Anthony Smith conclui que “para conservar a solidariedade e a legitimidade do regime, uma nova mitologia é criada em torno do renascimento da nação purificada, empenhada em restaurar a época áurea” (apud VICENT, 1995:243).

Crítica marxista

Na crítica marxista ao Estado moderno, o conceito nação é considerado uma ilu-são burguesa com o intuito de homogeneizar o território, a jurisdição, a língua e as leis de modo a construir o livre mercado desembaraçado de qualquer particularismo ou obstáculo feudal. Além do mais, para os marxistas o fundamento de nossa socie-dade está no conflito de classes, o que relega a um segundo plano as preocupações com a nação.

iii. a natUreza dO naCiOnalisMO

Neste tópico serão discutidas as principais vertentes que tentaram explicar a na-tureza do nacionalismo:

a) Liberal-nacionalismo: essa vertente do nacionalismo, com raízes no ilu-minismo, promove os valores liberais e o cosmopolitismo. Uma premissa bá-sica do liberal-nacionalismo enunciava que cada nacionalidade deveria ter seu próprio Estado, mas para tanto deveria incorporar um governo constitucional,

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democrático e com direitos e liberdades do indivíduo garantidas. Observavam que um dos maiores obstáculos ao nacionalismo estava na existência dos Esta-dos multinacionais imperiais, os quais restringiam o direito natural de autode-terminação dos povos.

Todavia, os liberais-nacionalistas não refletiram acerca das conseqüências do di-reito à autodeterminação dos povos que, inevitavelmente, promoveriam os movi-mentos separatistas no interior dos Estados e, por outro lado, não definiam quais seriam as bases para se distinguir movimentos separatistas com real direito à auto-determinação e os que deveriam ser submetidos ao Estado.

b) Nacionalismo conservador tradicionalista. Para os defensores desta corrente, a Revolução Francesa, a razão e a revolução eram categorias que deveriam ser com-batidas em nome da restauração das tradições comunais antigas, da continuidade histórica. Em certo ponto, reproduzem um ideal nacionalista romântico de iden-tidade em uma comunidade orgânica primeva. Desse modo, a pureza da língua, o compartilhamento de uma mesma cultura e mitologia autorizava a identificação de um espírito comum à nação.

Uma importante premissa no raciocínio nacionalista conservador a ser debatido é que este declara a precedência da nação, enquanto um espírito orgânico, sobre o indivíduo – idéias contrárias ao iluminismo materialista e individualista.

c) Nacionalismo integral. Um terceiro tipo de nacionalismo é denominado na-cionalismo integral, conscientemente imperialista porque defensor do espaço vital à nação. As idéias de volk e de vitalismo conformam esse nacionalismo, igualmente contrário aos ideais liberais. O caráter integral desse nacionalismo está na pretensão de constituir a nação o soberano político e o soberano moral, ignorando, assim, todas as outras formas de associação e de fidelidade.

Nesse sentido, pode-se dizer que os indivíduos só existem se no interior da na-ção? A existência e a liberdade são condições humanas características do organismo nacional?

iv. reflexões, paralelOs e asCendênCias dO naCiOnalisMO nO direitO

nas principais ideologias jurídicas

A. nAcionAlismo e jUsnAtUrAlismo

O nacionalismo expressa uma unidade complexa no pensamento jurídico. Quando recupera elementos de cultura, história, comportamento imemoriais como definidores da unidade nacional, o nacionalismo justifica o direito tal qual o jusna-turalismo, ou seja, a ascendência de uma ordem, sobrenatural ou atemporal, fun-dante da Nação. O Estado, nesse raciocínio, tem a função de otimizar o espírito nacional.

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b. vontAde gerAl e do monismo jUrídico

Todavia, a natureza jurídica do nacionalismo constitui a afirmação suprema do Estado e de suas leis. Como exposto acima, o nacionalismo caracteriza-se pela sub-missão dos indivíduos e das esferas sociais à centralidade estatal. Ou em outras palavras, grupos dominantes dominam o Estado, impõem uma idéia de nação na estrutura do direito estatal e denunciam como inimigos os grupos e idéias alter-nativas. Para a sustentar essa idéia de nação, os dogmas da lei como expressão da vontade geral e do monismo jurídico são os pilares da ideologia nacionalista para destruir o espaço público e afastar opiniões diversas. Nesse sentido o nacionalismo é uma ideologia jurídica positivista, pois reafirma a autoridade do direito posto pelo Estado, único sujeito autorizado a dizer o que é o interesse nacional.

v. exerCíCiOs: analisar Os prinCípiOs dO naCiOnalisMO nO OrdenaMentO jUrídiCO brasileirO

bibliografia básica

GUIBERNAU, Montserrat, Nacionalismos – O Estado nacional e o nacionalismo no século XX. Trad. Mauro Gama e Cláudio Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, pp 55-74.

bibliografia Complementar:

BALAKRICHNAN, Gopal (Org.). Um mapa da questão nacional. Rio de Janei-ro: Contraponto, 2000.

VINCENT, Andrew, Ideologias políticas modernas. Trad. Ana Luísa Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995, pp. 237-246.

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aula 20. moBilizaÇÃo do disCuRso naCionalisTa: “naÇões sem esTado”; “esTado sem naÇões”; diveRsidade éTno-CulTuRal, ToleRânCia e disCRiminaÇÃo

CasO: CHarges de MaOMé na eUrOpa

ira muçulmana contra a europa

Reações violentas a charges de Maomé acirram debate sobre liberdade de expressão

“A crise provocada pela publicação de charges com a imagem de Maomé au-mentou ontem, com protestos de vários governos de países islâmicos, manifestações violentas de radicais e uma onda de solidariedade de jornais europeus, que estão republicando os desenhos. ONU, Unesco, União Européia (UE) e organizações de jornalistas entraram num debate que envolve temas como liberdade de imprensa, denúncias de intolerância e racismo contra o Islã e a demissão de jornalistas de di-ários de França e Jordânia.

Houve manifestações de grupos religiosos na Síria, Tunísia e Paquistão e boicotes contra produtos da Dinamarca, Noruega e França. As ações mais violentas ocorre-ram nos territórios palestinos. Em Gaza, 12 integrantes armados de Jihad Islâmica e Brigadas de Mártires de al-Aqsa fecharam o escritório da UE, dizendo que só per-mitiriam a reabertura após um pedido de perdão. As Brigadas ameaçaram seqüestrar europeus e um alemão permaneceu por alguns minutos em poder de milicianos.

A Líbia fechou sua embaixada na Dinamarca. Arábia Saudita e Síria chamaram seus embaixadores de volta. Ontem, chefes de governo de países islâmicos protesta-ram, como o afegão Hamid Karzai:

– Um insulto ao santo profeta é um insulto a mais de um bilhão de muçulmanos e um ato como este jamais deve ter a permissão de se repetir.

O presidente do Egito, Hosni Mubarak, disse que o Ocidente deve estar ciente de que publicar as charges pode provocar terrorismo e o premier da Turquia, Tayyip Erdogan – cujo país tenta entrar na UE –, disse que a liberdade de imprensa deve ter limites.

As críticas foram rechaçadas pelo ministro do Interior da França, Nicolas Sarkozy: – Devemos defender a liberdade de expressão e, se tiver que escolher, prefiro o

excesso de caricatura ao excesso de censura.

islã proíbe imagens de profeta Maomé

O premier dinamarquês, Anders Rasmussen, disse que o caso foi além de uma disputa entre seu país e o mundo islâmico. Agora é entre “a liberdade de expressão ocidental e os tabus do Islã”. Ele convocou para hoje uma reunião com todos os embaixadores.

A confusão começou quando o maior jornal da Dinamarca, o “Jyllands-Posten”, publicou, em setembro, 12 charges de Maomé. Elas ilustravam uma reportagem sobre autocensura e liberdade de expressão, citando o caso em que um autor de

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livro infantil sobre Maomé não conseguiu encontrar desenhistas que se dispusessem a retratar o profeta do Islã. Na tradição islâmica, imagens de Maomé são proibidas, pois poderiam levar à idolatria.

Ontem, jornais de Suíça e Hungria republicaram as charges, repetindo o que já tinham feito diários de França, Espanha, Alemanha, Itália e Holanda. À noite, as TVs britânicas BBC e ITN puseram as imagens no ar.

Único jornal da França que publicara as charges originais até ontem – o “Le Monde” fez uma charge própria –, o “France Soir” surpreendeu o país. O dono do jornal, o franco-egípcio Raymond Lakah, demitiu o diretor Jacques Lefranc. Os funcionários não gostaram da medida e o editor escolhido para substituir Lefranc, Eric Fauveau, recusou-se e pediu demissão.

Único jornal árabe a divulgar as charges, o jordaniano “al-Shihan” as publicou sob o título “muçulmanos, sejam razoáveis”. “O que provoca mais preconceito con-tra o Islã? Caricaturas, imagens de um seqüestrador cortando a garganta de sua ví-tima, ou um homem-bomba num casamento em Amã?”. Os donos do “al-Shihan” demitiram seu diretor, Yihad Momani.”

O Globo, 3 de fevereiro de 2006

‘acho que temos o direito de chocar’robert Ménard

PARIS. Robert Ménard, secretário-geral da organização Repórteres sem Fron-teiras, faz um apelo à calma. Em entrevista ao GLOBO, ele defende a liberdade de imprensa, mas diz que é preciso ponderar sobre a publicação das charges.

Deborah Berlinck . CorrespondenteO senhor acha que o jornal dinamarquês que publicou as caricaturas e os que as

reproduziram incorreram numa provocação? ROBERT MÉNARD: Não acho que seja provocação. Entendo que isso tenha

chocado os muçulmanos, mas acho que temos o direito de chocar. Isso é a liberdade de imprensa. Essa liberdade tem dois limites, quando incita a violência, que não foi o caso, e no caso de ataques difamadores a uma pessoa, o que também não foi. Evi-dentemente, nos surpreendeu a violência da reação. Mas é hora de acalmar e parar de reproduzir as charges, para evitar que a violência verbal se transforme em física.

O que aconselha, então? MÉNARD: Continuar a publicar não vai fazer avançar o debate. Pode acabar

produzindo uma verdadeira violência. Que lição a imprensa deve tirar deste episódio? MÉNARD: Tiramos várias lições. Primeiro, vemos até que ponto a concepção

que temos em alguns países de liberdade de imprensa é estranha a outros países de tradição religiosa. Há um fosso na percepção global entre o que os muçulmanos e ocidentais acham que pode ser dito. Na Europa, e na França, em particular, brinca-mos e fazemos gracinha com o catolicismo há anos. E ninguém se choca. As pessoas podem dizer que não gostaram, mas a discussão não vai além disso. Mas isso é dife-rente no mundo muçulmano. A segunda lição é que quase não ouvimos nessa crise

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as vozes dos muçulmanos moderados. A terceira lição é que a crise mostra que pre-cisamos debater. Não conseguimos mais debater. Hoje não há debate, há insultos.

Há cinco milhões de muçulmanos na França e o “Le Monde” publicou uma carica-tura de Maomé em nome da liberdade de imprensa e em apoio ao jornal dinamarquês. O que acha?

MÉNARD: Fez bem. Porque o “Le Monde” não reproduziu as caricaturas (do jornal dinamarquês) e evitou o que poderia parecer uma provocação. Optou por publicar o ponto de vista dos caricaturistas. É preciso reafirmar a liberdade de ex-pressão, essencial na democracia.

Então, é preciso bom senso? MÉNARD: Sim, é preciso um pouco de bom senso, não apontar o dedo contra

todos os muçulmanos. É preciso achar um meio de discutir com algumas pessoas (muçulmanas). Há governos com os quais não podemos discutir. Como Arábia Saudita ou Líbia podem nos dar lições sobre o que devemos fazer, logo eles que calam sua própria imprensa e prendem seus jornalistas? Não aceitamos lição deles.

O Globo, 3 de fevereiro de 2006

‘Um verdadeiro abismo entre dois mundos’

Chefe de redação de diário dinamarquês teme que projeto de integração de minorias muçulmanas seja inviável.

As manifestações contrárias aos desenhos de Maomé levaram o chefe de redação do “Jyllands-Posten”, Carsten Juste, a pedir desculpas por sua publicação no jornal, o maior da Dinamarca. Em entrevista ao GLOBO por telefone, ele considerou exagerada a reação dos muçulmanos e acrescentou que é mais uma demonstração de que há um verdadeiro abismo, intransponível, entre o mundo muçulmano e o ocidental.

Graça Magalhães-Ruether. Correspondente BerlinSe soubesse que causaria tantas reações, o senhor teria renunciado à publicação das

caricaturas de Maomé? CARSTEN JUSTE: Se soubesse que haveria ameaças de bombas e que com isso

colocaria em risco a vida de dinamarqueses que vivem em países muçulmanos talvez tivesse refletido mais antes de decidir publicar as charges. Mas um respeito absoluto aos símbolos religiosos seria o fim da liberdade de imprensa. Nós agimos de acordo com a nossa lei de liberdade de imprensa.

Muitos muçulmanos que vivem na Dinamarca e em outros países da Europa se dis-seram ofendidos com as charges. Como o senhor vê essa reação?

JUSTE: Se eu ofendi sentimentos religiosos, já pedi desculpas por isso. Mas o que será da liberdade de imprensa se só pudermos publicar o que for de agrado dos muçulmanos? A reação não deveria ter assumido a dimensão que assumiu se os imãs muçulmanos dinamarqueses não tivessem levado o assunto aos países árabes. Acho que essa reação está relacionada ao fato de haver na Dinamarca, um país pequeno, de apenas cinco milhões de habitantes, um debate polêmico sobre os muçulmanos que imigraram há algumas décadas.

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Como surgiu a idéia de publicar as caricaturas de Maomé? JUSTE: Um escritor dinamarquês escreveu um livro sobre Maomé e queria en-

comendar desenhos dele para ilustrar o trabalho. Mas ele não encontrou ninguém disposto a desenhar o profeta, com medo de reações do mundo muçulmano. Re-solvemos abordar então o tema de forma jornalística e encomendamos a doze car-tunistas charges de Maomé. Nós não queríamos provocar, mas apenas explorar o tema jornalisticamente: Por que ninguém tem coragem de desenhar Maomé na Dinamarca, um país de população cristã protestante?

A polêmica atual deverá atrapalhar a integração das minorias muçulmanas na Eu-ropa?

JUSTE: Eu receio que o projeto de integração das minorias muçulmanas seja inviável porque há um abismo entre o mundo muçulmano e o cristão ocidental. O “Jyllands-Posten” tem explorado bastante o tema integração e chegou a ganhar um prêmio da União Européia por reportagens que ajudam a integração de muçulma-nos por um caderno especial que publicamos há seis meses. Tudo isso não é levado em consideração no momento atual.

É verdade que o senhor chegou a receber ameaças de morte? JUSTE: Eu recebi ameaças de morte, houve ameaças de bomba contra a redação

do “Jyllands-Posten”. Nós precisamos pedir proteção policial, mas acho que deve-mos tentar voltar à normalidade. E não deixar o assunto aumentar.

O Globo, 3 de fevereiro de 2006

a infantilidade das civilizações

Agora são charges do profeta Maomé com um turbante com a forma de uma bomba. Embaixadores foram retirados da Dinamarca, sauditas e sírios reclamam, países do Golfo tiram os produtos dinamarqueses dos mercados, milicianos de Gaza ameaçam a União Européia e jornalistas estrangeiros. Na Dinamarca, Fleming Rose, o editor de “cultura” do jornal que publicou estas charges bobas – em setembro, pelo amor de Deus – anunciou que estamos testemunhando um “choque de civilizações” entre as democracias seculares do Ocidente e as sociedades islâmicas. Isto prova, eu acho, que os jornalistas dinamarqueses seguem a tradição de Hans Christian Ander-sen. O que estamos testemunhando é a infantilidade das civilizações.

Vamos começar com o Departamento Interno de Verdades. Este não é um caso de secularismo contra o Islã. Para os muçulmanos, o profeta é o homem que recebeu as palavras divinas diretamente de Deus. Vemos nossos santos e profetas como figu-ras fracamente históricas, em contradição com nossos direitos e liberdade high-tech, quase caricaturas deles mesmos. O fato é que os muçulmanos vivem sua religião. Nós não. Eles mantiveram sua fé através de inumeráveis vicissitudes históricas. Nós perdemos nossa fé desde que Matthew Arnold (poeta e intelectual inglês do século XIX) escreveu sobre isso. É por isso que falamos de “Ocidente contra o Islã” em vez de “cristãos contra o Islã” – porque não sobram muitos cristãos na Europa. Não há um jeito de driblar todas as outras religiões mundiais e perguntá-las por que não podemos fazer graça de Maomé.

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Gosto quando há pomposas declarações de estadistas europeus dizendo que não podem controlar a liberdade de expressão ou os jornais. Isso é nonsense. Em alguns países europeus – França, Alemanha e Áustria, por exemplo – é proibido por lei negar atos de genocídio. Na França, por exemplo, é ilegal dizer que o Holocausto Judeu ou o Holocausto Armênio não ocorreram.

Para muitos muçulmanos, a reação “islâmica” neste caso esquálido é motivo de vergonha. Há um perfeito bom senso em acreditar que os muçulmanos gostariam de ver alguns elementos de reforma na sua religião. Se estas charges tivessem pro-movido avanços na causa daqueles que querem debater esta questão – se ela permite um diálogo sério – ninguém teria dado importância. Mas a intenção foi claramente ser provocativo. Foi tão ultrajante que só poderia ter provocado uma reação. E este não é o melhor momento para esquentar o velho lixo de Samuel Huntington sobre um “choque de civilizações”. O Irã agora tem um governo de clérigos novamente. Da mesma forma, para todos os efeitos, o Iraque também tem – apesar de não ter sido pensado que este país terminaria com um governo democraticamente eleito de clérigos, é isso que acontece quando se derrubam ditadores. Colocar a charge dinamarquesa sobre este fogo é perigoso.

Em todo caso, o problema não é se o profeta deveria ter sido retratado. O Alco-rão não proíbe imagens do profeta mesmo que milhões de muçulmanos o façam. O problema é que estes cartuns retrataram Maomé como uma imagem de violência ligada a Osama bin Laden. Eles retrataram o Islã como uma religião violenta. Não é. Ou queremos fazer com que ela seja?

04/02/2006, O Globo Por Robert Fisk. Ele é jornalista do “The Independent”

i. a natUreza HUMana: Cada naçãO pOssUi seU sisteMa OrgâniCO?

Na visão clássica do nacionalismo, estruturalmente os homens são seres so-ciais, ou seja, os homens somente se descobrem e se realizam através de sua “comunalidade nacional”. Para alguns, os homens são produto de seu meio e de suas circunstâncias, contudo, essa “igualdade” de constituição não leva ao igualitismo, bem ao contrário, as diferenças são ínsitas ao sistema orgânico que é a nação.

Para os nacionalistas liberais, do direito de autodeterminação derivava o de não sofrer qualquer agressão ou interferência nos assuntos internos. Mas, se uma nação ofendesse uma outra ou o seu próprio povo de maneira inadmissível, então, abrir-se-ia caminho para que sobre ela se interviesse para se impor uma determinada con-cepção de mundo que não mais ofendesse outras nações ou seu próprio povo. Disso bem se nota que se toleram os traços nacionais singulares enquanto inofensivos ou conforme ao padrão cosmopolitista universal hegemônico.

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ii. tOlerânCia, língUa e nações

Embora diversos nacionalismos tenham como princípio de unidade a língua, há, por outro lado, casos bem mais complexos – como, por exemplo, uma língua comum a duas nações diferentes ou uma nação que comporta diversas línguas. De toda forma, a homogeneidade lingüística tornou-se um fator essencial na formação e afirmação dos Estado-nacionais modernos. Será abordado de que forma, pela con-formidade à língua imposta como oficial, o comércio e a comunicação encontraram menos obstáculos à circulação. Pela conformidade à língua, também, é que se pode-ria ter acesso às elites intelectuais e políticas, bem como aos seus bens e privilégios.

Há que se destacar, igualmente, o ideal romântico de que a língua representava uma propriedade imemorial pertencente a um, e somente um, povo.

Para Herder, as impressões sensoriais de uma determinada localidade sobre o indivíduo formavam a base da língua, o que leva o indivíduo a formular respostas lingüísticas diferentes daquelas que um outro indivíduo sob as mesmas contingên-cias teria formulado. Por isso que os homens ao usarem a língua (pelo diálogo, conversa) constroem sua cultura, seus mitos, seus modos de expressão – todos eles muito singulares. Por isso, cada povo tem um espírito nacional característico, que não é biológico, mas um continuum cultural e histórico.

bibliOgrafia básiCa

GUIBERNAU, Montserrat, Nacionalismos – O Estado nacional e o nacionalismo no século XX. Trad. Mauro Gama e Cláudio Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, pp 110-138.

bibliOgrafia COMpleMentar:

VINCENT, Andrew, Ideologias políticas modernas. Trad. Ana Luísa Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995, pp. 250-260.

BALIBAR, Etienne, & WALLERSTEIN, Immanuel, Race, Nation, Class – Am-biguous Identities. London/New York: Verso, 1991.

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aula 21. naCionalismo em um mundo gloBalizado

CasO: terrOrisMO e segUrança naCiOnal

O terror ocidental

“Ensaísta canadense defende que o racismo do Ocidente com os árabes facilita o ‘recrutamento’ de terroristas.

Hussain Osman, um dos homens que supostamente participaram dos atentados frustrados em Londres em 21 de julho, disse recentemente a investigadores italianos que eles haviam se preparado para os atentados assistindo a ‘filmes sobre a guerra no Iraque’. ‘Especialmente aqueles em que mulheres e crianças eram mortas e exterminadas por soldados britânicos e norte-americanos... Os de viúvas, mães e filhas chorando.’

Tornou-se um artigo de fé que o Reino Unido era menos vulnerável ao terror por causa de seu anti-racismo politicamente correto. Mas os comentários de Osman sugerem que o que incentivou pelo menos alguns dos homens-bomba foi a raiva contra o que eles consideraram um racismo extremado. E de que outra coisa pode-ríamos chamar a crença – tão generalizada que mal a percebemos – de que as vidas norte-americanas e européias valem mais que as dos árabes e mulçumanos, tão mais que as mortes deles no Iraque sequer são contadas?

Não é a primeira vez que esse tipo de desigualdade crua engendra extremis-mo. Sayyid Qutb, o escritor egípcio geralmente considerado o arquiteto intelectual do radicalismo político islâmico, teve sua epifania ideológica quando estudava nos EUA. É verdade que o acadêmico puritano ficou chocado com as mulheres licen-ciosas do Colorado, mas mais significativo foi o contato de Qutb com o que ele mais tarde descreveu ‘discriminação racial maligna e fanática’ dos EUA. Por coin-cidência, Qutb chegou aos EUA em 1948, ano da criação do Estado de Israel. Ele testemunhou os EUA cegos para os milhares de palestinos que eram transformados em refugiados permanentes pelo projeto sionista.

Quando Qutb voltou ao Egito, entrou para a Irmandade Muçulmana, o que o levou ao próximo evento que mudaria sua vida: ele foi preso, severamente tortu-rado e condenado por conspiração contra o governo em um absurdo julgamento encenado. A teoria política de Qutb foi profundamente influenciada pela tortura. Não apenas ele considerava seus torturadores subumanos, como estendeu essa ca-tegorização para incluir todo o Estado que ordenou essa brutalidade, incluindo os muçulmanos praticantes que apoiavam passivamente o regime de Nasser.

A vasta categoria de subumanos de Qutb permitiu que seus discípulos justificas-sem a matança de ‘infiéis’ em nome do Islã. O movimento por um Estado islâmico foi transformado em uma ideologia violenta que constituiria o alicerce intelectual da Al Qaeda. Em outras palavras, o chamado terrorismo islâmico foi ‘cultivado em casa’ no Ocidente muito antes dos atentados de 7 de julho – foi quintessen-cialmente uma criação moderna do racismo casual do Colorado e dos campos de concentração do Cairo.

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Para que vale a pena desenterrar essa história? Porque as fagulhas gêmeas que acenderam a raiva de Qutb estão sendo atualmente embebidas em gasolina: árabes e muçulmanos são aviltados em câmaras de tortura ao redor do mundo e suas mortes estão sendo descontadas nas guerras coloniais simultâneas, ao mesmo tempo em que provas visuais digitais dessas perdas e humilhações estão à disposição de quem tenha um computador. E mais uma vez esse coquetel letal de racismo e tortura queima nas veias de jovens irados. Como revelam o passado de Qutb e o presente de Osman, não é nossa tolerância pelo multiculturalismo que alimenta o terrorismo; é nossa tolerância pela barbárie cometida em nosso nome.

inimigo oculto

Nesse ambiente explosivo entrou Tony Blair, determinado a vender duas das prin-cipais causas do terror como se fossem sua cura. Ele pretende deportar mais muçul-manos para países onde provavelmente enfrentam a tortura. E continuará lutando guerras em que os soldados não sabem os nomes das cidades que estão arrasando.

Enquanto isso, no Reino Unido, não falta a “discriminação racial maligna e faná-tica” que Qutb denunciou. “É claro que também houve atos isolados e inaceitáveis de ódio racial ou religioso”, Blair disse antes de revelar seu plano de combate ao terror. “Mas foram isolados”. Isolados? A Comissão Islâmica de Direitos Humanos recebeu 320 queixas de agressões racistas depois dos atentados; o Grupo de Monito-ramento recebeu 83 chamadas de emergência; e a Scotland Yard disse que os crimes de ódio aumentaram 600% nos últimos 12 meses. Não que a situação anterior a 7 de julho fosse digna de orgulho: “Um em cada cinco eleitores de minorias étnicas no Reino Unido diz que pensa em deixar o país por causa da intolerância racial”, revelou uma pesquisa do jornal “The Guardian”, em março.

Essa última estatística mostra que o tipo de multiculturalismo praticado no Reino Unido (e na França, Alemanha, Canadá...) tem muito pouco a ver com genuína igual-dade. Nada expõe tanto o raso dessa alegada tolerância quanto a velocidade com que as comunidades muçulmanas estão recebendo o aviso para “ir embora” (citando o de-putado conservador Gerald Howarth) em nome dos valores nacionais fundamentais.

O verdadeiro problema não é o excesso de multiculturalismo, mas sua escassez. Se a diversidade hoje guetificada nas margens das sociedades ocidentais – geográ-fica e psicologicamente – realmente tivesse permissão para migrar para os centros, poderia infundir na vida pública ocidental um novo e poderoso humanismo. Se ti-véssemos sociedades profundamente multiétnicas, em vez de multiculturais e rasas, seria mais difícil para os políticos assinar ordens de deportação, enviando argelinos que buscavam asilo para a tortura ou para lutar em guerras nas quais somente os invasores mortos são contados. Uma sociedade que realmente vivesse seus valores de igualdade e direitos humanos no país e no exterior teria outra vantagem. Tiraria dos terroristas o que sempre foi sua melhor ferramenta de recrutamento: nosso racismo.”

Naomi KleinFolha de São Paulo. Caderno Mais/2005. Trad. Luiz Roberto Mendes Gonçalves

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“Um único modelo sustentável para sucesso nacional: liberdade, democracia e livre iniciativa”

A estrAtégiA de segUrAnçA nAcionAl dos eUA“As grandes lutas do século 20 entre liberdade e totalitarismo terminaram com

uma vitória decisiva das forças da liberdade – e um único modelo sustentável para sucesso nacional: liberdade, democracia e livre iniciativa. No século 21, somente nações que compartilhem um comprometimento para proteger direitos humanos básicos e garantindo liberdade política e econômica serão capazes de libertar o po-tencial de seu povo e garantir sua prosperidade futura. Pessoas em todos os lugares querem ser capazes de falar livremente; escolher quem as vai governar; cultuar con-forme seu desejo; educar suas crianças – dos sexos masculino e feminino; possuir propriedade; e aproveitar os benefícios de seu trabalho. Esses valores de liberdade são direitos e verdadeiros para todas as pessoas, em todas as sociedades – e a tarefa de proteger esses valores contra seus inimigos é a exigência básica de pessoas, em todo o globo e de todas as idades, que apreciam a liberdade.

Hoje, os Estados Unidos aproveitam uma posição de poderio militar sem para-lelos e grande influência política e econômica. Mantendo nossas heranças e prin-cípios, nós não usamos nossa força para pressionar por vantagem unilateral. Nós buscamos, em vez disso, criar um equilíbrio de poder que beneficie a liberdade humana: condições de acordo com as quais todas as nações possam escolher por si mesmas as recompensas e desafios da liberdade política e econômica. Em um mun-do seguro, as pessoas podem fazer suas próprias vidas melhores. Nós defenderemos a paz lutando contra terroristas e tiranos. Nós preservaremos a paz construindo boas relações entre as grandes potências. Nós estenderemos a paz encorajando sociedades livres e abertas em todos os continentes.

Defendendo nossa nação contra seus inimigos é o primeiro e fundamental com-prometimento do Governo Federal. Hoje, essa tarefa mudou dramaticamente. Ini-migos no passado precisaram de grandes exércitos e grande capacidades industriais para ameaçar a América. Agora, redes obscuras de indivíduos podem trazer grande caos e sofrimento para nossas terras por menos do custo de um único tanque. Ter-roristas estão organizados para penetrar em sociedades abertas e para virar o poder de tecnologias modernas contra nós.

Para derrotar essa ameaça, nós devemos fazer uso de toda ferramenta em nosso arsenal – poderio militar, melhores defesas do território, garantia de obediência às leis, inteligência e esforços vigorosos para cortar o financiamento de terroristas. A guerra contra terroristas de alcance global é uma iniciativa global de duração incerta. A Amé-rica vai ajudar as nações que precisem de nossa assistência para combater o terror. E a América vai desafiar nações que estão comprometidas com o terror, incluindo aquelas que guardam terroristas, porque os aliados do terror são os inimigos da civilização. Os Estados Unidos e países colaborando conosco não podem permitir que terroristas de-senvolvam novas bases. Juntos, vamos buscar negar a eles refúgio, a todo momento.

O mais grave perigo que a nossa nação encara está no cruzamento de radicalis-mo e tecnologia. Nossos inimigos declararam abertamente que estão procurando

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armas de destruição de massas, e evidências indicam que eles estão fazendo isso com determinação. Os Estados Unidos não permitirão que esses esforços sucedam. Nós construiremos defesas contra mísseis e outros modos de ataques. Nós trabalharemos em conjunto com outras nações para negar, conter e reduzir os esforços de nossos inimigos para adquirir tecnologias perigosas. E, como um problema de senso co-mum e autodefesa, a América vai agir contra as ameaças desses inimigos antes que elas estejam totalmente formadas. Nós não podemos defender a América e nossos amigos somente esperando pelo melhor. Por isso devemos estar preparados para derrotar os planos de nossos inimigos, usando a melhor inteligência e procedendo com deliberação. A história julgará cruelmente aqueles que viram esse perigo, mas não agiram. No novo mundo em que entramos, o único caminho para paz e segu-rança é o caminho de ação.

Enquanto defendemos a paz, nós também tiraremos proveito de uma oportu-nidade histórica para preservar a paz. Hoje, a comunidade internacional tem sua melhor chance desde a ascensão do estado-nação no século 17 para construir um mundo em que grandes poderes compitam em paz em vez de continuamente se preparar para a guerra. Hoje, as maiores potências do mundo se encontram do mes-mo lado – unidas pelos perigos comuns de violência terrorista e caos. Os Estados Unidos se basearão nesses interesses comuns para promover a segurança mundial. Nós estamos também crescentemente unidos por valores comuns. A Rússia está no meio de uma transição esperançosa, alcançando seu futuro democrático e de par-ceira contra o terror. Líderes chineses estão descobrindo que liberdade econômica é a única fonte de riqueza nacional. Em tempo, descobrirão que liberdade política e social é a única fonte de grandiosidade nacional. A América encorajará o avanço da democracia e abertura econômica em ambas as nações, porque essas são as funda-ções de estabilidade doméstica e ordem internacional. Nós vamos resistir fortemen-te à agressão de outras grandes potências – ao passo que damos as boas-vindas a suas buscas por prosperidade, comércio e avanço cultural.

Finalmente, os Estados Unidos usarão esse momento de oportunidade para es-tender os benefícios de liberdade por todo o globo. Nós lutaremos ativamente para trazer a esperança de democracia, desenvolvimento mercados livres e livre comércio para todos os cantos do mundo. Os eventos de 11 de setembro de 2001 nos ensina-ram que Estados fracos, como o Afeganistão, podem ser uma grande ameaça aos nos-sos interesses como Estados fortes. A pobreza não torna pessoas pobres em terroristas e assassinos. Mas a pobreza, instituições fracas e corrupção podem tornar Estados fracos vulneráveis para redes terroristas e cartéis de drogas em suas fronteiras.

Os Estados Unidos estarão ao lado de qualquer nação determinada para cons-truir um futuro melhor por meio da busca de recompensas de liberdade para seu povo. Livre comércio e livre mercado provaram sua habilidade de tirar sociedades da pobreza – por isso os Estados Unidos trabalharão tanto com nações individual-mente, regiões inteiras e toda a comunidade global de comércio para construir um mundo que negocia com liberdade e, portanto, cresce em prosperidade. Os Estados Unidos fornecerão maior assistência de desenvolvimento por meio do ‘New Mil-lennium Challenge Account’ para nações que governem com justiça, invistam em

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seu povo e encorajam liberdade econômica. Nós também continuaremos a liderar o mundo nos esforços para reduzir o terrível índice de HIV/Aids e outras doenças infecciosas.

Construindo um equilíbrio de poder que favoreça a liberdade, os Estados Uni-dos estão guiados pela convicção de que todas as nações têm responsabilidades im-portantes. Nações que aproveitam liberdade devem ativamente lutar contra o terror. Nações que dependem de estabilidade internacional devem ajudar a evitar a distri-buição de armas de destruição de massas. Nações que buscam ajuda internacional devem governar a si mesmas com inteligência, para que a ajuda seja bem gasta. Pela liberdade de prosperar, responsabilidade deve ser esperada e exigida.

Nós também somos guiados pela convicção de que nenhuma nação sozinha pode construir um mundo mais seguro e melhor. Alianças e instituições multilaterais po-dem multiplicar a força de nações que apreciam a liberdade. Os Estados Unidos estão comprometidos com instituições como as Nações Unidas, a Otan e outras alianças duradouras. Coalizões com interessados podem aumentar as instituições permanentes. Em todo caso, obrigações internacionais devem ser levadas a sério. Elas não devem ser subestimadas simbolicamente para reunir apoio por um ideal sem ampliação de esforços.

A liberdade é uma exigência não-negociável da dignidade humana. O direito inato de todas as pessoas – em todas as civilizações. Ao longo da história, a liberdade foi ameaçada pela guerra e pelo terror; ela foi ameaçada pelos desejos conflitantes de Estados poderosos e ordens perniciosas de tiranos; e ela foi testada por amplas pobreza e doença. Hoje, a humanidade tem em suas mãos a oportunidade para ampliar o triunfo da liberdade sobre esses opositores. Os Estados Unidos dão as boas-vindas à nossa responsabilidade de liderar essa grande missão.”

George W. BushCasa Branca,(Folha on line. 29/10/2002)

qUestões

• ApretensacoincidênciaentreumEstadoeumanaçãotorna-seacadadiamais difícil de manter, seja pelas construções supranacionais, seja pelas estru-turas federativas intranacionais?

• Osproblemasenfrentadosnacontemporaneidadetranscendemabaseterri-torial do Estado-nação.

• Oquerealmentesignificaqueaeconomianacionalistaprimeporconduziros processos econômicos e modernizantes segundo os objetivos da “nação”?

• Ocosmopolitismo,servindoaosinteressesdasforçashegemônicas,apresen-ta-se como portador de um diálogo intercultural unidirecional, ou seja, tole-ra-se o diálogo enquanto não ofende a cultura dominante?

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i. Crise dO estadO-naçãO?

Será abordada a ambigüidade do termo Estado-nação, que advém da justapo-sição de dois termos igualmente ambíguos: “Estado” podendo denotar tanto um povo politicamente organizado quanto tão somente instituições de governo, ou ain-da uma estrutura legal constitucional; ao lado, nação, que significa ora uma identi-dade cultural específica ora uma entidade natural imemorial.

Assim, é difícil descobrir as raízes dessa justaposição de termos. Para alguns, há argumentos teóricos e históricos suficientes para afirmar a precedência da nação ao Estado, ao passo em que, para outros, há igualmente fontes que comprovam que historicamente os Estados Absolutistas precederam a existência de nações moder-nas. O que se pode concluir é que as estruturas sociais e legais do Estado absolutista serviram de bases para a constituição do Estado-nação, o que, portanto, comprova a dispensabilidade do “nacionalismo”, isto é, a nação como princípio de unidade do Estado.

Outras posições observam que um Estado seria mais governável quando coin-cidisse com uma nação; ao lado de outros que consideram que a nação próspera é aquela que tem uma estrutura estatal que lhe acoberta.

Importante lembrar que o Estado europeu típico até a Era das Revoluções foi um Estado dinástico, que adquiria território pelo casamento e o perdia pela divisão da herança real. O nacionalismo vem inserir a idéia original de que cada povo tem um território e cultura próprios. Hoje, os Estados que se pretendem fundados em uma nacionalidade exclusiva tornam-se anacrônicos.

Fundamento de sua soberania. Outro ponto fundamental no debate de Es-tado-nação refere-se ao fundamento de sua soberania. Nos primórdios da era moderna, tal princípio estava encarnado na figura (divina ou dinástica) do go-vernante, o que com as revoluções passou a se localizar no povo. Assim, estado-nacional soberano foi definido como sendo aquele em que seu povo é soberano, com o poder de elaborar suas próprias leis e dirigir seu próprio governo. Houve, portanto, uma associação entre os conceitos de soberania popular e de autode-terminação.

Nacionalismo e vontade geral. Um outro aspecto ainda analisado neste tópico é que para a justificação da ação estatal, houve uma conveniente associação entre na-cionalismo e o conceito de vontade geral. Como exposto por Rousseau, a vontade geral é um ente moral construído democraticamente pelo diálogo entre todos os cidadãos. Portanto, a vontade geral não é a soma das vontades individuais. E para evitar desvios, a comunidade cívica concorda em inserir a vontade geral em normas positivas estatais, ou seja, a vontade geral apresenta-se sob a forma de lei. Nesse sen-tido, quando um indivíduo ou grupo contesta a validade ou legitimidade de uma lei é compreendida pelo restante da comunidade como uma tentativa de sobrepor a vontade individual sobre a vontade geral – um sentimento egoísta e contrário à vida em comunidade.

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questão para debate

A ideologia nacionalista, portanto, utiliza-se desse dogma da lei como expressão da vontade geral para anular opiniões ideológicas contrárias denunciando-as como destruidoras da vontade geral, da unidade nacional?

Cosmopolitismo e nacionalismo. Outra tensão apresenta-se no binômio cosmopo-litismo e nacionalismo. O cosmopolitismo pode ser compreendido como um con-junto de idéias voltadas para o diálogo intercultural que reforça o que há de comum entre os povos – a humanidade. Em pólo contrário, o nacionalismo instaura sua identidade destacando a diferença particular. Contudo, no debate contemporâneo, o nacionalismo reforça sua diferença para manter sua identidade frente aos movi-mentos culturais e políticos homogeneizantes.

ii. a eCOnOMia naCiOnalista – livre COMérCiO e COsMOpOlitisMO

Basicamente, o movimento clássico nacionalista se autojustifica como uma dou-trina que busca tornar a nação relativamente auto-suficiente em tempos de guerra e próspera em tempos de paz. Para esse intento, os governos promovem um tratamen-to diferenciado às industrias nacionais, protegendo-as da competição predatória; favorecem o consumo interno; e controlam as entradas e saídas de modo a manter a balança comercial favorável.

Teoricamente, Fichte, em “The closed commercial State” (1800), formulou um modelo de Estado protetor que deveria controlar a vida, o trabalho e a segurança dos seus cidadãos a tal ponto que se dispensasse a busca desenfreada pelo lucro e acumulação de riqueza, ações essas que, para Fichte, levariam à anarquia e à guer-ra. Operacionalmente, caberia ao Estado impor os preços e os valores monetários, controlar a balança comercial e fechar progressivamente as fronteiras de modo a se tornar auto-suficiente economicamente.

Nesse esteio, será avaliado como o nacionalismo aprimorou seu discurso contra o livre comércio que prejudicasse os seus nacionais e contra o cosmopolitismo que operava segundo os valores individuais e liberais fragmentadores da nação e, ainda, reforçou o apoio e subsídios às indústrias nacionais, em especial, aquelas do setor estratégico – infra-estrutura, comunicações, bens industriais primários, etc.

iii. O naCiOnalisMO HOje: MUltiCUltUralisMO OU xenOfObisMO?

Visa avaliar duas vertentes fundamentais contemporâneas: o multiculturalismo e o crescente xenofobismo, com base no caso. Por um lado visa discutir a ideologia nacionalista a partir de dois contextos: as reivindicações nacionalistas do oriente médio, do Bálcãs, do Cáucaso, etc, e a doutrina do “Destino Manifesto” do EUA e sua guerra contra o terrorismo.

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questão para debate

Foi o multiculturalismo substituído pelo xenofobismo?

Entre todas as energias políticas, o nacionalismo aparece como a mais forte, a mais resistente. É, sem dúvida, a força mais importante da história moderna – o que pode ser comprovado pela resistência dos palestinos. Nem o colonialismo, nem o imperialismo, nem os totalitarismos conseguiram acabar com ele. A corrente na-cionalista não hesita em estabelecer as alianças mais impensáveis para atingir seus fins. Isso é bastante evidente no Afeganistão ou no Iraque, por exemplo, onde o na-cionalismo e o islamismo radical se unem para conduzir, por meio de novas formas – particularmente detestáveis – de terrorismo, uma luta de libertação nacional.

(...) Incapazes de vencer a Tchetchênia pelas armas, os russos querem mostrar que, na região do Cáucaso, nada pode ser feito sem eles. Continuam obcecados pelo espectro de um “segundo Afeganistão”. Uma nova derrota militar diante da nebulosa islamita na Tchetchênia seria ainda mais humilhante (a população tchetchena não chega a um milhão); isso poderia ser um rastilho de pólvora no Cáucaso e transfor-mar-se em nova desagregação territorial. Daí a recusa em aceitar qualquer tipo de negociação ou o reconhecimento do direito à autodeterminação. E a brutalidade da repressão, por sua vez, fabrica terroristas dispostos às loucuras mais criminosas. (Ignacio Ramonet. Editorial: O labirinto caucasiano. Le Monde Diplomatique. Edição brasileira, ano 5, número 57)

Na verdade, são os países mais fracos e mais pobres que causam as maiores histe-rias. (...) o país mais fraco e mais pobre é mais perigoso como exemplo. Se uma nação pequena e pobre como Granada pode ser bem-sucedida, alcançando um melhor ní-vel de vida para seu povo, em outro lugar que tenha mais recursos as pessoas poderão perguntar: “E nós, por que não?” (...) Eles [estrategistas dos EUA] entendem que a verdadeira ameaça é o “bom exemplo”. Em outras palavras, o que os EUA que-rem é “estabilidade”, quer dizer, segurança para “as classes dominantes e liberdade para as empresas estrangeiras”. Se isso pode ser obtido com métodos democráticos formais, OK. Se não, a ameaça à “estabilidade” causada pelo bom exemplo tem de ser destruída, antes que o vírus infecte os outros. É por isso que, mesmo se a menor partícula causar tal perigo, ela tem de ser esmagada. Noam Chomsky. O Que o Tio Sam Realmente Quer. (Disponível em: http://www.cibergeo.org/agbnacional/documen-tos/textoaberto20a.html)

“Introdução: Liberdade Cultural num Mundo Diversificado”. In: PNUD – Pro-grama das Nações Unidas para o Desenvolvimento. Relatório do desenvolvimento humano 2004: liberdade cultural num mundo diversificado. Lisboa: PNUD, 2004. (pp. 13-22)

Mito 1. As identidades étnicas das pessoas concorrem com a sua ligação ao Esta-do, pelo que existe um trade-off entre reconhecer a diversidade e unificar o Estado.

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Mito 2: Os grupos étnicos têm inclinação para o conflito violento mútuo, num choque de valores, pelo que existe um trade-off entre o respeito pela diversidade e a sustentação da paz.

Mito 3. A liberdade cultural exige a defesa das práticas tradicionais, por isso, poderá haver um trade-off entre o reconhecimento da diversidade cultural e outras prioridades do desenvolvimento humano, tais como o progresso no desenvolvimen-to, na democracia e nos direitos humanos.

Mito 4. Os países etnicamente diversificados são menos capazes de se desenvol-ver, pelo que existe um trade-off entre o respeito pela diversidade e a promoção do desenvolvimento.

Mito 5. Algumas culturas têm mais probabilidades de alcançar progressos desen-volvimentistas do que outras e algumas culturas têm valores democráticos inerentes, enquanto outras não, pelo que existe um trade-off entre a conciliação de certas cul-turas e a promoção do desenvolvimento e da democracia.

Disponível em www.pnud.org.br

bibliOgrafia

GUIBERNAU, Montserrat, Nacionalismos – O Estado nacional e o nacionalismo no século XX. Trad. Mauro Gama e Cláudio Martinelli Gama. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1997, pp 139-150.

BALAKRICHNAN, Gopal (Org.). Um mapa da questão nacional. Rio de Janei-ro: Contraponto, 2000.

bibliOgrafia COMpleMentar

VINCENT, Andrew, Ideologias políticas modernas. Trad. Ana Luísa Borges. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1995, pp. 260-270.

links e sites

www.integralismo.org.brhttp://www.acervoditadura.rs.gov.br/index3.htm

atividade complementar

Leitura: “Triste fim de Policarpo Quaresma” – Lima Barreto

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aula 22. seminÁRio

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unidade vi – fasCismo, nazismo e ToTaliTaRismo

aula 23. PoR denTRo do movimenTo nazisTa

Documentário: O triunfo da vontade. Dirigido por Leni Riefenstahl

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aula 24. oRigens e fundamenTos

CasO: siegfried ellwanger. COnsiderações preliMinares

breve histórico

“Siegfried Ellwanger é um editor e autor de Porto Alegre, de assumida orientação nazista. Dedica-se de forma sistemática a reeditar livros de estridente anti-semi-tismo como Os protocolos dos sábios de Siao. É autor da obra intitulada Holocausto – Judeu ou Alemão? nos bastidores da mentira do século, que denega o fato histórico do crime de genocídio. Por sua conduta voltada para deliberadamente incitar a discri-minação e o preconceito foi condenado em outubro de 1996 pelo crime da prática de racismo pela 3ª Câmara Criminal do Tribunal de Justiça do Rio Grande do Sul, com fundamento no art. 5º, XLII, e no art. 20 da Lei nº 7.716, de 15 de janeiro de 1990. A pena foi dois anos de reclusão, com benefício de sursis e a exigência de o réu prestar um ano de serviços à comunidade (...)

HC em seu favor foi impetrado no STJ em novembro de 2000 e denegado em dezembro de 2001 pela decisão majoritária de sua 5ª Turma. O argumento central do HC foi o de que o crime praticado por Ellwanger é o do incitamento contra judeus, mas não o da prática do racismo, pois os judeus não são uma raça. Com isso buscou o habeas corpus afastar a imprescritibilidade do delito cometido por Ellwanger (...)

Novo pedido de HC com base na mesma argumentação deu entrada no STF em 12 de setembro de 2002 onde teve parecer contrário da Procuradoria Geral da República. (...) O julgamento no STF prolongou-se por cinco longas sessões. Teve início em 12 de dezembro de 2002 e foi concluído em 17 de setembro de 2003. O HC foi indeferido pela maioria de oito votos.”

LAFER, Celso. Análise e interpretação do art. 5, XLII, da Constituição de 1988: sobre o alcance e o significado do crime da prática do racismo, uma discussão do caso Ellwanger e da decisão do STF no HC nº 82.424/RS. In: ________. A inter-nacionalização dos direitos humanos: Constituição, racismo e relações internacio-nais. Barueri/São Paulo: Manole, 2005. (pp. 97-98)

O art. 5º, XLII, da Constituição de 1988 diz: “a prática do racismo constitui crime inafiançável e imprescritível, sujeito à pena de reclusão nos termos da lei.”

stf – Habeas Corpus nº 82.424-2/rs

Relator originário: Min. Moreira Alves Relator para o acórdão: Min. PresidentePaciente: Siegfried EllwangerImpetrantes: Werner Cantalício João Becker e outra Coator: Superior Tribunal de Justiça

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Ementa: Habeas corpus. Publicação de livros: anti-semitismo. Racismo. Crime imprescritível. Conceituação. Abrangência constitucional. Liberdade de expressão. Limites. Ordem denegada.

1. Escrever, editar, divulgar e comerciar livros “fazendo apologia de idéias pre-conceituosas e discriminatórias” contra a comunidade judaica (Lei 7716/89, artigo 20, na redação dada pela Lei 8081/90) constitui crime de racismo sujeito às cláusu-las de inafiançabilidade e imprescritibilidade (CF, artigo 5º, XLII).

2. Aplicação do princípio da prescritibilidade geral dos crimes, uma vez que se os judeus não são uma raça, segue-se que contra eles não pode haver discriminação capaz de ensejar a exceção constitucional de imprescritibilidade. Inconsistência da premissa.

3. Raça humana. Subdivisão. Inexistência. Com a definição e mapeamento do genoma humano, cientificamente não existem distinções entre os homens, seja pela segmentação da pele, formato dos olhos, altura, pêlos ou por quaisquer outras ca-racterísticas físicas, visto que todos se qualificam como espécie humana. Não há diferenças biológicas entre os seres humanos. Na essência são todos iguais.

4. Raça e racismo. A divisão dos seres humanos em raças resulta de um proces-so de conteúdo meramente político-social. Desse pressuposto origina-se o racismo que, por sua vez, gera a discriminação e o preconceito segregacionista.

5. Fundamento do núcleo do pensamento do nacional-socialismo de que os ju-deus e os arianos formam raças distintas. Os primeiros seriam raça inferior, nefasta e infecta, características suficientes para justificar a segregação e o extermínio: incon-ciabilidade com os padrões éticos e morais definidos na Carta Política do Brasil e do mundo contemporâneo, sob os quais se ergue e se harmoniza o estado democrático. Estigmas que por si sós evidenciam crime de racismo. Concepção atentatória dos princípios nos quais se erige e se organiza a sociedade humana, baseada na respei-tabilidade e dignidade do ser humano e de sua pacífica convivência no meio social. Condutas e evocações aéticas e imorais que implicam em repulsiva ação estatal por se revestirem de densa intolerabilidade, de sorte a afrontar o ordenamento infra-constitucional e constitucional do País.

6. Adesão do Brasil a tratados e acordos multilaterais, que energicamente re-pudiam quaisquer discriminações raciais, aí compreendidas as distinções entre os homens por restrições ou preferências oriundas de raça, cor, credo, descendência ou origem nacional ou étnica, inspiradas na pretensa superioridade de um povo sobre outro, de que são exemplos a xenofobia, “negrofobia”, “islamafobia” e o anti-semitismo.

7. A Constituição Federal de 1988 impôs aos agentes de delitos dessa natureza, pela gravidade e repulsividade da ofensa, a cláusula de imprescritibilidade, para que fique, ad perpetuam rei memoriam, verberado o repúdio e abjeção da sociedade nacional à sua prática.

8. Racismo. Abrangência. Compatibilização dos conceitos etimológicos, etnoló-gicos, sociológicos, antropológicos ou biológicos, de modo a construir a definição jurídico-constitucional do termo. Interpretação teleológica e sistêmica da Cons-tituição Federal, conjugando fatores e circunstâncias históricas, políticas e sociais

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que regeram sua formação e aplicação, a fim de obter-se o real sentido e alcance da norma.

9. Direito comparado. A exemplo do Brasil as legislações de países organizados sob a égide do estado moderno de direito democrático igualmente adotam em seu ordenamento legal punições para delitos que estimulem e propaguem segregação racial. Manifestações da Suprema Corte Norte-Americana, da Câmara dos Lordes da Inglaterra e da Corte de Apelação da Califórnia nos Estados Unidos que consa-graram entendimento que aplicam, igualmente, sanções àqueles que transgridem as regras de boa convivência social com grupos humanos que simbolizem o exercício de racismo.

10. A edição e publicação de obras escritas veiculando idéias anti-semitas, que buscam resgatar e dar credibilidade à concepção racial definida pelo regime nazista, negadoras e subversoras de fatos históricos incontroversos como o holocausto, con-substanciadas na pretensa inferioridade e desqualificação do povo judeu, equivalem à incitação ao discrímen com acentuado conteúdo racista, reforçadas pelas conseqü-ências históricas dos atos em que se baseiam.

11. Explícita conduta do agente responsável pelo agravo revelador de manifesto dolo, baseada na equivocada premissa de que os judeus não só são uma raça, mas, mais do que isso, um segmento racial atávica e geneticamente menor e pernicioso.

12. Discriminação que no caso se evidencia como deliberada e dirigida especifi-camente aos judeus, que configura ato ilícito de prática de racismo, com as conse-qüências gravosas que o acompanham.

13. Liberdade de expressão. Garantia constitucional que não se tem como abso-luta. Limites morais e jurídicos. O direito à livre expressão não pode abrigar, em sua abrangência, manifestações de conteúdo imoral que implicam ilicitude penal.

14. As liberdades públicas não são incondicionais, por isso devem ser exercidas de maneira harmônica, observados os limites definidos na própria Constituição Federal (CF, artigo 5º, § 2º, primeira parte). O preceito fundamental de liberdade de expressão não consagra o “direito à incitação ao racismo”, dado que um direito individual não pode constituir-se em salvaguarda de condutas ilícitas, como sucede com os delitos contra a honra. Prevalência dos princípios da dignidade da pessoa humana e da igualdade jurídica.

15. “Existe um nexo estreito entre a imprescritibilidade, este tempo jurídico que se escoa sem encontrar termo, e a memória, apelo do passado à disposição dos vi-vos, triunfo da lembrança sobre o esquecimento”. No estado de direito democrático devem ser intransigentemente respeitados os princípios que garantem a prevalência dos direitos humanos. Jamais podem se apagar da memória dos povos que se pre-tendam justos os atos repulsivos do passado que permitiram e incentivaram o ódio entre iguais por motivos raciais de torpeza inominável.

16. A ausência de prescrição nos crimes de racismo justifica-se como alerta grave para as gerações de hoje e de amanhã, para que impeça a reinstauração de velhos e ultrapassados conceitos que a consciência jurídica e histórica não mais admitem.

Ordem denegada.

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ACÓRDÃOVistos, relatados e discutidos estes autos, acordam os Ministros do Supremo

Tribunal Federal, em Sessão Plenária, na conformidade da ata do julgamento e das notas taquigráficas, por maioria de votos, indeferir o habeas corpus.

Brasília, 17 de setembro de 2003Maurício Corrêa Presidente e relator para o acórdão

VOTOSMinistro Moreira Alves:“Não sendo, pois, os judeus uma raça, não se pode qualificar o crime por discri-

minação pelo qual foi condenado o ora paciente como delito de racismo, e, assim, imprescritível a pretensão punitiva do Estado”

Ministro Marco Aurélio:“A interpretação do inc. XLII do art. 5º da Constituição deve ser a mais limitada

possível, no sentido de que a imprescritibilidade só pode incidir no caso da prática de discriminação racista contra o negro, sob pena de se criar um tipo constitucional aberto imprescritível, algo, portanto, impensável em um sistema democrático de direito.”

Ministro Carlos Ayres de Brito:“Lendo o livro do paciente, da primeira à última edição e lendo outros livros

mencionados na denúncia cheguei à conclusão de que não houve racismo, não houve preconceito (...) Mantenho convictamente meu voto. Absolvo Siegfried Ellwanger.”

i. terMinOlOgia e Origens dO pensaMentO fasCista e naCiOnal-sOCialista

Visa apresentar uma genealogia histórica do termo fascismo. Este advém do la-tim fasces, que significa feixe de varetas, denotando unidade e força. Todavia, como ideologia política, o fascismo se tornou conhecido após a consolidação do regime fascista na Itália em 1922 e do nacional-socialismo na Alemanha em 1933. Embora estejam sob o mesmo espectro político, fascismo e nazismo partem de pensamentos nacionalistas diferentes.

O termo fascismo após a 2ª Guerra Mundial ficou marcado por uma forte carga negativa, referindo-se genericamente a qualquer tipo de experiência política totalitária.

Inicialmente, podemos indicar que o fascismo traz em seu bojo a crença ilu-minista de controle racional da natureza humana ao lado do desejo romântico de uma vida mais simples, primitiva. Apresenta como características gerais a exaltação da raça e do Estado representados na figura do líder e o uso de propaganda de massa e censura, tudo isso amarrado em uma concepção orgânica da sociedade e do Estado.

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Podemos localizar três fontes possíveis do fascismo:

a) Um estado de espírito instintivo, a-histórico – sendo para os alemães, a cons-ciência da raça ariana e, para os italianos, uma ligação umbilical com o Im-pério Romano;

b) Fruto do movimento cultural da Renascença e do Iluminismo; c) Uma reação tardia contra o ideário da Revolução Francesa (liberalismo, igua-

litismo, democracia, racionalismo, etc.).

Contudo, mais precisamente, o fascismo diz respeito a uma experiência histori-camente localizada que surge em 1922-1923, tem seu apogeu nos anos 30 e desa-parece com o término da 2ª Guerra. As mudanças no comércio internacional, um novo arranjo colonialista, a instabilidade política nos Estados europeus e o desen-cadeamento da 1ª Guerra Mundial, seguida de uma grande depressão econômica, foram fatores que contribuíram para o surgimento do fascismo como uma proposta de Estado forte capaz de reordenar as instituições políticas e sociais do país.

Apesar de diversos regimes adotarem práticas fascistas, o fascismo como ideo-logia pode ser identificado com precisão na Itália e na Alemanha entre os anos 20 e 30 do século XX. Na Alemanha sua relação primordial está na submissão total e irracional da sociedade e do Estado ao Volk para a defesa e promoção da raça ariana. Diferentemente, na Itália ao que se assistiu foi um Estado inserido na lógica racio-nalista ocidental para a promoção da modernização do país.

A dificuldade em precisar a natureza do fascismo está em que a maioria dos fascistas tornou-se antiintelectuais, o que os levou a não produzirem teoricamente sobre sua ação política. Por isso, para compreender o fascismo é útil passar pelas críticas que outras correntes ideológicas produziram sobre este movimento.

análise marxista

A análise marxista compreendia o fascismo como um movimento inserto na crise do capitalismo monopolista, quando o Estado é capturado pelas elites para neutralizar os conflitos de classe e melhorar a performance econômica.

pseudoprojeto de industrialização e modernização

O fascismo pode ser explicado como uma forma específica de, em um determi-nado contexto histórico, produzir industrialização e modernização.

resposta à crise da estrutura social

Igualmente, o fascismo também é explicado como uma resposta à crise da es-trutura social, o que levaria à tirania e à exaltação do líder redentor, e também à crise do sistema partidário ou fracasso da democracia parlamentar, que, por sua vez, levaria ao centralismo.

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ii. fasCisMO e tOtalitarisMO

Como vermos mais adiante neste tópico, o fascismo pode ser visto como mais uma forma totalitária ao lado do comunismo e stalinismo. No totalitarismo tem lugar uma política de mobilização de massas, um partido único monolítico, e ne-nhuma separação entre Estado e sociedade. O Estado tende ao domínio total da sociedade, da economia e das comunicações para produzir o seu efeito mais devasta-dor: o desenraizamento, físico e moral, dos indivíduos, que, isolados e atomizados, já não se identificam ou pertencem nem ao Estado nem a sociedade ou qualquer outro grupo. Este processo é o que se convenciona denominar ideologia do terror.

A partir do conceito de vitalismo, os regimes fascistas tendem a considerar os homens como massas frágeis e fáceis de manipulação. Mussolini é claro ao enfatizar que as massas são como crianças que devem ser repreendidas e presenteadas alter-nativamente.

Outro ponto forte do fascismo, oposto ao individualismo liberal, está em com-preender os homens como criaturas sociais, comunais por natureza. No fascismo italiano, o Estado era o princípio unificador dos indivíduos, a verdadeira e natural comunidade. Diferentemente, o nacional-socialismo alemão entendia que a dimen-são racial era o que unia os indivíduos. E mais, a vida emotiva instintiva ligava os homens ao Volk e ao impulso vital da natureza; assim, o objetivo não estava em, como acreditavam os liberais, controlar a natureza, mas antes, integrar-se a ela.

iii. naçãO, raça e vOlk

Neste tópico será discutida a premissa básica dos fascismos, de que os homens são antes de tudo criaturas de uma nação, de uma raça, de um Volk. O homem não existe per se, tal qual o liberalismo pregava. O fascismo, orientado por um pseudo-ideal comunitário, compreendia que a nação e a raça transcendem o conflito de classes. Lamentavam que a burguesia e o proletariado desperdiçassem sua energia vital em anseios materialistas e na política parlamentar. Ao contrário, o “Estado-so-ciedade” fascista estava orientado para preparar a nação para os tempos de guerra e para o heroísmo.

Para o fascismo italiano, segundo palavras de Mussolini, “não é a nação que gera o Estado... mais exatamente a nação é criada pelo Estado”, o que destoa do nacional-socialismo alemão que, segundo Hitler, “o Estado em si não cria um nível específico de cultural; pode apenas preservar a raça” (apud VICENT, 1995:163).

Para Hitler o fim do Império Austro-Húngaro foi devido a sua fragilidade racial; a partir disso, compreendeu que a miscigenação era sinal de decadência e desor-ganização da civilização. Logo, era necessária a busca pela pureza da raça ariana – a genuína raça – para o fortalecimento da Alemanha – um país humilhado na Primeira Guerra.

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bibliOgrafia básiCa

Leitura para as aulas 23, 24, 25:ARENDT, Hannah, Origens do totalitarismo. Trad. brasileira de Roberto Raposo.

São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 512-531.PAXTON, Robert, A Anatomia do Fascismo. São Paulo: Paz e Terra, 2007.

bibliOgrafia COMpleMentar

LAFER, Celso. A internacionalização dos direitos humanos: Constituição, ra-cismo e relações internacionais. Barueri/São Paulo: Manole, 2005, pp. 93-120.

VICENT, Andrew. Ideologias políticas modernas. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1995, pp. 146-174.

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aula 25. ToTaliTaRismo e “a vida nua”

CasO: siegfried ellwanger. pareCer CelsO lafer

trechos do parecer do caso ellwanger: o anti-semitismo como prática do racismo.

§ 12 “(...) discutir o crime da prática do racismo a partir do termo de raça nos termos dos argumentos apresentados no HC 82424-2 em favor de Siegfried Ellwanger é uma maneira de reduzir e, no limite, esvaziar completamente o conte-údo jurídico do preceito constitucional consagrado pelo art. 5º, LXII.”

§ 15 “(...) não é na raça – pois só existe uma raça humana – mas nas práticas dis-criminatórias do racismo, que são histórico-político-culturais, que reside o caminho para a correta interpretação e aplicação do art. 5º, LXII, da Constituição de 1988 e a sua correspondente legislação infraconstitucional.”

§ 17 “(...) Entre os grandes teóricos racistas, destacam-se Arthur de Gobineau (1816-1882), que fez a distinção entre a raça semita e a raça ariana, atribuindo a esta última uma superioridade física, moral e cultural. Gobineau esteve no Brasil como representante diplomático francês e comentou, na linha de sua visão racista: ‘Trata-se de uma população totalmente mulata, viciada no sangue e no espírito e assustadoramente feia’, e complementa: ‘Nenhum brasileiro é de sangue puro; as combinações dos casamentos entre brancos, indígenas e negros multiplicaram-se a tal ponto que os matizes de carnação são inúmeros, e tudo isso produziu, nas classes baixas e nas altas, uma degenerescência do mais triste aspecto’.

(...) A prática do racismo baseia-se, assim, no pressuposto da existência de raças humanas e no conseqüente estabelecimento de sua hierarquização. Por esse motivo, o argumento privilegiado das teorias racistas e de suas conseqüências sociais reside, como realça Clara Queiroz, no que entendiam ser a incontestabilidade das ciências biológicas.

As teorias racistas fizeram parte do processo de autolegitimação da expansão colonial européia e da ausência de freios e limites ao imperialismo. Um dos frutos disso foi o racismo institucionalizado do ‘apartheid’ na África do Sul, em proveito da minoria branca, que foi um dos grandes temas da agenda internacional dos di-reitos humanos da ONU.

Outra terrível conseqüência foi o racismo biológico institucionalizado na Ale-manha nazista, que afirmava não só a superioridade da raça germânica-ariana, mas o imperativo da luta contra as raças inferiores, entre as quais inseriam não só os ju-deus como também os ciganos e os eslavos. Essa luta, para recorrer a Carl Schmitt, que disso entendia, não tinha apenas a dimensão dos privata odia, voltada contra inimicos, mas era sobretudo uma guerra pública dirigida contra as raças inferiores, identificada como hostes (...) Daí o alcance avassalador dos ódios públicos do racismo nazista, que levou aos campos de concentração, ao Holocausto e ao ineditismo, na História da Humanidade, do crime de genocídio, que estão na base da grande re-flexão de Hannah Arendt sobre o totalitarismo no século XX e do grande tema do

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‘direito a ter direitos’ como ponto de partida da reconstrução dos direitos humanos (...) Foram esses fatos que levaram, no pós-Segunda Guerra Mundial, à inclusão ampla da agenda dos direitos humanos no plano internacional.”

§ 18 “(...) Se o racismo não pode ser justificado por fundamentos biológicos, ele, no entanto, persiste como fenômeno social. É esse fenômeno social, e não a “raça”, o destinatário jurídico da repressão prevista pelo art. 5º, LXII, da Constituição da 1988 (...) o conteúdo jurídico do crime da prática do racismo tem o seu núcleo nas teorias e ideologias e na sua divulgação, que discriminam grupos e pessoas, a elas atribuindo as características de uma “raça” inferior.”

§ 19 “(...) Esclarece, também, Bobbio que os postulados do racismo como visão do mundo, que independe da fundamentação científica, como foi visto, são três: (i) a humanidade está dividida em raças, cuja diversidade é dada por características biológicas e psicológicas. Estas têm elementos culturais que derivam, porém, das características biológicas, cuja natureza é invariável e se transmite hereditariamente; (ii) não só existem raças diversas, mas existem raças superiores e inferiores; e (iii) não só existem raças, e estas se dividem entre superiores e inferiores, como também as superiores têm o direito de dominar as inferiores.

(...) O último grau na escala da violência do tratamento racista é a agressão física. Esta começa de modo esporádico, contra alguns indivíduos – é o que fazem os ski-nheads – e chega ao extermínio premeditado e de massa. O extermínio premeditado de massa tem nas câmaras de gás dos campos de concentração da Alemanha nazista a sua terrível exemplificação, pois foi o meio técnico por excelência do Holocausto como crime de genocídio. O paradigma deste último grau na escala da violência é o “Estado racial” no qual se transformou a Alemanha nazista de Hitler. A Alemanha de Hitler, realça Bobbio, foi “um Estado racial no mais pleno sentido da palavra, pois a pureza da raça devia ser perseguida não só eliminando indivíduos de outras raças, mas também indivíduos inferiores física e psiquicamente da própria raça, como os doentes terminais, os prejudicados psíquicos, os velhos não mais auto-suficientes.”

IX – Síntese Conclusiva §§28-37§ 34 (...)As teorias racistas buscaram sua fundamentação nas ciências biológicas. Justi-

ficaram a prepotência da expansão colonial européia e foram a base do racismo biológico institucionalizado da Alemanha nazista.

(...)As teorias racistas não têm fundamentação biológica. Persistem, no entanto,

como fenômeno social. É por essa razão que é este fenômeno, e não a “raça”, o des-tinatário jurídico da repressão prevista pelo art. 5º, LXII, da Constituição.

§ 35 As teorias e visões do mundo sobre o racismo partem do princípio de que existem raças; que estas se dividem entre superiores e inferiores e que as superiores têm o direito de dominar as inferiores. Uma visão racista do mundo leva a distintas escalas de agressividade, lastreada pelo não reconhecimento aos “outros” dos mes-mos direitos e garantias, cujo fundamento é o princípio da igualdade e o corolário da não discriminação. A escala de agressividade se intensifica com a violência da

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segregação de que é exemplo o que foi o apartheid na África do Sul. O paroxismo da violência é o extermínio físico, tal como tipificado pelo crime do genocídio. O paradigma desse paroxismo foi o Holocausto levado a efeito pelo Estado Racial em que se converteu a Alemanha nazista, que conduziu uma guerra pública contra as raças inferiores, com destaque para o extermínio de judeus.

A Carta da ONU procurou responder ao ineditismo da escala sem precedentes do mal, da experiência da Segunda Guerra Mundial e de seus antecedentes. Nesta resposta, deu realce para o que representou o genocídio como afronta ao valor da dignidade da pessoa humana. Fez, assim, da tutela dos direitos humanos no plano internacional não um tema circunscrito, mas um tema global.

Na etapa da especificação, do processo de positivação dos Direitos Humanos no âmbito do Direito Internacional Público, em matéria de discriminação racial, o grande texto jurídico é a Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial de 1965 (...) qualifica, no seu art. 1º, como discri-minação racial qualquer distinção, exclusão, restrição ou preferência baseadas em raça, cor, descendência ou origem nacional e estipula, no seu art. 4º, como delito, a difusão de idéias baseadas na superioridade ou ódios raciais ou qualquer incitamento à discrimina-ção racial, tal como definido no art. 1º. A prática do crime de racismo inclui, assim, o anti-semitismo, que é um fenômeno social, que independe de um inexistente e impreciso conceito de “raças”.

§ 36 As práticas do racismo, na experiência histórica do Brasil, em oposição ao que alega o impetrante, tiveram uma amplitude de destinatários que foram vi-timados pela discriminação. Negros, mulatos, índios, ciganos, judeus foram, em diversos momentos da nossa História, considerados “raças inferiores” e, como tal, discriminados.

(...) Na década de 30, teve irradiação em nosso país o racismo nazista alemão, que tinha no anti-semitismo o seu foco preponderante. Isto contribuiu para a exis-tência de práticas racistas no aparelho do Estado, em especial no que tange às res-trições da imigração de judeus para o Brasil na década de 30 e durante a Segunda Guerra Mundial, justificadas por critérios raciais.

§ 37 (...) O crime de Siegfried Ellwanger é o da prática do racismo, crime de que nos queremos livrar, em todas as suas vertentes, para construir uma sociedade digna. Tem a especificidade de querer preservar, por meio de publicações, viva, a memória de um anti-semitismo racista. Foi esse anti-semitismo que levou, no Es-tado Racial em que converteu a Alemanha nazista, à escala sem precedentes o mal representado pelo Holocausto. O Holocausto é a recusa da condição humana da pluralidade e da diversidade, que contesta, pela violência do extermínio, os prin-cípios da igualdade e da não discriminação, que são a base da tutela dos direitos humanos. O crime de Siegfried Ellwanger, por apontar nessa direção do mal, não admite o esquecimento.

LAFER, Celso. O caso Ellwanger: o anti-semitismo como prática do racismo. [Pare-cer] Revista de Informação Legislativa, Brasília, ano 41, nº 162, abr/jun 2004. (pp.53-89)

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tópicos do parecer pra discussão em aula

• Discutirocrimedapráticadoracismoapartirdotermodequeraçaéesva-ziar completamente o conteúdo jurídico do preceito constitucional consa-grado pelo art. 5º?

• Nãoénaraça–poissóexisteumaraçahumana–masnaspráticasdiscrimi-natórias do racismo, que são histórico-político-culturais.

• Ousodotermoraçaremeteàpossibilidadedeatribuiçõesedistinçõesàsu-perioridade física, moral e cultural.

• Apráticadoracismobaseia-se,assim,nopressupostodaexistênciaderaçashumanas e no conseqüente estabelecimento de sua hierarquização.

• Asteoriasracistasencontramsuportenasciênciasbiológicas.Caso:racismobiológico institucionalizado na Alemanha nazista, que afirmava não só a su-perioridade da raça germânica-ariana.

• Análisedo“alcanceavassaladordosódios públicos do racismo nazista, que le-vou aos campos de concentração, ao Holocausto e ao ineditismo, na História da Humanidade, do crime de genocídio, que estão na base da grande reflexão de Hannah Arendt sobre o totalitarismo.”

• Seoracismonãopodeserjustificadoporfundamentosbiológicos,ele,noentanto, persiste como fenômeno social.

• Ideologiae lógica totalitária.Oconteúdo jurídicodocrimedapráticadoracismo tem o seu núcleo nas teorias e ideologias?

• Estadototal.“Estadoracial”noqualsetransformouaAlemanhanazistadeHitler.• Perdadapluralidade,anatalidadeeaindividualidade.“Umavisãoracistado

mundo leva a distintas escalas de agressividade, lastreada pelo não reconhe-cimento aos ‘outros’ dos mesmos direitos e garantias, cujo fundamento é o princípio da igualdade e o corolário da não discriminação.”

• Malradical.Aaniquilaçãodohumanorespondeaoineditismodaescalasemprecedentes do mal. “Foi esse anti-semitismo que levou, no Estado Racial em que converteu a Alemanha nazista, à escala sem precedentes o mal represen-tado pelo Holocausto.”

• “Holocaustoéarecusadacondiçãohumanadapluralidadeedadiversidade,que contesta, pela violência do extermínio, os princípios da igualdade e da não discriminação, que são a base da tutela dos direitos humanos.”

• “OcrimedeSiegfriedEllwanger”,porapontarnessadireçãodomal,nãoadmite o esquecimento.

i. tOtalitarisMO: UM nOvO regiMe pOlítiCO

as leis de movimento

As leis positivas, que sempre garantiram o equilíbrio social, e preservaram a es-tabilidade da tutela dos cidadãos, viram-se empalidecidas em nome de normas que,

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segundo a ideologia totalitária, seguiam rigorosamente as Leis da Natureza e Leis da História. Os sujeitos passaram a compor um quadro de peças secundárias no processo de decisão, visto que tal inversão implicava a idéia de que o próprio mo-vimento da História e da Natureza seria o agente, o sujeito da ação política. “Em lugar das fronteiras e dos canais de comunicação entre os homens enquanto indiví-duos, constrói um cinturão de ferro que os cinge de tal forma que é como se a sua pluralidade se dissolvesse em Um-Só-Homem de dimensões gigantescas.” (Hannah Arendt, Origens do Totalitarismo) O poder de fazer crer que cada um cumpria o papel de representante direto das ordens do Führer, ou mesmo que cada um poderia alcançar ascensão social, um «triunfo individual», não implicava a simples presença do fator ambição, embora, como afirmamos, o interesse próprio fosse uma carta freqüentemente utilizada no jogo ideológico da Alemanha Nazista.

perda da comunicabilidade e perda do ponto de vista dos outros

A quebra da comunicação responsável pela dimensão do real: “Nenhuma co-municação era possível com ele, não porque ele mentisse, mas sim porque estava cercado da mais confiável de todas as defesas contra palavras e a presença de outros, e portanto contra a realidade como tal.” (Hannah Arendt) O ponto de vista se en-raíza no modus operandi da qualidade própria de estar no mundo, da realidade, que envolve cidadão, opinião e comunicação. O fio que possibilitaria a comunicabilida-de havia sido quebrado pela “ideologia” totalitária. De certa forma, estava patente que havia uma certa lógica em tal ideologia, que teria partido o liame condutor do contato com a pluralidade de pensamentos próprios da vida coletiva.

a diluição do senso comum

Enquanto o senso comum pressupõe um mundo em que todos compartilham da vida social, vivem juntos, e é dotado de um sentido capaz de ajustar as percepções pessoais às dos outros, a lógica empregada no Totalitarismo adquiria realidade in-dependentemente da existência das pessoas e da pluralidade do mundo. A perda do senso comum, da pluralidade que se compartilha na vida social, encobria uma falta de sentido mais profunda do que a perda da capacidade de ação política: “... o que assusta no crescimento do Totalitarismo não é que seja algo novo, mas sim que te-nha trazido à luz a ruína de nossas categorias de pensamento...” (Hannah Arendt)

ii. ideOlOgia e lógiCa tOtalitária

O aprendizado do Totalitarismo não instigou convicções, mas, justamente, des-truiu a capacidade de adquiri-las, retirando dos indivíduos os seus papéis de atores. Esta destruição se fez através do campo ideológico. Hannah Arendt aponta três elementos específicos constitutivos desta ideologia:

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1. a sua pretensão de explicação total, sem deixar nenhuma lacuna na elucida-ção dos acontecimentos históricos, circunscrevendo seus três tempos, passa-do, presente e futuro.

2. como conseqüência, a própria emancipação da realidade, visto que a lógica do sistema nazista, que se movimenta sempre em termos de um processo de autogerenciamento, necessita para produzir seus resultados que o indivíduo se capacite a ler através da ilusão da realidade aparente, denominado de “sig-nificado secreto”.

3. representa o ponto culminante da força da ideologia e, ao mesmo tempo, corrobora com a destruição do processo do pensamento, foi a libertação do pensamento da experiência. Na estrutura do “aparelho” ideológico, há um processo lógico que, gerando-se a si próprio, não emana da experiência, tam-pouco da realidade, mas da sua força dedutiva que, através da dialética ou da lógica, se auto-argumenta e se auto-explica, uma lógica que se liberta total-mente das argumentações da realidade e da experiência.

iii. a sUperflUidade dO HUManO e O Mal pOlítiCO radiCal

Um tipo de sistema capaz de dominar radicalmente o homem. Um dos maiores veículos eram os horrores dos campos de concentração, onde o ser humano perdia a sua condição de pessoa jurídica, de pessoa moral e sua unicidade enquanto indiví-duo. Esta redução radical do humano possuía força suficiente para diluir os limites de inteligibilidade do homem em compreender este fenômeno.

iv. da sUpressãO dO direitO à sUpressãO da vida

Aniquilação da dignidade humana. Os métodos dos campos de concentração tinham o poder absoluto de matar o psíquico e ainda manter o corpo pulsando, um fenômeno que escapava totalmente ao nosso entendimento. O radicalismo das medidas destinava-se a tratar pessoas como se nunca houvessem existido, e a fazê-las desaparecer no sentido literal do termo. Neste tópico acentuaremos a forma abso-luta com que os campos de concentração conseguiram aniquilar o próprio valor representativo da vida e da morte, fazendo minar todo o conjunto de característi-cas que tradicionalmente configuraram o humano, destituindo-o simplesmente da existência.

questões

• Noextremo,podemosdizerqueoápicedadominação,asuafacetamais“ra-dical”, foi destituir o homem do seu elemento mais intrínseco, uma das re-presentações mais decisivas, a sua morte, pois o próprio significado da morte foi aniquilado?

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• Ostestesderesistênciahumanaemsuportarador.Oscamposdeconcentra-ção – destruição de elementos que eram essenciais à vida definida como vida humana, ou seja, a pluralidade, a natalidade e a individualidade.

• Omalradical.Osucessodototalitarismoé idênticoaumaliquidaçãodaliberdade como realidade política e humana muito mais radical do que qual-quer coisa que já tenhamos testemunhado antes. A “radicalidade” dos cam-pos de concentração desvelava o ilimitado poder do homem em diluir com-pletamente, em todos os níveis, a própria célula do que havia caracterizado a natureza humana, a liberdade: a radicalidade com que a liberdade humana fora liquidada.

bibliOgrafia básiCa:

Leitura para as aulas 23, 24, 25:ARENDT, Hannah, Origens do totalitarismo. Trad. brasileira de Roberto Raposo.

São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 512-531.PAXTON, Robert, A Anatomia do Fascismo. São Paulo: Paz e Terra, 2007.

bibliOgrafia COMpleMentar:

LACLAU, Ernesto, Política e Ideología en la Teoría Marxista – Capitalismo, Fascis-mo, Populismo. Madrid: Siglo Veintiuno Editores, 1978.

RÜRUP, Reinhard, Topography of Terror. Berlin: Verlag Willmuth Arenhövel, 14 edition, 2004.

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aula 26. esTado ToTal

“Nenhuma constituição do mundo havia, como a de Weimar, legalizado tão facil-mente um golpe de Estado.” (Carl Schmitt)

i. estadO de exCeçãO

“O estado de exceção não é uma ditadura (constitucional ou inconstitucional, comissária ou soberana), mas um espaço vazio de direito, uma zona de anomia em que todas as determinações jurídicas – e, antes de tudo, a própria distinção entre pú-blico e privado – estão desativadas. Portanto, são falsas todas aquelas doutrinas que tentam vincular diretamente o estado de exceção ao direito, o que se dá com a teoria da necessidade como fonte jurídica originária, e com a que vê no estado de exceção o exercício de um direito do Estado à própria defesa ou a restauração de um originário estado pleromático do direito (os “plenos poderes”). Mas igualmente falaciosas são as doutrinas que, como a de Schmitt, tentam inscrever indiretamente o estado de exce-ção num contexto jurídico, baseando-o na divisão entre norma de direito e normas de realização do direito, entre poder constituinte e poder constituído, entre norma e decisão. O estado de necessidade não é um “estado do direito”, mas um espaço sem direito (mesmo não sendo um estado de natureza, mas se apresenta como a anomia que resulta da suspensão do direito)”.

AGAMBER, Giorgio. Estado de exceção. São Paulo: Boitempo, 2004. (pp.78-79)

Constituição de weimar

“Art. 48 – Se, no Reich alemão, a segurança e a ordem pública estiverem seria-mente [erheblich] conturbadas ou ameaçadas, o presidente do Reich pode tomar as medidas necessárias para o restabelecimento da segurança e da ordem pública, even-tualmente com a ajuda das forças armadas. Para esse fim, ele pode suspender total ou parcialmente os direitos fundamentais [Grundrechte], estabelecidos nos artigos 114, 115, 117, 118, 123, 124 e 153.”

Constituição brasileira 1988

Art. 136 – O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República e o Conselho de Defesa Nacional, decretar estado de defesa para preservar ou pron-tamente restabelecer, em locais restritos e determinados, a ordem pública ou a paz social ameaçadas por grave e iminente instabilidade institucional ou atingidas por calamidades de grandes proporções na natureza.

§ 1º – O decreto que instituir o estado de defesa determinará o tempo de sua duração, especificará as áreas a serem abrangidas e indicará, nos termos e limites da lei, as medidas coercitivas a vigorarem, dentre as seguintes:

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I – restrições aos direitos de:a) reunião, ainda que exercida no seio das associações;b) sigilo de correspondência;c) sigilo de comunicação telegráfica e telefônica;II – ocupação e uso temporário de bens e serviços públicos, na hipótese de cala-

midade pública, respondendo a União pelos danos e custos decorrentes.§ 2º – O tempo de duração do estado de defesa não será superior a trinta dias,

podendo ser prorrogado uma vez, por igual período, se persistirem as razões que justificaram a sua decretação.

§ 3º – Na vigência do estado de defesa:I – a prisão por crime contra o Estado, determinada pelo executor da medida, será

por este comunicada imediatamente ao juiz competente, que a relaxará, se não for legal, facultado ao preso requerer exame de corpo de delito à autoridade policial;

II – a comunicação será acompanhada de declaração, pela autoridade, do estado físico e mental do detido no momento de sua autuação;

III – a prisão ou detenção de qualquer pessoa não poderá ser superior a dez dias, salvo quando autorizada pelo Poder Judiciário;

IV – é vedada a incomunicabilidade do preso.§ 4º – Decretado o estado de defesa ou sua prorrogação, o Presidente da Repú-

blica, dentro de vinte e quatro horas, submeterá o ato com a respectiva justificação ao Congresso Nacional, que decidirá por maioria absoluta.

§ 5º – Se o Congresso Nacional estiver em recesso, será convocado, extraordina-riamente, no prazo de cinco dias.

§ 6º – O Congresso Nacional apreciará o decreto dentro de dez dias contados de seu recebimento, devendo continuar funcionando enquanto vigorar o estado de defesa.

§ 7º – Rejeitado o decreto, cessa imediatamente o estado de defesa.Art. 137 – O Presidente da República pode, ouvidos o Conselho da República

e o Conselho de Defesa Nacional, solicitar ao Congresso Nacional autorização para decretar o estado de sítio nos casos de:

I – comoção grave de repercussão nacional ou ocorrência de fatos que compro-vem a ineficácia de medida tomada durante o estado de defesa;

II – declaração de estado de guerra ou resposta a agressão armada estrangeira.Parágrafo único. O Presidente da República, ao solicitar autorização para de-

cretar o estado de sítio ou sua prorrogação, relatará os motivos determinantes do pedido, devendo o Congresso Nacional decidir por maioria absoluta.

Art. 138 – O decreto do estado de sítio indicará sua duração, as normas necessá-rias a sua execução e as garantias constitucionais que ficarão suspensas, e, depois de publicado, o Presidente da República designará o executor das medidas específicas e as áreas abrangidas.

§ 1º – O estado de sítio, no caso do art. 137, I, não poderá ser decretado por mais de trinta dias, nem prorrogado, de cada vez, por prazo superior; no do inciso II, poderá ser decretado por todo o tempo que perdurar a guerra ou a agressão ar-mada estrangeira.

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§ 2º – Solicitada autorização para decretar o estado de sítio durante o recesso parlamentar, o Presidente do Senado Federal, de imediato, convocará extraordi-nariamente o Congresso Nacional para se reunir dentro de cinco dias, a fim de apreciar o ato.

§ 3º – O Congresso Nacional permanecerá em funcionamento até o término das medidas coercitivas.

Art. 139 – Na vigência do estado de sítio decretado com fundamento no art. 137, I, só poderão ser tomadas contra as pessoas as seguintes medidas:

I – obrigação de permanência em localidade determinada;II – detenção em edifício não destinado a acusados ou condenados por crimes

comuns;III – restrições relativas à inviolabilidade da correspondência, ao sigilo das co-

municações, à prestação de informações e à liberdade de imprensa, radiodifusão e televisão, na forma da lei;

IV – suspensão da liberdade de reunião;V – busca e apreensão em domicílio;VI – intervenção nas empresas de serviços públicos;VII – requisição de bens.Parágrafo único. Não se inclui nas restrições do inciso III a difusão de pronun-

ciamentos de parlamentares efetuados em suas Casas Legislativas, desde que libera-da pela respectiva Mesa.

Art. 140 – A Mesa do Congresso Nacional, ouvidos os líderes partidários, desig-nará Comissão composta de cinco de seus membros para acompanhar e fiscalizar a execução das medidas referentes ao estado de defesa e ao estado de sítio.

Art. 141 – Cessado o estado de defesa ou o estado de sítio, cessarão também seus efeitos, sem prejuízo da responsabilidade pelos ilícitos cometidos por seus executo-res ou agentes.

Parágrafo único. Logo que cesse o estado de defesa ou o estado de sítio, as medi-das aplicadas em sua vigência serão relatadas pelo Presidente da República, em men-sagem ao Congresso Nacional, com especificação e justificação das providências adotadas, com relação nominal dos atingidos e indicação das restrições aplicadas.

qUestões

• Quaisosfundamentosparadeclaraçãodeumestadodesítio?• Paraquesedeclaraoestadodesítio?• QuaisasdiferençasentreumEstadoemtempos“normais”eem“umestado

de sítio”?• Oqueexplicariaaexistênciadedispositivosconstitucionaistãosemelhan-

tes entre a Constituição Brasileira de 1988 e a Constituição de Weimar de 1919?

• OqueserviudefundamentofáticoparaadeclaraçãodoestadodesítiodaAlemanha sob o comando de Hitler?

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• OquefundariaumadeclaraçãodeumestadodesítionoBrasil?• Por que dispositivos constitucionais tão parecidos permitem experiências

históricas tão diversas entre Brasil e Alemanha?• ComoseriatratadoocasoEllwanger(aulaanterior)sobavigênciadaCons-

tituição de Weimar? E durante o estado de sítio nazista? E por que foi tratado como crime sob a vigência da Constituição brasileira de 1988? E como seria tratado em um possível estado de sítio brasileiro?

ii. estadO tOtalitáriO: qUe indivídUO, qUal estadO?

O que une os adeptos do fascismo é o desprezo pelo Estado e democracia libe-rais, instituições “culpadas” pela crise social e econômica enfrentada nos anos 20. Igualmente, o pluripartidarismo significava a coalização de interesses particulares, o que chocava com a idéia de interesse (identidade) nacional. O sistema parlamentar liberal implicava a divisão do poder entre pequenos grupos, entre meros interme-diários.

Nas formas totalitárias não há a divisão entre indivíduo e Estado; não há nada realmente privado, não há limite à ação do Estado, vez que este estará apenas rea-lizando o impulso vital. Nas palavras de Mussolini, “Tudo no Estado, nada fora do Estado, nada contra o Estado”. Retomam-se, assim, os contornos do Leviatã hobbe-siano, contudo, como a história mostrou, sem a garantia do direito à vida.

Um aspecto a ser discutido aqui é a liberdade no totalitarismo, que corresponde não aos interesses pessoais, mas os propósitos da nação, a vontade geral. Esta posição contraria a concepção de liberdade liberal entendida como um direito natural e irres-trito ao indivíduo. No fascismo, quanto mais forte o Estado, maior será a liberdade do indivíduo. Desse modo, Mussolini enuncia que “a única liberdade que pode ser verdadeira é a liberdade do Estado e do indivíduo dentro do Estado” (apud VICENT, 1995:167). Questão para reflexão: a liberdade existente é a liberdade para a realização dos fins do Estado. Já para os nazistas, a liberdade existia para que se realizassem os fins da raça e do volk; em suma, a liberdade significava estar em sintonia com o im-pulso vital. Liberdade era um instrumento para se alcançar a pureza racial.

Nesse contexto o líder se apresenta como a consubstanciação da consciência de uma época, de uma raça e da vontade geral da nação. Esse artifício político tem a vantagem de criar a ilusão de coerência e unidade ao sistema. As decisões centraliza-das do líder fascista ou nazista e unicamente dirigidas para a realização do interesse da nação servem a toda hora para ilustrar a ineficácia do sistema parlamentar liberal que despende grandes energias em debates e coalizões particulares.

O Estado é concebido como uma forma de organização corporativa, uma organi-zação forte frente aos desafios do mundo, transformação e disputas bélicas. Na Alema-nha, os discursos tendiam a retomar um certo medievalismo das corporações de ofícios, ao lado da Itália que projetava no Estado o corporativismo sindical orgânico. O papel do Estado, portanto, deveria ser o de dirigir as associações e grupos rumo aos objetivos da Nação ou da Raça. O Estado é visto como a corporação das corporações.

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Nesse sentido, para evitar a expansão dos movimentos socialistas, os regimes fascistas empreenderam a cooptação dos trabalhadores, tanto pela concessão de be-nefícios quanto pela propaganda de massa.

iii. a eCOnOMia: satisfaçãO dOs ObjetivOs da naçãO

economia para a nação

Para as correntes fascistas, a política, e aí inseridas as preocupações do Estado-Nação, são superiores aos interesses e preocupações da economia capitalista. Desse modo, a economia estava determinada para a satisfação dos objetivos da nação, do volk, da raça. Para tanto, o Estado atuava com um misto de políticas socialistas e liberais, tendo alguns visto aí a mítica terceira via.

Contra a livre-economia de mercado

A intervenção do Estado fascista na economia contrapunha-se à economia de livre mercado, não porque esta era concentracionista e geradora de iniqüidades, mas sim, porque aí imperava a lógica individualista de busca pelo lucro privado, o que, é claro, não se coadunava com os objetivos da nação.

iv. reflexões, paralelOs e asCendênCias dO fasCisMO nO direitO

princípios liberais no direito brasileiro: perspectiva crítica histórico-conceitual

A. Análise dA AdAptAção dAs idéiAs fAscistAs eUropéiAs. Ação integrAlistA brAsileirA

As idéias fascistas chegam ao Brasil nos anos 20, propagam-se a partir do sul do país e dão origem a pequenos núcleos de militantes. Em 1928 é fundado o Partido Fascista Brasileiro. A organização mais representativa dos fascistas, porém, é a Ação Integralista Brasileira (AIB), fundada em 1932 pelo escritores Plínio Sal-gado e Gustavo Barroso. O movimento é apoiado por setores direitistas das classes médias, dos latifundiários e dos industriais. Recebe a adesão de representantes do clero católico, da polícia e das Forças Armadas. Defende um Estado autoritário e nacionalista que promova a “regeneração nacional”, com base no lema “Deus, Pátria e Família”.

(http://www.conhecimentosgerais.com.br/historia-do-brasil/era-vargas.html)

b. AfinidAdes entre o estAdo novo e o fAscismo. constitUição de 1937.

Análise do quadro legislativo comparativo abaixo. Implantação dos sindicatos fascistas pelo Estado Novo de Vargas, em 1930.

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c. perspectivA críticA. o regime militAr: possíveis reflexos fAscistAs?Embora não se possa equiparar os regimes ditatoriais aos regimes totalitários,

é fundamental traçar paralelos e considerações a respeito da inspiração totalitária no período ditatorial brasileiro. É instaurado o regime militar pelo golpe de estado de 31 de março de 1964 e estende-se até a Redemocratização, em 1985. O plano político é marcado pelo autoritarismo, supressão dos direitos constitucionais, perse-guição policial e militar, prisão e tortura dos opositores e pela imposição de censura prévia aos meios de comunicação. Na economia, há uma rápida diversificação e modernização da indústria e serviços, sustentada por mecanismos de concentração de renda, endividamento externo e abertura ao capital estrangeiro. A inflação é institucionalizada através de mecanismos de correção monetária e passa a ser uma das formas de financiamento do Estado. Acentuam-se as desigualdades e injustiças sociais.

(http://www.conhecimentosgerais.com.br/historia-do-brasil/era-vargas.html)

v. prinCípiOs fasCistas nO OrdenaMentO jUrídiCO brasileirO: três exeMplOs

1. A Constituição de 1937 - “a polaca”. A Constituição outorgada acaba com o

princípio de harmonia e independência entre os três poderes. O Executivo é considerado “órgão supremo do Estado” e o presidente é a “autoridade su-prema” do país: controla todos os poderes, os Estados da Federação e nomeia interventores para governá-los. Os partidos políticos são extintos e instala-se o regime corporativista, sob autoridade direta do presidente. A “polaca” ins-titui a pena de morte e o estado de emergência, que permite ao presidente suspender as imunidades parlamentares, invadir domicílios, prender e exilar opositores (http://www.conhecimentosgerais.com.br/historia-do-brasil/era-var-gas.html)

2. A Constituição de 1967. Traduz a ordem estabelecida pelo Regime Militar e institucionaliza a ditadura. Incorpora as decisões instituídas pelos atos ins-titucionais, aumenta o poder do Executivo, que passa a ter a iniciativa de projetos de emenda constitucional, reduz os poderes e prerrogativas do Con-gresso, institui uma nova lei de imprensa e a Lei de Segurança Nacional. Por meio de reforma constitucional, Incorpora o AI-5 e os atos institucionais posteriores à Constituição, permite ao presidente decretar estado de sítio e de emergência. O governo lança também uma ampla campanha publicitária com o slogan “Brasil, ame-o ou deixe-o”. O endurecimento político é respal-dado pelo chamado “milagre econômico”: crescimento do PIB, diversificação das atividades produtivas, concentração de renda e o surgimento de uma nova classe média com alto poder aquisitivo.

(http://www.conhecimentosgerais.com.br/historia-do-brasil/era-vargas.html)

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3. Ato Institucional Nº 5. O governo fecha o Congresso e decreta o Ato Ins-titucional nº 5, em 13 de dezembro de 1968. Os atos institucionais são os exemplos legislativos capitais de tais influências. Estes foram mecanismos adotados pelos militares para legalizar ações políticas não previstas e mesmo contrárias à Constituição. De 1964 a 1978 são decretados 16 atos institu-cionais e complementares que transformam a Constituição de 1946 em uma colcha de retalhos. O AI-1, de 9 de abril de 1964, transfere o poder político aos militares, suspende por dez anos os direitos políticos de centenas de pes-soas, entre elas os ex-presidentes João Goulart e Jânio Quadros, governado-res, parlamentares, líderes sindicais e estudantis, intelectuais e funcionários públicos. As cassações de mandatos alteram a composição do Congresso e intimidam os parlamentares.

(http://www.conhecimentosgerais.com.br/historia-do-brasil/era-vargas.html)

bibliOgrafia básiCa

Leitura para as aulas 23, 24, 25:ARENDT, Hannah, Origens do totalitarismo. Trad. brasileira de Roberto Raposo.

São Paulo: Companhia das Letras, 1998, pp. 512-531.PAXTON, Robert, A Anatomia do Fascismo. São Paulo: Paz e Terra, 2007.

bibliOgrafia COMpleMentar

AGAMBEN, Giorgio, Estado de Exceção. São Paulo: Boitempo Editorial, 2004.LACLAU, Ernesto, Política e Ideología en la Teoría Marxista – Capitalismo, Fascis-

mo, Populismo. Madrid: Siglo Veintiuno Editores, 1978.RÜRUP, Reinhard, Topography of Terror. Berlin: Verlag Willmuth Arenhövel, 14

edition, 2004.

links e sites

Atos Institucionais [http://www.acervoditadura.rs.gov.br/index3.htm]PRONA www.prona.org.brhttp://www.integralismo.com.br/http://www.mv-brasil.org.brhttp://www.tfp.org.br

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aula 27. exeRCíCios

CasO 1: prisões seCretas na eUrOpa, O nOvO terrOrisMO de estadO

Depois de semanas de silêncio e acusações, em fins de novembro de 2005, pela primeira vez, os Estados Unidos reconheceram que precisam responder aos euro-peus sobre as atividades de sua agência de espionagem na Europa.

A acusação, inicialmente contada sob um tom de trama hollywoodiana, é de que a CIA estaria raptando suspeitos de atividade terroristas em solo europeus sem a devida autorização dos países e tampouco qualquer acusação formal contra os mes-mos. Tais operações teriam como objetivo capturar terroristas e leva-los até países aliados dos EUA em que fosse permitida a prática de tortura em interrogatórios.

Assim, servindo-se deste caso em que os EUA, bastião da democracia e dos direi-tos humanos, reeditam um novo terrorismo de estado e a criação de novos gulags, pretende-se reconstruir os princípios fascistas e do totalitarismo apreendidos duran-te as últimas aulas.

EUA tentam explicar prisões secretas da CIA na Europahttp://www2.rnw.nl/rnw/pt/atualidade/americadonorte/at051130EUA_CIA_

terror?view=Standard (e outros relacionados)

Torturas (Os EUA alteraram a definição jurídica de tortura, treinaram batalhões para maltratar prisioneiros e estariam criando, em outros países, o “gulag de nossa época”. Além de atingir a imagem de Washington no mundo, esta tendência repre-senta um grave ataque à democracia)

http://www.diplo.com.br/aberto/0512/indice.htm

E se o “bandido” fosse os EUA? (Os Estados Unidos acabam de eliminar de sua linguagem diplomática a expressão “Estado-bandido”. Neste texto, Noam Chomsky ana-lisa as maneiras como era aplicado esse conceito por Washington, que reivindicava para si o direito de tomar medidas unilaterais Noam Chomsky)

http://www.diplo.com.br/aberto/0008/index.htm

CasO 2: COntOrnOs dO fasCisMO HOje

A partir da citação do sociólogo Boaventura de Sousa Santos acerca das novas formas de fascismo hoje, propõe-se aos alunos a discussão para a identificação dos novos contornos do fascismo institucional presentes nos aparatos de repressão e nos aparatos ideológicos no Brasil.

Especialmente, sugere-se que se volte a atenção à questão das favelas, sua inser-ção no seio da cidade formal e sua estigmatização. Para tanto, servirá de apoio a

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entrevista do coordenador geral do Observatório de Favelas e professor da UFF/RJ, Jailson de Souza e Silva, e de reportagens sobre a atuação policial em favelas.

No Rio, o terrorismo contra a pobrezahttp://www.brasildefato.com.br/v01/agencia/nacional/news_item.2006-01-

30.1638033048

Entrevista do coordenador geral do Observatório de Favelas e professor da UFF/RJ, Jailson de Souza e Silva, ao jornal O Globo que teve como temática o debate sobre a remoção de favelas, foi editada e veiculada no domingo dia 23 de outubro de 2005. Disponível em

http : / /www.obser vator iodefave las .org .br/obser vator io/base .asp?pagina=destaque_midia

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leandRo molhano RiBeiRoBacharel em ciências socais pela uFmG. mestre e Doutor em ciência Política pelo Iuperj/ucam.Professor assistente do curso de graduação em ciências sociais e do curso de mestrado em Direito na ucam. autor de diversos artigos na área de ciências sociais e co-autor do livros Reforma do Estado e agências Reguladoras: inovação e continuidade no sistema político-institucional brasileiro (Editora Garamond, 2007 – no prelo) e Teias de Relações ambíguas: regulação e ensino superior (mEc/InEP 2002).Realiza pesquisas em ciências Humanas e sociais, com ênfase em Instituições Políticas e Políticas Públicas.

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IDEOLOGIAS MUNDIAIS

FICHA TÉCNICA

Fundação Getulio Vargas

Carlos Ivan Simonsen LealPRESIDENTE

FGV DIREITO RIO

Joaquim FalcãoDIRETOR

Fernando PenteadoVICE-DIRETOR DA GRADUAÇÃO

Sérgio GuerraVICE-DIRETOR DE PÓS-GRADUAÇÃO

Luiz Roberto AyoubPROFESSOR COORDENADOR DO PROGRAMA DE CAPACITAÇÃO EM PODER JUDICIÁRIO

Ronaldo LemosCOORDENADOR CENTRO DE TECNOLOGIA E SOCIEDADE

Evandro Menezes de CarvalhoCOORDENADOR DA GRADUAÇÃO

Rogério Barcelos AlvesCOORDENADOR DE METODOLOGIA E MATERIAL DIDÁTICO

Lígia Fabris e Thiago Bottino do AmaralCOORDENADORES DO NÚCLEO DE PRÁTICA JURÍDICA

Wania TorresCOORDENADORA DE SECRETARIA DE GRADUAÇÃO

Diogo PinheiroCOORDENADOR DE FINANÇAS

Milena BrantCOORDENADORA DE MARKETING ESTRATÉGICO E PLANEJAMENTO