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Jack london contos

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Copyright © 2001, by Editora Expressão Popular

Seleção dos textos: Magda Lopes Gebrim e Yanina Otsuka Stasevskas.

Traduções: Liege Christina Simões de Campos, Luiz Bernardo Pericás e Ana Corbisier. Projeto gráfico, capa

e diagramação: ZAP Design

Ilustração da capa: Apoteósis dei Danzante (1986) de Leonardo Tejada. Pintor equatoriano, um

dos renovadores da aquarela. Captou grupos humanos com traços enérgicos e contrastados valores

cromáticos.

Impressão e acabamento: Cromosete

Dados Internacionais de Catalogação-na-Publicação (C1P)

London, Jack, 1876-1916 L847c Contos / Jack London ;

seleção dos textos Magda Lopes Gebrim e Yanina Otsuka

Stasevskas; tradução Liege Christina Simões de Campos, Luiz

Bernardo Pericás e Ana Corbisier.-2.ed. - São Paulo :

Expressão Popular, 2009. 224p.

Indexado em GeoDados- http://www.geodados.uem.br ISBN

85-87394-18-5

1. Literatura americana -Contos. 2. Contos americanos. I.

Gebrim, Magda Lopes. II. Stasevskas, Yanina Otsuka. III.

Campos, Liege Christina Simões de, trad. IV. Pericás, Luiz

Bernardo, trad. V. Corbisier, Ana, trad. VI. Título.

CDD21.ed. 813.54

_______________________________ CDU 820(73)-34

Bibliotecária: ElianeM. S. Jovanovich CRB 9/1250

Edição revista e atualizada conforme a nova regra ortográfica.

Todos os direitos reservados.

Nenhuma parte deste livro pode ser utilizada ou reproduzida sem a autorização da editora.

2a edição: novembro de 2009

EDITORA EXPRESSÃO POPULAR Rua Abolição, 197 - Bela Vista CEP 01319-010 - São

Paulo-SP Fone/Fax: (11) 3105-9500 [email protected]

www.expressaopopular.com.br

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Sumário

Apresentação ............................................................................................................... 7

capítulo 1-0 QUE A VIDA SIGNIFICA PARA MIM ........................................................ 17

capítulo 2 - COMO ME TORNEI SOCIALISTA .............................................................. 27

capítulo 3-O MEXICANO .............................................................................................33

capítulo 4 - A VOLTA DO PAI PRÓDIGO .................................................................... 63

capítulo 5-O HEREGE .................................................................................................. 81

capítulo 6 - AO SUL DA FENDA................................................................................. 103

capítulo 7 - FAZER UMA FOGUEIRA .......................................................................... 121

capítulo 8 - AMOR À VIDA .........................................................................................141

capítulo 9-0 CHINA ................................................................................................... 165

capítulo 10 - ESTERCO... NADA MAIS ....................................................................... 181

capítulo 1 1 - O PAGÃO ............................................................................................. 201

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Apresentação

"É na soma do seu olhar que eu

vou me conhecer inteiro se nasci

para enfrentar o mar ou faroleiro."

(Chico Buarque)

Os contos deste livro são profundamente tocantes. Eles falam sobre as

questões da nossa existência, aquelas mais importantes, que nos inspiram a

pensar no sentido das nossas ações, das nossas escolhas na vida. Nos fazem

refletir sobre o tipo de vida que queremos para nós, sobre o lugar que

queremos ocupar no mundo. Eles alimentam nossa alma ao falarem da vida

com paixão, entusiasmo e sinceridade. Transmitem a força e o vigor do seu

autor.

Jack London foi o melhor escritor dos Estados Unidos em seu tempo e

hoje é considerado um dos melhores do mundo. Tudo que escreveu foi

criado a partir das suas experiências de vida, e essas foram muito

interessantes e inusitadas.

Nasceu em 1876, numa família mal estruturada e muito pobre. Não

sabia quem era seu pai e passou fome em várias fases da infância e da

juventude. Trabalhou desde criança para ajudar no sustento da família.

Quando jovem viajou pelo mundo, trabalhando como marinheiro; depois

percorreu grande parte dos Estados Unidos viajando clandestinamente em

trens, sobrevivendo de esmolas. Tentou voltar a estudar, numa escola de

segundo grau, e depois na universidade, mas sua pobreza o impediu de

prosseguir.

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Descobriu o socialismo nesse mundo de mendigos e vagabundos.

Como autodidata dominou as teorias mais avançadas de sua época, como o

marxismo e a teoria da evolução de Darwin. Foi um dos maiores

propagandistas do socialismo nos Estados Unidos em sua época.

Foi para o Alasca tentar a sorte na corrida do ouro, e de lá voltou

doente e sem um tostão.

Casou-se e teve duas filhas, mas desfez esse casamento causando

enorme escândalo. Trabalhou como correspondente de guerra,

arriscando-se a morrer por várias vezes, a fim de escrever boas reporta-

gens. Ganhou muito dinheiro ao tornar-se escritor e conviveu com os

homens mais poderosos do seu país. Projetou um barco, construiu-o, e

nele viajou pelo mundo, com sua segunda mulher.

Aos 40 anos suicidou-se com uma dose letal de morfina.

Esses fatos por si mesmos já compõem uma incrível história de

aventuras reais, mais atraente que muitas ficções.

Porém o mais interessante da vida de Jack London não são suas

aventuras em si, mas sim aquilo que o moveu em direção a elas. A grande

aventura, que vale a pena acompanharmos neste livro, foi o fato dele ter

“escrito” a história de sua vida num caminho próprio e por isso único. Quis

ser dono do seu destino, escolheu ser sujeito da sua vida, quis descobrir e

afirmar suas verdades mais íntimas e essenciais. E fez isso com uma

tenacidade comovente e admirável.

A cada decisão que o levou às aventuras o que imperava era seu desejo

de “enfrentar o mar” para buscar o que queria na verdade: uma vida que

valesse a pena ser vivida.

Sua força brotava da necessidade premente de sentir-se vivo e ele

sabia que para conseguir isso precisava ser fiel às verdades do seu corpo e

da sua alma.

Quando decidiu, por exemplo, ir ao Alasca em busca do ouro, não o

fez porque buscasse aventuras ou emoções fortes. E sim porque tinha sido

obrigado a abandonar a universidade depois de ter feito um

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esforço imenso para cursá-la. Estava trabalhando numa lavanderia,

lavando e engomando as roupas de seus ex-colegas de faculdade, e tanto,

que não lhe sobrava nenhum tempo ou mesmo energia para fazer coisas

que o animassem a viver, como ler, escrever, namorar. E ainda ganhava tão

pouco que mal podia sobreviver.

Quando voltou do Alasca resolveu escrever. A ideia de ganhar a vida

como escritor tornou-se sua tábua de salvação, depois de ter visto

naufragadas todas as suas tentativas anteriores. Novamente deparou-se

com dificuldades que poderiam ser consideradas intransponíveis.

Seus primeiros contos foram rejeitados pelas editoras e revistas por

longo tempo. Ele sabia que isso ocorria por suas histórias falarem da

realidade que viveu no Alasca, no mundo dos mendigos, nos navios. Sabia

que não eram contos palatáveis para o público estadunidense, pois este

queria continuar lendo histórias vazias e açucaradas, e assim manter uma

imagem idealizada da vida.

London decidiu continuar escrevendo no seu estilo único, novo.

Queria falar do que tinha vivido e visto, das suas verdades, que incluíam

aspectos rudes e sombrios da realidade. E mais uma vez fez uma aposta

alta: resolveu que o público e os editores teriam que aceitá- lo tal qual era,

correndo assim o grave risco de continuar passando fome por um tempo

imprevisível, ou mesmo a vida toda.

Tempos depois, quando finalmente conseguiu ser aceito e passou a ter

fama e dinheiro, não se acomodou à confortável situação. Aprendera que

valia a pena defender suas convicções, e que para isto tinha que pagar o

preço de descontentar muitas pessoas, e o de ser combatido ferozmente

por muitas delas. Continuou defendendo com unhas e dentes suas escolhas

na vida pessoal e seu estilo na literatura, como vemos nesta carta enviada a

um editor: “Insisto agora, como sempre insisti, que a virtude literária

cardeal é a sinceridade. Se estou errado nesta convicção e o mundo me

renega, só me cabe dizer um adeus indiferente ao mundo e orgulhoso

refugiar-me no rancho, plantar batatas e criar galinhas para conservar o

estômago

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cheio. Foi a minha recusa de aceitar advertências sensatas que me fez o

que sou hoje.”

Mas de onde Jack London tirava forças para recusar tantas adver-

tências sensatas e seguir construindo seu caminho? Onde se segurava

quando enfrentava as tempestades em alto mar? E o frio mortífero do

Alasca? O trabalho que lhe exauria os músculos e a capacidade de sonhar?

O mundo cruel, sem eira nem beira, dos desempregados que se tornaram

mendigos? Como suportava não saber quem era seu pai? Como não desistia

de continuar tentando caminhos ao frustrar-se quando teve que abrir mão

da escola, da universidade, quando voltou do Alasca pior do que saiu?

Conseguiu transpor inúmeros obstáculos, mesmo que por várias vezes

ficasse muito deprimido, achando que estes eram grandes demais, e que

nunca os venceria. Mas seus tormentos e medos, suas angústias, não

apenas não o paralisaram, como o impulsionaram a enfrentar novos

desafios.

Pouco antes de morrer escreveu sobre o resultado destes enfren-

tamentos: “Na minha idade madura, estou convencido de que o jogo da

vida vale a pena. Tive uma vida muito feliz, mais feliz de que a de muitos

milhões de homens da minha geração. Se por um lado sofri muito, por

outro vivi muito, vi muita coisa, senti muita coisa que foi negada à maioria

dos homens. O jogo vale mesmo a pena.”

Penso que foi fiel a sua frase: “Só se tem uma vida para se viver, e por

que não vivê-la de verdade?”, mesmo tendo se suicidado. Talvez sua busca

por definir os caminhos da própria vida tenha incluído determinar o

momento do seu fim. Por tudo isso é interessante prestar atenção ao que

sustentou sua cabeça erguida e seus olhos direcionados ao horizonte

desejado enquanto viveu.

Podemos perceber as pistas desta força nos seus contos.

Sua primeira sustentação interna foi a vontade de viver; pode-se

vislumbrá-la nas histórias que escreveu.

No conto autobiográfico O herege ele narra um período muito

doloroso de sua infância, quando trabalhou até a exaustão total. Deixa

IO

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transparecer como desde criança sua gana de viver colocava-se acima das

exigências sociais mortíferas, às quais estava submetido. Ele não tinha

consciência disto, apenas movia-se pela recusa em deixar-se matar aos

poucos, sendo essa a força propulsora que o levou a enfrentar seus

primeiros desafios: não queria morrer, queria viver bem.

No Amor à. vida o personagem luta com toda a força da sua consciência

e dos seus instintos para permanecer vivo no frio extremo do Alasca. O

conto é uma revelação da vontade feroz, selvagem, de viver. Também faz

pensar sobre as marcas que as batalhas entre a vida e a morte deixam em

nós, mostrando que não somos super-heróis, capazes de passarmos por

experiências dessa magnitude e sairmos intocados. Uma curiosidade a

respeito deste conto é o fato de Lênin gostar muito dele.

A volta do pai pródigo, como O herege, também coloca a vida acima das

convenções sociais opressoras. Não se trata da opressão de classe, tema que

aborda em O china, mas sim daquela que também faz com que abaixemos

nossa cabeça e nos humilhemos frente a nós mesmos. Fala das relações

dominadoras dentro da família, entre marido, mulher e filho. Não aponta

saídas heróicas, grandiosas, mas trata com humor das soluções possíveis

aos “meramente” humanos.

Nestes contos, como em todos os outros, os personagens estão longe

de qualquer tipo de perfeição, ou de retidão absoluta. Não são exatamente

o que se chama de pessoas exemplares. São contraditórios e complexos,

cheios de incertezas, têm altos e baixos, como a vida, e por isso mesmo são

tão interessantes. São de uma humanidade profunda e tocante, justamente

por serem pessoas parecidas com pessoas.

A segunda sustentação de Jack London foram os livros, que leu e

escreveu. E ele os descobriu ainda criança, como conta Irving Stone, seu

biógrafo, no livro “A vida errante de Jack London ’: “Nunca sonhou que

pudesse haver tal coisa como uma biblioteca pública, uma casa com

milhares de livros que qualquer pessoa poderia ler. E teve a impressão que

nascia de novo, espiritualmente, quando se viu

и

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à entrada daquele palácio (e a biblioteca era um casarão de madeira), gorro

na mão, olhos esbugalhados, quase sem acreditar que pudessem existir

tantos livros. Desse dia em diante, por mais que sofresse, por mais que

experimentasse terríveis agonias do pensamento e da alma, por mais que

fosse batido pela sorte, desprezado, expulso como um pária, nunca mais se

julgou abandonado.”

A vida vivida nos livros ajudou-o a suportar a dureza de sua vida real.

Desde bem pequeno e em suas viagens, London sempre esteve

acompanhado pelos livros. Ao mesmo tempo em que queria viver a vida de

“carne e osso”, sempre “viajou na de papel e tinta”. Foi nos livros que

encontrou as palavras para nomear seu vastíssimo repertório de vida.

E foram os livros de ficção que facilitaram sua entrada no percurso do

conhecimento teórico, na leitura dos livros sobre socialismo, filosofia,

sociologia etc. Quando adulto é ele que escreve os livros, é ele que se

expressa e se afirma, dando vazão ao que viu e sentiu. Consegue que

milhares de pessoas enxerguem as cruéis injustiças sociais que o

atormentavam e também consegue difundir pelo mundo suas ideias

socialistas.

Jack London, por sua produção literária e sua vida, reforça a ideia que

livros não são sinônimos de distanciamento da realidade. Mas ferramentas

que dependem muitíssimo de quem as maneja. Mostra que se pode fazer

dos livros boias em naufrágios, fogueiras em dias frios, escudos nos

embates da vida...

Ele nos ajuda a ver que os livros, com suas histórias fantásticas ou

reais, podem sim servir a quem quer esconder-se atrás deles. Mas também

podem servir de forma maravilhosa a quem ama a vida e quer navegar

grandemente, livremente, com prazer.

Outro exemplo interessante desse uso da literatura foi o fato de Che

Guevara ter se lembrado do conto Fazer uma fogueira quando foi ferido num

combate em Cuba e pensou que fosse morrer. Nesse conto o personagem se

defronta com seus limites frente à natureza

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e à morte. Penso que o conto serviu a Che como uma referência,

ajudando-o a suportar aquele momento tão extremo, emprestando- lhe um

sentido.

O socialismo também foi um suporte interno para London. É bonito

ver no conto autobiográfico Como me tornei socialista de que forma o

socialismo nasce em Jack London, porque ele brota de dentro para fora. É

como um alimento que lhe sacia uma fome antiga, dando-lhe sustento

ideológico.

As teorias e os ideais revolucionários respondem e prometem

encaminhamento às inquietações profundas de London, dando-lhe ânimo.

Ao sul da fenda conta a história de um professor que abandona sua

carreira universitária e sua vida bem estabelecida para tornar-se um

militante socialista junto ao povo. O fiel da balança é sentir o coração

pulsar mais forte, mais livre, e por isso mais feliz. Mostra que a escolha de

ser um militante socialista não se baseia apenas em valores morais

altruístas. É também uma opção por uma vida mais plena de realizações e

de sentidos, um caminho para se sentir mais vivo.

O mexicano conta a história de um jovem e estranho militante

mexicano. Ela nos faz pensar sobre a singularidade de cada pessoa ao

entrar na luta pelo socialismo. Sobre qual a contribuição que cada um pode

e quer dar, de onde vem sua motivação. Mostra que na maioria das vezes a

contribuição para a luta coletiva não é luminosa, visível a qualquer tipo de

olhar, mas é a que se pode e se quer dar, justamente porque é aquela que

faz sentido para cada um.

Quando escreve sobre sua saída do Partido Socialista, Jack London

deixa claro como o percurso para o socialismo no qual acreditava estava

em sintonia com sua personalidade: “Abandono o Partido Socialista por

sua falta de ardor e combatividade e por sua falta de significação na luta de

classes. Fui inicialmente um membro do velho, revolucionário e

combativo Partido Trabalhista. Conhecedor das lutas de classe, acredito

que os trabalhadores só poderiam

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emancipar-se pela luta, pela intransigência, não cedendo nunca, não

fazendo concessões ao inimigo. Uma vez que, nos últimos anos, todo o

movimento socialista dos Estados Unidos é orientado para a tranquilidade

e as concessões, cheguei à conclusão de que meu espírito se recusa a

sancionar a minha permanência no Partido. E aí está a razão da minha

renúncia.”

Na verdade, o que o animou a ser um autodidata, a descobrir, a estudar

e a divulgar as teorias revolucionárias, foi a mesma coisa que o levou a

devorar os livros de aventuras na infância: a capacidade de sonhar e de

desejar uma vida digna para si e para as pessoas com as quais se

identificava.

E chegamos assim a sua sustentação mais importante: as relações de

amizade e de amor com as pessoas que fizeram parte de sua vida. Jack

London permaneceu com dúvidas em relação a quem era seu pai, apesar

das suas tentativas de saber a verdade. Sua mãe nunca foi amorosa e

atenciosa com ele, não tinha condições de assumir o lugar de mãe. Mas sua

irmã adotiva, filha de seu padrasto, assumiu esse lugar: estava sempre

pronta a oferecer o apoio de que necessitava, desde o início até o fim da

vida dele.

Os contos Esterco... Nada mais e O pagão tratam de dois tipos diferentes

de associações entre os homens. O primeiro, uma história de dois ladrões,

fala sobre uma associação baseada no uso que um faz do outro. Não há troca

entre os dois, cada um vê o outro como um instrumento para a satisfação

de suas necessidades. O conto chega a ser engraçado quando mostra a que

ponto podem chegar as pessoas que não enxergam os outros como

semelhantes.

Já O pagão, que foi escrito baseado na relação de Jack London com um

empregado japonês, mostra como dois homens ganham por poder

colocarem-se um no lugar do outro, sendo tão diferentes, inclusive no que

se refere ao status social. Essa sublime capacidade é simbolizada na história

pela troca de nomes que fazem entre si. Os personagens falam da amizade

que sustenta a vida, e faz com que eles se transformem

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em pessoas melhores a cada dia. Falam de como a convivência com quem

se admira e se ama preenche a vida de sentido.

London teve muitos amigos em todas as fases de sua vida, e tinha

grande satisfação em compartilhá-la com eles. Quando tornou-se um

escritor famoso recebia-os em sua casa, dava-lhes dinheiro, discutia horas

a fio todos os tipos de assunto, lia para eles suas histórias assim que

ficavam prontas. Também amou várias mulheres, e viveu esses amores

com empenho e intensidade.

Penso que foi esta a sustentação mais importante do seu desejo de

viver, e viver com a cabeça erguida: as pessoas que amou e que o amaram.

Foram as pessoas que o olharam com olhares generosos que o

encheram de coragem para enfrentar os desafios do mar, os desafios de ser

ele mesmo.

Quando Jack London escreveu suas histórias, imprimiu nelas todos

estes tesouros acumulados em sua vida tão rica. O que a vida significa para

mim é uma belíssima síntese desta riqueza.

Escreveu para pessoas lerem, para nós lermos e gostarmos do que

tinha a dizer. Quis cumplicidade para suas ideias, quis trocar olhares. E

nós também queremos! Por isso tudo suas histórias ficaram na História.

E agora são elas que alimentam nossa alma desejosa de vida rica. São

elas que nos levam para viagens, que nos inspiram quando queremos

imaginar formas mais livres de pensar e de viver.

Magda Lopes Gebrim

Novembro de 2000

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capítulo 1

O QUE A VIDA SIGNIFICA PARA MIM

Nasci na classe trabalhadora. Cedo descobri o entusiasmo, a ambição e

os ideais; e satisfazê-los tornou-se o problema da minha infância. Meu

ambiente era cru, áspero e rude. Não via nenhuma perspectiva ao meu

redor, por isso, o melhor era olhar para cima. Meu lugar na sociedade era

nos fundos. Aqui a vida não oferecia nada, além de sordidez e miséria,

tanto para o corpo como para o espírito. Por aqui corpo e espírito andavam

famintos e atormentados.

Acima de mim se erguia o imenso edifício da sociedade e, em minha

mente, a única saída era para cima. Logo resolvi subir. Lá em cima, os

homens vestiam ternos pretos e camisas engomadas e as mulheres usavam

vestidos lindos. Havia também coisas boas para comer e muita fartura.

Abundância para o corpo. Depois havia as coisas do espírito. Acima de

mim, eu sabia, havia despojamento do espírito, pensamentos puros e

nobres e uma vida intelectual intensa. Eu conhecia tudo isto porque lera

romances na biblioteca Seaside, nos quais, com exceção dos vilões e dos

aventureiros, todos os homens e mulheres tinham pensamentos puros,

falavam uma linguagem bonita e realizavam ações generosas. Em resumo,

assim como eu aceitava o

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nascer do Sol, aceitava que acima de mim estava tudo o que era fino, nobre

e belo, tudo o que dá decência e dignidade à vida, tudo o que faz a vida

valer a pena e recompensa um homem por seu sofrimento e esforço.

Mas não é muito fácil para um homem ascender e sair da classe

trabalhadora - especialmente se está cheio de ambições e ideais. Eu vivia

num rancho na Califórnia, e era duro descobrir o caminho para subir.

Cedo quis saber qual a taxa de juros do dinheiro aplicado, e preocupava

meu cérebro de criança a compreensão das virtudes e excelências desta

notável invenção do homem, os juros compostos. Mais tarde conheci os

níveis de salário praticados para trabalhadores de todas as idades, e o custo

de vida. Com todos estes dados, conclui que, se começasse imediatamente,

trabalhasse e poupasse até os cinquenta anos, poderia parar de trabalhar e

desfrutar de uma pequena porção das delícias e maravilhas que estariam a

meu alcance um pouco acima na sociedade. E, claro, decidi não me casar,

ao mesmo tempo em que me esquecia inteiramente de considerar esta

grande causa da catástrofe no universo da classe trabalhadora - a doença.

Mas a vida que havia em mim exigia mais que uma pobre existência de

restos e de escassez. Aos dez anos de idade, tornei-me jornaleiro nas ruas

da cidade e descobri uma nova perspectiva. Tudo ao meu redor estava

impregnado da mesma sordidez e desgraça, e acima de mim existia ainda o

mesmo paraíso, esperando para ser conquistado. Mas o caminho para subir

era diferente. Era o mundo dos negócios. Por que poupar meus ganhos e

investir em papéis do governo quando, comprando dois jornais por cinco

centavos, num piscar de olhos, podia vendê-los por dez e dobrar meu

capital? O mundo dos negócios era para mim o meio de subir na vida, e eu

me via como negociante quadrado e bem-sucedido.

Ai das visões! Quando tinha dezesseis anos me chamavam de

“príncipe”. Este título me foi dado por uma gangue de assassinos e ladrões,

que me chamavam de “O príncipe dos piratas de água doce”.

18

Page 16: Jack london   contos

Naquele tempo eu tinha galgado o primeiro degrau no mundo dos

negócios. Era um capitalista. Possuía um barco e uma tripulação completa

de piratas de água doce. Tinha começado a explorar meus semelhantes.

Toda uma equipe estava sob meu comando. Como capitão e dono, ficava

com dois terços do dinheiro e dava à tripulação o outro terço, embora eles

trabalhassem tão duro quanto eu e arriscassem tanto quanto eu suas vidas e

sua liberdade.

Este degrau foi o último que subi no mundo dos negócios. Uma noite,

participei de um assalto a pescadores chineses. Suas linhas e redes valiam

dólares e centavos. Era um roubo, claro, mas era este precisamente o

espírito do capitalista. O capitalismo toma os bens de seus semelhantes a

título de reembolso, traindo a confiança ou comprando senadores e juizes

de tribunais superiores. Eu era apenas mais grosseiro. Essa era a única

diferença. Eu usava um revólver.

Mas, naquela noite, minha equipe agiu como aqueles incompetentes

que o capitalista está acostumado a fulminar, sem dúvida porque estes

incompetentes aumentam os custos e reduzem os lucros. Minha quadrilha

fez as duas coisas. Por falta de cuidado, tocou fogo na vela principal,

destruindo-a totalmente. Não houve lucro aquela noite, e os pescadores

chineses ficaram mais ricos pelas redes e linhas que não pagamos. Eu

estava arruinado, sem condições sequer de pagar sessenta e cinco dólares

por uma nova vela principal. Deixei meu barco ancorado e saí num barco

de piratas na baía para uma viagem de saques pelo rio Sacramento.

Enquanto estava fora, outro bando de piratas da baía saqueou meu barco.

Roubaram tudo, até mesmo as âncoras; e mais tarde, quando recuperei o

casco abandonado, obtive apenas vinte dólares por ele. Tinha descido o

primeiro degrau galgado, e nunca mais tentei o caminho dos negócios.

Desde então fui implacavelmente explorado por outros capitalistas.

Tinha força física, e eles faziam dinheiro com isso enquanto que, apesar do

meu esforço, eu levava uma vida banal. Fui marinheiro, estivador e

grumete. Trabalhei em fábricas de enlatados, indústrias

19

Page 17: Jack london   contos

e lavanderias. Cortei grama, limpei tapetes e lavei janelas. E não ganhava

nunca o produto inteiro do meu trabalho. Olhava para a filha do dono da

fábrica de enlatados, em sua carruagem, e sabia que eram meus músculos

que ajudavam a empurrar aquela carruagem em seus pneus de borracha.

Via o filho do industrial indo para a escola e sabia que era em parte a

minha força que ajudava a pagar seu vinho e suas boas amizades.

Mas não ficava ressentido com isso. Fazia parte do jogo. Eles eram a

força. Muito bem, eu era forte. Podia cavar um lugar entre eles e fazer

dinheiro com a força de outros homens. Não tinha medo do trabalho. E

quanto mais duro, melhor, mais me agradava. Gostaria de me entregar ao

trabalho, trabalhar mais do que nunca e, eventualmente, me tornar um

pilar da sociedade.

E a essa altura, com a sorte que eu gostaria de ter, descobri um patrão

com a mesma mentalidade. Eu estava querendo trabalhar, e ele estava

mais que querendo que eu trabalhasse. Pensei que estava aprendendo um

ofício. Na realidade, havia substituído dois homens. Pensei que ele estava

fazendo de mim um eletricista; de fato, estava ganhando, comigo,

cinquenta dólares a mais por mês. Os dois homens que eu substituíra

recebiam quarenta dólares por mês cada um, enquanto eu fazia o trabalho

dos dois por trinta dólares.

Este patrão me fez trabalhar até a morte. Um homem pode adorar

ostras, mas ostras demais vão deixá-lo enfastiado. E assim foi comigo. O

excesso de trabalho me deixou doente. Eu não queria mais ver trabalho.

Abandonei o emprego. Tornei-me um vagabundo, mendigando de porta

em porta, perambulando pelos Estados Unidos e suando sangue em favelas

e prisões.

Eu nascera na classe operária, e agora, aos dezoito anos, estava abaixo

do ponto em que tinha começado. Caíra nos porões da sociedade, jogado

no subterrâneo da miséria sobre o qual não é agradável nem digno falar:

estava no fosso, no abismo, no esgoto humano, no matadouro, na capela

mortuária da nossa civilização. Esta é a parte

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Page 18: Jack london   contos

do edifício social que a sociedade prefere esquecer. A falta de espaço me

leva aqui a ignorá-la, e devo dizer apenas que as coisas que vi lá me deram

um medo terrível.

Estava apavorado até a alma. Vi a nu a complicada civilização em que

vivia. A vida era uma questão de abrigo e de comida. Para conseguir abrigo

e comida os homens vendem coisas. O comerciante vende seus sapatos, o

político vende seu humanismo e o representante do povo, com exceções, é

claro, vende sua credibilidade, enquanto quase todos vendem sua honra.

As mulheres também, nas ruas ou na sagrada relação do casamento, estão

prontas a vender seus corpos. Todas as coisas são mercadorias, todas as

pessoas são compradas e vendidas. A primeira coisa que o trabalhador tem

para vender é a força física. A honra do operariado não tem preço no

mercado. O operariado tem músculos e somente músculos para vender.

Mas há uma diferença, uma diferença vital. Sapatos, credibilidade e

honra têm como se renovar. Constituem estoques imperecíveis. Mas os

músculos, estes não se renovam. Quando um comerciante vende seus

sapatos, repõe o estoque. Mas não há como repor o estoque de energia do

trabalhador. Quanto mais vende sua força, menos sobra para si. A força

física é sua única mercadoria, e a cada dia seu estoque diminui. No fim, se

não morreu antes, vendeu tudo e fechou as portas. Está arruinado

fisicamente e nada lhe restou senão descer aos porões da sociedade e

morrer na miséria.

Aprendi, ainda, que o cérebro também é uma mercadoria, ainda que

diferente dos músculos. Um vendedor do cérebro está apenas no começo

quando tem cinquenta ou sessenta anos, e seus produtos atingem preços

mais altos do que nunca. Mas um operário está esgotado e alquebrado com

quarenta e cinco ou cinquenta anos. Eu tinha estado nos porões da

sociedade e não gostava do lugar para morar. Os canos e bueiros eram

insalubres e o ar, ruim para respirar. Se não podia morar no andar de luxo

da sociedade, podia, pelo menos, tentar a mansarda. Ela existia, a comida

lá era escassa, mas pelo menos o ar

Page 19: Jack london   contos

era puro. Assim, resolvi não vender mais meus músculos e me tornar um

vendedor de cérebro.

Começou então uma frenética perseguição ao conhecimento. Voltei

para a Califórnia e mergulhei nos livros. Como me preparava para ser um

mercador da inteligência, achei que devia me aprofundar em Sociologia.

Assim, eu descobri, num certo tipo de livros, formulados cientificamente,

os conceitos sociológicos simples que eu tinha tentado descobrir por mim

mesmo. Outras grandes mentes, antes que eu tivesse nascido, tinham

elaborado tudo que eu havia pensado e muitas coisas mais. Eu descobri que

era um socialista.

Os socialistas eram revolucionários, porque lutavam para derrubar a

sociedade do presente e tirar dela material para construir a sociedade do

♥333♥3333♥futuro. Eu, também, era um socialista e revolucionário.

Liguei-me a grupos de trabalhadores e intelectuais revolucionários, e pela

primeira vez entrei na vida intelectual. Aí descobri mentes aguçadas e

cabeças brilhantes. Encontrei cérebros fortes e atentos, além de

trabalhadores calejados; pregadores de mente muito aberta em seu

cristianismo para pertencer a qualquer congregação de adoradores do

dinheiro; professores torturados na roda da subserviência universitária à

classe dominante e dispensados porque eram ágeis com o conhecimento

que se esforçavam por aplicar às questões maiores da Humanidade.

Descobri, também, uma fé calorosa no ser humano, um idealismo

apaixonante, a suavidade do despojamento, renúncia e martírio

- todas as esplêndidas e comoventes qualidades do espírito. Naquele meio,

a vida era honesta, nobre e intensa. Naquele meio, a vida se reabilitava,

tornava-se maravilhosa. E eu estava alegre por estar vivo. Mantinha

contato com grandes almas que punham o corpo e o espírito acima de

dólares e centavos, e para quem o gemido fraco de crianças famintas das

favelas vale mais do que toda a pompa e circunstância da expansão do

comércio e do império mundial. Tudo à minha volta era nobreza de

propósitos e heroísmo; meus dias e noites eram de sol e de estrelas

brilhantes; tudo calor e frescor, como o Santo

22

Page 20: Jack london   contos

Graal, o próprio Graal do Cristo, o ser humano caloroso, conformado e

maltratado, mas pronto para ser resgatado e salvo no final, sempre ardente

e resplandecente, diante de meus olhos.

E eu, pobre tolo, julgava ser aquilo apenas uma amostra das delícias de

viver que eu deveria descobrir acima de mim na sociedade. Tinha perdido

muitas ilusões desde os dias em que lera os romances da biblioteca Seaside,

no rancho da Califórnia. E estava destinado a perder muitas das ilusões que

me restavam.

Como mercador da inteligência, fui um sucesso. A sociedade abriu

suas portas para mim. Entrei direto no andar de luxo; mas meu desencanto

foi rápido. Sentei-me para jantar com os senhores da sociedade e com as

esposas e mulheres dos donos da sociedade. As mulheres se vestiam muito

bem, admito; mas para minha ingênua surpresa percebi que eram feitas do

mesmo barro que todas as outras mulheres que eu tinha conhecido lá

embaixo, nos porões. A esposa do coronel e Judy O’Grady eram irmãs sob

suas peles e seus vestidos.

Não foi isto, porém, mas seu materialismo, o que mais me chocou. É

verdade que estas mulheres lindas, ricamente vestidas tagarelavam sobre

singelos ideais e pequenos moralismos; mas, ao contrário do teor de sua

conversa mole, a tônica da vida que levavam era materialista. E como eram

egoístas sentimentalmente. Contribuíam de todas as formas para pequenas

caridades e se informavam sobre a realidade, mas, o tempo todo, os

alimentos que comiam e as belas roupas que vestiam eram comprados com

os lucros manchados pelo sangue do trabalho infantil, do trabalho

exaustivo e mesmo da prostituição. Quando mencionei tais fatos,

esperando em minha inocência que aquelas irmãs de Judy O’Grady

arrancassem fora de uma vez suas sedas e joias tingidas de sangue, ficaram

furiosas e excitadas, e leram para mim pregações sobre o desperdício, a

bebida e a depravação inata que causavam toda a miséria nos porões da

sociedade. Quando disse que não podia perceber bem qual era a falta de

economia, a intemperança e a depravação de crianças quase famintas de

seis anos que faziam trabalhar doze horas por

23

Page 21: Jack london   contos

noite numa fiação de algodão sulista, aquelas irmãs de Judy O’Grady

atacaram minha vida pessoal e me chamaram de “agitador” — embora isto,

na verdade, reforçasse meus argumentos.

Não me dei melhor com os senhores da sociedade. Esperava encontrar

homens honestos, nobres e vivos cujos ideais fossem honestos, nobres e

vivos. Andei com homens que estavam nos lugares mais altos - os

pregadores, os políticos, os homens de negócios, professores e editores.

Comi carne com eles, tomei vinho com eles, andei de automóvel com eles

e estudei com eles. É verdade, encontrei muitos que eram honestos e

nobres; mas, com raras exceções, não estavam vivos. Realmente acredito

que poderia contar as exceções com os dedos das minhas mãos. Quando

não estavam mortos pela podridão moral, atolados na vida suja, eram

apenas a morte insepulta - como múmias bem preservadas, mas não vivas.

Neste sentido, poderia especialmente citar professores que conheci,

homens que vivem de acordo com o decadente ideal universitário, “a

perseguição sem paixão da inteligência sem paixão”.

Conheci homens que invocavam o nome do Príncipe da Paz em seus

discursos contra a guerra e que botaram nas mãos dos Pinkertons rifles que

abateram grevistas em suas próprias fábricas. Encontrei homens

incoerentes, indignados com a brutalidade de lutas de boxe e pugilismo, e

que, ao mesmo tempo, participavam da adulteração de alimentos que a

cada ano matam mais bebês do que qualquer Herodes de mãos rubras

jamais havia matado.

Em hotéis, clubes, casas e vagões de luxo, em cadeiras de navios a

vapor, conversei com capitães de indústria e me espantou como eram

pouco viajados nos domínios do intelecto. Por outro lado, descobri que sua

inteligência para negócios era excepcionalmente desenvolvida. Descobri

também que sua moralidade, quando há negócios envolvidos, nada vale.

O delicado, destacado e aristocrático cavalheiro era um testa de ferro

de corporações que secretamente roubavam viúvas e órfãos. Este

24

Page 22: Jack london   contos

cavalheiro, que colecionava edições de luxo e era patrocinador especial da

literatura, pagou chantagem a um chefão político de queixo duro e

sobrancelhas escuras da máquina municipal. Este editor, que publicou

propaganda de medicamentos licenciados e náo ousou divulgar a verdade

em seu jornal sobre os mesmos medicamentos, com medo de perder o

anunciante, me chamou de canalha demagogo porque lhe disse que sua

economia política era antiquada e sua biologia, contemporânea de Plínio.

Este senador fora a ferramenta e escravo, o pequeno fantoche de uma

máquina indecente e ignorante de um chefáo político; assim eram o

governador e seu juiz no Tribunal de Justiça; e todos os três tinham passes

para viajar de graça na estrada de ferro. Este homem, falando seriamente

sobre as belezas do idealismo e a bondade de Deus, acabara de trair seus

camaradas numa questão de negócios. Aquele outro, pilar da igreja e

grande contribuinte de missões no exterior, obrigava as garotas de suas

lojas a trabalhar dez horas por dia por um salário de fome e, portanto,

encorajava diretamente a prostituição. Este homem, que dá dinheiro à

universidade, comete perjúrio em tribunais por causa de dólares e

centavos. E o grande magnata da estrada de ferro quebrou sua palavra de

cavalheiro e cristão quando admitiu abatimentos secretos para um de dois

capitães de indústria empenhados numa luta de morte.

Era a mesma coisa em todo lugar, crime e traição, traição e crime —

homens que estavam vivos não eram honestos nem nobres; homens que

eram honestos e nobres não estavam vivos. E havia uma grande massa sem

esperanças, nem nobre nem viva, mas simplesmente honesta. Esta não

podia errar, positiva ou deliberadamente; mas errava de maneira passiva e

ignorante ao concordar com a imoralidade generalizada e com os lucros

que ela produz. Se fosse nobre e viva, não seria ignorante, e teria se

recusado a dividir os lucros do crime e da traição.

Percebi que não gostava de viver no andar de luxo da sociedade.

Intelectualmente era aborrecido. Moralmente e espiritualmente, eu me

25

Page 23: Jack london   contos

sentia enojado. Lembrava-me de meus intelectuais e idealistas, meus

pregadores sem hábito, professores desempregados e trabalhadores

honestos com consciência de classe. Lembrava meus dias e noites de sol e

estrelas brilhando, quando a vida era uma maravilha doce e selvagem, um

paraíso espiritual de aventuras não-egoístas e um romance ético. E diante

de mim, sempre resplandecente e excitante, vislumbrava o Sagrado.

Então, voltei à classe operária, na qual havia nascido e à qual

pertencia. Não me preocupava mais em subir. O imponente edifício da

sociedade não reserva delícias para mim acima da minha cabeça. São os

alicerces do edifício que me interessam. Lá, contente de trabalhar, de

ferramenta na mão, ombro a ombro com intelectuais, idealistas e operários

com consciência de classe, reunindo uma força sólida agora para fazer

mais uma vez o edifício inteiro balançar. Algum dia, quando tivermos

mais mãos e alavancas para trabalhar, vamos derrubá-lo, com toda sua vida

podre e sua morte insepulta, seu egoísmo monstruoso e seu materialismo

estúpido. Então vamos limpar os porões e construir uma nova moradia

para a espécie humana, onde não haverá andar de luxo, na qual todos os

quartos serão claros e arejados, e onde o ar para respirar será limpo, nobre

e vivo.

Esta é a minha perspectiva. Vejo à frente um tempo em que o homem

deverá caminhar para alguma coisa mais valiosa e mais elevada que seu

estômago, quando haverá maiores estímulos para levar os homens à ação

do que o incentivo de hoje, que é o incentivo do estômago. Conservo

minha crença na nobreza e na excelência da Humanidade. Acredito que a

doçura e o despojamento espiritual vão superar a gula grosseira dos dias de

hoje. E, no fim de tudo, minha fé está na classe trabalhadora. Como diz um

francês: “A escada do tempo está sempre ecoando com um tamanco

subindo e uma bota engraxada descendo”.

26

Page 24: Jack london   contos

capítulo 2

COMO ME TORNEI SOCIALISTA

Pode-se dizer que me tornei um socialista de maneira similar à dos

pagãos teutônicos ao cristianismo - à força. Não apenas eu não procurava o

socialismo na época da minha conversão, mas lutava contra ele. Eu era

demasiado jovem e inexperiente, não sabia nada de coisa alguma e, apesar

de nunca ter ouvido falar de uma escola de pensamento chamada

“individualismo”, cantava o hino dos fortes com todo o meu coração.

Isso porque eu próprio era forte. Por forte quero dizer que tinha boa

saúde e músculos rijos, ambas características que podem ser facilmente

explicadas. Vivi minha infância nos ranchos da Califórnia, vendendo

jornais nas ruas de uma próspera cidade do Oeste e passei minha juventude

nas águas saturadas de ozônio da baía de San Francisco e do Oceano

Pacífico. Amava a vida a céu aberto, desempenhando as tarefas mais

difíceis. Sem aprender nenhum ofício, mas pulando de emprego em

emprego, observava o mundo e gostava dele em todos os sentidos.

Deixe-me repetir: esse otimismo existia porque eu era forte e saudável,

nunca experimentando dores nem debilidades, nunca sendo recusado por

um patrão por não aparentar estar em boas condições

Page 25: Jack london   contos

físicas, sempre capaz de obter trabalho nas minas de carvão, como

marinheiro ou como trabalhador braçal de qualquer espécie.

Por tudo isso, exultante em minha juventude, capaz de me defender

bem, tanto no trabalho como nas brigas, eu era um feroz individualista. E

isso era muito natural. Eu era um vencedor. Por conseguinte, considerava

o jogo, da forma como era jogado, muito apropriado para HOMENS. Ser

HOMEM significava escrever em letras maiúsculas no meu coração.

Arriscar-me como homem, lutar como homem, fazer o trabalho de homem

(mesmo que com o salário de menino) — essas eram coisas que me

tocavam profundamente e ficavam gravadas em mim como nenhuma

outra. E eu olhava adiante as amplas paisagens de um futuro nebuloso e

interminável, em direção ao qual — jogando o que eu considerava um jogo

de homens -, continuaria a viajar com uma saúde inquebrantável sem

acidentes, e com os músculos sempre vigorosos. Como digo, esse futuro era

interminável. Podia ver-me apenas avançando pela vida sem fim como

uma das feras louras de Nietszche, perambulando lascivamente e

triunfando pela simples superioridade e força.

Quanto aos desafortunados, aos doentes, aos que sofrem, aos velhos e

aos aleijados, devo confessar que raramente pensava neles, a não ser que

vagamente achasse que estes, salvo acidentes, poderiam ser tão bons

quanto eu e trabalhar igualmente tão bem, se realmente o desejassem.

Acidentes? Bem, eles representavam o DESTINO, também soletrado com

letras maiúsculas, e não havia modo de se esquivar do DESTINO. Napoleão

sofreu um acidente em Waterloo, mas isso não tirou meu desejo de ser

outro Napoleão. Além disso, o otimismo, vindo de um estômago que podia

digerir pedaços de ferro moído e de um corpo que florescera de uma vida

dura, não me permitia considerar que acidentes tivessem qualquer relação,

mesmo que remota, com minha personalidade gloriosa.

Espero ter deixado claro que eu tinha orgulho de ser um daqueles

seres eleitos da natureza. A dignidade do trabalho era para mim a

28

Page 26: Jack london   contos

coisa mais impressionante do mundo. Sem ter lido Carlyle ou Kipling,

formulei um evangelho do trabalho que varriam os deles “no chinelo”. O

trabalho era duro. Era a santificação ou a salvação. O orgulho que sentia

depois de um dia de trabalho árduo e bem feito seria algo incompreensível

para os demais. É quase inconcebível para mim quando penso nisso agora.

Nunca um capitalista explorou um escravo do salário tão fiel quanto eu.

Embromar ou ludibriar o homem que me pagava o salário era um pecado,

primeiro contra mim mesmo, e depois contra ele. Para mim era um crime

que vinha logo atrás da traição, mas tão ruim quanto.

Resumindo, meu individualismo entusiasta era dominado pela ética

ortodoxa burguesa. Eu lia os jornais burgueses, ouvia os pregadores

burgueses e repetia plenitudes sonoras dos políticos burgueses. E não

duvido que - se outros eventos não tivessem mudado minha trajetória

viesse a me transformar num fura greves profissional (um dos heróis do

reitor Eliot), e tivesse minha cabeça e minha capacidade de trabalho

irremediavelmente esmagadas por um porrete nas mãos de algum

sindicalista militante.

Por essa época, voltando de uma viagem que durara sete meses, e logo

após ter completado dezoito anos de idade, pus na cabeça a ideia de que

iria vagabundar. Em vagóes de passageiros ou compartimentos de carga,

desbravei meu caminho pela vasta região Oeste, onde os homens

trabalhavam duro e os empregos procuravam as pessoas, até os

congestionados centros operários da região Leste, onde os homens tinham

pouco valor e davam tudo que tinham para conseguir trabalho. E nesta

nova aventura de fera loura, comecei a ver a vida de um ângulo novo e

totalmente diferente. Eu havia descido da condição de proletário para o

que os sociólogos chamam de “porção submersa”, e comecei a descobrir a

maneira como aquela porção submersa era recrutada.

Lá encontrei todo tipo de homens, muitos dos quais haviam sido

algum dia tão bons e tão feras louras quanto eu: marinheiros,

Page 27: Jack london   contos

soldados, operários, todos estropiados, comidos e desfigurados pelo

trabalho, pelas agruras e pelos acidentes e dispensados por seus patrões

como cavalos velhos. Com eles mendiguei nas ruas, pedi comida nas portas

dos fundos das casas e senti frio em vagões de trens e parques da cidade,

ouvindo as histórias de vidas, que começavam sob auspícios tão favoráveis

como os meus, com estômagos e corpos iguais ou melhores do que os meus,

e que terminavam ali, diante de meus olhos, arruinados, no fundo do

abismo social.

E enquanto eu ouvia, meu cérebro começava a funcionar. A mulher

das ruas e o homem da sarjeta se tornaram muito próximos de mim. Vi a

imagem do abismo social vividamente, como se fosse algo concreto. Eu os

observava lá no fundo do abismo, um pouco acima deles, agarrando-me às

paredes escorregadias com todo o suor e a força de minhas unhas. E

confesso que um medo terrível se apoderou de mim. E se acabasse minha

força? E quando me tornasse incapaz de trabalhar lado a lado com os

homens fortes que ainda estavam por nascer? Aí, então, fiz um juramento.

Era algo mais ou menos assim: Todos os dias tenho trabalhado até a exaustão com

meu corpo e apesar do número de dias que trabalhei, cheguei bem próximo do fundo

do abismo. Deverei sair dele, mas não com os músculos do meu corpo. Não vou

nunca mais trabalhar como trabalhei e que Deus me fulmine se um dia eu der de

mim mais do que o meu corpo pode dar. E desde então tenho me dedicado a

fugir do trabalho duro.

A propósito, enquanto vagabundava por umas dez mil milhas pelos

Estados Unidos e Canadá, entrei na cidade de Niagara Falls, fui pego por

um policial à caça de multas, tive negado o direito de me declarar culpado

ou inocente, fui imediatamente sentenciado a trinta dias de prisão por não

ter residência fixa ou meio aparente de subsistência, algemado e

acorrentado a um grupo em situação similar, despachado para Buffalo e

registrado na penitenciária do condado de Erie; meu cabelo e meu

incipiente bigodinho foram raspados, fui vestido com o uniforme de

prisioneiro, vacinado compulsoriamente

30

Page 28: Jack london   contos

por um estudante de medicina que praticava em pessoas como nós,

obrigado a marchar em fila e a trabalhar sob a vigilância de guardas

armados com rifles Winchester — tudo isso por ter me lançado em

aventuras ao estilo das feras louras. Para mais detalhes, esta testemunha

declara-se muda, embora se possa desconfiar que seu exultante

patriotismo tenha se evaporado um pouco e vazado por alguma fresta no

fundo de sua alma — pelo menos, desde que passou por essa experiência, já

se deu conta de que se interessa muito mais por homens, mulheres e

criancinhas do que por linhas geográficas imaginárias.

Voltando a minha conversão. Acho que aparentemente meu

individualismo feroz foi efetivamente extraído de mim e foi-me inculcada

outra coisa, de forma igualmente eficaz. Mas, assim como eu havia sido um

individualista sem saber, era agora um socialista sem saber, ou seja, um

socialista não científico. Eu havia renascido, mas não havia sido

rebatizado, e andava à toa por aí, tentando descobrir o que de fato era.

Voltei para a Califórnia e abri os livros. Não me recordo quais abri

primeiro. Este é um detalhe sem importância, de qualquer forma. Eu já era

isso, seja lá o que isso fosse, e com a ajuda dos livros descobri que isso era ser

socialista. Desde aquele dia abri muitos livros, mas nenhum argumento

econômico, nenhuma demonstração lúcida da lógica e da inevitabilidade

do socialismo me afeta tão profundamente e tão convincentemente como

o dia em que vi pela primeira vez os muros do abismo social se erguerem à

minha volta e me senti escorregando, escorregando, para as ruínas que se

amontoavam lá no fundo.

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Page 29: Jack london   contos

capítulo з

o MEXICANO

Ninguém sabia sua história. Pelo menos não os da Junta. Era o

mistério deles, seu benemérito da pátria, e à sua moda trabalhava duro,

tanto quanto eles pela Revolução Mexicana. Demoraram para aceitá-lo,

porque os membros da Junta náo gostavam do rapaz. Quando surgiu nas

salas barulhentas e cheias de gente, todos suspeitaram que fosse um espião

- do serviço secreto de Diaz. Naquela época, muitos camaradas estavam

nas prisões civis ou militares espalhadas pelos Estados Unidos; outros,

algemados, eram levados para o outro lado da fronteira, encostados nos

muros de adobe, e fuzilados.

À primeira vista, o rapaz não os impressionou bem. Porque era apenas

um rapaz, dezoito anos no máximo, pouco desenvolvido para a idade.

Apresentou-se como Filipe Rivera, e disse que queria trabalhar pela

revolução. Só isso — nenhuma palavra a mais, nenhuma explicação. E

ficou esperando. Não havia sorriso em seus lábios, nem doçura em seu

olhar. O grande e impetuoso Paulino Vera estremeceu. Estava diante de

algo, terrível, inescrutável: nos olhos negros do rapaz brilhava o veneno

de uma serpente. Eram olhos que ardiam como fogo frio, transmitindo

uma imensa amargura concentrada. Com

Page 30: Jack london   contos

eles fitava, ora os conspiradores, ora a máquina de escrever onde mrs.

Sethby trabalhava, concentrada. Aqueles olhos pousaram nela um instante

- e como ela erguera o seus, também sentiu uma coisa estranha, e parou de

trabalhar. Teve que reler a página para retomar o ritmo da carta que

escrevia.

Paulino Vera olhou intrigado para Arellano e Ramos; estes

devolveram-lhe o olhar, intrigados também; depois olharam um para o

outro. A indecisão da dúvida pairava entre eles. Esse jovem magricela era

um desconhecido, e trazia consigo toda a ameaça de um desconhecido. Não

era identificável, como se estivesse além do modelo característico dos

revolucionários comuns e correntes, cujo ódio feroz de Diaz e de sua

tirania era, afinal, um ódio de patriotas comuns e correntes. E havia algo

mais - que não conseguiam identificar. Paulino Vera, sempre o mais

impulsivo e o mais rápido na ação, tomou a iniciativa.

- Muito bem - disse, gelado. — Diz que quer trabalhar pela revolução.

Tire o paletó. Pendure-o ali. E eu lhe mostro - acompanhe- me — onde

está o balde e o pano de chão. O assoalho está sujo. Deve limpá-lo, assim

como o assoalho das outras salas. É preciso limpar as escarradeiras. E,

também, as janelas.

- É pela revolução? perguntou o rapaz.

- Sim, respondeu Paulino Vera.

Rivera parecia desconfiar de todos eles, mas foi tirando o paletó.

- Muito bem — disse.

E foi só. Todos os dias vinha para o trabalho, varria, esfregava e

limpava. Tirava a cinza dos fogareiros, trazia carvão e gravetos, e acendia o

fogo antes mesmo que os mais firmes e madrugadores revolucionários se

sentassem às mesas.

- Posso dormir aqui? - perguntou um dia.

- Ah! Então é isso... aqui temos a mão de Diaz! Quer dormir nas salas

da Junta para conhecer os seus segredos, listas de nomes, endereços dos

camaradas no México...

34

Page 31: Jack london   contos

Não aceitaram o pedido, e Rivera nunca mais tocou no assunto.

Dormia em local desconhecido; também náo se sabia onde, nem como, se

alimentava. Certa vez Arellano ofereceu alguns dólares ao rapaz. Rivera

recusou, sacudindo a cabeça. Quando Paulino Vera interveio, insistindo

para que aceitasse, o rapaz retrucou:

- Trabalho para a revolução.

Hoje em dia, é preciso dinheiro para se fazer uma revolução e a Junta

nunca dispunha da quantia suficiente. Seus membros passavam fome e

batalhavam, e por mais longo que fosse o dia, nunca era suficiente. No

entanto, havia momentos em que se tinha a impressão que o avanço da

revolução, ou seu fracasso, dependia de alguns dólares apenas. Uma vez - a

primeira - quando o aluguel da casa ficou dois meses atrasado e o

proprietário ameaçou despejá-los, foi Rivera, o rapaz da limpeza, que

depositou sessenta dólares de ouro na mesa de May Sethby. E houve outras

ocasiões. Trezentas cartas, produzidas nas ativas máquinas de escrever

(com pedidos de assistência, de sanções dos grupos trabalhistas

organizados, com solicitações de imparcialidade a editores, protestos

contra as arbitrariedades cometidas contra os revolucionários pelos

tribunais estadunidenses) permaneciam sem enviar, por falta de dinheiro

para os selos. O relógio de Paulino Vera desaparecera - o antiquado

relógio, de ouro, que fora de seu pai. Também se fora a aliança de ouro de

May Sethby. Todos se desesperavam. Ramos e Arellano cofiavam,

exasperados, seus compridos bigodes. As cartas tinham seguir, e o correio

não vendia selos a prazo. Foi quando Rivera pôs o chapéu e saiu. Voltou

com um milheiro de selos de dois centavos, que pôs na mesa de May

Sethby.

— E se for dinheiro de Diaz? - perguntou Paulino aos outros.

Estes franziram as sobrancelhas e ficaram indecisos; mas Filipe

Rivera, o faxineiro da revolução, continuou a trazer ouro e prata para a

Junta, quando era necessário.

Ainda assim os revolucionários não gostavam dele; não podiam se

obrigar. Não o reconheciam. Seus modos eram muito diferentes,

35

Page 32: Jack london   contos

e Rivera náo fazia confidências, evitando as perguntas. Embora fosse tão

jovem, ninguém se atrevia a interrogá-lo.

- Um espírito solitário, talvez... Não sei, não sei — dizia Arellano,

desanimado.

- Não é humano - acrescentava Ramos.

- Tem a alma ferida — disse May Sethby. - Apagaram sua luz e sua

alegria. Parece morto e, no entanto, está terrivelmente vivo.

- Passou pelo inferno - disse Paulino Vera. - Ninguém é assim, a

menos que tenha passado pelo inferno... e é ainda um garoto.

Mas não conseguiam gostar dele; Rivera não falava nunca, não fazia

qualquer sugestão, por mínima que fosse. Ficava ouvindo, sem expressão;

era uma presença morta. Só seus olhos viviam, frios e ardentes, enquanto a

conversa dos outros sobre a revolução subia de tom e esquentava. Seu

olhar ia de rosto em rosto, de interlocutor em interlocutor, furando como

verrumas de gelo incandescente, desconcertando e perturbando...

- Espião não é - confidenciou Paulino Vera a May Sethby. - É um

patriota — repare bem no que digo: o maior patriota de todos nós. Sei

disso, sinto isso aqui no coração e na cabeça. Mas não o conheço,

absolutamente.

- Ele tem mau gênio - disse May Sethby.

- Bem sei - respondeu Paulino, erguendo os ombros. Olhou-me com

aqueles olhos dele, onde náo existe amor: são olhos que ameaçam,

selvagens como os de um tigre bravo. Sei que me mataria se eu traísse a

causa. Náo tem coração. É cruel como o aço, pungente e frio como a neve.

E como o luar numa noite de inverno, caindo sobre um homem morrendo

congelado em algum solitário pico de montanha. Não tenho medo de Diaz

nem de todos os seus assassinos; mas deste rapaz... dele sim, tenho medo.

Digo a verdade: tenho medo. Ele é o sopro da morte.

E no entanto, foi o mesmo Paulino Vera que convenceu os outros a dar

a primeira tarefa de confiança a Rivera. A linha de comunica

36

Page 33: Jack london   contos

ção entre Los Angeles e a Baixa Califórnia fora interrompida. Três

camaradas foram obrigados a cavar suas próprias covas, e em seguida

fuzilados, caindo dentro delas. Outros dois ficaram prisioneiros em Los

Angeles. Juan Alvarado, o comandante das tropas federais, era um

monstro. O fato prejudicava todos os planos dos revolucionários. Já não

podiam ter acesso, na Baixa Califórnia, nem aos militantes, nem aos

iniciantes.

Depois de dar-lhe instruções, despacharam Rivera para o Sul. Quando

voltou, a linha de comunicação fora restabelecida e Juan Alvarado estava

morto. Foi encontrado na cama, com uma faca enterrada até o cabo em seu

peito. Isto extrapolava as instruções dadas a Rivera, mas os membros da

Junta nada lhe perguntaram. Ele também não disse nada. Os camaradas se

entreolhavam, fazendo conjecturas.

— Eu bem disse - comentou Paulino Vera - Diaz deve temer mais

este rapaz do que qualquer outra pessoa. É implacável. É a mão de Deus.

O mau gênio, mencionado por May Sethby, e notado por todos,

evidenciava-se fisicamente. Ora aparecia com um corte no lábio, ora com

uma mancha negra na face ou com uma orelha inchada. Ficava claro que

andara brigando em algum lugar longe do mundo — no lugar onde comia,

ganhava dinheiro e se locomovia por caminhos que eram um mistério para

seus camaradas. No decorrer do tempo, passara a imprimir o jornal

revolucionário semanal que a Junta publicava. Havia ocasiões em que era

incapaz de compor os tipos, ou por causa de seus punhos esfolados e

doloridos, ou dos dedos machucados e sem forças, ou dos braços, ora um

ora outro, caídos inertes ao longo do corpo enquanto o rosto se tornava

tenso, expressando uma dor oculta.

— Um boêmio - dizia Arellano.

— Frequentador de lugares de má fama - dizia Ramos.

— Mas de onde vem o dinheiro? - perguntava Paulino Vera. Ainda

hoje, agorinha mesmo, fiquei sabendo que foi ele que pagou o papel para o

jornal: cento e quarenta dólares. — E suas ausências... - disse May Sethby.

Nunca as explica.

37

Page 34: Jack london   contos

- Vamos arranjar alguém para segui-lo - propôs Ramos.

- Eu é que não vou ser esse alguém - disse Paulino. - Acho que vocês

nunca mais me veriam, exceto para enterrar-me. Rivera parece consumido

por uma paixão arrasadora. Não vai permitir que ninguém interfira, nem o

próprio Deus.

- Sinto-me infantil perto dele - confessou Ramos.

- Para mim ele é uma força: - um ser primitivo, um lobo selvagem, a

serpente e o bote, o inseto que aferroa - disse Arellano.

- É a própria revolução — disse Paulino. Sua chama e seu espírito, o

grito de vingança insaciável que não soa, mas que mata em silêncio. É um

anjo destruidor, a caminhar nas mudas vigílias da noite.

- Tenho pena dele até as lágrimas - disse May Sethby. Não conhece

ninguém. Odeia todo mundo. Tolera-nos porque somos o instrumento do

seu desejo. Mas ele é só... é solitário... — E um soluço interrompeu-a,

enquanto seus olhos se enchiam de lágrimas.

Os modos de Rivera eram mesmo, às vezes, misteriosos. Havia épocas

em que passava uma semana inteira sem aparecer. Houve uma vez em que

esteve ausente um mês. Ao voltar, sem aviso nem explicações, depositava

na mesa de May Sethby moedas de ouro e de prata. Depois, passava um

período trabalhando na Junta. Em outras épocas desaparecia durante a

manhã inteira, desde manhã cedo até bem depois do meio dia. Depois

dessas ocasiões, chegava cedo e ficava até tarde. À meia noite Arellano o

encontrava cuidando dos punhos com inchaços recentes, ou do lábio,

rachado de pouco, e ainda sangrando.

Aproximava-se um tempo de crise. A revolução dependia da Junta, e a

Junta estava em apuros. A necessidade de dinheiro era maior do que

nunca, e o dinheiro era coisa difícil de obter. Patriotas entregaram o seu

último centavo e não podiam dar mais. Trabalhadores seccionais - peões

fugitivos do México — contribuíam com a metade de seu magro salário.

Mas era preciso muito mais. A penosa luta de anos — a conspiração que

tudo solapava - estava madura. Tinha chegado o

38

Page 35: Jack london   contos

momento. A revolução pendia na balança. Mais um empurrão, mais um

último esforço, e os pratos da balança se inclinariam para a vitória. Eles

conheciam o seu México. Uma vez desencadeada, a revolução caminharia

sozinha. A máquina de Diaz cairia como um castelo de cartas. A fronteira

estava pronta para o levante. Um ianque, com uma centena de operários

do mundo, esperava a senha para passar a fronteira e iniciar a conquista da

Baixa Califórnia. Mas precisavam de armas. E do outro lado do Atlântico,

todos precisavam de armas: aventureiros, mercenários, bandidos,

americanos desligados de seus sindicatos, socialistas, anarquistas,

desordeiros, mexicanos exilados, peóes fugidos da escravidão, mineiros

arrancados dos acampamentos de Coueur dAlène e Colorado, todos

capazes de lutar com o maior espírito revolucionário — o refugo e o

rebotalho dos espíritos tumultuados do mundo moderno. Armas e

munições, munições e armas, era o grito permanente e incessante.

Bastava que essa massa heterogênea, miserável e raivosa, cruzasse a

fronteira — e a revolução estouraria. A alfândega, os portos de entrada ao

Norte, seriam capturados. Diaz não podia resistir. Não ousaria lançar o

grosso do exército contra eles, pois tinha que defender o Sul. E, no Sul, a

onda espalharia a revolta. O povo se levantaria. As defesas das cidades

cairiam uma depois da outra. Estado após Estado cairia. E finalmente, de

todos os lados, os exércitos revolucionários vitoriosos ocupariam a capital,

a própria cidade do México, última cidadela do tirano.

Mas, e o dinheiro? Havia homens, impacientes por empunharem as

armas. Havia negociantes, para vendê-las e entregá-las. Mas, para semear

a revolução, a Junta gastara até o último centavo. Gastara o último dólar e

os últimos recursos; o último patriota fora ordenhado até secar, e a causa

grandiosa oscilava os pratos da balança. Armas e munições. Os batalhões

maltrapilhos precisavam se armar. Mas como? Ramos lamentava suas

propriedades confiscadas. Arellano, sua mocidade perdulária. E May

Sethby ficava imaginando se teria

39

Page 36: Jack london   contos

sido muito diferente caso os membros da Junta tivessem sido mais

econômicos na juventude.

— Pensar que a liberdade do México dependeria de uns míseros

milhares de dólares — disse Paulino Vera.

Via-se o desespero em seu rosto. José Amarillo, sua última esperança,

um recém-convertido que prometera ajuda em dinheiro, fora preso em sua

fazenda de Chihuahua e fuzilado de encontro ao muro de seu próprio

curral. A notícia acabava de chegar.

Rivera, de joelhos, esfregando o chão, levantou os olhos e suspendeu a

escova, seus braços nus pingando água suja e cheia de espuma.

— Bastam cinco mil dólares? - perguntou.

O espanto se estampou em todos os rostos. Paulino Vera sacudiu a

cabeça e engoliu em seco. Não conseguia falar, mas naquele instante

invadiu-o uma grande confiança.

— Encomendem as armas — disse Rivera e, em seguida, iniciou o

discurso mais longo que até então já o tinham ouvido pronunciar.

— O tempo é curto — disse. — Em três semanas lhes trarei os cinco

mil dólares. Então será chegado o momento para os que vão combater. É o

que posso fazer.

Paulino Vera não podia acreditar no que ouvia: era incrível. Tantas

esperanças tanto tempo acalentadas tinham ruído, desde que se entregara

à revolução. Acreditava e ao mesmo tempo não ousava acreditar naquele

esfarrapado faxineiro da revolução.

— Está maluco - retrucou.

— Volto em três semanas - disse Rivera. - Providenciem as armas.

Levantou-se, desenrolou as mangas da camisa e vestiu o casaco.

— Encomendem as armas - repetiu. - Estou indo.

Depois de muita pressa e correria, muitos telefonemas e frases

obscenas, realizou-se uma reunião no escritório de Kelly. Ele vivia

ocupado com seus negócios; mas não tinha sorte. Touxera Danny Ward de

Nova York, arranjara uma luta dele contra Billy Carthey, dali

40

Page 37: Jack london   contos

a três semanas, mas há dois dias, o que fora cuidadosamente ocultado dos

repórteres esportivos, Carthey estava de cama, gravemente ferido. E não

havia quem o substituísse.

Kelly procurara com vela acesa, por todo o Leste, tentando descobrir

um peso pluma, mas estavam todos comprometidos com lutas e contratos.

Agora, porém, a esperança voltava, ainda que muito tênue.

- É corajoso — disse Kelly a Rivera, quando ficaram sozinhos.

Apenas um ódio maldoso brilhava nos olhos de Rivera, enquanto

seu rosto permanecia impassível.

- Posso derrotar Ward - disse.

- Como sabe? Já o viu lutar?

Rivera sacudiu a cabeça.

- Ward pode derrotá-lo com uma só mão e os dois olhos fechados.

Rivera encolheu os ombros.

- Não tem nada a dizer? - provocou o empresário.

- Posso derrotá-lo.

- Mas com quem você já lutou? - perguntou Michael Kelly. Michael

era irmão do empresário e dirigia o salão de Snooker Yellowstone, onde

ganhava dinheiro com lutas de boxe.

Rivera apenas lhe dirigiu um olhar parado.

O secretário do empresário, jovem esportivo e distinto, deu uma

risada irônica.

- Bem, você conhece Roberts - disse Kelly, rompendo o silêncio

hostil. — Já devia estar aqui. Mandei chamá-lo. Sente-se e espere, ainda

que, a julgar por sua aparência, você não tenha vez. Não posso tapear o

público com uma luta vagabunda. As cadeiras de pista estão sendo

vendidas a quinze dólares.

Quando Roberts chegou, via-se que estava semiembriagado. Era um

homem alto, magro, de juntas bambas, e seu andar, bem como seu modo de

falar, eram languidamente arrastados.

Page 38: Jack london   contos

Kelly foi direto ao assunto.

- Olhe aqui, Roberts, você anda se gabando de ter descoberto este

mexicaninho. Sabe que o Carthey quebrou o braço. Pois bem: este

amarelinho teve o desplante de aparecer hoje aqui, dizendo que vai

substitui-lo. Que tal? — Tudo bem, Kelly — respondeu Roberts, devagar. -

Ele pode lutar.

- Ainda vai dizer que pode bater Ward - retrucou Kelly.

Roberts observou, criteriosamente:

- Náo, náo direi isso. Ward é um dos grandes campeões do ringue.

Mas náo pode enfrentar Rivera de surpresa. Conheço esse mexicano.

Ninguém sabe como ataca. Não tem ataque conhecido. E luta com ambas

as máos. Pode derrubar o adversário em qualquer posição.

- Isso não tem importância. Que tipo de espetáculo pode oferecer?

Durante toda a sua vida você treinou lutadores e os pôs em condições de

lutar. Respeito a sua opinião. Será que Rivera poderá satisfazer o público

pagante?

- Evidente que sim! E, além disso, vai dar trabalho a Ward. Você não

conhece esse moço, mas eu conheço. Eu o descobri. Não tem ataque. Luta

como o demônio. E sujo, se quer saber. Mas é capaz de oferecer um

espetáculo de talento para por toda a assistência de pé. Não digo que vai

vencer Ward; mas dará um tal espetáculo, que todos vão saber que ele

promete.

- Muito bem. - Kelly voltou-se para o secretário. - Chame Ward.

Disse-lhe que o chamaria se achasse que valia a pena. Está em frente, no

Yellowstone, jogando dinheiro fora e bancando o importante. E, para

Roberts: - Aceita um trago?

Roberts provou o drinque e desabafou:

- Nunca lhe contei como foi que descobri essa peste. Há uns dois

anos, apareceu na sede. Eu estava preparando Prayne para a luta contra

Delaney. Prayne é maldoso. Não tem nem um pouquinho de misericórdia

em todo o corpo. Golpeava os parceiros da maneira mais cruel, e eu não

conseguia nenhum rapaz disposto a treinar com

42

Page 39: Jack london   contos

ele. Um dia vi esse mexicaninho, com fome, rondando por lá; estava

desesperado. Agarrei-o, calcei-lhe as luvas e o empurrei para o ringue. Era

mais duro do que couro cru, mas fraco. E náo conhecia nem a primeira

letra do alfabeto do boxe. Prayne deixou-o em pedaços. O rapazinho

aguentou dois rounds, e desmaiou. De fome. Machucado? Não era possível

reconhecê-lo. Dei-lhe meio dólar e uma refeição completa. Você

precisava vê-lo devorar a comida. Fazia dias que não comia. É o fim,

pensei. Mas no dia seguinte ele apareceu, dolorido mas rijo, pronto para

mais um treino e outra refeição completa. E foi melhorando com o passar

do tempo. Lutador nato, duro como ninguém. Não tem coração. E um

pedaço de gelo. E desde que o conheci, nunca pronunciou mais do que dez

palavras. Serra madeira e trabalha.

— Já o vi. Trabalha bastante para você — disse o secretário.

— Todos os grandalhões experimentaram a mão nele - respondeu

Roberts. - E a peste aprendeu com eles. Vi que podia derrotar alguns. Mas

seu coração não estava nisso. Percebi que não gostava do boxe. Pelo

menos, assim me parecia.

— Nestes últimos meses tem lutado para alguns clubes pequenos

- disse Kelly.

— Certo. Mas não sei o que lhe deu: de repente se entusiasmou,

passou a gostar do boxe. Partia como um raio e varria todos os boxeadores

locais. Dir-se-ia que precisava de dinheiro, e ganhou muito, embora isto

náo se note pelas roupas que usa. É um tipo muito especial. Ninguém sabe

o que faz. Ninguém sabe como passa o tempo. Mesmo quando trabalha,

desaparece a maior parte do dia. Às vezes some semanas a fio. Não aceita

conselhos. Há uma fortuna à espera do sujeito que consiga ser seu

empresário, mas ele não quer ouvir falar nisso. Repare como insiste no

pagamento em dinheiro, quando estabelece as condições da luta.

Nessa altura Danny Ward chegou. Foi quase uma festa. Acompa-

nhavam-no seu empresário e o treinador, e ele entrou todo animado,

43

Page 40: Jack london   contos

todo cordialidade e boa índole: um vencedor. Cumprimentos voavam à

roda, uma piada aqui, uma resposta ali, um sorriso ou uma risada para todo

mundo. Era o jeito dele, mas apenas em parte, sincero. Ward era bom ator,

descobrira que a cordialidade era uma qualidade muito útil para abrir

caminho na vida. Mas, debaixo da pele, ele era o lutador decidido, de

sangue frio, olho atento ao negócio. O resto era máscara. Os que o

conheciam ou negociavam com ele diziam que, quando se tratava de

dinheiro, ele era Danny Ward. Estava presente em todas as reuniões de

negócios, e dizia-se que seu empresário era um cego cuja única função era

servir-lhe de porta-voz.

Rivera era diferente. Em suas veias corria sangue indígena, e também

espanhol. Ficava sentado a um canto, calado, imóvel, os olhos negros

passando de um rosto para outro, reparando em tudo.

- Então, esse é o sujeitinho - disse Danny, lançando um olhar agudo a

seu futuro antagonista. - Como vai, meu caro?

Os olhos de Rivera ardiam venenosamente, mas parecia não ter

notado o outro. Detestava todos aqueles gringos, mas odiava este com uma

intensidade desconhecida até para ele mesmo.

- Senhor! - protestou Danny todo faceiro, dirigindo-se ao em-

presário. - Decerto não espera ver-me lutar com um surdo-mudo!

— E quando as risadas se acalmaram, lançou outra piadinha: - Los Angeles

deve andar bem ruinzinha, quando isso aí foi o melhor que você pôde

desencavar. De que jardim da infância o tirou?

- É um rapaz muito bonzinho, Danny: acredite — defendeu-se

Roberts. - Não tão cômodo como parece.

Danny lançou um olhar distraído e ainda menos lisonjeiro para

Rivera, e suspirou.

- Vai ser fácil comigo, creio. Contanto que não arrebente.

Roberts riu com desdém.

- É preciso cuidado — advertiu o empresário de Danny.

Não facilitar com um novato bem capaz de passar uma rasteira num

homem de sorte.

44

Page 41: Jack london   contos

— Vou ter cuidado, vou ter cuidado - disse Danny, sorrindo. — Vou

pegá-lo logo no início e niná-lo, por amor ao querido público. Que acha de

quinze rounds, Kelly... e, depois, lona?

— Está bem — foi a resposta - contanto que faça a coisa realisti-

camente.

— Então, mãos à obra — Danny fez uma pausa e um cálculo. -

Naturalmente, sessenta e cinco por cento da bilheteria - o mesmo de

Carthey. Ou dividimos de outro jeito: contento-me com oitenta. E para o

empresário: — Certo?

O empresário concordou.

— Você aí, entendeu isso? perguntou Kelly a Rivera.

Rivera sacudiu a cabeça,

— Bem, o negócio é esse - explicou Kelly. - O bolo é de sessenta e

cinco por cento da bilheteria. Você é substituto, ninguém o conhece. Você

e Danny racham a renda: vinte por cento para você, oitenta para Danny. É

justo, não é, Roberts?

— Muito justo, Rivera — concordou Roberts. — Você ainda não é

famoso.

— E quanto serão sessenta e cinco por cento da receita de bilhe-

teria? — perguntou Rivera.

— Oh!, talvez cinco mil, talvez até oito mil - atalhou Danny,

explicando. - Algo por aí. A sua parte será mais ou menos mil ou mil e

seiscentos dólares. Bom negócio para quem vai levar uma surra de um

sujeito com a minha reputação. Que acha?

E foi aí que Rivera fez todo mundo perder a respiração. - O vencedor

fica com tudo - disse, resolutamente.

Fez-se um silêncio mortal.

— É mamão com açúcar - disse o empresário de Danny.

Danny concordou.

— Estou há muito tempo nisto - explicou. - Não estou censurando o

juiz nem nenhum dos presentes. Não estou dizendo nada contra os

apostadores e as lutas fajutas que às vezes acontecem. Jogo limpo.

45

Page 42: Jack london   contos

Mas ninguém pode prever: talvez eu quebre um braço, hein? Ou algum

sujeito me embebede com uma pitadinha de maconha... - E balançando

solenemente a cabeça: — Ganhe ou perca, minha parte é oitenta. Que

acha, mexicano?

Rivera negou com a cabeça.

Danny explodiu. Agora descia a coisas práticas.

- Seu sujo fedorento! Tenho vontade de arrancar-lhe a cabeça agora

mesmo.

Roberts arrastou o corpanzil para se interpor entre os briguentos.

- O vencedor leva tudo — repetiu Rivera, com expressão sombria.

- Por que não concorda? - perguntou Danny.

- Posso derrotá-lo - foi a resposta.

Danny começou a tirar o paletó. Mas o empresário sabia que aquilo

era puro jogo. O paletó não foi tirado, e Danny consentiu em deixar-se

acalmar pelo grupo. Todos simpatizavam com ele. Rivera estava só.

- Olhe aqui, seu idiota — disse Kelly, continuando a discussão.

- Você não é ninguém. Sabemos o que andou fazendo estes últimos meses:

vencendo lutadores locais de meia tigela. Mas Danny tem classe. Sua

próxima luta será para a conquista do campeonato. Você não passa de um

desconhecido. Fora de Los Angeles, ninguém ouviu falar de você.

- Vão ouvir - disse Rivera, encolhendo os ombros. - Depois desta

luta.

- Pensa mesmo que pode me vencer? — perguntou Danny.

Rivera confirmou com um gesto da cabeça.

- Ora, vamos: escute a razão, rogou Kelly. - Pense nos anúncios.

- Quero o dinheiro — foi a resposta de Rivera

- Não poderá vencer-me nem num milhão de anos! garantiu Daiyiy.

- Então por que me oferece recompensa? Se o dinheiro é tão fácil

assim, por que não vai buscá-lo?

46

Page 43: Jack london   contos

— Pois irei, não há dúvida! - berrou Danny com uma convicção

repentina. - Vou lhe dar uma surra de morte no ringue, garoto, por estar

brincando desse jeito comigo. Faça os artigos, Kelly: o vencedor leva tudo.

Anuncie o fato nas colunas esportivas. Diga aos jornalistas que se trata de

uma luta chorada. Vou dar uma boa nesse fedelho.

O secretário de Kelly começou a escrever, mas Danny o interrompeu.

— Pare! - gritou; e voltando-se para Rivera: - A pesagem?

— No ringue - foi a resposta.

— Absolutamente, seu atrevido! Se o ganhador leva tudo, vamos nos

pesar lá dentro, às dez horas!

— O vencedor leva tudo? — inquiriu Rivera.

Danny confirmou com a cabeça. O caso estava encerrado. Ele entraria

no ringue no auge de sua força.

— Pesagem às dez - disse Rivera.

A pena do secretário arranhava o papel.

— Quer dizer cinco libras — explicou Roberts a Rivera. Você já

deixou escapar muita coisa. Já perdeu a luta aqui mesmo. Danny lutará

como um touro, e você é um idiota. Será derrotado. Não lhe darão nem

uma gota de água no inferno.

A resposta de Rivera foi um olhar calculado de ódio. Desprezava até

mesmo esse gringo, que julgava o mais branco de todos.

Quase ninguém reparou quando Rivera entrou no ringue.

Saudaram-no sem entusiasmo apenas com alguns aplausos, fracos e

dispersos. A casa não acreditava nele. Estava ali como o cordeiro levado ao

matadouro pelas mãos do grande Danny. Não só isso: a assistência estava

desapontada. Esperara uma violenta luta entre Danny Wird e Billy

Carthey, e eis que agora teria de aceitar aquele mero aprendiz. Além disso,

tinham manifestado sua desaprovação pela mudança, apostando dois e três

contra um de Danny. E onde está o dinheiro das apostas de uma

assistência, está também seu coração.

Al

Page 44: Jack london   contos

O mexicano sentou-se em seu canto e esperou. Danny demorava. Era

um velho truque, mas funcionava com os lutadores jovens e novatos.

Assustavam-se, sentados, convivendo com suas próprias apreensões e uma

assistência calejada de fumantes. Mas desta vez o ardil náo funcionou.

Roberts tinha razão. Rivera não tinha nervos. Era mais delicado, mais

coordenado, mais nervoso que qualquer um deles, mas, ao mesmo tempo,

não tinha nervos da espécie que conheciam. A atmosfera que parecia

pressagiar uma derrota certa náo tinha qualquer efeito sobre ele. Seus

técnicos eram todos gringos, e desconhecidos. Eram também a escória - os

imundos detritos do pugilismo - sem honra, sem préstimo, ao mesmo

tempo desanimados, certos de que o canto onde estavam era o canto de

quem ia perder.

- Tenha cuidado - advertiu Spider Hagerty. (Spider era o chefe dos

técnicos.) - Prolongue a luta o mais que puder, - são as instruções que

Kelly me deu. Se a luta não durar, os jornais dirão que foi fajuta, e em toda

Los Angeles reclamarão contra a farsa.

Nada disso estimulava, mas Rivera não se importou. Desprezava o

pugilismo profissional, jogo detestado dos detestados gringos. Aceitara-o,

bancando o cepo de açougueiro para outros, nas salas de treino, só porque

estava morrendo de fome. O fato de que fora maravilhosamente feito para

a luta nada significava. Odiava-a. Mas antes de se unir à Junta, nunca

lutara por dinheiro; desde então conseguira dinheiro fácil. E não era o

primeiro dos filhos do homem a ser bem sucedido numa profissão que

desprezava.

Mas não analisava. Simplesmente sabia que tinha que ganhar essa luta.

Não podia haver resultado diferente. Pois às suas costas, para apoiá-lo

nessa crença, havia forças mais poderosas do que uma casa cheia podia

imaginar. Danny Ward lutava por dinheiro e pela vida fácil que o dinheiro

proporciona. Mas as coisas pelas quais Rivera lutava queimavam-lhe o

cérebro — ardentes e terríveis visões que, de olhos arregalados, ele via

com a mesma clareza com que as vivera, sentado sozinho ali no canto do

ringue, à espera de seu adversário.

48

Page 45: Jack london   contos

Via os muros brancos das fábricas hidráulicas de Rio Branco. Via os

seis mil trabalhadores, famintos e desanimados, e as crianças de sete ou

oito anos labutando em turmas, por dez centavos ao dia. Via os cadáveres

ambulantes, os esqueletos dos homens que trabalhavam nas salas de tingir.

Lembrava-se de ter ouvido o pai chamá-las de “buracos suicidas”, pois um

ano de permanência nelas bastava para matar. Viu o pátio pequeno, e sua

máe cozinhando e se esfalfando nos serviços domésticos mais pesados, e

ainda assim encontrando tempo para acariciá-lo e amá-lo. E viu seu pai,

grande, bigodudo e de peito largo, mais alto que os outros homens, seu pai

que amava todos os homens e cujo coração era tão grande que seu amor

transbordava pela mulher e os muchachitos que brincavam no pátio da casa.

Naquele tempo ele não se chamava Filipe Rivera: chamava-se Fernandez,

segundo o nome de seus pais, que o chamavam de Juan. Mais tarde, trocou

de nome, pois descobrira que o nome Fernandez era odiado pelos

delegados de polícia, pelos jefespolíticos e os rurales.

Grande, generoso Joaquim Fernandez! Ocupava um grande espaço nas

visões de Rivera. Naquele tempo não compreendia; mas, revendo o

passado, agora compreendia. Via-о compondo em pequenos prelos, ou

garatujando linhas apressadas e nervosas que nunca acabavam, na

escrivaninha cheia. E podia ver as noites estranhas, em que trabalhadores

chegavam secretamente, no escuro, como malfeitores, para se

encontrarem com seu pai e falarem muitas horas, enquanto ele, o

muchacho, nem sempre estava adormecido em seu canto.

Como de uma longa distância podia ouvir Spider Hagerty que lhe

dizia:

— Não desistir no começo. Instruções deles. Deixe-se surrar e leve a

grana.

Passaram-se dez minutos, e ele continuava sentado no seu canto. Não

havia sinal de Danny, que evidentemente aproveitava o ardil ao máximo.

Page 46: Jack london   contos

Enquanto isso, outras visões ardiam diante dos olhos de sua memória.

A greve, ou antes, a suspensão do trabalho, por terem os homens de Rio

Branco ajudado seus irmãos grevistas de Puebla. A fome, as expedições

para as montanhas à cata de vagens, ervas e raízes que todos comiam, e que

retorciam e davam cólicas nos estômagos de todos eles. Depois, o pesadelo:

o espaço vazio em frente do armazém da companhia; os milhares de

trabalhadores famintos; o general Rosalio Martinez e os soldados de

Porfírio Diaz; e os rifles que vomitavam fogo e nunca paravam de atirar,

enquanto as injustiças feitas aos trabalhadores eram lavadas uma e muitas

vezes no sangue deles mesmos. E aquela noite, então! Viu os

vagões-plataforma atulhados de cadáveres destinados a Vera Cruz -

comida para os tubarões da baía. Rastejando sobre os horríveis montículos,

buscou e encontrou, nus e desfigurados, seu pai e sua mãe. Lembrava-se

especialmente de sua mãe - só com o rosto de fora, o corpo esmagado pelo

peso de dúzias de corpos. Outra vez crepitaram os rifles dos soldados de

Porfírio Diaz, e outra vez ele se deixou cair no chão e se esgueirou como

um coiote perseguido.

Chegou-lhe aos ouvidos um grande estrondo, como o do mar, e ele viu

Danny Ward, à frente de sua comitiva de treinadores e assistentes,

avançando pelo corredor central. A casa rugia à chegada do herói, cujo

destino era vencer. Todos o saudavam. Todos eram por ele. Até os próprios

assistentes de Rivera se encheram de algo parecido com alegria quando

Danny baixou a cabeça para saltar as cordas e entrar no ringue. O seu rosto

espalhava uma sucessão de sorrisos, e quando ele sorria, todas as suas

feições sorriam, até as ruguinhas nos cantos dos olhos, até o fundo de seus

próprios olhos... Nunca existira lutador tão simpático. O seu rosto era um

anúncio ambulante de bons sentimentos e de camaradagem. Conhecia

todo mundo. Brincava, ria e cumprimentava os amigos por entre as cordas.

Os que estavam mais longe, incapazes de conter sua admiração, gritavam

alto:

- Danny, Danny! - E foi uma ovação de afeto jubiloso que durou cinco

minutos inteiros.

50

Page 47: Jack london   contos

Não percebiam Rivera. Para a assistência, ele não existia. O rosto

espinhento de Spider Hagerty aproximou-se dele:

- Não se assuste - advertiu Hagerty. - E lembre-se das instruções. Tem

que durar. Nada de cair. Se cair, temos instruções para fazê-lo levantar-se

no vestiário. Sabe? Só é preciso que lute.

A casa começou a aplaudir. Danny atravessava o ringue em sua

direção; depois se inclinou, pegou a mão direita de Rivera com ambas as

suas e chegou pertinho dele. A assistência aplaudiu, apreciando esse

indício de espírito esportivo de Danny, que saudava o antagonista com o

carinho de um irmão. Os lábios de Danny se moveram, e a assistência,

interpretando as palavras inaudíveis como uma brincadeira de boa índole,

tornou a aplaudir. Só Rivera ouviu essas palavras:

- Seu rato mexicano — silvou Danny entre os lábios sorridentes.

— Vou arrancar o seu couro covarde.

Rivera não se moveu. Não se levantou. Apenas odiou-o com o olhar.

- Levante-se, cachorro! gritaram alguns homens por trás das cordas.

A multidão começou a vaiar e a assobiar diante de conduta tão pouco

esportiva, mas Rivera continuou sentado. Outra grande explosão de

aplauso irrompeu quando Danny cruzou o ringue de volta a seu canto.

Quando tirou o abrigo, ouviram-se “ohs!” e “ahs!” encantados. Danny

tinha um corpo perfeito, dotado de grande elasticidade, saúde e força. Sua

pele era branca como a de uma mulher, e igualmente macia. Nela residiam

toda a graça e todo o poder. Provara-o em dezenas de combates. Sua

fotografia era publicada em todas as revistas de cultura física.

Um ronco levantou-se quando Spider Hagerty puxou pela cabeça a

camiseta de Rivera. Seu corpo parecia ainda mais magro por causa do

moreno da pele. Tinha músculos; porém estes não apareciam como os do

adversário. O que a assistência não viu foi o peito fundo de

Page 48: Jack london   contos

Rivera. Tão pouco pôde adivinhar a dureza de sua epiderme, explosões

instantâneas de seus músculos, a finura dos nervos que percorriam todos

os seus membros e faziam dele um esplêndido mecanismo de luta. O que a

assistência viu foi um rapazola de dezoito anos, de pele bronzeada, dotado

de um corpo de menino. Quanto a Danny, tudo era diferente. Era um

homem de vinte e quatro anos, e seu corpo era um corpo de homem. O

contraste ficou ainda mais patente quando os dois se puseram de pé no

centro do ringue para receber as últimas instruções do juiz.

Rivera viu que Roberts se sentara logo atrás dos repórteres esportivos.

Estava mais bêbado que de costume, e sua fala era necessariamente mais

arrastada.

— Vá devagar, Rivera — disse lentamente. - Ele pode matá-lo, não

se esqueça disso. Vai sová-lo na saída, mas não se abale. Defenda-se,

mantenha-o à distância e agarre. Ele não pode machucá-lo demais. Faça de

conta que ele o está marretando na sala de treinamento.

Rivera não deu sinal de que ouvira.

- Diabo de sujeito carrancudo - resmungou Roberts para o homem

mais próximo. — Foi sempre assim.

Mas Rivera se esqueceu de por no olhar o seu ódio costumeiro. Fuzis

sem conta cegavam-lhe os olhos. Cada rosto da assistência, até onde a vista

alcançava, e cada rosto das poltronas do alto, que custavam vários dólares,

se transformavam em fuzis. E ele via a longa fronteira mexicana - árida,

lavada de sol e dolorosa — e ao longo dela via os bandos esfarrapados que

se atrasavam por falta de armas.

De volta ao seu canto só esperava o momento de levantar-se. Seus

assistentes tinham saído pelas cordas, levando consigo o banquinho de

lona. Diagonalmente, do outro lado do ringue quadrado, Danny o

encarava. O gongo bateu, e a luta começou. A assistência rugia,

entusiasmada. Nunca antes tinha visto uma luta mais convincente. Os

jornais tinham razão. Era uma luta sem quartel. Danny cobriu três quartas

partes da distância na fúria de atingi-lo, anunciando

52

Page 49: Jack london   contos

plenamente a sua intenção de moer o mocinho mexicano. Assaltou-o náo

com um soco nem com dois, nem com uma dúzia. Danny era um

giroscópio de murros, um torvelinho de destruição. Rivera não estava em

parte alguma. Subjugava-o, sepultava-o uma avalanche de socos dados de

todos os ângulos e posições por um mestre na arte do pugilismo. Foi

esmagado, lançado contra as cordas, separado pelo juiz, e de novo lançado

contra as cordas...

Aquilo não era luta; era uma matança, um massacre. Qualquer

audiência, exceto a do boxe profissional, teria exaurido as suas emoções no

primeiro minuto. Não havia dúvida de que Danny estava dando uma

demonstração do que podia fazer - uma esplêndida exibição. Tal era a

certeza da assistência, bem como o seu entusiasmo e favoritismo, que

deixou de perceber que o mexicano continuava em seus próprios pés.

Esqueceu-se dele. Raramente o avistava, de tanto que ele estava envolvido

no ataque devorador de Danny. Passou-se um minuto, dois.... Então, num

momento de separação, a assistência avistou o mexicano. Tinha o lábio

cortado, o nariz sangrando, e quando se voltou cambaleando, de um corpo

a corpo, seu sangue pingando, em contato com as cordas, fez listas

vermelhas em suas costas. Mas o que a assistência náo notou foi que seu

peito não arfava e que seus olhos ardiam como sempre, friamente. Muitos

haviam sido os aspirantes a campeão que, no cruel reboliço das salas de

treinamento, tinham exercitado nele esse ataque arrasador. Rivera

aprendera a viver com uma compensação que ia de meio a quinze dólares

por semana - escola dura, que ele frequentara.

Então aconteceu uma coisa espantosa. A confusão redemoi- nhante e

ruidosa cessou de repente. Rivera ficou sozinho: Danny, o temível Danny,

caíra de costas. Seu corpo estremecia à medida que sua consciência lutava

para voltar. Não cambaleara e caíra, nem desfalecera em queda lenta. O

“gancho” direto de Rivera o derrubara no ar, tão súbito quanto a morte. O

juiz empurrou Rivera para trás com uma das mãos, e ficou de pé ao lado do

gladiador, contando os

Page 50: Jack london   contos

segundos. É costume das assistências de jogos profissionais aplaudir um

golpe honesto de nocaute. Mas essa assistência náo aplaudiu. A coisa foi

inesperada demais. Observava a contagem dos segundos num silêncio de

expectativa, e foi nesse silêncio que se ergueu a voz exultante de Roberts:

— Eu bem disse que ele lutava com as duas mãos!

Lá pelo quinto segundo Danny virou de costas, e quando o juiz contou

sete, apoiou-se num dos joelhos, pronto para se levantar depois que o juiz

contasse nove, mas antes que contasse dez. Se seu joelho ainda estivesse

pousado no chão quando o juiz contasse “dez”, Danny seria considerado

vencido e fora do jogo. Mas no instante em que seu joelho se ergueu do

chão, consideraram-no “de pé”, e nesse instante Rivera tinha o direito de

tentar novamente derrubá-lo. Mas Rivera não se arriscou. No momento

em que o joelho se erguesse, tornaria a golpear. Danny andou à volta, o

juiz rodando entre ambos, e Rivera se deu conta que os segundos que ele

contara tinham sido contados muito devagar. Todos os gringos contra ele,

até o juiz!

Ao contar “nove”, o juiz deu um forte empurrão em Rivera. Era

injusto, mas permitiu a Danny levantar-se, tendo um sorriso nos lábios.

Meio dobrado para a frente, os braços envolvendo o rosto e o abdomem,

Danny agarrou Rivera num corpo a corpo. Segundo todas as regras do

pugilismo, o juiz devia tê-los separado, mas não o fez. Danny agarrava-se a

ele como uma craca batida pela maré, e se recuperava a cada momento. O

último minuto do round se aproximava. Se pudesse aguentar até o fim,

Danny teria um minuto inteiro, em seu canto, para reviver. Com efeito,

aguentou até o fim e reviveu, sorrindo através do seu desespero e da

delicada situação.

— Esse sorriso não sai! - gritou alguém, e a assistência, aliviada,

rompeu em altas risadas.

— O soco daquele nojento é terrível - disse Danny, ofegante, para o

técnico, enquanto os assistentes massageavam-no freneticamente.

54

Page 51: Jack london   contos

O segundo е о terceiro rounds foram mais mansos. Danny - ardiloso e

campeão do ringue - afastava, bloqueava e prosseguia, dedicando-se à

recuperação daquele estonteante golpe do primeiro round. No quarto round

voltou a ser o que era. Estivera contundido e abalado, mas suas boas

condições lhe permitiram recuperar o vigor. Mas já não empregava táticas

de destruição para com o adversário. O mexicano lhe saíra um tártaro. Por

conseguinte, trouxe para a luta as suas melhores forças combativas. Em

ardis, perícia e experiência era o maior, e embora não pudesse desfechar

nada vital, prosseguiu cientificamente, malhando e desgastando seu

oponente. Vibrava três socos contra um de Rivera, socos que apenas

castigavam, nenhum de maneira mortal. A soma de muitos desses socos

constituía a sua força mortífera. Sentia respeito por esse novato

ambidestro e seus espantosos golpes curtos de ambos os punhos.

Para defender-se, Rivera desenvolveu um desconcertante direto de

esquerda. Uma e muitas vezes, ataque após ataque, dava o direto de

esquerda afastado do seu adversário, acumulando estrago sobre estrago na

boca e no nariz de Danny. Mas Danny era um Prometeu. Razão pela qual

seria o futuro campeão. Podia mudar à vontade de um estilo de luta para

outro. Dedicava-se agora à luta interna. E nisto era notavelmente

perverso, o que o habilitava a escapar do direto de esquerda de Rivera.

Várias vezes levou a casa ao delírio, coroando a sua tática com uma chave

e um murro no queixo que levantaram Rivera no ar, deixando-o cair em

cheio no tapete. Rivera apoiou-se num dos joelhos, aproveitando ao

máximo a contagem, enquanto no fundo de sua alma percebia que o juiz

tornava seus segundos mais curtos que os de Danny.

No sétimo round, Danny repetiu o diabólico uppercut. O único

resultado foi aturdir Rivera; mas no momento seguinte, desamparado e

sem defesa, ele o atirou por entre as cordas com um novo soco, e o corpo

de Rivera saltou para cima das cabeças dos jornalistas. Estes o empurraram

de novo para a beira da plataforma, fora das cordas. Aí ele

Page 52: Jack london   contos

se apoiou em um joelho, enquanto o juiz apressava a contagem. Dentro das

cordas, pelas quais tinha de passar se abaixando, esperava-o Danny. O juiz

não interferiu nem empurrou Danny para trás.

Entusiasmada, a casa repleta saiu fora de si.

- Mate-o, Danny! Mate-o! gritavam.

Uma multidão de vozes repetiu o refrão, que mais parecia uma canção

de lobos famintos.

Danny fez o melhor que pôde, mas Rivera, quando o juiz contou

“oito”, em vez de “nove”, passou inesperadamente pelas cordas e se firmou

num corpo a corpo. Agora o juiz agia, apartando-os para que Danny

pudesse golpeá-lo, dando a Danny todas as vantagens que um juiz injusto

pode dar.

Mas Rivera sobreviveu, seu cérebro desanuviou-se. Era feito de uma

só peça. Os outros eram os odiados gringos, todos injustos. E nas piores de

suas visões continuaram a lampejar, a cintilar em seu cérebro, longas

linhas de trilhos de estrada de ferro tremulando no deserto; os rurales e os

policiais americanos; prisões e calabouços; vagabundos nos tanques de

água - todo o doloroso panorama da sua odisseia após Rio Branco e a greve.

E, resplandecente e gloriosa, viu a revolução vermelha varrendo a sua

terra. Os fuzis estavam ali, à sua frente. Cada rosto odiado era um fuzil. Era

pelos fuzis que lutava. Ele era os fuzis. Ele era a revolução. Lutava por todo

o México.

A assistência começava a impacientar-se com Rivera. Por que não se

deixava surrar como era de se esperar? Naturalmente, ia ser derrotado; mas

por que se obstinava em lutar? Poucos se interessavam por ele, e estes eram

a porcentagem certa e definida de apostadores que jogam em longo prazo.

Pensando que Danny seria o vencedor, tinham apesar disso jogado no

mexicano - quatro para dez e um para três. Uns poucos calculavam mais

quantos rounds Rivera ia durar. Apostas desvairadas se fizeram fora do

ringue, proclamando que ele náo duraria sete rounds, sequer seis. Os

vencedores de tais apostas, agora que o risco do seu dinheiro era evidente,

reuniram-se no aplauso ao favorito.

56

Page 53: Jack london   contos

Rivera recusava-se à derrota. Durante o oitavo round seu oponente em

vão lutou para reter o uppercut. No nono, Rivera tornou a deixar a

audiência boquiaberta. No meio de um corpo a corpo, desvencilhou-se

com um movimento rápido e ágil, e no estreito espaço entre seus corpos,

sua mão direita golpeou Danny. Este foi ao chão, mas valeu-se da lentidão

da contagem. A multidão ficou atônita: Danny estava sendo derrotado

pelo seu próprio jogo. O seu famoso uppercut de direita fora-lhe devolvido.

Rivera não fez a menor tentativa para golpeá-lo quando ele se levantou

com a contagem em “nove”. O juiz estava bloqueando a luta abertamente,

embora não interferisse quando a situação se inverteu e coube a Rivera

levantar-se.

Duas vezes no décimo round Rivera desfechou o uppercut de direita,

partindo da cintura para o queixo do adversário. Danny ficou desesperado.

Sempre sorrindo, recomeçou seus ataques mortíferos. Por maior que fosse

o redemoinho, não conseguia derrubar Rivera, enquanto este, entre névoa

e rodopio, derrubou-o no tablado três vezes em seguida. Agora Danny já

não se recuperava tão depressa, e no décimo primeiro round, sua situação

era crítica. Mas daí até o décimo quarto round, desenvolveu a melhor

exibição de toda a sua carreira. Mantinha distância, bloqueava, lutava

economicamente, esforçando-se para recuperar as forças. Ao mesmo

tempo lutava com toda a desonestidade de que é capaz um lutador.

Empregou todos os estratagemas, agarrando seu rival, como por acidente,

imobilizando a luta de Rivera entre o braço e o corpo, metendo sua própria

luva na boca de Rivera para cortar-lhe a respiração. Muitas vezes, num

corpo a corpo, com o lábio cortado mas sorridente, lançou os insultos mais

vis e mais incríveis no ouvido de Rivera. Toda a gente, desde o juiz até o

último espectador, estava com Danny, ajudava Danny. E todos sabiam o

que ele pretendia. Superado pela caixa de surpresas que era aquele

desconhecido, Danny fazia tudo convergir para um único soco.

Oferecia-se ao castigo, negaceava e esgrimia, encaminhando-se para

aquela única abertura que o habilitaria a dar um golpe com toda a

Page 54: Jack london   contos

sua força e inverter a maré. Assim como fizera um lutador melhor e maior

antes dele, Danny podia desfechar um direito e um esquerdo no plexo

solar e nos maxilares de Rivera. Sem dúvida podia fazê-lo enquanto

continuasse em pé, pois era conhecido pela força que tinha nos braços.

Os assistentes de Rivera mal cuidavam dele nos intervalos entre os

rounds. Agitavam as toalhas com estardalhaço, mas era pouco o ar que

faziam penetrar em seus pulmões ofegantes. Spider Hagerty dava-lhe

conselhos, mas Rivera sabia que tais conselhos eram falsos. Todos estavam

contra ele. Cercava-o a traição por todos os lados. No décimo quarto round,

tornou a derrubar Danny, e ele mesmo ficou descansando, as mãos

penduradas ao longo do corpo, enquanto o juiz contava. No outro canto

ouvia sussurros. Viu Michael Kelly dirigir-se para Roberts, curvar-se para

este e cochichar. Os ouvidos de Rivera eram ouvidos de gato, educados no

deserto, e ele captou trechos do que diziam. Queria ouvir mais, e quando

seu contendor se levantou, conseguiu um corpo-a-corpo encostado às

cordas.

—Tem de vencer - ouviu Michael dizer a Roberts que aquiescia com

um movimento de cabeça. - Danny tem de vencer. Senão perco uma casa

da moeda inteira. Joguei nele uma tonelada de dinheiro - dinheiro meu! Se

o rapaz aguentar o décimo-quinto, estou quebrado. Ele o ouvirá.

Atravesse-se em seu caminho.

Dali em diante Rivera não teve mais visões. Tentariam suborná-lo.

Mais uma vez derrubou Danny e ficou parado, as mãos penduradas ao

longo do corpo. Roberts levantou-se.

— Isso basta -, disse-lhe. - Vá para o seu canto.

Falava com autoridade, como muitas vezes lhe falara nas salas de

treino. Mas Rivera o fitou com ódio e esperou que Danny se levantasse. De

volta a seu canto no pequeno intervalo, Kelly, o promotor da luta,

procurou-o e falou:

—Acabe com isso, desgraçado — disse em voz baixa e áspera. —

Deixe-se derrotar, Rivera. Faça o que digo e garantirei o seu futuro.

58

Page 55: Jack london   contos

Da próxima vez deixo você derrotar Danny. Mas nesta, dê-se por vencido.

Rivera mostrou pelo olhar que ouvira, mas não deu sinal de concordar

ou discordar.

- Por que não responde? — perguntou Kelly, zangado.

- De qualquer modo vai perder - acrescentou Spider Hagerty.

- O árbitro não lhe dará a vitória. Escute o que Kelly está dizendo e

deixe-se derrubar.

- Deixe-se vencer, garoto - pediu Kelly - e o ajudarei a alcançar o

campeonato.

Rivera não respondeu.

- Eu o ajudarei, sim; mas agora, me ajude, garoto.

Quando o gongo bateu, Rivera percebeu que algo o ameaçava. A casa

não. Fosse o que fosse, estava mesmo dentro do ringue ao lado dele. A

segurança inicial de Danny pareceu voltar-lhe. Essa confiança assustou

Rivera. Algum estratagema estava a pique de entrar em ação. Danny

avançou, mas Rivera recusou o encontro, saltando a salvo para um lado. O

que o outro queria era um corpo a corpo, de algum modo necessário ao

estratagema. Rivera recuou e contornou, embora sabendo que cedo ou

tarde o corpo a corpo e o estratagema viriam. Resolveu atraí-los, de uma

vez por todas. Fingiu aceitar o corpo a corpo, no primeiro avanço de

Danny. Em vez disso, no último instante, justo no momento em que seus

corpos deveriam se encontrar, saltou agilmente para trás. No mesmo

instante os assistentes de Danny lançaram o grito de “traição”. Rivera os

iludira. O árbitro parou, indeciso. A decisão que tremia em seus lábios não

chegou a ser pronunciada, pois a voz aguda de um garoto das

arquibancadas gritou, como uma flauta:

- Luta de novato!

Danny amaldiçoou Rivera abertamente e quis forçá-lo, mas Rivera se

afastou de um salto. Tomou também a decisão de não mais golpear o corpo

do adversário. Com isto jogou fora metade de sua

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Page 56: Jack london   contos

oportunidade de vencer, embora sabendo que, se saísse vencedor daquela

luta, seria graças ao resto de condições que lhe restavam. À menor

oportunidade, iriam acusá-lo de traiçáo. Danny lançara toda cautela ao

vento. Durante dois rounds andou atrás do garoto que, por sua vez, náo se

atrevia a encontrá-lo de perto. Rivera foi golpeado muitas vezes: recebia

dezenas de golpes para evitar o perigoso corpo a corpo. Durante essa

suprema e final recuperação de forças de Danny, a assistência pôs-se em

pé, enlouquecida. Não podia compreender. Só sabia que, no fim, seu

favorito venceria.

— Por que não luta? — perguntou Danny, furioso, a Rivera. — É um

covarde! Um covarde! Venha lutar, seu cão! Venha lutar!

- Mate-o! Mate-o, Danny! — gritava em peso, a assistência.

Em toda a sala, sem exceção, Rivera era o único a manter o

sangue-frio. Por sangue e por temperamento era ali o mais apaixonado,

mas tinha atravessado situações tão mais tensas, que aquela paixão de dez

mil gargantas, elevando-se em onda após onda, era para seu cérebro não

mais do que o frio de veludo de um crepúsculo de verão.

No décimo sétimo round, Danny conseguiu se recuperar. Rivera, sob

um pesado golpe, inclinou-se e afrouxou. Sua mãos se dependuraram

inertes enquanto ele cambaleava, recuando. Danny viu ali a sua chance. O

rapaz estava à sua mercê. Foi assim que Rivera, esgrimindo os braços, o

apanhou desprevenido, desfechando-lhe um direto em plena boca. Danny

caiu. Quando se ergueu, Rivera derrubou-o, martelando o lado direito do

seu pescoço e os maxilares. Três vezes repetiu o golpe. Era impossível

qualquer árbitro qualificar tais golpes de traição.

- Oh! Bill! Bill! - suplicava Roberts ao árbitro.

—Não posso - lamentou o árbitro em resposta. — Ele não me dá

chance.

Danny, derrotado e heróico, ainda tentava se levantar. Kelly e outros

mais próximos do ringue começaram a gritar para que a polícia

6o

Page 57: Jack london   contos

interrompesse a luta, embora os assistentes de Danny se negassem a jogar

a toalha. Rivera viu um capitão de polícia gordo tentar, sem jeito,

atravessar as cordas, mas não sabia o que isso poderia significar. Havia

tantos modos de roubar nesse jogo de gringos! Danny, afinal em pé,

cambaleava à sua frente como um bêbado sem defesa. O árbitro e o capitão

já alcançavam Rivera, quando este desfechou o último golpe. Já não era

preciso interromper a luta, pois Danny continuava caído no ringue.

- Conte! — gritou Rivera asperamente ao árbitro.

E quando a contagem terminou, os assistentes de Danny o carregaram

para seu canto.

- Quem ganhou? - perguntou Rivera.

Relutante, o árbitro pegou sua mão enluvada e levantou-a.

Não houve congratulações para Rivera. Sozinho, ele se dirigiu para

seu canto, onde os assistentes ainda não tinham posto o seu banquinho.

Rivera apoiou as costas nas cordas e fitou-os com ódio; com ódio idêntico

fitou a assistência, até incluir o último daqueles dez mil gringos. Seus

joelhos tremiam, e ele soluçava de exaustão. Diante de seu rosto, os rostos

odiados se balançavam para frente e para trás na tontura do seu enjoo.

Lembrou-se então de que eles eram os fuzis. Os fuzis lhe pertenciam. A

revolução podia continuar.

61

Page 58: Jack london   contos
Page 59: Jack london   contos

capítulo 4

A VOLTA DO PAI PRÓDIGO

Josiah Childs era um homem bem normal. Parecia ser o que realmente

era: um próspero comerciante. Usava um terno de sessenta dólares - um

terno social de comerciante — cômodos sapatos de bico médio, feitos a

mão por um bom sapateiro, mas sem exageros, colarinho e punhos

adequados a um comerciante. Sua única ousadia era um desses chapéus a

que chamam derby — última moda dos homens de negócios.

Oakland, na Califórnia, está longe de ser uma cidade provinciana

tranquila e Josiah Childs, dono do principal armazém dessa orgulhosa

cidade do Oeste americano, tinha um modo de vida, maneiras e aspecto

adequados a suas altas funções.

Mas naquela manhá, antes de começarem a chegar os fregueses, o

aparecimento de Josiah Childs no armazém provocou, senáo um tumulto,

pelo menos uma perturbação suficiente para parar durante uns trinta

minutos o trabalho dos empregados. Cumprimentou com um sinal afável

de cabeça os dois empregados que, na soleira da porta, carregavam os dois

primeiros caminhões do dia. Depois do costumeiro olhar matinal para o

grande letreiro da fachada, entrou

Page 60: Jack london   contos

no armazém. O letreiro dizia: “ARMAZÉM JOSIAH CHILDS”, em belas

letras douradas, de dimensões sóbrias e de bom gosto, que lembravam

especiarias nobres, temperos aristocráticos, enfim tudo o que constitui o

nec plus ultra em matéria de cosmetíveis (isso era o mínimo que se poderia

esperar desse palácio-armazém, onde os preços eram 10% mais elevados do

que em outros lugares). Ao dar as costas aos carregadores e entrar, Josiah

Childs não percebeu o olhar de surpresa que os dois trocaram sobre seu

aspecto. Interromperam o trabalho e, para evitar cairem de susto,

apoiaram-se um no outro:

- Por essa você não esperava, hein, Bill? - sussurrou um.

— Não, e você? O que será que aconteceu com o patrão? - perguntou

o outro.

- Sei lá. Será que vai a algum baile de máscaras?

- Quem sabe, a uma reunião de domadores de cavalos?

— Ou caçar ursos...

— Talvez pagar impostos.

Na verdade, vai visitar esses molóides do Leste! Monkton disse que ele

vai direto para Boston...

Os dois homens se refizeram da surpresa e voltaram ao trabalho.

As roupas de Josiah Childs, com efeito, justificavam todos aqueles

comentários. O chapéu duro, de aba larga, cercado por uma fita de couro

ao gosto dos mexicanos, era da marca John B. Statson. Usava uma camisa

azul de flanela com uma gravata com nó “à Windsor” e um casaco de

veludo de algodão grosseiro, de ombros altos; as pernas das calças, do

mesmo tecido, estavam metidas em botas de cano alto, dessas usadas pelos

agrimensores, exploradores e operários especializados.

Um empregado, no primeiro balcão, ficou petrificado de espanto ao

ver os estranhos trajes do patrão. Monkton, recém-promovido a gerente,

ficou boquiaberto; depois, engoliu a saliva e retomou sua imperturbável

atitude amável. A jovem caixa, do alto do box envi-

bA

Page 61: Jack london   contos

draçado no balcão interno, tão logo viu aquele fenômeno, escondeu o rosto

atrás do livro-caixa para disfarçar o sorriso.

Josiah Childs percebeu o efeito produzido em seus subordinados, mas

não se importou. Ia tirar férias, as mais aventureiras em dez anos. Toda

espécie de projetos alegres, de prazeres antecipados passavam por sua

cabeça e seu coração. Maravilhosas visões de East Falls, em Connecticut, e

todas as cenas familiares dessa cidade, onde nascera e fora educado,

desfilavam por sua memória. Oakland, era, sem dúvida, mais moderna que

East Falls, e o espanto causado por seus trajes ridículos era coisa por que já

esperava. Indiferente ao espanto que suscitava entre os empregados, ia e

vinha, acompanhado de perto pelo gerente, dando os últimos conselhos, as

instruções finais, lançando um olhar radiante, cheio de ternura, a todos os

detalhes da grande empresa que construíra a partir do nada.

Tinha todos as razões para ter orgulho do grande Armazém Josiah

Childs. Doze anos antes, desembarcara em Oakland com apenas quatorze

dólares e três cents no bolso. Os cents não eram aceitos naquele lugar tão

distante, no Oeste, e quando os quatorze dólares acabaram, continuou

vegetando por algum tempo com os cents no bolso. Mais tarde, conseguiu

um emprego numa mercearia modesta, com um salário de onze dólares

por semana - o que lhe permitiu enviar, mensalmente, uma pensão a uma

certa Agatha Childs, em East Falls, Conecticut. Os três cents serviram para

comprar selos: Tio Sam não poderia recusar, nos correios, a moeda legal de

seu país. Até então Josiah passara a vida nos estreitos limites da Nova

Inglaterrra, onde sua perspicácia e seu tino para os negócios tinham se

aguçado, afiados pela pobreza. De repente, viu-se jogado naquele meio

pródigo e insaciável do Oeste, onde as pessoas pensavam apenas em notas

de mil dólares e os vendedores de jornais caíam fulminados quando viam

moedas de bronze. Josiah Childs embrenhou-se nesse novo mundo

industrial e comercial, como um ácido sobre uma placa de prata. Era

ambicioso e tinha grandes projetos. Imaginou mil maneiras

65

Page 62: Jack london   contos

de ganhar dinheiro rapidamente; todos os projetos se cruzavam ao mesmo

tempo em seu cérebro.

Mas, como era sensato e prudente, absteve-se de especular. Só lucros

substanciais e positivos o atraíam. Enquanto trabalhava no escritório, com

salário de onze dólares semanais, observava e anotava as oportunidades

perdidas, os mercados inexplorados, os inúmeros desperdícios de que era

testemunha. Se, apesar de tudo, seu patrão prosperava, o que não

conseguiria ele, Josiah Childs, com a educação espartana que tivera em

Connecticut? A oportunidade inesperada se lhe apresentou como uma

garrafa de vinho a um eremita sedento. Depois de 35 anos em East Falls,

dos quais os últimos quinze em seu modesto emprego no escritório da

principal mercearia daquela cidade, via-se nesse centro tão ativo do Oeste,

onde existiam pessoas tão pródigas.

Imaginava inúmeras possibilidades. Mas não perdeu a cabeça.

Nenhum detalhe lhe escapou. Dedicou as horas livres a observar os

habitantes de Oakland, a maneira como ganhavam dinheiro e como o

gastavam. Circulava pelas ruas principais e anotava para onde afluía a

multidão de compradores, que chegava a contar, para fazer estatísticas.

Estudava o sistema de crédito comercial e sabia quanto se pagava, como

salário, em média, neste ou naquele lugar. Chegou a conhecer todos os

cantos da cidade, desde os barracos na margem do rio até os bairros

aristocráticos do lago Merrit e de Piedmont, desde a periferia do Oeste de

Oakland, onde moravam os ferroviários, até Fritvale, habitada por

sitiantes, no extremo oposto da cidade.

Sua escolha definitiva foi a Broadway, artéria principal, em pleno

centro financeiro e onde ninguém jamais tivera a ideia maluca de se

estabelecer com um mercado. Mas essa visão ambiciosa exigia muito

capital, e ele tinha que começar com meios mais modestos. Foi no bairro

pobre de Filbert, habitado por operários de uma grande fábrica de pregos,

que abriu seu primeiro mercadinho. No fim de seis meses, três outras

pequenas mercearias foram obrigadas a fechar suas por-

66

Page 63: Jack london   contos

enquanto ele ampliava seus negócios. Tinha adotado o seguinte

princípio: vender muito e com pouco lucro, oferecer mercadorias de boa

qualidade e ter honestidade comercial. Descobriu, também, o segredo da

publicidade. Toda semana oferecia um artigo que vendia íbaixo do custo.

Seu único empregado previu sua falência iminente, quando o viu vender

por 25 cents a manteiga que lhe custara 30, e oferecer por 36 cents o quilo

do café pelo qual pagara 44. As donas de casa, atraídas por essas ofertas,

adquiriam também outros artigos, que, estes sim, davam lucro. Assim, logo

todo o bairro ficou conhecendo o caminho do mercado de Josiah Childs, e

o acúmulo de fregueses também se tornou uma atração.

Josiah Childs, no entanto, era muito esperto para deixar-se seduzir

por esse início de prosperidade. Afinal de contas, sabia de que gênero de

clientela dependia a sorte dessa prosperidade. Conversando com uns e

outros, obtinha informações sobre a fábrica de pregos, chegando a

conhecer detalhes da fábrica tão bem como seus próprios diretores. Um

belo dia, sem que ninguém esperasse, vendeu o estabelecimento e, com

uma modesta soma de dinheiro na mão, pôs-se a procurar outro local. Seis

meses depois, a fábrica de pregos abriu falência e fechou definitivamente

suas portas.

Abriu seu novo estabelecimento em Adeline Street, moradia de

pessoas de salários mais altos. As prateleiras dessa mercearia foram

abastecidas com mercadorias melhores e mais variadas. Mantendo seu

antigo sistema, atraiu a freguesia com ofertas tentadoras, instalou um

balcão de frios e uma doceira. Negociava diretamente com os fazendeiros,

de modo que não apenas a manteiga e os ovos eram sempre frescos, como

também de qualidade superior aos artigos equivalentes dos mais famosos

mercados da cidade. O feijão cozido de Boston tornou-se uma de suas

especialidades. Obtive tanto sucesso que uma grande fábrica de conservas,

a Twin Cabin Bakery, comprou a preço de ouro o uso exclusivo da marca.

Interessou-se pela agricultura, pelos processos de cultivo e pelas

diferentes espécies de maçãs cultivadas.

Page 64: Jack london   contos

Aprendeu, com alguns fazendeiros, a fabricar sidra de boa qualidade. A

sidra da Nova Inglaterra obteve muita fama. Logo que essa nova marca

conquistou San Francisco, Berkeley e Alameda, Josiah Childs

transformou-a em um negócio à parte.

Mas não esquecia suas pretensões de instalar-se na Broadway.

Aproximou-se cada vez mais do bairro de Ashland Park, onde todos os

proprietários de terreno eram legalmente obrigados a construir prédios de,

no mínimo, quatro mil dólares. Depois disso, foi a vez da Broadway.

Uma inexplicável predileção se manifestara no público. Os com-

pradores se dirigiam para a Washington Street, onde os preços dos

terrenos subiam a cada dia, em detrimento da Broadway, prejudicada por

essa popularidade da Washington Street. Os grandes estabelecimentos,

quando terminavam seus contratos de aluguel, mudavam-se todos para a

Washington Street. Era um êxodo geral.

“O povo vai voltar”, dizia Josiah Childs para si mesmo; mas guardava

isso só para si. Conhecia as massas e seus caprichos. Oakland estava em

pleno crescimento, e ele sabia porque. Washington Street era um corredor

comercial muito estreito para a circulação da cidade, que crescia sem

parar. Era pela Broadway, por causa de sua posição geográfica, bem

central, que passariam fatalmente os bondes elétricos, o que a tornaria um

centro de grande atividade. Ao contrário, as imobiliárias diziam que o

público nunca mais voltaria, e todo o grande comércio seguia a multidão.

Desta forma, Josiah Childs conseguiu, por uma ninharia, alugar um imóvel

de primeira linha com um contrato de longo prazo e opção de compra por

um preço predeterminado. Quando os corretores de imóveis viram

estabelecer-se uma mercearia nessa rua seleta, declararam unanimemente

que era o fim da Broadway. Mais tarde, quando o capricho das multidões

levou-as de volta à Broadway, passaram a considerar Josiah Childs um

homem de sorte; corria entre eles o boato que o negócio de Josiah lhe

proporcionara, por baixo, cinquenta mil dólares de lucro.

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Page 65: Jack london   contos

Seu novo armazém era totalmente diferente dos anteriores. Nada de

vendas abaixo do preço de custo! Fim dessas regalias para a clientela.

Todos os artigos eram de primeiríssima qualidade, e os preços à altura da

qualidade. Ele tinha em vista a clientela mais seleta da cidade, aquela que

não olha o preço da mercadoria. Frequentavam sua mercearia apenas as

pessoas cujos meios lhes permitiam pagar, sem pestanejar, dez por cento a

mais do que em qualquer outro lugar. A qualidade das mercadorias era de

tal ordem que seus clientes não passavam sem elas e nem pensavam em

procurar outros comerciantes. Os cavalos e veículos de entrega eram os

mais caros e os mais bonitos de toda a cidade; pagava a seus cocheiros,

empregados, contadores, os salários mais altos. Resultado: tinha um

pessoal mais competente e mais selecionado do que os outros e que

prestava melhores serviços, tanto para ele como para os clientes. Em

resumo, abastecer-se no Armazém Childs tornou-se termômetro infalível

de um alto nível social e econômico.

Para completar, houve um grande terremoto, seguido de incêndio, em

San Francisco. Essa catástrofe provocou um êxodo imediato de cem mil

pessoas, que atravessaram a baía e se fixaram em Oakland. E Josiah Childs

saiu lucrando com esse extraordinário golpe de sorte.

Eis em que circunstâncias, após doze anos de ausência, o agora rico

comerciante ia rever sua cidade natal, East Falls, em Connecticut.

Durante todo esse tempo, não recebera uma única carta de Agatha,

sua mulher, nem vira uma foto de seu filho.

Agatha e ele nunca tinham se entendido. Ela era uma tirana; além

disso, falava demais e tinha ideias rígidas e atrasadas, muito ultrapassadas

em matéria de moral. Alardeava aos quatro ventos esse rigor, o que não a

tornava nada simpática. Josiah jamais chegou a compreender como se

casara com aquela mulher. Por ocasião de seu casamento, ela, dois anos

mais velha do que ele, era considerada uma solteirona. Até então era

professora e deixara marcada na lembrança

69

Page 66: Jack london   contos

da geração jovem a imagem de uma educadora de implacável seriedade. O

casamento fora para ela a substituição de vários alunos por um único, que

devia educar. Josiah tornou-se, depois do casamento, o único objeto dos

sermões e das investidas que ela dirigia aos que a cercavam. Como se

realizara aquela união? Era difícil dizer. A melhor explicação talvez fosse a

do tio Isaac no dia em que, conversando a sós com o sobrinho,

confidenciou-lhe:

- Josiah, Agatha casou-se com você com o secreto desejo de aniquilar

um rapaz em pleno vigor de suas forças. E acho, meu pobre rapaz, que

dessa guerra, você vai sair perdendo! A menos — quem sabe, que você

tenha coragem suficiente para fugir...

- Tio Isaac — respondeu Josiah — coragem eu tenho. Tenho muita

coragem, pode crer, mas ela tem muito mais do que eu. Quando ela me

agarra pelo colarinho, sinto-me derrotado, quase sem forças.

- Além disso, a sem vergonha tem a língua solta... - escarneceu tio

Isaac.

- Pobre de mim! - concordou Josiah. - Estamos casados há cinco anos

e, durante esse tempo, ela não mudou nada.

- Vá com calma, você ainda é moço — acrescentou tio Isaac.

Essa conversa acontecera nos últimos dias de sua vida em comum

com Agatha. Os comentários do tio abriram perspectivas mais que

suficientes para Josiah Childs. Embora se sentisse impotente diante da

autoridade de Agatha, gozava de boa saúde física e mental. Tinha pela

frente um futuro muito longo e precisaria de paciência demais para

suportar Agatha. Tinha apenas 33 anos, e vinha de uma família longeva.

Restava-lhe, pelo menos, metade da vida. A ideia de passar mais 33 anos ao

lado de Agatha — mais 33 anos sendo repreendido por ela — parecia por

demais atroz para ser encarada tranquilamente. Sem que ninguém

esperasse, uma bela noite Josiah Childs desapareceu de East Falls. Desde

então, durante doze anos, não recebera uma única linha de Agatha. Não a

censurava por isso, pois ele próprio tomara o cuidado de não fornecer seu

endereço. As primeiras pensões que

70

Page 67: Jack london   contos

ela recebera haviam sido remetidas de Oakland, mas as enviadas nos anos

seguintes, e graças ao cuidados do remetente, tinham selos da maioria dos

Estados a oeste das Montanhas Rochosas.

Doze anos de distância e a autoconfiança adquirida em função de um

merecido sucesso, tornaram suas lembranças mais amenas... Antes de mais

nada, Agatha era a mãe de seu filho e, incontestavelmente, era uma

mulher correta. O trabalho, menos duro agora, deixava-lhe mais tempo

livre para ocupar-se de outras coisas além de seus negócios. Queria

conhecer esse garoto que nunca vira e que, há mais de três anos, soubera

ser seu filho. Tinha também saudades da cidade e queria pisar de novo na

neve, pela primeira vez depois de doze anos, e comparar o gosto das frutas

da Nova Inglaterra com o das californianas.

Pretendia ainda rever, antes de morrer, o local familiar em que

nascera. Tinha tanta vontade de reviver um pouco a existência de outrora

que sua imaginação ressuscitava as brumas do passado.

E, por fim, tinha uma obrigação a cumprir: Agatha não era sua

mulher? Ele a traria consigo para o Oeste e achava que seria capaz de

suportá-la. Não era agora um homem vivendo num mundo de homens?

Ele mandava, não era mandado e Agatha logo perceberia isso! Voltar a

viver com sua mulher tornava-se para ele uma questão de consciência.

Eis por que se vestira com aquelas roupas de provinciano: iria

apresentar-se como o pai pródigo, que volta à casa sem um tostão, assim

como partiu. Caberia a Agatha matar ou não um novilho cevado para

festejar sua volta. Bateria à porta de mãos vazias - pelo menos

aparentemente —, perguntando, preocupado, se o aceitaria de volta em

sua antiga função, no armazém. A continuação da história dependeria de

Agatha. Vejamos!...

Enquanto se despedia de seu pessoal e se dirigia para a calçada,

percebeu que estavam carregando cinco outros caminhões de entrega.

Lançou-lhes um olhar orgulhoso e, depois de uma última olhada

71

Page 68: Jack london   contos

cheia de ternura para o letreiro dourado e preto, fez sinal ao bonde para

parar.

No vagão de luxo do trem que faz o traj»eto de Nova York a East Falls,

conversou com vários homens de negócios. O assunto era o Oeste e, em

pouco tempo, Josiah era o cemtro das atenções: como presidente da Câmara

de Comércio de Oakfland, falava com autoridade; suas palavras tinham

peso e ele entendia de todos os assuntos, fosse o comércio asiático, o canal

do Panarmá ou os trabalhadores japoneses. Nesse ambiente de respeitosa

atenção, manifestada por esses prósperos negociantes do Leste, a viage:m

pareceu curta. Antes que percebesse, o trem chegou à estação de East Falls.

Foi o único passageiro a descer na estaç ão deserta, onde não se

esperava ninguém. O longo fim de tarde de janeiro chegava ao fim e, com a

sensação do ar fresco, percebeu que suas roupas estavam impregnadas do

cheiro de fumo. Involuntariamente, percorreu-o um calafrio: Agatha não

suportava o cheiro de tabaco. Ameaçou jogar fora o cigarro que acabara de

acender, «quando se deu conta de que a atmosfera de East Falls — essa

pesada atmosfera de outrora — recomeçava a oprimi-lo. Resolvido a

combatê-la, pegou o cigarro e o apertou entre os dentes com a decisão que

adquirira nos doze anos de permanência no Oeste.

Alguns passos mais e chegou àquela pequena rua, a principal do lugar:

seu aspecto mesquinho, sórdido, causou-lhe uma impressão desagradável.

Tudo lhe parecia hostil e gelado, até o próprio ar, quando comparado com o

agradável calor da Califórnia. Raros transeuntes, dos quais não se

lembrava, lançavam olhares indiferentes ao cruzar com ele. Sentia-os

pouco sociáveis, frios e inacessíveis. Não conseguia voltar a si, tão surpreso

estava. A concepção mais ampla de vida, que adquirira durante os doze

anos no Oeste, fizera com que diminuísse, na imaginação, o tamanho e a

importância de East Falls; mas, na realidade, a cidadezinha ainda era menor

do que tudo que tinha imaginado. Tudo era muito mais medíocre do que se

lembrava. Ao avistar o armazém

72

Page 69: Jack london   contos

onde começara, sentiu um nó na garganta. A comparação que tantas

vezes fizera com seu vasto estabelecimento pareceu-lhe bem aquém da

realidade. Qualquer de seus vendedores, com certeza, não ficaria muito

tempo em tão miserável edifício. Com orgulho, percebeu que o armazém

cabia inteiro num de seus depósitos de mercadorias.

Virou a esquina no fim da rua e, continuando pela calçada, achou que

deveria, antes de mais nada, comprar luvas e um boné. Por um momento

reanimou-se, ao pensar nas alegrias do trenó deslizando na neve; mas,

assim que chegou à periferia da cidadezinha, observou nauseado o aspecto

pouco higiênico das pobres casas coladas a depósitos. As recordações

cruéis voltaram a assaltá-lo: lembrou-se das manhãs de inverno, as mãos

enregeladas e cobertas de rachaduras de tanto limpar a entrada de sua

casa; sentiu um aperto no coração ao ver aquelas janelas duplas, próprias

contra tempestades de neve. Os buracos de ventilação, do tamanho de um

lenço, provocaram nele uma espécie de asfixia. “Agatha — pensou - vai

adorar a Califórnia!”

Diante de sua imaginação apareceram vastos roseirais, embalados pelo

Sol brilhante, com milhares de flores desabrochadas do fim do ano para cá.

De repente, de maneira muito ilógica, o passado pareceu surgir de novo e

toda a atmosfera pesada de East Falls abateu-se sobre ele como a úmida

névoa marinha. Tentou sair desse torpor pensando em coisas sentimentais,

como “essa boa neve”, “a alegria da volta ao lar”; mas ao vislumbrar a casa

de Agatha, fraquejou: todo seu entusiasmo artificial o abandonou. Sem

perceber, e com remorso, jogou longe o cigarro que estava pela metade, e

foi com a aparência prostrada e os passos arrastados e sem vida de outrora

que chegou ao portão.

Procurou reanimar-se, lembrando-se de que era o proprietário do

grande armazém Childs, habituado a comandar, o homem cujas palavras

eram ouvidas com respeito na associação patronal e que presidia às

reuniões da Câmara de Comércio. Tentou lembrar-se do letreiro negro e

dourado, das filas de veículos alinhados na calçada de seu

estabelecimento. Mas o espírito de Agatha - o espírito da Nova

73

Page 70: Jack london   contos

Inglaterra - mais mordaz que o frio do ambiente, atravessou as paredes

espessas, foi além daquelas centenas de metros que o separavam dela e

voltou a possuí-lo.

Percebeu então que, apesar de tudo, livrara-se de seu cigarro. Esse

detalhe trouxe-lhe à memória uma lembrança desagradável: viu-se

escondendo-se na serraria para poder fumar à vontade. A imagem de

Agatha aparecia-lhe mais suave pelo tempo quando cinco mil quilômetros

os separavam. Era inconcebível. Não! Não poderia voltar à existência

anterior. Estava muito velho agora, habituado às suas comodidades e a

fumar pela casa inteira, para recomeçar com os segredinhos de

antigamente. Ora, tudo ia depender do primeiro encontro. Muito bem! Ele

imporia sua vontade... Fumaria, nesse mesmo dia, dentro de casa... (na

cozinha, acrescentava a voz da fraqueza)... Não! (era a voz da autoridade).

Já entraria com o cigarro na boca... Lá dentro, sem pedir licença, acenderia

outro, ao mesmo tempo em que praguejaria contra o frio que enregelava

suas mãos... Sua virilidade incendiou-se como um fósforo. Ah! ela ia ver

quem é que mandava! Apenas tirasse o chapéu e ela perceberia os seus

limites!

Josiah Childs tinha nascido naquela casa. Seu pai a construíra bem

antes dele nascer. Contemplava-a. Por cima da mureta de pedra viam-se a

varanda e a porta da cozinha, a serraria com a qual ela se comunicava e as

diversas dependências. Recém-vindo do Oeste, onde tudo era novo e em

contínua transformação, essa imutabilidade não deixou de surpreendê-lo;

tudo estava exatamente como antes. Viu-se, menino ainda,

desempenhando as tarefas domésticas. Quanta madeira, nessa serraria, não

serrara e rachara com o machado!... Esse tempo já ia longe, graças a Deus!

A neve do corredor que levava à cozinha tinha sido retirada recentemente

e ainda havia vestígios da pá. Essa era também uma de suas tarefas.

Perguntava-se quem faria isso agora, quando se lembrou, repentinamente,

de que seu filho deveria estar com doze

74

Page 71: Jack london   contos

anos. No instante seguinte, quando ia bater à porta da cozinha, o ranger de

uma serra, vindo da serraria, fê-lo voltar-se. Entrou e viu um garoto forte

e saudável, serrando madeira. Evidentemente, era seu filho. Tomado pela

emoçáo — a voz do sangue — teve que fazer um grande esforço para

dominar o impulso de lançar-se nos braços do menino:

- Seu pai está? - perguntou laconicamente, estudando a criança com

muita atençáo sob a aba rígida do chapéu.

“De bom tamanho para sua idade — pensava - o peito um pouco

franzino, talvez por causa do crescimento.” O rosto agradou-lhe: traços

fortes, mas de aspecto amável, e olhos semelhantes aos do tio Isaac. Em

suma, um lindo garoto...

- Não, senhor! — respondeu o rapaz, apoiando-se na serra.

- Onde ele está?

- No mar.

Ao ouvir esta resposta, Josiah Childs experimentou uma mistura de

alívio e satisfação. Certamente, Agatha casara-se novamente... com um

marinheiro. Mas, a essa sensação seguiu-se outra, desagradável,

preocupante: Agatha cometera bigamia!... Josiah lembrou-se da clássica

história de Enoch Arden, cuja aventura era lida pelo professor em classe.

Via-se como um herói. Sem dúvida, era isso o que faria! Sairia sem alarde e

pegaria o primeiro trem para a Califórnia. Ela não ficaria sabendo de sua

vinda.

No entanto, refletindo melhor, verificou que algumas coisas não se

encaixavam: em primeiro lugar, os princípios de Agatha em matéria de

moral e suas ideias religiosas muito firmes, próprias da Nova Inglaterra.

Além disso, ela recebia regularmente uma pensão do marido e sabia,

portanto, que ele estava vivo... Não! Impossível que ela tivesse procedido

assim! Esforçava-se mentalmente, à procura de uma resposta. E se ela

tivesse vendido a velha casa e esse rapazinho fosse filho de outro

qualquer?

- Como se chama, menino? - perguntou Josiah.

75

Page 72: Jack london   contos

-Johnnie.

- E qual é seu sobrenome?

- Childs. Johnnie Childs.

— E o nome de seu pai?

— Josiah Childs.

— Disse que ele está no mar, náo é?

- Sim, senhor!

Essas respostas deixaram Josiah pensativo.

- E como é seu pai?

— Ah! Senhor, mamáe diz que é um homem valente e um excelente

pai de família. Envia regularmente para casa o dinheiro que ganha, e

trabalha muito. Mamãe diz também que ele vale mais que todos os homens

que ela conhece; não fuma, não bebe, não diz palavrão, enfim é um

homem que sempre cumpriu e só cumpre o seu dever. Isso é o que diz

mamãe, e ela o conheceu durante muito tempo, bem antes de casar-se com

ele. Sim, ele é muito bom, incapaz de fazer mal a uma mosca. Mamãe

sempre me diz que é o homem mais fino, mais educado que existe no

mundo.

Josiah sentiu um aperto no coração: Agatha casara-se novamente,

mesmo sabendo que seu primeiro marido ainda estava vivo! Não havia

dúvidas quanto a isso! Mas, tudo bem, ele aprendera, no Oeste, a praticar a

caridade; agora se apresentava uma ocasião para isso. Iria embora sem

fazer escândalo, ninguém ficaria sabendo de sua visita. Mesmo assim,

pensava, era muita mesquinhez de Agatha continuar recebendo seus

cheques, já que se casara com esse homem bem comportado, esse marido

exemplar que lhe enviava todo o seu salário! Buscava em sua memória,

procurando descobrir quem poderia ser esse modelo de marido entre todos

os homens de East Falls que conhecera:

— E como ele é?

- Não sei explicar. Nunca o vi. Está continuamente viajando pelos

mares. Mas sei seu tamanho: mamãe diz que ele tem 1,80 m

76

Page 73: Jack london   contos

e que eu serei maior do que ele. Há uma foto dele em nosso álbum. Tem o

rosto magro e costeletas.

Josiah ficou assombrado. Tinha 1,80 m de altura. Antigamente, usava

costeletas e tinha o rosto magro. Além disso, Johnnie não dissera que o

nome de seu pai era Josiah Childs?

Portanto, era ele, Josiah, aquele marido exemplar que não fumava,

não dizia palavrões, não bebia! Aquele marinheiro excepcional! Aquele

homem, enfim, cuja lembrança embelezada era tão piedosamente

conservada pela imaginação indulgente de Agatha.

Sentiu uma profunda gratidão em relação a ela. Depois de sua partida,

ela deveria ter sofrido uma mudança extraordinária. Ficou consumido de

remorsos. Sentiu-se quase desmaiar ao pensar em como justificar agora a

reputação que Agatha montara dele. Como não decepcionar esse menino

de olhar tão confiantes? Vamos! Deveria esforçar-se, após a retidão — tão

inesperada — que Agatha tivera para com ele.

No entanto, a decisão que se dispunha a tomar estava destinada a

nunca exigir tal sacrifício, pois a porta da cozinha se abriu e uma voz

feminina, estridente e irritante, chegou aos seu ouvidos:

- Johnnie!... Ei!... O que está fazendo?

Quantas vezes não ouvira, outrora, essa mesma voz gritar: “Josiah! ...

Ei! O que está fazendo?” Sentiu um calafrio. Inconscientemente, com o

sobressalto de um garoto apanhado em flagrante, virou para sua mulher as

costas da mão para esconder o cigarro. Sentia-se diminuído, humilhado,

recuando para dentro da porta. Era a mesma Agatha de antigamente, a

megera enrugada, com aquela curva irônica no canto da boca; só que agora

a curva era mais acentuada, os lábios estavam mais finos e as rugas mais

profundas. Fulminou Josiah com um olhar hostil, cruel:

- O que você está fazendo? - repetiu ao menino, que tremia

visivelmente de medo, assim como Josiah. - Acha que seu pai se rebaixaria,

conversando com vagabundos?

77

Page 74: Jack london   contos

— Eu estava só respondendo às perguntas desse senhor... — pro-

testou Johnnie, sem convicção. Ele queria saber...

- E você disse a ele, não é? - interrompeu ela num tom brusco. - O que

esse vadio veio fazer aqui? Não, não tenho nenhum pedaço de pão!...

Entrar assim na casa dos outros! Volte ao seu trabalho já. Vou ensiná-lo a

não vadiar! Seu pai, ao contrário de você, era um homem muito

trabalhador. Por que não segue o exemplo dele?

Johnnie curvou-se e a serra recomeçou a gemer. Agatha olhava Josiah

com ar irritado. Evidentemente, não o reconhecera:

— E você, dê o fora, rápido! - ordenou-lhe em tom áspero. - Não

quero vagabundos em minha casa.

Josiah sentiu-se paralisado. Umedeceu os lábios, abriu a boca, mas as

palavras não vieram.

- Vamos! Fora, já disse! — repetiu ela com sua voz esganiçada. - Senão

chamo a polícia!

Passivamente, Josiah obedeceu. Às suas costas ouviu a porta bater

violentamente. Como num pesadelo, abriu o portão, o mesmo portão que

havia aberto tantas vezes, e pos o pé na calçada. Estava atônito: devia ser

um pesadelo, do qual logo iria despertar! Passou a mão na testa e parou,

indeciso. O gemido monótono da serra chegava aos seus ouvidos,

parecendo um lamento. Se esse menino tem no sangue um pouco do

caráter dos Childs, mais cedo ou mais tarde fugirá também. Agatha

conseguia esgotar a paciência de um anjo. Não mudara nada. Talvez sim,

para pior, como se isso fosse possível! Aquele garoto fugiria dali qualquer

dia, talvez logo... E, quem sabe, por que não agora?

Josiah Childs empertigou-se todo e pôs-se de lado, para não ser visto

de dentro da casa. O impetuoso espírito do Oeste, com seu desprezo pelas

consequências, desde que se tratasse de superar um simples obstáculo

entre ele e o objeto de seu desejo, apoderara-se dele. Consultou seu

relógio, recordou o horário do trem e, em voz alta, solenemente, fez para si

mesmo esta promessa:

78

Page 75: Jack london   contos

- Que se dane a lei! Esse menino, meu filho, não pode ser martirizado

assim! Se necessário, duplicarei, triplicarei, até quadruplicarei a pensão

dela, mas esse garoto vai comigo. Se ela quiser, poderá reunir-se a nós na

Califórnia. Porém, redigirei um contrato definindo claramente os papéis

de cada um. E ela, se quiser ficar comigo, terá que assiná-lo e cumpri-lo! E

ela o fará, sem dúvida! — acrescentou com um sorriso amargo; era-lhe

absolutamente necessário despejar a raiva em alguém.

Abriu o portão e dirigiu-se novamente para a serraria.

Johnnie levantou os olhos ao vê-lo entrar, mas continuou serrando.

- Diga, menino - perguntou Josiah em voz baixa, mas nítida - o que

você mais deseja no mundo?

Johnnie hesitou e parou um momento de serrar; Josiah fez-lhe um

sinal para que continuasse seu trabalho.

- Ir para o mar com meu pai — respondeu Johnnie.

Josiah tremeu de emoção.

- É verdade? É isso mesmo o que você quer?

- Sim, é o que mais quero! Ah! e como quero!

A alegria que se estampou no rosto do menino fez pender a balança.

- Muito bem! Venha aqui, meu rapaz. Escute bem: eu sou seu pai. Eu

sou Josiah Childs. Você já pensou em fugir?

O menino fez um “sim” enérgico com a cabeça.

- Muito bem! E exatamente isso o que eu fiz! Eu fugi.

Tirou apressadamente o relógio do bolso.

- Temos o tempo exato de pegar o trem para a Califórnia. É lá onde

moro atualmente. Talvez sua mãe vá encontrar-se conosco, em seguida. Eu

lhe contarei toda a minha história durante a viagem. Venha!

Estreitou em seus braços, por um momento, o menino, amedrontado e

confiante ao mesmo tempo. Depois, de mãos dadas, transpuse

79

Page 76: Jack london   contos

ram correndo o quintal, о portão е desceram a rua. Ouviram a porta da

cozinha abrir-se e, em seguida, estas últimas palavras:

- Johnnie! Seu preguiçoso! Por que parou de serrar? Espere um pouco

que vou lhe dar uma lição! Você vai ver...

8o

Page 77: Jack london   contos

capítulo 5

o HEREGE

"Levanto-me agora para trabalhar;

Peço a Deus que não falte ao meu dever.

Se morrer antes da noite,

Peço a Deus que tenha cumprido o meu dever.

Amém"

- Se não se levantar já, Johnny, não terá nem uma migalha para

comer!

A ameaça não produziu qualquer efeito no rapaz. Aferrava-se ao sono,

lutando pelo esquecimento, como o sonhador luta pelo seu sonho. Suas

mãos fecharam-se, e ele socou o ar com golpes fracos e espasmódicos.

Esses golpes eram dirigidas à mãe, mas ela os evitou, revelando grande

prática, e agarrou-o bruscamente pelos ombros.

- Largue-me!

O grito saiu abafado a princípio, das profundezas do sono; elevou-se

depois rapidamente, tornando-se um lamento de agressividade

apaixonada e foi-se extinguindo num balbuciar inarticulado. Foi um grito

bestial, como de uma alma atormentada, repleta de protesto e dor.

Mas ela não se impressionou. Era uma mulher de olhos tristes e rosto

cansado, e já estava habituada a esta tarefa, que repetia todos os dias.

Agarrou os cobertores e tentou puxá-los para trás; mas o rapaz, deixando

de dar socos, agarrou-se a eles desesperadamente. Com um nó, aos pés da

cama, conseguiu manter-se coberto. Ela

81

Page 78: Jack london   contos

então tentou arrastar a roupa para o chão. O rapaz se opôs. Ela fez força.

Tinha mais força; rapaz e roupa cederam, o primeiro seguindo

instintivamente a última, para se proteger do frio do quarto que lhe

mordia o corpo.

Ao perder o equilíbrio, na beira da cama, pareceu que ia cair de cara

no chão. Mas sua consciência despertou. Endireitou-se e, durante um

momento, balançou perigosamente. Depois caiu, de pé, no chão. A mãe

agarrou-o imediatamente pelos ombros e sacudiu-o. De novo os punhos se

lançaram à frente, desta vez com mais força e direção. Simultaneamente,

abriu os olhos. Ela largou-o. Estava acordado.

— Pronto! — resmungou.

Pegou o candeeiro e saiu apressadamente, deixando-o no escuro.

— Vai chegar atrasado - avisou ainda.

Ele não se importou com a escuridão. Quando acabou de se vestir, foi

até a cozinha. Seu andar era pesado para um rapaz tão magro e leve. As

pernas moviam-se com dificuldade, devido ao próprio peso, o que não

parecia lógico, tão magras eram. Arrastou uma cadeira com o assento

quebrado até a mesa.

-Johnny! - disse a mãe bruscamente.

O rapaz levantou-se com igual rapidez e, sem uma palavra, dirigiu-se

ao lavatório. Era uma pia gordurenta e suja. Do ralo saia um mau cheiro.

Nem percebeu. Que uma pia cheirasse mal era para ele uma coisa tão

natural como aquele sabão fazer pouca espuma e estar encardido da água

de lavar a louça. Nem se esforçou muito por que fizesse espuma. Algumas

esborrifadas da água fria que corria da torneira completaram a operação.

Não escovou os dentes. A verdade é que nunca vira uma escova de dentes

nem sabia que existiam no mundo criaturas que cometiam a loucura de

escovar os dentes.

— Não é capaz de se lavar um dia sem que eu mande - queixou-se a

mãe.

Segurava a tampa quebrada da cafeteira enquanto servia duas xícaras

de café. Ele não fez qualquer comentário, pois aquilo era

82

Page 79: Jack london   contos

uma questão permanente entre eles, sobre a qual a mãe se mostrava

inflexível. Não havia um dia que não fosse preciso obrigá-lo a lavar-se.

Enxugou-se numa toalha engordurada, úmida, suja e esfarrapada, que

deixou seu rosto coberto de fiapos.

- Bem que gostaria de não morar tão longe - disse ela ao sentar- se. -

Faço o que posso. Você bem sabe. Mas um dólar de renda faz tanta

diferença, e aqui temos mais espaço. Você bem sabe.

Mal a escutava. Ouvia aquilo vezes sem conta. O âmbito dos seus

pensamentos era limitado, e ela estava sempre a reprisar quanto era duro

viverem assim longe das fábricas.

- Um dólar representa mais comida - observou ele sentenciosa-

mente. - Prefiro fazer a caminhada e ter a comida.

Comeu apressadamente, mal mastigando o pão e empurrando para

baixo com o café, os pedaços por mastigar. Davam o nome de café àquele

líquido quente e turvo. Para Johnny era café - e excelente. Era uma das

poucas ilusões da vida que ainda lhe restavam. Nunca na sua vida bebera

café autêntico.

Além do pão, havia um pequeno pedaço de carne de porco, fria. A

mãe tornou a encher sua xícara de café. Quando estava acabando o pão,

ficou à espera de mais. Ela percebeu, o olhar inquiridor.

- Não seja egoísta, Johnny. Já teve sua ração. Seus irmãos e irmãs são

menores que você.

Não respondeu à reprimenda. Era de poucas falas. Deixou também de

olhar com fome e pedir mais. Não se lamentou, com uma paciência que era

tão terrível como a escola onde a aprendera. Acabou o café, limpou a boca

com as costas da mão e preparou-se para se levantar.

- Espera um segundo - disse a mãe, apressadamente. - Parece-me que

você ainda tem direito a outra fatia de pão... uma fininha.

Seus gestos eram os de um prestidigitador. Fingindo cortar mais uma

fatia, tornou a colocá-la na caixa própria e entregou-lhe uma das suas duas

fatias. Julgou tê-lo enganado, mas ele notara a manobra.

83

Page 80: Jack london   contos

Ainda assim, aceitou o pão sem constrangimento. Tinha a crença de que a

mãe, devido à sua doença crônica, comia pouco.

Ela reparou que o rapaz mastigava o pão a seco e despejou a sua xícara

de café na dele.

- Não me caiu bem no estômago esta manhã — explicou.

Um silvo distante, prolongado e agudo, levantou-os ao mesmo tempo.

A mãe lançou um olhar ao pequeno despertador sobre a prateleira. Os

ponteiros marcavam cinco e meia. Jogou um xale nos ombros, pôs na

cabeça um chapéu desbotado, velho e sem forma.

- Temos que correr - disse ela, baixando a mecha do candeeiro e

soprando pela chaminé.

Procuraram o caminho às apalpadelas e desceram as escadas. Estava

claro e frio, e Johnny tiritou ao contato do ar exterior. As estrelas ainda

não tinham começado a empalidecer no firmamento, e a cidade estava

mergulhada na escuridão. Tanto Johnny como a mãe arrastavam os pés ao

caminhar. Os músculos das pernas não tinham interesse algum em

levantar os pés do chão.

Após quinze minutos em silêncio, a mãe virou para a direita.

- Não venha tarde - recomendou, ainda, da escuridão que já a

engulia.

Johnny não respondeu e prosseguiu no seu caminho. No quarteirão da

fábrica, abriam-se portas em todos os lados, e em breve ficou misturado à

multidão que avançava, compacta, no meio da escuridão. Ao entrar pelo

portão da fábrica, a sirene apitou de novo. Olhou na direção do Leste.

Sobre um esfarrapado horizonte de telhados, uma luz pálida começava a

insinuar-se. Foi tudo quanto viu do dia e, voltando-lhe as costas, juntou-se

aos do seu grupo de trabalho.

Tomou o seu lugar numa das compridas filas de máquinas. Diante

dele, por cima de um recipiente cheio de bobinas pequenas, havia bobinas

grandes que giravam rapidamente. Torcia sobre estas o fio de juta das

bobinas pequenas. O trabalho era simples. Tudo o

BA

Page 81: Jack london   contos

que exigia era rapidez. As bobinas pequenas esvaziavam-se tão rapi-

damente e havia tantas bobinas grandes para encher, que náo tinha um

momento de descanso.

Trabalhava mecanicamente. Quando uma bobina pequena se

esvaziava, empregava a mão esquerda como travão para parar a bobina

grande e, ao mesmo tempo, com o polegar e o indicador apanhava a

extremidade solta do fio. Simultaneamente, com a mão direita apanhava a

extremidade solta de uma bobina pequena. Estas várias manobras com

ambas as mãos eram executadas simultânea e rapidamente. Depois, num

instante, dava um nó de tecedeira e soltava a bobina. Não tinha qualquer

dificuldade em dar nós de tecedeira. Gabou-se uma vez de ser capaz de dar

os nós dormindo. E com efeito fazia-o às vezes, trabalhando séculos numa

só noite, dando uma sucessão infindável de nós de tecedeira.

Alguns dos rapazes esquivavam-se, desperdiçando tempo e máquinas,

por não substituírem as bobinas pequenas quando elas se acabavam. E

havia um vigilante para evitar isto. Apanhou o vizinho de Johnny em

flagrante e deu-lhe um puxão de orelhas.

- Olha ali para o Johnny... por que não faz como ele? - perguntou o

vigilante iradamente.

As bobinas de Johnny giravam com toda a força, mas ele não se

impressionou com o elogio indireto. Há tempos... mas isso fora há muito,

muito tempo. Seu rosto apático permaneceu inexpressivo ao ouvir ser

apontado como um exemplo brilhante. Era o operário perfeito. Sabia

disso. Já lhe tinham dito muitas vezes. Era um lugar comum e parecia já

não significar nada para ele. De operário perfeito evoluíra para máquina

perfeita. Quando o trabalho saía mal, acontecia com ele o que acontece

com a máquina: era devido a defeito de material. Teria sido tão impossível

a um molde perfeito de pregos cortar pregos imperfeitos, como ele

cometer um erro.

E não admira. Desde sempre estivera em comunhão íntima com as

máquinas. As máquinas quase o haviam gerado. De qualquer forma,

85

Page 82: Jack london   contos

fora criado no meio delas. Doze anos atrás, houvera uma agitação na sala

dos teares daquela mesma fábrica. A mãe de Johnny desmaiara.

Estenderam-na no chão, no meio das máquinas que guinchavam.

Chamaram duas mulheres idosas dos teares. O capataz assistiu. E, poucos

minutos depois, havia na sala dos teares mais uma alma, além das que

tinham entrado pela porta. Era Johnny, nascido com o martelar e o

estrépito dos teares nos ouvidos, inspirando à primeira respiração o ar

quente e úmido, carregado de fiapos em suspensão. Tossira, logo nesse dia,

para libertar os pulmões dos fiapos; e, pela mesma razão, nunca mais

deixara de tossir.

O rapaz ao lado de Johnny soluçava e fungava. Seu rosto estava

transtornado de ódio pelo vigilante que, à distância, mantinha um olhar

ameaçador sobre ele; mas todas as bobinas giravam com toda a força. O

rapaz proferia pragas terríveis contra as bobinas giratórias que tinha diante

de si; mas sua voz não chegava meia dúzia de passos além, pois o rumor da

sala era como uma parede.

Johnny não reparava em nada disto. Tinha o hábito de aceitar as

coisas. Além disso, a repetição torna as coisas monótonas, e este fato

particular ele já presenciara vezes sem conta. Parecia-lhe tão inútil

opor-se ao vigilante como desafiar a vontade de uma máquina. As

máquinas são feitas para funcionar de certa maneira e executar

determinadas tarefas. O mesmo acontecia com o vigilante.

Mas às onze horas houve agitação na sala. De maneira aparentemente

oculta, a excitação espalhou-se imediatamente por toda a parte. O rapaz

coxo que trabalhava do outro lado de Johnny correu velozmente,

mancando, para um vagão de bobinas que estava vazio. Desapareceu lá

dentro, com muleta e tudo. O superintendente da fábrica aproximava-se,

acompanhado de um homem novo. Estava bem vestido e usava uma camisa

engomada. Era, segundo a classificação de Johnny, um gentleman e, além

disso, o “Inspetor”.

Observava atentamente os rapazes à medida que passava. Às vezes

parava e fazia perguntas. Para isso era obrigado a gritar a plenos

86

Page 83: Jack london   contos

pulmões, e entáo seu rosto ficava comicamente contorcido com o esforço

de se fazer ouvir. O seu olhar arguto reparou na máquina ao lado de

Johnny, mas não disse nada. Johnny mereceu também a atenção dele, e se

deteve bruscamente. Agarrou o braço de Johnny para afastá-lo um passo

da máquina; mas soltou-o, com uma exclamação de surpresa.

— É muito magro - comentou o superintendente, com um risinho

ansioso.

— É só pele e osso — foi a resposta. - Olhe para aquelas pernas. O

rapaz tem raquitismo... incipiente, mas tem. Se não vier a ser epiléptico é

porque contraiu tuberculose primeiro.

Johnny escutava, mas não compreendia. Além disso náo estava

interessado em doenças futuras. Existia uma desgraça mais imediata e mais

séria que o ameaçava, no aspecto do inspetor.

— Agora vai me dizer a verdade, meu rapaz - disse o inspetor, ou

antes, gritou, debruçando-se junto da orelha do rapaz para se fazer ouvir.

Quantos anos tem?

— Catorze - mentiu Johnny. E mentiu com toda a força dos seus

pulmões. Mentiu tão alto que começou a tossir, com uma tosse seca e

intermitente que levantou os fiapos de algodão que vinham se acumulando

nos seus pulmões durante toda a manhã.

— Parece ter pelo menos dezesseis — disse o superintendente.

— Ou sessenta - retrucou o inspetor.

— Está sempre igual.

— Há quanto tempo? - cortou o inspetor.

— Há anos. Parece que nunca envelhece. - Ou o contrário, diria eu.

Suponho que sempre trabalhou aqui...

—Com algumas interrupções... mas isso foi antes de ter saído a nova

lei — apressou-se a acrescentar o superintendente.

—Esta máquina está parada? — perguntou o inspetor, apontando a

máquina desocupada, ao lado de Johnny, na qual as bobinas, meio cheias,

giravam loucamente.

87

Page 84: Jack london   contos

r II

- Parece que sim. - O superintendente chamou o vigilante e gritou

qualquer coisa em seu ouvido, apontando para a máquina. — Está

desocupada — informou depois o inspetor.

Passaram adiante, e Johnny retomou o trabalho, aliviado porque o mal

fora afastado. Mas o rapaz coxo não teve tanta sorte. O arguto inspetor

içou-o por um braço, de dentro do vagão. Os lábios dele tremiam, e o rosto

tinha a expressão de alguém sobre quem tivesse caído uma desgraça

profunda e irremediável. O vigilante parecia estupefato, como se fosse a

primeira vez que punha os olhos em cima do rapaz, enquanto o rosto do

superintendente exprimia surpresa e desagrado.

- Eu já o conheço — disse o inspetor. — Tem doze anos. Já o despedi

de três fábricas, este ano. Com esta é a quarta. - Voltou-se para o rapaz

coxo. — Você tinha me prometido, sob palavra de honra, que iria para a

escola.

O rapaz coxo desfez-se em lágrimas.

- Por favor, sr. Inspetor, morreram dois bebês em nossa casa, e somos

muito pobres.

- Por que é que tosse tanto? — perguntou o inspetor, como se o

acusasse de um crime.

Como se protestasse sua inocência, o rapaz coxo replicou:

- Não é nada. Resfriei-me a semana passada, sr. Inspetor, mais nada.

Por fim o rapaz coxo saiu da sala com o inspetor, acompanhado pelo

superintendente ansioso e desfazendo-se em protestos. Depois disto a

monotonia instalou-se de novo. A longa manhã e a tarde ainda mais longa

foram-se arrastando, e a sirene apitou para largar o trabalho. A escuridão

já tinha caldo quando Johnny saiu pelo portão da fábrica. Neste intervalo,

o Sol tinha feito do céu uma escada dourada, inundara o mundo com o seu

calor afável, descera e desaparecera, a oeste, por trás de um horizonte de

telhados.

A ceia era a refeição familiar do dia — a única refeição em que Johnny

se encontrava com os irmãos e irmãs mais novos. Era um

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Page 85: Jack london   contos

verdadeiro encontro de guerra para ele, pois era muito velho, enquanto

eles eram aflitivamente jovens. Náo tinha paciência para a juventude

excessiva e espantosa deles. Não a compreendia. A sua própria infância já

ficara muito para trás. Era como um homem velho e irritável a quem

aborrecia a turbulência da juventude deles que considerava como tolice

rematada. Comia de cenho franzido e silencioso, encontrando

compensação no pensamento de que eles em breve teriam de começar a

trabalhar. Isso ia tirar deles aquele vigor, acalmá-los e dignificá-los...

como a ele. E era assim, conforme é hábito dos seres humanos, que Johnny

se transformava em padrão pelo qual media todo o universo.

Durante a refeição, a mãe explicou de várias formas e repetidas vezes

que tentava fazer o melhor que podia; e foi com alívio que a magra

refeição chegou ao fim, e Johnny arredou a cadeira e se levantou. Hesitou

durante um momento, entre a cama e a porta da frente, e por fim saiu pela

última. Não foi longe. Sentou-se no limiar, as pernas dobradas e os magros

ombros inclinados para a frente, com os cotovelos apoiados nos joelhos e

as palmas das mãos sustentando o queixo.

Não pensava em nada, assim sentado. Estava apenas descansando. Era

como se estivesse dormindo. Os irmãos e as irmãs saíram, e ficaram

brincando ruidosamente em volta dele com outras crianças. Uma lâmpada

elétrica, na esquina, iluminava as suas travessuras. Bem sabiam que ele

estava rabugento e irritável; mas o espírito da aventura tentou-os a

provocá-lo. Deram as mãos diante dele e, balançando os corpos no

compasso, cantaram para ele versos misteriosos e pouco lisonjeiros. A

princípio ele rosnou umas pragas que aprendera com diversos capatazes.

Mas, verificando que isto era inútil e lembrando-se da sua dignidade,

recolheu-se num silêncio obstinado.

Seu irmão Will, o mais próximo, que fizera há pouco dez anos, era o

que comandava a roda. Johnny não experimentava em relação a ele

sentimentos particularmente afetuosos. A vida fora bem cedo

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Page 86: Jack london   contos

amargurada por ter que continuamente ceder para Will. Tinha a firme

convicção de que Will estava em grande débito para com ele e era ingrato

quanto a isso. Durante as suas brincadeiras, num passado já longínquo e

obscuro, vira-se roubado de grande parte do seu tempo de folguedos pela

obrigação de tomar conta de Will. Era então um bebê, e já nessa altura, tal

como hoje, a mãe deles passava os dias nas fábricas. Sobre Johnny recaíra a

tarefa simultânea de pai e de mãe.

Will parecia revelar os benefícios desses cuidados. Era bem

constituído, bastante forte, tão alto como o irmão e mais pesado. Era como

se o sangue da vida de um tivesse sido desviado para as veias do outro. E

espiritualmente acontecia o mesmo. Johnny estava cansado, gasto, sem

alegria, enquanto o irmão mais novo parecia transbordar de exuberância.

A cantilena trocista elevou-se cada vez mais. Will aproximou-se,

enquanto dançava, pondo a língua de fora. O braço esquerdo de Johnny

disparou e agarrou o outro pelo pescoço. Simultaneamente bateu com seu

punho ossudo no nariz de Will. Era um punho pateticamente ossudo. Mas

que machucava, como provava o grito de dor que se seguiu. As outras

crianças guincharam, assustadas, enquanto a irmã de Johnny corria para o

interior da casa.

Johnny afastou Will de si, desferiu-lhe pontapés nas canelas,

selvagemente, e em seguida agarrou-o e esfregou-lhe a cara na lama. Não o

soltou sem que a cara tivesse sido esfregada várias vezes. A mãe chegou

nesta altura: era um turbilhão anêmico de solicitude e ira materna.

— Por que ele não me deixa em paz? — foi a resposta que Johnny deu à

sua admoestação. Não vê que estou cansado?

—Sou tão grande como você - bradava Will nos braços da mãe, com o

rosto feito máscara de lágrimas, lama e sangue. — Já sou tão grande como

você, e vou ficar maior. Então hei de dar-lhe uma surra... você vai ver...

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Page 87: Jack london   contos

- Devia ir trabalhar, já que é tão grande - rosnou Johnny. — Seu mal

é esse. Devia trabalhar. E a sua mãe é que devia mandá-lo

trabalhar.

- Mas ele é novo demais - protestou esta. É ainda um menino.

- Eu ainda era mais novo quando comecei a trabalhar.

A boca de Johnny estava aberta, para continuar a exprimir a sensação

de injustiça que sentia, mas fechou-se com um estalo. Rodou tristemente

nos calcanhares e dirigiu-se gravemente para casa e para a cama. A porta

do seu quarto estava aberta para deixar entrar o calor da cozinha.

Enquanto se despia na semipenumbra, ouviu a mãe conversando com uma

vizinha que fora visitá-la. A mãe estava chorando, e o seu discurso era

interrompido por soluços de consternação.

- Não posso compreender o que se passa com Johnny - ele a ouviu

dizer. — Ele não era assim. Era paciente como um anjo.

“E é bom rapaz - apressou-se ela a defendê-lo. Trabalha sempre.

Começou cedo demais. Mas a culpa não foi minha. Faço o que posso, tenho

certeza.”

Seguiram-se uns suspiros prolongados, vindos da cozinha, e Johnny

murmurou para si, quando seus olhos se fechavam: “Não tenha dúvidas

que trabalhei sempre”.

Na manhã seguinte foi arrancado pela mãe dos braços do sono. Depois

seguiu-se o frugal café da manhã, a caminhada no meio da escuridão, e o

pálido vislumbre do dia por cima dos telhados das casas, quando ele lhe

voltou as costas e entrou pelo portão da fábrica. Era um outro dia, e todos

os dias eram iguais.

No entanto, houvera mudanças na sua vida - ocasiões em que mudara

de um emprego para outro, ou em que estivera doente. Aos seis anos, fazia

de pai e de mãe para Will e para as outras crianças mais novas ainda. Aos

sete anos, entrara na fábrica - para enrolar bobinas. Aos oito, arranjara

trabalho noutra fábrica. O novo emprego era maravilhosamente fácil.

Tudo quanto tinha a fazer era sentar-se, com uma varinha na mão, e guiar

uma corrente de tecido, que pas

91

Page 88: Jack london   contos

sava diante dele. Esta corrente de tecido saía das mandíbulas de uma

máquina, passava por um cilindro quente e prosseguia caminho para outro

lugar qualquer. Mas ele estava sempre sentado no mesmo lugar, onde a luz

do dia nunca chegava, com um bico de gás flamejante sobre a sua cabeça,

ele próprio constituindo uma parte do mecanismo.

Estava muito contente com este trabalho, não obstante o calor úmido,

porque era ainda muito novo e tinha sonhos e ilusões. E sonhava sonhos

maravilhosos, enquanto observava a corrente de tecido que passava

continuamente. Mas o trabalho não requeria qualquer exercício nem

esforço intelectual, e ele foi sonhando cada vez menos; seu espírito foi se

tornando cada vez mais apático e sonolento. Ganhava, no entanto, dois

dólares por semana, e dois dólares representavam a diferença entre a fome

aguda e a subalimentação crônica.

Mas aos nove anos perdeu o emprego. O sarampo foi a causa. Quando

ficou bom, arranjou trabalho numa fábrica de vidro. O ordenado era

melhor, e o trabalho requeria habilidade. Era um trabalho por empreitada,

e, quanto mais hábil se fosse, mais se ganhava. Isto era um incentivo. E sob

este incentivo tornou-se um operário notável.

O trabalho era simples: prender tampas de vidro em garrafas

pequenas. Trazia na cintura a meada de barbante. Segurava as garrafas

entre os joelhos, para poder trabalhar com as duas mãos. Nesta posição,

sentado e curvado sobre os joelhos, os seus ombros estreitos foram se

encurvando; o peito ficava contraído durante dez horas por dia. Não fazia

bem para os seus pulmões, mas ele atava trezentas dúzias de garrafas por

dia.

O superintendente tinha grande orgulho dele e trazia visitantes para

observarem-no. Em dez horas passavam-lhe pelas mãos trezentas dúzias de

garrafas. Isto significava que ele atingira a perfeição da máquina. Todos os

movimentos inúteis eram eliminados. Todos os movimentos dos seus

magros braços, cada movimento de um músculo dos dedos magros, eram

rápidos e precisos. Trabalhava sob grande tensão, e o resultado foi

tornar-se nervoso. À noite seus músculos se

92

Page 89: Jack london   contos

contraíam durante o sono, e durante o dia não conseguia descontrair- se

nem descansar. Permanecia dobrado, e os músculos continuavam a

contrair-se. Adquiriu um aspecto doentio e piorou da tosse provocada

pelos fiapos. A pneumonia apoderou-se dos fracos pulmões dentro do seu

peito contraído, e perdeu o emprego na fábrica de vidro.

Agora voltara para as fábricas de juta, onde tinha nascido com as

bobinas giratórias. Sua promoção estava iminente. Era um bom operário.

Passaria para a sala da goma e depois para os teares. Depois disto não havia

mais nada, a não ser o aperfeiçoamento.

As máquinas funcionavam mais depressa do que quando ele

principiara a trabalhar, e seu espírito funcionava mais devagar. Já não

sonhava, embora seus primeiros anos tivessem sido cheios de sonhos.

Estivera apaixonado uma vez, quando começara a guiar o tecido para o

cilindro quente; e foi pela filha do superintendente que ele se apaixonou.

Ela era muito mais velha, uma senhorita. Vira-a à distância, uma escassa

meia dúzia de vezes. Mas isso não importava. Sobre a superfície da

corrente de tecido que passava diante dele, vislumbrava futuros radiantes

em que executava prodígios, inventava máquinas maravilhosas, ganhava a

direção da fábrica e, no final, tomava-a nos braços e beijava-a sobriamente

na testa.

Mas isso tudo fora há muito tempo, antes de ficar demasiado velho e

cansado para amar. Além disso, ela se casara e partira, e a imaginação dele

adormecera. Fora contudo uma experiência maravilhosa, e ele costumava

recordar-se dela, como os outros homens e mulheres costumam se lembrar

do tempo em que acreditavam em fadas. Ele nunca acreditara em fadas

nem em Papai Noel; mas acreditara implicitamente no futuro risonho que

a sua imaginação forjara à beira da torrente fumegante de tecido.

Fizera-se homem muito cedo. Sua adolescência começou aos sete

anos, quando recebeu seu primeiro salário. Foi criando um certo sentido

de independência, e as relações entre ele e a mãe modificaram-se.

Ganhando e provendo ao sustento da família, realizando seu próprio

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Page 90: Jack london   contos

trabalho no mundo, estava quase em pé de igualdde com ela. A maturidade,

a maturidade completa, verificou-se aos onze anos, altura em que foi

trabalhar no turno da noite, durante seis meses. Não é possível uma criança

trabalhar no turno da noite e continuar criança.

Houve alguns grandes acontecimentos em sua vida. Um destes foi

quando sua mãe comprou umas ameixas da Califórnia. Dois outros, quando

ela fez pudim, por duas vezes. Tinham sido estes os acontecimentos.

Lembrava-se deles com agrado. Nessa altura, a mãe falara-lhe de um prato

delicioso que ela havia de fazer qualquer dia, “ilha flutuante”, como ela o

chamara, “melhor do que pudim”. Durante anos, ansiara pelo dia em que

se sentaria à mesa com os “ilha flutuante” à sua frente, até que por fim

relegou a ideia para o limbo dos ideais inatingíveis.

Uma vez encontrara uma moeda de prata na calçada. Esse fora

também um grande acontecimento em sua vida, sobretudo, um acon-

tecimento trágico. Sabia qual era o seu dever, desde o instante em que os

seus olhos viram brilhar a prata, antes mesmo de a ter apanhado. Em casa,

como de costume, não havia comida suficiente, e em casa devia entregá-la,

como fazia com os seus salários, nos sábados à tarde. Era óbvia, neste caso,

a conduta correta; mas jamais gastara dinheiro nenhum, do que ganhava, e

estava faminto de balas. Estava ávido dos doces que só provava em dias de

festa.

Não tentou enganar a si próprio. Sabia que era pecado, e pecou de-

liberadamente, entregando-se a uma orgia de quinze centavos de balas.

Guardou dez centavos para uma orgia futura; mas como não estava

habituado a andar com dinheiro, perdeu os dez centavos. Isto aconteceu

na altura em que estava sofrendo todos os tormentos de consciência, e

tomou-o como um castigo divino. Acreditava e temia a proximidade de um

Deus terrível e colérico. Deus tinha visto e Deus apressara-se em

castigá-lo, negando-lhe até o salário completo do pecado.

Recordava-se sempre deste acontecimento como o maior ato

criminoso de sua vida, e, a esta recordação, a consciência despertava

94

Page 91: Jack london   contos

sempre e fazia-o sentir novos remorsos. Era o esqueleto escondido em seu

armário. Além disso, sendo táo minucioso, recordava-se sempre do fato

com pena. Sentia-se desgostoso com a maneira como gastara os vinte e

cinco centavos. Podia tê-los investido melhor e, conhecendo a rapidez de

Deus, podia tê-lo vencido, gastando os vinte e cinco centavos de uma só

vez. Em retrospectiva gastava mil vezes aqueles vinte e cinco centavos, e

de cada vez com mais proveito.

Havia uma outra recordação do passado, desbotada e nebulosa, mas

gravada para sempre em sua alma pela bota cruel de seu pai. Era mais um

pesadelo do que a recordação de uma coisa concreta - era como as

reminiscências genealógicas do homem, que o fazem cair em sonhos e

remontam à sua árvore ancestral.

Esta recordação nunca lhe ocorria durante o dia ou quando estava

completamente acordado. Era de noite, na cama, no momento em que sua

consciência mergulhava e se perdia no sono. Fazia-o sempre acordar

assustado, e durante um momento, no primeiro instante de pavor, julgava

estar atravessado aos pés da cama. Ali desenhavam-se as formas vagas do

pai e da mãe. Não se lembrava de como era o pai. Conservava uma única

impressão dele: a de que tinha pés selvagens e impiedosos.

Possuía recordações antigas, mas nenhuma recente. Todos os dias

eram iguais a ontem, e o ano passado era o mesmo que mil anos... ou o

mesmo que um minuto. Nunca acontecia nada. Nunca havia

acontecimentos que marcassem a marcha do tempo. O tempo não andava.

Era sempre o mesmo. Só as máquinas giravam, e para parte nenhuma —

apesar de girarem mais depressa.

Aos catorze anos, foi trabalhar na engomadeiria. Um acontecimento

colossal. Acontecera finalmente qualquer coisa que merecia ser recordada,

depois de uma noite de sono ou do pagamento semanal. Marcava uma era.

Constituía uma olimpíada, uma data. “Quando fui trabalhar na

engomadeiria”; ou “depois”, ou “antes de ir trabalhar na engomadeiria”,

eram frases constantes em seus lábios.

95

Page 92: Jack london   contos

Celebrou o seu décimo sexto aniversário ingressando na sala dos

teares e tomando conta de um deles. Ali também recebeu um incentivo,

porque o trabalho era feito por empreitada. E distinguiu-se, porque o barro

de que era feito fora moldado pelas fábricas, tendo-se transformado numa

máquina perfeita. Ao fim de três meses, trabalhava com dois teares e, mais

tarde, três e quatro.

Ao fim de dois anos nos teares, produzia mais metros do que qualquer

outro tecelão, e mais do dobro do que alguns dos menos hábeis. E em casa

as coisas começaram a prosperar, à medida que ele se aproximava do

máximo das suas possibilidades de angariar dinheiro. Não quer dizer, no

entanto, que o aumento dos seus salários excedesse as necessidades. As

crianças estavam crescendo. Comiam mais. Iam à escola, e os livros

escolares custavam dinheiro. De qualquer modo, quanto mais depressa ele

trabalhava, mais depressa aumentava o preço das coisas. Até o aluguel

subiu, não obstante o estado da casa ter passado de mau a péssimo.

Tinha crescido; mas o aumento de estatura fazia-o parecer mais magro

do que nunca. Estava também mais nervoso. Com o nervosismo,

aumentaram sua irritabilidade e seu mau humor. As crianças, depois de

muitas e amargas lições, haviam aprendido a respeitá-lo. A mãe

respeitava-o pelo seu poder de ganhar dinheiro, mas este respeito era um

tanto mesclado de temor.

A vida não tinha alegrias para ele. Jamais observava a procissão dos

dias. As noites eram dormidas numa inconsciência sobressaltada.

Trabalhava o resto do tempo, e a sua consciência era a consciência da

máquina. Fora isto, seu espírito ficava vazio. Não tinha ideais e possuía

apenas uma única ilusão: o café que bebia era excelente. Era um animal de

carga. Não tinha vida espiritual nenhuma. No entanto, nas criptas

profundas do seu espírito, sem que o percebesse, estavam sendo pesados e

analisados cada instante do seu labor, cada movimento de suas mãos, cada

esforço de seus músculos; e faziam-se preparativos para um curso de ação

futura, que espantaria a ele e a seu pequeno mundo.

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Page 93: Jack london   contos

Foi no fim da primavera que regressou do trabalho para casa, uma

noite, sentindo um cansaço desacostumado. A atmosfera era de

expectativa aguda, quando se sentou à mesa, mas ele náo notou.

Manteve-se num silêncio taciturno durante a refeiçáo, comendo me-

canicamente o que tinha diante de si. As crianças soltavam “huns” e “ahs”

e dava estalos com a língua. Mas ele estava surdo a tudo.

- Você sabe o que está comendo? - perguntou a mãe por fim,

desanimada.

Johnny olhou com ar ausente para o prato que tinha diante de si e com

ar ausente a fitou.

- “Ilha flutuante” - anunciou ela em triunfo.

- Oh!.- fez ele.

- “Ilha flutuante”! — repetiram as crianças, alto e em coro.

- Oh! - disse ele. E após duas ou três colheradas, acrescentou:

- Parece-me que náo tenho apetite esta noite. Pousou a colher,

arredou a cadeira e levantou-se da mesa com dificuldade.

- E parece que vou me deitar...

Arrastava os pés mais do que o costume, ao atravessar a cozinha.

Despir-se foi uma tarefa titânica, uma dificuldade mostruosa, e chorava

debilmente, ao rastejar para se meter na cama, com um sapato ainda

calçado. Tinha a sensação de que qualquer coisa inchava dentro da sua

cabeça e o fazia sentir-se tonto e estúpido. Sentia seus dedos finos agora da

grossura de um pulso, enquanto a extremidade deles lhe transmitia uma

sensação vaga e confusa como o seu cérebro. As costas doíam-lhe

intoleravelmente. Todos os seus ossos doíam. Doía tudo. E dentro da

cabeça começou a sentir os guinchos, o ranger e o crepitar de um milhão

de teares. O espaço estava todo cheio de lançadeiras que voavam.

Moviam-se de um lado para o outro, intrincadamente, por entre as

estrelas. Governava, ao mesmo tempo, mil teares que trabalhavam mais e

mais depressa, e o seu cérebro ia se desenrolando, e transformou-se no fio

que alimentava as mil lançadeiras volantes.

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Page 94: Jack london   contos

No dia seguinte náo foi trabalhar. Estava demasiado ocupado, tecendo

nos mil teares que giravam dentro de sua cabeça. A mãe foi para o

trabalho, mas, antes, mandou chamar o médico. “Um forte ataque de

gripe”, declarou. A irmã fez de enfermeira e cumpriu as suas instruções.

Foi um ataque muito forte, e só uma semana depois Johnny conseguiu

vestir-se e pôr-se de pé, com dificuldade. “Mais outra semana”, disse o

médico, e estaria em condições de voltar ao trabalho. O capataz da sala dos

teares foi visitá-lo no domingo à tarde, o primeiro dia da sua

convalescença. “O melhor tecelão da sala”, declarou ele à mãe. Seu lugar

estaria à espera dele. Podia regressar ao trabalho, de segunda-feira a uma

semana.

—Por que não lhe agradece, Johnny? — perguntou a mãe ansio-

samente. — Tem andado tão doente, que não está em si — explicou ao

visitante, com ar de desculpa.

Johnny sentou-se, acocorado, de olhos fitos no chão. Continuou na

mesma posição, muito tempo depois do capataz ter ido embora. Estava

quente lá fora; à tarde foi sentar-se na soleira da porta. As vezes mexia os

lábios. Parecia mergulhado em cálculos sem fim.

Na manhã seguinte, quando o dia esquentou, retomou seu lugar na

soleira. Tinha papel e lápis, desta vez, para continuar os seus cálculos, e

fez, com dificuldade, contas e mais contas.

— Que é que vem a seguir aos milhões? — perguntou, à tarde, quan-

do Will chegou da escola. - E como é que se trabalha com eles?

Nessa tarde terminou sua tarefa. Todos os dias, mas sem papel nem

lápis, voltava para a soleira. Parecia muito absorvido na árvore que havia

do outro lado da rua. Estudava-a durante horas a fio, e mostrava-se

particularmente interessado quando o vento abanava os ramos e sacudia as

folhas. Durante a semana toda, pareceu absorto, em grande comunhão

consigo mesmo. No domingo, sentado na soleira, riu alto, por várias vezes,

com grande espanto de sua mãe que há anos não o ouvia rir.

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Page 95: Jack london   contos

Na manhá seguinte, ainda muito escuro, ela veio até sua cama para

acordá-lo. Tinha posto o sono em dia durante toda a semana, e acordou

facilmente. Não lutou nem tentou agarrar-se aos cobertores, quando ela os

puxou. Ficou quieto e falou calmamente.

- Não vale a pena, mãe.

- Vai se atrasar - disse esta, convencida de que ele ainda estava tonto

com o sono.

- Estou acordado, mãe, e estou lhe dizendo que não vale a pena. Pode

me deixar em paz. Não vou me levantar.

- Mas vai perder o emprego! - exclamou ela. - Não me levanto

- repetiu ele numa voz estranha e inexpressiva.

Ela também não foi trabalhar nessa manhã. Isto era uma doença pior

do que qualquer das doenças que conhecia. A febre e o delírio,

compreendia-os; mas isto era loucura. Cobriu-o com os cobertores e

mandou Jennie, a irmã, chamar o médico.

Quando este chegou, Johnny dormia sossegadamente, e sossega-

damente acordou e consentiu que lhe tomassem o pulso.

- Não tem nada - declarou o médico. — Está muito debilitado, mais

nada. Tem só ossos.

- Foi sempre assim - disse a mãe.

- Agora vá embora, mãe, e deixe-me acabar de dormir.

Johnny falou doce e placidamente, e doce e placidamente voltou-se

para o lado e continuou a dormir.

Às dez horas acordou e vestiu-se. Passou para a cozinha, onde

encontrou a mãe com uma expressão assustada no rosto.

- Vou-me embora, mãe — anunciou. — Venho dizer-lhe adeus.

Ela cobriu a cabeça com o avental e sentou-se repentinamente,

começando a chorar. Johnny esperou pacientemente.

- Já desconfiava - soluçou ela. - Para onde? - perguntou, retirando o

avental da cabeça e levantando os olhos com o rosto atormentado.

- Não sei... para qualquer lugar.

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Page 96: Jack london   contos

Ao falar, reviu mentalmente, com um brilho esplendoroso, a árvore

do outro lado da rua. Parecia espreitar por baixo das pálpebras, e a via

sempre que queria.

— E o emprego? - perguntou a mãe com voz trêmula.

— Nunca mais trabalharei.

— Santo Deus, Johnny! — gemeu ela. - Náo diga isso!

Era uma blasfêmia para ela o que ele dissera. A mãe de Johnny ficou

tão perturbada com essas palavras, como uma mãe que ouvisse seu filho

negar Deus.

—Mas, afinal, que é que se passa com você? - perguntou ela, numa

débil tentativa de se mostrar autoritária.

— Números - respondeu ele. - Apenas números. Tenho feito uma

quantidade de contas esta semana, e é surpreendente.

— Não vejo o que é que isso tem a ver com o caso — fungou ela.

Johnny sorriu pacientemente, e a mãe sentiu um choque com a

ausência persistente de seu mau humor e irritabilidade.

— Eu explico - disse ele. — Estou completamente exausto. Que é

que faz estar exausto? Os movimentos. Tenho trabalhado desde que nasci.

Estou cansado de me mexer e nunca mais o farei. Lembra-se de quando eu

trabalhava na fábrica de vidro? Costumava fazer trezentas dúzias por dia.

Agora calculo que fizesse dez movimentos diferentes por cada garrafa. Isto

faz trezentos e sessenta mil movimentos por dia. Num mês, um milhão e

oitenta mil movimentos. Ponhamos de lado os oitenta mil — disse ele com

a generosidade complascente de um filantropo. — Ponhamos de lado os

oitenta mil. Fica ainda um milhão de movimentos por mês: doze milhões

de movimentos por ano! — E os teares que eu manejo, devem andar por aí.

Isto faz vinte e cinco milhões de movimentos por ano, e me parece que que

trabalho há milhões de anos.

“Ora, esta semana, não trabalhei. Não fiz um movimento durante

horas e horas. Digo-lhe que é maravilhoso ficar sentado, horas e horas,

sem fazer nada. Nunca tinha sido feliz. Nunca tive tempo. Nunca

ÍOO

Page 97: Jack london   contos

parava. Não se pode ser feliz assim. Mas nunca mais farei isso. Vou ficar

sentado descansando, descansando, e descansando...”

- Mas que vai ser do Will e das crianças? - perguntou ela desesperada.

- Ora, aí está! “Will e as crianças”! — repetiu ele.

Mas náo havia amargura em sua voz. Há muito sabia das ambições da

mãe em relação ao filho mais novo, mas este pensamento já não o

magoava; já nada interessava. Nem sequer isso.

- Eu sei, mãe, o que tinha planejado para o Will... mantê-lo na escola

e fazer dele guarda-livros. Mas não é possível, desisto. Terá que ir

trabalhar.

- E depois que eu o criei como o criei — choramingou ela, começando

a cobrir a cabeça com o avental e mudando depois de ideia.

- Você nunca me criou - respondeu, com doce benevolência. - Fui eu

que me criei a mim mesmo, mãe, e criei o Will. Ele é maior do que eu, mais

forte e mais alto. Imagino que, quando era criança, não tinha comida

suficiente para comer. Quando ele nasceu, eu era uma criança, trabalhava

e ganhava o sustento dele também. Mas isso acabou. O Will pode ir

trabalhar, como eu fazia, ou pode ir para o inferno, que tanto faz. Estou

cansado. Vou-me embora agora. Não quer me dizer adeus?

A mãe não respondeu. O avental cobria de novo sua cabeça, e ela

chorava. Johnny deteve-se um momento na soleira da porta.

- Estou certa de ter feito o melhor que pude - soluçava.

Johnny saiu de casa e desceu a rua. Uma lânguida expressão de

prazer inundou-lhe o rosto ao avistar a árvore solitária. “Não vou fazer

nada mesmo” - disse baixinho para si mesmo, num tom embalador. Olhou

pensativamente para o céu, mas o brilho do Sol ofuscou-o e cegou-o.

Foi um longo passeio o que deu, e não caminhava depressa. Passou em

frente da fábrica de juta. Chegou-lhe aos ouvidos o som abafado dos teares,

e sorriu. Um sorriso suave, plácido. Não odiava

101

Page 98: Jack london   contos

ninguém, nem mesmo as máquinas com os seus guinchos e o seu arfar. Náo

sentia amargura nenhuma, não sentia nada além de um desejo imoderado

de descansar.

As casas e as fábricas foram ficando para trás, os espaços livres foram

aumentando à medida que se aproximava do campo. Por fim, a cidade

ficou para trás, e ele desceu uma alameda coberta de folhas, ao lado da

estrada de ferro. Não caminhava como um homem. Não parecia um

homem. Era uma caricatura humana. Era um pedaço de vida raquítico,

retorcido e anônimo que se balançava como um macaco cansado, os braços

pendendo livremente; de ombros encurvados; peito estreito, grotesco e

terrível.

Passou por uma pequena estação de estrada de ferro e deitou-se na

relva, debaixo de uma árvore. Ficou estendido ali a tarde inteira. Às vezes

adormecia, e seus músculos se contraíam. Quando acordado, ficava

imóvel, observando os pássaros ou contemplando o céu por entre os ramos

da árvore acima dele. Riu-se uma ou duas vezes, mas sem relação com

qualquer coisa que tivesse visto ou sentido.

Depois do pôr do sol, na primeira escuridão da noite, um trem de

carga rolou com estrépito para a estação. Quando a máquina manobrava,

para mudar de linha, Johnny rastejou ao longo do comboio. Abriu com um

puxão a porta lateral de um vagão de carga vazio e trepou lá para dentro,

desajeitada e laboriosamente. Fechou a porta. A máquina apitou. Johnny,

deitado no chão, sorriu no escuro.

102

Page 99: Jack london   contos

capítulo 6

AO SUL DA FENDA

A parte mais antiga de San Francisco, que se formou antes do

terremoto, era rachada em duas pela Fenda. Fenda como chamavam a uma

calha de ferro que passava pelo meio da Market Street, e onde se sentia

vibrar eternamente o cabo sem fim que puxava os bondes de um lado para

o outro.

Na realidade, havia duas fendas. Mas os moradores do lado Oeste da

cidade, na ânsia de ganhar tempo, mesmo nas questões gramaticais

resumiam, com o termo no singular, tanto o material, quanto as deduções

mentais que a palavra permite.

Ao norte da fenda ficavam os teatros, os hotéis, os grandes armazéns,

os bancos e as sólidas e respeitáveis casas de negócios. Ao sul

amontoavam-se as fábricas, as vielas, as lavanderias, as oficinas, as

caldeiras de aquecimento e os casebres dos operários.

Essa fenda metafórica expressava a divisão da cidade em classes e

ninguém transpunha a metáfora, para cá e para lá, com mais entusiasmo do

que Freddie Drummond. Vivia nos dois mundos e se dava muito bem,

tanto num, quanto noutro.

Page 100: Jack london   contos

Freddie Drummond era professor no Departamento de Sociologia da

Universidade da Califórnia, e foi nessa qualidade que, transpondo a fenda,

viveu seis meses no gueto do trabalho para escrever O operário não especializado,

obra apreciada por todos e considerada uma importante contribuição para a

história do progresso e uma réplica à literatura do descontentamento, no

sentido em que representava um exemplo perfeito de ortodoxia, do ponto

de vista político e econômico. Os presidentes das grandes companhias de

estradas de ferro compraram edições inteiras para distribuir a seus

empregados: só a Associação dos Industriais distribuiu cinquenta mil

exemplares.

No começo, Freddie Drummond achou muito difícil viver no meio dos

trabalhadores. Não estava habituado a suas maneiras, e os operários ainda

menos às suas. Manifestavam certa desconfiança em relação a ele. Como

sempre fizera a mesma coisa, não podia falar de empregos anteriores. As

mãos muito bem cuidadas e sua excelente educação geravam suspeitas.

Aprendeu muitas coisas, estabelecendo a partir delas generalizações às

vezes erradas, como as que se liam nas páginas de O operário não especializado.

Apesar disso, saiu-se bem, da maneira conservadora dos de sua espécie,

apresentando essas generalizações sob o subtítulo Ensaios.

Uma das primeiras experiências por que passou foi na grande fábrica de

conservas Wilmax, onde trabalhou na seção de peças para confeccionar

caixas de embalagem. Uma fábrica de caixas fornecia as peças em série, e

Freddie Drummond só tinha que montá-las, batendo preguinhos com um

martelo pequeno.

Esta tarefa não exigia qualificação profissional. Era paga por peça. Os

operários daquela fábrica recebiam um dólar e meio por dia. Os que

executavam as mesmas tarefas que ele trabalhavam sem pressa e tiravam

por dia um dólar e 75 centavos. Ao fim do terceiro dia, conseguiu ganhar a

mesma quantia que eles. Mas era ambicioso e não estava interessado em

trabalhar calmamente; no quarto dia recebeu dois dólares.

104

Page 101: Jack london   contos

No dia seguinte, à custa de uma estressante tensão nervosa, chegou

aos dois dólares e meio. Foi objeto de resmungos e olhares sombrios de

seus companheiros e de comentários espirituosos numa gíria

incompreensível, como “lamber as botas do patrão”, “estragar a profissão”

e “atirar-se na água para fugir da chuva”.

Estranhava a falta de energia dos colegas para o trabalho por peça;

elaborou teorias sobre a preguiça congênita dos não especializados e, no

dia seguinte, arranjou jeito de ganhar três dólares, montando as caixas.

Nessa noite, na saida da fábrica, foi interpelado pelos colegas, que lhe

lançaram uma torrente de insultos em gíria. Não compreendeu a razão

daquela maneira de agir mas eles pareciam muito decididos. Como se

recusasse a limitar o seu zelo e fizesse discursos sobre a liberdade e a

dignidade do trabalho e a independência americana, recebeu um castigo.

Foi uma luta difícil, porque Drummond tinha altura e força de atleta;

mas, por fim, o grupo conseguiu pular em cima dele, pisando sua cara e

esmagando seus dedos, a tal ponto que teve que ficar de cama uma

semana, antes de poder se levantar e procurar outro emprego.

Este incidente está descrito no capítulo intitulado “A tirania do

trabalho”, em seu primeiro livro.

Antes de voltar à superfície após este primeiro mergulho, percebeu

que tinha dotes de ator e deu mostras de uma natural capacidade de

adaptação. Espantou-se com ela. Quando aprendeu a gíria e pôde corrigir

suas inúmeras e incômodas falhas, percebeu que podia andar por onde

quisesse naquele mundo operário, sempre se sentindo perfeitamente à

vontade.

Conforme afirmava no prefácio de seu segundo livro, O operário,

tentava sinceramente entender os trabalhadores, e o único meio de

chegar a tanto era misturar-se com eles, sentar-se à sua mesa, dormir na

mesma cama, participar de suas distrações, pensar e sentir como eles.

105

Page 102: Jack london   contos

Aquele homem extremamente reservado, cujo temperamento o levava

a impor-se muitas e rígidas restrições, tão frio e fechado que não tinha

muitos amigos, também não tinha vícios e nunca sentira tentações.

Detestava fumar, enjoava com a cerveja e nunca bebia nada mais forte do

que um copo de vinho no jantar, muito de vez em quando.

Com o tempo, Freddie Drummond habituou-se a atravessar com mais

frequência a Market Street, para caminhar pelo Sul da Fenda. Ali passava as

férias e os feriados de Natal e, quando dispunha de uma semana ou mesmo

de um fim de semana, as horas passadas do outro lado lhe pareciam mais

bem aproveitadas e mais divertidas. Estava reunindo muito material. Seu

terceiro livro, As massas e seus senhores, tornou-se um manual nas

universidades americanas; e quase sem querer, viu-se escrevendo um

quarto livro: A fraude dos operários não especializados.

Em algum lugar em seu íntimo, ocultava-se um estranho desvio ou

uma estranha tendência, reação talvez a seu meio e a sua educação, ou mais

provavelmente consequência de um temperamento contido, herdado de

muitos antepassados com queda para o estudo; o fato é que sentia prazer em

descer ao meio operário.

Os amigos cultos chamavam-no “o Frigorífico”, mas nesse outro meio

passava a ser “Bill Totts, o grande”, que fumava e bebia, dizia palavrões,

lutava e era sempre bem recebido em toda a parte.

Todos gostavam de Bill e mais de uma jovem operária se interessou por

ele. No princípio, bastava-lhe ser um bom ator; mas, com o passar do

tempo, essa simulação tornou-se uma segunda natureza. Já não interpretava

um papel: realmente gostava de salsichas, e salsichas com toicinho,

cardápio considerado por seu clã de mau gosto e pobre.

Chegava a fazer por prazer coisas que fizera por necessidade, e

surpreendia-se lamentando o momento da volta à sala de aulas e às

obrigações, ou aguardando com impaciência o instante ansiado em que, ao

transpor a fenda, recuperava a liberdade para fazer o que gostava.

106

Page 103: Jack london   contos

Como Bill Totts, entregava-se com a maior naturalidade a mil e uma

excentricidades que Freddie Drummond nunca sonharia em praticar. Esse

era o aspecto mais estranho de suas descobertas. Freddie Drummond e Bill

Totts eram dois seres totalmente diferentes, e cada um obedecia a

impulsos, gostos e desejos opostos. Bill Totts era capaz de evitar uma tarefa

com a consciência limpa, enquanto Frederic Drummond considerava o

fato de se furtar ao trabalho um vício criminoso, antiestadunidense,

dedicando vários capítulos de seus livros a condená-lo.

Freddie Drummond mudava de hábitos ao mesmo tempo em que

mudava de roupa, e sem o menor esforço. Ao entrar no quartinho escuro

em que se disfarçava, comportava-se com excessiva rigidez,

empertigava-se um pouco, ficava com os ombros muito retos, o rosto

grave, quase duro e desprovido de expressão. Mas ao sair de lá com as

roupas de Bill Totts, parecia um ser totalmente diferente. Bill Totts não

caminhava propriamente de cabeça baixa, mas toda a sua pessoa se

suavizava e adquiria graça. O próprio tom de voz mudava, ria alto e com

gosto, e as palavras, muitas vezes entrecortadas de pragas, saiam com

naturalidade de seus lábios.

Além disso, Bill Totts tinha tendência para voltar tarde para casa:

acontecia-lhe, nos bares, mostrar uma familiaridade agressiva para com os

outros operários. E, nos passeios ao campo, aos domingos, ou ao voltar de

algum espetáculo, abraçava com hábil simplicidade uma cintura feminina,

ao mesmo tempo em que revelava espírito vivo e encantador nas

brincadeiras próprias de um jovem saudável de sua classe.

Bill Totts sentia-se tão bem em sua nova pele, era um operário tão

perfeito e um habitante tão autêntico do Sul da fenda, que sentia

solidariedade por sua classe, como é comum nas pessoas de sua espécie e o

ódio que dedicava aos fura-greves era até maior do que a média do que

sentiam os sindicalistas sinceros.

Durante a greve do porto, Freddie Drummond conseguiu abstrair-se

de sua condição contraditória e observar, com olhar frio

107

Page 104: Jack london   contos

e crítico, como Bill Totts desancava alegremente os carregadores pelegos.

Porque Bill Totts pagava regularmente o Sindicato dos Carregadores e

tinha razão em indignar-se contra os que lhe usurpavam o emprego. O

“Bill Totts grande” era de fato tão grande e tão forte que o mandavam para

a frente de batalha assim que se anunciava uma pancadaria.

De tanto fingir cólera no papel de seu sósia, Freddie Drummond

acabava por enraivecer-se genuinamente, e só ao voltar à atmosfera

acadêmica conseguia elaborar teorias sensatas e conservadoras sobre as

suas experiências no mundo de baixo e anotá-las, como é próprio de um

sociólogo que se preza.

Nessa altura Freddie Drummond percebeu claramente que faltava a

Bill Totts uma perspectiva capaz de o elevar acima da sua consciência de

classe. Mas Bill Totts não captava esse ponto de vista. Quando um pelego

roubava o seu ganha-pão, via tudo vermelho e não queria saber de mais

nada.

Era Freddie Drummond quem, impecável, tanto física como

moralmente, sentado em seu escritório ou na cátedra da classe n° 17, de

Sociologia, observava Bill Totts e seus companheiros e suas relações com

os sindicatos e os fura-greves, e as consequências para a prosperidade

econômica dos Estados Unidos, na luta pelo mercado mundial. Bill Totts

de fato não tinha capacidade para ver além de sua próxima refeição ou da

luta de boxe que na noite seguinte se realizaria no clube atlético.

Quando reunia material para As mulheres e o trabalho, Freddie

Drummond recebeu um primeiro aviso do perigo que corria. Conseguia

viver naqueles dois mundos com excessiva facilidade. Mas, no final das

contas, esta estranha duplicidade parecia-lhe instável e, pensando bem,

sentado em seu escritório, percebia que aquilo não podia continuar assim.

Atravessava uma transição e previa que, se continuasse, cairia

inevitavelmente para um dos lados.

Page 105: Jack london   contos

E, contemplando os volumes bem alinhados na prateleira superior da

estante giratória, desde sua tese até o ensaio As mulheres e o trabalho, chegou

à conclusão que devia ficar no mundo em que se encontrava naquele

momento. O personagem Bill Totts tinha cumprido bem a sua missão, mas

tornava-se um cúmplice demasiado perigoso; devia desaparecer.

A preocupação de Freddie Drummond era inspirada por uma certa

Mary Condon, presidente do Sindicato Internacional das Trabalhadoras

em Fábricas de Luvas, a quem vira pela primeira vez na plateia, durante a

reunião anual da Federação do Trabalho do Noroeste, e que lhe causara

uma ótima impressão.

A moça não correspondia em nada ao ideal de Freddie Drummond.

Para dizer a verdade, tinha um corpo magnífico, os músculos e a graça de

uma pantera e prodigiosos olhos negros, tão capazes de se incendiarem de

ódio como de rir de amor. Ele detestava as mulheres dotadas de vitalidade

excessiva e destituídas de limites, de regras. Admitia a teoria da evolução

porque era universalmente aceita pelos intelectuais e acreditava piamente

que o homem subira na escala da criação partindo da lama onde pululam

os organismos inferiores. Mas, um tanto humilhado por esta árvore

genealógica, preferia não pensar nisso. Era provavelmente por essa razão

que praticava e pregava para os outros uma férrea reserva, e preferia as

mulheres do seu meio, capazes de se libertarem dessa ascendência bestial e

deplorável e de ampliar, por meio da disciplina, o abismo que as separa de

seus antepassados mais remotos.

Bill Totts não se dedicava a tais considerações. Mary Condon

agradara-lhe desde que a vira na sala da reunião e decidira de imediato

descobrir quem ela era. Não tardou a encontrá-la por acaso, quando

dirigia um caminhão, substituindo Pat Morrissey, um de seus amigos

irlandeses.

A cena passou-se numa pensão residencial da Mission Street. Fora

chamado para pegar um baú e levá-lo para um guarda-móveis. A filha da

Page 106: Jack london   contos

dona da pensáo levou-o a um quartinho cuja ocupante, operária numa

fábrica de luvas, acabava de ser transportada para o hospital. Bill Totts náo

sabia desses pormenores. Abaixou-se, pousou o baú, que era pesado, de

lado e carregou-o no ombro, endireitando-se, de costas para a porta aberta.

No mesmo instante, ouviu uma voz feminina perguntando:

- Você pertence ao sindicato?

- Que lhe interessa? — replicou. - Ande, saia daí! Saia do meu

caminho, que tenho que me virar!

Em seguida, e apesar da sua corpulência, recebeu um empurrão que

quase o fez dar meia volta e o obrigou a cambalear, atrapalhado com o peso

do baú. Bateu na parede, provocando um grande estrondo. Preparava-se

para praguejar quando se viu diante de Mary Condon, cujos olhos

faiscavam de ódio.

- Claro que pertenço ao sindicato - disse ele. - Estava só brincando.

- Onde está a sua carteirinha? — perguntou ela, num tom seco.

- No meu bolso. Mas agora não posso lhe mostrar. Este baú é muito

pesado. Venha comigo até o caminhão, que lá embaixo eu lhe mostro.

- Pouse esse baú — ordenou ela.

- Por que? Já lhe disse que tenho carteirinha!

- Pouse-o, sem mais conversa! Não quero que este baú seja trans-

portado por um pelego. Devia ter vergonha, seu grande covarde, de

enganar trabalhadores sérios! Por que não se inscreve no sindicato e não se

porta como um homem?

O rosto de Mary estava branco de raiva.

- Devia ser proibido, um homem forte como você trair a sua classe!

Calculo que tenciona alistar-se na polícia para na próxima greve atirar nos

caminhoneiros sindicalizados. Talvez já faça parte dela; você é daquelas

pessoas que...

- Ei, cale-se! Agora já é demais! Estou farto de lhe dizer que estava

brincando. Tome, veja isto!

no

Page 107: Jack london   contos

E mostrou a carteirinha do sindicato, toda em regra.

- Muito bem, leve o baú! - concluiu Mary Condon. E da próxima vez

não me venha com brincadeiras.

Voltou a ver a moça durante a greve das lavanderias. Os trabalhadores

deste sindicato recém-formado, ainda pouco experientes, tinham pedido a

Mary Condon que organizasse a greve.

Freddie Drummond, tendo sabido dos preparativos, mandou Bill

Totts inscrever-se no sindicato e acompanhar os acontecimentos. Bill

trabalhava em uma lavanderia. Nessa manhã, os homens não pegaram no

batente, para encorajar as mulheres; e Bill estava perto da porta da

lavanderia quando Mary Condon se apresentou, para entrar. O

encarregado, homem gordo e alto, barrou-lhe o caminho. Não queria que

as operárias parassem o trabalho e ia ensinar aquela intrusa a não se meter

onde não era chamada. Como Mary tentasse esgueirar-se entre ele e a

porta, o homem empurrou-a, pousando em seu ombro uma mão enorme.

Ela olhou em redor e viu Bill.

- Ei, senhor Totts! - gritou. - Ajude aqui, por favor. Quero entrar!

Bill sentiu uma grata surpresa. Ela se lembrava do seu nome, que lera

no carteirinha do sindicato. Passado um instante, o encarregado, tendo

sido afastado da porta, discursava sobre os direitos garantidos pela lei e as

mulheres abandonavam as máquinas. Durante o resto desta greve, curta e

bem-sucedida, Bill assumiu o papel de assistente e mensageiro de Mary

Condon; quando tudo terminou, regressou à universidade para retomar a

personalidade de Freddie Drummond, e refletir sobre que raio de interesse

Bill Totts podia sentir por aquela mulher.

Freddie Drummond estava perfeitamente seguro, mas Bill estava

apaixonado. Impossível negar; e foi esse fato que serviu de aviso a Freddie

Drummond. Pois bem! Como terminara o trabalho, podia por fim à

aventura. A partir deste momento, nada o obrigava a passar para o outro

lado da Fenda. Só faltava redigir os três últimos capítulos

111

Page 108: Jack london   contos

do livro Táticas e estratégias do trabalho, e tinha matéria mais do que suficiente

para terminá-lo.

Também chegou à conclusão que, para lançar âncora e instalar-se de

vez na personalidade de Freddie Drummond, tinha de estabelecer relações

e laços mais estreitos com seu meio social.

Em todo o caso, já estava na hora de se casar porque percebia

perfeitamente que, se Freddie Drummond não escolhesse mulher, Bill

Totts fá-lo-ia com certeza, o que acarretaria complicações tais que nem era

bom pensar.

E foi assim que entrou em cena Catherine Van Vorst. Também

pertencia ao meio universitário: o pai, o único professor com recursos

financeiros, era chefe do departamento de filosofia.

Será um casamento acertado de todos os pontos de vista, concluiu

Freddie Drummond, quando o noivado foi anunciado publicamente.

Aristocrata e saudavelmente conservadora, ar frio e reservado, embora

ardente a seu modo, Catherine Van Vorst não ficava atrás de Freddie

Drummond em matéria de escrúpulos e ponderação.

Tudo parecia correr às mil maravilhas, mas ele não conseguia

libertar-se do apelo daquela outra vida, despreocupada e sem restrições,

que levavam as pessoas ao sul da fenda. À medida que se aproximava a data

do casamento, dizia para si mesmo que o tempo da transgressão já ficara

para trás; mas ao mesmo tempo sentia que lhe agradaria muitíssimo uma

última escapada, desempenhar mais uma vez o papel de espalha brasas,

antes de se instalar na pasmaceira das salas de aulas e na sobriedade de um

casamento sensato. E, para aumentar a tentação, o último capítulo do seu

livro Táticas e estratégias do trabalho continuava inacabado, por falta de certos

pormenores que se esquecera de recolher. Foi assim que Freddie

Drummond voltou a representar - pela última vez - o papel de Bill Totts,

reuniu os elementos que lhe faltavam e, para sua desgraça, cruzou uma vez

mais com Mary Condon.

Ao voltar a seu gabinete, desagradava-lhe a recordação daquele

reencontro, que o enchia de culpa. Bill Totts comportara-se de uma

112

Page 109: Jack london   contos

maneira execrável: não só revira Mary Condon no Conselho Central do

Trabalho como, ao levá-la para casa, a convidara a entrar num restaurante

para comerem ostras. Antes de se despedirem, abraçara-a e beijara-a na

boca, várias vezes. E as últimas palavras que Mary lhe dissera ao ouvido,

muito baixinho, com um profundo suspiro, verdadeiro soluço de amor,

foram:

— Bill... oh! Bill... meu querido...

Freddie Drummond estremecia ao lembrar-se daquele momento. Via

abrir-se um abismo à sua frente. Não sendo naturalmente políga- mo,

assustavam-no as possíveis consequências daquela situação. Só via duas

saídas: ou passar a ser Bill Totts para sempre e casar-se com Mary Condon,

ou permanecer Freddie Drummond indefinidamente e desposar Catherine

Van Vorst. Fora destas alternativas, qualquer outra atitude da sua parte

seria odiosa e digna do maior desprezo.

Nos meses seguintes, San Francisco foi abalada pela luta dos

trabalhadores. Os sindicatos e as associações patronais lançaram-se num

combate cuja veemência mostrava a intenção de ambas as partes de

resolver a questão a todo custo e de uma vez por todas.

Enquanto isso, Freddie Drummond passava o tempo corrigindo

provas, dando aulas, mas não ia a lugar algum. Dedicava-se a Catherine

Van Vorst e todos os dias descobria novas razões para respeitá-la,

admirá-la e até amá-la.

A greve dos transportes públicos tentou-o, mas não tanto quanto

temera, e a dos alfaiates deixou-o indiferente.

O fantasma de Bill Totts estava definitivamente exorcizado e, com

renovado zelo, Freddie Drummond iniciou a redação de uma brochura

com a qual sonhava há muito, a propósito da “redução de rendas”.

O casamento devia realizar-se dali a duas semanas quando, uma certa

tarde, Catherine Van Vorst veio buscá-lo de automóvel, para levá-lo a

visitar um clube de jovens recentemente criado pelos trabalhadores que

limpavam novos terrenos para a construção e pelo

113

Page 110: Jack london   contos

qual ela se interessava. O automóvel era do irmão, mas iam sozinhos, com

o motorista.

No cruzamento da Kearny Street, a Market Street e a Geary Street

faziam um ângulo agudo. Os ocupantes do veículo seguiram pela Market

Street, com a intenção de contornar a ponta desse “V” para entrar na Geary

Street. Mas ignoravam o que se passava nessa última rua, o que o destino

lhes aprontava ao virar a esquina. De fato tinham lido nos jornais que a

greve dos alfaiates se radicalizara, mas naquele momento Freddie

Drummond pensava em tudo, menos nisso. Não estava sentado ao lado de

Catherine? Além disso, expunha-lhe suas ideias sobre os trabalhadores que

limpavam terrenos, ideias para as quais as aventuras de Bill Totts muito

tinham contribuído.

Pela Geary Street seguia uma fila de seis caminhões de carne. Em cada

um, ao lado de um jovem motorista, ia um policial. À frente, atrás e de

cada lado deste cortejo seguia um esquadrão de uns trinta agentes e a

seguir, na retaguarda e a respeitosa distância, avançava uma multidão

organizada mas enraivecida, ao longo de vários quarteirões, obstruindo a

rua em toda a sua largura.

O truste das carnes procurava reabastecer os hotéis e, ao mesmo

tempo, furar a greve. O Hotel San Francisco fora abastecido, à custa de

vários vidros e cabeças quebradas, e a expedição continuava, para socorrer

o Palace Hotel. Sem suspeitar de nada, Drummond, ao lado de Catherine,

falava de limpeza de terrenos, enquanto o veículo, buzinando

regularmente e abrindo caminho por entre outros veículos, fazia uma

curva bem aberta em direção ao fim do cruzamento.

Nesse momento, uma enorme carroça, carregada de carvão de pedra e

atrelada a quatro sólidos cavalos, que acabava de desembocar da Kearny

Street, em direção à Market Street, barrou o caminho do automóvel. O

condutor da carroça parecia indeciso, e o motorista, diminuindo a

velocidade, mas ignorando os gritos de aviso dos policiais, ultrapassou o

outro pela direita, contrariamente às regras de trânsito, para passar à

frente da carroça.

114

Page 111: Jack london   contos

Freddie Drummond interrompeu a conversa.

Não voltaria a retomá-la porque a situação evoluía com rapidez

extraordinária. Ouviu os gritos da multidão lá atrás e viu os capacetes dos

policiais no cortejo dos caminhões de carne.

No mesmo instante, o carvoeiro entrou em ação: com uma série de

chicotadas, levou a carroça a atravessar-se à frente da procissão cada vez

mais próxima, fez parar os cavalos, puxou a trave de mão, atou as rédeas e

sentou-se, com ar de quem está decidido a não se mexer. O automóvel

também ficou imobilizado pelos cavalos ofegantes que lhe barravam o

caminho.

Antes do motorista ter tempo de recuar, um velho irlandês, que

dirigia uma carroça decrépita, chicoteando o cavalo sem cessar, chocou as

rodas da carroça com as do automóvel. Drummond reconheceu o cavalo e

a carroça, que conduzira mais de uma vez. O irlandês era Pat Morrissey.

Do outro lado, uma viatura de transporte de cerveja estava colada à

carroça de carvão, e o condutor de um bonde que desembocara na Kearny

Street fazia soar ininterruptamente a campainha, lançava desafios ao

policial do cruzamento e vinha completar o engarrafamento, enquanto

outros veículos se precipitavam uns atrás dos outros, aumentando a

confusão. Os furgões de carne pararam. A polícia estava presa na

armadilha. Os gritos redobraram na retaguarda, quando a multidão se

lançou ao assalto, enquanto à frente a polícia atacava a barricada de

veículos.

- Estamos bem arranjados! — comentou tranquilamente Freddie

Drummond para Catherine.

- Sim - respondeu ela com a mesma frieza. - Que bando de selvagens!

Sentiu crescer sua admiração por ela. Era um exemplo típico de pessoa

da sociedade. Tê-la-ia aprovado, mesmo que gritasse e se agarrasse a ele,

mas achava magnífica aquela maneira de se comportar. Mantinha-se

sentada, no meio de um vendaval, com a mesma calma que teria se se

tratasse de um engarrafamento em frente à ópera.

115

Page 112: Jack london   contos

Os policiais tentavam abrir passagem para a fila de caminhões. O

condutor da carroça de carvão, gordo e em mangas de camisa, acendeu o

cachimbo e pôs-se a fumar tranquilamente, fitando com ar calmo o

comandante da polícia que esbravejava e praguejava diante dele, obtendo

apenas um encolher de ombros como resposta.

Da retaguarda vinha o ruído do choque dos cassetetes brancos contra

as cabeças, e uma confusão de gritos, uivos e insultos. Um crescendo

rápido mostrou que a multidão tinha furado o cordão de policiais e

arrancava um pelego do assento de condutor. O comandante enviou em

seu socorro um reforço formado pelos policiais da frente, e estes

conseguiram afastar a multidão.

Por ordem do comandante, um policial subiu no assento da carroça

para prender o condutor; este, levantando-se calmamente como para

recebê-lo, envolveu-o de repente nos braços e jogou-o na cabeça do chefe.

Este carroceiro era um jovem gigante. Ao vê-lo trepar para cima da carga e

segurar em cada mão um pedaço grande de carvão, um policial que

escalava o caminhão por um dos lados largou tudo e pulou para o chão. O

comandante ordenou a meia dúzia de policiais que tomassem o veículo de

assalto. O condutor, agachando-se ora de um lado, ora do outro da carga,

repeliu-os, atacando-os com grandes pedaços de carvão.

A multidão concentrada nas calçadas e os condutores dos carros presos

no engarrafamento soltavam uivos de prazer e encorajamento. O condutor

do bonde, que amassava capacetes com a comprida barra de endireitar

trilhos, desmaiou e foi arrancado da plataforma. O comandante,

enraivecido por ver seus homens repelidos, assumiu o comando para

assaltar a carroça. Mas o carroceiro valia por dez.

Por momentos, meia dúzia de policiais juntaram-se na calçada ou por

baixo do veículo. Ocupado em repelir um ataque na retaguarda da sua

fortaleza, o carreteiro virou-se a tempo de ver o comandante subir para o

assento: este estava ainda em equilíbrio instável quando o outro atirou-lhe

um bloco de carvão de mais de dez quilos. O pro

116

Page 113: Jack london   contos

jétil atingiu em pleno peito o assaltante, que caiu de costas por cima do

dorso de um dos cavalos atrelados em fila, estatelou-se no chão e rolou

contra a roda traseira do automóvel.

Catherine julgou-o morto. Mas ele levantou-se e retomou o assalto.

Ela estendeu a mão enluvada e acariciou o flanco do cavalo, que se agitava

e tremia todo. Mas Drummond não reparou nesse gesto. Só tinha olhos

para a batalha da carroça de carvão. Viu um policial chegar ao alto da

carga, depois um segundo e um terceiro. Cambaleavam em cima daquele

material instável, mas faziam funcionar os longos cassetetes. O condutor

foi atingido por uma pancada na cabeça. Esquivou-se a outra, mas

recebeu-a no ombro. Era evidente que perdia a batalha. De repente

lançou-se para a frente, prendeu um policial em cada braço e pulou para a

calçada para se entregar, mas sem largá-los.

Catherine Van Vorst sentia-se enjoada e prestes a desmaiar por ver

sangue e assistir a este combate brutal. Mas sua tontura passou diante do

acontecimento sensacional e inesperado que se desenrolou em seguida.

O homem sentado a seu lado lançou um urro que não era deste

mundo, e muito menos do seu mundo, e levantou-se de um salto. Viu-o

subir para o assento da frente, atirar-se no dorso do cavalo do varal e daí

para a carroça. Atacou como um turbilhão. Antes do comandante,

intrigado, poder adivinhar o que estava fazendo ali aquele senhor bem

vestido, mas obviamente excitado, este disparou-lhe um direto que o fez

descrever uma curva ao contrário, até o chão. Um pontapé na cara de um

policial que subia convenceu este subalterno a juntar-se ao chefe. Outros

três, que acabavam de equilibrar-se em cima do carvão agarraram-se a Bill

Totts num corpo a corpo de gigantes, durante o qual lhe arrancaram uma

tira de couro cabeludo, o casaco e o colete, bem como metade da camisa

engomada. Mas os três policiais foram lançados para os quatro pontos

cardeais e Bill Totts, disparando a sua metralha de carvão, manteve-se

firme na posição estratégica.

117

Page 114: Jack london   contos

O comandante repetiu corajosamente o assalto, mas um bloco de

carvão partiu-se contra a sua cabeça e fê-lo ver estrelas. O objetivo da

polícia era desfazer a barricada da frente, antes que a multidão conseguisse

romper a barreira de policiais na retaguarda, e o de Bill Totts era defender

a carroça até a chegada da multidão. Por isso a luta se prolongava.

A multidão reconhecera o seu campeão. O grande Bill, como de

costume, surgira em plena confusão, e Catherine Van Vorst perguntava-se

o que significavam aqueles berros: Bill! Bravo, Bill, repetidos de todos os

lados.

Pat Morrissey, no volante do caminhão, dançava e gritava de alegria:

- Morda, Bill. Dê conta deles! Coma eles vivos!

Ouviu-se uma mulher gritar da calçada:

— Cuidado, Bill, veja, lá na frente!

Avisado, Bill libertou a parte da frente da carroça de assaltantes, com

uma rajada de projéteis; Catherine Van Vorst virou a cabeça e viu na

calçada uma mulher de faces coradas e faiscantes olhos negros, que fitava

embevecida aquele que há bem pouco tempo era Freddie Drummond.

De todas as janelas dos prédios saíram gritos entusiasmados, ao mesmo

tempo em que choviam cadeiras e clamores. A multidão de manifestantes

abrira passagem de um dos lados da fila de furgões e avançava em grupos,

cada um dos quais enfrentava um policial isolado.

Os pelegos foram arrancados dos seus lugares e os arreios dos cavalos,

cortados; os animais fugiram espavoridos. Vários agentes refugiaram-se

embaixo da carroça de carvão, enquanto os cavalos soltos, alguns

montados por policiais, outros com os agentes agarrados a suas cabeças

tentando detê-los, galopavam pelas calçada do outro lado da aglomeração e

seguiam desabalados pela Market Street.

Catherine Van Vorst ouviu de novo a voz da mesma mulher que,

voltando para a beira da calçada, gritava recomendações:

118

Page 115: Jack london   contos

- Saia daí, Bill! Agora é que são elas!

A polícia fora temporariamente varrida. Bill Totts saltou da carroça e

abriu caminho em direção à mulher na calçada. Catherine Van Vorst viu-a

lançar os braços em seu pescoço e beijá-lo na boca; e ficou olhando com

curiosidade, enquanto o noivo se afastava, o braço em torno da cintura

daquela desconhecida: conversavam e riam os dois, com um à vontade e

um abandono de que nunca o teria julgado capaz.

A polícia reapareceu e desfez a aglomeração, aguardando reforços,

novos condutores e cavalos. A multidão, terminada a sua tarefa, se dis-

persou; e Catherine Van Vorst ainda avistava o homem que conhecia pelo

nome de Freddie Drummond. A cabeça dele elevava-se acima da multidão

e continuava a abraçar a mulher pela cintura.

Sentada no automóvel e sempre atenta, viu o casal atravessar a Market

Street, transpor a fenda e desaparecer na esquina da 3a Rua, no gueto do

trabalho.

Nos anos seguintes, não houve aulas de Freddie Drummond na

Universidade da Califórnia, e não foi publicado nenhum livro seu sobre

economia social.

Mas, ao mesmo tempo, surgia um novo dirigente sindical, chamado

William Totts. Foi ele que se casou com Mary Condon, presidente do

Sindicato Internacional das Trabalhadoras em Luvas; foi ele quem

organizou a famosa greve dos cozinheiros e empregados de restaurantes e,

antes de obter uma vitória definitiva, ajudou a formar uns vinte sindicatos

mais ou menos associados, entre os quais os de desempenadores de aves e o

dos empregados de agências funerárias.

119

Page 116: Jack london   contos
Page 117: Jack london   contos

capítulo 7

FAZER UMA FOGUEIRA

O dia amanhecera frio e cinzento — extremamente frio e cinzento -

quando o homem saiu do principal caminho para Yukon e subiu um morro

alto; ali, uma trilha, escondida pela densa floresta de pinheiros, indicava o

caminho para Leste. A subida era íngreme e ele parou no topo, quase sem

fôlego. Como que pedindo desculpas a si mesmo por seu enorme cansaço,

olhou para o relógio: eram nove horas. Para alegrar o solitário, não se via

nem sugestão de Sol. Engraçado que no céu não havia nenhuma nuvem;

seria, por certo, um dia bem claro; mas, ainda assim, tombava uma

intangível mortalha sobre o dia, escurecendo-o sutilmente, tudo

provocado pela ausência do Sol. Mas isso não preocupava o viajante,

acostumado que estava à falta do Sol. Há muito não o via. Sabia que sua

ausência poderia continuar por mais alguns poucos dias, antes que viesse

alegrar o ambiente, quando aparecesse pouco acima da linha do horizonte,

para sumir pouco depois.

O homem virou a cabeça e lançou um olhar ao caminho que

percorrera. O Yukon permanecia a um quilômetro, oculto sob uma camada

de gelo. No topo do gelo via-se a neve. Tudo tão branco e

Page 118: Jack london   contos

ondulado: suaves ondulações, formadas pelo movimento do rio congelado.

Para o norte e para o sul, até onde os olhos podiam alcançar, tudo era

monotonamente branco, a não ser por aquela linha escura, que se curvava e

se retorcia. Lá estava ela, saindo da ilha de pinheiros ao sul: curvando-se e

retorcendo-se, ziguezagueava para o norte para só então, finalmente, sumir

em outra ilhota de pinheiros. Aquela linha escura era a trilha principal, que

se estendia por quinhentas milhas ao sul até Chilcoot Pass, Dyea e Água

Salgada; ao norte ela se estendia por cinquenta milhas até Dawson e de lá

continuava por mais mil milhas até Nulato, viajando mais umas mil e

quinhentas milhas, até desembocar em St. Michel, no Mar de Behring.

Nada do que anotamos — a misteriosa e longínqua linha estendida, a

ausência do Sol no céu, o tremendo frio, aquele estranho destino, afetava o

pensar, a alma do peregrino. Não que estivesse acostumado àqueles

caprichos da natureza: recém-chegado àquela região, vivia ali seu primeiro

inverno... Mostrava-se atento às coisas da vida, somente a elas, não a seus

significados profundos. Cinquenta graus abaixo de zero significavam uns

oitenta e tantos graus, devido à geada. Este fato o impressionava como

sendo frio e desconfortável, nada mais. Não o levava a meditar - pelo

menos assim parecia — sobre sua fragilidade ao perambular por tal

temperatura e sobre a fragilidade do ser humano, que somente pode viver

bem dentro de certos estreitos e estabelecidos limites de frio e calor;

também não parecia se preocupar com a imortalidade, o lugar do homem

no Universo. Cinquenta graus abaixo de zero significavam um frio de doer,

do qual era preciso se proteger com luvas, protetor de orelhas, mocassins

quentes e meias grossas. Cinquenta graus abaixo de zero eram para ele

precisamente cinquenta graus abaixo de zero. Nada de metafísica, de

divagações amedrontadas...

Ao voltar-se para prosseguir caminho, cuspiu especulativamente.

Ouviu um estalar explosivo que o assustou. Cuspiu novamente. No ar,

antes que tombasse na neve, sua saliva fez um ruído estridente.

122

Page 119: Jack london   contos

Sabia que a cusparada deveria explodir na neve quando a temperatura

estivesse a menos cinquenta; aprendera isso. Mas esta explodira no ar...

Sem dúvida fazia mais frio do que menos cinquenta; só não sabia quanto

mais. Contudo, não perdeu muito tempo forçando a mente. A temperatura

não era empecilho, não o impediria de seguir a bifurcação à esquerda, pelo

caminho que o levaria a Henderson Creek, onde seus amigos o esperavam.

Eles tinham chegado lá pela divisa de Indian Creek; ele chegaria depois, já

que decidira examinar as possibilidades de pegar madeira das ilhotas do

Yukon, quando a primavera chegasse. Deveria chegar ao acampamento lá

pelas seis horas. Seria um pouco escuro, é verdade, mas os rapazes estariam

lá, com o fogo aceso e uma comida quentinha a esperá-lo. O viajante

levava consigo, avolumando-se sob a jaqueta, um farnel. A comida estava

embaixo de sua camisa, envolta em um lenço, colada à sua pele. Aprendera

que esse era o único modo de impedir que os biscoitos congelassem. Sorriu

muito satisfeito consigo mesmo, matutando sobre os biscoitos, recheados

um a um com uma porção generosa de bacon.

O homem entrou na mata. Seu caminho parecia confundir-se. Muita

neve havia caído desde que o último trenó passara e estava feliz por ter

decidido viajar sem bagagem nem trenó. Tudo o que carregava era aquele

farnel embrulhado num lenço. Mas estava surpreso com o frio que fazia.

“É, faz muito frio”, concluiu, esfregando seu nariz entorpecido contra a

mão enluvada. Era um homem de bom sangue, peludo, mas, ainda assim,

seus cabelos não defendiam a parte de cima de seu rosto; tampouco seu

nariz, que atravessava, indefeso, o ar gelado.

Seguindo o homem de perto, ia um grande cão nativo, um husky, o

próprio cão lobo, de pelo cinzento, sem nenhuma diferença física ou de

temperamento com seu irmão, o lobo selvagem. O animal sentia-se muito

deprimido pela baixa temperatura; sabia que não era época de viajar,

apesar do homem não sabê-lo... Seu instinto avisava-o, sua experiência...

Fazia realmente não só aquele frio contado pelo

123

Page 120: Jack london   contos

homem, de cinquenta abaixo de zero; estava mais frio que sessenta, setenta

graus abaixo de zero. Fazia setenta e cinco graus abaixo de zero. O cáo náo

sabia nada a respeito de termômetros. Possivelmente, seu cérebro náo

tinha, em sua rusticidade, a real consciência do frio, tal como se dava com

seu companheiro homem. O cão experimentava vago e apreensivo temor.

Isso o fazia seguir, ávido, as pegadas do homem em todos os seus menores

movimentos, esperando que viesse um esperado repouso, o calor de uma

fogueira em um abrigo. Bem conhecia o valor de uma fogueira a crepitar,

desejava-o; era isso ou cavar para baixo da neve, aninhando-se no buraco

em busca de algum calor, longe da friagem do ar.

A umidade da respiração do animal formava em sua pele uma camada

fina de pó de gelo, principalmente sobre a mandíbula, ao redor do focinho,

nos cílios. Estas partes mostravam-se embranquecidas por aquela

respiração de cristal. A barba avermelhada do homem e seu bigode

estavam igualmente congelados, solidificados. Cada vez que soltava a

respiração, o depósito de gelo aumentava. O viajante mascava tabaco; o

gelo agarrava-se a seus lábios tão firmemente, que mal conseguia mover o

queixo para expelir o sumo formado por sua saliva e pelo tabaco. O

resultado era a formação de uma barba de cristal, com a cor e a solidez do

âmbar, tomando toda a extensão do queixo. Se caísse, sua barba se

espatifaria como vidro, em inúmeros estilhaços. Contudo, parecia não se

importar com o apêndice. Sabia que era o preço pago por mascadores de

tabaco no frio; ele mesmo já havia caminhado duas vezes em frio intenso.

Não fizera tanto frio como desta vez. Em suas outras jornadas, pelo

termômetro de Sixty Mile, sabia que fizera cinquenta e cinquenta e cinco

graus abaixo de zero.

Finalmente, o homem agachou-se à margem do leito gelado de uma

trilha. O lugar chamava-se Henderson Creek e o homem sabia que estava a

dez milhas da bifurcação. Olhou para o relógio: dez horas. Estava fazendo

quatro milhas por hora. Calculou que poderia

124

Page 121: Jack london   contos

chegar à bifurcação pouco depois do meio dia. Resolveu celebrar o feliz

acontecimento comendo seu lanche por lá.

O cão lobo seguia, cauteloso, suas pegadas, com o rabo abaixado em

desânimo, quando o homem foi para a beira do caminho. A marca da velha

trilha de trenós ainda era visível, mas uma densa camada de neve cobria os

sinais dos últimos caminhantes... Em um mês, nenhum ser humano

palmilhara aqueles caminhos silenciosos. O homem continuava andando.

Não era um tipo pensativo e, particularmente naquela ocasião, não tinha

muito em que pensar, a não ser em comer seu lanche na bifurcação e no

fato de que, lá pelas 6 horas da tarde, poderia estar no acampamento com

os rapazes. Não tinha ninguém para conversar; e mesmo que quisesse

tentá-lo não poderia, já que o gelo prendia sua boca. Continuou a mascar o

tabaco monotonamente, aumentando o tamanho de sua máscara de âmbar.

De vez em quando pensava que o frio era demais, que nunca

experimentara tal temperatura. Enquanto andava, esfregava as mãos

enluvadas na face, no nariz. Fazia isso automaticamente, trocando de

mãos. Mas, por mais que massageasse o rosto, quando parava, sentia-se

entorpecido, sem poder sentir a ponta do nariz. Sabia que havia queimado

o rosto e arrependeu-se de não ter trazido protetor para o nariz, do tipo

que as pessoas usam em temperaturas muito frias. Mas isso não importava

tanto assim, afinal, qual o problema de se ter o rosto queimado pelo frio?

Doía um pouco, e só; não era coisa muito séria.

Apesar de ter a mente vazia de pensamentos, o homem observava

tudo cuidadosamente. As curvas, os buracos, onde colocar os pés. De

repente, no início de uma curva, protegeu-se, qual cavalo assustado,

curvando-se para frente. Retrocedeu um pouco. Conhecia bem a região:

era um lago congelado... Sabia que o lago estava congelado em suas

profundezas, mas poderia haver, lá embaixo, correntes que vinham das

montanhas e corriam sob o gelo. Sabia que, por mais frio que fizesse, es sas

correntes não congelavam, e conhecia o perigo delas.

Page 122: Jack london   contos

Eram armadilhas. Charcos d’água ocultavam-se embaixo da neve, e podiam

ter alguns centímetros ou um metro de profundidade. Às vezes uma

camada fina de gelo coberta de neve os cobria, escondendo-os. Às vezes

camadas de gelo e água se alternavam e quando uma delas se quebrava as

outras iam junto, fazendo com que as pessoas se molhassem até a cintura.

Era por isso que estava em pânico. Sentira o chão ceder sob seus pés e

ouvira gelo escondido por neve se quebrando. Molhar os pés numa

temperatura dessas poderia ser muito perigoso. Na melhor das hipóteses

significaria atraso, pois teria que parar e acender uma fogueira para

proteger seus pés nus e secar as meias e os mocassins. Parou para examinar

o leito do lago, suas margens, e decidiu que o fluxo da água vinha da

direita. Refletiu, esfregando o nariz e as faces; depois foi para a esquerda,

caminhando cautelosamente, testando o terreno a cada passo. Uma vez

passado o perigo, apanhou um pedaço de tabaco e continuou sua marcha de

quatro milhas por hora. Nas duas horas seguintes encontrou outras

armadilhas semelhantes. Normalmente, a neve sobre os charcos

escondidos tinha uma aparência diferente, que o avisava do perigo. Mais

de uma vez, entretanto, quase caiu. Outra vez, ao suspeitar do perigo,

empurrou o cão para frente. O animal não queria ir, forçando o corpo para

trás. Voltou sobre seus passos, até que o homem o empurrou com mais

força e ele caminhou rapidamente sobre a superfície branca. Houve um

momento em que a superfície se quebrou e ele resvalou, quase caiu para o

lado, mas conseguiu sair para o chão firme. Molhara as patas dianteiras, e

quase imediatamente a água tornou-se gelo. Rapidamente lambeu as patas

para se livrar do gelo e deitou-se na neve para tirar o resto de gelo que

havia se formado entre os dedos. Era uma questão de instinto. Se

permitisse que o gelo ficasse lá, teria dor nos pés. Não que o animal

soubesse disso; simplesmente obedecia aos misteriosos comandos que

vinham do mais íntimo de seu ser. Mas o homem sabia bem das

consequências e, percebendo o que poderia acontecer ao animal,

126

Page 123: Jack london   contos

tirou a luva da mão direita e o ajudou a arrancar as partículas de gelo. Em

toda a operação, não expôs seus dedos ao frio por mais de um minuto e

ficou surpreso ao perceber quão rapidamente sua mão ficava dormente.

Estava um frio de doer. Rapidamente tornou a por a luva e bateu com

força a mão no peito para afastar aquela sensação.

Era meio dia e a claridade estava no auge. Mesmo assim o Sol estava

muito longe, em sua jornada para o Sul, para clarear o horizonte. A

curvatura da terra impunha uma barreira entre seu calor e Henderson

Creek, onde se podia andar em um dia claro sem nuvens, ao meio dia, sem

projetar a própria sombra. Pontualmente chegou à bifurcação do caminho.

Estava satisfeito com a velocidade com que havia andado. Se continuasse

assim certamente estaria com os rapazes às seis horas. Desabotoou o casaco

e a camisa para pegar seu farnel. Esta ação não demorou mais do que um

quarto de minuto e ainda assim o torpor tomou conta de seus dedos

expostos. Não pôs a luva outra vez, preferindo bater os dedos rapidamente

na perna. Depois sentou-se em um toco coberto de neve para comer. As

agulhadas que sentira ao bater as mãos nas pernas cessaram tão

rapidamente que se surpreendeu. Não conseguia pegar sequer um mísero

pedaço de biscoito. Bateu os dedos mais e mais e pôs novamente a mão na

luva, tirando a outra para poder comer. Tentou comer um pedaço, mas a

mordaça de gelo o impediu. Tinha se esquecido de fazer uma fogueira para

que ela se desfizesse. Riu-se dessa tolice sua e, enquanto ria, notou o torpor

se imiscuindo em seus dedos expostos. Também notou que o

formigamento que sentira nos pés ao sentar-se estava desaparecendo. Não

podia ter certeza se seus pés estavam aquecidos ou congelados. Tentou

movê-los nos mocassins e decidiu que estavam congelados.

Rapidamente pôs a luva de volta e levantou-se. Estava começando a

ficar com medo. Começou a bater os pés com força até sentir de novo o

formigamento. Estava realmente frio, era tudo que pensava. Aquele

veterano de Sulphur Creek não o havia enganado ao falar do frio que

127

Page 124: Jack london   contos

fazia por lá. E, na época, ele rira daquele homem experiente! Isto lhe

mostrava que nunca se deve ter certeza demais das coisas. Não havia

dúvidas, com certeza estava muito frio. Pôs-se a andar, batendo os pés com

força no chão e movendo os braços até sentir-se mais aquecido. Pegou

então os fósforos para fazer uma fogueira. Encontrou gravetos em um

buraco formado pelas águas da primavera anterior. Trabalhando

cuidadosamente, de uma tímida chama fez um maravilhoso fogo crepitante

que derreteu o gelo de seu rosto e sob cuja proteção pôde comer seus

biscoitos. Por um momento o frio foi esquecido e vencido. O cachorro

estava feliz com o fogo e se espreguiçava bem junto dele, sempre mantendo

uma distância segura para não se queimar. Quando o homem terminou,

encheu seu cachimbo e aproveitou o calor para fumar. Logo depois, pôs as

luvas, ajeitou os protetores de orelha de seu chapéu e tomou a trilha da

esquerda da bifurcação. O cachorro, desapontado, tentou fazê-lo voltar

para o calor reconfortante do fogo. Aquele homem não sabia o que era frio.

Possivelmente seus ancestrais não tinham conhecido o frio, o frio de

verdade, o frio de 79 graus abaixo de zero. Mas o cachorro sabia o que era

isso; todos os seus ancestrais sabiam e ele herdara seu conhecimento. Com

certeza não era bom viajar nesse frio amedrontador. Era tempo de se

aconchegar em um buraco na neve e esperar. Por outro lado, não havia

nenhuma intimidade entre o homem e o animal. Ele era apenas um animal

de trabalho e o único contato físico que conhecera fora o de um chicote; o

chicote e os ameaçadores sons guturais que antecediam o chicote. Assim o

cachorro não se esforçou para comunicar suas apreensões, pois não estava

preocupado com o bem-estar do homem; era apenas pelo seu próprio bem

que tentava fazer o viajante voltar para perto do fogo. Mas o homem

assobiou e falou-lhe com os sons do chicote, e o cachorro limitou-se a

seguir seu dono.

O homem pegou um pedaço de tabaco e começou a fazer outra barba

âmbar. Sua respiração úmida também fazia embranquecer seu bigode, os

cílios e as sobrancelhas. O homem andava e nada via que o

128

Page 125: Jack london   contos

alarmasse; não parecia haver charcos escondidos. Foi aí que ocorreu o

imprevisto. Em um lugar onde não se notava o menor sinal, onde só se via

o macio da neve, ele afundou. Resvalou no branco da neve até à metade

dos joelhos, antes que percebesse o perigo.

Agora estava muito zangado e praguejou bem alto por sua má sorte.

Prometera a si mesmo estar no acampamento em companhia dos rapazes

por volta das seis horas e o acidente o faria se atrasar uma hora, pois agora

teria que fazer fogo e secar sapatos e meias. Náo seria possível deixar de

fazer isso em uma temperatura tão baixa, ele bem sabia. Subiu uma

pequena colina formada pelas margens do lago. Embaixo de uma árvore,

junto a um pequeno bosque de abetos, havia um depósito de gravetos e

palha seca, bom combustível para o fogo. Jogou porções generosas do

material sobre a neve: pedaços maiores primeiro. Isto serviria de base para

a fogueira, e não deixaria que as pequenas e jovens chamas se afogassem na

neve que fatalmente iria derreter. Pegou um fósforo em seu bolso,

riscou-o em um punhado de casca de bétula que trazia consigo. Este

material queimava mais rápido do que papel e foi colocado no lugar certo,

na base da fogueira. Em seguida, alimentou a chama recém-nascida com

um punhado de relva seca e gravetos finos.

Trabalhou naquela operação lenta e cuidadosamente, consciente de

suas dificuldades e do perigo. A chama ia crescendo, cada vez mais forte; o

homem aumentou o tamanho dos gravetos. Depois, acocorou- se na neve.

Desembaraçando gravetos e palha, alimentava o fogo. Sabia que não podia

falhar. Quando está a 75 graus abaixo de zero, com os pés úmidos, um

homem não pode fracassar em sua primeira tentativa para acender fogo. Se

seus pés ainda estivessem secos, e ele fracassasse em sua fogueira, teria a

possibilidade de correr ao longo do caminho por meia milha e assim

restaurar a circulação. Mas a circulação de pés molhados e congelados não

pode ser recuperada na corrida, não a setenta e cinco graus abaixo de zero.

Quanto mais rápida a corrida, mais rápido o congelamento dos pés.

Page 126: Jack london   contos

O viajante não ignorava nada disso. Os veteranos de Sulphur Creek

lhe haviam ensinado muito no outono anterior e agora ele estava fazendo

uso dos preciosos ensinamentos. Já não sentia mais os pés. Para acender o

fogo precisara tirar as luvas, e os dedos haviam se entorpecido

rapidamente. A caminhada de quatro milhas por hora vinha mantendo seu

corpo aquecido, as batidas do coração mandando sangue para todas as

extremidades. Mas no momento em que parou, os batimentos cardíacos

diminuíram. O frio do ar tomou conta do lugar desprotegido onde ele se

encontrava, engolfando-o em rajadas mortais, fazendo seu sangue se

encolher de medo. Seu sangue estava vivo como aquele cachorro, e como o

cachorro, queria se esconder e se cobrir daquele frio amedrontador. Ao

parar de andar a quatro milhas por hora, deixara de mandar calor para a

superfície de seu corpo e agora se escondia no fundo de seu ser. As

extremidades foram as primeiras a sentir sua falta. Seus pés molhados

congelavam mais rápido e seus dedos expostos se entorpeciam, apesar de

ainda não terem começado a congelar. Nariz e face já estavam congelados,

enquanto ele podia sentir sua pele esfriando à medida que o sangue parava

de circular.

Mas estava salvo. Os dedos dos pés e o nariz ficariam apenas um pouco

queimados pelo frio, pois o fogo já estava começando a crepitar com mais

força. Ele agora o alimentava com ramos da largura de seu dedo. Mais um

minuto e começaria a usar ramos da grossura de seu pulso e aí poderia tirar

seus sapatos e meias para deixá-los secar. Deveria então massagear os pés

com neve antes de aquecê-los ao fogo. A fogueira era um sucesso. Estava

salvo. Lembrou-se dos conselhos do veterano de Sulphur Creek e sorriu. O

velho aconselhara-o a jamais viajar sozinho em Klondike quando a

temperatura estivesse abaixo de cinquenta. Pois bem, lá estava ele. Sofrera

o acidente, estava sozinho, mas conseguira se salvar. Pensava em como

certos veteranos são apavorados. Tudo o que precisava fazer era manter a

cabeça fria; estava bem. Qualquer homem de verdade poderia viajar

sozinho.

130

Page 127: Jack london   contos

Entretanto era surpreendente corno seu nariz e faces congelavam

depressa. Náo sabia que seus dedos ficariam sem vida em tão pouco tempo.

Estavam sem vida sim, pois mal podia mantê-los juntos para pegar um

graveto. Eles não mais pareciam fazer parte de seu corpo ou de si mesmo.

Ao pegar um galho precisava olhar para se certificar de que o estava

segurando mesmo. Parecia não haver mais conexão alguma entre ele e as

pontas de seus dedos.

Mas isso não importava muito. Havia o fogo que continuava animado,

as faíscas soltando-se, os gravetos a crepitar, prometendo vida, calor,

conforto. Depois de desatar os sapatos, percebeu que suas meias grossas

pareciam tecidas a ferro, de tão duras. Os cordões dos sapatos, retorcidos

como varetas de aço, estavam ásperos. O homem tentou puxá-los, com seus

dedos entorpecidos; percebendo a inutilidade do gesto, tirou a faca da

bainha.

Antes que pudesse cortar o emaranhado dos cordões, deu-se o

inesperado. Talvez fosse sua inexperiência, que provocara o doloroso

imprevisto. Não deveria — jamais — ter construído a fogueira sob aquele

pinheiro, mas sim num lugar aberto. Achara tão mais fácil, já que podia

tirar os gravetos da própria árvore, colocando-os diretamente no fogo. Os

galhos das árvores estavam carregados de gelo; sempre que ele deslocava

um ramo, ela agitava-se de modo quase imperceptível. O tremular fazia a

neve cair aos poucos, galho por galho, cada vez mais para baixo, o

deslocamento quase imperceptível crescendo pelo leve tremular. Isso foi

aumentando, envolvendo toda a árvore. Foi crescendo como uma

avalanche, e finalmente desceu com força sobre o homem e sua fogueira, e

a fogueira apagou-se. Morreu, quebrou-se toda. O manto impiedoso de

gelo ficou no lugar das solenes chamas da fogueira.

Aí, o homem assustou-se. Pensou: “Esta foi minha sentença de morte”.

Sentou-se, desorientado, olhou o lugar onde antes estava a fogueira.

Depois, sentiu uma grande calma. Talvez as velhas histórias estivessem

certas. Se contasse com um companheiro humano, não

131

Page 128: Jack london   contos

estaria em perigo agora. Seu companheiro de viagem poderia fazer fogo.

Mas ele mesmo é que teria de fazer uma nova fogueira agora, sem falhas. E

mesmo que conseguisse, muito provavelmente iria perder alguns dos dedos

dos pés, que estavam tremendamente congelados. E teriam de ficar assim

por mais um tempo até que conseguisse fazer outra fogueira.

Tais eram seus pensamentos; mas não podia parar para refletir. Não,

ocupado como estava. Fez novo arranjo na neve para armar sua fogueira

num lugar aberto, sem árvores ameaçadoras. Pegou galhos, ramos,

destroços, nas redondezas. Não pôde trazê-los com os dedos separados,

mas pegava-os com as mãos cheias. Dessa maneira vieram também alguns

raminhos podres e pedaços de musgo verde indesejáveis, mas era o melhor

que podia fazer. Trabalhou metodicamente, chegando a coletar ramos

maiores para usar quando o fogo pegasse bem. Todo o tempo o cão esteve

sentado, esperando, olhando com olhos ávidos para o seu provedor de

fogo, fogo que tardava a vir.

Quando tudo estava bem disposto, o homem tirou de seu bolso um

segundo pedaço de casca de bétula. Sabia que a tinha no bolso, e mesmo

sem ser capaz de senti-la, podia ouvir seus estalidos ao tocá- la. Por mais

que tentasse, não conseguia pegá-la. Sabia que seus pés gelavam cada vez

mais. O pensamento o fez ficar em pânico, mas procurou acalmar-se, ser a

sua própria luz... Pôs as luvas com os dentes e moveu seus braços

vigorosamente para frente e para trás em todas as direções possíveis e

impossíveis, sentado e em pé. E durante todo aquele tempo, o cão estava

sentado na neve, a cauda peluda de lobo envolvendo suas patas para

aquecê-lo, os ouvidos afinados de lobo empinando-se em atenção

enquanto observava os movimentos do homem. Este batia e rebatia as

mãos, à procura de calor. Subitamente, sentiu uma inveja quase

incontrolável de seu cão, daquela criatura quente e segura, ali perto dele,

na neve.

Depois de um tempo sentiu os primeiros longínquos sinais de vida em

seus dedos. O formigamento ia aumentando até se transfor

132

Page 129: Jack london   contos

mar em dor lancinante, mas foi recebido com alegria pelo homem. Tirou

num último desespero a luva de sua mão direita, e procurou a casca em

seu bolso. Os dedos expostos entorpeciam-se outra vez, cada vez mais.

Pegou então sua caixa de fósforos. O tremendo frio, entretanto, já tirava a

vida de seus pobres dedos. O esforço para separar um fósforo do outro fez

que todo o feixe caísse na neve. Tentou febrilmente apanhar os fósforos,

mas falhou. Aqueles dedos defuntos jamais poderiam fazê-lo. Esperou,

usando o sentido da visão, em vez do tato, e quando notou que seus dedos

estavam um de cada lado do maço ele os fechou para agarrá-lo; isto é, quis

agarrar os fósforos, mas os dedos não obedeceram ao cérebro. Calçou a

luva da mão direita, bateu-a fortemente contra o joelho. Aí, com suas

mãos enluvadas, colheu o maço de fósforos junto com um bocado de neve

e o colocou em seu colo. Grande coisa: isso não parecia ajudar muito a

resolver seu problema.

Depois de algumas tentativas, conseguiu pegar o maço nas pontas de

sua luva, e levou-o até a boca. O gelo que havia ali se rompeu, estalou

naquele violento esforço, quando o homem abriu a boca. Ondulou o lábio

superior, pegou o feixe entre os dentes superiores para separar um fósforo.

Pegou um fósforo com os dentes e jogou-o no colo. Mas do que lhe serviria

aquele fósforo que não podia pegar? Aí teve uma ideia. Pegou-o com os

dentes, esfregando-o na perna. Esfregava e esfregava o fósforo. Muitas

vezes tentou, antes que finalmente viesse a chama. Quando o fósforo

flamejou, prendeu-o firmemente em seus dentes contra a casca de bétula.

Mas o fogo eriçou-se na direção de sua fossa nasal, irritou os pulmões,

provocando uma tosse espasmódica. O fósforo tombou na neve, e

apagou-se.

As velhas histórias dos homens de Sulphur Creek eram verídicas,

pensou, com desespero ainda controlado. Após 50 graus abaixo de zero,

um homem precisava realmente andar com um companheiro. Bateu as

mãos, mas a operação falhou, não provocando em sua pele a mínima

sensação. Bruscamente despiu as duas mãos das luvas,

133

Page 130: Jack london   contos

removendo-as com os dentes. Colocou todo o maço de fósforos entre as

mãos. Como os músculos de seus braços não estavam congelados, era capaz

de pressionar as mãos com força contra os fósforos. Esfregou o maço em sua

perna. Setenta fósforos arderam! Não havia vento para apagá-los. Mantendo

seu rosto de lado para fugir da fumaça, direcionou o feixe em chamas para a

casca de bétula. Enquanto o fazia, começou a sentir alguma coisa em suas

mãos. Sua carne estava queimando. Ele podia sentir o cheiro. Bem lá no

fundo até experimentava uma leve sensação que crescia e que aos poucos foi

se tornando uma dor aguda. Ainda assim, reagiu, tentando por a chama dos

fósforos na direção da casca de bétula, que não acendia porque suas mãos

estavam no caminho.

Finalmente, quando não pôde mais se defender das queimaduras,

sacudiu as mãos, apartou-as. Os fósforos incandescentes caíram na neve;

mas a casca de bétula estava acesa. Ele começou por colocar mato seco e

gravetos bem finos na chama. Não conseguia pegá-los e escolher os

melhores pedaços, aos quais se juntavam ramos podres e musgo verde, que

tentava tirar com os dentes. Cuidava da chama o melhor que podia. Ela

significava a diferença entre a vida e a morte; não poderia se acabar. A

retirada do sangue da superfície de seu corpo fez com que ele começasse a

tremer, o que dificultava ainda mais seus movimentos. Um pedaço grande

de musgo tombou no fogo incipiente. Tentou mirá-lo e agarrá-lo com seus

dedos inertes, mas a tremedeira fê-lo atingir outro lugar. Ele rompera o

núcleo da pequena fogueira, fazendo com que os ramos incandescentes e os

gravetos pequenos se separassem e se dispersassem. Tentou novamente

reuni-los, mas não conseguiu. Um a um, viu os raminhos se apagarem em

uma nuvem de fumaça. O provedor de fogo falhara. Olhando apalermado a

seu redor, os olhos do homem deram com o cão, sentado do outro lado das

ruínas do fogo que não conseguira acender. O animal levantou-se inquieto,

movendo uma e outra pata dianteira, balançando o corpo para frente e para

trás.

134

Page 131: Jack london   contos

A presença do cão deu ao homem uma ideia. Lembrou-se que tinham

lhe contado a história de um homem que, pego em uma nevasca, para

salvar a vida, matara um novilho e entrara em sua carcaça, conseguindo

assim sobreviver à intempérie. Poderia matar o cachorro e esquentar suas

mãos no corpo quente do animal, até que o entorpecimento cessasse. Aí

poderia armar outra fogueira.

Chamou o cão, mas sua voz demonstrava uma ponta de medo que fez

o animal recuar. Jamais ouvira o homem falar daquela maneira! Sua

natureza instintiva pressentiu o perigo. Não sabia precisá-lo exatamente,

mas ele estava lá; a apreensão cresceu ainda mais em seu cérebro primário.

Estava com medo do homem. Tombou as orelhas ao som repetido da voz

trêmula do homem, continuou com os movimentos das patas e o balanço

do corpo ainda mais pronunciados, mas não se moveu em direção ao dono.

Este agora estava de quatro e se arrastava em direção ao animal. A postura

estranha o deixou ainda mais desconfiado e o cachorro se afastou.

O homem sentou-se na neve por uns instantes, lutou contra si mesmo,

procurando estabilidade emocional. Tirou as luvas grossas com a ajuda dos

dentes, ficou de pé. Olhou para baixo, procurou assegurar-se de que estava

realmente em pé, pois a ausência de sensações em seus membros deixava-o

sem ligação com o solo. Com o homem assim em pé, numa posição

conhecida, o cão sentia-se mais à vontade. Quando o homem falou com

voz de comando, as sílabas parecendo chicotadas, o cão voltou à sua

costumeira obediência e caminhou em direção ao dono, mais e mais perto

dele. Aí o homem descontrolou-se, seus braços foram em direção ao cão.

Experimentou genuína surpresa quando verificou que suas mãos não

podiam agarrar o animal, que não sentia seus dedos, completamente

adormecidos pelo frio. Esquecera-se, por uns instantes, de que os seus

dedos estavam gelados e tornavam-se cada vez mais duros. Antes que o

animal pudesse seguir o caminho da fuga, o homem rodeou seu corpo com

os braços. Sentou-se na neve e agarrou firmemente o cão que rosnava,

gania, debatendo-se, muito aflito.

135

Page 132: Jack london   contos

Foi tudo que o homem conseguiu. Rodeando o cão com os braços,

permaneceu ali, sentado. Pensou que não poderia matar o animal. Não

havia meios para fazê-lo. Com os dedos congelados, suas mãos jamais

poderiam tirar a faca da bainha, apunhalar o animal. Soltou-o e o cão se

afastou rapidamente, a cauda entre as patas, ainda rosnando. Agora a uma

distância segura, olhava com curiosidade para o homem, as orelhas

aguçadas, em guarda.

O homem olhou para baixo, para suas mãos, procurando localizá- las.

Lá estavam elas, no final das extremidades de seus braços. Achou muito

interessante precisar usar os olhos para localizar uma parte do corpo.

Tornou a movimentar os braços com força, batendo suas mãos enluvadas

nos lados de seu corpo. Ficou assim, fazendo movimentos com toda força,

por cinco minutos, até seu coração bombear sangue suficiente para a

superfície, para parar com aqueles tremores. Mesmo com tudo isso

continuou sem sentir as mãos. Tinha a impressão de que eram pesos

mortos e de que não mais poderia encontrá-las.

Um receio de morrer, cru e opressivo, tomou conta do homem. O

medo aumentou mais ainda ao perceber que agora o que estava em jogo

não era mais perder ou não dedos dos pés e das mãos, mas sim a própria

vida. Tinha todas as cartas contra si. Completamente em pânico tomou a

trilha velha e estreita do lago e começou a correr, o cachorro a segui-lo de

perto. Correu às cegas, sem rumo, somente movido por um medo que

nunca sentira antes na vida. Pouco a pouco, à medida que afundava e

lutava contra a neve, começou a ver as coisas mais claramente, as pequenas

colinas, as reservas de madeira, as árvores sem folhas e o céu. A corrida fez

com que se sentisse melhor. Não estava mais tremendo. Quem sabe se

continuasse correndo sem parar, poderia descongelar ou até chegar ao

acampamento com os rapazes. Claro que perderia alguns dedos dos pés e

das mãos e parte de sua face, mas os rapazes tomariam conta dele, salvando

o resto de seu corpo que chegasse ao acampamento. Mas também poderia

nunca mais ver os rapazes ou chegar a lugar algum. Ainda faltava

136

Page 133: Jack london   contos

muito para caminhar e o frio já tomava conta dele todo; logo estaria

morto. Entretanto, tentou manter tais pensamentos afastados; não poderia

deixar-se dominar por eles. Lutava ferozmente contra tais ideias, mas elas

gritavam mais e mais alto em sua mente, exigindo ser ouvidas; tentava

desesperadamente manter seu cérebro ocupado com outras coisas.

Impressionou-se muito ao verificar que podia correr com os pés assim

gelados, que não podia senti-los quando tocavam no chão, suportando o

peso morto de seu corpo. Sentia-se flutuando, sem nenhuma conexão com

a terra. Certa vez vira um Mercúrio com asas; talvez ele se sentisse assim,

flutuando acima da terra.

Sua ideia de correr sempre até encontrar o campo e os rapazes tinha

somente um problema: faltava-lhe vigor. Por várias vezes tropeçou até

que, finalmente, vacilou, cambaleou e caiu. Quando tentou levantar-se,

falhou na tentativa. Deveria ficar ali sentado, descansar, decidiu. Da

próxima vez deveria andar, ir-se... Ao sentar-se, recuperando o fôlego,

pôde notar que sentia certo confortável calor. Não tremia mais.

Parecia-lhe que aquele bom calor caminhava para seu peito. Quando,

porém, tocou seu nariz e sua face, não conseguiu senti-los. Correr não faria

com que descongelassem. Tampouco suas mãos e pés se recuperariam com

a corrida. Não poderia descongelá- los. Pensou que as partes congeladas de

seu pobre corpo poderiam aumentar. Tentou pensar em outra coisa,

esquecer aquela ideia; evitava avidamente o pânico e o sentia, com medo.

Aí o pensamento absorveu-o, dominou-o, persistiu, deu-lhe a visão

horrível de seu corpo completamente congelado. Mas aquele pensar era

muito para seu cérebro enfraquecido. Fez outra tentativa para correr,

correr ao longo do caminho. Houve um instante em que diminuiu um

pouco seus passos, pôs-se a caminhar, mas a ideia do congelamento

espraiou-se dentro dele e fê-lo correr ainda mais.

E, todo o tempo, o cão lobo corria em seu encalço, bem junto a seus

pés. Quando o homem caiu uma segunda vez, o animal sentou-

137

Page 134: Jack london   contos

se, observando-o curiosamente, a cauda enrolada em torno das patas

dianteiras. O calor e a segurança daquele animal fizeram com que o

homem, irado, o insultasse até ver suas orelhas pontudas se abaixarem para

trás. Aí veio o tremor, súbito, insidioso. Perdia sua batalha contra o frio,

que avançava por seu corpo por todos os poros. Tentou continuar a andar e

andar, mas logo caiu de bruços. Era o pânico derradeiro. Quando

recuperou o fôlego e o controle, sentou-se novamente, entretendo sua

mente com a ideia da morte... Procurava dignidade para morrer. Contudo,

a ideia não o tomou logo. Pensava que tolo fora, correndo sem rumo, como

uma galinha, ao ter a cabeça cortada do corpo. Já que estava fadado a

congelar, então que assim fosse. Foi com essa nova paz de espírito que

recebeu os primeiros sinais de desfalecimento. Até que não era tão mal se

dirigir à morte no suave torpor do sono que se apoderava dele. O

congelamento não era assim tão doloroso como muita gente julgava. Havia

modos piores de morrer.

Imaginou como seria quando os rapazes encontrassem seu corpo

gelado no dia seguinte. De repente, viu-se a si mesmo com eles, a andar

pela trilha, procurando seu corpo. Ainda com eles, numa curva do

caminho, pôde ver-se caído na neve. Ele já não se pertencia, pois podia

contemplar-se; estava em pé junto aos rapazes, olhando seu corpo inerte

no chão. Está um frio de doer, pensou. Quando voltasse para os Estados

Unidos contaria a seus amigos como era fria a terra que visitara. Como

num sonho, imaginava-se em sua terra, contando a seus compatriotas o

frio que experimentara; aí viu o veterano de Sulphur Creek. Podia vê-lo

claramente, sentado confortavelmente no calor, fumando um cachimbo.

“Você estava certo, meu velho, estava certo”, murmurou para o

veterano de Sulphur Creek.

Então o homem foi se abandonando ao sono mais confortável e

satisfatório que jamais conhecera. O cão permanecia sentado à sua frente,

fitando-o. Esperava. O dia breve terminava num longo e lento crepúsculo.

138

Page 135: Jack london   contos

Por ali não se viam sinais de fogo, nem intenções de fazê-lo. Além do

mais, nunca antes o cão lobo vira um homem sentado assim na neve,

inútil, sem tentar fazer uma boa fogueira. Como o crepúsculo se adensasse,

o cão, ansioso, desejou o fogo mais do que nunca. Estendeu as patas

dianteiras com um ganido suave e, antecipando o falar ríspido do dono,

colocou as orelhas para trás. Mas o homem permaneceu mudo. O cão

então ganiu mais alto. Custou para se arrastar, cauteloso, para perto do

homem. E foi aí que descobriu o cheiro da morte. Isso fez com que o

animal se eriçasse, recuando. Ficou ali ainda mais um pouco, uivando para

as estrelas que cintilavam, dançavam, rodopiavam no firmamento gelado.

Finalmente virou-se e trotou em direção à trilha conhecida do

acampamento. Lá haveria outros provedores de fogo e de comida.

139

Page 136: Jack london   contos
Page 137: Jack london   contos

capítulo 8

AMOR À VIDA

Eles caminhavam com dificuldade pela margem do rio gelado. O

homem que vinha mais à frente tentava em váo se equilibrar pelas fendas

de rocha. Eles estavam cansados e fracos, e suas faces traziam as marcas da

paciência conseguida às custas de muitas dificuldades vividas. Carregavam

seus pesados cobertores amarrados às costas. Faixas que passavam pela

testa também ajudavam a distribuir melhor o peso das costas. Cada um

deles trazia um rifle. Andavam inclinados para frente, com os olhos

pousados no chão.

“Gostaria de ter aqui conosco apenas duas cargas da munição que

temos escondida”, disse o segundo homem.

Sua voz era dura e sem expressão. Ele falava sem entusiasmo. O

primeiro homem nada disse; mancava pelo caminho esbranquiçado

formado pela espuma da água nas rochas.

O outro homem o seguia de perto. Eles não tiraram os sapatos, pois a

água estava muito fria; tão fria que suas canelas doíam e seus pés estavam

entorpecidos. Havia vezes em que a água batia com tanta força nos joelhos

que com dificuldade se mantinham em pé.

O homem que seguia o companheiro resvalou em uma superfície

Page 138: Jack london   contos

mais lisa, quase caiu. Recuperou-se com violento esforço, ao mesmo tempo

em que soltava um grito agudo de dor. Ele parecia prestes a desmaiar, a

máo livre estendida à frente, como que a buscar suporte no ar. Com muita

dificuldade conseguiu se equilibrar, mas logo balançou e quase caiu. Entáo

ele parou por um momento, como que a debater consigo mesmo, e olhou

para o outro homem. Este, em nenhum momento se virara para ver o que

acontecia.

“Bill, torci meu tornozelo”, finalmente consegui dizer.

Bill continuou a caminhar pelas águas espumosas. Ele náo olhou para

trás. O homem o viu ir embora e apesar de sua face manter-se inexpressiva

como sempre, em seus olhos podia-se ver a dor de um cervo ferido.

O outro se arrastava em direção à outra margem, e continuou sempre

em frente, sem jamais olhar para trás. O homem na água o viu ir-se

embora. Seus lábios tremeram um pouco, movendo seus bigodes

castanhos. Umedeceu os lábios com a língua.

“Bill!” ele gritou. Era o grito de misericórdia de um homem forte, mas

Bill não se voltou. O homem o viu afastar-se, mancando grotescamente em

direção à colina que se destacava à frente. Ele o observou até que

finalmente desapareceu do outro lado. Só então ele tornou seu olhar para

perto, para a fatia de mundo que lhe restara agora que Bill havia ido

embora.

Próximo do horizonte, mal se divisava o Sol, obscurecido pelas

disformes cerrações e vapores, que davam a impressão de massa e

densidade, sem contornos tangíveis. O homem bruscamente puxou seu

relógio. Apoiava o seu corpo quase numa só perna. Eram 4 horas da tarde.

Era tudo o que poderia saber de datas, pois já fazia uma semana ou mais

que já não mais sabia se estavam próximos ao fim de julho ou começo de

agosto. Sabia, contudo, que o Sol assinalava-se fortemente em direção do

noroeste. Olhou para o Sul. Sabia que em algum lugar além daquelas frias

colinas desoladas ficava o lago do Grande Urso. Sabia ainda, que, naquela

direção, o Círculo Ártico

142

Page 139: Jack london   contos

cortava o Barrens Canadense. Este riozinho, no qual ele permanecia, era

um alimento para o rio Mina de Cobre, que se voltava em direçáo Norte, e

desaguava no do golfo da Coroação e depois no Oceano Ártico. Jamais

estivera por aquelas paragens, mas já a vira tudo, certa vez, num mapa da

Companhia da baía de Hudson.

Novamente os seus olhos contemplaram, atônitos, o seu restrito

mundo. Não era um espetáculo agradável. Por onde a vista alcançasse

podia ver a linha obscurecida do céu. As colinas eram todas baixas; não se

viam árvores, arbustos ou relva. Nada mais do que uma terrível desolação

que lhe povoava de medo os próprios olhos.

“Bill, Bill!” ele ainda chamou baixinho, “Bill!”

Acocorou-se então naquela água espumante, como se a vastidão o

pressionasse completamente, em toda a sua força brutal, esmagando-o em

todo seu horror complacente. Começou a sacudir-se como que em um

ataque, até que a arma lhe tombou da mão com um forte ruído. Isto serviu

para fazê-lo cair em si. Lutando contra o temor, procurou recuperar o

sangue frio. Tateando na água fria, recuperou a sua arma. Suspendeu

fortemente o seu fardo mais para o ombro esquerdo, assim como se

tentasse aliviar o tornozelo ferido. Aí se dirigiu, vagarosa e

cuidadosamente para a margem, procurando vencer a dor.

Não parou. Com desespero que já se tornava quase loucura procurou

não pensar na dor e acelerou os seus passos rumo à crista da colina...

Aquela mesma montanha onde Bill desaparecera. E o fazia de modo ainda

mais grotesco e cômico que o seu companheiro que coxeava. Assim era seu

cambalear provocado pelo ferimento. Quando chegou ao topo, pôde ver

uma grande planície, vazia e desprovida de vida. Lutou novamente contra

o pânico. Desceu. Sustentava a carga

- o mais que lhe era permitido — em seu ombro esquerdo.

O fundo do vale estava realmente encharcado de água, e a superfície

de musgo a absorvia como esponja. A água esguichava sob seus pés; cada

passo era difícil, pois o musgo custava a soltar a pressão dos pés contra o

chão. Tomou o caminho rumo às pegadas

143

Page 140: Jack london   contos

de Bill, nas rochas que se sobressaíam dentro daquele mar verde de musgo.

Apesar de só, ele não estava perdido. Além, muito além, ele sabia que

iria encontrar um lugar onde abetos mortos, muito pequenos, margeavam

um laguinho, o tichinnichilie, na linguagem nativa, “o lugar dos pequenos

gravetos”. Dentro daquilo tudo florescia um diminuto arroio de águas

límpidas. Havia alguma vegetação por lá, disso ele se lembrava bem, mas

não madeira. Ele poderia seguir aquela nascente até sua primeira

bifurcação. Então precisaria atravessar a bifurcação até o próximo riacho,

que seguiria para oeste até desaguar no rio Dease, onde finalmente

encontraria um depósito escondido sob um monte de pedras, encimado

por uma canoa emborcada. No esconderijo ele poderia encontrar munição

para abastecer seu revólver e instrumentos de pesca, tudo que era

necessário para se conseguir bom alimento. Ele também poderia encontrar

um pouco de farinha, um pedaço de bacon e um punhado de feijões.

Bill talvez o estivesse esperando, e ambos poderiam rumar para o Sul

em direção ao Dease até o lago do Grande Urso. E no lago eles ainda iriam

cada vez mais ao sul até chegar ao Mackenzie. De lá eles poderiam seguir

sempre e sempre, cada vez mais para o sul, correndo do inverno frio e suas

geleiras, do impiedoso vento frio e cortante. Lá iriam eles rumo a algum

posto da Companhia da baía de Hudson em lugares mais quentes. Nesse

lugar eles poderiam encontrar madeira boa e generosa e alimento farto.

Estes eram os pensamentos do homem a caminhar sempre para diante.

E tão difícil quanto a caminhada era para seu corpo, assim também se

esforçava em seus pensamentos, tentando pensar que Bill não o desertara,

que Bill esperaria por ele no esconderijo. Ele precisava pensar assim, pois

do contrário não haveria sentido na sua luta para se manter em pé e o que

lhe restaria seria somente deitar e morrer. E enquanto o Sol se punha,

desaparecendo a noroeste, ele pensava no caminho para o sul, em cada

pequeno trecho da jornada

144

Page 141: Jack london   contos

planejada por ele e por Bill, antes da chegada do inverno. Ele também

pensava na comida do esconderijo e na comida da Companhia da baía de

Hudson. O homem não comia há dois longos dias e fazia um tempo maior

que ele não comia nada que lhe satisfizesse o paladar. Frequentemente

parava e apanhava pálidos frutos silvestres, punha- os na boca,

mastigava-os demoradamente. Aqueles frutos nada mais eram que

sementes fechadas em água... Na boca, a água derretia-se, as sementes

tinham um forte gosto amargo. O homem sabia que aquelas frutinhas não

sustentavam, mas ele as mastigava pacientemente, com uma esperança

que desafiava toda lógica e experiência.

Lá pelas nove horas, ele machucou seu dedão na ponta de uma rocha.

Desgastado, enfraquecido, cambaleou e caiu. Ali ficou por certo tempo,

sem movimento algum. Depois, soltando sua bagagem, sentou-se. Ainda

não estava muito escuro e, naquela demora crepuscular, andou às

apalpadelas entre as rochas para pegar musgos secos. Quando conseguiu

boa quantidade, fez uma fogueira, um fogo tímido, fumacento. Colocou

então água para ferver em uma lata.

Abriu sua bagagem e a primeira coisa que fez foi contar os fósforos.

Ali estavam sessenta e sete deles. Contou-os novamente, para certificar-se.

Dividiu-os em diferentes porções, envolvendo-os em papel impermeável,

dispondo um feixe na sua bolsa vazia de tabaco, um outro feixe dentro de

seu chapéu, e o terceiro embaixo da camisa, junto ao peito. Depois de tudo

feito, o pânico caiu sobre ele e contou todos os fósforos novamente. Ali

estavam, ainda, sessenta e sete.

Procurou esquentar-se no fogo. Seus sapatos estavam encharcados e

em pedaços. As meias encontravam-se estragadas, quase desfeitas. Seus pés

estavam machucados de dar dó. Seu tornozelo latejava incon-

trolavelmente e havia inchado muito, ficando quase do tamanho do

joelho. Despedaçou uma tira de seu cobertor e amarrou o tornozelo

fortemente com ela. Cortou outras tiras e com elas envolveu seus pés,

numa tentativa de substituir as meias e mocassins imprestáveis.

145

Page 142: Jack london   contos

Depois, bebeu a água quente da lata, deu corda no relógio e enrolou-se nos

cobertores para dormir.

Dormiu um sono de pedra. A breve escuridão da meia-noite veio e

foi-se. O Sol apareceu a noroeste, ou melhor, o dia amanheceu, pois o Sol

estava escondido por nuvens cinzentas.

Eram seis horas quando acordou quietamente, deitado de costas.

Olhou atento para o céu carrancudo, sentiu fome. Quando rolou sobre um

cotovelo, sentiu um forte resfolegar... Viu que partia de um touro caribu,

que o olhava com atenta curiosidade. O animal não estava muito distante

do homem. Este logo pensou num suculento bife caribu... bem fritinho no

fogo. Mecanicamente, pegou sua arma sem munição, apontou o tiro. O

touro bufou fortemente, e fugiu, o ruído de seus cascos contra as rochas

fez-se ouvir na planície.

O homem amaldiçoou sua arma vazia e a atirou longe. Gemeu alto,

naquele esforço de luta para se levantar. Era uma trabalhosa e lenta tarefa.

As juntas pareciam dobradiças enferrujadas. Trabalhavam asperamente em

seus encaixes com muita fricção, e cada dobra ou desdobra somente

acontecia por consequência de uma férrea vontade. Quando finalmente o

homem ganhou os seus pés, gastou um minuto ou mais se recompondo. Só

depois de algum tempo conseguiu colocar- se totalmente em pé como um

ser humano deve ficar.

Arrastou-se, a seguir, para uma pequena colina e observou a paisagem.

Não havia árvores, arbustos. Tudo que se via era o mar de musgo cinzento

povoado por rochas cinzentas, riachos cinzentos, lagos cinzentos. O céu

também tinha a mesma cor, dissemos. Não havia naquele firmamento

escuro qualquer insinuação de Sol. O homem não tinha a menor ideia de

sua direção, não sabia mais onde estava o Norte e nem se lembrava por qual

lado havia chegado àquele lugar na noite anterior. Mesmo assim, de

alguma forma ele sabia que não estava perdido. Logo ele estaria na “terra

dos pequenos gravetos”. Ele intuía que era só ir um pouco para a esquerda,

não muito longe, para além daquela colina.

146

Page 143: Jack london   contos

Procurou arrumar sua bagagem para retomar a jornada. Certificou-se

que ainda possuía as três separadas porções de fósforos, mas náo mais

parou para contá-los. Demorou-se um pouco a decidir se levaria ou não

um saquinho fechado. Ele não era muito grande, podendo ser escondido

entre suas mãos. Ele sabia que aquela peça pesava cerca de sete quilos,

tanto quanto todo o resto de sua bagagem, o que o preocupava. Finalmente

colocou-o de lado e pôs-se a fechar a bagagem. Parou então para olhá-lo.

Pegou-o rapidamente, olhando desafiadoramente ao redor, como se aquela

desolação estivesse tentando roubar dele o objeto. Quando finalmente se

levantou para a penosa jornada do dia, levava consigo o saquinho na

bagagem.

Seguia seu caminho um pouco inclinado para a esquerda, parando às

vezes para comer frutinhas do mato. Seu tornozelo endurecera, coxeava

ainda mais, mas a dor ali não era nada comparada à dor da fome. Uma fome

cruciante que lhe doía, roía as suas entranhas, obscurecia-lhe a mente. Os

frutos silvestres náo podiam lhe satisfazer o enorme apetite, ao contrário,

deixavam a língua e o céu da boca irritados.

Caminhou sobre um vale cheio de aves. Volteavam com asas nervosas

pelas rochas e musgos. “Ker-ker-ker”, elas gritavam. O homem atirou-lhes

pedras, mas sem conseguir atingi-las. Colocou o seu fardo no chão, parou.

Qual gato a espreitar sua presa procurou agarrá-las. As ásperas rochas

cortaram suas pernas até deixar atrás de si um rastro de sangue, mas a

agonia da dor dos ferimentos não se comparava à dor da fome. Ele se

arrastava pelo tapete de musgo, saturando suas roupas de água e

deixando-o com frio. Em seu anseio febril por comida parecia não sentir

qualquer outro desconforto. E sempre as aves lhe fugiam, agitando suas

asas, gritando como que a zombar de sua imperícia. Ele as amaldiçoou e

gritou.

Houve um momento em que ele conseguiu se aproximar de uma ave

que parecia dormir. Ele só conseguiu vê-la ao chegar bem perto.

Rapidamente tentou agarrá-la, mas ela foi mais rápida. O animal

147

Page 144: Jack london   contos

alçou voo, deixando em sua máo três penas da cauda. Enquanto a via voar

ele a odiou como se ela lhe tivesse feito algum terrível mal. Entáo, colocou

novamente a bagagem no ombro.

Quando o dia já estava alto, foi para os vales, onde a caça era mais

sortida. Um grupo de caribus passou, uns vinte animais, bem na mira do

rifle. O homem sentiu o selvagem anseio de perseguí-los. Uma raposa

preta, logo a seguir, passou, trazendo uma ave na boca. O homem gritou.

Foi um grito amedrontador, capaz de assustar a raposa, mas náo de fazê-la

soltar a presa.

Pela tardinha, ele seguiu o caminho de um riacho. As águas turvas de

limo se moviam por entre grupos de vegetaçáo esparsa, onde descobriu

algo; parecia ser uma cebola de laguna, náo maior do que um sarrafo. Mas

era macia, e os seus dentes esmagaram-na, como se fosse o melhor

alimento do mundo! Entretanto, as suas fibras cediam. Eram apenas

filamentos cheios de água, assim como as frutas silvestres do musgo.

Atirou fora a sua carga e adentrou a áspera relva, arrastando-se, andando

de joelho, a mastigar qual um bovino.

O homem estava esgotado. Completamente. Sentia desejos de des-

cansar, dormir. Mas precisava seguir em frente, já não mais por causa de

seu anseio de chegar à “terra dos pequenos gravetos”, mas sim atiçado por

uma fome cruel. Procurou por charcos onde poderia encontrar sapos,

cavou a terra com as unhas buscando minhocas, mesmo sabendo que não

encontraria nada disso tão ao norte como estava.

Olhou cada laguinho em vão até que, quando escureceu, conseguiu

descobrir um solitário peixe na laguna espumosa... Enfiou o braço lá,

ficando com água até o ombro para pegá-lo. Estendeu ambas as mãos, e

remexeu naquele lodo mole, até suas maiores profundezas. Em seu

entusiasmo, caiu, molhando-se até a cintura. A esta altura a água estava

muito turva, e ele não podia ver o peixe. Esperou até ela sedimentar.

A perseguição foi retomada, até a água ficar lodosa novamente. Dessa

vez não pôde esperar, tão nervoso estava. Começou febrilmente a esvaziar

o charco com sua lata de cozinhar. Fazia-o tão desesperado

148

Page 145: Jack london   contos

que atirava a água perto demais e ela acabava voltando para o charco.

Tentou então trabalhar com mais cuidado, esforçando-se ao máximo para

manter a calma, apesar de seu coração estar batendo furiosamente contra

o peito e suas mãos tremerem. No final de meia hora, o charco estava

quase seco; não dava nem para encher uma xícara. E náo havia lá nenhum

peixe. Encontrou foi disfarçada fenda entre as pedras - por lá o peixe

deveria ter escapulido para a lagoa maior. Soubesse ele da existência da

fenda, ele a teria fechado, com pedras e o peixe agora seria seu.

Com esse pensamento ele se jogou sobre a terra úmida e gritou.

Primeiramente, gritou baixo, para si mesmo, depois mais alto, para a

impiedosa desolação que o rodeava. Por um longo tempo depois seu corpo

estremecia com os soluços.

Depois, fez fogo e esquentou-se bebendo quartos de água quente.

Acampou em uma fenda de rocha, da mesma maneira que fizera na noite

anterior. A última coisa que fez foi ver se seus fósforos estavam secos e dar

corda no relógio. Os cobertores estavam úmidos e viscosos. Seu tornozelo

latejava de dor. Porém, tudo que sabia é que tinha muita fome e, durante

seu sono agitado, sonhou com alegres festins, com banquetes, em que o

alimento era servido e arrumado de todas as formas imagináveis.

Acordou com frio e sentindo-se mal. Não se via o Sol. O cinzento da

terra e do céu tinha se tornado mais profundo. Um vento frio soprava e os

primeiros flocos de neve embranqueciam os topos das colinas. O ar ao seu

redor evaporou quando ele fez fogo. Esquentou mais água. A neve parecia

úmida, meio chuvosa, e os flocos mostravam-se largos, encharcados.

Primeiramente, derretiam assim que entravam em contato com o solo,

mas depois mais neve foi caindo, cobrindo tudo, apagando o fogo e

destruindo todo o suprimento de musgo seco, usado como combustível.

Este era o sinal para pegar a bagagem e seguir adiante, não sabia muito

bem para onde. Já não se preocupava mais com a “terra

1<S9

Page 146: Jack london   contos

dos pequenos gravetos”, nem com Bill nem com o esconderijo sob a canoa

emborcada perto do rio Dease. Estava era possuído pelo verbo COMER,

faminto até não poder mais! Já não importava mais o caminho que

percorresse se tão somente ele o levasse para onde houvesse comida.

Percorreu o caminho úmido da neve em direção aos frutos silvestres do

musgo. Tateou até achá-los e tirou o úmido musgo pela raiz. Mas aquilo

não tinha gosto e náo o satisfez. Encontrou uma erva de gosto azedo e

comeu tudo que encontrou dela. Não havia muito, pois a maior parte já

estava escondida por várias camadas de neve.

O homem não fizera o seu fogo para aquela noite, e não tinha, assim,

água quente. Enfiou-se embaixo de suas cobertas, procurou dormir aquele

intercalado e faminto sono. A neve transformou-se numa chuvinha má,

muito fria. Ele acordou muitas vezes sentindo-a bater em seu rosto.

Despontou mais um dia, cinzento e sem sol. A chuva havia passado e com

ela a fome do homem. Quisera tanto se alimentar, que o desejo o

exaurira... Havia um peso, uma dor surda em seu estômago, mas ele não se

preocupou muito com isso. Sentia-se mais realista, racional e voltou a

interessar-se pela “terra dos pequenos gravetos” e pelo esconderijo junto

ao Dease.

Rasgou em tiras o que restava de um de seus cobertores para enrolá-las

em seus pés que sangravam. Também amarrou seu tornozelo machucado e

preparou-se para mais um dia de jornada. Quando foi pegar sua bagagem,

pensou se ficaria ou não com seu saquinho de sete quilos e acabou indo

embora com ele.

A neve dissolvera-se completamente pela chuva; somente os topos das

colinas ainda se mostravam brancos. O Sol saiu, ele prosseguiu seu

caminho procurando localizar-se pelos pontos cardeais; contudo, sentiu,

agora sabia, que estava perdido. Pode ser que enquanto vagava no dia

anterior em busca de comida tivesse se desviado demais para a esquerda.

Tentou andar mais para a direita para compensar seu erro, procurando

achar seu caminho.

150

Page 147: Jack london   contos

Apesar das dores de fome terem passado percebeu que estava cada vez

mais fraco. Parava para frequentes descansos, quando comia frutas

silvestres de musgo e procurava comida em meio à vegetação. Sentia a

língua seca e grande, esta parecia coberta por uma fina camada de pelos.

Sentia um gosto amargo na boca. Seu coração também começou a

assustá-lo: trabalhava irregularmente. Quando andava, punha-se a bater

cada vez mais e mais rápido, as batidas subindo mais e mais para a garganta

até deixá-lo sem ar. Sentia-se então desfalecido e atordoado.

Pelo meio do dia encontrou dois peixes num charco. Agora ele estava

mais calmo, sabia que não poderia esvaziá-lo. Conseguiu pegá- los com sua

lata de cozinhar. Eles não eram maiores que seu dedinho, mas ele não

estava com muita fome mesmo. A dor surda em seu estômago tornara-se

menor e menor. Parecia que seu estômago cochilava. Comeu os peixes

crus, mastigando-os cuidadosamente, já que comer era um ato, agora, de

puro raciocínio. Mesmo que não mais sentisse desejo de comer, sabia que

era preciso fazê-lo para sobreviver.

À noite ele pegou mais três peixinhos. Comeu dois, deixando o

terceiro para seu café da manhã. O Sol havia secado algumas porções de

musgo e ele pode esquentar água para se aquecer. Ele não cobrira mais que

dezesseis quilômetros naquele dia. E, no próximo, caminhando o máximo

que o seu coração desritmado permitia, andou não mais do que oito. Mas o

seu estômago não lhe deu nenhum problema; parecia dormir. O homem

achava-se em um estranho lugar, com muitos caribus. Havia também

muitos lobos. Seus uivos assolavam o lugar e ele viu três deles

atravessarem seu caminho.

Mais uma noite; e na manhã seguinte, sentindo-se mais racional do

que antes, desatou a tira de couro que prendia o pequeno saco escondido.

De sua boca aberta, veio uma amarelada corrente de ouro em pó, de

pepitas douradas. Dividiu o ouro em duas partes, ocultando uma delas na

fenda proeminente de uma rocha, depois de embrulhá-lo em um pedaço

de cobertor. Colocou a outra parte no saquinho. Começou

151

Page 148: Jack london   contos

a cortar tiras do último cobertor para os pés. Pegou a sua arma, já que havia

muitos cartuchos ainda naquele esconderijo do Dease. Era um dia de

intenso nevoeiro e veio chamá-lo novamente uma grande fome. Sentia-se

fraco e com muita vertigem que, por três vezes, chegou a cegá-lo.

Tropeçava e caía muito agora e foi num desses tombos que descobriu um

ninho de aves. Havia quatro filhotes recém-nascidos, com um dia -

pequenas chamas de vida pulsando, mal davam para um bocado; comeu-os

avidamente, sentindo a vida pulsar dentro de sua boca bem recheada.

Esmagou os filhotes como se eles fossem cascas de ovo contra seus dentes.

A mãe surgiu, esvoaçou ao redor, com agudos gritos de alarma. Usou sua

arma qual um porrete, mas não conseguiu atingi-la; ela logo se colocava

fora de seu alcance.

Jogou pedras em sua direção, e por pura sorte acabou quebrando uma

de suas asas. A ave alvoroçou-se, procurou fugir correndo, a arrastar a asa

quebrada. O homem ia atrás.

Os pequenos filhotes somente despertaram sua fome canibalesca, qual

um aperitivo. Saltou em direção da mãe, balançando-se desajeitadamente

com seu tornozelo ferido, jogando pedras e gritando roucamente. Outras

vezes, saltava, vacilava... Mas finalmente o atordoamento o tomou.

A perseguição o levara a um chão pantanoso, no seio do vale.

Encontrou pegadas que não eram suas no musgo encharcado. Poderiam ser

de Bill. Mas ele não podia parar, pois a ave mãe estava fugindo. Ele

precisava pegá-la primeiro, depois voltaria para investigar as pegadas.

Ele cansara a ave mãe, mas também se esgotara. Ela ofegava, deitada de

lado. Ele ofegava na mesma posição, pertinho dela, incapaz de se mover

para capturá-la. E à medida que ele se recuperava ela se recuperava

também e cada vez que ele estendia a mão para pegá-la ela se afastava. A

caçada recomeçou. A noite chegou e a ave escapou.

O homem, tropeçando de fraqueza, tombou para frente, machucando

sua face, a mochila nas costas. Não se moveu durante bom

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Page 149: Jack london   contos

tempo. Então, rolou para um lado, deu corda no relógio e assim ficou até o

nascimento de mais uma manhã.

Outro dia de névoa. Metade do seu último cobertor envolvia-lhe os

pés. Não conseguiu seguir a trilha de Bill. Não importava mais. A única

coisa que agora o dominava fazendo-o prosseguir era a fome. Podia ser que

Bill também estivesse perdido como ele. Já era meio dia e a carga tornou-se

opressiva. Novamente, dividiu o ouro, dessa vez espalhando a outra

metade pelo chão. Durante o resto do dia acabou jogando todo o ouro.

Agora tudo o que carregava era o meio cobertor, a lata de cozinhar e o

rifle.

Uma alucinação começou a transtorná-lo. Tinha certeza que ainda

possuía um cartucho de munição. Estava escondido no rifle e por isso ele

não havia visto. Por outro lado, todo o tempo ele sabia que seu rifle estava

vazio. Mas a alucinação persistia. Ele lutou contra ela horas a fio até

finalmente abrir o rifle e confrontar-se com o vazio. O desapontamento

foi tão amargo como se ele realmente esperasse encontrar o cartucho.

Arrastou-se com dificuldade por cerca meia hora, até que a alucinação

tomou-o novamente. Outra vez, lutou contra ela e ainda assim ela

persistia. Até que, completamente tomado, abriu o seu rifle para se

convencer de quantas balas havia ali. Sua mente começava a vagar para

bem longe de onde estava; caminhava vagarosamente qual autômato,

estranhas ideias o enervavam, entranhando-se em seu cérebro como

vermes. Mas aquelas excursões para além do real eram de breve duração, já

que a dor da fome sempre o chamava de volta. Cambaleou, agitou-se,

ainda a tropeçar; parecia um bêbado. Ante ele, estava agora, um cavalo!

Um cavalo realmente. Não pôde acreditar em seus olhos. Uma densa

neblina tudo envolvia, entremeada com pontos brilhantes de luz. Esfregou

os olhos com sofreguidão para melhorar a visão, e não mais viu o cavalo;

agora era um grande urso castanho. O animal estudava-o belicosamente,

com curiosidade malsã.

43

Page 150: Jack london   contos

O homem pegou sua arma e colocou-a em posição de tiro antes de cair

em si. Abaixou-a e pegou a faca de caça que trazia presa na cintura. Diante

dele havia carne e vida. Estudou a lâmina da faca e ela estava afiada. A

ponta também estava afiada. Poderia atirar-se contra o urso e matá-lo. Mas

em seus ouvidos começou aquele “tump, tump, tump”. Sentiu a pressão em

seu cérebro, o crepitar das vertigens que o iam tomando, tomando

vagarosamente.

A sua desesperada audácia ia dando lugar a um imenso medo. Em sua

enorme fraqueza, o que fazer quando fosse atacado? Colocou-se em sua

posição mais impositiva, agarrando com firmeza a faca. O animal avançou

desajeitadamente, levantou-se e emitiu um fraco rosnado. Se o homem

corresse, o animal iria atrás. Mas o homem não correu. Animava-o a

coragem que advém do terror. Também rosnou selvagemente, terrível,

demonstrando todo o medo de sua vida ancestral.

O urso dirigiu-se para um lado qualquer, rosnando, apavorado pela

misteriosa criatura que ali aparecera, em pé e sem medo. Mas o homem

não se movia, precavido. Ficou qual uma estátua, até que o perigo passou;

depois, atirou-se contra o úmido musgo, tremendo.

Levantando-se, continuou seu caminho sentindo um novo tipo de

medo. Já não era mais medo de morrer passivamente por carência de

alimento. Dominava-o agora o terror de ser destruído violentamente antes

que a fome lhe destruísse cada partícula de luta por sobrevivência. E havia

lobos. Por trás, pela frente, por todos os lados daquela desolação vinham

seus uivos, tecendo o ar numa teia de ameaça opressiva tão tangível que ele

poderia tocá-la como às paredes de uma tenda.

De quando em quando os lobos em grupos de dois ou três, cruzavam o

seu caminho. Mas eles logo procuravam afastar-se. Eles não estavam em

número grande o suficiente e, além do mais, ocupavam-se em caçar

caribus. Estes não lutavam da forma que aquela estranha criatura, que

andava ereta e poderia arranhar e morder.

154

Page 151: Jack london   contos

Nas últimas horas da tarde, pisou em ossos espalhados; ali, os lobos

tinham feito sua matança. Os despojos eram de um pequeno caribu que,

uma hora antes, corria e gritava, vivendo. Contemplou aqueles ossos de

carne devorada, aqui e ali ainda picotados com a célula rubra da vida. Será

que ele estaria naquela situação ao fim do dia? Ah, a vida, vã e esvoaçante

quimera. Somente vivendo, lutando, que a dor vinha; na morte ela não

mais existia. Morrer era dormir. Cessaria de sofrer, poderia descansar.

Então, por que não se alegrava com a ideia da morte, em vez de temê-la?

Mas não filosofou por muito tempo. Estava agachado no musgo, um

osso na boca. Sugava as partículas rubras de vida que ainda existiam. A

memória longínqua do gosto adocicado de carne quase o enlouquecia.

Fechou suas mandíbulas nos ossos e mastigou. Algumas vezes era osso que

ele quebrava, outras eram seus próprios dentes. Esmagou então os ossos

com uma pedra, fazendo uma pasta, que devorou. Em sua ânsia por comida

machucou os dedos entre a rocha e surpreendeu-se por não sentir tanta

dor.

Vieram então dias de neve e chuva perversa. Já não sabia mais quando

parava e voltava a caminhar. Descansava quando quer que se sentisse

cansado demais e se arrastava quando quer que a urgência da vida o

carregava para frente. Viajava de dia e de noite. Ele não mais sofria os

sofrimentos humanos. Era a vida nele que o impulsionava para frente, a

vida que não desejava se extinguir. Seus nervos estavam embotados, e sua

mente era provocada por visões estranhas e deliciosos sonhos.

Alimentava-se com os ossos esmagados do caribu; havia levado o resto

deles consigo. Não mais cruzou montanhas, nem divisas; limitava-se a

seguir um riacho que se diluía através de um imenso vale vazio. Não via

mais vale ou corrente, porém. Nada enxergava além de visões. Sua alma,

seu corpo andavam e arrastavam-se, delgados como se voassem.

Acordou bem, lúcido, deitado de costas numa rocha. O Sol brilhava

muito, e estava quente. À distância, ouviam-se os gritos dos

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Page 152: Jack london   contos

caribus. Tinha vagas lembranças de chuva, vento e neve, mas náo sabia ao

certo se fora tomado pela tempestade por dois dias ou duas semanas.

Por algum tempo, ficou sem se mover, a genial luz do Sol a iluminá-lo,

saturando seu miserável corpo de calor reconfortante. Um belo dia —

pensou. Poderia tentar se localizar agora. Rolou de lado, numa dolorosa

tentativa. Perto dele, flutuava indolente riozi- nho. Sua pouca

familiaridade confundiu-o. Vagarosamente, seguiu-o com os olhos;

desviava-se entre colinas monótonas e vazias; muito mais frias e despidas

do que quaisquer colinas que encontrara antes. Vagarosamente,

deliberadamente, sem maior interesse ou excitação, seguiu aquele

estranho rio e viu-o desembocar no mar brilhante. Ainda não sentia

emoções. “Muito diferente, estranho” — pensou. Imaginou que o oceano

fosse somente quimera, imagem fictícia que a sua mente desordenada

criara. Viu um navio — algo parecido — bem no meio daquele impetuoso

e impossível mar. Fechou os seus olhos para a visão, aí os abriu; estranha

coisa, a visão persistia, talvez fosse verdade... Mas ele sabia que não havia

oceanos ou embarcações no coração de terras vazias, assim como soubera

que não havia cartucho nenhum no rifle vazio.

Escutou um som de respiração atrás; um resfolegar sutil, algo como

uma tosse. Vagarosamente, devido a sua imensa fraqueza, rolou para o

lado. Nada havia ao alcance da vista, mas esperou com paciência.

Novamente o resfolegar e a tosse e, não muito longe, viu esboçar-se, entre

duas rochas, o perfil dum lobo. As orelhas não apontavam para o alto como

havia visto em outros lobos; os olhos eram turvos e injetados, a cabeça

cinzenta parecia dobrar-se com debilidade, abandono. O animal piscava

sem parar por causa do Sol. Parecia doente. Resfolegava e tossia vezes sem

conta.

“Isso pelo menos é real” - pensou. Virou-se para o outro lado,

procurando entrar em contato com a realidade do mundo que as visões lhe

haviam velado. Mas o mar continuava a cintilar, o navio

156

Page 153: Jack london   contos

mostrava-se bem perceptível. “O que era a realidade depois de tudo?”

Fechou os seus olhos para um longínquo tempo, pensou. Puxou as

memórias para si. Ele andara para o norte via leste, para longe da divisa do

Dease e em direçáo ao Vale da Mina de Cobre. Aquele riozinho estranho

era o rio Mina de Cobre. O mar brilhante náo era outro senáo o Oceano

Ártico. O navio era um baleeiro, e se movia em direção a leste, cada vez

mais longe, longe da boca do Mackenzie até o golfo da Coroação. Ele se

lembrava bem dos mapas da Companhia da baía de Hudson, e tudo ia

ficando cada vez mais claro.

Sentou-se e voltou sua atenção para afazeres imediatos. As bandagens

de cobertor haviam-se desfeito e seus pés eram massas disformes em carne

viva. O último cobertor tinha-se acabado. O rifle e a faca também haviam

desaparecido; perdera o seu chapéu com o maço de fósforos na aba em

algum lugar. Ainda bem que os fósforos guardados contra o peito ainda

estavam lá, salvos e secos, dentro da bolsa de tabaco, envolvidos em papel

impermeável. Olhou para o relógio. Eram onze horas e ele ainda parecia

funcionar bem. Por certo ele havia se lembrado de lhe dar corda.

Sentia-se calmo, com os pés no chão. Apesar de sua extrema fraqueza,

não mais sentia dor. Também não estava com fome. O pensamento de

comida nem lhe parecia muito agradável, e movia-se apenas impulsionado

pela razão, nada mais. Rasgou suas calças até os joelhos e envolveu os pés

com o tecido. De alguma forma ele ainda conseguira manter consigo a lata

de cozinhar. Ele beberia um pouco de água morna antes de engendrar a

jornada terrível até o navio.

Seus movimentos eram vagarosos. Tremia como se estivesse com

paralisia. Quando começou a pegar musgo seco, percebeu que não

conseguia levantar-se. Tentou ficar em pé vezes sem conta e teve de

contentar-se em rastejar com o auxílio de seus joelhos e mãos. Chegou

perto do lobo doente. O animal procurou desviar-se de seu caminho,

deixando à vista uma língua fraca e sem cor, que parecia não ter força nem

para curvar-se um pouco. O homem verificou que a língua do

157

Page 154: Jack london   contos

lobo não se mostrava avermelhada como seria de se esperar em um animal

saudável. Era de um marrom amarelado e parecia coberta por muco áspero

e ressecado.

Depois que bebeu um quarto de água quente, o homem achou- se

capaz de ficar em pé e até de andar, assim tão bem quanto um homem à

beira da morte andaria. A cada minuto, precisava parar, repousar. Seus

passos eram débeis e incertos, assim como os passos do lobo que o seguia. E

naquela noite, quando o brilho do mar jazia engolfado em escuridão, ele

sentiu que lhe estava próximo por uns seis quilômetros.

Durante toda a noite o homem ouviu a tosse do lobo doente e de vez

em quando escutava o grito dos caribus. A vida espalhava-se a seu redor.

Mas tratava-se de vida forte e viva, muito viva. E ele sabia que aquele lobo

doente seguia sua trilha na esperança de que ele, homem, morresse

primeiro. De manhã, assim que abriu os olhos, percebeu que o lobo o

contemplava com olhos desejosos e famintos. Estava encolhido, o rabo

entre as pernas, qual desprotegido e faminto cão suplicante. O animal

tremia com o vento frio da manhã e arreganhou os dentes num arremedo

de ferocidade quando o homem lhe falou numa voz que não era mais do

que rouco murmúrio.

O Sol brilhava e durante toda a manhã o homem cambaleava e caía em

direção ao navio no oceano brilhante. O tempo estava perfeito. Era o breve

verão indiano das altas latitudes e poderia durar uma semana ou ir-se no

próximo dia.

À tarde o homem encontrou uma trilha. Era de um outro homem que

não podia andar ereto, mas arrastava-se de quatro. Pensou, sem emoção,

que poderia ser Bill. Ele não estava nem um pouco curioso. Na verdade, as

sensações e emoções haviam-no deixado. Já nem sentia mais dor. Seu

estômago e todos os nervos estavam adormecidos. Mesmo assim a vida

pulsando dentro dele o impulsionava para frente. Apesar de desanimado e

fraco, recusava-se a morrer. Por causa de sua recusa em morrer é que ainda

comia frutos silvestres

158

Page 155: Jack london   contos

do musgo e peixinhos, bebia sua água quente e mantinha-se de olho no

lobo doente.

Seguiu o caminho do outro homem, que também conduzira um pobre

e rastejante corpo. Subitamente, topou com novos e frescos ossos

circundados por pegadas de lobos. Viu um saquinho de ouro como o seu

despedaçado por dentes afiados. Pegou-o do chão, apesar do peso ser

demais para seus dedos débeis. Bill o havia carregado até o fim. Ele levara a

melhor sobre Bill. Ele sobreviveria e carregaria o ouro até o navio. Riu-se

um riso rouco e gutural, parecido com o crocitar de um corvo. O lobo

doente juntou-se a ele, uivando lugubremente. O homem então se

silenciou. Como podia estar rindo assim do Bill? Aqueles ossos poderiam

ser tudo o que restara de seu companheiro. Seria ele?

Voltou-se para longe dos ossos. Bem, Bill o abandonara, mas ele não

lhe pegaria o ouro nem lhe chuparia os ossos. Se Bill estivesse em seu

lugar, tinha certeza que não seria assim. Cambaleando, seguiu em frente.

Chegou em um pequeno charco. Quando se inclinou sobre a água, na

esperança de encontrar peixinhos, voltou-se para trás num susto. Vira seu

reflexo, e a visão era tão horrível que acordou seus sentidos embotados.

Havia três peixinhos na água, mas não era possível drenar o charco, que

era grande demais. Tentou e tentou pegá-los com a lata, mas desistiu.

Tinha medo que, em sua fraqueza, poderia cair e se afogar.

Naquele dia diminuiu sua distância para o navio para quatro

quilômetros. No dia seguinte a distância foi para três. Ele agora se

arrastava, assim como Bill fizera. No final do quinto dia percebeu que o

navio estava e quase oito quilômetro de distância e mal podia fazer um por

dia. O verão indiano continuava, e ele continuava a se arrastar e a

desmaiar. Assim também o lobo doente, tossindo e espirrando, seguia as

suas pegadas. Os joelhos do homem estavam em carne viva e apesar de

cobri-los com a camisa, podia-se ver um rastro vermelho de sangue

deixado sobre as pedras e musgo. Ao olhar

Page 156: Jack london   contos

para trás via o lobo lambendo avidamente o sangue deixado pelo caminho.

Percebeu vividamente qual poderá ser seu fim a não ser... A não ser que ele

pudesse pegar o lobo. E assim começou uma das mais cruas tragédias da

existência. Um homem doente se arrastando, um lobo doente coxeando;

duas criaturas arrastando suas carcaças pela desolação e caçando um ao

outro.

Fosse o lobo um animal sadio, o homem não se preocuparia tanto. Mas

só de pensar em servir de alimento para aquele bucho enfermo e

semimorto, sentia repugnância. Sua mente começava a vagar novamente,

era tomada, pouco a pouco, pela alucinação. Seus intervalos de lucidez

tornavam-se mais raros e menores.

Houve uma vez em que foi acordado pelo fraco espirro do lobo em

seus ouvidos. O lobo pulou para trás, perdendo o equilíbrio e caindo de

fraqueza. Era uma cena burlesca, mas o homem não teve vontade de rir.

Também não sentia medo. Estava distante demais de tudo que o rodeava

para sentir medo. Mas sua mente subitamente esclareceu-se, e ele parou e

considerou. O navio não se achava a mais de seis quilômetros. Quando

conseguia firmar a vista, podia ver claramente o branco da vela de um

barco cruzando a água brilhante do mar. Mas ele nunca poderia se arrastar

por seis quilômetros. Sabia disso, e ficou muito calmo, ao percebê-lo.

Tinha consciência de que não poderia rastejar nem por algumas centenas

de metros. E ainda assim queria viver. Aquilo não estava certo; não

poderia perecer depois de tudo o que suportara. O destino estava querendo

demais dele. E, morrendo, recusava-se a morrer. Desafiava a morte em sua

impotência ainda que fosse pura insensatez, uma loucura desvairada.

Fechou os olhos e, cautelosamente, procurou se compor. Procurou

manter-se alheio ao langor que parecia engolfá-lo em suas garras sufo-

cantes. Parecia-se muito com o mar esse langor mortal, levantando-se

mais e mais, sufocando todo resto de consciência. Algumas vezes

submergia-se todo, nadando através do esquecimento; depois, por

160

Page 157: Jack london   contos

uma estranha alquimia da alma, encontrava um frangalho de vontade e

lutava ainda mais furiosamente.

Sem se mover, estava deitado de costas, e podia escutar, chegando

cada vez mais perto, a respiração difícil do lobo doente. O animal ia

chegando mais e mais perto. Parecia um tempo sem fim, mas o homem

permanecia imóvel. O lobo já estava ao lado de seu ouvido. Sentiu uma

língua, áspera e seca contra seu rosto. Estendeu as máos subitamente, ou

assim desejou fazer. Seus dedos curvavam-se como garras, mas

fecharam-se no vazio do ar. Rapidez e precisão requeriam força, e o

homem não tinha mais nenhuma.

A paciência do lobo era terrível. Mas a do homem não era diferente.

Por meio dia ele ali ficou, deitado, sem se mover, lutando contra a perda

de consciência e esperando pela coisa que dele queria se alimentar a de

quem ele queria se alimentar. Algumas vezes, o lânguido mar o envolvia,

fazendo-o sonhar longos sonhos. Mas mesmo estes sonhos eram

entrecortados por momentos despertos de lucidez. Ele esperava pela

respiração doentia e difícil e pela língua áspera.

Não mais escutou a respiração. Deslizou vagarosamente de algum

sonho para sentir a língua do lobo com as mãos. Esperou. As presas

apertaram suavemente; a pressão aumentou. O lobo extraía suas últimas

forças para fincar os dentes no alimento pelo qual esperara longamente.

Mas o homem também esperara longamente e a mão lacerada fechou-se na

mandíbula. Lentamente, enquanto o lobo lutava debilmente e a mão se

fechava debilmente, a outra mão preparava-se para segurar o animal.

Cinco minutos depois todo o peso do homem estava sobre o lobo. Suas

mãos, contudo, não tinham suficiente força para asfixiar o animal; a face

do homem estava junto à garganta do lobo, sua boca estava cheia de

pelos... Após meia hora, o homem sentiu uma coisa morna entrando pela

sua garganta. Não era nada agradável. Parecia que estavam despejando

chumbo derretido no estômago. Precisou de muita força de vontade para

continuar com aquilo. Mais tarde ele deitou-se de costas e dormiu.

Page 158: Jack london   contos

Alguns membros de uma expedição científica desceram do baleeiro

“Bedford”. Do convés, avistaram na praia um estranho objeto. Movia-se

em direção à água. Os cientistas mostraram-se incapazes de classificar

aquela estranha criatura e, como tinha de ser com cientistas, desceram do

navio para ver do que se tratava.

E eles viram alguma coisa que vivia, mas que dificilmente se parecia

com um homem. Estava cego, sem consciência alguma. Arrastava-se pelo

chão como um verme monstruoso. A maioria de seus esforços não tinha

efeito, mas ele persistia e retorcia-se todo e seguia em frente numa

velocidade de alguns centímetros por hora.

Três semanas depois o homem estava deitado em um catre do baleeiro

“Bedford” e, em lágrimas, procurava explicar quem era e as dificuldades

por que passara. Balbuciava frases sem sentido sobre sua mãe, sobre a

Califórnia ensolarada, sobre um lar entre os laranjais e flores.

Finalmente, o homem pôde sentar-se à mesa com os cientistas e os

oficiais. Regozijou-se ao ver tanto alimento espalhado. Observava com

ansiedade toda aquela comida indo para a boca de outras pessoas. Com o

desaparecimento de cada bocado podia-se ver um desespero profundo em

seus olhos. Ele estava lúcido, mas mesmo assim detestava aqueles homens

nas horas das refeições. Perseguia-o o medo que aquela comida toda

acabasse. Ele enchia de perguntas o cozinheiro, o camareiro, o capitão;

queria saber se haveria comida enquanto estivesse no barco, queira saber

sobre a provisão de alimentos. Eles o tranquilizavam vezes sem conta, mas

ele não conseguia acreditar. Foi à despensa verificar com os próprios

olhos.

Notaram que o homem engordava muito depressa. Os cientistas

balançavam a cabeça e teorizavam. Procuraram permitir que o homem se

alimentasse somente no horário das refeições. Ainda assim, suas medidas

iam aumentando mais e mais, principalmente por sob a camisa.

Os marinheiros sorriam. Eles sabiam. E quando os cientistas

procuraram impor regras ao homem eles também sabiam. Logo

I62

Page 159: Jack london   contos

depois do café da manhá eles o viram estender as mãos como um pedinte

para um marinheiro. Este sorriu e lhe deu um pedaço de biscoito do mar.

Ele o agarrou com sofreguidão, olhando para ele qual avarento olha para o

ouro, e o enfiou debaixo da camisa. Outros marinheiros fizeram o mesmo,

com o mesmo sorrisinho. Os cientistas foram discretos. Eles o deixaram

em paz. Mas examinaram seu catre quando ele não estava por perto.

Estava repleto de biscoito; o colchão estava cheio de biscoito, cada buraco

e reentrância estavam cheios de biscoito. Mesmo assim ele estava lúcido.

Ele apenas se precavia contra a fome; era só isso. Ele iria se recuperar, os

cientistas disseram. E assim aconteceu, quando o baleeiro “Bedford” se

aproximou da baía de San Francisco.

163

Page 160: Jack london   contos
Page 161: Jack london   contos

capítulo 9

O CHINA

“O coral se desenvolve, a

palmeira cresce, mas o

homem morre." Provérbio

taitiano

Ah Cho náo sabia francês. Sentou-se na sala do tribunal, apinhada de

gente, muito cansado e aborrecido, ouvindo o francês explosivo e

ininterrupto de dois funcionários públicos que falavam alternadamente.

Para Ah Cho aquilo não passava de tagarelice, e admirava-se com a

estupidez dos franceses, que demoravam tanto tempo para descobrir o

assassino de Chung Ga, e nem conseguiam descobri-lo. Os quinhentos

trabalhadores chineses da plantação sabiam que fora Ah San quem

cometera o crime, e Ah San nem sequer fora preso. E certo que os coolies

tinham feito um acordo secreto de não testemunharem uns contra os

outros; mas era tão simples, que os franceses deviam ser capazes de

descobrir que o assassino era Ah San. Eram muito estúpidos, estes

franceses.

Ah Cho não fizera nada de que tivesse medo. Não interviera no

assassínio. É certo que o presenciara, e que Schemmer, o capataz da

plantação, havia entrado nas barracas logo depois e o apanhado ali, com

mais outros quatro ou cinco. E daí? Chung Ga tinha sido apunhalado

apenas duas vezes. Era evidente que cinco ou seis homens

165

Page 162: Jack london   contos

não podiam infligir apenas duas punhaladas. Mesmo que um homem

pudesse ter dado só uma punhalada, bastavam dois homens para ter dado

as duas.

Era assim que Ah Cho raciocinava, quando ele e seus quatro com-

panheiros mentiam, embaralhavam e confundiam o tribunal com suas

declarações a respeito do que se passara. Tinham ouvido o barulho da luta

e, tal como Shemmer, haviam corrido para o local. Tinham chegado

primeiro que Schemmer... era tudo. Também era certo que Schemmer

declarara que, atraído pelo rumor de uma disputa, ao passar ali por acaso,

ficara quatro ou cinco minutos, pelo menos, do lado de fora, e que, quando

entrara, já lá se encontravam os prisioneiros; e que eles não tinham

entrado imediatamente antes dele, porque ele estivera diante da única

porta das barracas. E depois? Ah Cho e seus quatro companheiros haviam

declarado que Schemmer se enganara. No fim seriam soltos. Todos tinham

a certeza disso. Não podiam cortar as cabeças de cinco homens por duas

punhaladas. Além disso, nenhum diabo estrangeiro presenciara o crime.

Mas estes franceses eram tão estúpidos! Na China, como Ah Cho bem

sabia, o magistrado ordenaria que fossem torturados para apurar a verdade.

Era muito fácil descobrir a verdade por meio da tortura. Mas estes

franceses não empregavam a tortura... os loucos! Por conseguinte, nunca

descobririam quem matara Chung Ga.

Mas Ah Cho não compreendia tudo. A companhia inglesa a quem

pertencia a plantação importara do Taiti, com grandes despesas, os

quinhentos coolies. Os acionistas exigiam os dividendos, e a companhia

ainda não pagara nenhum. Por esse motivo, a companhia não queria que

seus trabalhadores, contratados tão dispendiosamente, começassem a se

matar uns aos outros. E havia ainda os franceses, ansiosos e desejosos de

impressionar os chinas com as virtudes e a superioridade da lei francesa.

Nada melhor do que dar um exemplo de vez em quando; além do mais,

para que servia a Nova Caledónia senão para mandar para lá homens para

acabar os seus dias, na miséria e na dor, em pagamento do crime de serem

fracos e humanos?

166

Page 163: Jack london   contos

Ah Cho não compreendia nada disso. Sentado na sala do tribunal,

esperava pela sentença que o libertaria e aos seus camaradas, para vol-

tarem à plantação e cumprirem os seus contratos. Esta sentença seria dada

em breve. O processo estava terminando. Dava para perceber: já não havia

mais declarações nem palavriados. Os demônios franceses estavam

cansados também, era evidente que esperavam a sentença. E, enquanto

esperava, foi recordando a sua vida, até o dia em que assinara o contrato e

partira no barco para Taiti. A vida era difícil na sua aldeia da costa e,

quando assinara o contrato para trabalhar durante cinco anos nos mares

do Sul, por cinquenta centavos mexicanos por dia, considerara-se cheio de

sorte. Havia homens na sua aldeia que trabalhavam um ano inteiro por

dez dólares mexicanos, e mulheres que faziam redes um ano inteiro por

cinco dólares, enquanto nas casas dos lojistas haviam criadas que recebiam

quatro dólares por um ano de serviço. E ele ia receber cinquenta centavos

por dia. Por um dia, apenas por um dia, ia receber essa soma fabulosa! Que

importava que o trabalho fosse pesado? No fim dos cinco anos regressaria à

casa - era o que estava no contrato — e nunca mais precisaria trabalhar.

Seria um homem rico para o resto da vida, com uma casa mesmo sua, uma

mulher e filhos que cresceriam e o venerariam. Sim, e atrás da casa teria

um jardinzinho, que seria o seu lugar de meditação e repouso, com peixes

dourados num laguinho, e campainhas em várias árvores, tilintando ao

vento, e um muro alto em toda a volta, para que sua meditaçáo e seu

repouso não fossem perturbados.

Bom, já trabalhara três daqueles cinco anos. Já era um homem rico

(em seu país) com o dinheiro que ganhara, e só mais dois anos separavam a

plantação de algodão, em Taiti, da meditação e do repouso que o

esperavam. Mas neste momento estava perdendo dinheiro, por causa da

infeliz casualidade de ter presenciado o assassinato de Chung Ga. Estivera

três semanas na prisão; por cada dia dessas três semanas perdera cinquenta

centavos. Mas agora a sentença já não tardaria, e ele regressaria ao

trabalho.

167

Page 164: Jack london   contos

Ah Cho tinha vinte e dois anos. Era alegre, possuía bom caráter e

sorria com facilidade. Embora tivesse o corpo esguio como o dos asiáticos,

a cara era redonda. Era redonda como a Lua e irradiava uma complacência

amável e uma bondade de espírito, invulgares em sua raça. E suas feições

náo mentiam. Nunca se metia em confusões nem entrava em brigas. Náo

tinha a alma suficientemente endurecida para ser um jogador. Sentia-se

feliz com as coisas pequenas e os prazeres simples. O silêncio e o sossego do

fim do dia, depois do trabalho escaldante nos campos de algodão,

davam-lhe uma satisfação infinita. Era capaz de ficar sentado, horas

seguidas, a contemplar uma flor solitária e a filosofar sobre os mistérios e

enigmas da existência. Uma garça azul, pairando sobre uma prainha

arenosa em forma decrescente, o chapinhar prateado de um peixe em fuga,

ou um pôr de sol, pérola e rosa, sobre uma lagoa exaltavam-no a ponto de o

fazerem esquecer por completo os dias exaustivos e o pesado chicote de

Schemmer.

Schemmer, Karl Schemmer, era um animal, um animal cruel. Mas

merecia o salário que ganhava. Extraía as forças dos quinhentos escravos

até à última partícula. Porque eles não passavam de escravos até o término

do contrato. Schemmer trabalhava muito para extrair a energia daqueles

quinhentos corpos transpirados, transformando-a em fardos de algodão

macio, pronto para ser exportado. Era a sua bestialidade primitiva, férrea e

dominadora que lhe permitia efetuar a transformação. Usava também um

grosso cinto de fivela, de três polegadas de largura e uma jarda de

comprimento, que trazia sempre consigo e que de vez em quando caía

sobre as costas nuas de um coolie curvado, com o estampido de um tiro de

pistola. Estes estalidos soavam com frequência, quando Schemmer

percorria os campos arados.

Uma vez, no princípio do primeiro ano do contrato de trabalho, tinha

matado um coolie com um simples murro. Não esmagara propriamente a

cabeça do homem, como se fosse uma casca de ovo, mas a pancada fora

suficiente para apodrecer o que havia lá dentro, e o

168

Page 165: Jack london   contos

homem morreu, depois de ficar uma semana doente. Mas os chineses náo

tinham se queixado aos demônios franceses que governavam Taiti.

Tinham que ter cuidado. O problema deles era Schemmer. Tinham que

evitar a sua cólera como evitavam o veneno dos escorpiões que se

escondiam nas ervas ou se introduziam, em noites de chuva, nas barracas

onde dormiam. Os chinas - era assim que eram chamados pelos indolentes

nativos, de pele escura, da ilha - tinham o máximo cuidado em náo

desagradar Schemmer. Isto equivalia a produzir para ele o máximo de

trabalho eficiente. Aquele soco de Schemmer rendeu milhares de dólares

à companhia, e Schemmer nunca teve problemas por causa dele.

Os franceses, sem instinto de colonizadores e fúteis, com suas táticas

infantis para desenvolver os recursos da ilha, estavam radiantes por verem

a companhia inglesa progredir. Que lhes importava Schemmer e seu

punho terrível? E o china que morrera? Ora, era apenas um china. Aliás,

morrera de insolação, como o certificava o atestado do médico. É certo que

nunca na história de Taiti alguém morrera de insolação. Mas foi isso,

precisamente isso, que causou a morte do china, um caso único. Foi o que o

médico disse no seu relatório. Era muito ingênuo. Os dividendos tinham

que ser pagos, senão acrescentar-se-ia mais um malogro à já longa lista de

malogros de Taiti.

Não era possível compreender estes demônios. Ah Cho meditava na

impenetrabilidade deles, enquanto esperava pela sentença, na sala do

tribunal. Era impossível saber o que se passava na cabeça deles. Conhecera

alguns destes demônios brancos. Eram todos iguais — os oficiais e

marinheiros do navio, os oficiais franceses e os homens brancos da

plantação, incluindo Schemmer. Suas mentes funcionavam todas de

maneira misteriosa e impossível de compreender. Enfureciam-se sem

causa aparente e sua cólera era sempre perigosa. Às vezes pareciam bestas

selvagens. Preocupavam-se com coisas insignificantes e, por vezes,

conseguiam trabalhar até mais do que um

169

Page 166: Jack london   contos

china. Náo eram sóbrios como os chinas; eram gulosos, comendo

prodigiosamente e bebendo ainda mais prodigiosamente. Um china nunca

conseguia saber quando uma atitude iria agradar-lhes ou levantar uma

tempestade de cólera. Um china nunca sabia. O que lhes agradava uma vez,

na próxima era capaz de provocar uma explosáo de ira. Existia uma cortina

diante dos olhos dos demônios brancos que ocultava o interior dos seus

espíritos do olhar de um china. E depois, dominando todo o resto, havia

aquela eficiência terrível dos demônios brancos, aquela habilidade para

fazer coisas, para fazê-las progredir, para obter resultados, para vergar à

vontade deles todos os outros seres rastejantes e inferiores e o poder dos

próprios elementos. Sim, os homens brancos eram estranhos e

maravilhosos, e eram demônios. Veja-se o exemplo de Schemmer.

Ah Cho admirava-se da sentença levar tanto tempo para ser

pronunciada. Nenhum dos homens acusados havia posto a mão em Chung

Ga. Fora Ah San quem o matara, sozinho. Fora Ah San que lhe dobrara a

cabeça para trás, puxando-o pela trança, com uma das mãos, e com a outra,

pelas costas, lhe enterrara a faca no corpo. Duas vezes a enterrara. Ali

mesmo, na sala do tribunal, Ah Cho revivera toda a cena, de olhos

fechados: a briga, as palavras odiosas atiradas de um para o outro, as

obscenidades e insultos proferidos contra os veneráveis antepassados, as

maldições lançadas sobre gerações por procriar, o salto de Ah San, para

agarrar a trança de Chung Ga, a faca que se enterrara duas vezes na carne,

o abrir da porta, a irrupção de Schemmer, a fuga de Ah San, o estalar do

cinto de Schemmer, que fez os restantes encolherem-se num canto, e o

disparar do revólver de Schemmer para pedir ajuda. Ah Cho tremia ao

reviver isto tudo. Uma pancada do cinto ferira seu rosto, arrancando um

pouco de pele. Schemmer apontara os arranhões, quando no banco das

testemunhas identificara Ah Cho. Só agora as marcas tinham

desaparecido. Fora uma pancada forte. Meia polegada mais para o centro,

e teria arrancado um olho. Depois Ah Cho esqueceu todo o acontecido,

170

Page 167: Jack london   contos

perdendo-se na visão do jardim de meditação e repouso que seria seu

quando regressasse a sua terra.

Ficou sentado, com o rosto impassível, enquanto o magistrado

proferia a sentença. Os rostos de seus quatro companheiros estavam

igualmente impassíveis. E impassíveis permaneceram quando o intérprete

lhes explicou que os cinco haviam sido considerados culpados do

assassínio de Chung Ga, e que Ah Chow seria decapitado. Ah Cho

cumpriria vinte anos de prisão na Nova Caledónia, Wong Li, doze, e Ah

Tong, dez. Não valia a pena excitarem-se por isso. Até mesmo Ah Chow

permaneceu impassível como uma múmia, embora fosse sua a cabeça que

ia ser cortada. O magistrado acrescentou umas quantas palavras, e o

intérprete explicou que o fato do rosto de Ah Chow ter sido o que ficara

mais ferido pela chicotada de Schemmer tornara a sua identificação tão

positiva que, visto ser preciso que morresse um homem, esse homem seria

ele. Igualmente, o fato do rosto de Ah Cho ter sido muito ferido, o que

provava sua presença no local do crime e sua participação nele, havia lhe

valido os vinte anos de prisão. E, assim, até os dez anos de Ah Tong, foi

explicada a razão da proporção de cada uma das sentenças. Que isto

servisse de lição aos chinas, disse por fim o tribunal, porque era preciso

que compreendessem que a lei seria cumprida em Taiti, acontecesse o que

acontecesse.

Os cinco chinas foram levados de novo para a cadeia. Não estavam

impressionados nem preocupados. O inesperado da sentença era

precisamente aquilo a que estavam habituados nas suas relações com os

demônios brancos. Deles os chinas não esperavam senão o inesperado. O

pesado castigo por um crime que não haviam cometido não era mais

estranho do que as inúmeras coisas estranhas que os demônios brancos

faziam. Nas semanas que se seguiram, Ah Cho observou Ah Chow com

uma curiosidade moderada. A cabeça dele ia ser cortada na guilhotina que

estava sendo erguida na plantação. Para ele não haveria anos de declínio

nem jardins de tranquilidade. Ah Cho filosofava e especulava sobre a vida

e a morte. Por si, não

Page 168: Jack london   contos

estava preocupado. Vinte anos eram apenas vinte anos. O seu jardim

demoraria mais esse tempo para concretizar-se... Era jovem e tinha no

sangue a paciência da Ásia. Podia esperar esses vinte anos, e nessa altura já

os ardores do sangue estariam acalmados e se adaptaria melhor ao jardim

do encanto tranquilo. Pensou num nome para ele; chamar-lhe-ia jardim da

Paz Matutina. Sentiu-se feliz durante todo o dia com estes pensamentos e

inspirado para imaginar uma máxima moral sobre a virtude da paciência, a

qual veio a ser de grande conforto especialmente para Wong Li e para Ah

Tong. Ah Chow, no entanto, não ligou para a máxima. Sua cabeça seria

separada de seu corpo dentro de tão pouco tempo, que não precisava de

paciência para esperar pelo acontecimento. Fumava muito, comia bem,

dormia melhor ainda, e não se preocupava com a lentidão com que o

tempo corria.

Cruchot era um policial. Tinha vinte anos de serviço nas colônias,

desde a Nigéria e o Senegal até os mares do Sul, e esses vinte anos não

tinham iluminado de maneira perceptível o seu espírito estúpido. Era tão

lento e estúpido como no tempo em que era camponês no Sul da França.

Conhecia a disciplina e o medo da autoridade, e desde Deus até o sargento,

a única diferença para ele consistia no grau de obediência servil que

prestava. Na realidade, o sargento pesava mais no seu espírito do que Deus,

exceto aos domingos, quando os seus arautos tinham a palavra. Deus estava

habitualmente muito distante, ao passo que o sargento estava

normalmente muito próximo.

Foi Cruchot que recebeu a ordem do juiz do Supremo para que o

carcereiro entregasse a pessoa de Ah Chow. Ora, aconteceu que o juiz do

Supremo oferecera na noite anterior um jantar ao comandante e a oficiais

do navio de guerra francês. Sua mão tremia quando escreveu a ordem, seus

olhos doíam tanto que nem sequer a releu. No fim de contas, tratava-se

apenas da vida de um china. E, assim, não reparou que omitira a letra final

do nome de Ah Chow. A ordem dizia “Ah Cho”, e, quando Cruchot a

apresentou, o carcereiro entregou-lhe a

172

Page 169: Jack london   contos

pessoa de Ah Cho. Cruchot pôs este personagem a seu lado, numa carroça

puxada por duas mulas, e partiu.

Ah Cho sentia-se feliz por se encontrar ao ar livre. Sentado ao lado do

guarda, sorria de satisfação. E mais sorriu quando notou que as mulas se

encaminhavam para o sul, em direção a Atimaono. Schemmer mandara-o

buscar, sem dúvida. Schemmer queria que ele trabalhasse. Muito bem,

pois trabalharia bem. Schemmer nunca teria razão de queixa. O dia estava

quente. Tinham feito uma parada. As mulas suavam, Cruchot suava, e Ah

Cho suava. Mas era Ah Cho quem aguentava melhor o calor. Trabalhara

três anos debaixo do sol, na plantação. Sorria, tão bem disposto, que até

Cruchot, estúpido como era, estava admirado.

- Está muito contente — disse ele, por fim.

Ah Cho abanou a cabeça e sorriu com ardor. Ao contrário do

magistrado, Cruchot dirigia-se a ele na língua canaca e esta, tal como

todos os chinas e todos os demônios brancos, Ah Cho compreendia.

- Você ri demais - observou Cruchot. - Devia ter o coração cheio de

lágrimas num dia como este.

- Sinto-me feliz por sair da cadeia.

- Só por isso? — o guarda encolheu os ombros.

- E não basta? - foi a resposta.

- Mas não está contente por ficar sem cabeça?

Ah Cho fitou-o, perplexo, e disse:

- Mas vou outra vez para Atimaono, trabalhar para Schemmer na

plantação. Náo é para Atimaono que me leva?

Cruchot cofiou seus compridos bigodes, meditativamente.

- Bom, bom - disse, por fim, fazendo estalar o chicote nas mulas

então não sabe?

- Não sei o quê? - Ah Cho começava a sentir-se vagamente alarmado.

— Então Schemmer não quer que eu trabalhe mais para ele?

- A partir de hoje, não — riu Cruchot com vontade. Era uma boa

piada. - Bem vê que, a partir de hoje, não será capaz de trabalhar. Um

173

Page 170: Jack london   contos

homem sem cabeça não pode trabalhar, não é? — Deu uma cotovelada no

china, nas costelas, e riu.

Ah Cho manteve-se calado, enquanto as mulas avançavam mais uma

milha escaldante. Depois perguntou:

- O Schemmer vai me cortar a cabeça?

Cruchot sorriu e fez que sim com um aceno.

- É engano - disse Ah Cho gravemente. Eu não sou o china de quem

vão cortar a cabeça. Eu sou Ah Cho. O venerável juiz decidiu que eu fosse

vinte anos para a Nova Caledónia.

O guarda riu. Era uma boa piada aquele cômico china julgar que

enganava a guilhotina. As mulas atravessaram um bosque de palmeiras que

se estendia por meia milha, ao longo do mar brilhante, e só depois é que

Ah Cho tornou a falar.

—Já lhe disse que não sou Ah Chow. O venerável juiz não mandou

que me cortassem a cabeça.

- Não tenha medo — disse Cruchot, com a intenção filantrópica de

confortar o prisioneiro. Essa morte não faz sofrer nada. — Estalou os

dedos. - E rápido... assim. Náo é como ser pendurado na extremidade de

uma corda e ficar dando pontapés e fazendo caretas durante cinco

minutos. Não é como matar um frango com um machado. Corta-se a

cabeça, e pronto! E com um homem é a mesma coisa. Pfui!... acabou-se.

Náo dói. Nem sequer se pensa que dói, não se pensa. Com a cabeça cortada

não se pode pensar. Ê muito bom. Era assim que eu queria morrer...

rápido, rápido. Você tem sorte de morrer assim. Podia apanhar lepra e

acabar aos poucos, lentamente, um dedo de uma vez, depois outro, e os de-

dos dos pés também. Conheci um homem que morreu queimado com água

fervendo. Levou dois dias para morrer. Ouvia-se gritar a um quilômetro de

distância. Mas você? Ah, tão fácil! Clique!... a lâmina corta o seu pescoço

num instante. E pronto! A lâmina pode até fazer cócegas. Sabe-se lá!

Ninguém, depois de morto, voltou para contar.

174

Page 171: Jack london   contos

Achou esta última piada tão engraçada que se permitiu rir con-

vulsivamente durante meio minuto. Metade da sua jovialidade era fingida,

mas considerava um dever humano animar o china.

- Mas já lhe disse que sou o Ah Cho - teimou o outro. - Não quero que

me cortem a cabeça.

Cruchot franziu o sobrolho. O china estava levando a brincadeira

demasiado longe.

- Eu não sou Ah Chow - recomeçou Ah Cho. - Basta! - cortou o

guarda. Encheu as bochechas e esforçou-se por se mostrar severo.

- Já lhe disse que náo sou... — insistiu Ah Cho de novo.

- Calado! - berrou Cruchot.

Depois disso continuaram a viagem, em silêncio. Eram vinte milhas de

Papeete a Atimaono, e mais da metade dessa distância foi percorrida antes

que o china se atrevesse a falar outra vez.

- Eu o vi na sala do tribunal, quando o venerável juiz leu a nossa

sentença - começou. Muito bem. Não se lembra que Ah Chow, o que ia ser

decapitado... não se lembra que ele... Ah Chow... era um homem alto?

Olhe para mim.

Levantou-se repentinamente e Cruchot verificou que ele era baixo. E

nesse mesmo instante Cruchot reviu mentalmente a imagem de Ah Chow,

e nessa imagem Ah Chow era alto. Para o guarda, todos os chinas eram

iguais. As caras pareciam-se todas umas com as outras. Fez estacar as mulas

tão abruptamente que a vara passou à frente delas levantando suas

orelheiras.

- Já vê que foi engano - disse Ah Cho, sorrindo satisfeito.

Mas Cruchot estava pensando. Já estava arrependido de ter parado o

carro. Não tinha percebido o erro do juiz do Supremo e não sabia como

repará-lo; o que sabia era que lhe tinha sido entregue este china para ser

levado para Atimaono, e que seu dever era levá-lo para Atimaono. Que

importava que não fosse aquele o homem e que lhe cortassem a cabeça?

Era apenas um china. E que era um china, afinal de contas? Além disso,

podia não ser engano. Não sabia o que

175

Page 172: Jack london   contos

ia na cabeça dos seus superiores. Eles sabiam o que faziam. Quem era ele

para pensar por eles? Uma vez, há muito tempo, tentara fazê-lo, e o

sargento disse-lhe: “Cruchot, está louco? Quanto mais depressa aprender

isto, melhor para você. Náo tem que pensar. Tem é que obedecer e deixar

que seus superiores pensem por você.” Esta recordação irritou-o. Além

disso, se voltasse para Papeete, atrasaria a execução em Atimaono e, se

estivesse errado em voltar para trás, levaria uma reprimenda do sargento,

que estava à espera do prisioneiro. E ainda por cima levaria igualmente

uma reprimenda em Papeete.

Tocou as mulas com o relho e prosseguiu o caminho. Consultou o

relógio. Estava atrasado meia hora, e o sargento ia se zangar. Fez as mulas

apressarem o passo. Quanto mais Ah Cho teimava em explicar o erro, mais

obstinado ficava Cruchot. A certeza de que conduzia um prisioneiro

trocado não melhorava sua disposição. E o fato do erro não ser seu

confirmava sua crença de que o mal que estava fazendo era acertado. E

preferia conduzir à guilhotina uma dúzia de chinas, por engano, a incorrer

no desagrado do sargento.

Quanto a Ah Cho, depois do guarda ter batido em sua cabeça com a

ponta do chicote e ter lhe ordenado com um berro que se calasse, não lhe

restava mais nada a fazer senão calar-se. A longa viagem continuou em

silêncio. Ah Cho meditava nos estranhos procedimentos dos demônios

brancos. Não tinham explicação. O que estava ocorrendo com ele era uma

pequena amostra do que eles faziam. Primeiro tinham condenado cinco

homens inocentes e a seguir cortavam a cabeça de um homem que até eles,

na sua bárbara ignorância, tinham considerado merecedor de não mais do

que vinte anos de prisão. E ele não podia fazer nada. Só lhe restava

sentar-se sem fazer nada e aceitar o que estes senhores todo-poderosos

determinavam para ele. A certa altura, encheu-se de medo, e o suor que

lhe cobria o corpo tornou-se gelado; mas dominou- se. Procurou

resignar-se, lembrando e repetindo certos trechos do yin Chin Wen (O

tratado do caminho tranquilo); mas, em vez disso, via o seu sonhado jardim da

meditação e repouso. Isto preocupou-o, até

Page 173: Jack london   contos

que se abandonou ao sonho onde, sentado em seu jardim, escutava o

tilintar das campainhas sacudidas pelo vento e penduradas nas várias

árvores. E, olha! assim sentado, conseguia lembrar e repetir os trechos de

O tratado do caminho tranquilo.

E desta maneira o tempo decorreu agradavelmente, até chegarem a

Atimaono, e as mulas avançarem até os pés do cadafalso, à sombra do qual

esperava, impaciente, o sargento. Empurraram Ah Cho escada acima, até o

cadafalso. Abaixo dele e de um dos lados, viu reunidos todos os coolies da

plantação. Schemmer pensou que o acontecimento seria uma boa liçáo e,

por isso, mandara vir os coolies dos campos e obrigara-os a estar presentes.

Ao verem Ah Cho, começaram a tagarelar entre si, em voz baixa. Tinham

compreendido o engano; mas calaram-se. Os indecifráveis demônios

brancos tinham sem dúvida mudado de ideia. Em vez de matarem um

homem inocente iam matar outro igualmente inocente. Ah Chow ou Ah

Cho... que importava um ou outro? Não conseguiam compreender melhor

os cães brancos do que estes os compreendiam. Ah Cho ia ficar sem

cabeça, mas eles, quando terminassem os dois restantes anos de

escravidão, voltariam à China.

Fora o próprio Schemmer quem fizera a guilhotina. Era habilidoso e,

embora nunca tivesse visto uma guilhotina, os oficiais franceses haviam

lhe explicado o seu princípio. Fora por sugestão sua que haviam resolvido

que a execução se efetuasse em Atimaono em vez de Papeete. O local do

crime, argumentara Schemmer, era o lugar ideal para o castigo e além

disso exerceria uma influência salutar sobre os quinhentos chinas da

plantação. Schemmer oferecera-se também voluntariamente para servir

de carrasco e era nessas funções que se encontrava agora em cima do

cadafalso, experimentando o instrumento que fabricara. Debaixo da

guilhotina encontrava-se uma bananeira, com o tamanho e a consistência

do pescoço de um homem. Ah Cho observava, fascinado. O alemão,

acionando uma pequena manivela, fez subir a lâmina até o topo do

pequeno guindaste que ele próprio

Page 174: Jack london   contos

armara. Sacudindo uma sólida corda, a lâmina soltava-se e caía como um

raio, cortando em dois o tronco da bananeira.

- Que tal funciona isso? — perguntou o sargento, que subira ao

cadafalso.

- Às mil maravilhas - respondeu Schemmer, exultante. — Vou lhe

fazer uma demonstração.

Tornou a acionar a manivela que içava a lâmina, sacudiu a corda, e a

lâmina caiu sobre o tronco tenro. Mas, desta vez, não penetrou mais que

dois terços da sua espessura.

O sargento carregou o sobrolho. - Não dá resultado.

Schemmer limpou o suor da testa.

- O que precisa é de mais peso - declarou.

Caminhando até à beira do cadafalso, deu ordens ao ferreiro para que

lhe trouxesse uma barra de ferro com vinte e cinco libras de peso. Ouando

se abaixou para prender o ferro na borda da lâmina, Ah Cho olhou para o

sargento e aproveitou a oportunidade.

- O venerável juiz mandou cortar a cabeça de Ah Chow - começou

ele.

O sargento concordou, impaciente. Estava pensando nas quinze

milhas de caminho que tinha de andar ainda essa tarde para a costa da ilha,

batida pelo vento, e em Berthe, a linda filha mestiça de Lafière, o

negociante de pérolas, que o esperava no fim desse caminho.

O sargento olhou-o impacientemente e reconheceu o erro. -

Schemmer! — chamou imperativamente. - Chegue aqui!

O alemão resmungou qualquer coisa, mas continuou curvado e

entregue a sua tarefa, até que o pedaço de ferro ficou preso a seu gosto. - O

seu china está pronto? - perguntou.

- Olhe para ele - foi a resposta. - É este o china?

Schemmer ficou surpreendido. Praguejou concisamente durante

alguns segundos e contemplou pesaroso a coisa que construíra com as

próprios mãos e que estava ansioso por ver funcionar.

178

Page 175: Jack london   contos

— Olhe - disse finalmente — não podemos adiar isto. Já perdi três

horas de trabalho destes quinhentos chinas. Não posso perder outras três

por causa do verdadeiro condenado. Procedamos à execução mesmo assim.

Não passa de um china.

O sargento lembrou-se da longa caminhada à sua frente, da filha do

negociante de pérolas e hesitou.

— A culpa cairá sobre Cruchot... se se descobrir - insistiu o alemão.

— Mas há poucas probabilidades de que se venha a descobrir. Ah Chow

não vai se queixar, com certeza.

- A culpa não será atribuída a Cruchot, de qualquer maneira — disse

o sargento. - Deve ter sido engano do carcereiro.

- Então vamos a isto. Não nos podem culpar. Quem é capaz de

diferenciar um china de outro? Podemos dizer que nos limitamos a

cumprir as ordens com o china que nos foi entregue. Além disso, não posso

de maneira nenhuma trazer outra vez todos estes coolies para cá.

Falavam francês, e Ah Cho, que não compreendia uma palavra sequer,

sabia, no entanto, que estavam decidindo o seu destino. Sabia também que

a decisão cabia ao sargento, e por isso estava suspenso dos lábios daquele

oficial.

— Está bem - declarou o sargento. — Podem ir adiante. Não passa

de um china.

- Vou experimentar mais uma vez, para ter certeza. - Schemmer

empurrou o tronco da bananeira, que se encontrava debaixo da lâmina que

ele içara até o topo do guindaste.

Ah Cho esforçou-se por se lembrar das máximas de O tratado do caminho

tranquilo. Só lhe ocorreu “Vive em paz”. Mas esta não era aplicável à

situação. Ele não ia viver. Ia morrer. Não, aquela não servia. “Perdoa a

malícia...”! Sim, mas não havia malícia nenhuma a perdoar. Schemmer e os

outros não faziam aquilo com malícia. Para eles aquilo não passava de um

trabalho que tinha que ser feito, como, por exemplo, desbravar uma

floresta, drenar a água e plantar

Page 176: Jack london   contos

algodáo. Schemmer sacudiu a corda, e Ah Cho esqueceu O tratado do caminho

tranquilo. A lâmina caiu com uma pancada seca e separou o tronco em dois.

- Perfeito! - exclamou o sargento, detendo-se para acender um

cigarro. - Perfeito, meu amigo!

Schemmer ficou contente com o elogio.

- Vem, Ah Chow - disse ele no dialeto taitiano.

- Mas eu náo sou Ah Chow... - começou Ah Cho.

- Cale-se! - foi a resposta. - Se tornar a abrir a boca, racho sua cabeça.

O capataz ameaçou-o com o punho cerrado, e ele calou-se. Para que

protestar? Aqueles diabos estrangeiros faziam sempre o que queriam.

Deixou-se amarrar à prancha vertical, que tinha o comprimento do seu

corpo. Schemmer apertou os nós com força - com tanta força que as cordas

cortavam a carne e machucavam. Mas ele não se queixou. Aquela dor não

ia durar muito. Sentiu que a prancha era abaixada até ficar em posição

horizontal e fechou os olhos. E nesse momento contemplou pela última

vez o seu jardim de meditação e repouso. Julgou estar sentado no jardim.

Soprava um vento fresco, e as campainhas das diversas árvores tilintavam

suavemente. As aves gorjeavam também sonolentamente, e do outro lado

do alto muro chegavam até ele os rumores amortecidos da aldeia.

Deu-se conta então que a prancha se imobilizara, e pelas tensões e

pressões musculares percebeu que estava deitado de costas. Abriu os olhos.

Suspensa por cima dele, viu a lâmina que faiscava ao sol. Viu o peso que

lhe tinham acrescentado e reparou que um dos nós de Schemmer tinha se

desatado. Depois ouviu a voz do sargento dar uma ordem breve. Ah Cho

fechou os olhos apressadamente. Não queria ver a lâmina descer. Mas

sentiu-a... durante um breve mas comprido instante. E nesse instante

recordou-se de Cruchot e daquilo que ele dissera. Mas Cruchot estava

enganado. A lâmina não fazia cócegas. Soube ainda isso antes de deixar de

saber coisa alguma.

180

Page 177: Jack london   contos

capítulo 10

ESTERCO... NADA MAIS

Ele caminhou até a esquina e olhou para um lado e para outro da rua

que cruzava com a outra, mas nada viu além dos oásis de luz derramados

dos postes nos sucessivos cruzamentos. Retrocedeu então por onde viera.

Era uma sombra deslizando silenciosamente, sem movimentos excessivos,

pela semiescuridão. Caminhava atento, como um animal selvagem na

floresta, com a percepção e a captação totalmente aguçadas. Para que lhe

escapasse o movimento de alguém, na escuridão que o cercava, era preciso

que esse alguém se movesse ainda mais sutilmente do que ele.

Além das informações contínuas sobre o estado das coisas que lhe

eram transmitidas pelos sentidos, possuía uma percepção mais sutil, uma

intuição da atmosfera que o rodeava. Sabia que na casa diante da qual estava

parado haviam crianças. Contudo esta certeza náo a obtivera por nenhum

esforço voluntário de percepção. Nem tinha consciência de o saber, tão

profunda era esta impressão. No entanto, se fosse necessário, em qualquer

momento, agir em relação a esta casa, ele o faria, partindo da presunção de

que lá haviam crianças. Não tinha consciência de tudo quanto sabia acerca

das redondezas.

181

Page 178: Jack london   contos

Do mesmo modo, sem saber como, possuía a certeza de náo haver

nenhum perigo para ele nos passos que subiam a rua perpendicular àquela

em que se encontrava. Antes de ver a pessoa, reconhecera-a como um

transeunte retardatário que corria apressado para casa. O outro surgiu na

esquina e desapareceu rua acima. O homem que vigiava notou o cintilar de

uma luzinha na janela de uma casa na esquina da rua e, quando ela se

apagou, identificou-a como um fósforo que se extinguira. Isto era a

identificação consciente de um fenômeno familiar, e ao seu espírito

ocorreu imediatamente a explicação: “Alguém queria saber as horas”.

Noutra casa havia um compartimento iluminado. A luz era frouxa mas

fixa, e a percepção lhe dizia tratar-se do quarto de alguma pessoa doente.

Estava particularmente interessado na casa do outro lado da rua, no

meio do quarteirão. Era a esta casa que prestava a máxima atenção. Fosse

para que lado fosse que olhasse ou caminhasse, seus olhos e seus passos

voltavam sempre para ela. À excepção de uma janela aberta para a

varanda, nada havia de estranho na casa. Ninguém saía nem entrava. Nada

acontecia. Não se via nenhuma janela iluminada, nem tinham aparecido

ou desaparecido luzes nas janelas. No entanto, era o ponto central de toda

a sua atenção. Tornava a ele sempre, após cada especulação sobre o estado

das redondezas.

Não obstante a sua percepção das coisas, não se sentia confiante.

Tinha plena consciência da precariedade da situação. Embora não se

tivesse perturbado com os passos do transeunte ocasional, era estimulado e

sensível e estava pronto a assustar-se como uma corça timorata. Não

ignorava a possibilidade e a existência de outras inteligências a rondar na

sombra - inteligências com faculdades semelhantes às suas próprias, em

movimento, percepção e adivinhação.

Lá no fundo da rua, percebeu qualquer coisa que se movia. E

adivinhou que não se tratava de nenhum retardatário, mas sim da ameaça

e do perigo. Assobiou, por duas vezes, para a casa do outro lado da rua e

desapareceu como uma sombra, na esquina, que contor

182

Page 179: Jack london   contos

nou. Parou ali e olhou em volta cautelosamente. Acalmado, tornou à

esquina, espreitando, e estudou o vulto que se movia e se aproximava.

Tinha adivinhado bem. Era um policial.

O homem desceu a rua até a esquina seguinte, onde ele, abrigado,

observava a esquina que acabara de deixar. Viu o policial passar,

continuando a subir a rua. Fez um percurso paralelo ao dele e tornou a

observá-lo, passando na esquina seguinte; refez entáo o caminho que

percorrera. Assobiou mais uma vez para a casa em frente e, após algum

tempo, tornou a assobiar. Este assobio traduzia confiança, tal como o

anterior assobio duplo traduzira um aviso.

Viu um vulto escuro delinear-se no telhado da varanda e descer

lentamente um pilar. Depois desceu os degraus, passou o portãozi- nho de

ferro e desceu pela calçada, tomando a forma de um homem. Aquele que

vigiava manteve-se no lado da rua onde estava e caminhou até a esquina,

onde atravessou e foi se juntar ao outro. Parecia muito baixo ao lado do

homem a quem se juntou.

— Como se arranjou, Matt? - perguntou.

O outro resmungou qualquer coisa que náo se ouviu e continuou a

andar mais alguns passos, em silêncio.

— Acho que avistei a mercadoria - disse.

Jim riu-se, na escuridáo, e esperou por mais informações. Os

quarteirões foram passando sob seus pés, e ele começou a impacientar-se.

— Entáo, que me diz dessa mercadoria? - perguntou. — Que tal foi o

golpe?

— Não tive tempo de verificar, mas é volumoso. Só sei dizer que é

volumoso, Jim. Volumoso, ora bolas! Espere só até chegarmos ao quarto!

Jim observou-o atentamente, à luz do poste da esquina seguinte, e

notou que o rosto dele estava um pouco rígido, e que seu braço esquerdo

estava numa posição esquisita.

— Que aconteceu ao seu braço? - perguntou.

183

Page 180: Jack london   contos

— O cachorro me mordeu. Tomara que não pegue a raiva. Às vezes

pode-se pegar com a mordida de um homem, não pode?

— Houve luta, hem? — encorajou-o Jim.

O outro grunhiu.

— É difícil como um raio tirar qualquer coisa de você - explodiu Jim

com irritação. - Desembucha! Não perde dinheiro só por nos contar.

— Apertei um pouco com ele - foi a resposta. A seguir, à guisa de

explicação. - Ele acordou e me pegou.

— Mas você fez um trabalho limpo. Não ouvi barulho nenhum.

— Jim — disse o outro com seriedade. — O caso é sério. Eu o apa-

guei. Fui obrigado a isso. Ele acordou e me pegou. Você e eu vamos ficar

em maus lençóis, durante um tempo.

Jim soltou um assobio baixo de compreensão. — Ouviu o meu assobio?

- perguntou de repente.

— Claro. Já tinha terminado. Estava saindo.

— Era um policial. Mas não demorou nada. Foi-se logo. Voltei então

e assobiei outra vez. Por que é que demorou tanto tempo depois?

— Esperei para ter certeza - explicou Matt. Fiquei radiante quando

ouvi você assobiar de novo. Custa tanto esperar! Fiquei sentado, pensando,

pensando... oh, um monte de coisas. E espantoso, as coisas em que se

pensam. E então havia um maldito de um gato mexendo-se pela casa

inteira e chateando-me com o barulho que fazia.

— Entáo é volumoso! — exclamou Jim sem propósito e com alegria.

— Garanto que sim, Jim. Estou morto de vontade de vê-las outra vez.

Inconscientemente, os dois homens apressaram o passo. Mas não

descuidaram das suas precauções. Mudaram por duas vezes de direção,

para evitar a polícia, e asseguraram-se de que não eram observados antes

de penetrarem no corredor escuro de uma pensão barata, no centro da

cidade.

184

Page 181: Jack london   contos

Só quando chegaram ao quarto, no último andar, é que riscaram um

fósforo. Enquanto Jim acendia um lampião, Matt fechou a porta e trancou

a fechadura. Quando se voltou, reparou que seu companheiro esperava,

cheio de ansiedade. Matt sorriu para si mesmo da avidez do outro.

- Estas pilhas são muito boas - comentou ele, tirando uma pequena

lanterna do bolso e examinando-a. - Mas é preciso comprar uma pilha

nova. Já está muito fraca. Pensei que ia me deixar ficar no escuro, por duas

ou três vezes. É engraçada aquela casa. Quase ia me perdendo. O quarto

dele era à esquerda, e isso me confundiu.

- Eu tinha dito que era à esquerda - interrompeu Jim.

- Você tinha me dito que era à direita - prosseguiu Matt. - Parece- me

que sei o que me disse, e aqui está o mapa que você desenhou.

Procurando no bolso do colete, tirou de lá um pedaço de papel

dobrado. Desdobrou-o, e Jim debruçou-se para examiná-lo.

- Enganei-me - confessou.

- Claro que se enganou. Eu me atrapalhei por causa disso.

- Mas isso agora não importa — exclamou Jim. - Vejamos o que

trouxe.

Isso é que importa — retorquiu Matt. Importa e muito para mim. Eu é

que tive que correr todos os riscos. Arrisquei a cabeça, enquanto você

ficava lá fora na rua. Tem que ser mais cuidadoso. Bom, vou mostrar.

Mergulhou a mão descuidadamente no bolso das calças e retirou de lá

uma mão cheia de diamantes pequenos. Despejou-os, numa torrente

faiscante, sobre a mesa engordurada. Jim soltou uma grande praga.

- Isto não é nada — disse Matt com complacência triunfante. —

Ainda nem sequer começou.

Continuou a tirar o espólio de um bolso atrás do outro. Havia muitos

diamantes embrulhados em camurça, maiores do que os da primeira mão

cheia. De um dos bolsos extraiu um punhado de gemas cortadas muito

pequenas.

Page 182: Jack london   contos

- Poalha de sol — comentou, despejando-as em cima da mesa, num

lugar à parte.

Jim examinou-as.

- Mesmo assim, vendem-se por um bom par de dólares cada um. E

tudo?

- E não é bastante? - perguntou o outro com ar ofendido.

- Claro que é — respondeu Jim, em tom de louvor ilimitado.

— Não esperava tanto. Não aceito menos do que dez mil pelo bolo

todo.

- Dez mil - disse Matt desdenhosamente. Valem o dobro, e eu

também não entendo nada de joias. Olha só para isto!

Tirou uma do montão reluzente e aproximou-a da luz com ar de perito

que pesasse e calculasse. - Vale mil, só esta — opinou rapidamente Jim. —

Qual mil, qual nada! - foi a réplica desdenhosa de Matt. - Não a compraria

por três mil.

- Acorde-me! Estou sonhando! - O brilho das pedras refletia-se nos

olhos de Jim, que começou a agrupar os diamantes maiores e a

examiná-los. Estamos ricos, Matt... vamos ser milionários.

- Vamos levar anos para nos livrar deles - foi o pensamento mais

prático de Matt.

- Mas pensa só como viveremos. Não faremos nada senão gastar o

dinheiro e livrar-nos deles.

Os olhos de Matt começavam a brilhar, embora sombriamente, à

medida que a sua natureza fleumática ia acordando.

-Já tinha dito que era volumoso - murmurou baixinho.

- Mas que golpe! Mas que golpe! - foi a exclamação extasiada do

outro.

- Quase me ia esquecendo - disse Matt, metendo a mão no bolso

interior do casaco.

De um embrulho de papel de seda e pele de camurça emergiu um fio

de grandes pérolas. Jim quase nem olhou para elas.

- Valem dinheiro — disse, e voltou aos diamantes.

186

Page 183: Jack london   contos

Seguiu-se um silêncio entre os dois homens. Jim brincava com as

pedras, rolando-as entre os dedos, agrupando-as em montinhos e

espalhando-as completamente. Era um homem magro e seco, nervoso,

irritadiço, excitável e anêmico - um produto típico das sarjetas, de feições

desgraciosas e torcidas, olhos pequenos, de rosto e boca perpétua e

febrilmente esfomeados, selvagem à moda felina, marcado até o âmago

pela degeneração.

Matt não tocou nos diamantes. Estava sentado, com o queixo apoiado

nas mãos, e os cotovelos sobre a mesa, pestanejando pesadamente para

aquela ostentação reluzente. Era em todos os sentidos a antítese do outro.

Náo fora criado em nenhuma cidade. Era musculoso e peludo, com aspecto

e força de gorila. Não existiam para ele mundos invisíveis. Os olhos eram

grandes e afastados, e havia neles uma certa fraternidade impudente.

Inspiravam confiança. Mas um exame mais cuidadoso teria revelado que

eram um pouco grandes demais, um pouco separados demais. Era

excessivo, ultrapassava os limites da normalidade, e suas feições

escondiam a realidade do homem que apresentavam.

- Este bolo vale cinquenta mil - comentou Jim repentinamente.

- Cem mil - retorquiu Matt.

O silêncio tornou a cair por muito tempo, para ser de novo quebrado

por Jim.

- Que diabo faria ele com isto tudo em casa?... Isso é que eu queria

saber. Pensava que ele os guardava no cofre da loja.

Matt acabava de rever o homem estrangulado, tal como o vira pela

última vez, à luz frouxa da lanterna; mas náo estremeceu com a alusão do

companheiro.

- Sabe-se lá — respondeu. - Talvez se preparasse para enganar o

sócio. Podia ter fugido de manhã para local incerto se nós não tivéssemos

aparecido. Calculo que haja tantos ladrões entre os homens honestos como

entre os próprios ladrões. Leem-se coisas assim nos jornais, Jim. Os sócios

estão sempre se traindo.

187

Page 184: Jack london   contos

Nos olhos do outro assomou uma expressão estranha, nervosa. Matt

não deixou perceber que a notara, embora dissesse:

- Em que é que está pensando, Jim?

Jim ficou um pouco atrapalhado, por um instante. - Em nada

- retorquiu. - Estava apenas pensando como era engraçado... todas estas

joias em casa. Por que pergunta?

— Por nada. Era só por perguntar.

Fez-se o silêncio, quebrado ocasionalmente por um riso baixo e

nervoso de Jim. Sentia-se subjugado pelas pedras. Não que fosse sensível à

beleza delas. Não percebia tal beleza em si. Mas nelas a sua imaginação

viva vislumbrava os prazeres da vida que comprariam, e todos os desejos e

apetites do seu espírito mórbido e da sua carne doente vibravam, à

promessa que elas ofereciam. Construía castelos magníficos, onde se

desenrolavam orgias, brilhantes como elas, e ficava assombrado com o que

construía. Era então que ria. Era tudo muito impossível para ser verdade.

E, contudo, ali estavam a luzir na mesa diante dele, avivando-lhe a chama

da luxúria. E tornou a rir.

- Acho que devíamos contá-los — disse Matt de súbito, arrancando-se

aos seus próprios sonhos. Verifique se as conto honestamente, porque você

e eu temos de ser honestos um com o outro, Jim. Compreende?

Jim não gostou de ouvir aquilo e deixou-o transparecer no olhar, ao

passo que a Matt não agradou o que viu nos olhos do companheiro.

— Compreende? — repetiu Matt, quase ameaçadoramente.

- Não o temos sido sempre? - retorquiu o outro, na defensiva, porque

a traição já se ia insinuando em seu espírito.

— Não custa nada ser honesto nos tempos difíceis — replicou Matt. —

O que importa é ser honesto na prosperidade. Quando não se tem nada,

não se pode deixar de ser honesto. Estamos ricos agora e temos de ser

homens de negócios... homens de negócios honestos. Compreende?

188

Page 185: Jack london   contos

- É o mesmo que eu penso - aprovou Jim. Mas muito no fundo da sua

alma estéril, e contra sua vontade, agitavam-se pensamentos irregulares e

cruéis. Matt dirigiu-se à prateleira da comida, por trás do fogão de

querosene de dois bicos. Esvaziou o chá, de um saco de papel, e de um

segundo saco esvaziou alguns pimentões vermelhos. Voltando à mesa com

os sacos, pôs dentro deles os dois lotes de diamantes pequenos. Em seguida

contou as gemas e embrulhou-as nos seus papéis de seda e nas camurças.

- Cento e quarenta e sete, de bom tamanho - foi o inventário. - Vinte

verdadeiramente grandes; dois enormes e um colossal; e duas mãos cheias

de pequenos.

Olhou para Jim.

- Está certo - foi a resposta.

Escreveu a conta num pedaço de papel de um bloquinho e fez uma

cópia, dando um pedaço de papel a seu companheiro e ficando com o

outro.

- Para servir de referência.

Voltara à prateleira, onde esvaziou o açúcar de um grande cartucho.

Meteu neste os diamantes, grandes e pequenos, embrulhou-o num lenço

grande e colorido e escondeu-o debaixo do seu travesseiro. Em seguida

sentou-se na borda da cama e descalçou os sapatos.

- Acha então que valem cem mil? — perguntou Jim, parando de

desapertar o laço do sapato e olhando para cima.

- Pois com certeza — foi a resposta. — Vi uma vez uma bailarina no

Arizona que tinha uns diamantes grandes. Não eram verdadeiros. Ela disse

que, se fossem, não precisaria dançar. Disse que valeriam por volta de

cinquenta mil, e ela não chegava a ter uma dúzia, ao todo.

- Quem trabalharia para viver? - perguntou Jim, triunfante.

— Com pá e enxada! — disse desdenhosamente. — Trabalhar como um

cão, toda a vida, economizar todos os salários e nem assim teria metade do

que ganhamos esta noite.

Page 186: Jack london   contos

- Lavar pratos é a mesma coisa, e nunca se ganham mais de vinte

dólares por mês, além da comida. Os teus cálculos não estão certos, mas o

que importa é a ideia. Que trabalhem aqueles que gostam de o fazer. Fui

guarda florestal, por trinta dólares por mês, quando era novo e tolo. Bom!

Agora sou mais velho e não vou ser guarda florestal.

Deitou-se num dos lados da cama. Jim apagou a luz e imitou-o, do

outro lado.

- Como está seu braço? — perguntou Jim amavelmente.

Um cuidado destes não era hábito. Matt reparou nisso e replicou:

- Não deve haver perigo de raiva. Por que é que pergunta?

Jim sentiu-se culpado e amaldiçoou, para si mesmo, a maneira

que o outro tinha de fazer perguntas desagradáveis; mas em voz alta

retorquiu:

- Por nada. Como você parecia preocupado no começo... Que vai

fazer com a sua parte, Matt?

- Comprar um rancho de gado no Arizona, instalar-me e pagar a

outros para que trabalhem por mim. Há uns quantos que gostaria que

viessem me pedir trabalho, malditos sejam eles! E agora cala essa boca,

Jim. Ainda vai levar algum tempo, antes que eu compre esse rancho. Agora

vou dormir.

Mas Jim ficou muito tempo acordado, nervoso e contraído, virando-se

na cama, sem descanso, e acordando de novo, de cada vez que passava pelo

sono. Os diamantes continuavam a brilhar debaixo das suas pálpebras, e o

fogo deles queimava. Matt, não obstante a sua compleição pesada, tinha o

sono leve como um animal selvagem, alerta, enquanto dorme. E Jim

notava que, cada vez que se movia, o corpo do seu camarada se movia o

suficiente para mostrar que recebera a impressão e estava prestes a

acordar. Muitas vezes, Jim não tinha sequer certeza se ele estava ou não

dormindo. Uma vez, calmamente, demonstrando estar completamente

acordado, Matt dissera-lhe:

190

Page 187: Jack london   contos

— Ah! dorme, Jim. Não fique assim por causa das joias. Estão bem

guardadas. - E Jim pensara que, nesse preciso instante, Matt estava

dormindo.

De manhã, já tarde, Matt acordou ao primeiro movimento de Jim e, a

partir de então, passou pelo sono, até o meio-dia, quando se levantaram

juntos e começaram a se vestir.

— Vou sair para comprar o jornal e pão - disse Matt. - Faça o café.

Ao ouvi-lo, os olhos de Jim, inconscientemente, afastaram-se do

rosto de Matt, vagaram até o travesseiro, debaixo do qual estava o

embrulho, atado com o lenço colorido. Imediatamente o rosto de Matt se

transformou no de um animal selvagem.

— Escute aqui, Jim — rosnou. — Você tem que ser honesto. Se me

enganar, liquido-o. Compreende? Dou conta de você, Jim. Já sabe. Abro

sua garganta a dentadas e como-o como se fosse carne de bife.

Seu rosto, queimado pelo sol, estava enegrecido por uma onda de

sangue, e os beiços arreganhados deixavam ver os dentes manchados pelo

fumo. Jim estremeceu e encolheu-se involuntariamente. Havia uma

ameaça de morte no homem que tinha à sua frente. Ainda na noite

anterior aquele homem, de rosto escuro, tinha matado outro com as mãos,

e isso não lhe perturbara o sono. No fundo do coração, Jim sentia

insinuar-se um sentimento de culpa, uma torrente de pensamentos que o

tornava merecedor de todas aquelas ameaças.

Matt saiu, deixando-o ainda tremendo. Então o ódio contorceu- lhe o

próprio rosto e, baixinho, rosnou maldições ferozes contra a porta.

Lembrou-se das joias e correu para a cama, procurando às apalpadelas,

debaixo do travesseiro, o embrulho do lenço. Apalpou-o com os dedos,

para se certificar de que ainda continha os diamantes. Certo de que Matt

não os levara, olhou para o fogão de querosene, com um sobressalto de

culpa. Acendeu-o então apressadamente, encheu a cafeteira na pia e

colocou-a sobre a chama.

O café fervia quando Matt voltou; enquanto este cortava o pão e

punha um pedaço de manteiga na mesa, Jim serviu o café. Só

191

Page 188: Jack london   contos

depois de ter se sentado e bebido uns goles de café é que Matt tirou o jornal

do bolso.

- Ficamos muito aquém - disse. - Eu bem dizia que era volumoso.

Olhe para isto!

Apontava para as manchetes da primeira página:

CASTIGO RÁPIDO DE BUJANNOFF - leram. MORTO ENQUANTO

DORMIA DEPOIS DE TER ROUBADO O SÓCIO.

Ora, aí está! — exclamou Matt. - Ele roubou o sócio... roubou-o, como

um ladrão indecente.

- Meio milhão de joias desaparecidas - leu Jim em voz alta. Pousou o

jornal e fitou Matt, de olhos arregalados.

- Era o que eu dizia - disse o último. - Que diabo entendemos nós de

joias? Meio milhão!... e o máximo que eu calculava era cem mil.

Continuaram a ler, em silêncio, as cabeças lado a lado, deixando o café

esfriar sem tomá-lo; de vez em quando, um ou outro frisava, em voz alta,

qualquer fato importante, impresso.

- Gostaria de ter visto a cara do Metzner, quando abriu o cofre da

loja, esta manhã - exultou Jim.

- Correu, como uma seta, à casa do BujannofF explicou Matt.

- Continua lendo.

- Era para partir a noite passada no Sajoda para os mares do Sul. O

navio atrasou-se devido a um carregamento extra...

- Foi por isso que o apanhamos na cama - interrompeu Matt.

- Foi sorte... foi o mesmo que ter apostado no vencedor cinquenta a um.

- O Sajoda partiu às seis da manhã.

- E ele não o apanhou — disse Matt. — Eu reparei que o despertador

estava marcado para as cinco. Dar-lhe-ia tempo mais que suficiente... mas

acontece que apareci e o liquidei. Continue.

Page 189: Jack london   contos

— Adolfo Metzner está desesperado... o famoso colar de pérolas

Haythorne... magnífico conjunto de pérolas... avaliadas pelos peritos entre

cinquenta a setenta mil dólares.

Jim parou para praguejar solenemente, concluindo:

— Aqueles malditos ovos de avestruz valerem todo este dinheiro!

Lambeu os beiços e acrescentou:

— Eram uma beleza, não há dúvida!

— Enorme gema brasileira - continuou ele a ler. - Oitenta mil

dólares... Muitas pedras valiosas de primeira água... Alguns milhares de

diamantes pequenos, valendo bem quarenta mil.

—A nossa ignorância sobre joias é grande - comentou Matt, sorrindo,

bem humorado.

— Teoria dos investigadores — leu Jim. — Os ladrões devem ter

sabido... vigiado habilmente os passos de BujannofF... devem ter tido

conhecimento do seu plano e tê-lo seguido até sua casa, atrás dos frutos do

seu roubo...

— Que hábil, que nada! - interrompeu Matt. É assim que se fazem as

reputações... nos jornais. Como havíamos nós de saber que ele ia roubar o

sócio?

— Fosse como fosse, temos a mercadoria - comentou Jim sorrindo.

— Vamos vê-la outra vez.

Certificou-se de novo que a porta estava fechada e trancada, enquanto

Matt ia buscar o embrulho do lenço e o abria, sobre a mesa.

— Não são uma beleza? — exclamou Jim, à vista das pérolas; e durante

algum tempo só teve olhos para elas. — Segundo os peritos, valem de

cinquenta a setenta mil dólares.

— E as mulheres adoram estas coisas - comentou Matt. - E fazem

tudo para possui-las: vendem-se... matam... tudo!

— Tal como eu e você.

— Lá isso é que não — retorquiu Matt. — Sou capaz de matar por

elas, mas não por elas em si: apenas pelo que me proporcionarão. Aí é que

está a diferença. As mulheres cobiçam as joias por elas

193

Page 190: Jack london   contos

próprias, e eu cobiço-as pelas mulheres e coisas assim que elas me

proporcionam.

- E uma sorte que as mulheres e os homens não desejem as mesmas

coisas - observou Jim.

- É isso que faz o comércio — concordou Matt: - as pessoas quererem

coisas diferentes.

No meio da tarde, Jim saiu para comprar comida. Enquanto esteve

ausente, Matt tirou as joias da mesa, embrulhando-as como estavam

anteriormente e colocando-as debaixo do travesseiro. Em seguida acendeu

o fogão de querosene e pôs água para o café. Poucos minutos depois, Jim

regressou.

- É surpreendente - observou. - As ruas, as lojas e as pessoas estão

todas na mesma. Nada mudou. E eu, um milionário, passeando no meio

delas. Ninguém olhou para mim nem adivinhou.

Matt rosnou qualquer coisa em tom de pouco interesse. Não compre-

endia muito bem os caprichos e fantasias da imaginação do seu sócio.

- Trouxe os bifes?

- Claro, e com uma polegada de grossura. São uma beleza. Olha só.

Desembrulhou-os e levantou-os, para que o outro os examinasse. Em

seguida fez o café e pôs a mesa, enquanto Matt fritava os bifes.

- Não ponha pimentão demais - avisou Jim. - Não estou habituado à

sua comida mexicana. Tempera sempre demais.

Matt deu uma gargalhada semelhante a um ronco e continuou a

cozinhar. Jim serviu o café, mas primeiro esvaziou para dentro da xícara

de porcelana rachada um pó que tinha trazido no bolso do colete,

embrulhado em papel de arroz. Tinha nessa altura voltado as costas para o

companheiro, mas não ousou olhar em torno de si. Matt colocou um jornal

sobre a mesa e, por cima deste, a frigideira quente. Partiu o bife ao meio e

serviu-se a si e a Jim.

- Come enquanto está quente — aconselhou. E deu o exemplo com a

faca e o garfo.

194

Page 191: Jack london   contos

- Está maravilhoso — comentou Jim, depois da primeira garfada.

- Mas vou lhe dizer já uma coisa. Nunca irei visitá-lo nesse seu rancho do

Arizona; portanto não vale a pena me convidar.

- O que é que se passa agora? - perguntou Matt. — Passa-se o diabo!

— foi a resposta. - Os cozinheiros mexicanos do seu rancho seriam

demasiado fortes para mim. Já que tenho que ir para o inferno na outra

vida, não vou atormentar as minhas entranhas nesta. Maldito pimentão!

Sorriu, soprou para refrescar a boca, bebeu um pouco de café e

continuou a comer o bife.

- E a propósito: acredita na outra vida, Matt? — perguntou pouco

depois, enquanto intimamente se admirava porque o outro ainda não

tocara no café.

- Não há outra vida - respondeu Matt, parando de comer o bife para

beber o primeiro gole de café. - Nem céu, nem inferno, nem nada. Só esta

vida é que conta.

- E depois? - interrogou Jim com a sua curiosidade mórbida, pois

sabia que estava falando com um homem que em breve morreria. - E

depois? - repetiu.

- Já viu alguma vez um homem com duas semanas de morto? -

perguntou o outro.

Jim abanou a cabeça.

- Bom, pois eu já. Estava como este bife que eu e você estamos a

comendo. Tempos antes, andava pulando por aí. Mas depois era apenas

esterco. Esterco e nada mais. É tudo. E é o que você e eu e toda a gente

viremos a ser: esterco!

Matt engoliu de um trago a xícara de café e tornou a enchê-la.

- Você tem medo de morrer? Jim abanou a cabeça.

- Por que é que havia de ter? Não morro, de qualquer maneira. Morro

e torno a viver...

- Para roubar, mentir e penar durante outra vida inteira, e continuar

assim para sempre? - disse Matt com desprezo.

195

Page 192: Jack london   contos

- Pode ser que melhore - sugeriu Jim, cheio de esperança. - Talvez

não seja preciso roubar, na vida futura.

Interrompeu-se abruptamente, de olhar fixo, com uma expressão

assustada no rosto.

- Que é que você tem? - perguntou Matt.

— Nada. Estava apenas pensando... na morte... e nisso tudo.

Jim voltou a si, num grande esforço. Mas não conseguia afastar

o medo que se apossara dele. Era como se tivesse roçado por ele algo

invisível e ameaçador, oprimindo-o com a sombra intangível da sua

presença. Tinha um mau pressentimento. Algo de mau ia acontecer. A

desgraça pairava no ar. Fitou fixamente o outro homem, do outro lado da

mesa. Não conseguia compreender. Ter-se-ia enganado, envenenando-se a

si próprio? Mas não. Matt é que estava com a xícara rachada, e ele tinha

certeza de ter posto o veneno na xícara rachada.

“Era tudo imaginação sua”, pensou a seguir. Já anteriormente lhe

tinha pregado outras peças. Que louco! Pois claro que era isso. Ia

certamente acontecer qualquer coisa, mas era a Matt que ia acontecer. Náo

tinha Matt bebido a xícara inteira de café?

Jim animou-se e acabou o bife, ensopando pão no molho, depois de ter

acabado a carne.

— Quando era pequeno... — começou a dizer; mas interrompeu-se

abruptamente.

De novo a coisa invisível e ameaçadora tinha esvoaçado, e todo o seu

ser vibrava com o presságio de uma desgraça iminente. Sentia qualquer

coisa romper-se na sua carne, e todos os seus músculos pareciam começar a

contrair-se. Recostou-se repentinamente para trás e logo, repentinamente

também, inclinou-se para diante, com os cotovelos apoiados sobre a mesa.

Um tremor percorreu vagamente os seus músculos. Era como o primeiro

sussurrar de folhas antes da chegada do vento. Cerrou os dentes. De novo

se verificou o retesa- mento espasmódico dos músculos. Sentiu-se

apavorado, com a revolta

196

Page 193: Jack london   contos

dentro de si. Os músculos já não reconheciam seu domínio sobre eles. De

novo se retesaram espasmodicamente, não obstante a sua vontade, pois ele

tinha lhes ordenado que não o fizessem. Era uma revolta dentro de si

próprio, era a anarquia. E o terror da impotência dominou-o, enquanto a

sua carne se encolhia e parecia apertá-lo, calafrios percorriam sua espinha,

para cima e para baixo, e o suor lhe brotava da testa. Olhou à volta, e todos

os pormenores do quarto lhe deram uma sensação estranha de

familiaridade. Era como se tivesse acabado de regressar de uma longa

viagem. Olhou para o companheiro, do outro lado da mesa. Matt

observava-o e sorria. Uma expressão de pavor espalhou-se pela cara de

Jim.

- Meu Deus, Matt! - gritou. - Não me envenenou, não é?

Matt sorriu e continuou a observá-lo. Jim não perdeu a consciência,

no paroxismo que se seguiu. Os seus músculos retesavam-se e

contraíam-se, magoando-o e esmagando-o com o seu aperto violento. E,

no meio de tudo isso, deu-se conta que Matt agia de modo estranho.

Percorria o mesmo caminho. O sorriso tinha se apagado em seu rosto e

dera lugar a uma expressão atenta, como se escutasse alguma história

interior e estivesse tentando adivinhar sua mensagem. Matt levantou-se,

atravessou o quarto, voltou atrás e sentou-se.

- Foi você, Jim — disse calmamente.

- Mas não pensava que você tentaria me liquidar — respondeu Jim

com ar de censura.

- Oh! liquidei, sim! - disse Matt, com os dentes cerrados e o corpo

tremendo. — Que é que me deu?

- Estricnina.

- O mesmo que eu a você — confessou Matt. Que grande enrascada!

- Está mentindo, Matt - suplicou Jim. - Não me envenenou, náo é?

- Envenenei, sim; mas não exagerei a dose. Cozinhei-a, como você

gosta, na sua metade de bife... Alto aí! Onde vai?

197

Page 194: Jack london   contos

Jim dera uma corrida para a porta e abria a fechadura. Matt

interpôs-se, de um salto, e afastou-o com um empurrão.

— Farmácia! — arfou Jim. - Farmácia!

—Você não vai lá. Não vai sair daqui. Não vai sair, para fazer uma

cena de envenenamento, na rua... com aquelas joias escondidas debaixo do

travesseiro. Vê? Mesmo que não morresse, cairia nas mãos da polícia e

tinha que dar um monte de explicações. Um vomitório é o indicado para

envenamento. Estou tão mal como você e vou tomar um vomitório. Era

isso que lhe dariam na farmácia, de qualquer maneira.

Empurrou Jim para o meio do compartimento e tornou a correr os

ferrolhos. Ao encaminhar-se para a prateleira da comida passou a mão pela

testa e limpou as gotas de suor. Estas salpicaram o chão, produzindo um

ruído audível. Jim observou, no meio de um sofrimento intenso, Matt tirar

o vidro de mostarda e uma xícara, e correr para a pia. Misturou mostarda

numa xícara de água e bebeu-a. Jim seguira-o e estendeu as mãos trêmulas

para a xícara vazia. Matt empurrou-o outra vez. Enquanto preparava uma

segunda xícara, perguntou:

— Acha que uma xícara será suficiente para mim? Espere até eu

acabar. Cambaleando, Jim começou a dirigir-se para a porta, mas Matt

fê-lo parar.

— Se mexer com aquela porta, torço seu pescoço. Vê? Vai poder

tomar o seu, quando eu tiver acabado. E, se se salvar, torço seu pescoço do

mesmo jeito. Você não tem esperança nenhuma, de qualquer maneira. Eu

lhe disse muitas vezes o que aconteceria se me pregasse uma peça.

— Mas você me fez a mesma coisa — articulou Jim, a custo.

Matt estava bebendo a segunda xícara e não respondeu. O suor

caía sobre os olhos de Jim. Este mal distinguia o caminho para a mesa,

onde arranjou uma xícara para si. Mas Matt preparava uma terceira xícara

e afastou-o como das outras vezes.

— Já disse para esperar até eu acabar - rosnou Matt. - Sai da minha

frente.

198

Page 195: Jack london   contos

£ Jim apoiou contra a pia o corpo em convulsões, cobiçando a poção

amarelada que significava a vida. Foi por pura força de vontade que

conseguiu se aguentar, agarrado à pia. O corpo lutava por dobrar-se em

dois e fazê-lo cair no chão. Matt bebeu a terceira xícara e, a custo,

conseguiu puxar uma cadeira e sentar-se. O primeiro paroxismo estava

passando. Os espasmos que o atormentavam estavam desaparecendo.

Atribuiu isto ao efeito salutar da mostarda e da água. Estava salvo, de

qualquer forma. Limpou o suor do rosto e naquele intervalo de calma

conseguiu sentir curiosidade. Olhou para o companheiro.

Um espasmo fizera saltar o frasco de mostarda das mãos de Jim, e seu

conteúdo derramou-se pelo chão. Abaixou-se para apanhar um pouco e

botar dentro da xícara, mas o espasmo seguinte derrubou-o, dobrado, no

chão. Matt sorriu.

- Vá! Anime-se - disse ele. - E esse o remédio. Já me fez bem.

Jim ouviu-o e virou para ele um rosto apavorado, contraído pelo

sofrimento e pela súplica. Os espasmos agora seguiam-se uns aos outros.

Entrou em convulsões, rebolando pelo chão e sujando de amarelo a cara e

o cabelo, na mostarda.

Matt riu roucamente, mas a gargalhada interrompeu-se no meio. Seu

corpo fora percorrido por um tremor. Estava começando um novo

paroxismo. Levantou-se e, cambaleando, dirigiu-se à pia, onde, metendo o

dedo indicador garganta abaixo, tentou ajudar a ação do vomitório. Por

fim, agarrou-se à pia, tal como Jim fizera, cheio de terror por sentir-se

cair.

O paroxismo do outro passara, e ele sentou-se, fraco e quase des-

maiando, demasiado fraco para se levantar, o suor a cair-lhe da testa

amarelado pela mostarda sobre a qual tinha caido, os lábios listados de

espuma. Esfregou os olhos com os nós dos dedos, e de sua garganta

escaparam roncos que pareciam gemidos.

— Por que está choramingando? — perguntou Matt, ainda cheio de

dores. — Tudo o que tem a fazer é morrer. E, quando morrer, estará

morto.

Page 196: Jack london   contos

- Eu... náo estou... choramingando... é... a mostarda... que me... arde...

nos olhos - arquejou Jim com uma lentidão desesperada.

Foi a sua última e falhada tentativa de falar. Daí em diante balbuciou

palavras incoerentes, sacudindo o ar com os braços que tremiam, até que

uma nova convulsão o estendeu no chão.

Matt conseguiu com esforço voltar para a cadeira, e, dobrado em dois,

os braços abraçando os joelhos, lutou com a sua carne que se desintegrava.

No fim da convulsão, ficou fraco e gelado. Olhou, para ver o que se passava

com o outro, e viu-o prostrado, imóvel no chão.

Tentou monologar consigo próprio, brincar, rir amargamente e pela

última vez na vida. Mas seus lábios só produziam sons incoerentes. Pensou

que o vomitório náo produzira efeito, e que só lhe restava a farmácia.

Olhou para a porta e pôs-se em pé. Mas só conseguiu evitar cair,

agarrando-se à cadeira. Principiara outro estertor. No meio deste, com o

corpo se desintegrando, em convulsões e contrações, manteve-se agarrado

à cadeira que acabou por empurrar diante de si, pelo chão afora. Quando

atingiu a porta, abandonavam-no os últimos lampejos de vontade. Rodou a

chave e abriu uma tranca. Tateou, à procura da segunda, mas não

conseguiu. Então apoiou o peso do corpo contra a porta e escorregou

lentamente para o chão.

200

Page 197: Jack london   contos

capítulo li

O PAGÃO

Vi-o pela primeira vez num furacão; e embora sofrêssemos no mesmo

barco, foi só quando a embarcação se espatifou debaixo de nós que pela

primeira vez pus os olhos nele. Sem dúvida o teria visto a bordo com o

resto da tripulação nativa, mas não tive consciência de sua existência, pois

o Petite Jeanne estava apinhado. Além do seu capitão, piloto e comissário

brancos, e de seus seis passageiros de cabina, saiu o barco de Rangiroa com

um número aproximado de oitenta passageiros de convés — paumotanos e

taitianos, homens, mulheres e crianças, todos carregando suas caixas de

mercadoria, para não falar das esteiras de dormir, cobertores e embrulhos

de roupa.

A estação das pérolas no Paumotus se acabara, e os trabalhadores

regressavam para Taiti. Seis dentre os passageiros de cabine eram

compradores de pérolas. Dois eram americanos, um era Ab Choon (o

chinês mais branco que já vi), um era alemão, um era judeu polonês, e o

último era eu, que arredondava a meia dúzia.

A estação fora próspera. Nenhum de nós tinha motivo de queixa, o

mesmo acontecendo aos oitenta e cindo passageiros de convés, todos

bem-sucedidos, e que agora esperavam ansiosamente descansar e se

divertir em Papeete.

201

Page 198: Jack london   contos

Sem nenhuma dúvida, o Petite Jeanne estava sobrecarregado. Tinha

apenas setenta toneladas, e náo tinha o direito de transportar um décimo

da multidão que levava a bordo. Debaixo das escotilhas, estava cheio,

transbordando de conchas de pérolas e de copra. Até mesmo a sala de

trocas estava abarrotada de conchas. Milagre era os marinheiros poderem

fazer o barco navegar. Não era possível caminhar ao longo das cobertas:

era simplesmente preciso subir nas amuradas, e ir escorregando de um lado

para o outro.

Durante a noite, caminhava-se sobre os que dormiam e que atape-

tavam o chão, juro que a dois de fundo. Oh! e havia porcos e galinhas nas

cobertas, e sacos de inhame, enquanto cada recanto concebível se via

infestado de cordões de cocos verdes e cachos de banana. De ambos os

lados, entre a vela de traquete e a vela grande, estenderam-se cordas de

retenção, numa altura suficientemente pequena para permitir livre jogo ao

pau de carga; e de cada corda estavam suspensos pelo menos cinquenta

cachos de banana.

A viagem prometia ser penosa, mesmo que a fizéssemos nos dois ou

três dias previstos, caso os alísios de sudoeste tornassem a soprar. Mas não

tornaram. Após as primeiras cinco horas, os alísios se diluíram em mais ou

menos uma dúzia de ventiladores ofegantes. A calma continuou durante

toda aquela noite e no dia seguinte - uma dessas calmas ofuscantes e

vidrentas, quando a simples ideia de abrir os olhos para fitá-la causa dor de

cabeça.

No segundo dia um homem morreu — um ilhéu da Ilha da Páscoa, e

um dos melhores mergulhadores da laguna nessa estação. Varíola

— disseram que foi; embora de que maneira a varíola podia entrar a

bordo, quando não havia nenhum caso em terra quando saímos de

Rangiroa - não posso compreender. Mas entrara - a varíola, que fez um

morto e pôs três outros de cama.

Nada se podia fazer. Impossível apartar os doentes ou tratá-los:

estávamos amontoados como sardinhas. Nada a fazer, exceto apodrecer e

morrer — isto é, nada a fazer depois da noite que se seguiu à

202

Page 199: Jack london   contos

primeira morte. Naquela noite, o piloto, o comissário, o judeu polonês e os

quatro mergulhadores nativos fugiram na baleeira grande. Nunca mais

houve notícias deles. Na manhã seguinte o capitão prontamente abriu

rombos nos botes restantes, e lá ficamos.

Naquele dia houve duas mortes: no dia seguinte, três; depois pulou

para oito. Era curioso observar como as recebíamos. Os nativos, por

exemplo, caíam num estado de medo estoico e mudo. O capitão - Ou-

douse era seu nome, um francês - ficava muito nervoso e instável. Na

realidade, tinha espasmos. Era um homem grande e gordo, pesando

aproximadamente duzentas libras, e dentro em pouco lembrava a fiel

imagem de uma trêmula montanha de gordura gelatinosa.

O alemão, os dois americanos e eu compramos todo o uísque

disponível e começamos a nos embriagar. A teoria era bela — isto é, se

permanecêssemos encharcados em álcool, todos os germes de varíola em

contato conosco seriam queimados, transformados em cinzas. E a teoria

funcionou, embora eu deva confessar que nem o capitão Oudouse nem Ah

Choon foram atacados pela moléstia. O francês absolutamente não bebia,

enquanto Ah Choon se limitava a beber uma só vez por dia.

O tempo estava lindo. O Sol, que declinava para o norte, estava

diretamente em cima de nossas cabeças. Não havia vento, exceto umas

frequentes rajadas, que sopravam ferozes durante cinco minutos ou

durante meia hora, e acabavam por nos inundar de chuva. Depois de cada

rajada, o Sol terrível surgia, levantando nuvens de vapor das cobertas

encharcadas.

A exalação não era nada boa. Era um cheiro de morte, carregado de

milhões e milhões de germes. Sempre tomávamos outro trago quando o

sentíamos levantar-se dos mortos e dos moribundos, e usualmente

tomávamos dois ou três copos de uma mistura excepcionalmente forte.

Estabelecemos uma regra: tomar uma dose adicional cada vez que

lançavam os mortos aos tubarões que enxameavam em torno de nós.

203

Page 200: Jack london   contos

Assim decorreu uma semana, quando o uísque acabou. Não houve mal

nenhum nisso; do contrário, eu não estaria vivo agora. Era preciso um

homem ser sóbrio para aguentar o que se seguiu, e vocês concordarão

quando eu disser que apenas dois homens aguentaram. O outro homem era

o pagão - pelo menos foi assim que ouvi o capitão Oudouse chamá-lo no

momento em que tomei consciência de sua existência. Mas voltemos ao

assunto.

Foi no fim da semana, quando o uísque se acabara e os compradores de

pérola já estavam sóbrios, que me aconteceu olhar para o barômetro

dependurado na cabina. Seu nível normal em Paumotus era 29.90, ou

mesmo 30.05 e era comum vê-lo oscilar entre 29.85 e 30.00, ou mesmo

30.05: mas vê-lo como eu o via agora, no nível de 29.62, bastava para

deixar sóbrio qualquer comprador de pérolas ébrio e que até então tivesse

incinerado micróbios de varíola em uísque escocês.

Chamei a atenção do capitão Oudouse para o registro, apenas para

ouvir que ele já o vinha observando havia muitas horas. Pouco se podia

fazer, mas esse pouco valia, de acordo com as circunstâncias. O capitão

recolheu as velas leves, desenrolou as velas de borrasca, estendeu cordas de

salvamento e esperou o vento. Seu erro foi o que fez depois que o vento

começou a soprar. Amurou o navio para bombordo, o que seria acertado

fazer-se ao sul do Equador, se - e esse era o ponto - se não se estivesse na

rota direta do furacão.

Mas estávamos nessa rota. Podia vê-lo graças ao aumento da velo-

cidade do vento e à queda, igualmente firme, do barômetro. Quis eu que o

capitão virasse e corresse com o vento no quarto de bombordo até que o

barômetro deixasse de cair, para só então meter a capa. Discutimos até que

ele, já agora frenético, não quis se mexer. O pior foi que não pude fazer

com que o resto dos compradores de pérolas me apoiassem. Quem era eu,

afinal, para que conhecesse melhor as coisas do mar e seus costumes, do

que um capitão adequadamente qualificado? Eu bem sabia que era isso o

que pensavam.

204

Page 201: Jack london   contos

Naturalmente, o mar se empolou horrivelmente por causa do vento; e

nunca esquecerei os três primeiros vagalhões que o Petite Jeanne atravessou.

Ela se desviara para sotavento, como fazem às vezes os navios que amuram

para bombordo, e o primeiro vagalhão a apanhou em cheio. As cordas de

salvamento só valiam para os fortes e os sãos, mas não raro pouco

adiantavam também para estes, quando mulheres e crianças, bananas e

cocos, porcos e caixas de mercadorias, doentes e moribundos eram

varridos em massa, num aglomerado de gritos e gemidos.

O segundo vagalhão encheu a coberta do Petite Jeanne até a amurada; e

como a sua popa se afundou e sua proa se levantou para o céu, todas as

míseras almofadas da estiva e toda a bagagem foram impelidas para ré.

Verdadeira torrente humana. Caíam, aqueles infelizes, com a cabeça ou

com os pés para frente, de lado, rolando e tornando a rolar, torcendo-se,

contorcendo-se, para afinal se amontoarem uns sobre os outros. De vez em

quando um deles conseguia agarrar-se a uma corda ou a um ponta- lete;

mas o peso dos corpos que vinham atrás faziam-no largá-los. Vi um

homem vir de cabeça e bater no turco de estibordo: seu crânio se quebrou

como um ovo. Percebi o que estava para vir: saltei para o teto da cabina e

dali para a vela principal. Ah Choon e um dos americanos quiseram

seguir-me, mas eu estava um salto na dianteira. O americano foi varrido

por cima da ré como um pedaço de palha. Ah Choon agarrou um dos raios

da roda do leme e ali ficou, se balançando. Mas uma robusta wahine

(mulher) Rarotonga - devia pesar umas duzentas e cinquenta libras -

abalroou-o e enlaçou-lhe o pescoço com o braço. O homem agarrou o

pescoço do piloto canaca com a outra mão e, justamente naquele instante,

a escuna tombou para estibordo.

O atropelo de corpos e água que corria da prancha de descarga a

bombordo entre a cabine e a amurada, virou-se abruptamente e desaguou a

estibordo. Lá se foram todos - wahine, Ah Choon e o piloto. Juro que vi Ah

Choon sorrir para mim com uma resignação filosófica ao passar por cima

da amurada e afundar.

205

Page 202: Jack london   contos

O terceiro vagalhão - o maior dos três - não fez tanto estrago. Quando

golpeou, quase todos estavam no cordame. Na coberta, talvez uma dúzia de

desgraçados ofegava, todos meio afogados e embrutecidos, rolando de um

lado para outro e tentando rastejar para lugar seguro. Mas foram atirados

por cima da amurada, assim como acontecera aos restos dos dois botes

remanescentes. Os demais compradores de pérolas e eu conseguimos,

entre um e outro vagalhão, fazer entrarem na cabina umas quinze

mulheres e crianças, e aí as encerramos. Mas isso de pouco adiantou às

pobres criaturas, no fim.

Se ventava? Em toda a vida eu não teria acreditado ser possível ao

vento soprar daquela maneira. Não se pode descrever. Como pode alguém

descrever um pesadelo? O mesmo acontecia com aquele vento. Rasgava as

roupas que vestíamos, arrancando-as. Digo rasgava, e é isso mesmo o que

quero dizer. Não lhes peço que acreditem. Estou tão somente relatando

algo que vi e que senti. Há momentos em que eu mesmo não acredito nisso.

Vivi aquele momento, e é o quanto basta. Impossível encarar um

vento desses e continuar vivo. Era uma coisa monstruosa, e a coisa ainda

mais monstruosa era que crescia e continuava a crescer.

Imaginem incontáveis milhões e bilhões de toneladas de areia.

Imaginem essas toneladas de areia irrompendo a noventa, cem, cento e

vinte ou qualquer outro número de milhas por hora. Imaginem, em

seguida, que esta areia é invisível, impalpável, e entretanto retém todo o

peso e a densidade da areia. Façam tudo isso, e poderão obter uma vaga

noção do que era aquele vento.

Talvez a areia não seja uma comparação correta, e melhor seria uma

lama, invisível, impalpável, porém pesada como lama. Não, ainda vai além

disso. Imaginem um banco de lama em cada molécula de ar. Depois

experimentem imaginar o múltiplo impacto de bancos de lama. Não: não

posso descrevê-lo. A linguagem pode ser adequada para exprimir as

condições ordinárias da vida, mas não pode possivelmente exprimir

qualquer das condições de uma tão enorme rajada.

206

Page 203: Jack london   contos

Melhor para mim teria sido continuar apegado à intenção original, e não

tentar descrever o impossível.

Porém isto eu direi: o oceano, no princípio encapelado, foi abatido por

esse vento. Ainda mais: dir-se-ia que todo o oceano fora sugado nas fauces

do furacão, e arremessado através daquele trecho de espaço previamente

ocupado pelo ar.

Naturalmente, já fazia tempo que nossas velas tinham desaparecido.

Mas o capitão Oudouse tinha no Petite Jeanne uma coisa que eu nunca vira

em escuna alguma dos mares do Sul: - uma âncora marítima. Era ela um

saco cônico de lona, cuja boca era conservada aberta por um grande arco

de ferro. A âncora marítima era mais ou menos embridada como um

papagaio de papel, de modo que mordia a água mais ou menos como um

pagagaio morde o ar, com uma diferença porém: a âncora permanecia logo

abaixo do nível do oceano, numa posição perpendicular. Uma comprida

corda, por sua vez, ligava a âncora à escuna. O resultado era o Petite Jeanne

navegar com a proa para o vento em qualquer mar.

A situação teria realmente sido favorável, não fosse navegarmos na

rota do furacão. Com efeito, o próprio vento arrancava as velas das gaxetas,

puxava os mastaréus e atrapalhava o funcionamento de nossas máquinas,

porém mesmo assim teríamos escapado lindamente da borrasca, não fôsse

estarmos de frente para o centro do furacão que vinha vindo. Foi isso o que

nos perdeu. Eu estava imerso numa espécie de colapso idiotizado, inerme e

paralítico por estar suportando em cheio todo o impacto do vento, e chego

a pensar que estava pronto para desistir da luta e morrer, quando o centro

do furacão nos golpeou. O golpe que nos feriu foi de uma bonança

absoluta. Não havia o mais leve movimento de ar. O efeito disso foi o

enjoo.

Lembrem-se de que, durante horas, estivemos numa terrível tensão

muscular, suportando a medonha pressão daquele vento. Quando, de

repente, a pressão desapareceu, senti-me como a pique de expandir-me, de

estourar em todas as direções. Dir-se-ia que cada

207

Page 204: Jack london   contos

átomo que compunha o meu corpo repelia todos os outros átomos e estava

o ponto de se precipitar irresistivelmente para o espaço. Isto porém durou

apenas um momento. A destruição era iminente.

Na ausência de pressão e de vento, o mar se empolou. Pulava, saltava,

levantava-se direto para o céu. Lembrem-se: de todos os pontos do

compasso: esse vento inconcebível soprava na direção do centro da

calmaria. O resultado era os vagalhões saltarem de toda a rosa- dos-ventos,

sem vento para detê-los. Saltavam como rolhas libertadas do fundo de um

balde de água. Não tinham sistema algum, nem estabilidade. Eram

vagalhões cavernosos e maníacos. Tinham pelo menos oitenta pés de

altura. Absolutamente não eram vagalhões. Não se pareciam a mar algum

ainda visto pelo homem.

Eram chapas de água - monstruosas chapas — eis tudo. Chapas de

oitenta pés de altura. Oitenta! Às vezes mais! Ultrapassavam os nossos

mastros. Eram repuxos, explosões. Estavam bêbadas. Caíam em qualquer

lugar, de qualquer jeito. Empurravam-se umas às outras: colidiam.

Atropelavam-se e tombavam umas sobre as outras, ou se dividiam como

mil cataratas de uma vez. Oceano com o qual homem algum jamais

sonhara, era aquele, do centro do furacão. Uma confusão três vezes

confusa. Uma anarquia. Um abismo infernal de água do mar enlouquecida.

E o Petite Jeanne? Não sei, o pagão mais tarde me contou que ele

também não sabia. Rachou-se e partiu-se ao meio, foi amassado como

polpa de fruta, despedaçado, aniquilado. Quando voltei a mim, estava

dentro da água, nadando automaticamente, embora estivesse dois terços

afogado. Como cheguei ali, é coisa de que não me lembro. Recordo ter

visto o Petite Jeanne espatifar-se no instante preciso em que a consciência

me era arrancada. Mas ali estava eu, sem nada a fazer exceto tirar o maior

proveito da situação, mas esse proveito era pouco promissor. O vento

recomeçara a soprar, as ondas eram menores e mais regulares, e eu então

soube que havia deixado para trás o centro do furacão. Felizmente não

havia tubarões em redor. O

208

Page 205: Jack london   contos

furacão dissipara a horda esfomeada que cercara o navio da morte e fora

por ele alimentada com cadáveres.

Era quase meio-dia quando o Petite Jeanne se partiu, e seriam já duas

horas quando consegui agarrar uma de suas cobertas de escotilha. Chovia

pesadamente, e foi por mero acaso que eu e a coberta de escotilha nos

abalroamos. Um curto pedaço de corda se arrastava da alça, e pressenti que

ele ajudaria um dia inteiro pelo menos, contanto que os tubarões não

regressassem. Três horas mais tarde, talvez um pouco mais, agarrado à

coberta, os olhos fechados, toda a minha alma concentrada na tarefa de

respirar o suficiente para continuar vivo, ao mesmo tempo na tarefa de

evitar respirar em água suficiente para me afogar, pareceu-me ouvir vozes.

A chuva cessara, o vento e o mar se acalmavam maravilhosamente. A

menos de dez pés de distância, em outra coberta de escotilha, estavam o

capitão Oudouse e o pagáo. Lutavam pela coberta - pelo menos o francês

lutava.

— Paien noir! — ouvi-o exclamar, e ao mesmo tempo vi-o dar um

pontapé no canaca.

Ora, o capitão Oudouse perdera toda a roupa, exceto os sapatos, e estes

eram pesados. O golpe foi cruel, pois apanhou o pagáo na boca e na ponta

do queixo, quase atordoando-o. Esperei que revidasse, mas ele

contentou-se em nadar sozinho mas em segurança a uns dez pés de

distância. Quando um balanço do mar o fazia aproximar-se, o francês,

perdurado pelas mãos, dava-lhe pontapés com ambas as pernas. E a cada

pontapé, chamava o canaca de negro pagão.

—Por dois centavos eu ia aí e o afogava, seu animal branco! —

gritei-lhe.

A única razão por que não o fiz foi por sentir-me cansado; só a ideia do

esforço de nadar me dava tonturas. Gritei ao canaca que viesse até onde eu

estava, e comecei por dividir com ele e coberta da escotilha. Otoo, era seu

nome, disse-me (pronuncia-se o-to-o); também me disse que era nativo de

Borabora, a ilha mais ocidental do grupo das Ilhas Sociedade. Conforme

soube mais tarde, fora ele

Page 206: Jack london   contos

que achara a coberta da escotilha, e após algum tempo, tendo encontrado o

capitão Oudouse, ofereceu partilhá-la com ele, e só recebeu pontapés pelo

gesto.

E foi assim que Otoo e eu nos conhecemos. Não era combativo, mas

todo meiguice e doçura, criatura feita de amor, embora tivesse quase seis

pés de altura e músculos de gladiador. Repito, não era combativo, mas

também não era covarde. Tinha um coração de leão, e nos anos que se

seguiram vi-o correr riscos que eu mesmo nunca pensaria em correr.

Dizendo que não era combativo, quero dizer que, embora nunca se

precipitasse para armar barulho, jamais fugia de uma luta quando esta

começava. E era o mesmo que gritar “Cuidado com o recife!”, quando Otoo

entrava em ação. Jamais me esquecerei do que fez a Bill King. Isso

aconteceu na Samoa Alemã. Bill King era aclamado campeão de peso

pesado da Marinha estadunidense. Era um bruto homem, verdadeiro

gorila, um desses sujeitos duros e provocadores, que sabia manejar os

punhos. Armou uma rixa, e deu dois pontapés em Otoo, e mais um murro,

antes que Otoo sentisse que era necessário lutar. Creio que a luta não

durou quatro minutos, no fim dos quais Bill King era o infeliz possuidor de

duas costelas partidas, um antebraço quebrado e uma omoplata deslocada.

Otoo nada sabia do boxe científico; era simplesmente a força humana que

o movia, e Bill King levou uns três meses para se recuperar da amostra que

recebeu dessa força naquela tarde na praia Apia.

Mas estou me adiantando. Partilhamos, nós dois, a coberta da

escotilha; revezando; e enquanto um ficava deitado na coberta, des-

cansando, o outro, submerso até o pescoço, apenas segurava-a. Dois dias e

duas noites, alternadamente na coberta e na água, boiámos na superfície

do oceano. Quase no fim, eu já delirava a maior parte do tempo, e também

havia vezes em que ouvia Otoo balbuciando e delirando em sua língua

nativa. A contínua imersão nos impedia de sofrer sede, embora a luz e a

água do mar dessem a nossa pele a mais linda mistura imaginável de picles

em conserva e queimadura de sol.

210

Page 207: Jack london   contos

No fim, Otoo salvou-me a vida; pois vi-me deitado na praia, a vinte

passos do mar, abrigado do sol por duas folhas de coqueiro. Não foi

ninguém senão Otoo quem me arrastou para ali e enfiou as folhas na areia

para me fazerem sombra. Otoo estava deitado ali perto, e eu perdera os

sentidos. Quando voltei a mim, vi uma noite fria e estrelada, e Otoo

premindo contra meus lábios um coco de água.

Éramos os únicos sobreviventes do Petite Jeanne. O capitão Oudouse

devia ter morrido de exaustão, pois muitos dias depois sua coberta de

escotilha deu na praia, sozinha. Otoo e eu vivemos com os nativos do atol

durante uma semana, quando fomos recolhidos por um cruzador francês e

levados para Taiti. No ínterim, entretanto, realizamos a cerimônia de

trocar de nomes. Nos Mares do Sul, uma cerimônia dessas liga dois homens

mais estreitamente do que o fariam laços de irmandade. A iniciativa foi

minha; e Otoo ficou numa delirante alegria quando a sugeri.

- Está bem - disse ele em taitiano. - Fomos dois dias companheiros

nos lábios da morte.

- Mas a morte gaguejou — disse eu sorrindo.

- Grande proeza a sua, patrão — respondeu ele — e a morte, não

bastante malvada para responder.

- Por que me chama de patrão? - perguntei-lhe com uma ostentação

de sentimentos ofendidos. — Trocamos de nomes. Para você, sou Otoo.

Para mim, você é Charley. E entre você e eu, para sempre e eternamente,

você será Charley, e eu Otoo. O costume é esse. E quando morrermos, se

acontecer vivermos outra vez em algum lugar além do céu e das estrelas,

você será Charley para mim e eu Otoo para você.

- Sim, patrão — respondeu ele, os olhos cheios de doçura e luminosa

alegria.

- Outra vez! — exclamei indignado.

- Que importa o que meus lábios pronunciam? - argumentou ele.

- São apenas meus lábios. Porque sempre pensarei em Otoo. Quando

Page 208: Jack london   contos

quer que pense em mim, pensarei em você. Quando me chamarem pelo

nome, pensarei em você. E para lá do céu, para lá das estrelas, sempre e

eternamente você será Otoo para mim. Está bem assim, patráo?

Escondi o sorriso e respondi-lhe que estava bem.

Separamo-nos em Papeete. Fiquei em terra me recuperando, e ele

embarcou num cúter para sua ilha de Borabora. Seis semanas depois estava

de volta. Fiquei supreso, pois me falara na mulher, dizendo que ia voltar

para ela, e que desistiria de viagens demasiado compridas.

- Para onde vai, patráo? - perguntou, depois da primeira saudação.

Encolhi os ombros. A pergunta era difícil.

- Vou correr mundo - foi a resposta. - Todo mundo, todos os mares,

todas as ilhas desses mares.

- Irei com o senhor - disse ele com simplicidade. - Minha mulher

morreu.

Nunca tive irmão; mas pelo que tenho visto dos irmãos dos outros,

duvido que alguém jamais tivesse um irmão que fosse o que Otoo era para

mim: irmão, pai e mãe a um só tempo. E isto sei: vivi uma vida mais correta

e melhor, devido a Otoo. Eu pouco me importava com os demais homens,

mas tinha de viver decentemente aos olhos de Otoo. Por causa dele não

ousava conspurcar-me. Ele fazia de mim o seu ideal, compunha-me (assim

penso) com o amor e a adoração que me dedicava; e havia vezes em que,

chegando à beira do abismo do inferno, nele teria me afundado não fosse a

lembrança de Otoo ter-me contido. O orgulho que ele tinha de mim me

penetrava, até que se tornou uma das regras fundamentais do meu código

pessoal náo fazer coisa alguma para desmerecê-lo.

Naturalmente não soube de imediato quais eram os seus sentimentos

para comigo. Ele nunca censurava, nunca criticava; e, lentamente, o lugar

elevado que eu ocupava a seus olhos me foi revelado, e lentamente

comecei a compreender a ofensa que lhe faria sendo qualquer coisa que

não fosse o meu eu melhor.

212

Page 209: Jack london   contos

Juntos vivemos dezessete anos. Por dezessete anos esteve ele ombro a

ombro comigo, vigiando quando eu dormia, cuidando de mim nas febres e

nos ferimentos ai! ai! e recebendo ferimentos quando combatia por mim.

Empregava-se nos mesmos navios que eu; e juntos corremos o Pacífico, de

Havai a Sydney Head, dos Estreitos de Torres aos Galápagos. Fizemos

contrabando a partir das Novas Hébridas às Ilhas Line para o ocidente,

pelas Louisiades, da Nova Bretanha, da Nova Irlanda e da Nova Hanôver.

Três vezes naufragamos - nas Ilhas Gilberts, no grupo de Santa Cruz e nas

Ilhas Fidjis. E negociamos, e executamos selvagens onde quer que

houvesse um dólar prometido em negócios de pérolas e madrepérolas, de

copra, bicho-do-mar, carapaça de tartaruga bico de gavião e restos de

naufrágios.

Começou em Papeete, logo depois que ele comunicou que iria comigo

por todos os mares e suas ilhas. Naquele tempo havia em Papeete um clube

onde se reuniam os peroleiros, os negociantes, os capitães e a escória dos

aventureiros dos Mares do Sul. O jogo era forte, a bebida ainda mais forte,

e receio ter-me tresnoitado mais do que era conveniente ou aceitável. Pois

não importava a hora em que eu saísse do clube: Otoo lá estava ao relento,

esperando para levar- me para casa.

Primeiro sorri; depois repreendi-o. Mais tarde disse-lhe francamente

que náo precisava de babá. Depois disso não mais o vi quando saía do

clube. Quase por acidente, uma semana ou duas mais tarde, descobri que

ele ainda me acompanhava até a casa, escondendo-se na sombra das

mangueiras que orlavam a rua. Que podia eu fazer? Mas sei o que fiz.

Insensivelmente comecei a não varar as noites. Em noites úmidas e

chuvosas, no auge da pândega e das loucuras, vinha-me a ideia de que

Otoo estava em sua triste vigília sob as mangueiras. Em verdade, fez de

mim um homem melhor. Todavia não era um fanático. E nada sabia da

moralidade cristã. Todos os habitantes de Borabora eram cristãos; ele

porém era pagão, o único incréu na ilha, um grosseiro

Page 210: Jack london   contos

materialista, que acreditava que a gente, quando morre, está mesmo morta.

Acreditava tão somente em jogo limpo e em franqueza de trato. A

mesquinhez, no seu código, era quase tão grave como o homicídio culposo;

e até creio que ele respeitava mais um assassino do que um homem

mesquinho.

No que me dizia respeito, pessoalmente, opunha-se a que eu fizesse

qualquer coisa que me causasse dano. Jogar era direito. Ele mesmo era

jogador entusiasta. Mas dormir tarde, dizia, fazia mal à saúde. Viu

morrerem de febre homens que não cuidavam de si. Otoo era abstêmio,

mas tomava um bom gole a qualquer hora, principalmente quando se

tratava de trabalhar em serviço de água nos botes. Por outro lado, era

adepto de beber com moderação. Vira muitos homens morrerem e se

desgraçarem por causa da cachaça ou do uísque.

Otoo tinha sempre presente o meu bem-estar. Pensava com

antecedência por mim, ponderava meus planos, e tinha por eles um

interesse maior do que eu. No princípio, quando eu não sabia do interesse

que tinha por meus negócios, ele tinha de adivinhar as minhas intenções;

por exemplo, em Papeete, quando pretendi ficar sócio de um malandro,

meu patrício, num assunto de guano. Eu não sabia que o homem era um

canalha. Nem conhecia qualquer outro branco em Papeete. Otoo também

não conhecia; vendo porém como estávamos ficando unidos, descobriu

por mim e sem que eu lhe pedisse. Marinheiros nativos dos confins do mar

vêm bater nas praias de Taiti; e Otoo, simplesmente desconfiado, foi

conversar com eles até reunir dados suficientes para justificar suas

suspeitas. Era uma bonita história, a de Randolph Waters. Eu não quis

acreditar, quando pela primeira vez Otoo me contou; quando porém a

contei pelas escotas nos ouvidos de Waters, este desistiu sem um

murmúrio e embarcou para Auckland no primeiro vapor.

Devo confessar que no princípio não pude deixar de me ressentir pelo

fato de Otoo meter o nariz em meus negócios. Sabia entretanto que ele não

era egoísta, e logo tive que reconhecer sua sabedoria e

214

Page 211: Jack london   contos

discrição. Tinha sempre os olhos bem abertos para as melhores opor-

tunidades para mim, e não apenas enxergava perto como também

enxergava longe. No decorrer do tempo fez-se meu conselheiro, a ponto

de saber mais do que eu mesmo sobre meus negócios. Em verdade,

preocupava-se mais do que eu próprio com os meus interesses. Deixava

para mim o magnífico descuido da juventude, pois eu preferia amores a

dólares, aventuras a um alojamento confortável para ficar preso nele a

noite inteira. De modo que era bom ter quem olhasse por mim. Sei que, se

não fosse Otoo, hoje eu não estaria aqui.

Dentre inúmeros exemplos, citarei um. Tivera eu muitas experiências

de contrabando, antes de ser comprador de pérolas no Paumotus. Otoo e

eu estavámos na praia de Samoa; na verdade encalhados

- quando se apresentou para mim a oportunidade de partir como recruta

num barco contrabandista. Otoo arranjou lugar junto ao mastro; e nos seis

anos subsequentes, em igual quantidade de navios, batemos as zonas mais

selvagens da Melanésia. Otoo cuidava para ser sempre colocado como

remador do meu bote. Nosso costume, quando se tratava de recrutar

trabalhadores, era desembarcar o recrutador em terra. O bote de cobertura

sempre ficava parado, seus remos a postos, a algumas centenas de pés

distante da praia, enquanto o bote do recruta, também parado, ficava

flutuando na orla da praia. Quando desembarquei com as minhas

mercadorias de escambo, deixando de prontidão o governo do barco, Otoo

deixou sua posição de remador e dirigiu-se para as velas da popa, onde

uma Winchester estava à mão debaixo de uma aba de lona. A tripulação do

bote também estava armada, suas Sniders ocultas sob abas de lona que

corriam por todo o comprimento das amuradas. Enquanto eu tentava

argumentar e persuadir os canibais de cabeças lanudas a irem trabalhar nas

plantações de Queensland, Otoo vigiava. E muitas vezes sua voz abafada

me advertia de ações suspeitas e iminentes traições. Não raro era o tiro

rápido de seu rifle o primeiro aviso que ele me dava. E na minha corrida

para o barco, sua mão sempre estava ali para me içar a bordo.

215

Page 212: Jack london   contos

Certa vez, bem me lembro, no Santa Anna, o barco encalhou logo no

começo do tumulto. O bote de cobertura correu em nosso socorro, mas as

muitas vintenas de selvagens ter-nos-iam varrido antes que chegasse, se

Otoo, saltando para a praia, não metesse ambas as mãos nas caixas de

mercadorias, e náo espalhasse tabaco, miçangas, machadinhas, facas e

fazendas de algodão em todas as direções.

Foi a conta para os cabeças lanudas. Enquanto remexiam nos tesouros,

o bote zarpou conosco a bordo numa distância de quarenta pés. E obtive

trinta recrutas naquela mesma praia, nas quatro horas subsequentes.

O exemplo típico que tenho em mente foi o de Malaita, a ilha mais

selvagem dentre todas as Salomão Orientais. Os nativos tinham sido

notavelmente cordiais; como então saberíamos que toda a aldeia vinha, há

dois anos, fazendo uma coleta para comprar a cabeça de um homem

branco? Os infelizes eram todos caçadores de cabeça, e acima de tudo

estimavam a cabeça de um branco. O sujeito que capturasse a cabeça

receberia o produto de toda a coleta. Mas, como eu ia dizendo, eles nos

pareceram muito cordiais; e naquele dia eu estava bem entrado na praia, a

uma centena de jardas do bote. Otoo advertira-me e, como sempre,

quando eu não o atendia, era certo o desastre.

O que vi primeiro foi uma nuvem de lanças cair sobre mim do mangue

pantanoso. Pelo menos uma dúzia delas me alcançou. Pus-me a correr,

mas pisei numa delas, fincada na minha barriga da perna, e tombei no

chão. Os cabeças lanudas correram para mim, todos agitando machadinhas

de corte em leque e compridos cabos, com as quais pretendiam

degolar-me. Estavam tão ávidos pelo prêmio, que atrapalhavam o caminho

uns dos outros. Em meio à confusão, evitei muitos golpes atirando-me na

areia, ora para a direita, ora para a esquerda.

Foi quando Otoo chegou — Otoo, o ferrabrás. Não sei como tinha se

apoderado de uma pesada maça de guerra, e, à pequena dis

Page 213: Jack london   contos

tância, esta era uma arma muito mais eficaz do que um rifle. Estava Otoo

no meio dos selvagens, de modo que não podiam golpeá-lo com lanças,

sendo as suas machadinhas ainda piores que inúteis. Combatia por mim, e

se achava num verdadeiro frenesi de fúria. O modo como manejava a

maça era espantoso. Os crânios dos cabeças lanudas se esborrachavam

como laranjas demasiado maduras. Não antes de fazê-los recuar, pegar-me

nos braços e começar a correr, foi que Otoo recebeu seus primeiros

ferimentos. Chegou ao bote com quatro talhos de lança, apanhou a sua

Winchester e com ela derrubou um homem em troca de cada talho.

Depois entramos na escuna e cuidamos das feridas.

E dezessete anos vivemos juntos. Foi ele quem me fez. Hoje eu seria

comissário, recrutador, ou simples lembrança — não fosse por ele.

- Agora você gasta dinheiro, depois sai e ganha mais - disse-me ele

um dia. - Agora é fácil para você ganhar dinheiro. Mas quando ficar velho,

terá gasto o dinheiro, e não mais poderá trabalhar para obter mais. Eu sei,

patrão. Estudei os costumes dos brancos. Há nas praias muitos velhos que

já foram moços, e que podiam obter dinheiro como você o obtém. Agora

são velhos, não têm mais nada, e esperam que jovens como você

desembarquem para lhes pagar a bebida.

—O rapaz negro é escravo nas plantações. Ganha vinte dólares por

ano. Trabalha duro. O feitor não trabalha duro. Anda a cavalo e vigia os

rapazes negros que trabalham. Ganha mil e duzentos dólares por ano. Eu

sou marinheiro de escuna. Ganho quinze dólares por mês. Isso porque sou

bom marinheiro. Trabalho duro. O capitão tem toldo dobrado, e bebe

cerveja em garrafas compridas. Nunca o vi puxar uma corda ou manejar

um remo. Ganha cento e cinquenta dólares por mês. Eu sou marinheiro.

Ele é navegante. Patrão, acho que seria muito bom se você aprendesse

navegação.

Otoo provocou-me para que aprendesse navegação. Viajou comigo

como segundo piloto em minha primeira escuna, e tinha mais orgulho do

que eu do meu próprio comando. Mais tarde disse:

217

Page 214: Jack london   contos

— O capitão ganha bem, patrão; mas o navio só está entregue a seu

cuidado e ele nunca se livra do fardo. Quem ganha mais é o proprietário —

o proprietário que fica na praia com muitos criados movimentando o

dinheiro.

— Certo; mas uma escuna custa cinco mil dólares — ainda assim,

uma escuna velha - contrapus. - Estarei velho antes de economizar cinco

mil dólares.

- Há caminhos mais curtos para o homem branco obter dinheiro

— continuou ele, apontando a praia franjada de coqueiros.

Estávamos naquela época nas Ilhas Salomão, embarcando um

carregamento de nozes de marfim catadas em toda a costa leste de

Guadalcanal.

- Entre a foz deste rio e o seguinte são duas milhas - disse ele.

- A terra plana vai até bem longe. Agora não vale nada. No ano que vem -

quem sabe? - ou nestes dois anos, darão muito dinheiro por essa terra. O

ancoradouro é bom. Até navios grandes poderão fundear aqui. Você pode

comprar uma área com quatro milhas de fundo ao velho chefe, que as

venderá por dez mil talos de fumo, dez garrafas de cachaça e uma Snider,

que talvez lhe custem cem dólares ao todo. Depois, você deposita o

contrato com o comissário, e, no ano que vem, ou nestes dois anos, venderá

as terras e será dono de uma escuna.

Segui seu conselho, e suas palavras foram proféticas, conquanto se

realizassem num prazo de três anos em vez de dois. Depois vieram as terras

de pastagem de Guadalcanal — vinte mil acres, com uma concessão de

noventa e nove anos do governo e uma quantia nominal. Fiquei com as

terras precisamente noventa dias, e as vendi a uma companhia por uma

fortuna. Sempre era Otoo que olhava para a frente e descobria a

oportunidade. Foi responsável pelo salvamento do Doncaster, comprado

em leilão por cem libras e deixando três mil de lucro depois de pagas todas

as despesas. Foi ele quem me induziu à plantação do Savaii e ao negócio de

cacau em Upolu.

2x8

Page 215: Jack london   contos

Já não saíamos com muita frequência para o mar como no tempo

antigo. Eu estava muito bem de finanças. Casei-me e meu padrão de vida

melhorou; mas Otoo permaneceu o mesmo Otoo de outrora, andando pela

casa ou entrando no escritório, seu cachimbo de madeira na boca, uma

camiseta rala, de um xelim nas costas e um lava-lava de quatro xelins na

cintura. Eu não podia induzi-lo a gastar. Não havia meio de pagar-lhe em

moeda que não fosse o amor, e Deus sabe que ele o recebia em medida

dobrada de todos nós. As crianças o adoravam, e se fosse possível

estragá-lo com mimos, certamente minha mulher teria sido a sua desgraça.

As crianças! Foi realmente ele quem lhes mostrou os caminhos da

prática do mundo. Começou a ensiná-las a andar. Cuidava delas quando

adoeciam. Uma por uma, quando mal engatinhavam, levava-as à laguna e

transformava-as em anfíbios. Ensinou-lhes muito mais do que eu próprio

sabia, os hábitos dos peixes e os ardis para apanhá-los. No mato era a

mesma coisa. Aos sete anos, Tom sabia mais coisas materiais, do que eu

jamais sonhara que existissem. Aos seis anos, Mary escorregou sem o

menor tremor na Pedra de Escorregar, proeza diante da qual vi homens

fortes recuarem. E quando Frank completou seis anos, já era capaz de

mergulhar e apanhar xelins numa profundidade de três braças.

— Minha gente de Borabora não gosta de pagãos - todos são cristãos,

e eu não gosto dos cristãos de Borabora — disse ele um dia, quando eu lhe

propunha, com a intenção de levá-lo a gastar uma parte do dinheiro que

de direito lhe pertencia, uma visita a sua ilha natal, numa de nossas

escunas, viagem especial com a qual eu esperava bater um recorde de

prodigalidade nos gastos.

Disse uma das “nossas” escunas, embora naquele tempo elas me

pertencessem legalmente. Insisti muito tempo para ficarmos sócios.

— Somos sócios desde que o Petite Jeanne naufragou, disse ele afinal. —

Mas se o seu coração assim pede, então fiquemos sócios segundo a lei. Não

tenho trabalho, no entanto são grandes as minhas

219

Page 216: Jack london   contos

despesas. Como, bebo e fumo bastante, isso custa caro, bem sei. Não pago

despesas de bilhar, pois jogo na sua mesa; mas o dinheiro vai embora.

Pescar nos recifes é prazer de homem rico. É impressionante o preço dos

anzóis e das linhas de pescar. Sim: é preciso ficarmos sócios pela lei.

Preciso de dinheiro. Vou apanhá-lo com o chefe escriturário no escritório.

Assim, pois, foram os contratos redigidos e registrados. Um ano

depois fui obrigado a reclamar.

— Charley — disse eu — você é um perverso tratante, couro de

pederneira, miserável craca de ilhéu. Olhe só: a sua parte anual em nossa

sociedade foi de milhares de dólares. O escriturário chefe apresentou-me

esta conta. Diz ela que, em todo o ano, você gastou apenas oitenta e sete

dólares e vinte centavos!

— Quer dizer que estáo me devendo? - perguntou ele, aflito.

— Sim: milhares e milhares de dólares - respondi.

Seu rosto iluminou-se, como que grandemente aliviado.

— Está bem - disse. — Cuide para que o escriturário chefe faça com

eles uma conta bem certa. Quando eu os pedir (e os pedirei) não pode

faltar nenhum centavo.

E depois de uma pausa, acrescentou com ferocidade:

— Se faltar, será descontado do ordenado do escriturário!

E durante todo o tempo, como soube mais tarde, o seu testamento,

redigido por Carruthers, e fazendo de mim seu único beneficiário, ficou

guardado no cofre forte do cônsul americano.

Mas o fim chegou, assim como tem de chegar o fim de todas as

relações humanas. Ocorreu nas Ilhas Salomão, onde a nossa tarefa mais

bravia fora realizada nos dias alucinantes da nossa mocidade, e para onde

voltamos mais uma vez, durante as férias, incidentalmente para

inspecionar as nossas propriedades na Ilha Flórida, e proposital- mente

para examinar as possibilidades perlíferas da Garganta Mboli. Tínhamos

desembarcado em Savu, onde aportamos para comprar curiosidades.

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Page 217: Jack london   contos

Ora, Savu fervilha de tubarões. O costume dos cabeças lanudas, de

lançar seus cadáveres ao mar, não tende a desencorajar os tubarões de

fazer das águas adjacentes um ponto de reunião. Foi má sorte minha eu

voltar para a escuna em uma canoa nativa, pequenina e sobrecarregada,

que afinal virou. Estávamos nela quatro cabeças lanudas e eu, ou melhor,

estávamos todos pendurados nela. A escuna se encontrava a uma distância

de cem jardas. Eu estava justamente acenando para um bote, quando um

dos cabeças lanudas pôs-se a gritar. Agarrado a uma ponta da canoa, tanto

ele como essa extremidade afundaram várias vezes. Depois o negro se

soltou e desapareceu: um tubarão o abocanhara.

Os três restantes cabeças lanudas tentaram emergir fora da água e

alcançar o fundo da canoa. Berrei e praguejei e bati no que me estava mais

próximo com os punhos, mas de nada adiantou: eles estavam cegos de

terror. A canoa mal teria podido aguentar um só deles. Com o peso dos

três, empinava e rolava para o flanco, atirando-os de volta na água.

Abandonei a canoa e comecei a nadar para a escuna, esperando que o

bote me apanhasse antes de eu chegar lá. Um dos cabeças lanudas resolveu

me acompanhar, e nadamos em silêncio, lado a lado, vez por outra

enfiando a cabeça dentro da água à procura de tubarões. Os berros do

homem que ficou junto da canoa nos informou que fora apanhado. Olhava

eu dentro da água quando vi um enorme tubarão passar logo abaixo de

mim. Teria bem uns dezesseis pés de comprimento. Vi tudo o que

aconteceu. Ele agarrou o cabeça lanuda pelo meio, e lá se foi, pobre d iabo!

com a cabeça, os ombros e os braços todo o tempo fora da água, gritando

de partir o coração. Foi assim carregado por muitas centenas de pés, e em

seguida arrastado para o fundo do mar.

Continuei a nadar obstinadamente, esperando que aquele fosse o

último tubarão desguaritado do cardume. Mas havia outro. Se era um dos

que previamente tinha atacado os nativos, ou se era um que comera

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Page 218: Jack london   contos

uma boa refeição em outro lugar, não sei dizer. Seja como for, não tinha a

pressa dos outros. Eu já não podia nadar com a mesma rapidez, pois grande

parte do meu esforço estava dedicada a seguir sua pista. Observava-o

quando desencadeou seu primeiro ataque. Por felicidade pus-lhe minhas

duas mãos no focinho, e embora o seu empuxe quase me afundasse,

consegui conservá-lo à distância. Ele deu uma volta completa e recomeçou

a me rodear. Uma segunda vez escapei, graças a idêntica manobra. O

terceiro ataque falhou de ambos os lados. Ele fêz-se ao largo no momento

exato em que as minhas duas mãos iam pousar-lhe no focinho, mas seu

couro de lixa (minha camiseta não tinha mangas) arrancou-me a pele de

um braço, desde o ombro até o cotovelo.

Naquela altura sentia-me esgotado, perdidas todas as esperanças. A

escuna continuava parada a duzentos pés de distância. Eu tinha o rosto

nágua, e via a fera manobrar preparando outro ataque, quando um corpo

moreno passou entre nós dois. Era Otoo.

— Nade pra escuna, patrão! - disse ele. E sua voz era alegre, como se

o caso não passasse de uma brincadeira. Conheço os tubarões. Esse aí é meu

irmão.

Obedeci, nadando lentamente para a escuna, enquanto Otoo nadava

entre mim e a fera, aparando-lhe os golpes e encorajando-me.

— As tralhas do turco foram-se, e eles estão encordoando as talhas -

explicou-me um ou dois minutos depois, para em seguida mergulhar e

desviar outro ataque.

Quando a escuna ficou a trinta pés de distância, eu já estava que não

podia mais. Mal podia me mexer. De bordo atiravam-nos cordas, mas estas

não nos alcançavam. O tubarão, percebendo que não o perseguiam, ficou

mais atrevido. Várias vezes quase me apanhou, mas de cada vez Otoo

estava a postos, antes que fosse demasiado tarde. Naturalmente, Otoo

podia ter-se salvado a qualquer momento, mas conservou-se junto de mim.

— Adeus, Charley! Estou acabado!... — foi quanto consegui dizer,

esbaforido.

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Sabia que meu fim chegara, e que logo em seguida, atirando as mãos

para o ar, soçobraria.

Mas Otoo riu-se na minha cara, dizendo:

— Vou lhe ensinar um novo ardil. De dar tonturas no tubarão.

E pôs-se atrás de mim, onde o tubarão estava preparando um

novo ataque.

—Um pouco mais para a esquerda! — gritou-me em seguida. — Há

uma corda n’água ali adiante. Para a esquerda, patrão - para a esquerda!

Mudei de rumo e nadei feito um cego. Naquela altura, quase já não

tinha consciência. Quando minha mão agarrou a corda, ouvi uma

exclamação, partida de bordo da escuna. Virei-me e olhei. Não havia sinal

de Otoo. No momento seguinte ele irrompeu na superfície. Tinha ambas

as mãos decepadas pelos punhos, os tocos dos braços espadanando sangue.

—Otoo! — gritou ele brandamente. E pude ver em seu olhar o amor

que fazia estremecer-lhe a voz.

Então, e só então, no derradeiro de nossos anos vividos juntos, ele me

chamou por aquele nome.

— Adeus, Otoo! — disse ele.

Em seguida foi arrastado para o fundo, e eu fui içado para bordo, onde

desmaiei nos braços do capitão.

E assim passou Otoo, que me salvou e fez de mim um novo homem, e

que no fim tornou a me salvar. Conhecemo-nos nas fauces de um furacão e

separamo-nos nas fauces de um tubarão, com dezessete anos

intermediários de camaradagem, cuja semelhança me atrevo a afirmar não

ter jamais ocorrido entre dois homens, um pardo e outro branco. Se do seu

alto posto Jeová estiver observando cada pardal que cai, não menor em seu

reino será Otoo, o único pagão de Borabora.

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