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Jornalismo Reflexivo

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Jornalismo Reflexivo - visões teórico-metodológicas de autores do sul brasileiro. São Paulo: Intercom e-livros, 2010

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Conselho Editorial INTERCOM

Diretor Editorial Osvando J. de Morais

Presidente Raquel Paiva (UFRJ)

Muniz Sodré (UFRJ])Maria Teresa Quiroz (Universidade de Lima/Felafacs)José Manuel Rebelo (ISCTE, Lisboa)Luciano Arcella (Universidade d’ Aquila, Itália)Alexandre Barbalho (UFCE)Moha Hajji (UFR)Márcio Guerra (UFJF)Marialva Barbosa(UFF)Luís C. Martino (UNB)Nelia Del Bianco (UNB)Pedro Russi (UNB)Etienne Samain (UNICAMP)Norval Baitello (PUCSP)Olgária Matos (UNISO)Paulo Schettino (UNISO)Giovandro Ferreira (UFBA)Ana Silvia Medula (UNESP Bauru)Juremir Machado da Silva (PUCRS)Erick Felinto (UERJ)Alex Primo (UFRS)Christa Berger (UNISINOS)Afonso Albuquerque (UFF)Cicilia M. Krohling Peruzzo (Univ. Metodista)

Jornalismo ReflexivoVisões teórico metodológicas de autores do sul brasileiro

OrganizaçãoAriane PereiraMarcio Fernandes

Capa, projeto gráfico e diagramaçãoLetícia Futata

São Paulo, maio de 2010ISBN 978-85-88537-54-5Alguns direitos reservados. Venda proibida.

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sumário

Prefácio .......................................................................................................................................................................................................... 5

Apresentação Geral ................................................................................................................................................................................... 8

Apresentação Parte I ............................................................................................................................................................................... 12

Algumas idéias de Paulo Freire e a responsabilidade social do jornalista .............................................................................15

A semiótica discursiva no estudo do jornalismo e da sociedade ............................................................................................ 31

Promessas e perspectivas da/na implantação da TV digital no Brasil: o caso Rede Globo ............................................. 52

A percepção dos universitários da UFSC sobre o Jornalismo - uma abordagem quantitativa ..................................... 67

Mercado de Trabalho:o que querem os jornalista formados em 2008, nas universidades estaduais do Paraná? ............................................. 91

Da esfera pública ao Ciberespaço: reflexões sobre o futuro do jornalismo na Internet ................................................ 103

A (IN)volução do meio impresso e a (RE)invenção do público-leitor na Era do “MEU JORNAL DIÁRIO” ................. 127

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Apresentação Parte II ........................................................................................................................................................................... 137

Para quem quer viver mais e melhor: o enquadramento pedagógico darevista Vida Simples .................................. 141

A Amazônia, uma capa, um anúncio e três leituras ................................................................................................................... 165

Os editores de moda “em revista”: um estudo de caso sobre o site Erika Palomino e a revista Elle .......................... 188

A notícia de moda na web: um breve panorama ........................................................................................................................ 213

O site como espaço da autorreferencialidade do jornalismo televisivo: o caso do Programa Globo Rural ...................................................................................................................................................... 240

O medo no telejornalismo brasileiro: um estudo do caso João Hélio ................................................................................. 258

O João Goulart de Silvio Tendler: uma análise do acontecimento jornalístico golpe militar no filme Jango ......................................................................... 287

Entre a lança e a prensa: Conhecimento e Realidade no discurso do jornal O Povo (1838) ......................................... 314

“Todo compositor brasileiro é um complexado”:Anonimato e fama de Tom Zé na mídia impressa especializada ........................................................................................... 338

The Beatles Setting the Agenda: Considerações Sobre a Cobertura Jornalística da Beatlemania na Inglaterra .................................................................. 360

Midiatização de imagens: entre circulação e circularidade .................................................................................................... 382

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prefácio

Aprendendo e ensinando O e-book ganha cada vez maior importância entre nós. Num país onde se lê

pouco, e onde, na maioria das vezes, a desculpa é o alegado alto preço do livro, o e-book ganha uma significação social extremamente grande: vai evidenciar que a nossa falta de hábito de leitura, baseada no alto preço, é apenas desculpa. Mas vai possibilitar, por outro lado, àqueles que realmente, não apenas lêem quanto gostam de pesquisar, o encontro de textos variados, que poderão ser, primeiro visualizados e depois impressos apenas naquelas partes que interessarem mais diretamente ao leitor.

No caso desta antologia, ela ganha uma importância maior ainda: resulta de um trabalho coletivo, de um debate aberto, da persistência de jovens pesquisadores e de um conjunto de reflexões a respeito do jornalismo, extremamente importante, sobretudo no momento em que, como se afirma logo na abertura do volume, o ensino universitário da matéria está sendo contestado e humilhado.

Além de professor, sou, fui e continuarei sendo jornalista. Não somos melhores, mas somos diferentes. Temos nossas idiossincrasias, mas assumimos, sobretudo, nossas responsabilidades. Responsabilidades junto à sociedade.

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É sobre este conjunto de responsabilidades que, em última análise, estes trabalhos falam. São resultado de esforços de pesquisadores iniciantes, em boa parte. Sua divulgação vai facilitar o conhecimento, mas vai, também, servir de incentivo a seus autores. Tive a oportunidade de assistir à exposição de vários deles, ao longo das sessões da Divisão temática sobre jornalismo, ao longo do Congresso Regional-Sul da INTERCOM, uma das instâncias de pesquisa que a Sociedade Brasileira de Estudos Interdisciplinares da Comunicação promove junto a professores e jovens estudantes, desde a Graduação, até o Doutorado. A lembrança que me ficou foi a imagem de jovens ainda inseguros, mas entusiasmados, felizes por poderem repartir com os colegas as suas descobertas. Ávidos para receberem sugestões. Ansiosos para ouvirem comentários. Depois daquelas exposições, em que cada um se esmera em mostrar até onde foi capaz de chegar, atingimos esta nova etapa: ter os textos divulgados para serem ainda uma vez avaliados e atingirem um público absolutamente inimaginável. Agora, a partir desta circulação, cada um deles pode começar a se considerar, efetivamente, um autor. Basta pensar que, uma vez publicado e colocado na rede mundial de computadores, cada vez que clicarmos em um de seus nomes, ou indicarmos algum tema determinado, um desses artigos poderá ser acessado: gratuitamente, em sua totalidade, sem censura, num processo de circulação jamais pensado há cerca de meio século.

O conjunto dos textos é variado. Mas é importante. Mostra um determinado momento da pesquisa brasileira. Daqui a algum tempo talvez esteja ultrapassado. Mas

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ficará sempre como documento de um processo mais amplo, que é o da aprendizagem. A variedade dos temas atesta a importância desses estudos. Por trás de cada autor, aluno ou professor, estão horas de pesquisa, de estudo, de reflexão. O texto daí resultante, por seu lado, poderá vir a gerar novos processos, outras idéias, sugestões variadas.

A INTERCOM vem, há mais de trinta anos, promovendo esta troca dinâmica, permanentemente realimentadora da reflexão sobre a comunicação social em geral, dela sobre si mesma e dela com outros campos de conhecimento, e, muito especialmente, neste caso, sobre o jornalismo. Mais que isso, vem incentivando o intercâmbio entre pesquisadores, sem o quê a própria atividade de pesquisa perde seu sentido. Certamente, muitos dos que, hoje, eventualmente, são convidados a integrar comissões de seleção de trabalhos, ou mesmo respondem pela orientação de jovens alunos, já tiveram, um dia, aquela oportunidade da estréia em um grupo de trabalho como este.

Parabéns aos organizadores do volume que ora percorremos. Acho que vocês, enquanto responsáveis pela iniciativa da publicação, como nós, que hoje coordenamos eventualmente a INTERCOM, estamos nos somando justamente para garantir este resultado: que a pesquisa continue; que a curiosidade encontre seu espaço; e que o aprendizado resultante de tais trocas seja um grande incentivo para todos nós.

Prof. Dr. Antonio HohlfeldtPresidente da INTERCOM

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apresentação geral

Por um Jornalismo mais reflexivo

Jornalismo: atividade/prática/profissão sempre em movimento. Afinal, nós, jornalistas, lidamos com fatos e estes são voláteis, diferentes a cada dia. Característica que já exigiria, por si só, ininterrupta reflexão. (Re)Pensar constante que, nos últimos tempos, intensificou-se (ou deveria ter se intensificado). Afinal, são muitas as transformações. As novas tecnologias mudando linguagens, o modus operandi... A queda do diploma e a desregulamentação profissional. As discussões que levarão a mudanças nos cursos de Jornalismo, nas grades curriculares, na formação do jornalista.

Movimentos que apontam para diversos rumos, inúmeros trajetos. Caminhos em aberto e, por isso mesmo, tão propícios a reflexão, a conversa, a troca. E é essa a proposta de Jornalismo Reflexivo: um diálogo entre jornalistas (diplomados ou não), acadêmicos de cursos espalhados Brasil afora, estudantes interessados na profissão, professores, pesquisadores, sociedade em geral (já que essa nunca valorizou e teve tanto acesso a informação quanto na contemporaneidade).

Assim, este e-book que você começa a ler agora apresenta uma série de artigos – e porque não dizer filigranas já que a proposta não é apresentar modelos, nem perguntas com respostas fechadas, e sim problematizar, (re)pensar o Jornalismo e a prática

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jornalística – que apontam para os novos rumos desta atividade em alguns momentos com status de quarto poder e em outros comparada a tarefa/ao ato de cozinhar (embora, cozinheiros, jornalistas ou caminhoneiros exerçam tarefas tão nobres, cada uma com suas particularidades, quanto as de médicos, engenheiros ou advogados).

Essas filigranas, 18 no total, foram reunidas a partir dos debates iniciados no Intercom Sul 2009, realizado em Blumenau, Santa Catarina. Os autores de trabalhos aprovados e apresentados na DT (Divisão Temática) Jornalismo do congresso, o maior da região sul do país a tratar das Ciências da Comunicação, foram convidados a, a partir das discussões, re-pensar as análises primeiras. Isso significa que os textos presentes neste e-book não foram, simplesmente, transpostos dos Anais para estas páginas.

Jornalismo Reflexivo trás visões/perspectivas/leituras transformadas e, quiça, transformadoras, não no sentido de mudar modos de pensar o e fazer jornalismo; mas sim com a conotação de provocar/suscitar inquietações, e essas gerarem mais reflexões e novos debates. Garantindo, dessa maneira, que a proposta deste e-book se concretize, ou seja, que tenhamos um jornalismo reflexivo no dia-a-dia de nossas redações, salas de aula, laboratórios...

Essas filigranas, nossas reflexões-conversas, estão divididas em duas partes. Na primeira delas, Jornalismo como proposta de reflexão, estão reunidos sete textos, todos eles, e cada um deles a sua maneira – o que reflete a pluralidade (de leituras, de olhares, de óculos teóricos) permitida pela pesquisa em Jornalismo –, propondo uma leitura diferente,

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singular do próprio Jornalismo. Gestos de interpretação como os de Jorge Kanehide Ijuim, da UFSC, e de Francismar Formentão, da UNICENTRO. O primeiro tem como ponto de partida o texto “O compromisso do profissional com a sociedade”, de Paulo Freire, e a luz deste busca refletir a responsabilidade social do jornalista. Já o segundo, busca mostrar como o pensamento bakhtiniano, conhecido por Filosofia da Linguagem ou Semiótica Discursiva, pode ajudar na compreensão do campo de atuação do jornalismo/dos jornalistas.

Já Reflexões acerca da prática jornalística, segunda parte de Jornalismo Reflexivo, encarta onze filigranas que tem como objeto de análise o jornalismo em sua prática, seja ela na web, em revistas, televisão, ou seja, em diferentes veículos e formatos. Textos como o de Gisele Reginato, da UFSM, intitulado “Para quem quer viver mais e melhor: o enquadramento pedagógico da revista Vida Simples”, que, a partir dos conceitos de enquadramento e de dispositivos pedagógicos, procura mostrar como a revista mensal Vida Simples produz “ensinamentos” com seu formato “didático”. Outra exemplo é “O medo no telejornalismo brasileiro: um estudo do caso João Hélio”, de Elza Vieira Filha e Taianá Martinez, da Positivo, cuja intenção é identificar de que forma o medo é construído nos produtos específicos do jornalismo e no que ele interfere no imaginário coletivo.

Estas são pequenas amostras das reflexões que você encontrará nas páginas de Jornalismo Reflexivo, quarto livro da coleção 3C – Conversas Contemporâneas em Comunicação –, série de publicações idealizada e concretizada pelo Grupo de Estudos

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Processos Midiáticos Eletrônicos e Impressos, formado por professores de Comunicação Social da Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO). Outros livros virão, complementando a coleção 3C, enquanto isso, empreenda novos gestos de interpretação a partir das discussões de Jornalismo Reflexivo. Boa leitura!

Os Organizadores

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apresentação parte I

Jornalismo como proposta de reflexão

Sete filigramas compõem a primeira parte de Jornalismo Refleximo, chamada Jornalismo como proposta de reflexão. Em cada uma delas, uma leitura do movimento vivido pelo jornalismo, reflexões acerca do futuro da profissão e da atividade dos profissionais da área.

O primeiro texto a discutir o Jornalismo é Algumas idéias de Paulo Freire e a responsabilidade social do jornalista, de Jorge Kanehide Ijuim, onde o autor discute aspectos da responsabilidade social do jornalista – que, para ele, não é um mero produtor de notícias – a partir de idéias de Paulo Freire presentes em “O compromisso do profissional com a sociedade”.

Mostrar como a Filosofia da Linguagem, também chamada de Semiótica Discursiva, proporciona condições de estudo epistemológico, ético, estético e ontológico do Jornalismo é o que procura evidenciar Francismar Formentão em A semiótica discursiva no estudo do jornalismo e da sociedade, segunda filigrana desta primeira parte do e-book.

A proposta de Ariane Pereira e Márcio Fernandes, em Promessas e perspectivas da/na implantação da TV digital no Brasil: o caso Rede Globo, é apresentar um panorama sobra a implantação da TV digital para, em seguida, discorrer sobre as percepções de como a

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Rede Globo de Televisão, a partir de palestras realizadas por profissionais da emissora durante os Seminários Globo-Intercom em 2007 e 2008, encara este processo e como deve se configurar esse momento de concretização, o que realmente se mostra como perspectiva e o que, aparentemente, ficará apenas no nível da possibilidade.

Em A percepção dos universitários da UFSC sobre o Jornalismo: uma abordagem quantitativa, Tarsia Paula Farias e Eduardo Medisch apresentam resultados de duas pesquisas. Para a primeira delas, de caráter qualitativo, foram entrevistados jovens de Florianópolis com o objetivo de levantar as causas do não-acompanhamento de notícias por estes. Já a segunda, realizada entre acadêmicos da Universidade Federal de Santa Catarina, procurou quantificar os resultados da primeira.

Resultados de pesquisa também são apresentados por Layse Nascimento, em Mercado de Trabalho: o que querem os jornalistas formados em 2008, nas universidades estaduais do Paraná. Para avaliar qual o mercado de trabalho que detém a preferência dos novos profissionais do jornalismo e o grau de interesse dos acadêmicos pela atividade profissional do comunicador em uma empresa foram entrevistados os formandos de 2008 dos cursos de jornalismo das três universidades estaduais do Paraná – Londrina, Ponta Grossa e Centro-Oeste.

O sexto texto, Da esfera pública ao ciberespaço: reflexões sobre o futuro do jornalismo na internet, de Luís Francisco Munaro, tem como intuito discutir como o rompimento das tradicionais fronteiras do “intelectual” pelo ciberespaço se configura como uma fase pós-

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literária da cultura moderna, onde, segundo o autor, os protagonistas são produtores individuais de cultura desvinculados do Estado moderno tradicional.

No último artigo desta primeira parte, A (IN)volução do meio impresso e a (RE)invenção do público-leitor na Era do “Meu Jornal Diário”, Alexandre Correia dos Santos discute a realidade do jornalismo impresso, o papel do jornalista e a função primordial de informar do jornalismo no momento em que uma nova geração de leitores lança mão do conceito do “meu jornal diário”, de Nicholas Negroponte.

Este é nosso convite para que você não deixe de se aventurar pelas veredas reflexivas do Jornalismo.

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Algumas idéias de Paulo Freire e a responsabilidade social do jornalista1

Jorge Kanehide IJUIM2

A questão da responsabilidade social parece ser algo consagrado no meio jornalístico. A expressão, que carrega força e impacto, é comumente usada como bordão de campanhas institucionais e mercadológicas de empresas de comunicação. Tal consagração talvez advenha do papel histórico da imprensa de ser tribuna para debates e instrumento de movimentos decisivos que culminaram em conquistas expressivas para a sociedade. O respeito a este papel histórico faz com que tenha destaque em documentos fundamentais dos profissionais de imprensa, como nos “Princípios Internacionais da Ética Profissional no Jornalismo”. O texto obtido em debates promovidos pela Unesco, na década de 1980, foi subscritado por várias organizações internacionais de jornalistas, inclusive a Associação Brasileira de Imprensa (ABI). Seu Princípio III assinala:

Informação em jornalismo é compreendida como bem social e não como uma comodidade, o que significa que os jornalistas não estão isentos de responsabilidade em relação à informação transmitida e isso vale não só para aqueles que estão controlando a mídia, mas em última instância para o grande público, incluindo vários interesses sociais. A responsabilidade social do jornalista requer que ele ou ela agirão debaixo de todas as circunstâncias

1 Texto-base originariamente apresentado no Intercom Sul 2009, realizado na FURB, Blumenau (SC)2 Professor de Jornalismo da UFSC; doutor em Ciências da Comunicação/Jornalismo pela Escola de Comunica-ções e Artes da USP.

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em conformidade com uma consciência ética pessoal. (UNESCO, 1980).

O Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros, reexaminado nos últimos anos e aprovado em assembléia da Federação Nacional dos Jornalistas, em agosto de 2007, também atribui especial atenção ao tema. O Artigo 2º explicita:

Art. 2º - Como o acesso à informação de relevante interesse público é um direito fundamental, os jornalistas não podem admitir que ele seja impedido por nenhum tipo de interesse, razão por que: ...III - a liberdade de imprensa, direito e pressuposto do exercício do jornalismo, implica compromisso com a responsabilidade social inerente à profissão. (FENAJ, 2007)

Ambos documentos caracterizam o jornalismo como atividade social e, de forma explícita ou implícita, estabelecem uma relação entre esta responsabilidade social e a Declaração Universal dos Direitos Humanos.

A bibliografia no campo do Jornalismo, seja em abordagens sobre as teorias e as técnicas ou focadas na ética profissional, reflete a preocupação constante com o assunto. Luiz Amaral, em Técnica de jornal e periódico, em 1969 – justamente o ano em que a profissão fora regulamentada no País –, já dedicava um capítulo ao papel e à responsabilidade da imprensa. Ali já ressaltava as múltiplas possibilidades de interpretação de preceitos que regem a instituição imprensa e, por consequência, seus profissionais.

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O alerta de Amaral era pertinente. Qual pode ser o espírito deste preceito da responsabilidade social? Carrega a inspiração modernista que imaginava a imprensa capaz de levar as luzes a todos os recantos e, por isso, a função social da elevação cultural? Ou traz consigo a concepção gramisciana do intelectual orgânico responsável pela informação e pela formação da população? Ou é expressão do capitalismo norte-americano pelo qual a sociedade delega à imprensa o poder de fiscalizar as instituições em seu nome?

O pesquisador Fábio Henrique Pereira frisa que muitas dessas interpretações referem-se a concepções românticas do jornalismo. Para o autor, é notório o processo de transformação pelo qual a atividade passou, desde sua fase artesanal e instrumento de lutas ao jornalismo industrial e de mercado. Alicerçado em pensadores como Medina, Néveu, Lipimann e Schudson, o pesquisador promove uma discussão sobre o jornalismo enquanto ação social e o jornalista como um intelectual, na qual constata que “a evolução da identidade do jornalista se forma a partir de um duplo discurso – a fala humanista e a fala tecnológico-metodológica” (PEREIRA, 2004).

Sem a pretensão de esgotar o tema e, portanto, sem a preocupação de ser conclusivo, Pereira aponta em seu estudo um momento de transição por que passa a instituição imprensa – e seus profissionais. Tal reflexão permite-nos inferir que, nessa transição, certos preceitos que nos regem – inclusive o da responsabilidade social – caminham sobre um fio tênue, além de ofuscados pelo brilho da pressa das tecnologias de informação.

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Esse estado de indefinição, evidentemente, vem de um sentido macro. Ciro Marcondes Filho, ao analisar a chamada Sociedade tecnológica (1994), aponta uma série de fragilidades proporcionadas por esse “período tecnocêntrico”. Enquanto o mundo teocêntrico tinha Deus como figura dominante, a fase antropocêntrica elegeu para tanto o homem e o mundo material, ao passo que a recente era tecnológica tem a racionalidade da máquina como imagem e referência. Com relação ao saber, Marcondes destaca que no modelo anterior as luzes, a razão controlava a ciência e o progresso, ao passo que atualmente a luz é fracionada, especialmente via MCM. Ao passo que o antropocentrismo buscava uma utopia terrena, movida por uma força vinculante – ideológica –, e sua meta era a construção da história, o pensamento predominante entre os tecnocentristas leva a uma busca virtual, sem qualquer força vinculante e, por isso mesmo, sem meta nitidamente definida. A imprensa e seus profissionais, como membros desse mesmo conjunto social, convivem, atuam e servem a esta sociedade virtualizada, indefenida e ideologicamente pulverizada.

Portanto, aquilo que está consagrado, e possa parecer mesmo óbvio, a rigor não é tão óbvio. E merece reflexão contínua. É o que pretendo neste trabalho: contribuir com a necessária reflexão sobre o que ‘parece óbvio’, a partir do pensamento de Paulo Freire.

Responsabilidade social = compromissoPaulo Freire costumava construir seus ensaios de forma provocativa. Perguntas e mais

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perguntas, que respondia de forma densa no decorrer do texto. Sobre a responsabilidade social, em seu período de exílio [de 15 anos], escreveu O compromisso do profissional com a sociedade, publicado em português pela primeira vez em 1979. Tornou-se um clássico e uma referência indispensável ao campo da educação, mas também iluminador para outras áreas do conhecimento, como pretendo demonstrar.

Quem pode se comprometer?A primeira preocupação do autor é esclarecer a relevância e a seriedade dos

termos que compõem o enunciado contido no título de seu trabalho. Julga necessário explicitar que o compromisso proposto não pode ser encarado como uma abstração, mas algo assumido por uma decisão lúcida, no plano concreto. O ato comprometido pode ser assumido quando compreendemos a natureza do ser que é capaz de se comprometer. Dessa forma, “a primeira condição para que um ser possa assumir um ato comprometido está em ser capaz de agir e refletir” (FREIRE, 1983, p.16).

A capacidade de agir e refletir, um dos pontos primordiais da dialética marxista, implica na consciência do ser de não apenas estar no mundo, mas estar com o mundo. “? preciso que seja capaz de, estando no mundo, saber-se nele”. Esta aptidão para estar no e com o mundo suscita a possibilidade de, pela reflexão, ter consciência de si e, por um olhar crítico diante do mundo, ter consciência da realidade concreta. O olhar crítico diante do mundo, porém, não admite uma postura de admiração, ou contemplação. Ao

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contrário, supõe a ação para a transformação.

Que transformação? A transformação proposta por Freire é justamente uma das máximas marxistas

[devir] que sugere a transformação daquilo que é naquilo que deve ser. O ser da práxis é aquele capaz de transformar. Em outros termos, é aquele que pode exercer um ato comprometido, como sustenta o autor:

É exatamente esta capacidade de atuar, operar, de transformar a realidade de acordo com finalidades propostas pelo homem, qual está associada sua capacidade de refletir, que o faz um ser da práxis (FREIRE, 1983, p. 17).

Por isso, ação e reflexão são constituintes inseparáveis e a própria maneira humana de existir. E existir é algo mais profundo do que, descuidadamente, possamos imaginar, como enfatiza Paulo Freire:

Existir ultrapassa viver, porque é mais do que estar no mundo. ? estar nele e com ele. E é essa capacidade ou possibilidade de ligação comunicativa do existente com o mundo objetivo, contida na própria etimologia da palavra, que incorpora ao existir o sentido de criticidade que não há no simples viver. Transcender, discernir, dialogar (comunicar e participar) são exclusividades do existir. O existir é individual, contudo só se realiza em relação com outros existires. Em comunicação com eles (FREIRE, 1982, p. 48-49).

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Dessa forma, não pode haver reflexão e ação fora da relação homem-realidade. Ao profissional de jornalismo, que não vê em seu trabalho apenas a mera execução de técnicas, cabe desenvolver-se nessas habilidades de agir e refletir. Agir e refletir sobre a realidade concreta, sobre o mundo, pois, conforme Cremilda Medina, pelo papel social que está investido, “sua função é estabelecer pontes na realidade dividida, estratificada em grupos de interesse, classes sociais, extratos culturais e faixas até mesmo etárias” (MEDINA, 1982, p.22).

No exercício desse papel social, ao sair para a sociedade “para rastrear o maior número possível de versões, na busca incessante de uma verdade inatingível, na solidariedade aberta a todos que tenham alguma coisa a falar” (MEDINA, 1982, p.23), o jornalista constrói a realidade. Constrói a realidade, conforme ensinam as teorias construcionaistas, no sentido de “não permitir que os acontecimentos permaneçam no limbo do aleatório, mas sejam trazidos aos horizontes do significativo” (Hall in Traquina, 2005, p.171). Se é assim, o jornalista não executa simples técnicas de investigação e redação, mas desenvolve apurada e cuidadosa habilidade de ver o mundo [sentir-se com o mundo]. Da mesma forma, ao concluir sua reportagem, o profissional não apresenta apenas um relato sobre fatos, pois o que viu, ouviu, sentiu e vivenciou foi processado pela sua inteligência e pelos seus sentimentos – um processo de atribuição de significados. Ele apresenta uma narrativa viva, uma construção da realidade, mediada pelo social.

Qualquer jornalista atua desta forma? Paulo Freire alerta que a relação homem-

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realidade, ou homem-mundo, implica a transformação de mundo, cujo produto, por sua vez, condiciona ambas, ação e reflexão. “Os homens que a criam são os mesmos que podem prosseguir transformando-a” (FREIRE, 1983, p.18). Em outros termos, firmar o compromisso com o mundo tanto requer como é decorrência de um processo humanizador – humanização dos outros homens, como de si mesmo.

Sobre esse processo, Dermeval Saviani apresenta uma opinião relevante. Para ele, a humanização acontece pela relação do homem com a cultura – que ele contribui com sua construção, assim como a cultura contribui com a sua construção. Esta relação se dá de forma vertical – domínio dos objetos e do conhecimento historicamente acumulados (prático-utilitário); e no nível horizontal – na relação homem/homem (colaboração). Em outros termos, humanização para Saviani abriga o mesmo sentido de solidariedade também invocado por Freire.

Por isso mesmo, o compromisso com a humanização dos homens, que implica uma responsabilidade histórica, segundo o autor, não pode realizar-se através do palavrório, nem de nenhuma outra forma de fuga do mundo, pois

o compromisso, próprio da existência humana, só existe no engajamento com a realidade, de cujas ‘águas’ os homens verdadeiramente comprometidos ficam ‘molhados’, ensopados (FREIRE, 1983, p.19).

Tal engajamento, que é um ato corajoso, decidido e consciente, o impede que seja

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neutro. “A neutralidade frente ao mundo, frente ao histórico, frente aos valores, reflete apenas o medo que se tem de revelar o compromisso... o verdadeiro compromisso é a solidariedade” (FREIRE, 1983, p.19). Esse compromisso, esse engajamento, no entanto, não pode ser confundido com militância. Um ser-jornalista engajado não é necessariamente um jornalista militante de causas, ideologias ou segmentos políticos. Nesse caso, como lembra Alberto Dines, seria o mal-entendido de adotar a postura de ‘partisan ou torcedor’ (1986, p. 62). O engajamento a que nos referimos pode ser o que Cremilda Medina chama ‘solidariedade às dores universais’.

Transformar o quê? E quem?A esse compromisso e transformação, cabe refletir ainda mais sobre o que

transformar e a quem transformar. Paulo Freire considera indispensável reconhecer que um profissional, antes de ser profissional, é homem. Deve ser comprometido por si mesmo. Ou seja, independentemente do seu ofício ou de sua categoria profissional, de suas particularidades e/ou de seus códigos deontológicos, suas responsabilidades como profissional não são (ou não podem) dicotomizar-se de seu compromisso original de homem. Por isso, um jornalista é, antes de tudo, um homem (ser humano).

Como entende Manuel Carlos Chaparro, o jornalismo é um processo social de ações conscientes, controladas ou controláveis. Se é assim, “cada jornalista é responsável moral pelos seus fazeres” (CHAPARRO, 1994, p.22). Bertrand Russell em seus estudos

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sobre a ética e a moralidade, enfatiza que as escolhas do ser humano para suas aspirações de liberdade e bem-estar decorrem de um quadro de referência determinado pelas condições histórico-sociais. O certo ou o errado, o bem ou o mal são definidos por uma comunidade com a atribuição de valores, segundo uma ideologia, de conceitos de louvor ou censura, estabelecendo uma consciência que orienta as ações do indivíduo. Uma ação objetivamente certa, para Russell, é a que melhor serve aos interesses do grupo eticamente dominante – desejadas pelo grupo. O quadro de referência, portanto, pode ser ampliado e/ou reformulado de acordo com a vivência, do exercício do debate, da reflexão do indivíduo e do grupo. Esse exercício ético (ou seja, o debate e a reflexão) contínua sobre o desejável para si e para os outros e pode refletir na elevação do nível de consciência – a visão de mundo que orienta as ações dos indivíduos, seus propósitos e intenções (Russell, 1977).

Essa postura reflexiva parece-me, portanto, um aspecto indispensável ao jornalista para a sua tarefa de atribuir significados aos fenômenos. Pelo exercício ético, com a elevação do seu nível de consciência poderá melhor pensar-expressar, compreender e levar a compreensão à audiência, como autor e responsável moral por seus fazeres e compromissos.

Com a ampliação contínua do seu quadro de referência – seu nível de consciência – seus fazeres poderão constituir, mais que “notícias”, os relatos humanizados e humanizadores que promovam o debate, que contribuam com a inter-relação de pessoas

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com quadros de referências diferentes. Esta postura colabora com a reflexão de outros seres humanos – da audiência –, com o alargamento da visão de mundo e a elevação do nível de compreensão, de cumplicidade e solidariedade entre seres humanos. Se este compromisso constituir um propósito e um dever e querer-fazer do jornalista, ele estará contribuindo para estender ao seu público o exercício ético do qual pratica/participa diuturnamente. Em outros termos, podemos ratificar a argumentação já proposta: o ser que, pela ação e reflexão, contribui com a transformação da sociedade, como a sociedade contribui com a sua transformação.

Riscos da especialização profissionalExatamente neste momento em que tantos estão ‘encantados’ com o brilho das

tecnologias de comunicação, vale destacar que a responsabilidade deste compromisso não permite ao profissional, enquanto um especialista, cair na ‘vala comum’ do especialismo. Como enfatiza Paulo Freire, isto seria julgar-se “habitante de um mundo estranho, mundo de técnicos e especialistas salvadores dos demais, donos da verdade, proprietários do saber, que devem ser doados aos ignorantes incapazes” (1983, p.20-21).

Para o autor, ‘profissional’ é atributo de homem e, por isso, este não pode, quando exerce um quefazer atributivo, negar o sentido profundo do quefazer substantivo original. Ou seja, não cabe a inversão de valores de servir mais aos meios que ao fim do homem. Não cabe reduzir o homem a um simples objeto da técnica, a um autômato manipulável.

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Como contraponto, Paulo Freire sublinha:

Quanto mais me capacito como profissional, quanto mais sistematizo minhas experiências, quanto mais me utilizo do patrimônio cultural, que é patrimônio de todos a ao qual todos devem servir, mais aumenta minha responsabilidade com os homens (FREIRE, 1983, p.20).

Por outro lado, frisa a importância da superação do especialismo por uma denotação mais apropriada ao termo especialização. Se o compromisso não pode ser um ato passivo, mas práxis – ação e reflexão sobre a realidade –, isso implica em inserção, em conhecimento da realidade. Para tanto, um compromisso carregado de humanismo deve ser fundamentado cientificamente, ou seja, a este profissional é exigido constante aperfeiçoamento.

A maior e melhor qualificação supõem o domínio, mas ao mesmo tempo, a abertura para a experimentação de técnicas de reportagem, das formas de elaboração de mensagens, da edição, de maneira que consiga ser tradutor de linguagens para audiências amplas ou específicas. Como alerta Medina (1982), o jornalista deve interligar fragmentações, através da conquista de ferramentas de trabalho de amplo alcance e de códigos pluralistas, e não o retrocesso de platéias fechadas, incomunicadas com a maioria dos estratos sociais. Por essas razões, o enfrentamento ao risco da especialização profissional requer o constante aperfeiçoamento técnico, intelectual, ético – a capacidade de refletir para agir.

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Considerações finais – Buscar as brechasAo reexaminar O compromisso do profissional com a sociedade, proposto por Paulo

Freire, a intenção não é retomar teorias como a da “Ação política” – na versão da esquerda – que contestavam a atuação da mídia como maneira unicamente de manutenção do establishment. Mesmo porque estas aludiam aos profissionais um papel ‘passivo’, uma vez que os consideravam, de certa forma, impotentes diante do poder instituído. Por outro lado, Adelmo Genro Filho já havia refutado tais versões ao constatar que o jornalismo desempenha função muito maior que a contestação à hegemonia capitalista. Para ele, um de seus papéis relevantes é a produção social do conhecimento (1987).

O propósito, no entanto, é reconhecer que vivemos um momento de transição – na sociedade e no jornalismo – marcado pelo estado de indefinição com relação ao papel do profissional, como bem alertou Fábio Henrique Pereira. O quadro desenhado pelo pesquisador dá conta que esta identidade do jornalista se forma a partir de um duplo discurso – a fala humanista e a fala tecnológico-metodológica.

Do jornalismo artesanal ao jornalismo de mercado, realmente as empresas de comunicação estão reconfiguradas. Os modernos modelos de administração se preocuparam com a otimização de recursos, o que acarretou, de imediato, numa virtual profissionalização das redações e, certamente, as tornou mais enxutas. As chamadas novas tecnologias de informação – ferramentas importantes e aliadas na produção e divulgação do noticiário – muitas vezes, equivocadamente, constituem argumentos para

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a diminuição de quadros. Essas novas tecnologias também promoveram avanços com a criação de novas

plataformas para a disseminação de informações, mais ágeis, dinâmicas, práticas para grande faixa de público. Assim também, tais tecnologias proporcionaram opções de convergência de mídias, que podem oferecer, com maior versatilidade, informações variadas, em menor tempo, com mais abrangência, conforme o gosto e a necessidade da audiência. Como decorrência, no entanto, pode-se averiguar que, quanto maior a agilidade e a eficiência desse ‘novos meios’, mais aumenta a pressa, o desejo pelo furo, a ansiedade por maior cobertura... maior concorrência... entre algumas outras consequências.

Esse quadro, muito rapidamente esboçado, nos leva a inferir algo preocupante: redações menores, todos com menor tempo para produção em alta escala... menos tempo para pensar. E é justamente nesse contexto que aflora o grande e fundamental desafio – persistir no princípio, e na postura, da humanização, pela ação e reflexão sobre a realidade.

Os postulados de Paulo Freire são incisivos. As aspirações e os interesses globais da sociedade devem se sobrepor aos interesses de grupos, sejam políticos, econômicos ou pessoais. A defesa última de Paulo Freire em prol da resistência invoca o ‘projeto histórico’ em permanente construção: “Fugir da concretização deste compromisso é não só negar-se a si mesmo como negar o próprio projeto nacional” (1983, p. 25).

Como argumento final, recorro a um pensamento de Medina: “Na dura

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estratificação social, verdadeira muralha muitas vezes instransponível, o jornalista precisa cavar sua trincheira e avançar, gradativa e firmemente” (1982, p. 23). Por outras palavras, pessoalmente, assumo meu dever de persistir no compromisso aqui debatido. Senão com a imprudência do “peito aberto na linha de frente”, mas buscando as “brechas” do sistema geralmente fechado para, dia após dia, concretizar nosso projeto – de vida e profissional.

Bibliografia consultada

AMARAL, Luiz. Técnica de jornal e periódico. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 1969.

CHAPARRO, Manuel Carlos. Pragmática do jornalismo. São Paulo. Summus, 1994.

DINES, Alberto. O papel do jornal – uma releitura. 2ed. São Paulo: Summus, 1986.

GENRO FILHO, Adelmo. O segredo da pirâmide – Para uma teoria marxista do jornalismo. Porto Alegre: Tchê Editora, 1987.

MARCONDES FILHO, Ciro. Sociedade tecnológica. São Paulo: Scipione, 1994.

MEDINA, Cremilda. Profissão jornalista: responsabilidade social. Rio de Janeiro: Forense-Universitária, 1982.

FREIRE, Paulo. O compromisso do profissional com a sociedade, in Educação e mudança. 10ed. Trad. Moacir Gadotti e Lílian Lopes Martin. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1983.

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FREIRE, Paulo. Educação como prática de liberdade. Rio de Janeiro. Paz e Terra, 1982.

PEREIRA, Fábio Henrique. Da responsabilidade social ao jornalismo de mercado: o jornalismo como profissão. Lisboa: Biblioteca On-line de Ciências da Comunicação, 2004. Disponível em http://www.bocc.ubi.pt/pag/pereira-fabio-responsabilidade-jornalista.pdf . Acesso em 13 de abril de 2009.

RUSSELL, Bertrand. Etica e política na sociedade humana. Trad. Nathanael C. Caixeiro. Rio de Janeiro: Zahar, 1977.

SAVIANI, Dermeval. Educação – Do senso comum à consciência filosófica. 11ed. Campinas: Autores Associados, 1993.

TRAQUINA, Nelson. Teorias do jornalismo – Porque as notícias são como são. Vol. I. 2ed. Florianópolis: Insular, 2005.

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A semiótica discursiva no estudo do jornalismo e da sociedade1

Francismar FORMENTãO2

A comunicação tem recebido ao longo da história contribuições importante de diferentes campos teóricos; estudos que buscam compreender a cultura envolvida nas comunicações, as tecnologias e o próprio desenvolvimento humano e social. Destaca-se nesta pesquisa o referencial filosófico-científico que pode fornecer subsídios para estudos abrangentes, que necessariamente, dialogizam com diferentes campos e métodos teóricos envolvidos na comunicação, mantendo o rigor que o estudo científico exige, mas sem a rigidez que mina os diálogos necessários com o mundo e com os diversos conhecimentos. Assim, a proposta da filosofia da linguagem permite um estudo epistemológico, ético, estético e ontológico, observando o signo ideológico em sua forma, seu conteúdo e os diversos tempos que o envolve, a sua produção de sentido e relação ética cognitiva com as alteridades envolvidas em sujeitos dos mais diversos campos sociais, dialogizando com outros discursos e conhecimentos existentes.

Dessa forma, pode-se estudar a multiplicidade e o dinamismo existente numa sociedade constituída historicamente e materializada num eterno devir, num

1Texto-base originariamente apresentado no Intercom Sul 2008, realizado na FURB, Blumenau (SC).2 O autor é jornalista, Especialista em Comunicação, Educação e Artes, Mestre em Letras – Linguagem e Socieda-de (Unioeste); docente da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro) Guarapuava – PR (Brasil).

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inacabamento que a torna fluída. Na comunicação social, ou mesmo na especificidade do jornalismo encontram-se signos materializados, que permitem o estudo e a compreensão dos movimentos objetivados na sociedade.

O conhecimento sobre a comunicação surge principalmente devido à proliferação de diversos sistemas de transmissão de dados, destaque para a idéia da comunicação como sendo aquela da reprodução dos estados mentais (MATTELART, 2004). Neste sentido, “é preciso pensar de maneira diferente, portanto, a questão da liberdade e da democracia. A liberdade política não pode se resumir no direito de exercer a própria vontade. Ela reside igualmente no direito de dominar o processo de formação dessa vontade” (MATTELART, 2004, p.187). Percebe-se que a comunicação está mesmo situada em lugar de grande importância para o estudo da sociedade.

Situados na encruzilhada de várias disciplinas, os processos de comunicação suscitaram o interesse de ciências tão diversas quanto a filosofia, a história, a geografia, a psicologia, a sociologia, a etnologia, a economia, as ciências políticas, a cibernética ou as ciências cognitivas. Ao longo de sua construção, esse campo particular das ciências sociais esteve, por outro lado, continuamente às voltas com a questão de sua legitimidade científica. Isso o conduziu a buscar modelos de cientificidade (MATTELART, 2004, p. 9).

Nos estudos sociais não se pode descartar as diferentes correntes de pensamento, é importante existir um diálogo consistente e produzir conhecimento a partir deste, é impossível pensar em um conhecimento unidirecional. Toda realidade é envolta em

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perspectivas diversas, multidisciplinares, inter ou transdisciplinares, com o termo que melhor convir, esta multiplicidade evita reducionismos empobrecedores, principalmente por estar a comunicação social na encruzilhada de tantos estudos.

No estudo da comunicação é importante lembrar os esforços da chamada Escola de Frankfurt. Entre eles, destaca-se Theodor Adorno, crítico do iluminismo, que defendeu que o indivíduo passa a ser uma peça dependente da sociedade, com sua liberdade descartada pela sociedade, deixando de ser original. Para Adorno, o iluminismo fez surgir um domínio da razão sobre as demais dimensões humanas (MASIP, 2001, p. 356). Max Horkhemier, outro influente pesquisador desta escola, concordou com Marx quanto à idéia de que a dialética é um processo que abrange não só as relações econômicas, mas também as relações culturais e científicas. Para ele, o processo gerado pelo iluminismo foi o agente causador de “manipulação, exploração e opressão que se constata na sociedade contemporânea, pois instituiu o indivíduo e a realização pessoal como ideais humanos últimos” (MASIP, 2001, p. 355-356).

Destaca-se, na crítica desses pesquisadores, o conceito de indústria cultural, que suprime a função crítica e criativa até então existente na cultura e ocorre sua metamorfose em valor mercadológico, dissolve o patrimônio até então acumulado pela humanidade em sua autêntica experiência, degradando-se, conseqüentemente, o papel “filosófico-existencial” que lhe é inerente (MATTELART, 2004, p. 78). O objetivo da indústria cultural é inteiramente a

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imitação. Reduzida a puro estilo, trai o seu segredo: a obediência à hierarquia social. A barbárie estética realiza hoje a ameaça que pesa sobre as criações espirituais desde o dia em que foram colecionadas e neutralizadas como cultura. Falar de cultura foi sempre contra cultura. O denominador “cultura” já contém, virtualmente, a tomada de posse, o enquadramento, a classificação que a cultura assume no reino da administração. Só a “administração” industrializada, radical e conseqüente, é plenamente adequada a este conceito de cultura. (HORKHEIMER; ADORNO In: LIMA, 1982, p. 169).

Os estudiosos observam que a indústria cultural – pode-se aqui pensar também em comunicação jornalística – faz não necessitar de pensamento intelectual para aquele que percebe esta comunicação. Assim, a massa, como destacam, tem seu comportamento automatizado e é forçada à disciplina do espetáculo numa pressão que exclui e desmoraliza aqueles que não se deixam domar, inibindo a reflexão crítica. (HORKHEIMER; ADORNO In: LIMA, 1982, p.175-190).

Em outra área de estudos da comunicação, pesquisadores apresentam a perspectiva do impacto das tecnologias da informação na sociedade contemporânea, enfatizando a recepção dessas tecnologias sobre as ciências, sobre as formas novas de representação da realidade e sobre a interação entre os novos espaços públicos e os novos sujeitos sociais. Pesquisadores como Muniz Sodré, Dênis Moraes, Armand Mattelart, Eduardo Galeano, Jesús Martín-Barbero, entre outros, analisam a nova ordem fundada na sociedade da informação: sua mercantilização, sua eticidade, seus múltiplos objetos, suas técnicas e

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seus mecanismos de construção de realidades, suas mediações.

Trata-se de fato da afetação de formas de vida tradicionais por uma qualificação de natureza informacional, cuja inclinação, no sentido de configurar discursivamente o funcionamento social em função dos vetores mercadológicos e tecnológicos, é caracterizada por uma prevalência de forma (que alguns autores preferem chamar de “código”; outros, de “meio”) sobre os conteúdos semânticos. (SODR? In: MORAES, 2006, p.21).

Para Muniz Sodré, a midiatização é mediação social prevalente no mundo atual com autonomia e espaço particular. Ela tem como objeto fundante a interatividade contínua, articulando-se em múltiplas formas híbridas com as várias organizações sociais, todas elas organicamente articuladas em suas finalidades mercadológicas. A midiatização promove o reflexo do real, que é aquele preconizado pela própria tecnologia.

As discussões apresentadas, algumas recorrentes em estudos da comunicação, representam passagens de pesquisas que podem enriquecer diálogos em estudos da formação social e da constituição de indivíduos nestas interações, nota-se nos exemplos dados da indústria cultura ou mesmo da midiatização que o dialogismo com estes conhecimentos é enriquecedor para o estudo da comunicação e da sociedade.

Para utilização da semiótica discursiva (ou da filosofia da linguagem, ou método dialógico) para realização de um estudo com rigor científico, é necessário compreender que é na linguagem que o homem existe no mundo e é pela comunicação que ele interage com os outros seres humanos e com o próprio mundo. A linguagem é o começo e o fim de

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todas as realizações, que só têm sentido na própria linguagem. Compreendemos o mundo, os sujeitos, os acontecimentos, a vida, os tempos históricos pelos signos impressos em cadeias discursivas, seja na comunicação midiada ou na comunicação face-a-face.

A comunicação e a própria sociedade tem na linguagem um ponto comum para a análise e a interpretação em estudos elaborados. Bakhtin (1995) especifica que a linguagem é produto material da criação ideológica, negando a interpretação da ideologia como falsa consciência, pois:

um produto faz parte de uma realidade (natural ou social) como todo corpo físico, instrumento de produção ou produto de consumo; mas, ao contrário destes, ele também reflete e refrata uma outra realidade, que lhe é exterior. Tudo o que é ideológico possui um significado e remete a algo situado fora de si mesmo. Em outros termos, tudo que é ideológico é um signo. Sem signos não existe ideologia. (BAKHTIN, 1995, p.31).

Bakhtin demonstra como este sentido dado ao signo carrega o peso da ideologia,

objetivando uma relação materializada, neste caso, na imprensa, a comunicação social jornalística, com os signos materializados numa interação comunicativa, refletindo e refratando (como um resultado) uma realidade social.

O signo ganha mais complexidade na comunicação, neste movimento também existe a dialogia e evidencia as alteridades dos sujeitos, apresentando-se de forma diversa, orientando-se para uma dinâmica de fluxo interacional de “totalidades” sócio-históricas em sua integração, em sua funcionalidade ideológica e de construção, produção e

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circulação de sentido de ordem estética, ética e cognitiva. Os discursos promovidos pela forma e pelo conteúdo da comunicação ou comunicação social dialogam entre si e, os signos envolvem-se na interação, possibilitando múltiplas relações de alteridade. O campo epistemológico é o do plurilinguismo e o da pluridiscursividade, dos múltiplos eus e nós.

A filosofia da linguagem de Bakhtin não esclarece a alteridade como diferença ou como par antagônico do eu. Não estabelece também ordenação, combinação de ordem valorativa ou normativa. O significado da alteridade ocorre entre o eu e o outro como interação em que ambos se incluem mutuamente. As relações recíprocas se definem na tríade eu-para-mim, no outro-para-mim e no eu-para-o outro, como ação concreta, ato em realização que requer compreensão responsiva e assunção responsável (responsabilidade) de ordem ética e cognitiva. Nesse movimento, os sujeitos participam ativamente da interação, experienciam o mundo em ação situada, avaliativa e valorada.

O método de estudo da comunicação e da sociedade centrado na semiótica bakhtiniana, ou filosofia da linguagem, tem o signo ideológico como determinante na interação e na socialização do homem, e mais ainda, propulsor da ação material que transforma o próprio homem e a natureza. Os signos assumem forma e conteúdo, conduzindo o sentido para a materialização dos movimentos da comunicação. Esta lógica é observada na comunicação contemporânea, por exemplo, a jornalística, que é submissa às relações que a “empresa” jornalística estabelece tendo em vista seus interesses privados. Para estabelecer uma discussão sobre a lógica do modelo de comunicação existente

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deve-se considerar a multiplicidade de teorias sobre a comunicação. É importante ainda considerar as esferas de criatividade ideológica e os campos sociais envolvidos, um estudo mais virtuoso da comunicação passa necessariamente por um estudo da multiplicidade envolvida, um estudo da sociedade, sejam eles do conhecimento do objeto de seu estudo ou de sua própria realidade, comunicação social e sociedade.

O conceito de esfera da comunicação discursiva (ou da criatividade ideológica, ou da atividade humana, ou da comunicação social, ou da utilização da língua, ou simplesmente da ideologia) está presente ao longo de toda a obra de Bakhtin e de seu Círculo, iluminando, por um lado, a teorização dos aspectos sociais nas obras literárias e, por outro, a natureza ao mesmo tempo onipresente e diversa da linguagem verbal humana. (GRILLO In: BRAIT, 2006, p.133-134).

Os signos materializados nas esferas/campos sócio-históricos (jornais, círculos sociais) refratam e refletem as marcas de sua própria materialidade sígnica.

No domínio dos signos, isto é, na esfera ideológica, existem diferenças profundas, pois este domínio é, ao mesmo tempo, o da representação, do símbolo religioso, da fórmula científica e da forma jurídica etc. Cada campo da criatividade ideológica tem seu próprio modo de orientação para a realidade e refrata a realidade à sua maneira. Cada campo dispõe de sua própria função no conjunto da vida social. (BAKHTIN, 1995, p.33).

Para o estudo da sociedade o campo da comunicação social – ou mais

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especificamente do jornalismo – carrega a materialização de relações sociais em seus signos, envolve esferas como da produção jornalística e de interesses privados, da comunicação e da política, e uma possibilidade de entendimento de momentos históricos, uma vez que a sociedade é um campo dialógico da comunicação social.

Eixo central do pensamento baktiniano, o dialogismo (relações discursivas entre homem-mundo, homem-natureza e sujeito-objeto do conhecimento) ocorre entre discursos que interagem na comunicação e, nessa interação, produzem o movimento da significação. “O discurso escrito é de certa maneira parte integrante de uma discussão ideológica em grande escala: ele responde a alguma coisa, refuta, confirma, antecipa as respostas e objeções potenciais, procura apoio etc.” (BAKHTIN, 1995, p. 123). Através da linguagem, os discursos são produzidos em condições específicas (enunciação), estabelecendo formas num intercurso social (enunciados) que, além de instaurar relações entre o eu e os outros, veicula o universo ideológico.

O movimento dos enunciados/enunciação é constante, não sendo apenas uma fala face a face ou em monólogo do “interior” do sujeito, pois “a situação e o auditório obrigam o discurso interior a realizar-se em uma expressão corrente, e nele se amplia pela ação, pelo gesto ou pela resposta verbal dos outros participantes na situação de enunciação” (BAKHTIN, 1995, p. 125).

O enunciado está repleto dos ecos e lembranças de outros enunciados, aos quais está vinculado no interior de uma esfera comum da comunicação

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verbal. O enunciado deve ser considerado acima de tudo como resposta a enunciados anteriores dentro de uma dada esfera: refuta-os, confirma-os, completa-os, baseia-se neles, supõe-nos conhecidos e, de um modo ou de outro, conta com eles [...] Os enunciados não são indiferentes uns aos outros, nem auto-suficientes; são mutuamente conscientes e refletem um ao outro... Cada enunciado é pleno de ecos e reverberações de outros enunciados, com os quais se relaciona pela comunhão da esfera da comunicação verbal. (BAKHTIN, 1992, p.316).

No dialogismo percebe-se que todo enunciado refuta, confirma, complementa e depende dos outros, levando em consideração o outro. O lugar onde brota o discurso ou a enunciação está determinado por uma situação social imediata independentemente da existência real do interlocutor. O meio social concreto propicia a emissão de discursos, tendo em vista um horizonte social do outro da classe social do contexto histórico de tal sorte que os discursos irão se aproximar “do auditório médio da criação ideológica” sem “ultrapassar as fronteiras de uma classe e uma época bem definidas” (BAKHTIN, 1995, p.113). Para Bakhtin, “a situação social mais imediata e o meio social mais amplo determinam completamente e, por assim dizer, a partir do seu próprio interior, a estrutura da enunciação” (BAKHTIN, 1995, p.113). Compreende-se as enunciações quando “reagimos àquelas (palavras) que despertam em nós ressonâncias ideológicas ou concernentes à vida”. (BAKHTIN, 1995, p. 95). Produzido em uma realidade material concreta, o sujeito é o ser do discurso, em uma condição sócio-histórica; com uma individualidade condicionada ao eu e ao outro, integrados em uma cadeia semiótica (sígnica) no contexto mediato e imediato,

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sujeitos situados em devir e sustentados na alteridade.Como o dialogismo é também o princípio gerador da linguagem e da produção de sentido do discurso, todos os discursos empreendem o dialogismo “retrospectivos e prospectivos com outros enunciados/discursos” (SOBRAL. In: BRAIT, 2005, p.106). O sujeito descentralizado, interativo, forma a sua consciência pela cadeia ideológica.

Essa cadeia ideológica estende-se de consciência individual em consciência individual, ligando umas às outras. Os signos só emergem, decididamente, no processo de interação entre uma consciência individual e uma outra. E a própria consciência individual está repleta de signos. A consciência só se torna consciência quando se impregna de conteúdo ideológico (semiótico) e, conseqüentemente, somente no processo de interação social (BAKHTIN, 1995, p.34)

Trata-se de uma cadeia de significação de aproximação entre um signo e outro, ou outros signos conhecidos, ocorrendo a compreensão pelo seu próprio encadeamento.

E essa cadeia de criatividade e de compreensão ideológicas, deslocando-se de signo em signo para um novo signo, é única e contínua: de um elo de natureza semiótica (e, portanto, também de natureza material) passamos sem interrupção para um outro elo de natureza estritamente idêntica (BAKHTIN, 1995, p.34).

A cultura, com seus universos de discursos e suas diferentes materialidades ideológicas, está em um constante fluxo de sentido, com conexões e movimentos em

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cadeias interdiscursivas que estão entre a ideologia do cotidiano e os sistemas ideológicos já cristalizados e constituídos (moral, ciência, arte e religião) (BAKHTIN, 1999, p.119).

Para Bakhtin, o embate ideológico localiza-se no centro vivo dos discursos, seja na forma de um texto artístico, seja com intercâmbio cotidiano da linguagem. Na vida social do enunciado (seja ela uma frase proferida verbalmente, um texto literário, um filme, uma propaganda ou um desfile de escola de samba), cada “palavra” é dirigida a um interlocutor específico numa situação específica, palavra essa sujeita a pronúncias, entonações e alusão distintas. (STAM, 2000, p.62).

Na interação social, o intercurso da pluralidade sígnica abrange comunidades semióticas que têm funcionalidades específicas. Essas funcionalidades, contudo, pela própria plurivalência dos signos (inúmeros valores que se entrecruzam em um único discurso), permite a construção de uma identidade que é por esses signos, construída tanto quanto a fluidez dessa identidade em suas múltiplas refrações (BAKHTIN, 1995, p. 33-34). No movimento histórico de formação identitária, o sujeito não se estabelece de modo univocamente distinto, particular. Ao contrário, se estabelece em vir-a-ser, constantemente se refazendo (SOBRAL In: BRAIT, 2005, p.105). Esse aspecto é pouco perceptível para o próprio sujeito por estar em constante interação com o outro, acreditando que esse outro não faz parte de si mesmo. Assim, a filosofia da linguagem ou semiótica discursiva permite, através da alteridade, compreender a relação dialógica dos discursos em suas combinações de ordem valorativa e normativa. Com seus sentidos refratados e refletidos

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em formas e conteúdos em tempo e espaço objetivados numa dinâmica fluida; para Bakhtin, este sistema é aberto e não absolutiza e nem relativiza axiologicamente o devir humano.

O sentido refratado e refletido signicamente tem nas marcas ideológicas a materialização das esferas e dos campos sociais, demonstram objetivamente a forma dialógica determinada por um horizonte social de uma época (espaço/tempo) e de um grupo social que carrega um índice de valor (conteúdo) (BAKHNTIN, 1995, p. 44). Juntos, forma e conteúdo, na interação social, produzem sentido ideológico que, na sua época, axiologicamente tenciona as tramas das diversas esferas ideológicas e dos campos sociais. O jornal acolhe esferas ideológicas que estão em constante tensão: o jornalista, os editores, os publicitários que querem tornar o jornal vendável, os donos do jornal que procuram o lucro. Outros campos sociais apresentam interferência significativa no conteúdo e na forma da comunicação social do jornal, como o campo político e o campo dos leitores, cada qual também com diversas esferas de criatividade ideológica produzindo refrações, condicionando o horizonte social e os índices de valores que determinam a comunicação social e, portanto, a forma e o conteúdo dos jornais.

Para compreender como o signo é resultado de um consenso da interação social, “razão pela qual as formas do signo são condicionadas tanto pela organização social de tais indivíduos como pelas condições em que a interação acontece” (BAKHTIN, 1995, p.44), é necessário estudar a ideologia como fator que influencia as relações entre os signos e

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indivíduos. “é apenas sob esta condição que o processo de determinação causal do signo pelo ser aparece como uma verdadeira passagem do ser ao signo, como um processo de refração realmente dialético do ser no signo” (BAKHTIN, 1995, p.44). Bakhtin apresenta como questão indispensável para compreensão da ideologia no signo:

1. Não separar a ideologia da realidade material do signo (colocando-a no campo da “consciência” ou em qualquer outra esfera fugidia e indefinível).2. Não dissociar o signo das formas concretas da comunicação social (entendendo-se que o signo faz parte de um sistema de comunicação social organizada e que não tem existência fora deste sistema, a não ser como objeto físico).3. Não dissociar a comunicação e suas formas de sua base material [...]. (BAKHTIN, 1995, p.44).

Adail Sobral, em Filosofias (e Filosofia) em Bakhtin, especifica que os intelectuais do Círculo de Bakhtin, no conceito da unidade singularidade/generalidade, propunham a análise de objetos de estudo mediante “procedimentos” que contemplassem a “identificação e explicação de relações (não dicotômicas) entre elementos dos objetos estudados” (SOBRA. In: BRAIT, 2005, p. 137). O estudioso destaca entre elas

a) forma-conteúdo-material;b) resultado-processo;c) material-organização-arquitetônica;d) individual-interação entre indivíduos;e) cognição-vida prática;

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f) universalidade-singularidade;g) objetividade (o real concreto) – objetivação (a manifestação semiótica da objetividade);h) estética/ética/cognição (esta última em termos de conhecimento, não de processo cerebral).(SOBRAL In: BRAIT, 2005, p. 137).

Esses movimentos apresentados acima são fundamentais para a semiótica discursiva, variáveis indispensáveis para que no estudo científico exista uma passagem do conhecimento abstrato para um conhecimento concreto, materializado em uma realidade histórica e social. Exemplo destes movimentos é a demonstração que, mantendo-se a unidade conteúdo-forma, acrescenta-se a “natureza do material” e os “procedimentos por ele condicionados” (BAKHTIN, 2003, p.177-178). A forma é dependente do conteúdo e do material. Nos signos ideológicos, o objetivo é o conteúdo. Este conteúdo ético-cognitivo será enformado e concluído, subordinando o material ao próprio objetivo. Concluir implica a subordinação do material e alcançar o objetivo ético-cognitivo ou “tensão ético-cognitiva”. Há necessidade de superar o material na tarefa comunicativa.

Neste estudo pode-se entender então, que no jornalismo, superar a linguagem (técnica jornalística) afim de um sentido, ou a superação da própria língua para a conclusão de um discurso, evidencia a obediência de uma lógica criativa, “uma lógica imanente da criação”, com os valores da produção de sentido, o contexto do “ato criador”.

[...] antes de tudo precisamos compreender a estrutura dos valores e do

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sentido em que a criação transcorre e toma consciência de si mesma por via axiológica, compreender o contexto em que se assimila o ato criador. A consciência criadora [...] nunca coincide com a consciência lingüística, a consciência lingüística é apenas um elemento, um material [...]. (BAKHTIN, 2003, 179).

O conteúdo apresenta os elementos do mundo, da vida, forjado em parâmetros éticos e cognitivos. Interligado à forma, conteúdo e forma são mutuamente condicionados, produzindo sentido na própria criação. Aquele que cria é o artista e a arte (no caso desta pesquisa, é o jornalista que apresenta um discurso, uma visão, uma realidade materializada no jornal). A atividade estética (acabada na obra jornalística) agrega sentidos de forma acabada, e auto-suficiente. Trata-se de um ato que passa a existir em um novo campo axiológico (o jornal), num devir da interação comunicativa. Assim, também o material condiciona-se com forma e conteúdo, em que o signo é o meio de expressão; numa “lógica imanente da criação”, o material deve ser superado, aperfeiçoado num contexto de criação em que forma e conteúdo revelam o signo em sua superação. De um contexto factual, para a interpretação jornalística, revelado nas páginas de um jornal em outra forma (uso das técnicas jornalísticas) com conteúdos que provocam a “tensão” entre o criador e este contexto de criação.

Considerações finaisA exemplificação do método semiótico discursivo, ou da filosofia da linguagem,

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de bases bakhtinianas é um estudo mais abrangente e que envolve diversas outras categorias deste filósofo. ? importante compreender, seja no estudo da comunicação, seja no estudo da sociedade ou até mesmo no método ora discutido, que agir no mundo, seja nesta pesquisa ou na vida, trata-se de um movimento aberto, inacabado e em eterno devir, um movimento histórico que valoriza dialógicamente a diferença, os vários outros, como correntes diversas de pensamento, que de forma alguma podem ser descartadas.

Bakhtin, com o dialogismo, a alteridade e a potencialidade do signo ideológico, rompe como o cartesianismo e o positivismo, sem nunca negar o dialogismo e a relação de alteridade de sua própria pesquisa com estes conhecimentos. Ele demonstra a comunicação como um movimento: nele as consciências individuais interagem com outras consciências individuais, num movimento que ganha em complexidade e dinamismo quando o conteúdo e a forma desta comunicação são observados como signos, que, por sua vez, também possuem forma e conteúdo ideológicos em constante interação a partir de esferas e de campos específicos evidentes em múltiplos discursos (BAKHTIN, 1995, p.31-38).

Observa-se, na complexidade jornalística, além de seu conteúdo, a forma que organiza os componentes apresentados, signos que compõem o discurso na comunicação, seja em palavras, imagens, cores ou sons, todos, conteúdo e forma sígnica da comunicação. A comunicação é instrumento de existência social, conteúdo como linguagem e processo, e forma, como movimento estético efetivado nas relações, um acontecimento material

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que busca ser interpretado pelas assim chamadas teorias da comunicação. Acontecimento que carrega a alteridade do homem como fator fundamental de um movimento que, pela linguagem, dá ao signo sentido e existência ideológica. O homem – num entendimento que não se deixa levar por um reducionismo economicista – é um ser social imerso nesta dinâmica, pois,

Para entrar na história é pouco nascer fisicamente: assim nasce o animal, mas ele não entra na história. ? necessário algo como um segundo nascimento, um nascimento social. O homem não nasce como um organismo biológico abstrato, mas como fazendeiro ou camponês, burguês ou proletário: isto é o principal. [...] Só essa localização social e histórica do homem o torna real e lhe determina o conteúdo da criação da vida e da cultura (BAKHTIN, 2004, p. 11).

Para Bakhtin, o papel contínuo da comunicação, a consolidação do signo ideológico na materialidade deste movimento, não aparece em lugar algum de forma mais clara do que na própria comunicação. O entendimento da realidade material nos vários campos da sociedade da informação implica no reconhecimento da materialidade ideológica do signo e do papel fundamental da semiótica como instrumento metodológico de pesquisa, de análise e de exposição de dados sustentada nos parâmetros da filosofia da linguagem.

A arquitetônica do conhecimento semiótico incorpora dialogicamente o movimento histórico e as condições de elaboração de epistemes no movimento de transformação contínua, na dinâmica das forças vivas sociais que se determina ética e esteticamente.

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Bakhtin une dialogicamente sua fundamentação do signo ideológico e da alteridade das relações sociais com essa arquitetônica vinculada a diversas categorias conceituais, como dialogismo, cronotopo, exotopia, polifonia, palavra, esfera, campo, enunciação, ética, estética, entre outras.

As potencialidades da filosofia da linguagem, da semiótica discursiva, proporcionam recursos teóricos e metodológicos para o estudo da comunicação e sua complexidade na sociedade contemporânea, seja por um viés epistemológico, ético, estético ou ontológico, além de permitir por meio do dialogismo, a construção de sínteses ricas e concretas de conhecimento, seja sobre o jornalismo ou a própria sociedade.

Bibliografia consultada

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Promessas e perspectivas da/na implantação da TV digital no Brasil: o caso Rede Globo1

Ariane Carla PEREIRA2

Márcio FERNANDES3

Chegar em casa, depois de um dia de trabalho, sentar no sofá em frente à TV e ligar o aparelho com a ajuda de um controle remoto. Essa maneira tradicional de assistir televisão, em breve, deixará de ser a única, depois de quase três décadas. Afinal, desde dezembro de 2007, emissoras brasileiras começaram a implantar a chamada TV de Alta Definição, a HDTV. Digitalização que já implica para quem produz conteúdo formas diferentes de se fazer televisão e que significará, mais uma vez em pouco tempo, mudanças para quem está no outro lado da telinha, o telespectador.

A TV digital não significa apenas um monitor/aparelho diferente na sala das casas. O televisor sim já está muito diferente – a tela quase quadrada (4x3) da TV convencional tem no sistema digital proporções de um retângulo, 16x9, (e isso implica também um

1 Texto-base originalmente apresentado no Intercom Sul 2009. realizado na Furb, Blumenau (SC).2 Jornalista profissional, mestre em Letras, professora efetiva do Departamento de Comunicação Social da Uni-centro e membro do grupo de pesquisa Processos Midiáticos Eletrônicos e Impressos. Em 2008 e 2009, partici-pou do Seminário Globo-Intercom. 3 Jornalista profissional, mestre em Comunicação e Linguagens, professor efetivo do Departamento de Comu-nicação Social da Unicentro e membro do grupo de pesquisa Processos Midiáticos Eletrônicos e Impressos. Em 2007, participou do Seminário Globo-Intercom.

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fazer diferente, assunto que trataremos adiante); além disso, o velho tubo de imagem responsável pelo televisor grandão e pesado some e as TVs ficam leves e finas, podendo ser confundidas com quadros na parede.

A TV digital significa, sobretudo, alta definição de imagens. E isso representa de vez a aposentadoria de um acessório já algum tempo em crescente desuso: as antenas. As imagens com chuviscos, tremidas, com interferências, têm dias contados, restando para muitos as memórias dos anos 80, quando um pedaço de esponja de aço era recursos essencial para bem captar determinado programa em certos horários debaixo de um temporal lá fora. Historicamente, esse método agora ultrapassado é resultado de um sistema que precisa de antenas e torres e que, entre elas, sempre encontra pelo caminho obstáculos naturais – como morros – ou construídos pelos homens – arranha-céus entre eles. Com a mudança, a transmissão deixará para trás esse problema já que o sinal será digital, em bits, garantia de imagem limpa, em “alta definição”, para utilizar um jargão comum no noticiário nos últimos anos.

Porém, a alta definição é apenas uma das promessas da Era Digital. Mobilidade, portabilidade e interatividade são palavras-chave nesse novo conceito imagético, nessa nova maneira de se fazer e de se ver televisão. E é sobre isso que trataremos no tópico a seguir.

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As possibilidades da TV digitalA história da Televisão enquanto mídia (meio de comunicação), desde sua origem

até a contemporaneidade, pode ser dividida, sobretudo para efeitos de análise, em três estágios/períodos. O primeiro deles tem início com a origem da TV (ainda no século 19) e vai até a década de 1970. É a época em que o veículo TV se caracteriza pelo número reduzido de canais cujas concessões, espécie de permissão para explorar o serviço de radiodifusão, eram concedidas pelo governo federal.

A justificativa para esse “modelo” de televisão era a limitação do espectro, já que as faixas de transmissão comportavam um número definido de canais. Fator que, segundo Galperin (2003, p. 13), resultou/originou nos/os oligopólios de Comunicação. Outro ponto a ser destacado sobre as concessões é que em troca delas os governos exigiam a exibição de programas de prestação de serviços – como os de conteúdo educativo, informativo ou político. Neste período, uma certa distinção quanto às receitas financeiras divide os Estados Unidos e a América Latina da Europa, por exemplo. Enquanto que, no Velho Mundo, a fonte prioritária era o Estado (basta citar o caso da Itália), na América era a iniciativa privada quem bancava o sistema.

A década de 1970 é marcada também por uma série de evoluções tecnológicas que resultaram numa “revolução” na já revolucionária televisão. São deste segundo período da TV, embora tenham se consolidado na década seguinte, as TVs a cabo e por satélite. “Modelos” que marcam o segundo estágio da televisão e que exigiram nova regulação.

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Afinal, o número de canais aumentou consideravelmente; a programação passou a ser mais segmentada, dirigida a um público menor, porém mais identificado com o canal. Enquanto os canais da primeira etapa transmitem seus sinais gratuitamente, aqui inaugura-se um novo negócio baseado na assinatura de pacotes de programação. Ao contrário dos anos anteriores, quando a TV era um serviço público, as concessões adquirem caráter privado e são os transmissores que controlam o conteúdo. Em âmbito internacional, empresas como MTV e CNN se sobressaem neste cenário da segmentação.

O terceiro estágio evolutivo da televisão é o da TV digital – ou seja, a produção, transmissão e recepção digital dos sinais audiovisuais. As pesquisas para essa nova era da TV tiveram início no final dos anos de 1980 e se consolidaram na década seguinte quando foram lançados os dois primeiros padrões, o americano (ATSC) e o europeu (DVB). O terceiro padrão (ISDB) acabou tornado público em 2003, pelo Japão – país que deu o pontapé inicial nas pesquisas para uma TV de alta definição.

Televisão digital essa que é considerada o início de uma nova era na relação emissoras-telespectadores, uma revolução nas maneiras de se fazer e se ver TV. Isso porque as diferenças deste novo sistema – quando comparado ao tradicional, analógico – são muitas, perceptíveis e inovadoras.

A vantagem mais facilmente percebida e discutida da transmissão em sistema digital é a conservação da qualidade do sinal. O número de linhas horizontais nos canais receptores, nos atuais sistemas analógicos, não passa de 330. Por isso, a ocorrência de

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de interferências e ruídos, os conhecidos chuviscos e “fantasmas”. Na transmissão digital, a imagem recebida pelos aparelhos tem 1080 linhas de definição. Além disso, no novo sistema, os sinais de som e imagem são representados por uma seqüência de bits, e não mais por uma onda eletromagnética análoga ao sinal televisivo. Isso impacta diretamente na qualidade da imagem que vemos na TV.

Outro fator a implicar em perda da qualidade da imagem na TV analógica é a interferência de um canal sobre outro. Ou seja, quando as freqüências são muito próximas os sinais de dois ou mais canais podem se misturar, mesclar. Nos televisores isso é facilmente percebido. Quem ao sintonizar os canais de um aparelho já não se deparou com um canal/emissora funcionando bem num certo número, e em outros esse mesmo sinal ser perceptível através de imagem ou áudio com interferências, ruídos? Com a implantação da TV digital isso não continuará ocorrendo. Os sinais de cada emissora serão transmitidos apenas em seu respectivo canal. Com isso, os canais vagos poderão ser ocupados.

Ainda em relação a imagem, não é possível comparar os sistemas analógico e digital sem tratar do formato desta e, conseqüentemente, dos televisores. Na tradicional, a tela tem proporção de 4x3, mais quadrada, enquanto na HDTV esta relação é de 16x9, mais retangular, o que impacta – sobretudo – na produção televisiva. Afinal, a composição das cenas implica numa nova estética, num olhar novo para a definição também de quadros e ângulos.

Outra vantagem técnica e de sinal da TV digital é a possibilidade de compactação

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deste. Na tecnologia analógica, os sinais não podem ser comprimidos ou compactados. Ou seja, cada pixel precisa estar incluído no sinal, totalizando 378 mil pixels por quadro, o que ocupa todo canal de 6 MHz disponível no sistema brasileiro. Já os sinais da transmissão digital podem ser compactados e, conseqüentemente, não há necessidade de utilização de toda a banda na transmissão. Isto resulta na possibilidade de que mais conteúdo seja veiculado por cada banda. Ou seja, uma banda que hoje comporta um canal – que representa uma emissora, ou seja, um conteúdo ou programação – de TV, poderá, com a digitalização, transmitir o sinal de até quatro canais, emissoras, conteúdos ou programações diferentes simultaneamente.

Porém, as diferenças ou vantagens da TV digital, numa comparação com a televisão analógica, vão além do sinal e da imagem. E neste ponto residem as inovações mais profundas permitidas pelo sistema em gestação e, também, onde se encontram as maiores expectativas e promessas. E aqui as palavras-chave são portabilidade, mobilidade e interatividade.

A interatividade é uma das características mais festejadas da TV digital. Afinal, significa, em tese, o fim da unilateralidade nas transmissões televisivas. Ou seja, o assistir televisão deixa de ser um ato passivo, e o telespectador se torna um agente nesse processo, podendo com apenas um toque no controle remoto interagir com a emissora. As possibilidades com abertura desse “canal” são inúmeras. O telespectador votar em programas como realitys shows, responder a testes, participar de debates, acessar mais

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informações sobre o conteúdo (programa, por meio de um banco de dados web conectado à própria TV) e comprar – desde produtos anunciados nos intervalos comerciais até a roupa da apresentadora do telejornal ou o lençol que aparece numa das cenas da novela. De um modo geral, tais possibilidades já marcam o dia-a-dia dos brasileiros, embora se processem não através do próprio aparelho de TV e sim a partir de uma segunda mídia, o computador conectado a internet.

Mobilidade e portabilidade se complementam e são recursos que ainda engatinham no cotidiano verde-amarelo. Portabilidade, de seu turno, diz respeito a recepção – gratuita - dos sinais, em formato digital, das emissoras de TV abertas em equipamentos como laptops, celulares, televisores portáteis. Já a segunda refere-se a recepção da programação por esses mesmos aparelhos mesmo com eles em movimento – o que significa a possibilidade de acompanhar a novela, o telejornal ou o filme caminhando, no carro, no trem ou no ônibus.

A digitalização da TV Globo: observações dos Seminários Globo-Intercom 2007 e 2008

Um quadro geral de perspectivas e expectativas dominou a parcela sobre TV Digital do seminário de 2007, cujo tema central era a gestão da Indústria do Audiovisual, especificamente a Rede Globo de Televisão. Um vídeo lúdico, apresentado por Zeca Camargo (âncora do dominical Fantástico), apresentava à platéia docente as diferenças

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técnicas previstas para paulatinamente entrarem em vigor (e que, no seminário de 2008, já tinham desdobramentos mais nítidos) – entre elas a necessidade de um melhor acabamento da cenografia e cuidados redobrados com a iluminação, já que, no esquema HTDV, o suor de determinado ator, durante as gravações de uma novela, minissérie ou soap opera, por exemplo, se tornaria/tornará mais evidente ao telespectador, algo que, esteticamente, faz parte do rol de abominações dos manuais de TV.

E, se em 2008 (como se verá nas linhas a seguir), o quadro ainda era de preocupação/indefinição, tal cenário era mais notório no evento do ano passado. No braço jornalístico do grupo Globo, o mote de discussões sobre os impactos da HDTV se centrava nos custos dos equipamentos e de logística. Uma unidade móvel de alta definição, ponderaram dirigentes da emissora em diversos momentos do Seminário, tem custo-padrão previsto para os próximos anos na casa de alguns milhões de dólares, dependendo da complexidade exigida para determinada transmissão.

Outro item de discussão na edição de 2007, a partir de ganchos lançados por Octávio Florisbal, diretor geral da TV Globo, logo na conferência de abertura do congresso (ainda na sede do bairro Jardim Botânico), era a perspectiva de que a massificação da HDTV seria um processo de pelo menos 10 anos. Dito de outro modo, a TV de alta definição tenderia a ser um negócio comercialmente viável em larga escala por volta de 2018, quando boa parte do território brasileiro estaria coberto pelo novo sistema, com a maior parcela da população já tendo equipamentos adequados à disposição em suas

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residências, escritórios e espaços móveis (como táxis). No âmbito interno, a direção do conglomerado estimava que as 121 emissoras da rede estariam totalmente adaptadas à alta definição por volta de 2016. Cabe lembrar que, semanas antes do Seminário 2007, o mesmo Florisbal havia anunciado que, entre 2007 e 2009, o grupo pretendia aplicar U$ 100 milhões anuais em melhorias de toda espécie, boa parte dos quais para pesquisa e desenvolvimento voltados para TV digital.

Ao longo do evento, as falas de lideranças globais como Luís Erlanger (diretor da Central Globo de Comunicação), Luiz Gleiser (diretor de programas de entretenimento), Luiz Fernando Lima (diretor geral de Esportes) e, principalmente, Florisbal apontavam para o começo das operações públicas da TV Globo em alta definição para dezembro de 2007, em São Paulo, primeiramente, o que acabou ocorrendo, levando o novo método nos meses seguintes para a cidade do Rio de Janeiro. O apontamento de que dezembro seria um mês-chave para a emissora acabou se tornando um ponto de referência bastante palpável para a platéia seletiva do evento, em meio a um emaranhado de incertezas e previsões, algo que se dissiparia em boa quantidade na edição de 2008 (cabe lembrar que o Seminário de 2007 não era focado na TV Digital, mas no propalado Padrão Globo de Qualidade, o que incluiu, para os congressistas, uma visita aos diversos, amplos e moderníssimos estúdios de telejornalismo e às cidades cenográficas do Projac).

No momento seguinte, a televisão digital, a implantação gradativa pela TV Globo e como a emissora carioca vem se preparando para esse novo momento da transmissão

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de som e imagem foram temas recorrentes no Seminário Globo-Intercom 2008. Apesar do tema - O entretenimento da TV Globo - aparentemente não ter relação com este assunto, por sua importância e atualidade, ele já se colocava como de fundamental discussão na contemporaneidade na programação. Afinal, uma das sete palestras previstas tinha como título TV Digital. Mas não foram apenas os palestrantes Celso Araújo, gerente de Operações, e Rodolfo Santos, responsável pela caracterização, que a abordaram.

Logo na abertura, o diretor de Competências da Central Globo de Produção (uma espécie de prefeito do Projac, como o apresentou o diretor da Central Globo de Comunicação, Luis Erlanger), Edson Pimentel, enfatizou que, nos últimos três anos, o fator de maior preocupação da/na CGP – Central Globo de Produção – é/era como produzir com qualidade em alta definição.

Preocupação justificada pelas mudanças nos modos de se fazer televisão que a HDTV já começa a exigir. Mudanças que passam pela técnica – que ainda precisa ser estudada, pesquisada, entendida, aprimorada – e, este é um motivo extra de preocupação já que demandará uma mudança cultural, pelos profissionais de TV. Por isso, segundo Pimentel, a TV Globo tem investido em qualificação que é “intrínseca ao HDTV”.

Para demonstrar as transformações exigidas pela – e também conseqüência da – TV digital, Pimentel citou as proporções da nova tecnologia (16x9 contra 4x3 da TV convencional, mencionadas anteriormente neste texto) que, nas palavras dele, representam um “desafio adicional”. O formato mais retangular dos televisores, e

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conseqüentemente das imagens, “impacta também nos estúdios” que, de acordo com o diretor de Competências da CGP, precisarão ser construídos em formato diferente que ainda precisa ser pensado/definido.

O formato da TV digital também foi colocado como um desafio por Celso Araújo, um dos responsáveis pela implantação da TV digital pela emissora. “O equilíbrio estético das cenas está em jogo, afinal, nesse período de transição, algumas pessoas vão receber as imagens mais quadradas – no caso, quem continua(rá) com a TV analógica – e outras verão as mesmas cenas mais retangulares – quem tiver em casa uma TV de plasma ou LCD e um conversor”, enfatizou.

As dificuldades por quem produz conteúdo televisivo nesse momentos vão além do enquadramento e não são decorrência, apenas, do novo formato. A cenografia precisará também ser aperfeiçoada. Afinal, a TV analógica permite que as imitações utilizadas como soluções mais viáveis financeiramente. Porém, com a TV digital, as paredes não poderão mais ser revestidas com papéis que imitam tijolos ou madeira. Esses ficarão evidentes nas imagens. Com a migração de sistemas, as paredes precisarão ter a textura original.

Como exemplo de como as mudanças são fundamentais nesse área, durante a palestra TV Digital foram exibidas cenas em modo analógico e digital de um mesmo porta-retrato e de um mesmo abajur. Na TV tradicional, nenhuma imperfeição era perceptível. Já no segundo caso ficavam evidentes digitais no porta-retrato e um parafuso espanado e de cor diferente dos outros no abajur.

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Outro fator de preocupação é com a caracterização de personagens. A TV digital, que torna os detalhes até seis vezes mais perceptíveis, é implacável com rugas e manchas na pele, por exemplo. Por isso, as maquiagens precisarão ser mais uniformes. Cabelos, barbas e bigodes postiços também perderão a naturalidade e parecerão mais artificiais. “A HDTV está sendo estudada e testada no mundo e aqui não é diferente. O sangue cenográfico, por exemplo, vai precisar de uma gama de pigmentos sangue. O que funcionar para um determinado tipo de tecido provavelmente não terá o mesmo resultado em outro”, explicou um dos responsáveis pela caracterização na TV Globo, Rodolfo Santos.

Ainda sobre a TV digital – seus desafios e como a TV Globo tem lidado com cada um deles - foi apresentado o vídeo “Altas Definições – a TV digital está chegando, esteja preparado”. O audiovisual apontou que os estudos relacionados a TV de alta definição começaram ainda em 1994 e foram intensificados a partir de 1999. De lá até os dias atuais, as preocupações maiores estiveram relacionadas à 1) como produzir com qualidade no novo formato (mudanças ligadas à cenografia, à caracterização, ao enquadramento e à luz); 2) ao sistema a ser adotado pelo Brasil e a defesa do padrão japonês por ser o único a permitir alta definição, mobilidade e portabilidade conjuntamente; 3) à digitalização da produção global (hoje, São Paulo opera digitalmente, por exemplo, e a novela das 21 horas e as partidas de futebol já são produzidas em alta definição e, também, transmitidos assim da mesma maneira que os filmes).

O vídeo Altas definições também abordou as temáticas que estarão no centro das

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preocupações, estudos e pesquisas daqui em diante: 1) a transmissão em alta definição pelas emissoras de todas as capitais brasileiras até o final de 2009 e, principalmente, 2) a captação de um “mercado adicional de audiência”, ou seja, pessoas que não estão em casa e que, mesmo em trânsito, poderão assistir a programação graças a portabilidade e a mobilidade. De acordo com vídeo, “essa audiência deve provocar mudanças na programação”.

Reflexões (nada) finaisA melhora na qualidade do sinal no sistema digital é inegável e palpável. Por isso, a

preocupação global por aprimorar o lado estético (cenografia, caracterização, composição de cenas) neste primeiro momento. Afinal, a produção em HDTV, embora ainda parcial e em menor escala que a em sistema analógico, começou. A transmissão também. E a recepção, para os telespectadores que já compraram um televisor de alta definição ou um conversor (ainda com preço elevado), também. Segundo informações repassadas no vídeo Altas definições, nesse último caso, a imagem e o áudio são melhores que as de quem tem TV a cabo.

Já a expectativa da implantação da multi-programação, embora tecnicamente possível com a TV digital, deve ficar apenas no nível das possibilidades. Isso porque, segundo o gerente de Operações da TV Globo, Celso Araújo, “pensando em termos de negócio não é viável. Afinal, levando em conta que um canal poderá se dividir em três, para

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manter três programações diferentes, teremos três custos de produção. E isso acarretaria em divisão da audiência e, também, dos anunciantes”. O que pode se concretizar é a possibilidade de câmeras extras, em jogos de futebol, por exemplo. Quem quisesse ter acesso a essas imagens, compraria o direito de assisti-las.

Mobilidade e portabilidade são entendidas como uma revolução a parte dentro da TV digital e, por isso, merecerão a concentração dos estudos e das pesquisas a partir desse momento. Afinal, significam a ampliação da audiência quantitativa. Tome-se o caso do município de São Paulo como ilustração: dados oficiosos indicam a circulação permanente de 32 mil táxis pela capital, que devem passar a ser parte desse novo público-alvo das emissoras televisivas. E tal aumento da audiência, como conseqüência, resultará em mais anunciantes e mais receita. Por isso, a preocupação e a expectativa que essa audiência “provoque mudanças na programação”, como afirmou Araújo, uma fala ainda um tanto vaga mas prenúncio de revoluções por minuto que estão por acontecer na mídia TV, a mais fantástica máquina de difusão informacional que o Ser Humano já criou.

Bibliografia Consultada

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A percepção dos universitários da UFSC sobre o Jornalismo - uma abordagem quantitativa1

Tarsia Paula Piovesan FARIAS2

Eduardo MEDITSCH3

A primeira etapa deste estudo, de natureza qualitativa, baseou-se em sete entrevistas semi-estruturadas (em profundidade) feitas com jovens de ambos os sexos de faixa etária entre 14 e 29 anos, moradores da região metropolitana da capital, entre outubro e dezembro de 2007. A metodologia foi escolhida de modo a extrair dos entrevistados suas opiniões e reflexões pessoais com maior profundidade. As entrevistas individuais foram orientadas a partir de um tópico-guia elaborado com vistas a base teórica estudada (estudos de recepção), partindo da constatação de que o consumo de jornalismo de todas as faixas etárias e socioeconômicas vem caindo desde a geração passada (MINDICH, 2005).

O objetivo foi descobrir o que motivava e o que desestimulava os entrevistados a acompanhar as notícias, levando em conta as circunstâncias particulares de cada pessoa. Tentou-se buscar nos entrevistados diferentes características no que diz respeito a sexo, 1 Texto-base originariamente apresentado no Intercom Sul 2009, realizado na Furb, Blumenau (SC).2 Ex-bolsista de Iniciação Científica do Programa Pibic CNPq/UFSC, formada em Jornalismo em dezembro de 2008 pelo Curso de Jornalismo da UFSC. 3 Orientador do trabalho. Pesquisador do CNPq e professor doutor do Curso de Jornalismo da UFSC.

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idade, atividade ocupacional, nível de renda e religião, de modo a obter um espectro socioeconômico mais amplo da juventude florianopolitana. Apesar disso, a seleção não pretendeu ser representativa do público jovem de Florianópolis, ou seja, a amostragem da pesquisa não é adequada para conclusões estatísticas quantitativas.

Os resultados da primeira fase trouxeram algumas razões para a tendência de queda no consumo de notícias, principalmente entre as populações mais jovens (MINDICH, 2005). Entre as razões apontadas pelos entrevistados, o principal motivo do não-acompanhamento das notícias é que o hábito de consumir notícias não faz parte daquilo que o jovem elege como prioridade. Eles assinalam que há muitas outras coisas para se fazer, que a vida hoje em dia está muito corrida e que é improvável que o tempo dedicado ao lazer inclua os noticiários. Os jovens entrevistados em geral entendem que não há necessidade de saber o que se passa no mundo através das notícias. Para eles, a prioridade é o entretenimento. O entrevistado E3, 29 anos, acredita que “os jovens tão preocupados mais com o mundinho deles ali do que saber o que tá acontecendo, né. Eu, propriamente, assisto pouco jornal, me deixo levar mais por um desenho animado do que por um jornal.” Já E5, 14 anos, diz que “tem muita coisa melhor pra fazer, do que ir pesquisar jornal, ler jornal. Entediante, tipo, a leitura já tá virando entediante”.

Nossa pesquisa confirmou o resultado de outra, realizada nos Estados Unidos e publicada em 2005 no livro Tuned Out - Why Americans Under 40 Don’t Follow The News, David Mindich entrevista jovens americanos de várias localidades do país com a finalidade

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de descobrir porque as pessoas abaixo de 40 anos vêm abandonando as notícias. Em uma de suas conclusões, o autor responsabiliza o aumento das opções de entretenimento como um dos motivos para a queda de consumo de jornalismo entre os jovens:

In discussion with young people around the country, the topic of entertainment came up again and again. If we want to understand why many young people don’t follow the news, we need to understand the lure of entertainment. (...) what attracts young people today has little to do with news and a lot to do with their own wants. (MINDICH, 2005, p.41-53).

Outras razões também foram apontadas pelos entrevistados. Entre elas destaca-se a percepção de que as notícias locais são de má-qualidade. Os jovens entrevistados de Florianópolis se referiram aos telejornais e jornais impressos regionais como repetitivos e pouco relevantes. Mindich (2005, p.78) também encontrou o mesmo problema ao entrevistar jovens norte-americanos: “even among young people who were tuned in to national news, there was a lot of frustration about the local stuff.” O alto preço das revistas e jornais – e o fato de que a compra de um impresso implica em pagar por uma grande quantidade de propaganda indesejada – faz com que as publicações impressas não sejam lidas. Outros pretextos apresentados foram a falta de tempo, a preguiça, a sensação de que as notícias não interferem no cotidiano, e a idéia de que “ler jornal e ouvir rádio [de notícias] é coisa de velho”, justificativa que apareceu na fala dos entrevistados mais novos.

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A despeito do objetivo desta investigação (descobrir as possíveis causas de rejeição no consumo de notícias), os entrevistados apontaram mais razões para consumi-las do que para ignorá-las, embora estas razões não sejam suficientes para motivar o consumo. E a despeito dessas razões positivas, eles mesmos não procuravam se informar regularmente através da imprensa. O motivo mais citado foi a necessidade de colher informações e conhecimentos para formar opinião sobre diversos assuntos e servir de alimento para as conversas com amigos, parentes e conhecidos, como revelou E5, 17 anos: “(...) pra formar opinião e pra expor essas opiniões. Tipo, impor o que eu penso e ás vezes tentar mudar algo com isso. Não fazer a pessoa pensar do jeito que eu penso, mas tipo, demonstrar mesmo que a minha opinião é igual ou deixa de ser igual a dos outros”.

Além de aproveitarem as notícias para bater papo, os jovens consideraram-nas úteis para adquirir conhecimentos e informações proveitosos para a escola, vestibular, profissão e seleções de emprego. Como disse E5, 17 anos “Ah, eu já precisei saber muito do mensalão pra fazer redação pra escola e eu não sabia. ? um assunto que eu sou completamente por fora, não me interessei naquela época, não tava nem aí. Foi até um erro, eu gostaria de saber até”. As notícias são usadas também como forma de prevenção contra roubos, golpes, aumentos de preços e outros episódios do cotidiano que poderiam ser evitados ou aproveitados de algum modo, desde que conhecidos antecipadamente, como explicou E5, 17 anos: “Então pelo menos eu sei do que acontece, pelo menos se algo acontecer não posso falar assim: ‘ah, não sabia’, deixar me levar pela opinião dos outros e

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não saber o que eu tô fazendo (...) tem que saber pra poder escolher melhor para si”.As preocupações que os jovens têm sobre os problemas do mundo também

influenciam o consumo de notícias, pois fazem os mesmos se informarem sobre esses assuntos causadores de apreensão. As notícias com enfoque ecológico são as que mais interessam esses jovens. Poluição, aquecimento global e falta de água foram os mais citados. A proximidade, tanto espacial quanto afetiva, estimula os jovens a consumirem notícias. Embora os entrevistados tenham apontado a má-qualidade das notícias regionais como motivo de não-acompanhamento, o jornalismo regional também foi considerado um fator de aproximação a esse tipo de notícias por se sentirem identificados com elas.

Os meios mais utilizados pelos entrevistados para consumirem notícias foram a TV, a internet e em menor grau o jornal e a revista. Esta etapa preocupou-se em mapear a variedade de razões, para que na segunda etapa se pudesse testar a prevalência dos meios utilizados e opiniões apontadas pelos entrevistados.

MétodosEsta segunda fase baseou-se em 97 entrevistas feitas com jovens de ambos os sexos

com faixa etária entre 17 e 33 anos, estudantes regularmente matriculados em cursos de graduação da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), localizada na capital do estado. A amostra foi escolhida por representar uma parcela jovem da população em um universo bem delimitado. O número total de alunos da graduação regularmente

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matriculados durante o período de realização da parte quantitativa do estudo (1. semestre de 2008) era de 24.833 pessoas. Esse survey foi obtido a partir da aplicação, de junho a julho de 2008, de um questionário de 20 questões de múltipla escolha, elaborado a partir dos resultados das entrevistas da fase qualitativa.

Os questionários foram aplicados através do método de entrevista, em que a entrevistadora fazia as perguntas oralmente e anotava as respostas. Apenas uma pergunta fugiu à regra: a número sete, uma tabela que pedia ao entrevistado que classificasse 17 tipos de notícia em quatro categorias: importante, interessante/legal, útil e fácil de entender, podendo escolher para cada categoria as respostas muito, médio, pouco ou nada. Devido ao tamanho da tabela, a entrevistadora pediu que os próprios entrevistados marcassem as respostas após uma explicação do que se pretendia com a questão. As entrevistas foram feitas em sua maioria nas lanchonetes localizadas no campus, na hora do intervalo das aulas, quando era mais fácil encontrá-los com tempo e sentados em mesas, o que facilitava a aplicação.

A amostra foi definida através da técnica de amostragem estratificada proporcional, em que a proporcionalidade do tamanho de cada estrato da população é mantida (Barbetta, 2007:, p.49), e o número de entrevistados foi decidido em comum acordo entre a bolsista e o orientador. O cálculo de amostragem foi feito inicialmente com 100 entrevistados, mas o cálculo de porcentagem por centros da UFSC produziu um total de 97 entrevistas. Os critérios de estratificação foram os centros a que os alunos pertenciam (os centros

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agrupam os cursos superiores de uma mesma área) e o sexo de cada entrevistado. Essa escolha deveu-se ao fato de a UFSC não possuir registro de nenhum outro dado sobre os alunos de graduação que pudesse servir de critério. Os dados utilizados foram fornecidos pelo Departamento de Administração Escolar (DAE) da universidade. Segue abaixo o número de entrevistados e esses divididos proporcionalmente por sexo e por centro.

Tabela 1: Número de entrevistados distribuídos por centros universitários e sexoCentro CCA CCB CCE CCJ CCS CDS CED CFH CFM CSE CTC

Masculino 2 1 4 2 3 1 1 5 6 10 16

Feminino 1 1 8 2 6 1 3 4 5 10 5Tabela elaborada pela autora.

Legenda:CCA - Centro de Ciências AgráriasCCB - Centro de Ciências BiológicasCCE - Centro de Comunicação e ExpressãoCCJ - Centro de Ciências JurídicasCCS - Centro de Ciências da SaúdeCDS - Centro de DesportosCED - Centro de Ciências da EducaçãoCFH - Centro de Filosofia e Ciências Humanas

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CFM - Centro de Ciências Físicas e MatemáticasCSE - Centro Sócio-EconômicoCTC - Centro Tecnológico

Para a definição de renda, utilizou-se o Critério de Classificação Econômica Brasil (CCEB), disponibilizado pela Associação Brasileira de Empresas de Pesquisa (ABEP). O critério define a população em classes econômicas (A1, A2, B1, B2, C1, C2, D, E), “enfatizando a função de estimar o poder de compra das pessoas” através da posse de itens e do grau de instrução do chefe da família. Ao final do questionário foram acrescentadas dez perguntas, e a soma dos pontos de cada resposta indicaram a classe econômica de cada entrevistado. Segue abaixo o número de entrevistados por classe econômica.

Tabela 2: Número de entrevistados distribuídos por classes econômicasClasses Econômicas A1 A2 B1 B2 C1 C2

Número de entrevistados 5 18 29 27 16 2

Classes Econômicas A B C

Número de Entrevistados 23 56 18Tabela elaborada pela autora

O questionário pronto foi inicialmente aplicado em três jovens. Essas três entrevistas não foram utilizadas na pesquisa, pois serviram como teste para a definição

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do questionário final. Depois de realizados os ajustes – principalmente a troca de termos complexos por outros de mais fácil compreensão – o questionário foi dado como pronto. Ainda assim houve dificuldades, pois alguns entrevistados reclamavam da extensão do questionário e da tabela (questão sete), a qual foi motivo de manifestações de irritação ou preguiça por parte desses jovens.

Foram entrevistados 52 homens e 45 mulheres no total, com idades entre 17 e 33, sendo que as idades que mais ocorreram foram 20 anos (22 entrevistados), 19 (16 entrevistados), 21 (15 entrevistados) e 22 (13 entrevistados). Todos os dados pessoais relevantes dos entrevistados e respostas às perguntas do questionário foram digitalizados e analisados por meio do programa Access da Microsoft Office. Os resultados estão expressos a seguir.

ResultadosEsta etapa quantitativa descobriu que 93,8% dos universitários da UFSC

acompanham notícias, enquanto apenas 6,1% não o fazem, e 51,5% gastam de uma a duas horas por dia nessa tarefa. 6,1% gastam de três a quatro horas, 1% gasta de cinco a seis horas, e ninguém gasta sete ou mais horas na tarefa. Os que utilizam meia hora para se informarem aparecem em segundo lugar com 23,7%, e 11,3% utilizam menos de meia hora. Ou seja, a maioria dos entrevistados disse acompanhar regularmente as notícias da imprensa brasileira – como se vê no gráfico abaixo:

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Gráfico 1: Freqüência de acompanhamento de notícias com especificação de mídia em número de universitários entrevistados (97 no total)

A TV é o meio mais utilizado como fonte noticiosa para os entrevistados dentre todas as mídias, mas a internet supera a TV no número de jovens que utilizam o meio

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todos os dias em busca de notícias (60% preferem navegar pela internet à procura de notícias). São poucos os jovens que quase não assistem a programas jornalísticos na televisão (6%). Uma pergunta aberta pedia para que os entrevistados indicassem quais os programas jornalísticos da TV que assistiam. Foram citados 18 programas diferentes, a maioria telejornais, e o número total de citações foi de 167. A Rede Globo foi o grupo com o maior número de programas citados: 86,2% dos universitários assistem a programas jornalísticos nas emissoras de sinal aberto ou a cabo da rede. O telejornal mais visto pelos entrevistados é o Jornal Nacional, com 35,3% das citações; e o Jornal do Almoço, da Rede Brasil Sul de Comunicação (RBS), é o telejornal regional mais assistido.

Tabela 3: Programas noticiosos de TV citados pelos entrevistados por número de citações

Programa noticioso de TV Número de vezes citadas

Jornal Nacional 59

Jornal da Globo 18

Jornal do Almoço 16

Jornal da Record 13

Jornal Hoje 12

Bom Dia Brasil 10

RBS Notícias 7

Jornal da Band 6

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Programa noticioso de TV Número de vezes citadas

Fantástico 6

Bom Dia Santa Catarina 5

Globo News (Emissora) 4

Globo Esporte 4

CNN (Emissora) 2

Jornal da Rede TV! 1

Jornal da Cultura 1

Globo Rural 1

Domingo Espetacular 1

Manhattan Connection 1Tabela elaborada pela autora.

Já na internet, os grandes portais que unem notícias com entretenimento são os que mais atraem os entrevistados, seguidos pelos sites que disponibilizam o serviço de e-mail, como o Yahoo! e o MSN. O site Terra foi o mais citado, com 23,3% das referências, e o Globo.com o segundo mais citado (19,6%). O site Folha Online, do jornal Folha de S. Paulo, apareceu em terceiro lugar, com 15,4% das citações, enquanto 10,4% dos entrevistados disseram acessar o clicRBS para acompanhar notícias. Sites de notícias esportivas, de notícias sobre economia e de jornais estrangeiros também foram mencionados pelo menos uma vez, conforme a tabela abaixo.

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Tabela 4: Sites só de/com notícias citados pelos entrevistados por número de citações

Sites (só de/com notícias) Número de vezes citadas

Terra 38

Globo.com 32

UOL 20

ClickRBS 17

Folha Online 15

Yahoo! 13

MSN 9

Estadão 2

Centro de Mídia Independente (CMI) 2

Reuters 1

Gazeta Esportiva 1

Lancenet 1

Bloomberg 1

Financial Times 1

Globo Esporte 1

BBC 1

New York Times 1

Gazeta Mercantil 1Tabela elaborada pela autora.

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A revista foi a que menos concentrou os entrevistados na opção todo dia, mas é lida por mais da metade dos entrevistados algumas vezes por mês. (52,5% lêem revista algumas vezes por mês, e 21,6% lêem pelo menos uma vez por semana). Considerando que a maioria das revistas que os entrevistados disseram ler são mensais, há muito universitários que lêem revistas. A Veja, da Editora Abril, é lida por 27,4% dos estudantes, e a Superinteressante, publicada pela mesma editora, fica em segundo lugar na preferência dos entrevistados com 14,8%. As revistas Exame e Você SA aparecem na 5? e 6? posições, e chamam a atenção por serem revistas específicas sobre administração e negócios.

Tabela 5: Revistas impressas citadas pelos entrevistados por número de citaçõesRevista Número de vezes citadas

Veja 37

Superinteressante 20

Época 14

Isto É 9

Exame 8

Você SA 6

Carta Capital 5

Estilo 2

Seleções 2

Quatro Rodas 2

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Revista Número de vezes citadas

Galileu 2

Bravo 2

Mundo Estranho 2

Caros Amigos 2

Ciência Hoje 2

Scientific American 2

Info Nature 1

Globo Rural 1

Ana Maria 1

Vida Simples 1

Piauí 1

Rolling Stone 1

Mente e Cérebro 1

Men’s Health 1

Saúde! 1

Viva Saúde 1

Medicina Alternativa 1

Casa Cor 1

Gloss 1

Manequim 1

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Revista Número de vezes citadas

Cláudia 1

Época Negócios 1Tabela elaborada pela autora.

O jornal impresso é muito pouco utilizado como fonte de informação pelos jovens, pois apenas 7% dos entrevistados disseram ler jornal todos os dias em um meio cuja circulação é predominantemente diária. Apesar disto, 26,8% lêem jornal pelo menos uma vez por semana. O Diário Catarinense, da RBS, é o mais lido pelo público universitário (58,3%). A Folha de S.Paulo, da Empresa Folha da Manhã, é o segundo na preferência dos jovens leitores entrevistados (16,6%). O único jornal de bairro citado foi o Jornal do Campeche, produzido pela própria comunidade moradora do local.

Tabela 6: Jornais impressos citados pelos entrevistados por número de citaçõesJornal Impresso Número de vezes citadas

Diário Catarinense 30

Folha de São Paulo 10

A Notícia 5

Hora de Santa Catarina 3

Zero Hora 1

Estadão 2

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Jornal Impresso Número de vezes citadas

Valor Econômico 2

Página 3 (Balneário Camburiú) 1

VIP (Santo Amaro da Imperatriz) 1

Regional (São Miguel do Oeste) 1

Jornal do Campeche (Florianópolis) 1Tabela elaborada pela autora.

O rádio supera o jornal impresso em audiência diária (18,5% dos entrevistados ouvem notícias em emissoras de rádio todos os dias, enquanto 7% lêem jornal diariamente). Uma pergunta aberta pedia para os entrevistados nomearem os programas de notícias que ouviam na rádio, mas o único nome de programa citado foi a Voz do Brasil, por vezes chamada de Hora do Brasil. Os estudantes indicaram as emissoras de rádio em que ouviam notícias, mas não souberam apontar o nome dos programas que ouviam. A emissora mais citada foi a CBN Diário AM (32% dos jovens que ouviam rádio disseram ouvir essa emissora). A Voz do Brasil apareceu com 10,3% das citações. As emissoras mais ouvidas pelos jovens entrevistados foram as seguintes:

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Tabela 7: Emissoras de rádio só de/com notícias citadas pelos entrevistados por número de citações

Emissora de rádio só de/com notícias Número de vezes citadas

1 CBN Diário Florianópolis AM 31

2 Voz do Brasil da ECB (programa) 10

3 Atlândida FM 3

4 Jovem Pan FM 3

5 UDESC FM 1

6 Rádio Comunitária Campeche FM 1

A pesquisa quantitativa também procurou descobrir o que pensam os jovens universitários sobre as notícias que consomem. Para isso, montou-se uma pergunta que avaliava o grau de concordância do entrevistado em quatro questões sobre características das notícias que poderiam influenciar no seu consumo, como se vê na tabela a seguir:

Tabela 8: Avaliação das notícias por número de entrevistadosGeralmente, as notícias informam todas as opiniões sobre os assuntos?

Muito: 1 Médio: 21 Pouco: 56 Nada: 19

Geralmente, as notícias trazem a sua opinião sobre os assuntos?

Muito: 13 Médio: 48 Pouco: 33 Nada: 3

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Geralmente, as notícias trazem informações completas?

Muito: 4 Médio: 45 Pouco: 43 Nada: 5

Você acha que dá pra acreditar no que as notícias falam?

Muito: 3 Médio: 56 Pouco: 37 Nada: 1Tabela elaborada pela autora.

Analisando os dados, percebe-se que os universitários consideraram que as notícias em geral pouco informam o leitor/expectador/ouvinte sobre todas as opiniões acerca de um fato, e vêem suas opiniões medianamente e pouco representadas nas notícias. Os estudantes perceberam as informações trazidas pelas notícias como pouco ou medianamente completas. Apesar de terem um baixo índice de confiabilidade, os jovens as consideram úteis para formar opinião e obter assuntos para as conversas do dia-a-dia (quase 96% dos entrevistados afirmaram comentar as notícias com amigos, parentes e conhecidos).

Sobre a propaganda encontrada em todos os meios que veiculam notícias, 39,1% dos jovens disseram que a propaganda atrapalha muito; 43,2% que a propaganda atrapalha pouco; e 17,5% que a propaganda não atrapalha. Ou seja, 82,4% se incomodam em algum grau com as propagandas, independentemente deste. Sobre o preço dos jornais e revistas, 49,4% acham que são caros, e o mesmo porcentual acha que são acessíveis. Mesmo assim, 69% dos entrevistados deixam de comprar uma publicação por causa do preço elevado, como aponta a tabela:

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Tabela 9: Avaliação dos obstáculos ao consumo de notícias por número de entrevistados

A propaganda atrapalha quando você lê jornal ou revista, ouve rádio, vê TV ou navega na internet?

Atrapalha muito: 39 Atrapalha pouco: 42 Não atrapalha: 17

Em sua opinião, o preço dos jornais e revistas brasileiros é:

Caro: Acessível: Barato: 0

Você gostaria de comprar um jornal ou revista e deixa e comprar por causa do preço?

Sim: 67 Não: 30Tabela elaborada pela autora.

ConclusõesAtravés da comparação das duas fases da pesquisa pode-se concluir que a principal

razão para o não-acompanhamento de notícias entre os jovens é a questão de prioridades e preferências, e o principal motivo que os leva a consumir notícias é a necessidade de captar informações para formar opiniões e arranjar assuntos para as conversas do dia-a-dia. Entretanto, a hipótese formulada a partir dos resultados da fase qualitativa não se confirmou totalmente no caso dos universitários entrevistados na segunda etapa, pois os resultados dos questionários mostraram que a maioria quase absoluta destes jovens declarou acompanhar as notícias, e mais da metade dos entrevistados disse dedicar entre uma e duas horas do seu dia para essa atividade. Essa discrepância pode ter sido causada

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pela diferença entre os públicos da pesquisa: os jovens da etapa qualitativa possuíam de 14 a 29 anos, e apenas um encontrava-se na universidade, enquanto os jovens da etapa quantitativa tinham entre 17 e 33, e todos eram estudantes universitários.

A TV é o meio mais utilizado como fonte noticiosa para os entrevistados em quantidade de uso mais freqüente, mas a internet supera a TV no número de jovens que utilizam o meio todos os dias em busca de notícias. A TV é também o meio que tem a menor taxa de rejeição, pois são poucos os jovens que assistem pouco ou quase não assistem a programas jornalísticos na televisão. O rádio tem a maior taxa de rejeição na categoria quase nunca ou nunca, sendo que a maioria dos jovens quase não usa o rádio como fonte de notícias. Os entrevistados não conseguiram indicar o nome dos programas noticiosos que costumavam ouvir, mas citaram as emissoras onde ouviam notícias. A revista é a que menos concentra os entrevistados na opção todo dia, mas é lida por mais da metade dos entrevistados algumas vezes por mês, em um meio em que muitas publicações têm periodicidade mensal. O jornal impresso é muito pouco utilizado como fonte de informação pelos jovens, pois verifica-se que apenas sete entrevistados lêem jornal todo dia em um meio cuja circulação é predominantemente diária.

Com relação às emissoras e empresas produtoras de conteúdo midiático, a Rede Globo predomina no número de programas de TV nacionais mais assistidos. Já na seara regional, os telejornais mais assistidos são da RBS. A RBS domina também o consumo de notícias através do jornal impresso: 60% dos jornais citados pelos jovens são do

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grupo gaúcho. Na internet, o clicRBS aparece em quarto lugar como fonte noticiosa dos entrevistados, que preferem os grandes portais Terra, Globo.com e UOL. A revista semanal mais lida é a Veja, enquanto a mensal mais apreciada é a Superinteressante, ambas da Editora Abril. E por fim, no meio rádio, a CBN Diário AM é a de maior audiência, com 51,6% da preferência dos entrevistados.

Durante a fase qualitativa, os entrevistados apontaram as editorias de política e economia como os tipos de notícia mais difíceis e menos consumidas. A parte quantitativa confirma esse resultado: apesar de os jovens considerarem estas editorias muito importantes, elas não atraem seu interesse, pois são avaliadas como pouco legais.

Os universitários consideram que as notícias no geral são pouco completas, pouco trazem a opinião do entrevistado, pouco representam o jovem, tem baixo índice de confiabilidade, mas são úteis para formar opinião e obter assuntos para as conversas do dia-a-dia. A grande maioria deixa de comprar uma publicação impressa por considerá-las de alto preço e acredita que a propaganda atrapalha a leitura de jornais e revistas.

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Mercado de Trabalho: o que querem os jornalista formados em 2008, nas universidades estaduais do Paraná?1

Layse Pereira Soares do NASCIMENTO2

O jornalista na empresaBoanerges Lopes (2003), afirma que a despeito dos preconceitos existentes contra

jornalistas que optaram pelo exercício profissional em assessorias de imprensa, estatísticas recentes demonstram uma mudança acentuada no mercado. O autor está se referindo à expansão deste mercado que passa a contratar um número cada vez maior de jornalistas, ficando atrás somente das empresas jornalísticas. De acordo com Boanerges Lopes, “o segundo bloco de absorção de profissionais de comunicação é a área de Comunicação Empresarial e Institucional, com 40%, superando o rádio e a tevê, hoje com 20%” (LOPES, 2003, p.13 ). Conforme Elisabeth Brandão:

No Brasil, as atividades de comunicação que mais se expandem são as de assessoria e consultoria, frequente e erroneamente denominadas apenas por “assessoria de imprensa”, ainda que o trabalho cotidiano não esteja restrito à divulgação e contatos com a imprensa e, ao contrário, envolva ações de comunicação integrada com os clientes e opinião pública (BRANDãO; CARVALHO, 2002, p.199).

1 Texto-base originariamente apresentado no Intercom Sul 2009, realizado na Furb, Blumenau (SC).2 A autora é jornalista, professora efetiva da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro), tem especiali-zação em Publicidade e Marketing e mestrado em Comunicação e Linguagens.

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Como as melhores ofertas de emprego se encontram nessa área, a disputa pelo mercado de trabalho é acirrada, sobretudo entre jornalistas e relações públicas” (BRANDãO; CARVALHO, 2002, p.199). Os autores recordam que a execução do trabalho de assessoria “independe do profissional ser jornalista, publicitário, relações públicas ou qualquer outra profissão” (BRANDãO; CARVALHO, 2002, p. 199).

Gaudêncio Torquato afirma que as disputas entre relações públicas e jornalistas cederam lugar à competência. “As empresas passaram a contratar profissionais pelo critério da qualidade profissional” (2004, p.5).

Historicamente, Torquato apresenta o momento em que os jornalistas começam a deixar as redações. “Já em meados dos anos 70, o mercado jornalístico dava sinais de saturação” (2004, p.4). De acordo com o autor, nesse momento há uma luta ideológica entre os “jornalistas revolucionários” e os “imperialistas”. Estes últimos, representados pelo poder econômico e as grandes estruturas. Quando os jornalistas finalmente chegam às empresas, eles imprimem um novo ritmo à comunicação organizacional, e, universidades, profissionais e organizações foram obrigados a rever suas posições.

Na década de 1970, enquanto Gaudêncio Torquato propõe um dos primeiros modelos de comunicação corporativa cuja “estrutura comportava assessoria de imprensa, publicações internas/editoração, marketing/propaganda institucional e mercadológica, relações públicas/eventos e pesquisa” (2004, p.4), o primeiro curso de jornalismo é ofertado por uma universidade estadual paranaense.

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Em agosto de 1974 a Universidade Estadual de Londrina (UEL) cria o primeiro curso de jornalismo público estadual. No segundo semestre de 1985, é a vez da Universidade Estadual de Ponta Grossa (UEPG). E, em 2001, a Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro) passa a ofertar o curso de jornalismo.

Conhecer qual setor de atuação profissional é priorizado pelos acadêmicos que estão concluindo o curso de graduação em jornalismo nas universidades estaduais do Paraná, verificar o interesse em trabalhar com comunicação empresarial e se há resquícios ou não de preconceitos voltados a atuação destes profissionais dentro das empresas, impulsionou a realização de uma pesquisa de campo com estudantes das três universidades citadas anteriormente.

A escolha dos alunos do último ano do curso ocorre justamente porque estes apresentam um amadurecimento e teoricamente, já percorreram toda a grade curricular que com suas disciplinas teórias e práticas, qualificam o profissional para entrar no mercado de trabalho. Pressupõe-se que durante quatro anos os acadêmicos tiveram oportunidade de participar de inúmeros debates, eventos, e experiências complementares que enriquecerão seus conhecimentos e formação profissional.

Comunicação empresarial e o jornal impresso A pesquisa realizada nos meses de novembro e dezembro de 2008, com acadêmicos

do 4º ano do curso de Jornalismo das três universidades estaduais do Paraná, possibilitou

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conhecer as áreas de preferência de atuação dos futuros jornalistas e também aquelas que não despertam o interesse profissional do grupo investigado.

Quanto à atuação no mercado de trabalho, a preferência dos acadêmicos se divide entre a comunicação empresarial e o jornal impresso. De 61 entrevistados, 22 acadêmicos informaram que pretendem trabalhar com a comunicação empresarial, e, 21 preferem trabalhar com impresso, jornal/revista. Por outro lado, os entrevistados também informaram as áreas de atuação profissional pelas quais não tem interesse em atuar como jornalistas. 14 afirmam que não tem intenção de trabalhar com comunicação empresarial, 12 apontam o rádio como a mídia que não querem trabalhar, seguido pela televisão, 9.

O grupo investigado avaliou ainda os seguintes aspectos: se o curso de graduação oportunizou conhecimento sobre as áreas de atuação profissional; seus conhecimentos sobre a área de abrangência da comunicação empresarial e sobre as atividades exercidas pelos jornalistas que atuam dentro das empresas. A pesquisa aponta que este grupo considera que o curso de graduação proporcionou de forma razoável os conhecimentos sobre as áreas de atuação profissional.

Na Unicentro, dos 18 formandos entrevistados (total de alunos no 4º ano era 25), 44,4% demonstraram ter preferência para atuar em assessoria de imprensa, seguido de televisão (16,6%). Por outro lado, a televisão também reuniu o maior número de entrevistados que disseram não ter intenção de trabalhar nesse gênero e alegaram não gostar da sua imagem no vídeo, não ter voz adequada, e ainda falta de perfil.

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Embora 50% dos entrevistados da Unicentro afirmem que procuraram aprofundar seus conhecimentos sobre a comunicação empresarial durante o curso, 72,2% dizem que seus conhecimentos sobre a área de abrangência da comunicação empresarial são razoáveis, e 61% que seus conhecimentos sobre as atividades exercidas pelos jornalistas empresariais são razoáveis. 50 % revelaram ter tido experiência profissional no decorrer do curso, sendo que a maioria trabalhou na área por mais de um ano.

A preferência dos alunos entrevistados da Universidade Estadual de Londrina se revelou pelo impresso (igualitariamente entre jornal e revista) e, em seguida, pela comunicação empresarial. Foram entrevistados 8 alunos de um universo de 34, representando 27,2% dos acadêmicos da instituição que concluíram o curso de jornalismo em 2008. A maioria dos pesquisados considera os conhecimentos adquiridos no curso sobre as áreas de atuação profissional entre razoável e satisfatório, já os conhecimentos sobre a área de abrangência da comunicação empresarial são vistos como insatisfatórios e razoáveis. As avaliações quanto aos conhecimentos sobre as atividades exercidas pelos jornalistas empresariais oscilam como insatisfatórios e satisfatórios.

Na UEL, os entrevistados que afirmaram não ter interesse pela comunicação empresarial (27,2%), justificam argumentando que não tem conhecimento suficiente, ou ainda, desinteresse em trabalhar para entidades particulares. Jornal impresso também é apontado como área de desinteresse (também por 27,2%), ou porque paga pouco, ou por não haver identificação com o meio. Outros entrevistados (55,6%) afirmam que tem

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interesse por todas as áreas porque são potenciais mercados de trabalho. Na UEPG foram entrevistados 35 alunos, o total da turma. Destes, 25,71%

afirmaram não ter interesse pela área empresarial, 20% pelo rádio, seguido de 11,42% pelo jornalismo digital. Os entrevistados da UEPG apresentaram maior nível de satisfação ao avaliar os conhecimentos sobre as áreas de atuação profissional proporcionados durante o curso de graduação; os seus conhecimentos sobre a área de abrangência da comunicação empresarial e sobre as atividades exercidas pelos jornalistas empresariais. O jornal impresso se destaca na preferência dos formandos de Ponta Grossa, 42,8%, seguido pela comunicação empresarial, 34,2%. Os entrevistados do sexo masculino, representando 25,7% do universo pesquisado na UEPG, apresentam a maior rejeição pela área da Comunicação Empresarial.

Cabe observar que o meio digital não tem forte apelo junto a esse público, como poderia se supor. Na Unicentro, nenhum dos entrevistados demonstrou interesse por esse mercado, que também não registra nenhum desinteresse. Na UEL apenas um entrevistado manifesta preferência por esta área para exercer a atividade profissional. Na UEPG, o jornalismo digital não foi escolhido nem rejeitado pelos formandos do sexo masculino, enquanto entre o sexo feminino apresentou uma preferência e 4 rejeições.

ConsideraçõesFica evidenciado com a pesquisa que, para parte dos entrevistados, jornalismo

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e comunicação empresarial não se misturam. Em seus argumentos contra essa área, alguns alegam pouco conhecimento, falta de afinidade ou falta de aptidão. E ainda, serão reproduzidas aqui algumas justificativas apresentadas para explicar por qual motivo a área empresarial não faz parte dos interesses profissionais: “na comunicação empresarial perde-se o conceito de imparcialidade do jornalismo com o qual o profissional deve trabalhar, não enxergar o jornalismo como algo empresarial, por acreditar no papel social do jornalismo, porque o assessor ‘soa’ como secretário com nível superior”.

Entre os acadêmicos que afirmaram querer trabalhar como assessor de imprensa, alguns pensam no salário que quase sempre é superior ao piso da categoria, pago em empresas jornalísticas. Conforme Gaudêncio Torquato (2004), os comunicadores ingressam em um novo ciclo: a alta consultoria e o aconselhamento político. Ainda Torquato:

O empresário precisa enxergar no comunicador mais do que um operador, precisa ver nele o estrategista, um assessor próximo, cuja contribuição será decisiva para a articulação de um discurso adequado e de uma identidade organizacional compatível com os negócios (TORQUATO, 2004, p.7).

Mas estes aspirantes a uma vaga no mercado de trabalho, estão longe de corresponderem à figura de gestor da informação, do estrategista que sabe trabalhar afinado com os interesses, metas e objetivos da empresa. Eles se sentem jornalistas, e como tal, preparados para detectar uma notícia onde quer que ela esteja, dentro da empresa, ou nas ruas. Torquato aponta que os novos profissionais, para atuar nos espaços

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organizacionais devem possuir conhecimentos específicos e reunir condições e potencial para estabelecer abordagens abrangentes da sociedade e da empresa.

Jaurês Palma (1994) chama a atenção para a distinção entre as atividades dentro de uma empresa jornalística e a função do jornalista na estrutura encarregada da comunicação corporativa de uma organização. “Nem mesmo as recomendações e técnicas redacionais aplicadas ao jornalismo de massa, podem ser aplicadas indistintamente à atividade”. (PALMA, 1994, p.18). Conforme o autor:

A clássica formatação de texto a partir de um lide, os pontos de apoio baseados nas perguntas quem, onde, quando, como e porque, se aplicadas incondicionalmente (...) podem resultar em produções ridículas ou, no mínimo ineficazes em relação aos objetivos da publicação e ao público a que se destina (PALMA, 1994, p.18).

Conquistar uma vaga neste mercado vai depender das características e habilidades reunidas pelo profissional que não necessariamente, tem que ser um jornalista. Segundo Palma, “a um jornalista, portanto, pode caber o gerenciamento do processo como um todo, mas por sua capacidade profissional e não pela habilitação acadêmica” (PALMA, 1994, p.17).

Embora afirmem ter preferência pela comunicação empresarial, a pesquisa aponta que durante o curso, a maioria dos acadêmicos não procurou aprofundar seus conhecimentos sobre a área declaradamente pretendida. Acreditar que assessoria paga

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bem e tem a ver com o seu perfil revela um entendimento superficial e ilusório da atividade do jornalista empresarial.

Além de lidar com resquícios de preconceitos existentes, este profissional trabalha sobressaltado. Conforme Armando Medeiros de Faria (2002), dentro das organizações, espera-se que suas ações que ultrapassam a simples atuação no front da divulgação externa de notícias e do atendimento às pautas da imprensa.

A perspectiva privilegiada de analista do cenário político-econômico-social, tornando-se por base os assuntos agendados pela mídia, faz do assessor de imprensa um profissional capaz de oxigenar as organizações e de ampliar os horizontes internos das instituições nas quais atua (FARIA, 2002, p.161).

O que se espera da contribuição do assessor, é quase um milagre. Elisabeth Brandão (2002) apresenta o assessor como o arauto da imagem da felicidade, neste caso, da empresa. Armando Medeiros de Faria (2002) destaca que a contribuição que o assessor pode dar, é justamente dimensionar os fatos das organizações de acordo com os movimentos e os interesses na órbita da esfera pública.

Como o mais qualificado e especializado na leitura dos conflitos sociais, o assessor de imprensa exerce o papel de abrir os muros das organizações para o mundo. A realidade das instituições_com culturas próprias, processos decisórios complexos e jogos de poder particulares_pode apresentar um quadro de comportamentos reativos, atitudes corporativas e visões estreitas (FARIA, 2002, p. 161).

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É nesse universo cheio de conflitos e interesses que o jornalista vai trabalhar, e conforme trata Faria, ainda se espera que ele “desenvolva uma ação pedagógica interna a fim de abrir perspectivas fechadas e unir visões fragmentadas, comuns no universo das organizações” (2002,p.161).

Marilene Lopes (2000) já alertava em Quem tem medo de ser notícia?, que cabe ao profissional de comunicação que atua na empresa outra função pedagógica: esclarecer para os “porta-vozes” a diferença existente entre o espaço editorial e o publicitário e qual é a função de cada um deles. O publieditorial, palavra que resulta da união entre publicidade e editorial, não tem conteúdo jornalístico e deve ser apresentado ao público como informação paga e não como informação jornalística.

Armando Medeiros de Faria aponta que não há como controlar o relacionamento das organizações com a imprensa e até mesmo o “experiente assessor pode ser surpreeendido com a exploração de um dado aparentemente secundário” (2002, p.164), mas dentro de um enfoque desfavorável e negativo.

O autor nos lembra que na prática do jornalismo, notícia boa é notícia ruim. “O valor-notícia primário ou fundamental é a orientação do jornalismo para situações fora do comum, inesperadas, com consequências negativas que rompem com a ordem natural do cotidiano” (FARIA, 2002, p.164).

Gaudêncio Torquanto (2004), ainda na década de 1970, começou a “atuar

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ativamente na área de formação de alunos (graduação) e de professores (pós-graduação), dando formato e visibilidade a disciplinas específicas (da comunicação organizacional) em várias universidades”. O objetivo do pesquisador estava em formar “corpos funcionais preparados para galgar postos elevados” dentro das organizações (TORQUATO, 2004, p.5).

Bibliografia consultada

BRANDãO, Elisabeth; CARVALHO, Bruno. Imagem Corporativa: Marketing da Ilusão. In: DUARTE, Jorge (org.). Assessoria de Imprensa e Relacionamento com a Mídia: Teoria e Técnica. São Paulo: Atlas, 2002, p.189-204.

FARIA, Armando Medeiros de. Imprensa e Organizações. In: DUARTE, Jorge (org.). Assessoria de Imprensa e Relacionamento com a Mídia: Teoria e Técnica. São Paulo: Atlas, 2002, p. 161-166.

LOPES, Boanerges. O que é Assessoria de Imprensa. 3.ed. São Paulo: Brasiliense, 2003.

LOPES, Marilena. Quem tem medo de ser Notícia? Da informação à Notícia: a mídia formando ou deformando uma imagem. São Paulo: Makron Books, 2000.

PALMA, Jaurês. Jornalismo Empresarial. Porto Alegre: Sagra-DC Luzzatto, 1994.

TORQUATO, Guadêncio. Tratado de Comunicação Organizacional e Política. São Paulo:

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Pioneira Thomsom Learning, 2004.

______. Jornalismo Empresarial. São Paulo: Summus, 1984.

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Da esfera pública ao Ciberespaço: reflexões sobre o futuro do jornalismo na Internet1

Luís Francisco MUNARO2

O presente artigo tem como intuito discutir a vinculação do Estado-nacional moderno a uma literatura fundadora de mitos e tradições e seu desembocar na crescente desfronteirização do conhecimento propiciada pelo advento de novas tecnologias eletrônicas, mais notadamente a Internet. O rompimento das fronteiras intelectuais tradicionais no Ciberespaço traz consigo o frisson daquilo que se chama uma fase pós-literária da cultura moderna, na qual os protagonistas são cada vez mais os produtores individuais de cultura, em crescente desvinculação do Estado moderno tradicional. Para concluir tanto se tem por base uma breve discussão sobre a constituição do Estado no decorrer do processo civilizador humano a partir da possibilidade de manipulação de uma teoria política para influir concretamente em dada práxis social, nas idéias de um racionalismo político herdado de Nicolau Maquiavel.

Surge no interior desses Estados centralizados, cuja centralização crescente foi propiciada pelo surgimento da tipografia e das grandes literaturas nacionais, a idéia de

1 Texto-base originariamente apresentado no Intercom Sul 2009, realizado na Furb, Blumenau (SC).2 Luís Francisco Munaro é mestre em Jornalismo pela Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) e graduado em Jornalismo e em História pela Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro).

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uma opinião pública, na qual o produtor e o consumidor de cultura se encontram em crescente relacionamento uns com os outros e são capazes de interferir ativamente no meio político. A essa fase da opinião pública de Edmund Burke (apud. HABERMAS, 1984), situada mais precisamente no século XIX, segue a fase de constituição capitalista que Habermas definiu como “feudalismo industrial”, na qual um grupo de poucos senhores estaria em posse dos meios de produção capitalistas, dentre os quais a própria imprensa.

Habermas opõe, nessas duas fases distintas, a Publicidade em sua possibilidade de crítica política ativa e, por outro lado, a “Publicidade” acrítica como um fenômeno meramente mercantil direcionado para uma massa de consumidores desorganizados. A noção de “esfera pública literária” adquire fundamental importância, pois no interior dela se perpetrarão os conflitos de poder que caracterizam as duas fases. Essa “transformação estrutural”, mais recentemente, teria sofrido uma nova guinada, o que, por se tratar de um fenômeno vivenciado ativamente, oferece pouca possibilidade de ser pensado estruturalmente. Trata-se da Internet, a “revolução mágica”, no termo de Bernardo Kucinski (2005), objeto principal do estudo que ora se propõe.

Como se verá, a Internet desenvolve mecanismos próprios de organização comunicativa que independem da legislação do Estado, o que poderia levar a um reposicionamento da noção habermasiana de “feudalismo industrial”. Tem-se a partir disso, como objetivos fundamentais, observar e testar alguns conceitos que, por ora, apresentam-se cada vez mais ineficazes para tratar temáticas de importância: a readequação da

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noção de esfera pública literária e a autonomia do jornalista no seio da Internet, bem como especular, nessa nova fase, sobre as variações das relações entre senhor e escravo reproduzidas no bojo do Estado-nacional moderno a partir da “Publicidade” em sua forma acrítica.

Construindo a “opinião pública”Civilização, como a entende Karel Kosik (1976), é um conjunto de obras sociais

construídas pela possibilidade de compreensão mútua entre os homens, num processo em que a finitude aparece como característica inevitável e, na tentativa de obstá-la, desenvolve-se um conteúdo durável e que sempre aparece para os seus realizadores como imanente e definitivo. O presente sempre presentifica o que há de mais durável: a Razão, o Mito, a Cultura. Mesmo quando se fala na desmistificação absoluta da razão, tem-se como imperativo a probabilidade de manipulação de um poder simbólico que carrega consigo a idéia da realização derradeira da liberdade humana. Nesse quadro no qual o homem combate o finito, o processo de escravização acaba se convertendo num princípio de reificação da doutrina do superior, que manipula o inferior com o objetivo de construir o durável. A idéia de Hegel, apresentada por Karel Kosik, consta em que

a luta pela vida e pela morte não pode terminar com a morte; ambos os combatentes devem continuar vivos, mesmo se para cada um deles o que está em jogo é a vida ou a morte. Tal premissa da dialética do senhor e do servo é, no entanto, um pressuposto histórico. No combate pela vida e pela

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morte o homem deixa o seu adversário com vida só porque (...) ambos sabem o que é o futuro e sabem o que os espera: a dominação ou a escravidão (KOSIK, 1976, p.203).

A oposição entre senhor e escravo passou a insinuar com Nietzsche (2008) um existencialismo no qual a atitude do senhor se estabelecia a partir de seu olhar soberano sobre o mundo. A “vontade de potência” pode ser entendida, dentre tantos outros entendimentos que vem recebendo, como uma filosofia da práxis voltada para a construção do “homem superior”, o senhor, em oposição ao tipo dominado, o escravo. Mas a idéia de domínio como uma necessidade constitutiva da civilização remonta aos estudos de política moderna inaugurados com Nicolau Maquiavel (apud. KOSIK, 1976). Nas perspectivas do racionalismo político elaboradas no livro O Príncipe, o mundo deixa pela primeira vez de revelar uma ordem de coisas sagrada e imutável para refletir a possibilidade contínua de sua manipulação pelos senhores políticos.

Nesse sentido, Napoleão Bonaparte é um político exemplar para demonstrar como a teoria, uma vez convertida em prática, pode revelar resultados políticos duradouros. A novidade de Napoleão, além de desprezar conceitos de guerra e formalismos derivados do período feudal, foi perceber as diversas implicações das doutrinas sobre os homens, chamados aqui “material humano”. O Terceiro Reich, de forma similar, tentou construir o Estado do “homem forte” baseado na interpretação hitlerista da doutrina nietzschiana, sobretudo através da leitura da obra Vontade de Potência, construída após o falecimento

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de Nietzsche. Existe em ambos os casos, citados para de forma introdutória explicitar a construção da civilização e do Estado-nacional moderno, uma objetivação da guerra que lida com a manipulação da práxis social.

O Estado, em Vontade de Potência, é “a imoralidade organizada... interior: como policiam direito penal, classes sociais, comércio, família; exterior: como vontade de poder, de guerra, de conquista, de vingança” (NIETZSCHE, 2008, p.363). Essa idéia de Estado como construção de um poder arbitrário e altamente coercitivo vem sendo mais sistematicamente estudada depois das teses apresentadas por Louis Althusser (2007), referentes aos “aparelhos ideológicos do Estado”, tendo sofrido uma certa diluição depois das obras de Foucault. Para esse último autor, o poder exercido pelo Estado se apresentaria sob as mais diversas formas, através “desses terríveis regimes disciplinares que se encontram nas escolas, nos hospitais, nas casernas, nas oficinas, nas cidades, nos edifícios, nas famílias” (FOUCAULT, 2006, p.147). Mas, sobretudo, o poder se fragmentaria em múltiplas instâncias de ação social, não podendo ser precisado como algo que parte quase que exclusivamente dos governos. O poder é exercido, de forma geral, pelos homens e contra os homens. A idéia de Foucault que ora vale ressaltar está em que: “percebeu-se que este poder tão rígido não era assim tão indispensável quanto se acreditava, que as sociedades industriais podiam se contentar com um poder muito mais tênue sobre o corpo” (FOUCAULT, 2006, p.148).

Para o objetivo do presente artigo com relação ao Estado – apresentá-lo como

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uma instância reveladora de poderes que agem, por assim dizer, espiritualmente sobre a sociedade –, Habermas apresenta uma forte complementaridade quando estuda mais profundamente os mecanismos sutis através dos quais se projetarão os poderes do Estado, principalmente a “Publicidade”. O autor teria percebido como poderes privados se enraizariam no interior do corpo burocrático do Estado gerando influências concretas sobre o público. O problema apontado por Habermas reside na transformação de uma esfera pública de produtores de cultura, como se teria configurado já no século XVIII, sobretudo na França e Inglaterra, em uma massa de consumidores desorganizados (HABERMAS, 1984, p. 288-9). Nas palavras do frankfurtiano,

a opinião, que uma vez já provinha de um contexto comunicativo constituído por pessoas privadas, está em parte decomposta em opiniões informais de pessoas privadas e sem público e, em parte, concentrada em opiniões formais de instituições jornalísticas ativas (ibid., p. 287).

A ideologia surge assim através da “opinião pública”, uma opinião não proveniente do próprio público, mas de instâncias como que “exteriores” a ele, isto é, privadas. Não se pretende trabalhar e reforçar a dicotomia habermasiana ou do marxismo ortodoxo entre uma tese e antítese, ou poderes que se sobrepõem sobre a massa amorfa através da projeção daquilo que se chama ideologia. Mas se entende que, de fato, um forte poder de coerção é ministrado por vários setores privados que jogam com seus interesses através do Estado de Direito burguês, gerando a chamada “Publicidade”.

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O poder continua a existir como uma projeção daquela práxis dominadora, surgida e intensificada no interior de uma sempre inacabada luta contra a fatalidade da morte. O processo civilizatório se sutiliza nas fronteiras do Estado-nacional e de um aparelho burocrático no qual se situam esferas de poder reguladas por um conjunto de normas desenvolvidas no processo histórico de formação do Estado e sua busca de legitimidade diante da nação. Os senhores feudais vêem-se assim superados pelo senhorio industrial, em posse de meios cada vez mais eficazes de justificação ideológica e exercício do poder. A essa revolução no interior da civilização, permitida pelo advento da imprensa, que calhou na unificação dos sistemas lingüísticos e no desenvolvimento de uma literatura regular, o desenvolvimento de “comunidades políticas imaginadas” dentro de fronteiras definidas e tidas por estáticas, segue a desfronteirização do conhecimento aprofundada a partir da década de 60. Ela vem atravessando um período de aceleração crescente com o surgimento da Internet e, com ela, a possibilidade de criação de grupos sem fronteiras territoriais definidas, baseados sobretudo numa certa unidade doutrinária e política, o que põe em questão alguns dos poderes ideológicos verticais que agem sobre a sociedade.

A Internet como poder aparentemente auto-imanente, “poder antiindustrial” como o denomina Kucinski, “rompe a verticalidade e a concentração das agências das notícias e alimenta não apenas jornais a partir de escritórios centrais, mas também ONGS, produtores intelectuais independentes e movimentos políticos e sociais” (KUCISNKI, 2005, p.73-4). A “Publicidade” seria então ultrapassada pela possibilidade de autonomia intelectual. O

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produtor de cultura, atuando através da Internet, se libertaria dos espaços discursivos tradicionais, fomentados e regulados pelo Estado e muitas vezes pelos poderes privados nele incrustados. O objetivo de Kucinski é talvez mais revelar um deslumbramento pessoal com relação ao poder auto-imanente da Internet do que oferecer subsídios sólidos para uma compreensão do assunto – à qual nos vemos nitidamente limitados pela transformação constante da rede. Nesse cenário no qual o poder de dissuadir se torna cada vez menos perceptível e dividido entre atores ligados através de vínculos desterritorializados, busca-se aqui inserir, ainda que de forma pacata, a função do jornalista como produtor tradicional de conhecimento.

Há que, apenas a título de complementação e enriquecimento teórico do presente texto, citar a situação ainda mais ambígua dos estados latino-americanos, nos quais o processo de criação de um Estado-nacional não refletiu, logicamente, uma dinâmica social condicionada pelo processo civilizatório europeu, o que se revelou na criação de Estados postiços sobre vastos conjuntos de culturas não integradas. A criação de Estados sobre imensas populações analfabetas gera aquele fenômeno pensado por Raymundo Faoro, o Estado como “uma pesada túnica, fio a fio costurada, capaz de disciplinar a seiva espontânea, mantido o divórcio entre a camada dominante e a nação dominada e tímida, relutantemente submissa” (FAORO, 2001, p. 287). Kucinski complementa dizendo que, no interior destes Estados postiços, a imprensa é o resultado de concessões públicas e relações íntimas entre oficialismo e jornalismo, diante de uma população incapaz em

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grande parte de participar da cultura letrada:

a produção do consenso parece ser antes um processo político que se realiza primeiro na esfera do poder, e só depois busca a esfera pública como processo midiático. Dessa instância superior, o consenso é imposto à mídia e parece determinar o próprio padrão da cobertura jornalística (KUCINSKI, 1998, p.21)

Depreende-se da leitura de Kucinski que, à possibilidade de uma Modernidade com características próprias e de uma rede comunicativa construída por produtores autônomos organizados em comunidades auto-reguladas, estaria o contrabalanço a uma série de tensões históricas sobre o modelo de Estado autocrático predominante na América Latina. O jornalista, pensado até aqui como uma peça constitutiva da esfera pública literária, como a expressão de um grupo, também se encontraria desterritorializado. A presente reflexão se situa num período de crise do Estado representativo e numa busca geral apontar soluções para a sua dissolução como instância reguladora e concentradora da imoralidade.

Esfera pública e CiberespaçoO jornalismo é uma importante instância de publicidade: seus atores são

reconhecidos no plano social como aqueles que detêm informações relevantes, capazes de questionar os procedimentos legais do Estado, compondo assim aquilo que desde o início do século XX se tem chamado “quarto poder”. Como se verifica nas teses sobre o

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“poder simbólico” apresentadas por Pierre Bourdieu (1987), os atores que reivindicam o papel de divulgadores de acontecimentos noticiosos, compreendidos no interior da genérica denominação media, protagonizam o reconhecimento de uma “classe” diante de outras “classes”.

A classe (ou o povo, ou a nação, ou qualquer outra realidade social de outro modo inapreensível) existe se existirem pessoas que possam dizer que elas são a classe, pelo simples fato de falarem publicamente, oficialmente, no lugar dela, e de serem reconhecidas como legitimadas para fazê-lo por pessoas que, desse modo, se reconhecem como membros da classe, do povo, da nação ou de qualquer outra realidade social que uma construção do mundo realista possa inventar e impor (BOURDIEU, 1987, p.168).

“Classes” adotam assim porta-vozes públicos e, através deles, adquirem legitimidade diante de uma realidade social mais ampla, que pode representar a nação como um todo ou mesmo ir além dela. Essa necessidade de grupos sociais adquirirem sua própria representatividade é também prenunciada pela categoria habermasiana de esfera pública literária, que vai assumir a função de instância produtora da cultura de um grupo. Instância que, como se viu, teria degenerado com o crescimento do Estado sobre as vozes individuais, acelerando a crise do sistema representativo.

O sistema da exclusão configurado pelo alargamento do capital industrial e sua relação com a esfera pública literária poderia, como se extrai da leitura de Kucinski, sofre uma reviravolta com a autonomização da produção intelectual propiciada pela Internet

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(KUCINSKI, 2005, p.78). A restrição da circulação de informações não mais existiria com a possibilidade de acesso do “produtor autônomo” ao imenso banco de dados disponibilizado virtualmente. Essa crescente concentração de poder de decisão no indivíduo provocaria rupturas no Estado industrial e, conseqüentemente, também na esfera da “Publicidade”.

A idéia implícita nas hipóteses de Kucinski é a de uma reativação da esfera pública literária como grupo de produtores organizados de cultura como forma de adquirir visibilidade própria. Talvez aqui seja mais importante pensar a lógica das comunidades organizadas através da Internet, e não no insulamento do sujeito como produtor de cultura autônomo. Autonomia só representará um recurso retórico para indicar a possibilidade de o indivíduo sentar em frente a um computador e escrever sem coerção aparente, olvidando o fato de que as instâncias grupais básicas são fundamentais para a sua constituição intelectual. A Internet não representa uma dimensão que permite uma segunda organização social, apesar de oferecer a possibilidade de os indivíduos se reorganizarem efetivamente no “mundo da vida”.

O mundo da vida constitui o contexto da situação de ação; ao mesmo tempo, ele fornece os recursos para os processos de interpretação com os quais os participantes da comunicação procuram suprir a carência de entendimento mútuo que surgiu em cada situação de ação. Porém, se os agentes comunicativos querem executar os seus planos de ação em bom acordo, com base numa situação de ação definida em comum, eles têm que se entender acerca de algo no mundo (HABERMAS, 2003, p.167).

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O deslumbramento generalizado com relação às possibilidades da Internet e sua esfera de produtores intelectuais autônomos não deixa de lembrar aquele fascínio habermasiano com relação à imprensa moderna, que se estabelecia a partir da necessidade de os indivíduos criarem instâncias próprias de representação social. Os homens, através da imprensa, poderiam ser encorajados a pensar por eles mesmos. O jornal representaria um pequeno mundo acessível ao indivíduo, produzido por seus semelhantes, através do qual ele mesmo adquiriria visibilidade e assim se tornaria um membro legítimo do Estado-nacional. Como diz a célebre formulação de Edmund Burke, no século XIX:

every man thinks he has a concern in all public matters; that he has a right to form and to deliver an opinion on them. They sift, examine and discusse them. They are curious, eager, attentive and jealous; and by making such matters the daily subjects of their thoughts and discoveries, vast numbers contract a very tolerable knowledge of them, and some a very considerable one... Whereas in other countries none but men whose office calls them to it having much care or thought about public affairs, and not daring to try to force of their opinions with one another, ability of this sort is extremely rare in any station of life. In free countries, there is often found more real public wisdom and sagacity in shops and manufactories than in the cabinets of princes in countries where none dares to have an opinion until he comes into them. Your whole importance therefore depends upon a constant, discreet use of your own reason (BURKE apud. HABERMAS, 1984, p.116)

No Ciberespaço de Kucinski, o indivíduo autônomo, passada a fase industrial da imprensa, se tornaria capaz de produzir a sua própria compreensão de mundo através

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das informações trazidas pelos outros participantes da comunicação (KUCINSKI, 2005, p. 74). Destarte, ele produziria cultura sem qualquer limitação aparente, num terreno exterior à atividade coercitiva efetiva do Estado-nacional moderno. Segue-se a mistura de informações, estilos e tendências, condição mesma para a confirmação da horizontalidade da Internet e, mais adiante, a superação daquelas relações de dominador e dominado.

Essa ruptura da verticalidade parece apontar, por outro lado, para o desenvolvimento de uma barbárie que, nas palavras de Jean-Françoi Mattei, quando de sua confrontação entre civilização e barbárie, “exalta o sujeito e, assim, decreta a morte do homem, e, com ele, da civilização” (MATTÉI, 2001, p. 79). O ressecamento das tradições constitutivas do Sujeito moderno com a crescente autonomia dos indivíduos diante das comunidades nacionais, levada ao sublime com a exaltação do “produtor intelectual autônomo”, ao passo que supera a dialética civilizatória senhor e escravo reitera indefinidamente um Sujeito que se torna desconhecido de si mesmo. Ele perde de vista a sua história constitutiva, geralmente traduzida pelas literaturas organizadoras, algo incrustadas no desenvolvimento do Estado-nacional, e assim cede a uma epifania deslumbrada do indivíduo consigo mesmo, na qual ele é celebrado como seu próprio herói. Para descrever essa incomunicabilidade do indivíduo com os outros Mattéi recorre à história própria da designação do bárbaro: este é aquele que, por ser incapaz de pronunciar palavras e organizá-las sintaticamente, não consegue se fazer entender pelos outros, senão muito vagamente. É importante lembrar que as línguas constitutivas do indivíduo estão de fato sedimentadas no Estado-

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nacional moderno, sendo difícil de pensar estas mesmas línguas e a literatura por elas geradas numa fase aparentemente pós-literária. A desconfiança quanto à possibilidade de autonomização do indivíduo é derivada de uma evidente carência de modelos de análise, eles mesmos costumeiramente estruturados a partir das comunidades políticas imaginadas e sua íntima relação com os grandes sistemas lingüísticos unificados. Segue-se aqui o raciocínio proposto pela linha teórica do deslumbramento com relação à tecnologia virtual e sua possibilidade de desfronteirização, sem deixar de lembrar, contudo, que esse mesmo “apocalipse” já era prenunciado de forma otimista com o desenvolvimento dos meios de comunicação eletrônicos em geral – como exposto na Galáxia de Gutenberg de Marshall McLuhan (1972). Por um lado temos um Estado-nacional mitificado, por outro, quiçá sua também mitificada dissolução.

Bernardo Kucinski, utilizado aqui para exemplificar um certo fascínio geral existente na atualidade com relação ao futuro da Internet, lamenta em seu livro Jornalismo na Era Virtual, o declínio e morte do jornalismo como vocação: “a grande reportagem típica do velho jornalismo não é necessária no novo; a postura contra-hegemônica e crítica, a irreverência e o desafio às autoridades e ideologias dominantes também eram marca do velho jornalismo (...)” (KUCINSKI, 2005, p. 104). Ao aplauso incondicional da tecnologia como uma possível destruidora das fronteiras entre meio de divulgação e indivíduo intelectual, acompanha um certo saudosismo com relação àquela geração que desafiava as autoridades. Saudosismo que lamenta o exercício comprometido do jornalismo, talvez

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como aquele prenunciado por Hipólito da Costa, primeiro periodista nacional, tantas vezes vítima de processos judiciais da diplomacia lusitana e só não perseguido mais diretamente pela Corte de d. João em virtude de sua residência na Inglaterra, onde gozava da situação de denizen. Ele dizia em 1808 que

O primeiro dever do homem em sociedade é ser útil aos membros dela; e cada um deve, segundo as suas forças físicas ou morais, administrar, em benefício da mesma, os conhecimentos, ou talentos, que a natureza, a arte, ou a educação lhe prestou. O indivíduo que abrange o bem geral de uma sociedade vem a ser o membro mais distinto dela: as luzes que ele espalha, tiram das trevas ou da ilusão aqueles que a ignorância precipitou no labirinto da apatia, da inépcia e do engano. (COSTA, 2001, p.3)

A autonomia intelectual, essa idéia que vem perseguindo o Ocidente desde Platão até Kant, implica no primeiro jornalismo brasileiro numa certa pedagogia das massas: o jornalista letrado deveria levar a palavra aos incapazes, assegurando o progresso comunitário e o sucesso de sua pátria. No caso brasileiro, de Hipólito a Kucinski, o jornalismo vem prometendo atuar com autonomia frente aos diversos poderes. O primeiro dizia que a liberdade era o bem humano mais importante, e talvez nada, nem mesmo a morte, seria capaz de compensá-la. Depois de três anos no cárcere da inquisição lusitana, o ar inglês fez bem aos pulmões do anglobrasileiro: de 1808 a 1822 publicou ininterruptamente o seu Correio Braziliense, dedicando-se a nele pensar o Brasil. Não é menor o otimismo de Kucinski ao pensar a imprensa na Internet, onde cada jornalista disporia de uma espécie

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de tipografia cibernética própria, publicando, igualmente, as notícias que ao seu tempo convém.

Esse panorama futurista revelará não mais do que uma dada práxis social humana, fundamentada em princípios comunicativos relativamente ordenados sobre uma base de saber acumulado. As comunidades desterritorializadas que crescem no interior da rede, como a enciclopédia pública Wikipedia, a título de exemplo, possuem critérios de julgamento próprios e acesso restrito a novos locutores. Sendo a Internet um meio através do qual se permite trocar ativamente informações, pode-se especular que os locutores movimentam-se segundo o que Habermas chama agir comunicativo, uma relação fundada basicamente no “dar e exigir razões” (Robert Brandom, apud. HABERMAS, 2004, p.136). Não se pode perder de vista a dimensão discursiva da rede, de forma que o entendimento dos interlocutores depende do “êxito ilocucionário”:

chamamos racionais não apenas atos de fala válidos, mas todos os atos de fala inteligíveis pelos quais o falante pode assumir, sob condições dadas cada vez, uma garantia crível de que as pretensões de validade levantadas poderiam, se necessário, ser cumpridas discursivamente. Também aqui há uma relação interna entre a racionalidade do ato de fala e sua justificação possível. ? apenas em argumentações que as pretensões de validade implicitamente levantadas com um ato de fala podem ser tematizadas como tais e examinadas com base em razões (HABERMAS, 2004, p.108)

Não se pretende reforçar o idealismo habermasiano quanto a um processo

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integralmente construtivo da fala humana. Mesmo atos de fala não pautados por um telos racional podem ser relativamente bem justificados. Daí a necessidade de os “produtores culturais autônomos” observarem um código ético baseado na veracidade das informações transmitidas, o que poderia aproximar um número muito amplo de indivíduos do exercício jornalístico.

Dênis de Moraes aparentemente segue a lógica argumentativa habermasiana em sua análise do Ciberespaço, quando afirma que os usuários da Internet desenvolvem acordos e regulamentos que limitam a possibilidade do uso da comunicação para fins que comprometam uma “maioria moral”, ao mesmo tempo em que se rendem obrigatoriamente ao pano de fundo do “mundo da vida” – e ainda que o Ciberespaço mesmo faça parte da composição do “mundo da vida” dos falantes. Essa lógica extrapola o modelo de comunicação tradicional no qual o leitor se veria restrito à posição de “receptor”: ele produz diretamente os seus comentários e assim autoriza ou não um determinado locutor. Por meio dessa teia de reconhecimentos os interlocutores constroem um ambiente argumentativo orientado por pretensões de validez.

Internet constituye uma vida comunitaria regulada por interacciones y no por leyes, decretos y porterías. Lejos de eximir a los indivíduos de deberes éticos, el ciberespacio propone una coexistencia autorregulada. Lejos de padronizar conductas sobre la base de una “mayoría moral” (normas y interdicciones al servicio de las totalidades dominantes), la cibernética se apoya em reglas y valores consensuados establecidos por las células de usuarios respetando la pluralidad de contextos, los proyectos sociales y, por encima de todo, la

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libertad de expresión (MORAES, 2002, p.39).

Importa observar na Internet a necessária busca pela integração de um falante aos outros, condição mesma de sua existência como falante. Pode-se identificar esse princípio da comunicação como uma característica ontológica da constituição humana – o que aponta para a necessidade de através dela os “atores” participarem do “jogo social”.

A necessidade de comunicação nasce, por sua vez, da necessidade de manter em harmonia as opiniões e intenções – de sujeitos que decidem de forma independente – relevantes para a ação. A comunicação não é um jogo auto-suficiente, por meio do qual os parceiros informam uns aos outros sobre suas opiniões e intenções. Apenas o imperativo da integração social – a necessidade da coordenação de planos de ação de participantes da interação que decidem de modo independente – explica o que é primordial ao entendimento lingüístico mútuo (HABERMAS, 2004, p.173).

Enrique Dussel, em seu livro Filosofia da Libertação, enxergou problemas na doutrina do agir comunicativo por ela não comportar modelos comunicacionais mais simples, como a interpelação de um despossuído a pedido de comida, por exemplo (1995). De fato, a criança que na praia de Copacabana interpela o turista estrangeiro dizendo “hot-dog” não espera dele nada mais do que um gesto simples de distribuir algumas moedas e livrar-se do “constrangimento” de se ver interpelado por um dessemelhante. O “mundo da vida”, como o chama Habermas, é deveras mais complexo do que aquele previsto nos

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modelos comunicativos que compreendem sempre no seu interior um teor racionalista de dar e exigir razões.

Mas por outro lado, o ambiente lingüístico da Internet tem como pressuposto mesmo de funcionamento a produção de discursos e através deles a busca pelo entendimento sobre temas aparentemente importantes para os lados envolvidos no processo comunicativo. Nele a horizontalidade funciona como ponto de partida: os atores ganham reconhecimento especialmente pelo seu discurso, mais do que pelo status quo que mantém no “mundo da vida”. Os jornalistas, por exemplo, perdem o seu posto de locutores tradicionais da sociedade civil, cedendo-o a uma pluralidade de outros atores interessados em comunicar os seus pares acerca de certas ocorrências sociais consideradas importantes. Aquele jornalista que, nas palavras de Sylvia Moretzsohn, deveria “reconhecer os constrangimentos impostos por uma estrutura que entretanto jamais consegue conformar integralmente o processo produtivo” (MORETZSOHN, 2007, p. 12), agora tanto consegue imaginar o processo produtivo quase em sua integralidade como pode se afastar das formas tradicionais de “coleta de informações”. A comunicação se torna, nesse sentido, nitidamente apócrifa.

Sylvia Moretzsohn também deixa explícito em seus trabalhos o seu desejo de ver o jornalista restituir aquela sua função de portador das Luzes. Trata-se do jornalismo que suspende o cotidiano na busca por descobrir o que se esconde por detrás de eventos aparentemente diferenciados uns dos outros, a mesma função do “jornalismo como

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vocação” de Bernardo Kucinski ou do “ser útil aos membros da sociedade” de Hipólito da Costa. Trata-se, em suma, do mesmo projeto de Adelmo Genro Filho (1987), para quem o jornalismo consistia na assunção de uma responsabilidade com a singularidade, o fato que salta os olhos, a partir das categorias particular e universal, estas incrustadas na biografia do jornalista. Quiçá o jornalismo, seja no Ciberespaço ou não, permanece sempre o mesmo em seus princípios fundadores.

Conclusões?Fica implícito no âmbito deste artigo uma certa negação do poder do Estado

para gerar bem social duradouro, assim como a assunção de uma fase pós-literária da cultura humana, na qual o Estado tradicional não é mais o motor das grandes literaturas que fundamentam uma experiência coletiva em comum. A Internet afirma a superação de semelhantes barreiras territoriais na medida em que o comunicador comum pode ir cada vez “mais longe” para adquirir a sua própria informação, independentemente dos produtores profissionais de informações, os jornalistas.

No bojo desse processo, a dicotomia entre escravo e senhor se descobre cada vez mais corroída pela multiplicidade dos modos de ver. O senhor, desde as considerações de Hegel, descobre a si mesmo a partir do reflexo causado no escravo: “os sujeitos autoconscientes precisam aprender que não podem se afirmar egocentricamente como sujeitos com juízos e planos próprios, mas devem se reconhecer reciprocamente como

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fontes de pretensões normativas” (HABERMAS, 2004, p. 204). Os interlocutores, sobretudo no ciberespaço, buscam tornar-se adequados uns aos outros, sob a pena pura e simples da não autorização. Em sua busca de adequação eles trazem à tona a interessante metáfora de Robert Brandom, a dança de Fred Astaire e Ginger Rogers:

I have in mind thinking of conversation as somewhat like Fred Astaire and Ginger Rogers dancing: they are doing very different things – at least moving in different ways – but are coordinating, adjusting, and making up one dance. The dance is all they share, and it is not independent or and antecedent to what they are doing (BRANDOM, apud. HABERMAS, 2004, p.174).

Para usar uma metáfora arriscada, a Internet pode ser compreendida como um salão de danças, com polarizações ainda arraigadas, é verdade, mas sobretudo dialógica e horizontalizada, reflexo e ao mesmo tempo possibilidade de transformação de um meio social. Nesse sentido, ela se torna uma quadrilha com indivíduos diferentes buscando assumir uma posição ordenada no fluxo musical do “mundo da vida”. Ela é o canal que permite, dentre os indivíduos cada vez mais integrados – segundo um projeto ordenado por evidente idealismo – o reconhecimento derradeiro de que o Eu se produz através do Outro, lembrando de uma vez por todas que, no dizer de Jean François Mattéi, “tudo que aprendemos, mesmo como autodidatas, nos vem sempre de outrem: a língua de nosso país, a afeição de nossos parentes, a cultura de nossa sociedade, como uma luz que vem iluminar nossas trevas interiores” (MATTÉI, 2001, p.81).

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Ela não homogeneíza, posto que é sobretudo construída sobre um processo inacabado de tensões, no qual projetos organizadores se vêem tentados a aplainar o final que aparece como conseqüência mesma da razão. A Internet oferece a possibilidade de uma integração crescente, mas não muda o caráter dialógico do mundo, no qual senhores combatem e dependem dos escravos, naquele processo hegeliano de reconhecimento mútuo. A pergunta derradeira, referente aos produtores autorizados de informação, os jornalistas, e sua adequação no Ciberespaço, permanece pouco conclusa. O quarto poder, vigilante com relação aos procedimentos do Estado e, ao mesmo tempo tão próximo dele, não se teria dilatado entre várias esferas de poder, com o acesso crescente dos cidadãos mesmos à informação produzida pelos seus pares? Uma hipótese parece guiar para a capacitação constante do cidadão no que diz respeito à produção da informação através do Ciberespaço, com conseqüente erosão do quarto poder institucional. Uma outra guia para a denegação da excelência que poderia ser gerada pelo final do exercício regulamentado do jornalismo, o que só seria sanado pela crescente integração do jornalista autônomo no Ciberespaço. São questões que se inserem no fluxo da carência de literaturas da sociedade moderna e que, pelo que ainda não revelaram, respondem apenas com mais perguntas.

Bibliografia consultada

ALTHUSSER, Louis. Aparelhos ideológicos do Estado. São Paulo: Graal, 2007.

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BOURDIEU, Pierre. Coisas ditas. Brasiliense: São Paulo, 1987.

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FAORO, Raymundo. Os donos do poder. A formação do patronato político brasileiro. São Paulo: Globo, 2001.

FOUCAULT, Michel. Microfísica do poder. São Paulo: Paz e Terra, 2006.

GENRO FILHO, Adelmo. O segredo da pirâmide - para uma teoria marxista do jornalismo. Porto Alegre, Tchê, 1987.

HABERMAS, Jurgen. Consciência moral e agir comunicativo. Rio de Janeiro: Tempo Brasileiro, 2003.

___________. Mudança estrutural da esfera pública. Rio de Janeiro: Tempo brasileiro, 1984.

___________. Verdade e justificação. Ensaios filosóficos. São Paulo: Loyola, 2004.

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KOSIK, Karel. Dialética do concreto. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1976.

KUCISNKI, Bernardo. A síndrome da antena parabólica. Etica no jornalismo brasileiro. São Paulo: Perseu Abramo, 1998.

___________. Jornalismo na era virtual. Ensaios sobre o colapso da razão e ética. São Paulo: Perseu Abramo, 2005.

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MCLUHAN, Marshall. A Galáxia de Gutenberg. São Paulo: Edusp, 1972.

MORAES, Dênis de. “Ciberespaço y las mutaciones comunicacionales”. IN: ISLAS, Octavio, GUTIERREZ, Fernando e ALBARR?N, Gerardo (orgs.). Explorando el ciberperiodismo iberoamericano. México: Editorial Pátria, 2002.

MORETZSOHN, Sylvia. Pensando contra os fatos. Jornalismo e cotidiano: do senso comum ao senso crítico. Rio de Janeiro: Revan, 2007.

NIETZSCHE, Friedrich. A vontade de poder. Rio de Janeiro: Contraponto, 2008.

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A (IN)volução do meio impresso e a (RE)invenção do público-leitor na Era do “MEU JORNAL DIÁRIO”1

Alexandre Correia dos SANTOS2

No século XX, antigas ideias defendidas de racionalidade e liberdade foram disseminadas em curto espaço de tempo como forte instrumento político-partidário, relegando o leitor a um coadjuvante passivo de todo o processo, quando com acesso a essa informação dirigida - restritiva. Esse jornalismo, amador e panfletário, perdeu campo para a transformação dos chamados processos midiáticos.

Os jornais tradicionais ganharam corpo, prestígio e notoriedade, com suas redações abastecendo-se de bons profissionais, transformando-os em fontes alimentadas por compromissos e relações com todas as áreas do conhecimento e com a sociedade, objetivando um senso comum de missão, em uma mídia prática e acessível a todos. Nesse primeiro momento - esse profissional - peça-chave do processo, se reinventou e logo, se adaptou.

Em seguida, em prol do comercial – ora respeitado como um dos principais alicerces da estrutura da mídia impressa se determinou um público-leitor para o jornal impresso,

1 Texto-base originariamente apresentado no Intercom Sul 2009, realizado na Furb, Blumenau (SC).2 Mestrando em Comunicação e Linguagens, especialista em Planejamento de Comunicação Integrada, bacha-rel em Publicidade e Propaganda, coordenador e professor de Comunicação Social das Faculdades OPET.

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que antes não era tão segmentado, ou - no mínimo - não tinha um foco tão específico. A objetividade passou a ser então, a sua principal razão de continuidade, separando-se o fato da opinião. A matéria passou a ter um cunho comercial também e não raras as vezes onde o jornalista era pautado pelo comercial da empresa.

Essa busca essencial do jornalismo contemporâneo pela audiência fragmentou a realidade presenteando o jornalista com uma identidade verdadeira. Esse passou a compartilhar valores distintos, porém, regidos por concepções em comum que compõem a chamada - imprensa moderna. Os questionamentos inerentes ao distanciamento e as discursivas da estrutura comercial x redação, foram questionadas na prática diária, no relacionamento comum entre as partes.

A crise não é necessariamente uma novidadeA alardeada crise que invade as baias de redação não é nova. Sempre se discutiu

a relação do jornalismo impresso tradicional com as demais mídias no universo da comunicação. Jornais tradicionais lançam mão de novas formas de administração e de gerenciamento do negócio e do risco, para tentar uma renovação urgente ou uma sobrevida. Os diários Los Angeles Times e Chicago Tribune contabilizam uma dívida de quase 13 bilhões de dólares e estão à beira da concordata.

Recentemente, o New York Times, um dos maiores conglomerados de comunicação do mundo, anunciou que hipotecou o seu edifício-sede, para saldar dívidas.

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O jornalismo impresso não evoluiu?É hora das grandes Editoras perceberem qual a verdadeira razão do jornalismo

impresso, buscando alternativas comerciais e editoriais para alcançar novos públicos e reconquistar e/ou resgatar o antigo leitor de jornal. Não basta apenas “dar” a notícia.

Carlos Eduardo Lins da Silva, ombudsman da Folha de S.Paulo, jorna que tem uma tiragem média de 500.000 de exemplares/dia, avalia que o noticiário impresso parou no tempo. Não evoluiu. Classifica o jornal impresso como “chato, previsível, repetitivo, superficial e atrasado”.

O furo jornalístico, principal motivação do profissional formador de opinião, já não cabe mais apenas ao jornalismo impresso, ao diário. A notícia tem que ser repassada inteligentemente, com conteúdo, bem elaborada. Alternativas como matérias especiais, grandes reportagens, jornalismo investigativo, educativo e colaborativo devem ajudar na revitalização do material impresso.

Este espaço, só o veículo tradicional pode proporcionar através dessa forma e conteúdo para o leitor. Outra dificuldade que o profissional encontra na apuração dos fatos é a pré-pauta gerada por meio da televisão, ou através de outros meios eletrônicos. O inverso deveria ser o verdadeiro.

A análise detalhada dos fatos e seus signos e significados devem sobressair à notícia, poder de síntese este que o jornalismo impresso domina há anos.

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Inovações comerciais e o público-leitorComercialmente, o jornalismo precisa buscar um público-leitor assíduo e contínuo,

que não se resuma a adquirir assinaturas em trocas de presentes sazonais ou atemporais. A paciência do consumidor anda limitada com promoções de lugar comum, com troca de selos, vale-brindes e seus derivativos. Ao adquirir um exemplar ou uma assinatura o público-leitor busca mais que uma simples lembrança. O relacionamento com o público-leitor deve permear as suas ações comerciais.

Em recente experimentação, uma grande agência de São Paulo, criou uma idéia onde o leitor do Estadão, seria também o seu principal pauteiro e formulador das matérias de primeira página. Por meio de ferramenta eletrônica, os leitores poderiam mandar sugestões de manchetes, além de ilustrar a matéria com fotos.

Mais de mil pessoas atenderam à campanha e foram agraciados com capas do Estadão personalizado, entregues em casa.

O restante dos 140 mil assinantes recebeu em casa uma falsa capa do Jornal, onde figuravam notícias boas, “completamente fora do padrão”. O simples fato rendeu ao Estadão uma série de prêmios e com certeza, a simpatia do seu público-leitor. Mais um exemplo do que pode ser feito em termos de relacionamento, sem onerar e/ou modificar seriamente os processos cotidianos.

A força da imagem, a criatividade das chamadas e anúncio plasticamente bem formulado também tem diferenciado a criação para o Jornal. O mesmo tratamento que

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antes era dado às revistas, tem sido empregado com sucesso no jornalismo impresso. Mais um ponto positivo para o meio.

O crescimento exponencial de novas formas de busca, não encontra contrapartidas nessa (re)volução do meio impresso, porque alguns o consideram, obsoleto e vagaroso o que caracteriza a sua (in)volução.

Porém, as previsões mais pessimistas são refutadas com índices de crescimento absoluto na publicidade desse jornal diário, que pode ser o indício de que o impresso ainda impera no quesito retorno, pelo menos no Brasil.

Curiosamente, a circulação dos jornais impressos - nessa região - cresce exponencialmente. Com crescimento médio acima da inflação, contabilizamos mais de três mil jornais impressos com mais de quinhentos diários.

Internet – algoz ou plataforma complementarParalelamente a todo este movimento, a Internet conquista espaços e o público-

leitor se transforma. Migra - no sentido literal da palavra - buscando novas fronteiras, soluções, plataformas, fontes, rapidez, objetividade e credibilidade. Afinal, quando navegamos solitariamente on-line, somos editores de nós mesmos. Além disso, a idade média dos leitores ou do público-leitor diminuiu. É sabido que o jovem independente da sua nacionalidade ou crença só consome a notícia se for oferecido a ele algo atraente. Com isso, destacamos uma categoria de “interventores positivos” que servem inclusive

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como pauteiros do jornalismo diário. A principal ligação entre público, notícia e acontecimento continua sendo o jornalista. Porém, esta interação com o público leitor, não tem precedentes. Nunca fora experimentada tamanha intervenção.

Assim, os denominados jornalistas tradicionais, acabam por perder parte de sua autonomia. “O jornalismo é uma área dominada cada vez mais por um pensamento ideológico e mecanicista, acompanhada pelo avanço tecnológico” (RUNGER, 2006, p.247). Esta nova visão derrubou alguns paradigmas junto com outras regras. Algumas linhas editoriais passaram a ditar o rumo do órgão midiático.

“O ente (jornalista) passou a ser cada vez mais interpelado pela armação” (RUNGER, 2006, p.248). Linha esta, que não por acaso, muitas vezes está atrelada ao lucro comercial. Alguns jornalistas, da antiga escola, denominam este fenômeno como uma “censura subconsciente”. Afinal, gerar comentários, e suas conseqüências, é uma característica dessa atividade. Assim, fica muito claro que a contemporaneidade é quem determina o padrão ideológico do SER jornalista e do SEU público-leitor. A (in)volução se faz presente em algumas dessas caracterizações.

Para assegurar um espaço “caberá ao jornal do presente investir naquilo que o leitor espera encontrar nele” (CALDAS, 2003, p.17). Há, então, uma clara e explícita divisão marcada por uma disputa de mercado e poder entre as mais diversas plataformas.

Mudanças sem precedentes fazem com que os jornais se reinventem, porque a Internet se não é parceira de editoria - do fato - é a sua algoz. Cabe a cada um desses jornais

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a definição do seu papel e a sua verdadeira razão frente à sociedade. “Uma caracterização mais ampla do jornalismo concebe o repórter como eficiente armador de quebra-cabeças, cujas peças estão dispersas e alguém trata de manter ocultas” (REYES, 1996, p.98).

A grande maioria dos jornais já migrou para a Internet e mantém ainda que timidamente alguma forma de interação e contato com o seu público-leitor. Esse espaço deve ser sabiamente utilizado no provimento de conteúdo, informação e entretenimento, completando a edição impressa. O limite entre a divisão de conteúdos deve ser revista porque ainda não existe uma regra exata que dite o rumo das duas plataformas.

Representação do bom ou mau exercício da interpretação dos fatosCom base em todo este contexto, o leitor assumiu papel preponderante na

interpretação das matérias, notícias e informações, criando assim o que Negroponte (1968) chama de “Meu jornal Diário”, que mostra que só gostamos de ler, tudo aquilo em que realmente acreditamos. Afinal, somos culpados por buscar as “verdades” seletivamente.

Surge um novo dilema. Bill Bishop em seu livro A grande classificação: porque a divisão da América em agrupamentos de ideias iguais está dividindo, argumenta que: “este tipo de leitura que classifica os seus interesses próprios e segrega o formador de opinião, gera um contexto politicamente separatista” (2008, p.150).

Portanto, o benefício que deveria advir da presença de uma diversidade de opiniões se perde para o sentimento de estar com a razão que é próprio dos grupos homogêneos.

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“As mídias tradicionais são passivas. As atuais, participativas e interativas. Elas coexistem e estão em rota de colisão” (JENKINS, 2008, capa). A polarização e a intolerância não devem servir como ponto de discussão para os rumos da comunicação, em especial para as mídias impressas e suas derivações.

Pode-se afirmar também, que o meio jornal está disponível para grande maioria das pessoas. Nunca antes, os leitores estiveram tão submetidos a um fluxo tão grande de palavras, notícias e quadros tão instantaneamente e (num sentido amplo, físico) tão eficientemente.

Portanto, se admitimos que os meios de comunicação estão disponíveis em um volume espantoso e que as pessoas estão expostas a quantidades de conteúdo, necessariamente, segue que tornamo-nos mais interessados, ou no que diz respeito, melhor informados. Isso destaca o efeito ideológico e perturbador da notícia de jornal.

A necessária (E)volução dos meios tradicionaisO principal objetivo deste artigo não é questionar o andamento dos fatos no

jornalismo impresso. É tentar mostrar ao leitor que vivemos um período importante de transformações em todos os âmbitos, sem precedentes e que talvez ainda não tenha sido encontrado qual o melhor caminho a ser seguido.

“As notícias predominam no dia-a-dia, carregadas da dupla função de informar/distrair” (MEDINA, 1998, p.71). A ideia pré-concebida de “Daily Me - Meu Jornal Diário”, se

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não for medida com cautela, pode mergulhar os leitores numa autoconfiança míope de uma realidade distante do diário.

Esse definitivamente, não deve ser o ideal de jornalismo impresso. Como citado por William Gibson: “O futuro já chegou. Só não está distribuído de forma equilibrada” (2008, p.11). Aqui não devemos discutir nem a mentira, nem a omissão, nem a passividade - por conta - desta (in)volução de um objeto de imensurável valor simbólico e praticidade que certamente suscitará novas e interessantes discussões coletivas, que – definitivamente - não devem e não podem ter fim.

Bibliografia consultada

ABREU, J.B. de. As manobras da informação. Rio de Janeiro: Mauad/Eduff, 2000.

BISHOP, Bill. A grande classificação: porque a divisão da América em agrupamentos. Texas, Hougtton Mifflin Books, 2008.

CALDAS, A. Deu no Jornal. Rio de Janeiro: PUC, 2003.

GIBSON, W. Cultura da Convergência. Nova Iorque, Aleph, 2008.

JENKINS, Henry. Cultura da Convergência. NY: Aleph, 2008.

MEDINA, C. Notícia. Um produto à venda. São Paulo: CIP, 1998.

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REYES, G. Periodismo de Investigación. Cidade do México: Editorial Trillas, 1996.

RUDIGER, F. Martin Heidegger e a questão da técnica. Porto Alegre: Sulinas, 2006.

SILVA, Carlos Eduardo Lins, ombudsman da Folha de S. Paulo. Em entrevista para a Fo-lha de S.Paulo em 22 de abril de 2008. http://www1.folha.uol.com.br/folha/ombudsman/biografia-carlos_eduardo_lins_da_silva.shtml

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apresentação parte II

Reflexões acerca da prática jornalística

Reflexões acerca da prática jornalística reúne onze filigranas que tratam/ discutem/analisam/problematizam, enfim, tomam como objeto de estudo o jornalismo em suas muitas variedades, formatos e veículos. Assim, aqueles que se aventurarem por esta segunda parte de Jornalismo Reflexivo poderão seguir trilhas que percorrem a prática jornalística e o exercício profissional em revistas, sites, televisão, documentários, jornalismo impresso; poderão percorrer trajetos que apontam para editoriais que vão do meio ambiente à moda, do agronegócio à música, passando por notícias policiais e de enfoque histórico.

O texto de abertura desta segunda parte, Para quem quer viver mais e melhor: o enquadramento pedagógico da revista Vida Simples, de Gisele Reginato, evidencia os enquadramentos predominantes nas reportagens de Vida Simples, publicação mensal da Editora Abril, mostrando as nuances pedagógicas e/ou pedagogizantes de uma escrita marcadamente didática que (re)produz saberes e ensinamentos para os leitores.

Outra revista é tomada como corpus na segunda filigrana. A edição 2.012, de 28 de maio de 2008, de IstoE é analisada, multidisciplinarmente, pela jornalista Ariane Pereira, pelo publicitário Márcio Macedo e pelo estudante de Biologia Norbert Heinz por trazer em

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sua capa, como chamada principal, a Amazônia e apresentar, também, um anúncio, logo na contra-capa, tratando da mesma temática. Estas leituras você confere em A Amazônia, uma capa, um anúncio e três leituras.

A revista Elle e o site de moda Erika Palomino são analisadas por Ana Marta Moreira Flores e Daniela Hinerasky no terceiro texto dessa segunda parte. Os editores de moda “em revista”: um estudo de caso sobre o site Erika Palomino e a revista Elle apresenta resultados de pesquisa cujos objetivos centrais são compreender a construção da notícia de moda nos dois veículos e discutir o papel do editor de moda nestes.

A cobertura de moda continua sendo o foco de Ana Marta Moreira Flores, Daniela Hinerasky e, tmabém, de Kellen Severo, na filigrana seguinte: A notícia de moda na web: um breve panorama. Este texto discute as características da linguagem web e dos conteúdos sobre moda no blog Oficina de Estilo e no site Chic.

No contexto atual, as práticas do Jornalismo têm apresentado variadas mutações, tais como o fortalecimento das estratégias de auto-referencialidade. Sob esta perspectiva, Andréa Weber e Fabiana Sgorla analisam o site do programa televisivo Globo Rural, da Rede Globo. O site como espaço da auto-referencialidade do jornalismo televisivo: o caso do Programa Globo Rural é o artigo de número cinco desta segunda parte.

O medo no telejornalismo brasileiro: um estudo do caso João Hélio busca aprofundar o estudo dos medos sociais, partindo da constatação de que a violência e a criminalidade são assuntos muito presentes nas rodas de conversa da atualidade, e que

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esses temores são intensificados pelo Jornalismo. Assim, a intenção de Elza de Oliveira Filha e de Taianá Martinez é identificar de que forma o medo é construído no jornalismo e de que forma ele interfere no imaginário coletivo. Para tal, as autoras tomam como objeto reportagens veiculadas pelo Jornal Nacional, da Rede Globo, sobre o assassinato, no Rio de Janeiro, do menino João Hélio Fernandes.

Resgatar e atualizar uma importante passagem da história do Brasil é o objetivo de Maria Joana Chaise. Para isso, ela toma o filme, de 1984, “Jango – Como, quando e porque se depõe um Presidente ds Repúbica”, do cineasta Sílvio Tendler, com as pretensões de demonstrar como o documentário constrói de maneira positiva a imagem do ex-presidente e de recuperar o personagem histórico-político João Goulart. O João Goulart de Silvio Tendler: uma análise do acontecimento jornalístico golpe militar no filme Jango é a filigrana de número 7.

Entre a lança e a prensa: conhecimento e realidade no discurso do jornal O Povo (1838), de Camila Kieling, apresenta uma análise das relações entre conhecimento e realidade no discurso do jornal O Povo, o primeiro periódico oficial da República Rio-Grandense, que circulou de 1838 a 1840 , nas cidade gaúchas de Paratini e Caçapava. A autora toma como amostra o texto Prospecto, publicado na primeira edição do jornal datada de 1. de setembro de 1838, que apresenta o jornal, explica seu papel e alguns dos ideais da Revolução Farroupilha.

Lygia Maria Silva Rocha é a autora de “Todo compositor brasileiro é um

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complexado”: anonimato e fama de Tom Zé na mídia impressa especializada. Texto que discute o que faz um produto/artista ser divulgado na grande mídia especializada e o que o faz ser renegado pela mesma, a partir da análise da trajetória do músico brasileiro Tom Zé reportada, entre 1968 e 2002, pelos cadernos culturais de jornais do país.

A música e a imprensa também são o tema da discussão proposta por Bruna do Amaral Paulin em The Beatles Setting the Agenda: considerações sobre a cobertura jornalística da beatlemania na Inglaterra. Para interpretar a cobertura jornalística do surgimento do fenômeno beatlemania foram tomados os conceitos de agenda-setting e framing.

A última reflexão desta segunda parte e do e-book é Midiatização de imagens: entre circulação e circularidade. Ana Paula Rosa, a partir do posicionamento de que os meios de comunicação desempenham papel de ordenador da sociedade, afirma que as imagens fotojornalísticas se autonomizam e sobrevivem para além dos referentes. Ou seja, para a autora, o que tem se modificado é o processo de circulação de sentido, que é sempre um sentido segundo, resultado da interpretação do próprio meio.

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Para quem quer viver mais e melhor: o enquadramento pedagógico darevista Vida Simples1

Gisele Dotto REGINATO2

A mídia frequentemente e, cada vez mais, aponta para a audiência modos de viver, maneiras de se comportar, jeitos de proceder no cotidiano. Nos textos jornalísticos, especialmente em revistas, é comum a utilização de um formato que produz saberes e ensinamentos para a audiência como “Descubra como ter mais sucesso no trabalho” e “Aprenda a ter mais auto-estima”.

O slogan estampado na capa - “Para quem quer viver mais e melhor” – mostra a proposta da Vida Simples de falar com um público (homens e mulheres acima dos 30 anos) que se preocupa cada vez mais com qualidade de vida e faz do bem-estar uma prioridade em sua vida. A revista, editada pela Abril, surgiu em 2003 e, após ter passado por vários momentos que a fizeram adequar seu produto ao modo de vida dos leitores, hoje o público-alvo é bem estabelecido: urbano, classe média alta, com elevado nível cultural – a maioria com Ensino Superior completo.

A revista Vida Simples aposta nos ideais de que é possível ter uma vida muito mais sábia, gentil e equilibrada; que podemos ajudar a transformar nosso ambiente, nas

1 Texto-base originariamente apresentado no Intercom Sul 2009, ralizado na Furb, Blumenau (SC).2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Midiática da UFSM . Orientadora: Prof. Dra. Már-cia Franz Amaral (UFSM).

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cidades, em lugares mais humanos, menos poluídos, com solidariedade e cultura. Assim, a revista se utiliza de estratégias pedagógicas para enquadrar seus temas, transparecendo sempre a proposta de simplificar a vida dos leitores.

Buscamos, então, verificar como os enquadramentos dos temas são determinados e construídos na Vida Simples e identificar as estratégias que o veículo utiliza para ensinar como fazer determinadas tarefas cotidianas. Neste artigo, analisamos as reportagens de capa da Vida Simples publicadas no período compreendido pelos meses de março a agosto de 2008, mapeando no texto os elementos que formam um quadro disciplinar e compõem uma informação didática.

Enquadramento: a informação emoldurada pela mídiaPara entender o processo de enquadramento dos temas cobertos, é necessário

partir do pressuposto de que os jornalistas não espelham a realidade, mas sim constroem ativamente as notícias baseados em suas rotinas de trabalho, normas e regras. É necessário perceber claramente que, nas práticas diárias, os jornalistas fazem enquadramentos das várias realidades. Conforme nos explicita Kosicki (1993), os estudos sobre a construção da notícia oferecem a chave para entender como um tópico é enquadrado e oferecido para o público.

Consideramos que a realidade não pode ser retratada sem mediação e é impossível apresentar os fatos livres de interesses humanos. Antes de construir um fato o jornalista

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precisa selecionar, pois seria impossível noticiar tudo o que acontece em toda parte a toda hora e “não somente o do comunicador, mas todo ato social que implique em transmissão de informação é um processo seletivo” (MARCONDES FILHO, 1993, p. 134). Após a seleção do assunto, o jornalista passa a eleger o ângulo para abordá-lo. Depois, precisa optar pela melhor palavra, pela foto mais persuasiva, pelo título mais atrativo, pela manchete mais sedutora. Em mínima análise, essa simples sequência serve para ilustrar a percepção de que a mídia estabelece que assunto deve ser visto ou lido pelos receptores e que parte dele é destaque para se ver ou ler. Contribui ainda para ressaltar que o jornalista faz um recorte específico dos fatos e os ordena. Apreendemos em Schudson (1999) que as pessoas não veem as notícias como elas acontecem; elas apenas ouvem ou leem as estórias que os jornalistas fizeram sobre elas.

Eu sugiro que o poder dos media não está apenas (e nem sequer primariamente) no seu poder de declarar as coisas como sendo verdadeiras, mas no seu poder de fornecer as formas nas quais as declarações aparecem (SCHUDSON, 1999, p. 279).

Bucci (2003) considera que ao discurso jornalístico cabe hierarquizar os sentidos e os valores, preconizar as condutas e modos de falar e, ainda mais, cabe-lhe separar o que é dizível e o que é indizível. O autor explica que o jornalismo, como discurso, ordena e disciplina o que chamamos, “por algum resíduo de inocência imperdoável”, de realidade.

Ora, e o que é a realidade, senão aquela que é dada pela mídia – ou pelas

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reações à mídia, o que dá no mesmo? O que é a realidade senão a composição de sentidos e de significados tal como ela pode acontecer nos termos da comunicação social? (BUCCI, 2003, p.12).

A partir dessa reflexão, podemos pensar que a mídia tem um papel importante na “modelização social” (GOMES, 2003) na medida em que constrói verdades, determina modos de viver e organiza as relações sociais. Essa tarefa é desempenhada pelos meios de comunicação como um todo, mas o discurso jornalístico se destaca e o que não está no seu conteúdo parece nem ter acontecido.

A bem da verdade (dos fatos e dos discursos), a velha função simbólica do direito – a função de ordenar os conceitos e os valores, estabelecendo o lugar do proibido e o lugar do Bem – vem sendo progressivamente ocupada, exercida e usurpada pela mídia. Sim, uma função simbólica, que inclui o efeito normatizador, punitivo e assim por diante (BUCCI, 2003, p. 12).

A tarefa de ordenar, disciplinar e educar se torna, então, inerente ao discurso midiático, já que o jornalista, muitas vezes, é detentor de um saber que o público não possui. Charaudeau (2007) apresenta que o sujeito que procura seduzir, persuadir, demonstrar ou explicar adquire uma posição de autoridade e toda instância de informação, querendo ou não, exerce um poder sobre o outro.

O discurso informativo não tem uma relação estreita somente com o imaginário do saber, mas igualmente com o imaginário do poder, quanto mais não seja, pela autoridade que o saber lhe confere. Informar é possuir

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um saber que o outro ignora (“saber”), ter a aptidão que permite transmiti-lo a esse outro (“poder dizer”), ser legitimado nessa atividade de transmissão (“poder de dizer”) (CHARAUDEAU, 2007, p. 63).

A legitimidade lembrada por Charaudeau é fundamental nesse contexto, porque para analisar o poder dos textos midiáticos, é preciso entender que a mídia ocupa um lugar de credibilidade para dizer aquilo que diz. Segundo Bourdieu (2005), o maior poder das palavras – e das palavras de ordem - é a crença na legitimidade das palavras e daquele que as pronuncia.

O poder simbólico como poder de constituir o dado pela enunciação, de fazer ver e fazer crer, de confirmar ou de transformar a visão do mundo e, deste modo, a ação sobre o mundo, portanto o mundo [...], só se exerce se for reconhecido, quer dizer, ignorado como arbitrário (BOURDIEU, 2005, p.14, grifo do autor).

Gomes (2003) utiliza as noções de palavra de ordem, de Gilles Deleuze, e de dispositivo disciplinar, de Michel Foucault, conceitos referentes à prática discursiva como lugar de majoração de poder.3 Com base nesses autores, ressalta que “a seleção por si só coloca o jornalismo numa posição privilegiada na tarefa disciplinar: toda a produção jornalística se constrói em torno do eixo do que é importante, portanto, na visada da disciplinariedade” (GOMES, 2003, p. 84).3 A autora lembra que embora haja distinções entre a noção de palavra de ordem e a de dispositivo disciplinar, uma vez que a primeira é dada como coextensiva à linguagem e a segunda é dada na dimensão de um discurso específico, há um grande parentesco entre ambas.

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Foucault (1991) estudou os procedimentos disciplinares e nos lembra que poder e saber estão intimamente ligados: o poder produz saber e o saber produz poder. O estudioso pensava que o conhecimento era buscado por sua utilidade e era caracterizado por uma vontade de dominar ou apropriar. O autor sugere que não há relação de poder sem li-gação mútua com um campo de saber, nem saber que não constitua ao mesmo tempo relações de poder. Foucault (1991) cita a “ordem do discurso” e a designa como tendo uma função normativa e reguladora, que coloca em funcionamento mecanismos de organiza-ção do real por meio da produção de saberes, de estratégias e de práticas. Gomes (2003) acrescenta que onde quer que haja discurso, há palavras de ordem.

Chamamos palavras de ordem não uma categoria particular de enunciados explícitos (por exemplo, no imperativo), mas a relação de qualquer palavra ou de qualquer enunciado com pressupostos implícitos, ou seja, com atos de fala que se realizam no enunciado, e que podem se realizar apenas nele. As palavras de ordem não remetem, então, somente aos comandos, mas a todos os atos que estão ligados aos enunciados por uma ‘obrigação social’. Não existe enunciado que não apresente esse vínculo, direta ou indiretamente. Uma pergunta, uma promessa, são palavras de ordem, pressupostos implícitos ou atos de fala que percorrem uma língua em todo momento (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p.16, grifos dos autores).

Deleuze e Guattari (1995) defendem que a linguagem não se limita a ir de alguém que viu alguma coisa a alguém que não viu, mas que ela vai necessariamente de um segundo a um terceiro, não tendo, nenhum deles, visto. “É nesse sentido que a linguagem

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é transmissão de palavra funcionando como palavra de ordem, e não comunicação de um signo como informação” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 14). Em outras palavras, os autores afirmam que é impossível conceber a fala como a comunicação de uma informação, visto que “ordenar, interrogar, prometer, afirmar, não é informar um comando, uma dúvida, um compromisso, uma asserção, mas efetuar esses atos específicos imanentes, necessariamente implícitos” (DELEUZE; GUATTARI, 1995, p. 14).

Com essa explanação, certamente abreviada diante da complexidade proposta por Deleuze e Guattari, pretendemos utilizar a elaboração dos autores de que a palavra de ordem é, em si mesma, redundância do ato e do enunciado – o que nos é útil para pensar que não é por acaso que muitas palavras aparecem repetidas no texto jornalístico.

Os jornais, as notícias, procedem por redundância pelo fato de nos dizerem o que ‘é necessário’ pensar, reter, esperar, etc. A linguagem não é informativa nem comunicativa, não é comunicação de informação, mas – o que é bastante diferente- transmissão de palavras de ordem, seja de um enunciado a um outro, seja no interior de cada enunciado, uma vez que o enunciado realiza um ato e que o ato se realiza no enunciado (DELEUZE; GUATTARI, 2003. p. 16-17, grifos dos autores).

Assim, ponderamos que os textos midiáticos têm grande poder porque selecionam a realidade, tornando uns aspectos mais aparentes que outros. O poder para definir os acontecimentos surge, em parte, do poder da mídia para enquadrá-los. Conforme nos explicita Kosicki (1993), os estudos sobre a construção da notícia oferecem a chave para

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entender como um tópico é emoldurado e oferecido para o público. Para Goffman, um frame é constituído pelos princípios de organização que governam os acontecimentos – pelo menos os sociais - e o nosso envolvimento subjetivo neles: “os frames organizam as strips do mundo cotidiano, entendendo-se por strip uma fatia ou corte arbitrário da atividade corrente” (apud TUCHMAN, 1999, p. 259). Ou seja, os enquadramentos regulam os episódios e organizam os recortes do mundo cotidiano:

os frames podem ser pensados como um tipo de esquema, similar a scripts, protótipos, categorias, e assim por diante. Isto é, eles ajudam a estruturar nossas experiências diárias e basicamente facilitam o processo de construção de significado. Esses frames nos ajudam a entender questões de maneiras particulares, e também guiam a reação da audiência ao conteúdo midiático (KOSICKI, 1993, p. 115, tradução nossa).

É pertinente ainda o conceito elaborado por Gitlin de que os enquadramentos são “padrões persistentes de cognição, interpretação, apresentação, seleção, ênfase e exclusão, através dos quais aqueles que trabalham os símbolos organizam geralmente o discurso, tanto verbal como visual” (apud HACKETT, 1999, p. 120-121). O termo designa uma moldura de referência, construída para os temas/acontecimentos midiáticos e também usada pela audiência para interpretar esses eventos: “o frame seria justamente o quadro a partir do qual um determinado tema é pautado e, consequentemente, processado e discutido na esfera pública” (GUTMANN, 2006, p. 30).

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Sendo assim, os frames devem ser considerados esquemas tanto para a apresentação, quanto para a compreensão das notícias. Scheufele (1999) especifica duas formas de concepção do enquadramento: o framing da mídia, que se refere aos enfoques apresentados pelos veículos de comunicação para um determinado tema, e o framing da audiência, que se relaciona ao modo como o público vai enquadrar certos assuntos a partir do que é oferecido pelos meios. Em outras palavras, “os frames organizam o mundo tanto para os jornalistas que o relatam, quanto para nós que dependemos da informação deles” (GITLIN apud SCHEUFELE, 1999, p. 106, tradução nossa).

Alguns estudiosos buscaram uma explicação mais detalhada sobre como a mídia abastece a audiência com esquemas para interpretar os acontecimentos, considerando, por exemplo, que a seleção e a ênfase são fatores essenciais para essa compreensão.

Enquadrar é selecionar alguns aspectos de uma realidade percebida e fazê-los mais salientes no texto comunicativo, de forma a promover uma definição particular do problema, interpretação causal, avaliação moral, e/ou tratamento recomendado (ENTMAN apud SCHEUFELE, 1999, p. 107, tradução nossa).

Também consideramos a exclusão como um fator necessário nesse entendimento, na medida em que ao selecionar um aspecto para ser o assunto central ou o enfoque do texto jornalístico, eliminam-se muitos outros assuntos e enfoques possíveis, seja simplesmente pela necessidade de seleção inerente ao processo comunicativo, seja para silenciar algum aspecto que se queira de fato ocultar.

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A mídia que informa também ensina?O conceito de “dispositivo pedagógico da mídia” foi desenvolvido por Fischer (2001,

2002a, 2002b) e vem sendo utilizado em pesquisas recentes sobre televisão e educação. Fischer (2002b) pretende mostrar de que modo opera a mídia, e particularmente a televisão, no sentido de participar da construção de sujeitos e subjetividades, na medida em que produz imagens, significações, enfim, saberes que se dirigem à educação das pessoas, ensinando-lhes modos de ser e estar na cultura em que vivem. Portanto, os meios de comunicação

não constituiriam apenas uma das fontes básicas de informação e lazer: trata-se bem mais de um lugar extremamente poderoso no que tange à produção e à circulação de uma série de valores, concepções, representações - relacionadas a um aprendizado cotidiano sobre quem nós somos, o que devemos fazer com nosso corpo, como devemos educar nossos filhos, de que modo deve ser feita nossa alimentação diária, como devem ser vistos por nós os negros, as mulheres, pessoas das camadas populares [...] e assim por diante (FISCHER, 2002b, p. 2).

A mídia utiliza estratégias para “ensinar como fazer” determinadas tarefas cotidianas, determinadas operações com o próprio corpo, determinadas mudanças no cotidiano familiar. Fischer (2001) elabora que se os discursos sobre como devemos proceder, como devemos ser e estar nesse mundo, produzem-se e reproduzem-se nos

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diferentes campos de saber e práticas sociais, talvez se possa afirmar que adquirem uma força particular quando acontecem no espaço dos meios de comunicação. As “dicas” médicas e psicológicas, comunicadas através de especialistas, ao se tornarem presentes nos espaços dos diferentes meios de comunicação “não só ampliam seu poder de alcance público como conferem à própria mídia, ao próprio meio, um poder de verdade, de ciência, de seriedade” (FISCHER, 2001, p. 50, grifo da autora).

Um leitor “novo em folha” e cheio de energiaA fim de identificar o enquadramento de uma reportagem, Entman (apud

GUTMANN, 2006) apresenta cinco elementos: palavras-chave, metáforas, conceitos, símbolos e imagens enfatizadas na narrativa jornalística. Isso significa que o framing pode ser identificado através da observação de imagens visuais e palavras repetidas insistentemente no texto midiático, que tornam algumas ideias mais aparentes que outras. Com base nesse conceito e nas formulações de Fischer (2002a), pretende-se identificar os enquadramentos4 dos temas através do quadro disciplinar e da informação didática. Por quadro disciplinar, entendemos os termos textuais que dizem respeito à educação e disciplina porque “remetem à organização, hierarquização, doação de valores (tudo que as disciplinas querem)” (GOMES, 2003, p. 96). Informação didática refere-se ao conjunto de elementos no texto que colocam o leitor na posição de quem deve ser cotidianamente

4 Para perceber como são construídos os textos na revista Vida Simples, nos limitamos à utilização da noção de framing da mídia.

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ensinado, reproduzindo práticas nitidamente “escolarizadas”.A capa da edição de março da Vida Simples traz os dizeres: “Liberdade – É a coisa

mais importante da vida. Aprenda a reconhecer aquilo que aprisiona você (e siga livre, leve e solto)”. A reportagem tem o título “Caminhos da liberdade” e traz a promessa: “Como reconhecer o que ainda nos amarra? E o que é realmente ser livre? Algumas das repostas para essas perguntas fundamentais em nossa vida podem estar por aqui”.

Essa promessa indicada pelo subtítulo da matéria é disciplinar porque não só diz que a matéria pode responder dúvidas, mas também as classifica como fundamentais. Além disso, os conselhos e filosofias de vida apresentados na reportagem são comumente comparados com pessoas “comuns” e generalizados como sendo preocupação de todos, como nos casos: “Tagore era como qualquer um de nós: querendo ser livre mas ainda assim amando e desejando aquilo que o agrilhoava” e “O belo e famoso soneto da poeta americana Emma lazarus, [...], aos pés da Estátua da Liberdade, em Nova York, dá as boas-vindas aos fracos, miseráveis e desesperados como nós, que desejam ser livres”. Os seguintes trechos acabam transmitindo juízos de valor e determinando a leitura: “disse ele em sua crueza cristalina”, “sua resposta para essa pergunta é muito estranha”. As generalizações e os juízos de valor são disciplinares porque bloqueiam a contra-argumentação, como quando se utiliza: “é evidente” ou “como não poderia deixar de ser”. Essas são expressões dos shifters de organização, ou seja, de uma referencialidade ao próprio enunciador enquanto organizador de um discurso coerente, verossímil e verificável. Tais termos

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marcam a inclusão do repórter no texto, e se os “juízos nos remetem à pessoa do discurso, retirando-a da impessoalidade simulada, ainda mais mostra a presença de um shifter de organização” (GOMES, 2003, p. 99).

A reportagem central dessa edição utiliza uma estratégia diferente: após lermos que existem muitos caminhos na vida e, com liberdade, podemos escolhê-los entre as mais variadas opções, o próprio texto nos oferece, ou nos incentiva a ter, a “liberdade” de ler a reportagem na ordem que desejarmos.

Você terá agora a liberdade de escolher a maneira como quer ler este texto. Se desejar saber qual o significado da metáfora do camelo, do leão e da criança, vá em frente. Se quiser participar de uma reunião no Deux Magots, o café dos existencialistas em Paris, para saber o que Sartre achava da liberdade, pule três blocos de texto. Se desejar ler este artigo de trás pra frente, vá até o fim e leia os blocos de texto na ordem inversa (VIDA SIMPLES, março, p. 23, grifos nossos).

Claro que essa ordem de leitura, mesmo aparentando liberdade, é uma ordem possível, pré-determinada e, portanto, remete à organização. Na linguagem autoritária, o destaque é o modo verbal imperativo, que é comum no texto da Vida Simples e aparece nas partes textuais que trazem a “liberdade” para o leitor realizar o percurso das páginas reiterando a maneira como se espera que a leitura da reportagem seja feita pelos receptores: “Se você quiser conhecer a frase que fica nos pés da Estátua da Liberdade, vá em frente. Se quiser parar para reler algum trecho do texto antes de terminá-lo, faça isso sem pressa, sem afobação” (VIDA SIMPLES, março, p. 29, grifos nossos).

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As informações didáticas permeiam a reportagem e surgem como forma de explicar a informação ou de o repórter se inserir no texto: “Pode ser por meio da arte, como Picasso, que subverteu os cânones dos critérios artísticos aceitos até sua época (não sem antes dominá-la muito bem, por sinal)”. Além disso, o didatismo pode ser observado através da repetição de estruturas que causam identificação com o leitor, como termos da oralidade ou expressões usadas no cotidiano: “Uma metáfora, com suas imagens, é muito mais forte que mil palavras”. Outro exemplo do didatismo presente na reportagem são as perguntas que interagem com o leitor – que nesse caso também mostra a relação dos “especialistas/mestres” com as pessoas “comuns”: “Mas será que nós, pobres mortais, também a atingimos?

Ao longo do texto, quatro figuras diferentes são criadas por uma espécie de papel de dobradura: na primeira página a figura tem uma forma fechada e na última página o mesmo material dá a forma a um boneco, com ideia de movimento, permitindo ao leitor a reflexão de que ao longo do texto ele está se livrando daquilo que o aprisiona, o que está em total sintonia com o objetivo da reportagem. A leitura das figuras (ou fotos) é guiada pelas legendas, também didáticas, afinal “a foto não é nada sem a legenda que diz o que é preciso ler” (BOURDIEU, 1997, p.26).

A capa da edição de agosto estampa: “DESPERTE SUA ENERGIA – Você quer uma vida com mais vigor, alegria e criatividade? É só entrar em contato com seu lado criança (e nós vamos ensinar direitinho como fazer isso). Oba!”. A reportagem “Iuuuuuupi” tem como

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subtítulo: “A vida está boa? Você está com vontade de sair pulando feito um potrinho no campo? Então sua criança interior está no auge da felicidade. Mas, se não estiver, tem jeito de despertá-la, mesmo sem precisar empinar pipa, tomar sorvete ou puxar o cavanhaque do chefe”.

A introdução fortalece nossa ideia de que a revista usa informação didática, ensinando modos de ser e estar para os leitores, porque a própria chamada de capa busca atrair o leitor em função desse propósito, ao prometer: “nós vamos ensinar direitinho como fazer isso”. O texto parece ser construído em etapas e, cada vez que uma é concluída, surge a próxima – o que lembra uma prática escolarizada. Por exemplo, após a fala da especialista sobre quem é a criança interior, a repórter escreve: “Bom, agora que já sabemos quem ela é, como vamos acessá-la em nossa memória?” e, após apresentar alguns “exercícios”, lemos: “Agora que já sabemos entrar em contato com a criança interna, temos de saber para que serve isso, afinal”. Para finalizar a “lição”, o texto retoma o que foi tratado até então (didatismo) e promete que o assunto tem diversos desdobramentos (disciplina):

Então tá combinado: toda vez que você apostar em realizar um sonho (mesmo os atuais), tiver certeza de que o futuro vai ser benéfico e se sentir radiante e feliz, já vai saber que estará expressando sua criança interior [...]. Isso só para começar o jogo, porque tem muito mais coisas interessantes a respeito desse assunto, se a gente quiser se aprofundar. Da próxima vez que passar por uma seção de livros que falem da criança interior, juro que dou mais uma olhadinha e conto (VIDA SIMPLES, agosto, p. 29, grifos nossos).

A chamada de capa dessa edição, assim como a maioria delas, apresenta uma promessa,

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o que remete à disciplina porque funciona como uma palavra de ordem. Os verbos no modo imperativo são amplamente verificados, como no exemplo abaixo que, além de disciplinar, enfatiza os ensinamentos possíveis com a leitura da reportagem:

Existem várias maneiras de contatar sua criança interna, e uma das melhores é a mais direta. Isto é, sempre que tiver chance, torne-se uma criança, desperte em você mesmo o menino ou menina que já foi um dia. Um grande mestre nos ensina como fazer isso: Se estiver na praia, comece a catar conchinhas ou a fazer desenhos na areia; se estiver no jardim, brinque com o cachorro, observe com atenção formigas, passarinhos e borboletas. Sempre que puder estar com crianças de verdade, misture-se a elas e deixe de ser adulto. Deite-se no gramado, como uma criança pequena aproveitando o quentinho do sol. Corra pelado, como a meninada faria [...] (VIDA SIMPLES, agosto, p. 24, grifos nossos).

Os questionamentos que fazem o leitor refletir aparecem já na capa e são eles que formam o primeiro parágrafo, juntamente com as impressões do repórter, que condicionam a leitura e a reflexão:

Se um marciano recém-chegado à Terra perguntasse a você o que é felicidade, que cena você escolheria para mostrar esse sentimento em seu mais puro estado? Um casal se unindo numa igreja? Um jovem recebendo seu diploma? [...] Todas essas imagens expressam diferentes formas de realização, mas eu preferiria levá-lo para a beira de um rio para ver crianças brincando de pular na água, naquele tchibum sem igual na vida [...] Tem alegria maior, mais pura que essa? (VIDA SIMPLES, agosto, p. 23, grifos nossos).

Os questionamentos são ainda mais usados para interagir com o leitor, dando a

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impressão de querer fazê-lo enxergar o que poderia passar despercebido, e mostrar que as mudanças propostas são possíveis:

Se a gente reparar bem, ao nomear essas qualidades estaremos falando exatamente dos componentes básicos que garantem a felicidade. Não tem dinheiro no meio, tem? Também não tem segurança e estabilidade, tem? Esses momentos, ora veja, também não dependem nem de nada nem de ninguém. Muito menos [...] de como a coisa deve ou não deve ser, essa mania de gente adulta. Porém, vamos ter de admitir: todo mundo sabe que não é mais criança. Temos outras necessidades, compromissos e responsabilidades. [...] Mas, hummm, será que não dá mesmo para conciliar as duas coisas? Será que não dá para buscar mais leveza e frescor, espontaneidade e alegria ou aventura e irreverência em nossas vidas? O mais legal dessa história é que dá, sim (VIDA SIMPLES, agosto, p. 23, grifos nossos).

Em muitos momentos, as dicas dos especialistas parecem conselhos, não só para o leitor, mas também para a repórter, cujas palavras têm ar de confissão – e acabam transmitindo um valor de que as crianças quietinhas são menos espertas (o que é disciplinar e marca um shifter de organização), como no exemplo seguinte:

Você era uma criança levada? Mandona? O dono da bola ou o que escolhia o pessoal na hora de jogar queimada? Ou era aquela criaturinha tímida e sensível com o cobertorzinho na mão e o último a ser escolhido na hora do jogo de vôlei? Morro de vergonha de dizer que era do segundo time, o das crianças quietinhas. Daquelas que costumam ser passadas para trás pelas mais espertas, sabe? Então, uma das questões cruciais que tinha para a psicoterapeuta junguiana Sônia Belotti era exatamente essa: a criança interior com que tenho de entrar em contato é aquela menina que sempre preferiu seu mundo interno e as paisagens da natureza? São as crianças que já fomos na

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vida? (VIDA SIMPLES, agosto, p. 24, grifos nossos).

A repórter continua a se inserir na sequência do texto, talvez a fim de tornar mais prático o conselho aparentemente subjetivo da psicanalista: “Sônia me aconselhou também a fazer uma meditação usando visualização: imaginar a garota que fui, no meu quarto, ou envolvida com minha brincadeira favorita”. O texto prossegue: “Quando essas imagens estivessem nítidas em minha mente, ela me disse para olhar para essa criança em seus olhos e abraçá-la, totalmente disposta a aceitá-la de coração tal como ela é”. Além de apresentar o conselho, a repórter relata sua vivência ao praticá-lo, de forma a ser um exemplo: “Com uma certa resistência, fui fazer a experiência da tal visualização. Emocionei-me bastante, percebi o quanto gostava dessa menina de pijaminha de flanela que eu tinha sido”.

Como viver e estarSe a linguagem disciplinar ressalta os ensinamentos possíveis com a leitura do texto

e se as informações didáticas também buscam esse propósito, adotamos a perspectiva de que a revista Vida Simples se utiliza de enquadramentos pedagógicos, na medida em que ajuda a construir discursos e produzir significados, sendo um lugar de aprendizado sobre a vida que levamos, ou que deveríamos levar.

Essa didaticidade encontrada, no entanto, se mostra midiática, ou seja, não perde o seu objetivo final de informar. Salientamos essa questão com base em uma reflexão

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proposta por Charaudeau (2007), de que o jornalista não pode visar a um discurso perfeitamente didático, mesmo que determinada intenção pedagógica o atravesse e que se possa encontrar grande quantidade de traços didáticos em seu discurso, pois as exigências de organização do saber no discurso didático, sua construção que prevê provas de verificação e de avaliação são de fato incompatíveis com uma informação que deve captar o público em geral – a menos que se especifique o que é didaticidade e que se conclua pela existência de uma didaticidade midiática diferente da escolar, universitária, administrativa.

Vida Simples utiliza a didaticidade na maneira como enquadra seus textos, ou seja, o repórter organiza as informações a partir de um quadro que se mostra didático, no sentido de ensinar aos leitores como ser e estar. A utilização dessas estratégias que consideramos pedagógicas pode ser inconsciente: o repórter apenas as seleciona porque é um método do qual que os leitores gostam e, portanto, vende.

Um tal enquadramento não é necessariamente um processo consciente por parte dos jornalistas; pode muito bem ser o resultado da absorção inconsciente de pressuposições acerca do mundo social no qual a notícia tem de ser embutida de modo a ser inteligível para o seu público pretendido (GAMSON apud HACKETT, 1999, p. 121).

De qualquer forma, essas estratégias, a nosso ver, tornam o enquadramento predominante da revista pedagógico, e direcionam tanto o trabalho dos jornalistas quanto a audiência na interpretação desse conteúdo. Até porque os assuntos tratados,

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como vingança, insegurança, culpa, são bastante abstratos no nosso dia-a-dia, o que aumenta a sensação de que a cada página estamos aprendendo lições. Aí estaria um dos significados do enquadramento e da função interpretativa, já que os media apresentam frequentemente informações de acontecimentos que ocorrem fora da experiência direta da maioria da sociedade.

Os media [...] apresentam a primeira, e muitas vezes a única, fonte de informação acerca de muitos acontecimentos e questões importantes. Mais ainda, dado que a notícia está repetidamente relacionada com acontecimentos que são “novos” ou “inesperados”, aos media cabe a tarefa de tornar compreensível o que chamaríamos de “realidade problemática” (HALL et al, 1999, p.228).

Longe de tentar entender a mídia de forma unilateral, a pesquisa busca trazer para discussão os modos de vida produzidos pelos meios de comunicação, as significações que são construídas através de seus textos, percebendo como os dispositivos midiáticos operam na relação com a sociedade. Buscamos perceber a prática jornalística como uma construção e uma forma de “organizar discursivamente”, o que, segundo Gomes (2000), é a prática jornalística por excelência.

Na revista Vida Simples, a observação do repórter aparece a cada linha, a cada relação de uma história fictícia com o mundo real, a cada opção de se iniciar o texto por um viés e não outro. Enquanto os veículos que tratam de pautas com ligação factual podem ser agendados por acontecimentos cuja repercussão se impõe à vontade da equipe e o leitor espera acompanhar o fato, a revista pode decidir “tudo”, nada se impõe a ela e o

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leitor busca ser surpreendido. É a revista que ordena os acontecimentos, considerando, como Hackett (1999) que um acontecimento é uma ocorrência utilizada criativamente com propósitos de demarcação temporal: “as ocorrências tornam-se acontecimentos de acordo com a sua utilidade para um indivíduo (ou organização) querendo ordenar a experiência” (HACKETT, 1999, p. 108). Assim, torna-se mais claro perceber que as notícias são o “produto final de um processo complexo que se inicia numa escolha e seleção sistemática de acontecimentos e tópicos de acordo com um conjunto de categorias socialmente construídas” (HALL et al, 1999, p. 224).

Com esse artigo, objetivamos mostrar que as escolhas de palavras e imagens nos textos jornalísticos – que podem parecer naturais, ou meras escolhas – são, na verdade, centrais para entender o modo como determinada notícia enquadra e interpreta os eventos. Pensamos, pois, que a mídia não apenas veicula, mas também constrói discursos e produz significados. É por isso que, conforme Fischer (2005), conscientemente ou não, teremos na TV, nas revistas de ampla divulgação, nos programas de rádio, um lugar de aprendizado a respeito de nós mesmos, da vida que levamos, um aprendizado de como vamos receber e ler pessoas classificadas para nós como heróis ou vilões, cidadãos corretos ou como transgressores da ordem. Nesse sentido, é pertinente refletir com a elaboração de Soares (2007) de que o enquadramento é um viés implícito da representação, ou seja, “as intervenções invisíveis do autor de um texto são potencialmente capazes de influenciar de maneira sutil as percepções sobre pessoas, gêneros, grupos sociais e categorias” (p.

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51). Adotamos com o autor a percepção de que a noção de enquadramento serve para analisar como informações pontualmente corretas e verificáveis podem ser selecionadas, omitidas ou atenuadas de modo a produzirem representações diferentes de uma mesma situação.

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VIDA SIMPLES, Editora Abril: Edição 69, agosto 2008.

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A Amazônia, uma capa, um anúncio e três leituras1

Norbert HEINZ2

Márcio MACEDO3

Ariane PEREIRA4

As discussões relacionadas aos problemas ambientais começaram a ganhar força na segunda metade do século XX, quando o discurso ecológico se tornou parte importante do discurso político em todo o mundo, principalmente a partir da década de 70 onde surgiram os primeiros grandes documentos e fóruns internacionais para a discussão dos impactos da ação humana no meio ambiente (Bonfiglioli, 2004).

Nesse cenário, os Meios de Comunicação de Massa (MCM) passaram a ter um importante papel na difusão dessas informações relacionadas ao meio ambiente. Afinal, por definição, esta tem “um papel mediador importante a desempenhar para documentar as novas realidades e promover um fórum para discuti-las” (Dizard Jr., 2000, p. 274). Assim, a temática ambiental ganhou força, sobretudo nos últimos anos, tanto na Publicidade quanto no Jornalismo.

1 Texto-base originariamente apresentado no Intercom Sul 2009, realizado na Furb, Blumenau (SC).2 Estudante de Biologia da Unicentro e aluno e Iniciação Científica.3 Publicitário, mestrando em Comunicação e Linguagens pela Universidade Tuiuti do Paraná, professor efetivo do Departamento de Comunicação Social da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro).4 Jornalista, mestre em Letras, professora efetiva do Departamento de Comunicação Social da Universidade Estadual do Centro-Oeste (Unicentro).

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Neste último, as matérias relacionadas ao efeito estufa, ao aquecimento global e ao papel da Amazônia na reversão do atual quadro de degradação ambiental passaram a ser veiculadas com bastante freqüência pelos jornais, revistas, sites de conteúdo, rádio e telejornais. De tal maneira que o chamado “jornalismo ambiental”, hoje, é considerado, segundo Alves (2002), uma tendência irreversível na imprensa mundial.

Um dos fatores possíveis para esta “tendência” é que se “a divulgação de notícias está intimamente relacionada à mudança ou reforma de crenças que redundem em atitudes que podem ou não se converter em ações de diversas amplitudes”, como afirma Hernandes (2006, p. 18), - e a questão ambiental passa pela conscientização e pela mudança de hábitos do cidadão comum -, o tema não pode ficar restrito aos corredores das instituições de pesquisa.

Porém, a divulgação de pesquisas científicas em veículos jornalísticos voltados para leigos ainda é controversa. A maioria das críticas, quando se fala em Jornalismo Ambiental, se dá quando os assuntos abordados são o Efeito Estufa e o Aquecimento Global, temas deste estudo. Muitos pesquisadores apontam erros na maneira como esses conceitos são definidos pela imprensa em geral.

Se a preocupação sobre as questões ecológicas e ambientais evoluiu por vários caminhos diferentes se intensificado a partir dos anos 60 e 70, onde surgiram os movimentos ecológicos, é apenas em meados do século XX que estas questões passaram a chamar a atenção das empresas como uma possível fonte de vantagem competitiva

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(Pereira; Ayrosa, 2004), passando assim a figurar também na Publicidade.Com o surgimento da ecologia política que, segundo Coelho (2006), pode ser

compreendida como uma inter-relação dialética entre a sociedade (relações sociais de produção) e os ciclos ecológicos (apreendidos a partir da noção de ecossistema), a meta pela sustentabilidade tornou-se um discurso obrigatório nas empresas – e, conseqüentemente nas propagandas – que disputam um mercado cada vez mais competitivo.

No Brasil, a Amazônia tornou-se uma grande oportunidade para as empresas patrocinarem projetos, ONGs, reservas e áreas de preservação com o objetivo de mostrarem sua responsabilidade ambiental, que esboçam em propagandas emocionantes. Tolmasquim (2003), no entanto, enfatiza que há dois tipos de abordagem para o conceito de desenvolvimento sustentável: uma econômica global e outra ambiental ou ecológica.

Assim, o que a grande maioria das empresas fazem é aplicar a sustentabilidade econômica pensando estar ambientalmente corretas. Também existem aquelas empresas que programam apenas reformas simbólicas e medidas cosméticas (a chamada “lavagem verde”) visando responder à legislação ambiental e usá-las como propaganda institucional (Vinha, 2003). Por outro lado, aproveitando-se do marketing verde ou ambiental, algumas empresas incorporaram uma vasta gama de atividades, incluindo a elaboração e modificação de produtos, mudança nos processos produtivos, nas embalagens e até no perfil da propaganda (Pereira: Ayrosa, 2004).

O problema é que a publicidade pressiona na direção contrária. Ela nos leva para o

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consumo crescente, para dois tipos de desperdício: o ambiental e o das relações humanas; associa nossa felicidade ao consumo de mercadorias (Almeida Jr; Andrade, 2007). Apesar dos publicitários conseguirem desenvolver uma excelente Green Washing ou “maquiagem verde” pregando a sustentabilidade (Ferraz, 2008), e apesar desse crescente interesse por parte da sociedade e das empresas em geral, a preocupação parece não ter afetado de forma significativa o comportamento de compra dos consumidores (Pereira; Ayrosa, 2004).

Nesse sentido, o de pensar o meio-ambiente em seus “retratos” publicitários e jornalísticos, este estudo toma como corpus a revista semanal de informação IstoE em suas edições publicadas no período compreendido pelos meses de janeiro a junho de 2008. A proposta inicial é identificar edições que tenham como chamada principal de capa a Amazônia, sobretudo priorizando a problemática do desmatamento da área. Depois, verificar-se-á se a mesma temática era abordada em algum anúncio publicado nas outras páginas da revista.

Dessa maneira, o exemplar que atendeu aos pré-requisitos acima estabelecidos foi o de número 2.012, de 28 de maio de 2008. Capa com chamada principal destacando: “A Amazônia é nossa! Como e porque o Brasil deve reagir de imediato a nova pressão da comunidade internacional que quer tomar o controle do pulmão do planeta”. Já ao virar a página, saindo da capa e buscando o conteúdo interno, o leitor deparava-se com o anúncio publicitário do Banco Bradesco que, também, abordava a questão do desmatamento na

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Amazônia. Anúncio este que tem como título: “Nós ajudamos a criar uma fundação na

Amazônia. Para que a floresta valha mais de pé que derrubada”. O texto complementar diz: “A maneira mais realista de encarar as motosserras na Amazônia é admitir que a procura por lucro fácil, a necessidade e a falta de informação são às vezes mais poderosas que a razão. E, a partir deste entendimento, atacar o problema de um ângulo novo. E isso que a Fundação Amazonas Sustentável está fazendo: - Programa Bolsa Floresta: reconhecer, valorizar e compensar as populações tradicionais pelo seu papel na conservação das florestas; - 34 Unidades de Conservação, que cobrem 16,4 milhões de hectares e onde vivem 9 mil famílias. Para saber mais sobre essa iniciativa única, acesse www.fas-amazonas.org. Inibir o desmatamento ilegal de maneira inteligente é mais uma ação concreta do Banco do Planeta por um modo de vida sustentável. Banco do Planeta. Investindo, apoiando e informando.”.

Por fim, localizado esse quadro, a proposta deste estudo é analisar textos de capa e reportagem interna (ou seja, discurso jornalístico); e texto publicitário a partir de óculos teóricos diferente: o da biologia, com vistas a verificar a veracidade das informações relacionadas ao meio-ambiente publicadas; o da publicidade, objetivando compreender a relação agenda jornalística-publicidade; e o da análise do discurso de linha francesa visando empreender gestos de interpretação de aproximação e diferenciação entre os discursos jornalísticos e publicitários.

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O texto jornalístico da capa de IstoÉ a partir da perspectiva da biologiaAfirmar que a Amazônia é o “pulmão do mundo” é um equivoco. Segundo Boff

(1996), a Amazônia é um ecossistema auto-sustentável, portanto o que ela produz ela mesma consome, isso quer dizer que nas florestas tropicais (como a Amazônia) o oxigênio produzido pela fotossíntese durante o dia (fase clara) é consumido em grande parte à noite (fase escura) pela respiração das mesmas. Apenas florestas primárias que ainda estão em desenvolvimento produzem mais oxigênio do que consomem.

Abundantes nos ambientes aquáticos, as algas são responsáveis pela maior parte da produção de oxigênio molecular disponível no planeta a partir da fotossíntese (Lelis, 2006). Dessa forma, produzem alimento e oxigênio para os seres vivos aquáticos e também de outros ambientes. Portanto, a maior parte da produção do oxigênio que respiramos provém de algas e não de florestas tropicais como a Amazônia.

Além da produção de oxigênio, Raven (2007) ressalta a importância das algas na absorção do CO2 lançado na atmosfera pelas atividades do homem:

as algas exercem importante papel no ciclo do carbono. São capazes de transformar o dióxido de carbono (CO2) – um dos assim chamados “gases de efeito estufa” que contribuem para o aquecimento global – em carboidratos, por meio da fotossíntese, e em carbonato de cálcio, pela calcificação. Grandes quantidades de carbono orgânico e carbonato de cálcio são incorporadas pelas algas e têm sido transportadas para o fundo dos oceanos. Atualmente, o fitoplâncton marinho absorve cerca de metade de todo o CO2 resultante de atividades humanas, tais como a queima de combustíveis fósseis, sobretudo carvão. (RAVEN et al, 2007. p. 318).

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Entretanto, não se deve pensar que por a Amazônia não ser o “pulmão do mundo” ela possa ser desmatada sem nenhuma preocupação. Ela continua a ter um papel fundamental na distribuição de chuvas não só no Brasil, mas também em outros países:

estudos recentes mostram que o sumiço da floresta alteraria a precipitação das chuvas em várias regiões do globo, entre elas a Bacia do Prata, a Califórnia, o sul dos Estados Unidos, o México e o Oriente Médio, causando perturbações imprevisíveis à agricultura dessas regiões. No Brasil não seria diferente. Por meio da evaporação, a Amazônia produz um volume de vapor d’água que responde pela formação de 60% da chuva que cai sobre as regiões Norte, Centro-Oeste, Sudeste e Sul do Brasil. A diminuição da chuva teria um impacto direto sobre a produtividade agrícola em estados como Mato Grosso, Goiás e São Paulo. Os rios que abastecem o reservatório da Hidrelétrica de Itaipu teriam sua vazão sensivelmente diminuída, causando um colapso energético no país. (http://geografando.multiply.com/journal, acesso em 13 de abril de 2009).

Assim, a leitura de um breve texto jornalístico que é a chamada de capa, porém importantíssimo já que este tem a incumbência de chamar a atenção para o texto interno como um resumo deste, já revela um erro na apuração e na redação de um assunto relacionado ao meio ambiente, crítica tecida com freqüência pelos pesquisadores em relação ao jornalismo ambiental.

A Amazônia “jornalística” e “publicitária” a partir da ótica da análise do discursoO jornalismo – para ser respeitado, ético e ter credibilidade –, ainda hoje, precisa

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seguir normas que surgiram na década de 20 do século passado: o “bom” e “verdadeiro” texto jornalístico, ensinam os manuais de redação e os livros de técnicas de reportagem, deve ser imparcial, isento e objetivo. Preceitos estabilizados no período posterior à 1. Grande Guerra Mundial, período de construção e ascensão do capitalismo (cenário que marcou o início do jornalismo como empresa voltada a gerar lucros e a inauguração da indústria cultural de massa) e que se mantém até os dias de hoje. Para cumpri-los uma das principais recomendações é ouvir e/ou citar todos os lados envolvidos em determinado fato.

Preceitos esses válidos sobretudo para o jornalismo do dia a dia com ares preponderantemente informativos. No caso de revistas de informação semanais, como IstoE, que praticam/exercem jornalismo interpretativo a isenção, em alguns momentos, é deixada de lado para que a publicação mostre que tem lado, ou seja, que assume uma opinião. Porém, na tentativa de ganhar/captar a credibilidade de seus leitores – isto é, de convencê-los a tomar partido e fazer parte do “mesmo lado” - a citação de discursos proferidos por diversas fontes é mantida.

Heterogeneidade de discursos que evidenciada no texto jornalístico apenas reflete uma prática cotidiana, segundo o princípio da heterogeidade discursiva presente na análise do discurso de linha francesa. Afinal, como afirma Indursky, “não é possível conceber um discurso de modo isolado. Um discurso sempre está em relação com outros discursos. [...] Um discurso é heterogêneo porque sempre comporta constitutivamente

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em seu interior outros discursos” (1997, p.196).Concordando com esse posicionamento e pensando a heterogeneidade do

discurso jornalístico de interpretação ou opinião me deparei, logo de início, com uma dúvida. Nesse caso, me perguntava se esses discursos seriam discursos do(s) outro(s) mesmo ou, apenas, falas do narrador disfarçadas?

Questionamento que me pareceu ter uma resposta clara, simples e, até mesmo, óbvia depois da leitura de alguns autores que se posicionam sobre o discurso relatado. Para Benites “o texto citado, mesmo que literalmente repetido, apresenta-se como uma imagem desprovida de grande parte de seu entorno e adquire, por isso, significado diferente ou até mesmo oposto” (2002, p.57). Dessa maneira, segundo a autora, “tanto o discurso direto quanto o discurso indireto podem ser manipulados pelo locutor citante” (p.60). Nessa mesma linha de pensamento, Authier afirma que “o discurso direto cita as palavras de (l), enquanto o discurso indireto as traduz; nem o primeiro nem o segundo falam com as palavras do outro” (AUTHIER apud INDURSKY, 1999, p.199).

O discurso relatado divide-se em discurso direto, discurso indireto e discurso indireto livre. Porém, para este estudo, interessa o primeiro deles que, segundo Indursky, é “considerado usualmente como a citação textual do discurso de um outro locutor (l)” (1999, p.198).

Porém, a transparência deste tipo de discurso relatado, a impressão de que a recuperação da fala do outro é fiel, não tendo sofrido transformações, é apenas uma

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ilusão. Afinal, ao trazer o discurso do outro para dentro de seu discurso, o enunciador está criando uma nova situação enunciativa, assim como o faz no discurso indireto. Ou seja, nada garante que a palavra primeira é preservada e não distorcida.

O DD é uma armadilha, uma ficção que remete ao conflito constitutivo do DD: (L) apaga-se diante de um enunciado textualmente reproduzido e, ao mesmo tempo, [...] corta todos os vestígios da situação de enunciação que está sendo relatada, na qual o enunciado se inscreve e é dotado de sentido. (AUTHIER apud INDURSKY, 1999, p.199)

Nesse sentido, Maingueneau afirma que o DD “simula restituir as falas citadas e se caracteriza pelo fato de dissociar claramente as duas situações de enunciação: a do discurso citante e a do discurso citado” (2003, p.140, grifo do autor). Uma segunda reflexão desse mesmo autor sobre o discurso direto mostrou-me que as dúvidas iniciais sobre o discurso citado, de fato, não se justificavam:

O discurso direto não relata necessariamente falas pronunciadas efetivamente. [...] Mesmo quando o DD relata falas consideradas como realmente proferidas, trata-se de uma encenação visando criar um efeito de autenticidade: eis as palavras exatas que foram ditas, parece dizer o enunciador. (MAINGUENEAU: 2003, p.141, grifos do autor)

E é justamente este “efeito de autenticidade” que, acredito, justifica as citações de discursos outros, entre aspas. Afinal, trazer o discurso do outro “fielmente” reforça a idéia de que se conta/relata/narra, apenas, a verdade. Hipótese que ganha mais força com uma

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nova retomada de Maingueneau. Afinal, segundo este autor, a escolha do DD está ligada ao gênero do discurso em questão já que com este modo de relatar o discurso do outro pode-se:

- criar autenticidade, indicando que as palavras relatadas são aquelas realmente proferidas;- distanciar-se: seja porque o enunciador citante não adere ao que é dito e não quer misturar esse dito com aquilo que ele efetivamente assume; seja porque o enunciador quer explicitar, por intermédio do discurso direto, sua adesão respeitosa ao dito [...];- mostrar-se objetivo, sério. (MAINGUENEAU, 2003, p.142).

Esses quatro efeitos – já que o segundo divide-se em dois – que podem ser obtidos com o discurso direto são percebidos na reportagem analisada (os discursos (do) outro estarão destacados para facilitar que o leitor acompanhe a análise).

1. Autenticidade – ao recorrer ao DD o jornalista, sempre, quer demonstrar que está falando a verdade, no caso a afirmação de que “avançam na comunidade mundial as propostas para a internacionalização do maior tesouro verde do Brasil”. Exemplos:

- “três dias antes de o The New York Times publicar seu artigo, o jornal inglês The Independent, noticiando o pedido de demissão da ministra do Meio Ambiente, Marina Silva, foi quem deu plantão sobre a Amazônia. E sem o menor pudor: ‘Uma coisa está clara. Essa parte do Brasil (a Amazônia) é muito importante para ser deixada com os brasileiros”.

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2. Não-aderência ao dito – ao contrapor dois posicionamentos, o da revista (“a certeza de que a Amazônia é nossa”) e o da imprensa internacional (“coro internacional que tem questionado a soberania do Brasil sobre a Amazônia”). Como:

- “seria muita ingenuidade acreditar que o conceituado jornal americano The New York Times abrisse espaço (...) sem que tivesse um objetivo editorial de maior alcance. Sob o título ‘De quem é a Amazônia, afinal?’, o texto assinado por Alexei Barrionuevo na edição do domingo 18 veio engrossar o coro internacional e dá seu recado logo no início, quando cita um comentário do então senador americano Al Gore em 1989 (...): ‘Ao contrário do que pensam os brasileiros, a Amazônia não é propriedade deles, pertende a todos nós’ ”.

3. Aderência ao dito – ao inserir citações que confirmam o pensamento de que outros países querem internacionalizar a Amazônia. Exemplos:

- “o francês Pascal Lamy, ex-comissário de Comércio da União Européia, é da mesma opinião: ‘as florestas tropicais como um todo devem ser submetidas à gestão coletiva, ou seja, à gestão da comunidade internacional’ ”.

- “como ressalta o The Independent, a Amazônia é uma poderosa reserva de recursos naturais. O diário espanhol El Pais também destaca que ‘o mundo tem os olhos postos nas riquezas da floresta’. E por isso que a soberania brasileira é questionada”

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4. Seriedade – o DD é utilizado como para, também, dizer: “essas falas não são minhas, sinal de que não digo sozinho. Assim, vocês – leitores – podem confiar em mim”. Como:

- “o novo ministro do Meio Ambiente, Carlos Minc, prefere não levar a sério o The New York Times e desqualifica a idéia de internacionalizar a região: ‘quem faz uma proposta dessas deveria passar por uma requalificação psicológica, tal o disparate que contém. Os donos da Amazônia somos nós’”.

- “felizmente, o Exército brasileiro está consciente do perigo. E diz estar preparado até mesmo para a possibilidade mais radical de uma intervenção militar. ‘Hoje, a Amazônia é nosso maior foco de preocupações com a segurança’, disse o ministro de Assuntos Estratégicos, Mangabeira Unger, em recente entrevista em Brasília”.

- “o ministro da Defesa, Nelson Jobim, não vê um risco imediato, mas ressalta que, apesar de não sermos beligerantes, saberemos nos defender. ‘Não há nenhum país ameaçando o Brasil, mas precisamos de uma força dissuasiva para remover a possibilidade de que aconteça uma invasão’”.

- “‘os militares projetam um conflito futuro, para daqui a 30 ou 40 anos, com um inimigo mais provável, os Estados Unidos’, diz o cientista político Paulo Ribeiro Rodrigues da Cunha, da Unesp”.

A reportagem, embora liste uma série de informações em relação à Amazônia, em

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nenhum momento trata desta como “o pulmão do mundo”, de tal maneira que a apuração do conceito não pode analisada. Além disso, este fato possibilita uma nova reflexão, não tratando desta temática específica, atendo-se a questão da internacionalização, a revista ao colocar na capa “o pulmão do planeta” e não “o pulmão do mundo”, como é recorrente, pode evocar ao Banco do “Planeta” do anúncio da duas páginas seguintes. O que pode sugerir uma possível ligação entre a agenda jornalística – que se pauta através dos acontecimentos – e a publicidade.

Uma leitura semiológica do anúncio publicitárioNa perspectiva semiótica derivada de Greimas, procuram-se compreender os

processos de construção do texto atentando para os mecanismos de geração dos sentidos. Importa analisar o plano de conteúdo de um texto em diferentes níveis de profundidade, partindo de um nível de significação mais abstrato (nível fundamental), passando por um nível intermediário (narrativo), para, finalmente, se chegar a um nível mais concreto (discursivo). A partir dessa análise sistemática em níveis, é possível evidenciar o funcionamento da significação no interior do texto.

Convém registrar o que Dondis (1997) fala sobre o “modo visual” que se configura, em linhas gerais, como a forma dos indivíduos de constituir e compreender elementos visuais expressos pelos mais variados canais, como as artes ou a publicidade, por exemplo.

O modo visual constitui todo um corpo de dados que, como a linguagem, pode ser

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usado para compor e compreender mensagens em diversos níveis de utilidade, desde o puramente funcional até os mais elevados domínios da expressão artística. “E um corpo de dados constituído de partes, um grupo de unidades determinadas por outras unidades, cujo significado, em conjunto, é uma função do significado das partes” (DONDIS, 1997, p.3).

Imagem também é texto. Segundo Barros (2004), o texto é objeto de estudo da semiótica. Pode ser um texto lingüístico, oral ou escrito como: poesia, romance, um editorial de jornal, uma oração, quanto um texto visual ou gestual como: uma aquarela, uma gravura, uma dança, uma peça publicitária.

O necessário para a análise de qualquer texto, seja ele formalizado de signos verbais ou não-verbais, é perceber sua tessitura, para a partir de suas unidades detectar o jogo de representações que estabelece entre o que é dito e o que é mostrado nas intenções persuasivas do locutor.

A distinção entre dizer e mostrar permite penetrar nas relações entre linguagem, homem e mundo: é sob esse aspecto que se torna possível falar de ideologia na linguagem. A enunciação faz-se presente no enunciado através de uma série de marcas. E por meio delas – marcas lingüísticas que são – que se poderá chegar à macrossintaxe do discurso. (KOCH, 1999, p.32)

Através das marcas presentes na peça publicitária analisada, é que se percebe o que elas dizem e o que mostram. “A semiótica tem por objeto o texto, ou melhor, procura descrever e explicar o que o texto diz e como ele faz para dizer o que diz” (BARROS, 2004,

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p.7 ). E “para construir o sentido do texto, a semiótica concebe o seu plano do conteúdo sob a forma de um percurso gerativo. A noção de percurso gerativo do sentido é fundamental para a teoria semiótica” (BARROS, 2004, p.9).

O percurso gerativo de sentido vai do mais simples e abstrato ao mais complexo e concreto. Ele é constituído de três etapas: significação como uma oposição semântica mínima; nível narrativo ou das estruturas narrativas, donde organiza-se a narrativa do ponto de vista de um sujeito; discurso, ou estruturas discursivas, assumido pelo sujeito da enunciação.

Como afirma Floch, o esquema narrativo é o “lugar onde se cruzam os diferentes percursos narrativos e se produz um desdobramento dos mesmos” (1993, p.14). A observação do esquema narrativo como modelo para a análise de enunciados narrativos é importante para o entendimento das ações e relações das organizações com a sua própria comunicação e, também, da relação das empresas com o seu público-alvo.

A análise de enunciados narrativos pressupõe o conhecimento dos níveis de organização narrativa que auxiliam no trabalho de compreensão do esquema narrativo. Os níveis apontados por Barros (2000) são o do percurso do destinador-manipulador, do percurso do sujeito e do percurso do destinador-julgador.

Para o que se propõe neste trabalho limita-se a mencionar o que a autora descreve como destinador-manipulador e o percurso que ele desenvolve. O destinador-manipulador tanto determina os valores que devem ser visados pelo destinatário, quanto

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dota o destinatário de valores modais necessários à execução de uma ação. Isso significa dizer que, no que se refere a uma marca, por exemplo, o destinador-manipulador provoca e seduz o destinatário à execução da ação que pode se converter no entendimento e na aceitação dessa marca para a aquisição de produtos ou serviços por ela representados.

O percurso do destinador-manipulador tem duas etapas, das quais se registra a de competência semântica, cuja relação entre destinador e destinatário envolve um fazer-crer, isto é, o destinatário necessita crer nos valores do destinador para se deixar manipular.

Na manipulação, o destinador propõe um contrato e exerce a persuasão para convencer o destinatário a aceitá-lo. O fazer-persuasivo ou fazer-crer do destinador tem como contrapartida o fazer-interpretativo ou o querer do destinatário, de que decorre a aceitação ou a recusa do contrato (BARROS, 2000). De forma ilustrativa afirma-se que, firmado o contrato, o destinador (empresa) tem o poder de dirigir as ações do destinatário (cliente) em relação à marca ou produtos que comercializa.

Toda relação de contrato pressupõe o que Fontanille (2001) chama de “fidúcia”, ou seja, é uma relação de confiança e de crença que se estabelece entre o destinador e o destinatário, onde um determina e o outro é determinado. A relação constitui ainda uma certa cumplicidade entre as partes.

A “lógica do contato” (Landowski, 1992) visa estabelecer relações que ligam mais ou menos íntima e duravelmente dois sujeitos (destinador e destinatário), e nesse

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sentido, se percebe que o contrato somente se concretiza nas extremidades do processo comunicativo, ou seja, entre o enunciador e o enunciatário.

No alto da primeira página do anúncio analisado tem-se um texto em negrito com os dizeres “Nós ajudamos a criar uma fundação na Amazônia. Para que a floresta valha mais de pé que derrubada”. A seguir novo texto explica os motivos pelos quais o Bradesco apóia o projeto de uma fundação que tem como objetivos emprestar dinheiro para que povos da floresta preservem e não desmatem a floresta amazônica; e criar unidades de conservação. Há, também, o endereço eletrônico da Fundação Amazonas Sustentável – www.fas-amazonas.org. O texto fecha com a seguinte frase “Banco do Planeta. Investindo, apoiando e informando”. Mais abaixo se encontra a logomarca da fundação e também do banco que patrocina a peça publicitária, Bradescompleto.

A imagem apresentada é de uma floresta devastada, em primeiro plano, com pedaços de madeira e troncos de árvore jogados, como se tivessem sido cortados para o contrabando. O tom da terra é marrom, sensação de terra arassada. Ao fundo percebe-se uma grande quantidade de floresta que ainda está em pé, intocada, mas que transmite a sensação de que pode ser derrubada a qualquer momento se alguma coisa não for feita para conter a devastação da Amazônia.

A segunda parte da peça publicitária não apresenta textos, exceção feita para a assinatura Banco do Planeta que aparece na parte inferior direita da peça. Nesta segunda peça continuamos vendo uma terra devastada pela derrubada de árvores, pedaços de

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pau jogados, tocos de árvores torcidos e a terra ressecada. Ao fundo ainda podemos ver que a floresta continua de pé. Mas o que se sobressai é uma grande montanha, na forma arredondada que lembra o globo terrestre, porém formado totalmente pela junção de centenas de motosserras, machados e serrotes que remetem nossa imaginação a pensar que são milhares de equipamentos utilizados para a devastação da floresta Amazônica. Nas duas peças o céu aparece azulado, mas uma cor bastante suave e com muitas nuvens.

As cores preponderantes da peça são tons metálicos, que dão sensação de ausência de ar, de coisas pesadas e que não têm possibilidade de serem restauradas.

Toda a construção da peça é feita para reforçar a proposta de criação de uma fundação para proteção da floresta amazônica, de uma forma sustentável, proporcionando ao homem que vive da floresta uma forma nova de encarar a sua sustentação sem agredir ou derrubar de maneira desordenada o local em que vivem.

Ao associar seu nome a uma causa como a da conservação a floresta amazônica, o Bradesco reforça seu posicionamento de ser um banco completo para todos os seus clientes e agora, completo também para a conservação do maior patrimônio brasileiro.

Fim de papoEste estudo não teve, em nenhum momento, pretensão de apresentar conclusões

ou aspectos definitivos acerca de qualquer questionamento. A proposta inicial era – e continua sendo – apresentar a partir de uma revista, sua capa, texto de capa, texto interno e anúncio com temática igual a da chamada principal, diversidade de olhares que

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demonstrassem as inúmeras possibilidade de reflexão acerca da mídia e dos assuntos por ela agendados em suas reportagens e anúncios.

Dessa maneira, nosso diálogo – jornalismo-publicidade-biologia e autores-leitores – possivelmente prosseguirá em outros estudos. Sempre buscando a multiplicidade de gestos de interpretação e tendo como pretensão apontar trilhas diferentes a serem seguidas pela pesquisa em Comunicação que, como esta, mostra-se heterogênea.

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Os editores de moda “em revista”: um estudo de caso sobre o site Erika Palomino e a revista Elle1

Ana Marta Moreira FLORES2

Daniela Aline HINERASKY3

Cada vez mais, a supremacia da lógica midiática configura a sociedade contemporânea, tendo em vista o papel estratégico dos meios comunicacionais na vida das pessoas, ao informar, atualizar ou agendar. No campo da moda, a mídia é um espaço de exposição/difusão, não apenas de coleções sazonais de roupas, mas de tendências, modismos, estilos, comportamentos. Os veículos de comunicação de massa procuram “traduzir” a moda em suas multiplicidades, através da linguagem escrita e/ou audiovisual, de acordo com suas especificidades e o segmento a ser atingido (uma revista ou programa de TV especializada da área, uma revista feminina, um portal online, um blog, um guia sobre o estilo e design, telejornais ou um programa de variedades. Atuam, pois, como “vitrines” do circuito cultural, atendendo, ao mesmo tempo, às necessidades imediatas, desejos e sonhos dos indivíduos e aos interesses comercias de estilistas, fabricantes ou lojistas e até deles próprios.1 Texto-base originariamente apresentado no Intercom Sul 2009, realizado na Furb, em Blumenau (SC).2 Pesquisadora colaboradora, bacharel em Jornalismo do Centro Universitário Fransciscano – UNIFRA/RS. 3 Professora no Curso de Jornalismo do Centro Universitário Fransciscano – UNIFRA/RS, Doutoranda em Comu-nicação Social/PUC/RS, Mestre em Comunicação e Informação – PPGCOM/UFRGS.

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Neste cenário se concretiza o processo denominado midiatização, cuja característica-chave é (re)configurar não apenas o próprio campo (midiático), mas atravessar todos os outros campos sociais, “condicioná-los e adequá-los às formas expressivas e representativas da mídia” (MALDONADO, 2001) e promover novas formas de interação social com o decorrer das transformações e da acessibilidade aos meios.

É inegável, por sua vez, que a midiatização apenas reflete “hoje” a chamada sociedade hipermidiática que supervaloriza a experiência imagética4 da cultura do entretenimento e do consumo (DAVIS, 2003), uma sociedade alavancada pela mediação eletrônica e pelos mass media, os quais estão editorialmente atrelados à oferta excessiva: de estímulos, de imagens, referências, sentidos e modismos. Melinda Davis (2003) explica esta experiência como a “nova cultura do desejo”, um processo que está atrelado ao que move o comportamento e as escolhas dos indivíduos.

De qualquer forma, a midiatização é o sistema no qual a mídia passa a funcionar como uma matriz configuradora de sentidos, marcando processos de apropriação e construção de significações, conforme Maria Cristina Mata (s/d, p. 84). Desde este ponto de vista e, no caso do jornalismo de moda, compreendemos as sociabilidades sendo

4 É a experiência de deslocamento do foco de atenção do mundo físico/material, para o mundo mental/in-terior promovida pela relação com os veículos de comunicação eletrônicos. O mundo imagético é a ex-periência cuja imaginação me leva a desejos, aspirações, projeções – daí, por exemplo, a tendência ao culto às celebridades, imaginando que parecer com/como elas me proporcionará o bem-estar de espíri-to que almejo. Segundo Davis (2003, p. 252), “a tecnorrealidade desta era (a rápida proliferação de superes-tímulo) inevitavelmente colidirá com novas realizações humanas (a explosão pós-moderna do entusia-mos pelos intangíveis que tornam a vida melhor – prazer de estado de espírito, deleite psicoespiritual, etc)”.

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demarcadas por duas instâncias de atores sociais fundamentais: as audiências (os leitores) e os jornalistas/editores – nosso objeto de estudo. Surgem discussões a respeito destes profissionais que atuam em meios tradicionais – uma revista mensal – e, claro (também simultaneamente), nos contemporâneos, como um site, por exemplo. Isto porque hoje se estabelecem diferentes (e novas) formas de sociabilização, interação e, inclusive, produção nestes segmentos (a Internet e suas ferramentas), nos quais, as lógicas mercadológicas e as rotinas têm transformado as tarefas e papéis de um editor (FELICIANO; FOGEL et al ,2007).

O papel dos editoresOs editores têm novas funções hoje nos veículos. Eles precisam aproximar-se cada

vez mais das audiências5 (estas mesmas estão produzindo conteúdos), além de refletir constantemente sobre suas práticas. “Hoy en día un editor se define mucho más por la manera en que está ubicado en un fluxo de contenido que por su posición hierárquica […] El editor ha perdido el protagonismo en el sentido de que ha perdido sus herramientas” (FOGEL, 2007), considerando também as condições e necessidades/imposições mercantis.

O jornalismo especializado em moda, um segmento específico, segundo Joffily (1991), deve manter o público atualizado em relação aos lançamentos e tendências. Seu valor

5 François Fogel (2007) explica que conviver com a audiência requer, de certa maneira, se colocar no lugar dela, se interessar pelas suas opiniões, ouvi-la, lê-la através dos blogs; ou seja: ser a audiência da audiência.

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está em realizar a crítica, buscando critérios estéticos e pragmáticos. Estéticos pelo lado criativo e artístico da criação da moda. Pragmáticos, porque a roupa é para ser usada no cotidiano, porque há períodos em que o consumidor anda de bolso vazio. Está em acompanhar, pelo prisma da moda, a flutuação dos comportamentos, a mudança nas correntes sócio-culturais (JOFFILY, 1991, p.12).

Os profissionais têm que atender às(os) leitoras(es), prestar um serviço. E é através da informação extremamente objetiva que isso se realiza: “a concretização do nosso papel junto ao público, qual seja o de adequar o sonho da moda à realidade da leitora…dar a ela o direito de se apropriar do sonho no seu dia-a-dia” (JOFFILY, 1991, p.12), completa. Joffily acredita que o jornalista de moda deve estar apto também a cobrir as questões culturais. A sua formação, técnica e cultural, é a única arma de que dispõe contra a desvalorização que lhe é imposta.

Inserido na esfera da midiatização, a rotinas dos editores de moda (e suas tomadas de decisões), envolvem práticas comuns ao jornalismo6 e aos seus critérios de noticiabilidade e são responsáveis, em grande medida, pelas representações da moda difundidas e pela reprodução e valorização de determinados padrões e modelos de beleza. Não se trata de afirmar, por exemplo, que são/foram os mass media que inventaram e criaram o glamour 6 Entendemos o jornalismo como um processo de construção de informações no qual interferem fatores de or-dem sociocultural, organizacional, temporal, ideológica/política, editorial, mercadológica, com variações confor-me o contexto dos veículos de comunicação. Na rotina desse trabalho, tais fatores determinam a noticiabilidade dos acontecimentos e/ou assuntos (e seus critérios) e, grosso modo, chegam a interferir no nível de aprofunda-mento das coberturas informativas.

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do mundo fashion; mas a linguagem e os códigos escritos, estéticos – gráficos, visuais, artísticos – e até sonoros que circulam envolvem escolhas/seleção dos editores que trabalham em revistas de moda, imprensa7 feminina em geral, as quais funcionam como catalisadoras das tendências propostas em todo o setor, segundo Torrejón. A jornalista elucida que esse tipo de imprensa

toma as tendências propostas pelo establishment – as marcas, os criadores, a indústria, no fim do circuito de produção ligado à moda – e os grupos de opinião como por exemplo o gosto dos jovens e o resultado deste cocktail é a proposta que o veículo produz, que é, em definitivo, sua própria ideologia. [...] Não creio nas propostas dogmáticas, o veículo não diz às pessoas o que elas têm que vestir ou o que têm que pensar, mas apresenta uma notícia e a moda é sempre notícia (TORREJON, 2005, p.23)

Sem desconsiderar que audiências são heterogêneas e processam as informações em função de seus códigos, os editores contribuem na construção de certas representações (magreza, glamour, futilidade, citando algumas estigmatizadas) em torno do universo da moda (quando o sistema8 da moda liga-se, através da linguagem, a culturas, períodos

7 É fundamental ressaltar que com a revolução digital o cenário do jornalismo esteja em transformação, com mudanças na produção de conteúdo, considerando o espaço conquistado pelas versões online dos veículos e pelos blogs destes e, especialmente, dos leitores. Jean François Fogel (2007, p. 17) destaca três tendências que é importante assinalar em todos os meios: “1. La fragmentación tantos en los medios como en las audiencias.; 2. La personalización. Hay una presentación distinta para cada audiência, y; 3. La agregación de contenidos a pedido de la audiencia. Esto nos permite concluir que que con el internet se ha hecho posible la idea de la aldea global que prometía McLuhan. Todo se parece a una sala de redación donde cada uno puede tomar decisions con relación al contenido , a la presentación y a la agregación”.8 Entendemos a moda como um sistema consagrado pela sociedade, organizado, normativo e formado por

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históricos, personagens, cenários etc). Corroborando o ciclo de moda midiatizado, o jornalista Alberto Dines (2006) enfatiza que quem martela continuamente essas imagens nas capas, reportagens, colunas sociais, empresariais, telejornais e telenovelas é a mídia. Segundo Dines,

na ânsia de faturar anúncios das coleções da próxima estação e abiscoitar algumas assinaturas no segmento feminino, jornais responsáveis ultimamente aderiram de forma pouco crítica e leviana à febre das fashion weeks, eventos puramente comerciais disfarçados em fatos jornalísticos (DINES, 2006, p.1).

É certo que estilistas e grifes em geral têm o objetivo de vender e, com as agências de manequim mantêm preocupações mais estéticas e comerciais e menos morais. No entanto, a crítica é que “a imprensa noticiosa não tem o direito de esquecer o ‘contrato social’ com seus leitores. Revistas especializadas em Moda&Beleza têm compromissos diferenciados, operam em faixa própria, meio caminho entre o jornalismo e a promoção comercial” (DINES, 2006, p. 02).

Por outro lado, em outro campo, podem ser responsáveis por ajudar criadores a emplacar no mercado pelo fato de suas rotinas interferirem na visibilidade/publicização das coleções. O papel dos editores é considerado e se impõe de forma mais clara em algumas regiões do mundo, como em revistas de circulação mundial norte-americanas e européias. Segundo a editora Gloria Kalil,

uma combinação de elementos – linguagens, materiais, fotografia/imagens –, a partir da explicação de Barthes (2005)

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Em Paris e Nova York, a crítica da editora de moda determina o que vai vender. Tem um peso comercial no sucesso da coleção. Aqui também. Vejo com responsabilidade a crítica de um desfile. Você está mexendo com seis meses antes (no preparo da coleção) e seis meses para frente (quando a indústria vive da coleção) (Kalil In: DEODORO, 2006, p.34)

Os editores de moda, nesta via, são tidos como os atores sociais, isto é, agentes responsáveis pela difusão das representações de padrões e modelos de moda/beleza e os responsáveis, dentro dos veículos, pelos sentidos ofertados. Eles são os elos fundamentais entre a produção cultural e a circulação dos produtos, imagens, idéias, tendências que interferem diretamente no ciclo da moda-mercado.

Ao realizarem seu trabalho no interior de veículos em particular, ainda que geralmente estejam em uma situação social diferenciada dos leitores, o fazem inserido no contexto sócio-histórico de que participam, na qual também são consumidores e produtores de sentidos em comum da cultura brasileira, latina, mundializada etc. São jornalistas “submersos” em rotinas produtivas e em uma série de códigos e ideologias pessoais e profissionais, e com diferentes aspirações e projetos (tanto pessoais como sociais), que não são obrigatoriamente preteridos pela lógica econômica.

Por sua vez, estão envolvidos em um contexto e uma estrutura comercial de produção com funções diferenciadas em que as decisões obedecem a um padrão de hierarquia que impede algumas formas de expressão e decisão, por exemplo. Considera-se, então, que os conteúdos e imagens neste segmento jornalístico situam-se numa

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dinâmica de condições estruturais, econômicas, socioculturais e relacionais, além de envolver práticas, hábitos, decisões e opções não necessariamente conscientes ou racionais, como destacamos.

Na lógica da produção jornalística consideramos, portanto, tomando Martín-Barbero (1997) alguns aspectos para a análise das processualidades do jornalismo de moda na perspectiva dos profissionais, entre os quais: os níveis e fases de decisão (critérios e escolhas sobre enfoque/conteúdo do que será veiculado sobre o assunto), as ideologias profissionais (posicionamento dos produtores sobre a noção de moda), e as estratégias de comercialização (planejamento da cobertura de uma semana de moda, por exemplo).

Foi através da visão e enfoque dos profissionais sobre o seu trabalho como editores de moda que aprofundamos os debates sobre a construção das notícias nesta editoria nas duas principais revistas especializadas no segmento (Vogue e Elle) e no site da Erika Palomino, uma das mais conceituadas fashionistas e profissionais da moda no país.

Em busca dos caminhos: a metodologia da pesquisaPartindo de um revisão bibliográfica sobre moda e o papel do editor no jornalismo

e suas transformações, realizamos, inicialmente, uma análise exploratória de veículos especializados para, então, concluirmos a delimitação do corpus. A partir do cenário do mercado editorial do jornalismo de moda brasileiro9, a idéia foi compreender as diferenças

9 Mapeamento realizado na pesquisa em 2006 – “Jornalismo de Moda no Brasil: a cobertura da São Paulo Fashion Week”.

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na produção e apresentação de notícias de moda entre os formatos revista feminina, revista especializada e site. Isto porque saber o modo como as notícias são apresentadas é a chave para entender o que significam.

Especificamente, mapeamos as diferenças entre as notícias das revistas Elle e Vogue e dos sites Erika Palomino (http://www.erikapalomino.com.br) e Chic (http://www.chic.ig.com.br), da jornalista e conceituada consultora Glória Kalil, considerando o reconhecimento e a projeção no mercado nacional. A proposta foi conhecer os modelos e formatos de notícias, editorias e seções de moda dos respectivos veículos. O contato com os editores via e-mail e telefone consistiu a segunda etapa. Entretanto, ao longo da pesquisa não obtivemos resposta da nossa entrevista dos editores e/ou jornalistas do site Chic, nem da Glória Kalil, nem da editora da Vogue, Maria Prata e, considerando as necessidades de delimitação/foco da pesquisa, os excluímos da análise.

A partir do recorte do corpus, realizamos a análise descritiva dos veículos para identificar e definir particularidades de linguagem e temática para, posterior a isso, efetivarmos entrevistas com os profissionais destes veículos (repórteres e editores) através de contato via e-mail.

As entrevistas, que no caso da internet são fechadas, porque não permitem diálogo (embora contatos posteriores tenha sido feitos), foram realizadas no intuito de dar conta das especificidades da pesquisa, verificar critérios de noticiabilidade e, investigar a função do editor de moda como reprodutor – ou não – de imagens de moda padrões de beleza.

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A proposta das entrevistas foi, também, entender qual o espaço destinado ao assunto moda em cada veículo; verificar como se organizam as coberturas a respeito do tema; identificar o que a cobertura dos veículos prioriza e a definição das pautas. Nessa perspectiva, as reflexões e análises perpassaram as possíveis interferências dos editores de moda nas decisões no campo da moda a partir do conhecimento dos fatores definidores de suas decisões (e estratégias).

Editar é ditar moda? O papel do editor no site Erika Palomino e na revista ElleO http://www.erikapalomino.com.br (site EP) é um dos mais reconhecidos10 sites

dedicados à moda, comportamento e estilo de vida na atualidade. É a Diretora de Redação (proprietária) e estrela principal, quem dá o nome ao site – Erika Palomino – quem mantém um blog (Paloblog) no mesmo, atualizado sem regularidade definida, devido sua agenda extensa. Segundo a própria apresentação do EP, “as temporadas de moda nacionais e internacionais, os principais eventos de música, e diferentes manifestações relacionadas à cultura urbana: arte, arquitetura, design, viagens, grafitti-art etc” são os temas pautados. Há quatro editorias principais (Fashion, Lifestyle, Media e House11), sendo que cada uma, contempla seções específicas, como a editoria de moda, que aborda diversos assuntos12

10 São cerca de 15 mil computadores visitando diariamente o site, conforme informação do editor Sérgio Ama-ral, via e-mail. 11 Nesta editoria são noticiados eventos e assuntos relativos a House of Palomino. 12 A maioria das matérias encontradas é em forma de pequenas notas, quase que apenas só com uma foto para ilustrar o assunto, não há uma ampla cobertura fotográfica (contendo galerias de fotos) e nem audiovisual.

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nas seções: Notícias, Tendências, Fashionista (notícias sobre celebridades deste universo: estilistas, modelos, jornalistas etc), Fashionview, Beleza, Homem, Desfiles e Editorial.

As semanas de moda têm uma seção exclusiva – Desfiles –, destinada a cada um dos estilistas ou maisons (nacionais ou internacionais), pois eles são divulgados para além das notícias diárias, com análise comentada, assinados pelos vários editores da equipe do site EP e/ou e por alguns jornalistas editores da redação do site13, além de duas galerias de fotos14. Há ainda de duas a três matérias sobre cada desfile, com diferentes abordagens nestas coberturas: ora focam no(a) estilista, ora na coleção, ora são a respeito da trilha sonora utilizada nos desfiles.

A proposta do site Erika Palomino (EP), segundo o editor, Sérgio Amaral, “antes de tudo, é ser novidadeiro, fresco, descolado, leve e bem-humorado. A moda é um dos canais do site (o outro é lifestyle) e por conta da trajetória da Erika é também uma das nossas especialidades”. Com um público bastante diversificado15, a tentativa é não priorizar nem moda nem lifestyle, conforme explica Sérgio, além de “ter sempre informações relevantes de todos os assuntos que nos interessam: moda, música, noite, arte, tecnologia, cinema 13 André do Val, Guta Raeder, Hermano Silva.14 Há uma seção sobre o desfile e outra sobre o backstage (bastidores), em média com 50 fotos dos desfiles e mais 20 de backstage.15 É bem dividido entre meninos e meninas. Acho que 70% tem entre 18 e 35 anos. Mas temos gente de todo canto do Brasil, de várias idades e até leitores que não entendem muito bem o nosso universo (as gírias e tudo mais), mas que adoram entrar no site por achar divertido. Formadores de opinião e early-adopters também estão em casa no erikapalomino.com.br. Tem gente que vê pouquíssima TV, quase não tem contato com jornais e revistas, gente que já cresceu habituada a se informar na Internet. Bom, além dos fãs e profissionais de moda também. Mas não tenho números exatos pra te passar.

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e etc”.Independente da editoria ou seção, entre os principais critérios de noticiabilidade

do site EP, segundo Sérgio Amaral, estão o inusitado, o alcance, o foco no leitor, tomando um cuidado especial com as assessorias das marcas e seus exclusivos interesses em visibilidade. A este respeito, ele comenta:

Seguimos muito nossa sensibilidade também. Quando tem cara ou parece ser legal, gera interesse e vira pauta. Quando parece conversa mole, enrolação ou pretensao demais a gente costuma derrubar. Eu particularente tomo bastante cuidado com as sugestões das assessorias. Várias delas são de interesse único das marcas. Antes de tudo pensamos no nosso leitor, uma pessoa bem informada, viajada e que não tem tempo pra perder na Internet (AMARAL, 2007)

Mas este foco nos leitores é uma prática que se dá cotidianamente, pelo próprio perfil da equipe de redação, que como a audiência, também é diversificada e, assim, os interesses se cruzam: “de certa forma, nosso público tem gostos e vontades bastantes semelhantes aos nossos... É como se cada repórter do site representasse um segmento, um tipo de gosto musical, tem uma relação diferente com moda... É um equipe bastante diversificada, mesmo!

Para além disso, a plataforma – Online – permite a proximidade com o leitor, que é conquistada e mantida “abrindo bate-papos, fazendo eventos abertos a eles na House [of Palomino], sugerindo enquetes no nosso pop-up, respondendo a todos os emails deles. É uma coisa do dia-a-dia mesmo. É bem simples e natural pra gente. Encontramos eles

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nas noites, festas etc. Eles conversam, fazem perguntas, é uma relação super tranqüila e transparente”.

Faz parte da rotina a novidade dentro do perfil do site EP, o que confirmamos na declaração do editor: o assunto tem que “ser novo, divertido, fresco, jovem... Coisas engraçadas e bem-humoradas também têm passe livre nas pautas. Gostamos de revelar coisas pouco conhecidas, detectar movimentos e comportamentos novos”. No que diz respeito ao critério para definir o que é tendência e traduzir aos leitores aquilo que está na passarela ou mesmo nas ruas, Sérgio é sucinto e taxativo: “pela repetição”. Isto porque, para ele, tendência é

tudo aquilo que você começa a ver aqui, ali, junta os pontos e vê que está em toda parte […] Daí que temos até uma seção de TENDÊNCIAS no site, onde entram desde coisas de moda (xadrez, ankle boots, jeans skinny etc) até a volta das supermodels dos 90 e pautas de comportamento mesmo. Claro que se Prada, Balenciaga e Vuitton fizerem, o fundamento ganha mais força (AMARAL, 2007)

Entretanto, evidenciamos que a equipe adota critérios pessoais a partir de preferências particulares em muitas das matérias sobre as “escolhas”16 do site, o que 16 Com relação a valores (preços) das peças/looks, não se evidencia uma preocupação em adaptar o look apre-sentado à realidade dos leitores do site, já que é bastante heterogêno. “A gente faz pautas de liquidações e vez ou outra de compras, mas não é toda semana. Quando a gente faz, pensa sempre em ter peças ou objetos de valores variados, afinal ninguém na House vive comprando Dior Homme, Prada, Gucci, Vouitton e Balenciaga e pessoalmente acho irreal e bobo fingir que vivemos assim. Quem trabalha com moda sabe o quanto se rala para ganhar dinheiro. Assim a gente tenta pegar peças mais acessíveis e algumas mais caras, mas sempre de marcas brasileiras, das lojas que a gente freqüenta e gosta _Alexandre, V.Rom, Surface 2 Air, Ellus e 2nd Floor, Zoomp,

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confirma um certo “poder” destinado ao editor em sugestão/edição do que é mais “moderno”, considerando (auto)confiança a ser depositada pelos leitores naqueles produtos. Sérgio comenta: “A gente indica o que a gente gostaria de ter ou o que está usando. Não tem jabá certo nem nada. Se a gente vê e acha legal, indica para o leitor também. Não existe um quesito determinante”. O caráter efêmero e circular da moda se evidencia nestas matérias e, em função disso, faz com que tomem cuidado com relação ao que vão indicar como tendência ou não: “Até porque na moda tudo muda o tempo todo. Então o Wayfarer [modelo RayBan] que era legal fica chato porque todo mundo tem e usa. Vira obviedade”, destaca o editor de EP.

Com relação à linguagem, o site EP segue um estilo de texto para internet predominantemente curto, informal, “na ordem direta, com palavras-chave destacadas, em blocos de cerca de cem palavras. […] porque internet é um meio de comunicação individual e pessoal”(MEIRA, 2000, p.88). É o que se pode notar em todas as notícias e editoriais, os quais utilizam, também, o recurso de paginação no caso de textos mais longos, para não cansar o leitor.

As ferramentas utilizadas numa cobertura online “vão muito além das tradicionalmente utilizadas na cobertura impressa – textos, fotos e gráficos. Pode-se adicionar sequências de vídeos, áudio e ilustrações animadas” (FERRARI, 2003, p.39), o que é bastante explorado no site EP, já que é possível encontrar a cada nova notícia publicada um hyperlink que leva a uma galeria de fotos do próprio site. Isso evidencia, na prática, Forum...

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a potencialização deste segmento jornalístico agora com conteúdo customizado, um jornalismo interativo, hipertextual e multimídia – os quatro elementos-chave, de acordo com Mielniczuk (2000).

A linguagem visual e escrita configurou uma identidade ao site EP, e há uma espécie de “dialeto” particular (talvez em função da Erika Palomino), que pode ser percebido em pontuações presentes nos textos, através do uso de vários pontos de exclamação ou interrogação, determinadas expressões que se repetem, gírias e estrangeirismos: “É a vez dos marinhos, listras e cordões!!!” (dez/2006); “SPFW já é!!! (jun/2007) “Back to black! Clássico e elegante, total black invade coleções de inverno na SPFW (fev/2008)”.

Trata-se de um recurso da equipe, na tentativa de utilizar as potencializades da Internet: “é um meio bastante emocional também. Dá pra pôr muitas exclamações, brincar com o texto e com a notícia”, comenta o editor de moda do site EP. Segundo Amaral, o diferencial de um site de moda está na agilidade e facilidade da Internet e no tratamento da notícia: mais superficial e direto. “Tirando as críticas de desfile, a gente não investe em textos longos demais. Quanto mais objetivo e leve, melhor. De vez em quando, nos aprofundamos em assuntos pertinentes. Outro diferencial da Internet é que ela possibilita interatividade, troca e circulação de informação ágil e simples. Desde e-mail criticando o site até elogios, sugestões de pautas etc”, afirma Sérgio.

A revista Elle – uma fórmula licenciada da França (editora Hachette) –, também possui versão online17 desde o ano 2000 no Brasil, mas destaca-se pela edição impressa 17 Há editores específicos para a versão online (Editor da Elle online é Yuri Hermuche e a programação é de

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(nosso objeto). Fundada por Pierre Lazareff e Hélène Gordon em 1945, e está no país há mais de 20 anos. É uma revista de moda comercial e vem sendo publicada pela editora Abril. Conforme a própria editora de moda18 Susana Barbosa Elle é “uma revista cosmopolita, que atende a mulheres de espirito jovem (não necessariamente de idade), que gostam de estar antenadas, que amam moda e que querem ser diferentes da maioria”.

O website da revista tenta preservar a identidade da publicação impressa e apresenta todos os recursos que o meio online dispõe: vídeos, interatividade, hiperlinks, podcasts além de publicar um blog – diário virtual – da redação da revista. O interessante é que mesmo sem todas as formas de interação e interatividade de um veículo que é online e se sabe usufruir dessas ferramentas, a revista impressa Elle procura garantir uma proximidade com o leitor através de outras formas: “é o que chamamos de linha direta”, explica a editora de moda, Susana Barbosa. Segundo ela,

quando alguém escreve fazendo alguma crítica, procuramos ligar e conversar, saber o que motivou o descontentamento. Muitas vezes revertemos o problema. A Lenita, diretora de redação, ou mesmo eu, temos prazer em ligar pessoalmente para alguns leitores para conversar, justificar um erro ou mesmo rebater uma crítica (BARBOSA, 2007)

Na versão impressa, todos os meses são feitos quatro editoriais de moda e algumas reportagens sobre o assunto, por mês. Assim, a cada edição, são, em média, 30 páginas

Milton Strassacappa), no entanto, não foi objetivo da pesquisa realizar um estudo comparativo sobre estes seg-mentos. 18 Em entrevista a pesquisadora por e-mail (dezembro de 2007).

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dedicadas aos editoriais de moda nos meses em que não há divulgação das tendências de moda que saem da SPFW e Fashion Rio. “Nos meses dedicados aos lançamentos da estação este número sobe para uma média de 42 páginas dedicadas à moda”, segundo Daniela Schmitz (2007, p.33).

De acordo com a editora de moda da publicação são vários os critérios para a escolha da pauta, entre os quais: a demanda do mês e, um dos principais que são, sem dúvida, os leitores. “Todo o nosso foco é no leitor, na pessoa que gasta seu dinheiro para comprar um exemplar da Elle e que quer receber algo em troca por esse investimento”, afirma Barbosa. Com relação aos assuntos e aos critérios de noticiabilidade, a editora comenta:

Antes de mais nada, a pauta precisa ser boa o suficiente para render chamadas de capa ‘vendedoras’. Ou seja, ao ler a chamada de capa o leitor precisa ter o desejo de saber mais sobre a matéria e comprar a revista. Na Elle existe uma espécie de calendário19 com alguns temas que sempre procuramos desenvolver em determinadas épocas do ano (e também edições especiais que saem encartadas com a revista). Isso cria uma certa fidelidade do leitor, uma expectativa. Ele sabe que naquele mês vai encontrar a matéria esperada. Funciona mais ou menos assim: logo após o lançamento das coleções por exemplo (março e agosto), fazemos a edição chamada “escolhas de Elle”, onde elegemos tudo o que mais gostamos de tudo o que vimos. Em abril e setembro publicamos o Especial Acessórios. E por aí vai: Elle Jeans, Elle Minas, Especial

19 A editora comenta a respeito em outro momento: dezembro é época de festa, então é preciso fazer alguma matéria com esse tema; janeiro é alto verão, então é preciso pensar em quem está de férias...da mesma forma que precisamos talvez dar uma matéria com roupas para quem trabalha em pleno calor de janeiro! Se é maio, mês de aniversário da revista, precisamos pensar em algo especial, que encha os olhos das leitoras.

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Modos de Usar, Moda Praia, etc... Procuramos também mixar matérias que ofereçam algum tipo de serviço de moda, com idéias acessíveis, a outras que simplesmente informam a tendência mais nova no momento. Basicamente a

pauta é uma mistura de todos esses itens.” (BARBOSA, 2007)

Com relação à variedade de marcas presente nos editoriais de moda, a editora explica:

ao receber a pauta, cada produtora vai “para a rua” com a sua matéria devidamente ‘dissecada’ por mim. Elas recebem toda a orientação sobre como eu vejo a matéria, que tipo de roupa eu imagino, para que caminho será conduzida a produção. A partir daí elas têm por obrigação fazer a cobertura mais ampla de mercado possível. É importante que elas visitem novos estilistas assim como os já consagrados, marcas que tenham boa distribuição em diferentes regiões do Brasil, ateliês que acabam de abrir, todos os importados, etc (BARBOSA, 2007).

Aqui evidenciamos e corroboramos a função do editor na mediação das representações de moda e no seu papel (importante, é verdade), como um mediador na projeção de profissionais da moda. A partir da proposta de uma imagem de moda e entre as ofertas trazidas, é o editor que dá a palavra final, podendo reverberar não só no campo da mídia e no social, mas especialmente no campo da moda.

A edição que nomeamos de “Escolhas de Elle” é o que o nome diz: após vermos todos os lançamentos, todas as coleções, escolhemos tudo o que mais gostamos para mostrar ao leitor. A forma como será mostrado pode e deve variar, como já fizemos outras vezes. Por exemplo: podemos escolher um

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grande fotógrafo e uma grande modelo para fazer toda a edição, podemos fazer apenas uma grande matéria de 36 páginas contando um pouco de cada tendência.(BARBOSAa, 2007)

De qualquer forma, em Elle, pelo próprio perfil da revista (revista de moda comercial), “todos os produtos fotografados na Elle têm seu preço publicado, não importando se custam R$1,00 ou R$100.000,00”, comenta a editora. Nos editorias, embora o principal seja a tendência e/ou imagem de moda como referência para os leitores, a editora explica que se coloca no lugar das consumidoras:

Normalmente usamos o bom senso. Algumas coisas valem o preço que têm e outras não. Pensamos como consumidoras. Mas nem tudo o que é mostrado numa revista precisa ser consumido. Muitas vezes uma produção (mesmo que seja caríssima) serve como inspiração, uma fonte de idéias de como misturar determinadas peças de um jeito novo e criativo. A partir daí, cada leitora busca aquilo que pode comprar para “imitar” aquele look. Essa é a parte mais gostosa. Não podemos esquecer também do lado aspiracional. Todos nós vemos uma revista de moda porque também gostamos de sonhar. E acreditamos que um dia também poderemos ter aquele anel de brilhantes da Tiffany ou aquela bolsa linda da Louis Vuitton (BARBOSA, 2007)

Com relação aos critérios na definição daquilo que é tendência para os leitores e na tradução da moda (seja da passarela ou das ruas), Susana argumenta que a proposta da Elle é sempre fazer uma que seja acessível, tanto em termos de preço quanto em termos de idéias.

Acreditamos no que é usável. Uma revista de moda comercial precisa ter

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foco na sua leitora, despertar nela o desejo de se vestir daquela forma, de ser aquela mulher representada ali. Para isso temos também uma matéria mensal chamada “Modos de usar”, onde procuramos ensinar de forma bem clara e didática como usar as tendências mais novas, as propostas mais modernas, sem cair no ridículo (BARBOSA, 2007).

Nesta perspectiva, a maioria das matérias da revista são de serviço e tendência, porque “o determinante é fazer com que a leitora saiba que o que está ali tem o aval da Elle e representa o que tem de mais novo e bonito para usar naquela estação”, explica a editora. A linguagem da revista procura traduzir esta proposta, com matérias de moda serviço, ou seja, além das fotografias dos looks, sempre há dicas de como misturar as peças para facilitar o uso.

Ao editar fotos de passarela tenho sempre o cuidado de escolher looks mais usáveis. É importante também ressaltar que algumas coisas que aparentemente não são consideradas usáveis aos olhos do leitor, também estão ali como uma informação de moda que não pode deixar de ser noticiada, e que é nosso dever mostrar o que é moda, ainda que determinada tendência só seja assimilada nas ruas tempos depois (BARBOSA, 2007)

ConsideraçõesO primeiro aspecto a ser ressaltado é que as diferenças na linguagem (escrita e

estética), na apresentação das notícias, entre os veículos observados (site e revista), conforme suas especificidades (suporte, formato, linha editorial), não diferenciam o principal critério na seleção de pautas levado em conta pelos dois editores: seus leitores. Obviamente, as

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particularidades do suporte direcionam os critérios de noticiabilidade e as abordagens das pautas, especialmente a linguagem utilizada, o que demonstrou ser consciente entre ambos os profissionais. Sobre isso, inclusive, eles têm opiniões convergentes. Para Susana Barbosa, de Elle, o diferencial da revista de moda é “a consistência da informação e a isenção de gostos pessoais ou vaidades no julgamento, sendo a informação focada estritamente no interesse do leitor”. Com relação às diferenças entre os formatos, Sérgio Amaral, do site EP, acredita que “as revistas deveriam exercer papel mais analítico de tudo isso, já que a Internet e os jornais acabam tirando o ineditismo de muita coisa. Aí é o espaço pra se aprofundar, ler um texto coeso e carregado de informação”.

O ciclo da moda indica que os editores são responsáveis não apenas pelas notícias (eventos, coleções, tendências, etc.) que circulam neste universo, como por (re)produzir padrões de moda/beleza e, ainda por projetar designers (estilistas) no mercado. Em outras palavras, a crítica dos editores de moda pode ser determinante no que vai vender, ter peso comercial no sucesso da coleção.

Por sua vez, eles não têm consciência do seu papel e/ou responsabilidade no circuito da moda ou na sociedade, ao lidar nas suas rotinas, com pautas que constróem diferentes imagens. Ambos os editores entrevistados não acreditam realmente que o editor de moda é capaz de interferir em padrões de beleza. Por sua vez, enquanto editor do site EP acredita que são as revistas de moda quem exercem mais este papel, a editora da revista Elle, defende que, pelo menos, isoladamente, as revistas não têm força nem

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acredita que a atuação delas possa ser considerada um papel relevante. “Pelo menos não no Brasil”, comenta Susana. E acrescenta: “Talvez uma ou duas editoras no mundo tenham poder para iniciar algum movimento nesse sentido. Mas isso geralmente se deve a uma junção de fatores, a um momento da moda, da sociedade, das vontades dos estilistas, do interesse da indústria. É algo muito maior do que sonha a vã filosofia de um simples editor de moda”.

Ao discutir sobre o papel do editor de moda, ambos os editores de moda tem a opinião consensual de que é um trabalho de seleção e tradução das informações de moda conforme o veículo, no sentido de dar opções e “pistas” para os leitores, e não ditar escolhas ou comportamentos. É o que podemos verificar nas seguintes falas:

Na minha opinião é o de apenas traduzir uma notícia, mostrar um jeito de usar, levar um pouco de sonho, ajudar as mulheres a se sentirem mais bonitas. Não tenho a pretensão de achar que mudaria alguma coisa na história. O papel do editor é transmitir o tempo em que vive, assim como a moda o reflete. É traduzir para o leitor, dentro da linguagem da revista, o que os estilistas propõem (BARBOSA, 2007) pensar moda e selecionar o que é mais interessante pra ela [sociedade]. O mar de informação é enorme. Então parte do nosso trabalho é ver tudo isso e pescar só aquilo que importa (que varia da Vogue, pra KEY, pro site Erika Palomino e Chic). Não existe mais certo e errado. Cada um veste o que quer, como quer, mesmo que não fique bonito ao olhar dos “fashionistas”. E no fundo tanto faz, o importante é ficar bem, por mais clichê e “brega” que isso possa soar. Até porque o grande mercado de moda (não é o fashion) é têxtil, de gente da vida real, confecções, nada de glamour e grife. É que nós somos apaixonados por esse mundo, somos sensíveis a essa mídia (AMARAL, 2007)

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Outro ponto considerável é o espaço destinado às tendências de moda, o qual recebe muito mais páginas nas revistas de moda, vide o que foi verificado em Elle, o que também destaca o ciclo efêmero da moda, subsumida a sua lógica comercial. Por fim, em todos os aspectos discutidos desde o ponto de vista dos profissionais, os veículos de moda operam(riam) num fluxo de produtores-leitores pouco ou nada autoritários, ainda que de função relevante. Em tempos de crescimento das redes sociais, blogs, microblogs, já é real a dinâmica de leitores atuantes, opinativos, criadores de conteúdos e imagens de moda próprias. Vale ressaltar, inclusive, que várias discussões em blogs, por exemplo, partem, muitas vezes, de pautas e imagens lançadas por veículos consagrados, como a Elle e o site EP, nos quais os editores de moda são os responsáveis pelas escolhas das tendências, da peça da estação, da cor etc. Neste sentido, e considerando as mudanças na sociedade, na moda e especialmente na comunicação e na “arquitetura” das redações e da própria informação, o artigo abre uma janela empírico-teórica para reflexões sobre outros/novos modos de pensar a informação de moda e sua edição não só nas mídias tradicionais, como nas mídias recentes.

Bibliografia Consultada

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FELICIANO, Hector; FOGEL, Jean François; et al. El papel del editor en una sala de redacción que cambia: pistas para abordar un futuro incierto. 2007

FERRARI, Pollyana. Jornalismo Digital. São Paulo: Contexto, 2003.

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MIELNICZUK, Luciana. Jornalismo na web: Uma Contribuição para o Estudo do Formato da Notícia na Escrita Hipertextual. Tese de Doutorado. Universidade Federal da Bahia. Salvador, UFBA, 2003. MUNDINHO Fashion – A moda é protagonista das novelas. TV + show. Zero Hora. Domingo, 21 de maio de 2006.

SCHMITZ, Daniela Maria. Mulher na moda: recepção e identidade feminina nos editoria de moda da revista Elle. Dissertação de Mestrado. Universidade do Vale do Rio dos Sinos. São Leopoldo, UNISINOS, 2007.

TORREJÓN, Ana. La Moda en los Medios: “La moda es un buen pasaporte para la tolerancia”. Entrevista da diretora editorial da Elle argentina concedida a Olga Corna. Designis 1, 2005.

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A notícia de moda na web: um breve panorama1

Ana Marta Moreira FLORES2

Daniela Aline HINERASKY3

Kellen dos Santos SEVERO4

As formas de noticiar constantemente se (re) configuram devido ao surgimento de novas tecnologias e de modificações estruturais e conjunturais na sociedade e na economia. Tais alternâncias refletem diretamente na maneira como se dá o fluxo das informações em suas diferentes plataformas.

Com a crescente inserção do computador, internet, celular e outras mídias virtuais na realidade cotidiana de grande parte das pessoas, percebe-se o delinear de um momento bem específico para a comunicação. Fica claro um diálogo de informações com a entrada de cidadãos comuns como colaboradores ativos no fluxo da notícia. Pode-se até mesmo afirmar que a atividade de construção da notícia e de exposição dos fatos já não cabe apenas aos jornalistas, mas também aos usuários da internet e suas redes sociais. A moda e as mídias online tem uma série de pontos em comum, o que os torna excelentes temas para reflexão e pesquisa. O universo fashion, em que está enquadrado nosso objeto de análise, é alvo de preconceito e desdém quando se trata de uma temática 1 Texto-base originariamente apresentado no Intercom Sul 2009, realizado na Furb, Blumenau (SC).2 Bacharel em Jornalismo pelo Centro Universitário Franciscano.3 Doutoranda em Comunicação PUC/RS.4 Acadêmica de Jornalismo no Centro Universitário Franciscano.

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escolhida para esmiuçar práticas e construção de saberes. Assim, a proposta central deste trabalho é destacar o caráter jornalístico em sites e blogs de moda brasileiros ao observar especificamente: a linguagem e o formato das plataformas digitais e a maneira como (re) estruturam a comunicação; bem como identificar semelhanças ou disparidades entre os endereços em análise.

Moldando o conteúdo: surge a modaO ato de o homem se vestir surgiu da necessidade de proteção do frio e da chuva.

Na época, a vestimenta cumpria um papel bem mais funcional do que adorno. Com a evolução humana, os pelos no corpo passaram a cair e o homem encontrou nas peles de animais, abatidos para o consumo, um substituto para proteger-se. Daquela época aos dias de hoje, muito mudou: os costumes, a evolução, tempos pacíficos e de guerra escreveram a história do homem. O sentido contemporâneo da moda, assim, só existe com o trajeto cíclico e fugaz das vestimentas e do contexto cultural, social e financeiro de uma sociedade. Concordando com Diana Galvão,

a moda é o que seu tempo é, revela a História. Sua realização dá-se num incessante fluxo de vertentes sociais, morais, religiosas, artísticas, políticas, econômicas, científicas, tecnológicas; vetores interligados os quais formam a celebrada cultura de moda instaurada há centenas de séculos na Europa Ocidental (GALVAO, 2006, p.135).

Tal cenário migra e evolui para todos os pontos do planeta. Nesta via, destacamos

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a necessidade do homem atual em encaixar-se em um grupo e com ele, definir sua(s) identidade(s) recorrendo à vestimenta, pois pode ser facilmente estabelecida – pelo menos sob o ponto de vista estético. Concordando com Georg Simmel (1957), conclui-se que a utilização da moda consiste na imitação de um modelo estabelecido, que satisfaça a necessidade de adaptação social, diferenciação e desejo de mudar, sendo baseada pela adoção por grupos sociais.

Para adquirir esta inserção social existe necessariamente o consumo de produtos. Pierre Bourdieu (1979) diz que o combustível que faz funcionar a economia da moda encontra-se justamente aí. Se não existisse essa necessidade do homem, a moda não seria uma mola propulsora do capitalismo. Logo, proporcional a demanda por produtos, a procura de pessoas querendo consumir informações sobre moda também cresce, o que resulta na popularidade do tema: a presença na mídia. Além dos produtos principais da moda outros temas entram na pauta de revistas e jornais de todo o mundo.

Ao longo das décadas, a indústria se desenvolveu: desfiles de grandes estilistas (prêt-à-porter5 internacional) e tendências antecipadas ficam nas mãos dos profissionais do ramo, grandes compradores (geralmente em nome de cadeias de lojas) movimentam

5 Prêt-à-porter é o nome francês para “pronto para usar”. Em linhas gerais, pode-se dizer que significa a produ-ção em série e em tamanhos pré-definidos. (...) No entanto, o prêt-à-porter internacional acontece apenas duas vezes ao ano, no hemisfério norte. Os desfiles para o verão europeu ocorrem em setembro e outubro, e os para o inverno, em fevereiro e março. Essas roupas vão chegar às lojas de seis a sete meses depois, diferentemente do que ocorre no Brasil, onde os eventos são mais colados com o varejo. Isso se dá porque aquelas temporadas internacionais estão mais consolidadas e acontecem de modo mais profissional. Ou seja, são feitas para os pro-fissionais do setor. (PALOMINO, 2002, p.28).

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ainda mais o mercado editorial. O fluxo multidirecional de informação só consegue ser novamente reorganizado e encaminhado ao público interessado através do jornalismo especializado no tema. Chega a vez de o jornalista entrar em ação.

Alinhavando informação: jornalismo, moda e internetO jornalista, então passou a fazer a mediação entre o mundo fashion e o público

ordinário. Muito do que é mostrado em passarelas é um conceito que o estilista quer explorar para aquela temporada. Para o público geral, é necessário que o jornalista transcreva as ideias em editoriais e matérias que possam ser aplicadas à vida dos leitores. Desta forma, o papel do comunicador especializado é “desvendar” a moda que foi ganhando espaço nos mais diferentes meios de comunicação.

Embora consideremos que o jornalismo de moda tenha surgido juntamente com as revistas femininas6, àquela época uma notícia sobre moda não recebia o reconhecimento de notícia “importante”. No entanto, a presença da moda na vida das pessoas está mais forte e tem atraído olhares sobre o tema. Curiosos, estudiosos e cidadãos comuns interessados em saber sobre tendências, marcas e modelos estão em constante busca pela informação acerca desses e outros assuntos presentes no campo da moda. O interesse do público é um dos princípios básicos de noticiabilidade jornalística. Com isso, a mídia tem referenciado moda com mais assiduidade. Jornais impressos e revistas jornalísticas passaram a ter sessões (editorias) especiais para discorrer sobre moda. Com o surgimento 6 Ver mais em JOFFILY, Ruth. Jornalismo e Produção de Moda e em BUITTONI, Dulcília. Imprensa Feminina.

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de espaços online das mídias impressas, rapidamente a moda achou sua plataforma ideal: a internet.

O meio online parece ser o mais eficiente para noticiar a moda, com instantaneidade, opinião e dinamicidade. Disponibiliza informações e espaços de interatividade com o leitor. Assim, em pouco mais de uma década, pode-se afirmar que o Jornalismo Online já consolidou características que se desenvolveram e que são convenções seguidas pelos profissionais do meio digital, a partir das possibilidades providas pelo suporte.

De acordo com Jo Bardoel e Mark Deuze (2000), o Jornalismo Online tem as seguintes características: interatividade, hipertextualidade, customização de conteúdo e multimidialidade. O pesquisador Marcos Palacios (1999) também aponta multimidialidade/convergência, interatividade, hipertextualidade, personalização como aspectos-chave da Internet e acrescenta a memória, já que o meio online tem alta capacidade de armazenamento de dados.

A interatividade é um grande diferencial da mídia digital. Uma vez que nos meios impressos a única porta de comunicação entre leitor e jornalista era, praticamente, a sessão de cartas e correspondências. A interatividade apresenta-se como termômetro e feedback quase instantâneo do que o público pensa ou gostaria de saber mais. É uma janela aberta e de fácil acesso para quem está familiarizado com a web. O uso de enquetes e promoções também é comum e necessita do leitor para que se cumpra o objetivo inicial.

A hipertextualidade é a capacidade de conectar diferentes textos, como links externos

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ou notícias já publicadas pelo mesmo site, em uma dinâmica de autorreferencialidade. Para Ivone de Deus, a intenção da hipertextualidade “é fragmentar os textos e deixar à disposição do leitor, ligações (links) para outras matérias se isso for de seu interesse. (...) Ele estabelece seu próprio percurso através da interação com texto” (DEUS,2005, p.06).

A customização de conteúdo ou personalização, de acordo com Luciana Mielniczuk, “consiste na existência de produtos jornalísticos configurados de acordo com os interesses individuais do usuário” (MIELNICZUK,2004). O leitor pode customizar o conteúdo, selecionando apenas os assuntos que lhe interessam, configurando uma leitura não-linear7.

A multimidialidade é marca registrada do Jornalismo online, pois permite concentrar texto, imagem fixa (fotografia), vídeo e áudio em um mesmo local. Atualmente, com maior intensidade a partir de 2005 quando surgiu o portal You Tube (www.youtube.com), juntamente com o aumento da velocidade das conexões à internet - a transposição de vídeos para páginas pessoais e blogs8, além do envio por mensagem eletrônica, foi facilitada.

7 Outro ponto importante a ser ressaltado no leitor de material online é a leitura não-linear. De acordo com Canavilhas (1999), “aparentemente, a integração de elementos multimédia na notícia obriga a uma leitura não-linear. (...) Quer isto dizer que perante um texto ou imagem se verifica imediatamente uma associação mental entre os dois campos. Assim, a disponibilização de um complemento informativo permite ao indivíduo recorrer a ele sem que isso provoque alterações no esquema mental de percepção da notícia. Esta estrutura narrativa exige uma maior concentração do utilizador na notícia, mas esse é precisamente o objectivo do webjornalismo: um jornalismo participado por via da interacção entre emissor e receptor”. 8 Este termo será abordado no próximo tópico.

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O imediatismo é também traço fundamental para o jornalismo da web. Publicar notícias “de último minuto” é rápido e simples, assemelhando-se ao rádio na rapidez da informação. Na internet, a constante atualização de determinado tema ou notícia, também é outra característica. É importante lembrar que nem todos os sites tem uma constante atualização, no entanto, o perfil de rotina define-se juntamente com o conteúdo, com a demanda do leitor e da própria estrutura dos sites.

Usualmente o ciberleitor procura informação precisa, atualíssima, gratuita e de fácil leitura. Desta forma, o texto para online é “interativo, apresenta hipertextos, customização de conteúdo e multimidialidade” (BARDOEL e DEUZE apud L. MIELNICZUK, 2001, p.1). O público leitor de moda, por sua vez, encaixa-se certamente no perfil acima, embora tenha ainda suas particularidades. De acordo com Diana Galvão,

na net, o público de moda exige mais que editoriais atualizados, virtualidades digitais e uma sensibilidade técnico-estética. Exige qualificação de opiniões sobre o universo de questões que é a moda, entrevistas, pesquisa de moda sobre o passado e pesquisas sobre o moderno (GALVAO, 2006, p.135).

E, por fim, a memória virtual. O espaço na web é tão infinito quanto a Via Láctea, afirmam pesquisadores. Palacios (1999) assinala que o acúmulo de informações é muito mais viável técnica e economicamente aos usuários na web, ainda mais quando comparado ao jornalismo impresso. A busca de materiais publicados há meses, por exemplo, é a grande vantagem do jornalismo online.

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Os Blogs e a modaOs blogs são um fenômeno recente que data da década de 1990 e que vem se

disseminando com incrível rapidez9. A expressão “blog” foi cunhada pelo norte americano Jorn Barger em 1997 e inserida em 2003 no dicionário Oxford da língua inglesa.

Essa ferramenta de inserção de conteúdos na plataforma online prolifera-se com singular velocidade devido às facilidades que a caracterizam; como os vários programas gratuitos que a disponibilizam na internet, a facilidade de publicação de informações. O blog não é uma ferramenta limitante, visto que há inúmeras categorias, como classifica Recuero (2003): diários eletrônicos (“fatos e ocorrências da vida pessoal de cada indivíduo”), publicações eletrônicas (“se destinam principalmente à informação”) e publicações mistas (“misturam posts pessoais sobre a vida do autor e posts informativos”). Todas essas possibilidades podem ser expressas na forma de diários pessoais, protestos, projetos, propagandas, notícias de bastidores, etc.

A maioria deles conta com espaço dedicado à participação do leitor, o que invoca umas das características-chave da internet: a interatividade. A blogosfera é um espaço dedicado à diversidade de elementos, como descreve Manuel Pinto, no prefácio de Weblogs - Diário de Bordo,

diversa nos seus gêneros e tipologias”, constituindo “um instrumento e um espaço de registro e de informação, de comentário e de opinião, de crítica e de escrutínio da vida pública, de memória e de manifestação de criatividade

9 Numa notícia publicada a 2 de Agosto de 2005, no site BBC News, referia-se que a cada segundo é criado um novo blogue.

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e engenho pessoais, de estruturação e de redes e comunidades de interesses e conhecimento” (BARBOSA; GRANADO, 2004, p.7).

Já Jan Alyne Silva conceitua blogs como sendo “um sítio extremamente flexibilizado, com mensagens organizadas em ordem cronológica reversa e com uma interface de edição simplificada, através da qual seu autor pode inserir novos conteúdos sem a necessidade de escrever qualquer tipo de código em HTML” (SILVA, 2003).

Outra conceituação é elaborada por Alonso e Martinez:

Um meio interativo definido por cinco pontos: é um espaço de comunicação pessoal, seus conteúdos abordam qualquer tipologia e são apresentados com uma marcada estrutura cronológica, o sujeito que os elabora pode usar links a outros sítios da web que tem relação com os conteúdos que se desenvolvem e a interatividade aporta um alto valor agregado como elemento dinamizador no processo de comunicação (ALONSO; MARTINEZ apud DIAZ NOCI, SALAVERRIA, 2003).

Alguns elementos caracterizadores dos blogs também servem de definição à moda, como a efemeridade, individualismo e multiplicidade. Talvez, por isso, ambos, blogs e moda, tenham tanta sincronia. A moda, como técnica e processo comunicacional se encaixa como uma possibilidade de conteúdo para discussão em plataformas digitais.

Concordando com Gilles Lipovetsky (1989), a transitoriedade é característica fundamental do universo fashion e vem de um passado histórico, em que a alta sociedade foi sendo tomada pelo desejo de novidade e que encarna um novo tempo legítimo e

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uma paixão pelo moderno. “A novidade tornou-se fonte de valor mundano, marca de excelência social. É preciso seguir ‘o que se faz’ de novo e adotar as últimas mudanças do momento: o presente se impôs como o eixo temporal que rege uma fase superficial, mas prestigiosa da vida das elites” (LIPOVETSKY,1989, p. 33).

A mesma efemeridade que está presente na moda acompanha a rotina dos blogs, visto que há uma necessidade de atualização, mudança de informações e acréscimo de novidades, de tal forma que esses processos de reciclagem são os que atraem os leitores e visitantes das páginas de blogs. Não é característica do ciberleitor manter participações e emitir opiniões em plataformas online que estejam desatualizadas.

Partimos do pressuposto de que a base dos blogs caracteriza-se pela postagem de textos, diferentes de fotoblogs e videologs. Textos são ferramentas básicas de trabalhos de jornalistas. O profissional responsável pela construção de estruturas textuais e pela emissão da informação. Se forem os jornalistas os responsáveis por formatar a notícia e blogs vinculam notícias, são os blogs ferramentas jornalísticas?

Essa é uma questão muito pertinente e que tem suscitado reflexão. A notícia jornalística é constituída a partir de ditames que enfocam a imparcialidade na reconstrução dos fatos, o correto uso da língua, os valores-notícia e ainda o interesse público, como defende Muniz Sodré - “para o código jornalístico, o interesse por um evento está em relação direta com a sua atualidade e sua significação social e em relação inversa com a distância psicológica entre o lugar do fato e do leitor” (SODRE, 1996). Seguindo esses pressupostos, o

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blog se distanciaria de um fazer jornalístico, pois não atende, necessariamente, às normas da língua, não se preocupa com a factualidade e expõe textos permeados por opiniões. Neste contexto chamamos a americana Rebeca Bloom para expressar sua contrariedade ao pressuposto que diz que blogs são elementos jornalísticos:

O que os weblogs fazem é impossível para o jornalismo tradicional de reproduzir, e o que o jornalismo faz é impraticável de ser feito em um weblog. Para mim, reportar notícias consiste em entrevistar testemunhas e especialistas, checar fatos, escrever uma perspectiva original sobre um assunto, e supervisão editorial: o repórter pesquisa e escreve a história, e seu editor assegura-se de que ela está de acordo com suas expectativas. Cada passo é desenvolvido para se alcançar um produto consistente que é divulgado de acordo com os padrões da agência de notícias. Weblogs não fazem nada disso (BLOOD, 2001).

Na contramão de premissas tradicionais, os blogs tem atendido a indicações de um fazer jornalístico contemporâneo e diferenciado. Reflexo das transformações pelas quais passamos em virtude das próprias mudanças da sociedade. Para Eduardo Meditsch (1992), o jornalismo se sustenta num tripé formado pelas linguagens, pelas tecnologias e pelos modos de conhecimento. O pesquisador salienta que o jornalismo tem uma ampla importância social no sentido de produzir conhecimento e de torná-lo acessível a todas as pessoas. Dentro desta ótica, a internet encaixa-se perfeitamente. O jornalismo digital traz em sua essência a divulgação da dita informação pílula, que é fácil de ler e pode ser consumida rapidamente.

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Quanto à usabilidade, os blogs assumem uma considerável vantagem, visto que são de fácil manuseio e não exigem conhecimentos técnicos aprofundados. Com o aumento de visitantes diários nas páginas dos blogueiros abre-se a possibilidade de anunciantes demonstrarem interesse pelo suporte, que de acordo com os conteúdos vão atrair publicidades específicas.

A adesão da temática moda nos blogs está alterando conceitos e disseminando novas formas de pensar o que é fashion. A ousadia e a criatividade estão presentes em várias das propostas de notícia de moda na internet. A exemplo dos sites www.oficinadeestilo.com.br/blog e www.chic.com.br. Cabe destacar que ambas as propostas convergem na tentativa de explorar as mais variadas facetas do que pode ser descrito como moda, se diferenciados, obviamente, quanto às abordagens escolhidas.

A informação está disponível. Agora, como sabemos se é crível? A questão é importante, visto que a credibilidade de um blog está intimamente ligada com a qualidade de seus conteúdos, refletida, certamente, no número de acessos. Alguns itens como: hipertextualidade, possibilidade de contato com o autor, ou seja, interatividade, citações e referências, dão à página mais respaldo.

Como cita Paulo Serra, em Web e credibilidade O caso dos blogs, a competência dos blogs está ligada aos seguintes elementos: a) informação original; b) contextualização e relacionamento das informações com outros fatos; c) Informações especializadas e técnicas; d) atualização da página; e) tipo de linguagem que se utiliza e a capacidade

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argumentativa apresentada. A partir deste espectro, a pesquisa concentra-se nas características e possibilidades

da notícia de moda digital, a qual pode/deve contemplar quesitos como dinamicidade, atualização, polifonia, a hipertextualidade e acessibilidade, ao reconhecer a moda como importante setor econômico e social por movimentar milhares de pessoas ao redor do mundo e chegar aos mais distantes locais, levando tendências, disseminando usos e costumes, referindo a história e alavancando modismos.

Procedimentos metodológicosQuanto aos procedimentos metodológicos, optou-se por trabalhar com base no

modelo híbrido proposto para jornalismo online pelos pesquisadores Elias Machado e Marcos Palacios (2006), com as devidas alterações para encaixar-se nos objetivos e especificidades desta pesquisa. Desta forma, os processos realizados foram: 1) Revisão de bibliografia e acompanhamento do blog e website 2) Delimitação e recorte dos sítios que julgamos ter representatividade em nível nacional, além da definição do período a ser estudado e 3) Elaboração de categorias de análise, baseadas na pré-avaliação dos websites, bem como nas características de jornalismo online e de moda, quais sejam: conteúdo e linguagem web. Acreditamos que a união de todos os elementos observados nas categorias analíticas configuram determinantes para a compreensão da notícia de moda no Brasil. Desde tais categorias, realizamos a análise descritiva do weblog e website. A análise teve como ponto de partida a descrição dos objetos com base nos estudos

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teóricos. Ressaltamos que o objetivo central da pesquisa é observar a notícia em sua forma de texto, em como chega ao ciberleitor, e não em seu processo de produção.

Apresentação e Características dos websites Blog Oficina de EstiloO blog oficina de estilo foi criado por Cristina Gabrieli e Fernanda Resende, ambas

são consultoras de imagem. Elas trazem em sua bagagem cultural cursos sobre Análise de Cores, Tecnologia Têxtil, História da Arte, Fotografia de Moda, Produção e Jornalismo de Moda, Etiqueta Empresarial, entre outros.

Todos os assuntos estudados são aplicados na rotina do weblog. As personal stylist10, responsáveis por alimentar a página na internet, adentraram a atmosfera do online em suas práticas produtivas, em fevereiro de 2006.

Além de consultoras de moda, blogueiras e personal stylist as moças realizam outras ações de moda, como o “Sacolão do Estilo”, evento semestral em que são comercializadas peças usadas a preços mais acessíveis. Cris Gabrieli e Fê Resende ainda colaboram com a revista Catarina e com os blogs Filme Fashion e Update or Die11.

Descrição e Linguagem Web O blog em estudo, situado no endereço www.oficinadeestilo.com.br/blog,

10 Consultor de estilo e imagem. 11 <www.filmefashion.com.br>, <www.updateordie.com.br>

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apresenta fundo lilás com bolinhas mais claras, referência à estampa clássica petit-pois. No topo da página fica o cabeçalho com o título de abertura e com ilustrações e fotografias que variam a cada entrada dos leitores no blog ou novos cliques. A página central tem amplo espaço dedicado às postagens, que são inseridas diariamente, com exceção dos domingos12. Os assuntos em pauta são diversificados e atendem as tendências do momento. Os textos estão distribuídos em ordem decrescente cronologicamente, do mais antigo ao mais novo, como são os blogs. As matérias em sua maioria estão acompanhadas de fotos ilustrativas ou vídeos, o que dinamiza a informação e as aproxima do leitor de internet.

No lado direito da página há uma coluna dedicada às informações gerais. Primeiramente há a apresentação das donas do blog, com seus respectivos nomes e uma foto conjunta. Logo, há uma distribuição em subitens: “A oficina”, onde é contada a história do blog, como é desenvolvido o trabalho e os serviços que são prestados pelas consultoras de moda, na atividade blogueira e em outras áreas, ligadas à moda; “Mais da gente” , no qual estão descritos os lugares onde os internautas podem encontrar mais informações sobre o Oficina de Estilo, a exemplo de links externos como o dailymotion, flickr, orkut e youtube13; “Busca” que é uma ferramenta para encontrar assuntos específicos no blog; “ A gente também tá aqui”, espaço com links dirigidos a outras ações das meninas, no circuito 12 O fato de não ocorrer publicação aos domingos fez com que analisássemos o dia seguinte, 12 de maio, uma segunda-feira.13 http://www.dailymotion.com/chibitschibits, http://www.flickr.com/photos/oficina-de-estilo/ www.orkut.com.br, http://br.youtube.com/profile?user=chibitschibits

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moda/online; “Blogs de Moda”, o blogroll com endereços na internet recomendados pelo Oficina de Estilo; “Arquivos”, aqui figuram datas com os meses e o ano e as publicações referentes ao período. Além de todos os títulos elencados anteriormente, ainda constam outros dedicados a indicar blogs de amigos e sugestões de compra, com o nome das referentes marcas.

Os textos, quanto à linguagem web, tem como característica a leveza e a fluidez no que é publicado. As frases são, geralmente, curtas e a mensagem que é passada se dá em pequenos blocos. Esses elementos são, também, caracterizadores do texto online.

As matérias dispostas no blog Oficina de Estilo estão repletas de hipertextualidade. Elemento esse que dá margem para o leitor buscar mais notícias sobre a palavra sublinhada, e assim, aprofundar determinado assunto. Além disso, a hipertextualidade presente nos textos conduz o internauta aos arquivos do blog, onde é possível encontrar tópicos sobre o mesmo assunto com diferente abordagem, feita anteriormente. Um exemplo da interatividade presente no blog está presente na frase a seguir: “Na revista Bazaar desse mês tem matéria dizendo da “nova roupa de festa”. A palavra, Bazaar caracteriza um hiperlink que liga ao website da revista citada na frase anterior.

A atualidade é outro elemento presente, visto que as consultoras de moda, responsáveis pela alimentação do site, mostram preocupação com a atualização da página. Constatamos isso ao perceber em nossa análise que o blog é, praticamente, alimentado todos os dias com notícias do mundo da moda, nacional e internacional. Essa novidade é

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que, também, resulta no grande volume de acessos diários. Como o Oficina de Estilo cheira a novidade, os interessados em moda sabem

que podem contar com informações de qualidade e com atualidade. Assim, eles leem as matérias e interagem com as donas do blog, de maneira a gerar uma série de outros comentários sobre os assuntos em pauta. Logo abaixo de cada nova matéria postada está o espaço dedicado aos comentários.

A possibilidade de assistir vídeos, ver recortes de revistas como Vogue, Gloss e outras especializadas em moda, perceber fotografias e imagens de desfiles, etc. faz do blog uma ferramenta multifacetada, que atrai diversos olhares pela convergência midiática que representa.

Conteúdo do Blog Oficina de EstiloO perfil editorial do blog é definido por seu próprio slogan: “Moda para a vida

real”. No dia 7 de maio o assunto na página principal do Oficina de Estilo foi a exposição “Super Heroes - Fashion e Fantasy”. Neste dia, foi postada uma matéria sobre a exposição já inserindo o tema com a moda do dia-a-dia. O assunto gerou 15 comentários referentes à publicação, que exibiu fotos de desfile e de pessoas vestidas como herois ou inspirados em ícones famosos. As imagens, novamente, deram sustentação simbólica ao assunto. A matéria uniu o factual com o serviço, uma vez que ao noticiar a exposição também trouxe dicas através de texto, imagens e links externos sobre como adaptar o estilo das

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vestimentas de heroi ao gosto pessoal do leitor.No post do dia 12 de maio, o assunto que motivou a pauta foi a Festa do MET14, festa

de gala do Costume Institute, parte fashion do Metropolitan Museum of Art, em Nova Iorque. As blogueiras trataram de comentar os detalhes que chamaram a atenção nos trajes vestidos pelos convidados e celebridades. Embora já tivessem comentado sobre as roupas e modelitos levados ao evento (postagem em 06 de maio de 2008), chegou a vez de comentar os acessórios da noite. Os itens que mais estiveram presentes foram os braceletes e as pulseiras, resultando em uma reunião de diversos meios de comunicação que anunciaram as pulseiras como sendo o hit. Assim, a notícia foi escrita com esse foco. O tema foi desenvolvido em diversos ângulos, a exemplo de dicas de uso, ou tamanho e ou forma dos acessórios. Intitulada como “Mulherzinhas de Pulso Firme”, a matéria rendeu 23 comentários.

O português usado está de acordo com as normas gramaticais, a exceção de casos nos quais as palavras são escritas de maneira equivocada, possivelmente, para expressar um determinado estilo de falar e que abra margem para uma outra interpretação da palavra. A exemplo, de citações como “Bom pra ir mointo ao cinema” ou outra frase como “só usar micro sainhas e xadrezes (existe xadrezes?)”.

14 O Museu Metropolitano de Arte (MET) foi fundado em 1870, em Nova Iorque, por um grupo de cidadãos americanos que pretendia criar um museu para levar arte e arte educação para o povo americano. In http://www.metmuseum.org.

Figura 1- Postagem do blog Oficina de Estilo - 7 de maio de 2008.

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Website Chic O website CHIC tem à frente a jornalista, empresária e consultora de moda Gloria

Kalil. Gloria iniciou a carreira como jornalista da editora Abril, mas logo optou por trabalhar no ramo têxtil, e foi responsável por trazer grifes internacionais para o Brasil. Em 2000, Kalil lançou o site www.chic.com.br em que é a editora-responsável.

Descrição e Linguagem Web O website Chic tem como endereço virtual www.chic.com.br, no entanto é

encaminhado automaticamente para o site dentro do portal IG, no endereço http://chic.ig.com.br. O site é um dos grandes nomes quando a questão é jornalismo de moda no Brasil. Porém, constata-se que a moda é apenas um eixo de pautas que o site aborda. O cabeçalho superior (primeira barra de links do site) é do próprio portal IG, seguido das seguintes opções: “Faça sua Busca”, “Assine”, “e-mail”, “SAC”, “Canais” e um ícone com o discador do portal, BrTurbo. Na faixa inferior, há uma pequena logomarca com o nome do site associado ao nome da editora. Ao lado mais uma ferramenta de busca, desta vez, disponibilizada pelo Google15. Na barra horizontal seguinte, seguem os links do site direcionados ao Chic: “Editorial”, “Chic News”, “Carinhas”, “Desfiles”, “Ouça” e “Assista”. Em “Editorial” é disponibilizado o último texto assinado por Gloria Kalil, no qual ela seleciona 15 O Google foi fundado por Larry Page e Sergey Brin, dois estudantes Ph.D de Stanford em 1998. Seus sócios incluem Kleiner Perkins Caufield & Byers e Sequoia Capital. Google presta serviços por meio de seu site público, www.google.com. A companhia também oferece soluções para busca na rede, em associação com provedores de conteúdo.

Figura 2 – página inicial do blog oficina de estilo - 12 de maio de 2008.

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um assunto específico e explora em forma de texto inserindo opinião e dicas sobre o assunto escolhido. Além disso, também é possível ler os últimos editoriais publicados.

Em “Chic News” encontram-se todas as notícias publicadas no site, em ordem de postagem. Através do sistema de arquivamento é possível encontrar notícias que foram publicadas nas últimas duas semanas. Em “Carinhas” é onde estão as matérias com maior número de imagens. São notícias que se focam mais em comentar e passar a ideia do que a redação aprova ou não em termos de estilo dress-code16, usando celebridades e nomes da moda como respaldo.

Em “Desfiles” o leitor pode filtrar por cidade, por estação e por estilista/marca para ter acesso à galeria de fotos, vídeos e informações sobre aquele desfile específico. É interessante detalhar que o site disponibiliza apenas desfiles do Brasil, centrando-se em três cidades: São Paulo, Fortaleza e Rio de Janeiro. E nas seções “Ouça” e “Assista”, estão disponíveis seleções de músicas (remix) exclusivos para o Chic e vídeos de desfiles, videoclips ou até mesmo, dicas de Gloria Kalil.

Abaixo, seguem chamadas ilustradas para matérias que podem variar de duas a três notícias em destaque neste espaço. Na barra vertical, à direita, há a possibilidade de o leitor selecionar um desfile com três filtros diferentes, já citados.

Quanto à imagem o site utiliza em cada matéria ao menos uma ilustração para dialogar com o texto. Nos dois dias analisados, todas as chamadas na página inicial são ilustradas, e as principais notícias recebem destaque quanto ao tamanho da imagem 16 Dress-code são parâmetros seguidos visando o ambiente e a ocasião para obter um determinado padrão.

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(6,5cm x 9,5 cm e 13,5cm x 9,5cm). Ao acessar cada matéria, incluindo o editorial da Gloria Kalil, é disponibilizada uma galeria de fotografias ou ilustrações sobre o tema. A única fotografia fixa na página inicial é a do editorial de Gloria que traz a mesma juntamente com sua assinatura. Quanto ao texto percebemos que a construção das matérias é muito próxima do jornalismo online no uso de linhas de apoio e texto curtos, em média dez linhas, divididas em dois parágrafos ou blocos. A sensação que as matérias passam através do texto é a de “conversa” com o ciberleitor, tanto pelo uso de exclamações quanto pelo uso de imperativo. Além disso, também foi possível observar que há uma aproximação dos textos com o “mundo da moda” no uso de trocadilhos e jargões do meio.

O hipertexto é utilizado de maneira moderada e usualmente em uma dinâmica de autorreferencialidade, ou seja, os links que estão nos textos levam a outras matérias já publicadas pelo Chic. Na matéria sobre as unhas das celebridades no jantar de gala do MET, disponível no dia sete de maio, há o link de autorreferencialidade duas vezes.

Quanto à atualização é observada de acordo com a troca de matérias na página inicial entre os dias sete e 11 de maio de 2008. Observamos que as matérias não são trocadas todas de uma vez só, a cada dia a média é de duas a quatro matérias a serem atualizadas. Uma característica da linguagem web, considerando o grande potencial de armazenar conteúdo, são as matérias que não aparecem mais na página inicial. Estas não são descartadas, vão para um arquivo que pode ser facilmente encontrado ao acessar qualquer notícia dentro do website.

Figura 3 - Página inicial do site Chic - 11 de maio de 2008.

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A convergência de mídias se faz completa neste site. É possível ler notícias, ver galerias de fotos, vídeos e ouvir músicas; todos disponíveis dentro do próprio site, sem links externos. As seções que estão em destaque na página inicial, logo abaixo das notícias principais, sempre traz dois elementos da convergência de mídias: “Ouça” e “Assista”.

Já a interatividade é muito pouco utilizada nem mesmo há o contato com os produtores de conteúdo. Não existe endereço eletrônico de contato com a redação do website e também não existe um link “Fale Conosco” ou semelhante. Além disso, ao clicar no link “expediente” o site retorna à página inicial sem apresentar nenhuma informação. É importante registrar que durante três meses testamos o link (expediente) e este não apresentou dados. Para nos certificarmos, utilizamos dois navegadores de Internet, Mozilla Firefox e Internet Explorer, mas o resultado obtido foi o mesmo para ambos. Desta forma, a interatividade resume-se em poder enviar notícias através da página (via e-mail pessoal) e a imprimir, links oferecidos na página, o que de forma alguma é o conceito de interatividade na web.

Conteúdo do site ChicAo estudar a página inicial do dia sete de maio de 2008 verificamos cinco matérias

inseridas na subcategoria de tendência, do total de 11 disponibilizadas. Já no dia 11 de maio de 2008 (domingo) este número cai para dois de 12 matérias.

Ressaltamos que os editoriais tratam de diversos temas e sempre trazem a

Figura 4 - Detalhe da página inicial de 07/05/2008 quanto à convergência de mídia no site Chic.

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assinatura da jornalista Gloria Kalil, como é comum em revistas impressas e, além disso, não tem periodicidade fixa para serem publicados, comprovado pela pesquisa. No período de observação, o editorial permanece mesmo (“Os jeans e seus sapatos”) e foi publicado no dia cinco do mês de maio.

A consultora de moda também faz às vezes de consultora de etiqueta, como é o caso em “Gloria ensina: como dar os pêsames?”. Outra chamada que pode exemplificar tanto a subcategoria de comportamento como a de celebridade é “Cindy, a arrependida: top fala que não aproveitou seu tempo...”, pois ao mesmo tempo em que trata de um comportamento pessoal também usa o nome de uma conhecida modelo.

Considerações finaisEsta pesquisa buscou compreender de forma analítica como se dá o jornalismo

de moda em websites brasileiros por meio do recorte selecionado. A observação dos dois websites complementa uma visão pouco explorada do conteúdo para web em jornalismo de moda.

Para compreender o cenário contemporâneo da moda no suporte online, buscamos as origens do jornalismo online. Acreditamos que nossos objetos são uma fusão de jornalismo de moda e jornalismo online, manifestados no meio digital.

Após a descrição analítica e com apoio dos capítulos teóricos, constatamos grandes diferenças e, por outro lado, algumas semelhanças entre os sites estudados. Apuramos que

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os websites são próximos da linguagem online, quanto ao uso de imagens e na busca de ser mais atraente ao leitor de web. Um fator comprovado pela pesquisa é que a imagem é sempre empregada nas matérias, consequência direta dos temas tratados. Portanto, afirmamos que a escolha de incluir uma galeria de imagens ou usá-las como plano de fundo sempre terá vantagem sobre o recurso da descrição em forma de texto de uma peça de roupa ou de uma coleção, por exemplo. O jornalismo de moda online segue a máxima “uma imagem vale mais do que mil palavras”, ainda mais apropriada quando considerado o leitor na web.

Além disso, os websites não desenvolvem uma relação de cores, tipo ou fonte com a seção trabalhada, o que geraria uma identificação mais imediata com o tema tratado. Destacamos que o jornalismo de moda online, por meio da segmentação pesquisada, seleciona diferentes ângulos na construção da notícia, os principais: factual, editorial, celebridades e serviço.

Já no website Chic percebemos que o objetivo é pautar assuntos gerais, que permeiem a moda. Ambos dão bastante ênfase para matérias que trabalham na dinâmica de aproximação do leitor não-especializado ao mundo da moda. Ou seja, partem da mídia para a moda. Isso nos leva a seguinte proposta: podemos afirmar que Gloria Kalil cultiva em prioridade a consultoria de moda (serviço). Desta forma, não surpreende que o site Chic produza maior volume de matérias de serviço. Caso semelhante acontece no blog Oficina de Estilo, que trabalha com assuntos factuais, ou seja, ligados a eventos da

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moda ou casos específicos que suscitem um trabalho sobre o assunto. Como as donas do blog são consultoras de moda, também, não faltam matérias de serviço, que dão dicas e ensinam o adequado e o menos adequado em algumas situações.

O meio online tem capacidade imensurável de armazenamento de informações, o que também nos instigou a observar como os websites de jornalismo de moda no Brasil fazem o gerenciamento destas. Além disso, é importante lembrar que a moda é cíclica e em pouco tempo perde a “validade” de conteúdo, potencializada com o anseio do ciberleitor em saber sempre o que é mais recente.

Observamos que de modo geral as notícias e galerias de foto ou de vídeos são facilmente localizadas, pois são arquivadas por tema ou por ordem cronológica.

Entendemos que a moda é um grande domínio que permite ser recortado de acordo com os anseios e objetivos dos produtores de notícia. Percebemos aí, na moda, a enorme semelhança com o jornalismo, que pode ser coligado aos mais diferentes temas. Sem dúvida, afirmamos que o Jornalismo de Moda em Websites no Brasil é uma trama maleável. Concluímos que a linha editorial e os interesses de cada website traçam seu posicionamento estético e de conteúdo e, de acordo com o segmento estudado, a qualidade e a diversificação de perfis atendem a todos os públicos consumidores de informação na internet. Moda como conceito, como sistema, como estilo. Todas as possibilidades são exploradas e descritas através dos ativos da notícia. Com informalidade ou não, as informações são passadas e construídas junto ao leitor, de maneira a absorver as

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potencialidades multimídia que a internet oferece. Assim, a notícia se prende a imagens, vídeos, som e luzes.

Bibliografia consultada

ALONSO, J.y MARTÍNEZ, L. (2004): “Enjuiciar Internet: oportunidades y perjuicios de las TIC en el Periodismo”. En II Congreso Online del Observatorio para la Cibersociedad. disponível em <http://www.cibersociedad.net/congres2004/index_es.html>

BLOOD, Rebecca. Weblogs,  A  History  and  Perspective. Disponível em  <http://www.rebeccablood.net/essays/weblog_history.html> , 2001.

BARBOSA, Elisabete, GRANADO, António. Weblogs: Diário de Bordo. Porto: Porto Editora, 2004.FLORES, Ana Marta Moreira. Jornalismo de Moda Online No Brasil. 2008, Monografia defendida no Centro Universitário Franciscano. Comunicação Social- Jornalismo – Santa Maria/RS

MEDITSCH, Eduardo. O Conhecimento do Jornalismo. Florianópolis, Editora da UFSC, 1992.

RECUERO, Raquel . Warblogs: Os Weblogs, o Jornalismo Online e a Guerra no Iraque. Verso e Reverso (São Leopoldo), São Leopoldo, n. 37

SILVA, Jan Aline. Mãos na Mídia: Weblogs, Apropriação Social e Liberação do Pólo da

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Emissão. 2003, Dissertação de mestrado defendida na UFBA. Estudos Interdisciplinares da Comunicação - XXV Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação – Salvador/BA

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O site como espaço da autorreferencialidade do jornalismo televisivo: o caso do Programa Globo Rural 1

Andréa Franciele WEBER2

Fabiane SGORLA3

O desenvolvimento de novas tecnologias de informação e comunicação, concomitante aos processos de globalização, vem gerando infinitas implicações nas práticas comunicacionais dos vários campos sociais, das instituições e nas relações particulares dos indivíduos. A Internet, a partir, especialmente, do sistema Web ou World Wide Web (www - rede de alcance mundial), que permite a construção dos sites, foi uma das principais responsáveis pelas atuais transformações nas estratégias de comunicação.

Como uma instância do campo midiático, o Jornalismo é uma das primeiras a sofrer mutações devido ao desenvolvimento tecnológico, bem como devido às mudanças sociais acarretadas por esse desenvolvimento. Essas mutações podem ser percebidas em todas as dinâmicas da realidade do Jornalismo – da produção à recepção. Nesse cenário de transformações, o Jornalismo teve que buscar novas estratégias para a sua aceitação,

1 Texto-base originariamente apresentado no Intercom Sul 2009, realizado na Furb, Blumenau (SC).2 Professora do Curso de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Maria UFSM – Cam-pus CESNOR, Mestre em Letras pela UFSM, Bacharel em Letras e Jornalismo pela UFSM. 3 Mestre em Comunicação pela UFSM, Especialista em Comunicação Midiática pela UFSM. Bacharel em Jornalis-mo e Relações Públicas pela UFSM.

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valorização e reconhecimento por parte de seus públicos. Dentre as várias estratégias e operações que afloraram nesse contexto, seja de discurso ou de ato, destacamos para esta pesquisa a estratégia da autorreferencialidade. Na ordem prática, a autorreferencialidade se apresenta através da explicitação dos aspectos internos das rotinas de produção das notícias.

Hoje, a autorreferencialidade é corriqueiramente percebida nos mais variados meios e veículos de comunicação, tendo como destaque os espaços midiáticos proporcionados pela Internet, que apresentam amplas possibilidades de arranjos para esse tipo de estratégia do Jornalismo. Por exemplo, no caso do telejornalismo, observamos que o discurso auto-referencial desses programas televisivos aparece com frequência em seus respectivos sites na Web.

Sob esta perspectiva, buscamos, através deste artigo, refletir sobre a auto-referencialidade como categoria presente nas práticas jornalísticas que se observam na contemporaneidade. Para tanto, discutimos o ambiente em que se configura a auto-referencialidade na realidade do Jornalismo, traçamos algumas de suas características e apresentamos relatos empíricos sobre a aplicação peculiar da auto-referencialidade de um telejornal intitulado Globo Rural, veiculado há 29 anos pela Rede Globo de Televisão. O Globo Rural apresenta um site (www.globo.com/globorural) em que são dispostos vídeos sobre os bastidores da redação do programa. A partir da observação dos vídeos aí publicados descrevemos e analisamos algumas das estratégias de auto-referencialidade

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usadas por seus produtores.Esta proposta de estudo se justifica, justamente, pela necessidade de se reconhecer,

exemplificiar, descrever e analisar as características do Jornalismo contemporâneo que está em constante metamorfose. Vários estudos estão sendo desenvolvidos nesse sentido e o que propomos aqui vem colaborar com o aprofundamento de questões já iniciadas e também apontar novos questionamentos.

Este trabalho está organizado em três segmentos principais. Primeiramente é apresentada uma contextualização do “processo de midiatização”, identificado como cenário em que se configuram as práticas de auto-referencialidade no Jornalismo, considerando as acepções dos pesquisadores Eliseo Verón (1997), Muniz Sodré (2002) e Antônio Fausto Neto (2006). O segundo segmento é dedicado à compreensão da auto-referencialidade na realidade do Jornalismo, levando em conta argumentações dos pesquisadores Viviane Borelli (2005), José Luiz Braga (2005), Antônio Fausto Neto (2007) e Fabiane Sgorla e Maria Ivete Trevisan Fossá (2008). Por fim, observa-se o caso empírico do programa jornalístico televisivo Globo Rural, que, em seu site, apresenta vídeos sobre os bastidores da produção do programa, efetivando o jornalístico auto-referencial.

“Processo de midiatização”Verificamos, hoje, um redimensionando das ações e processos de comunicação

em variados campos sociais devido, principalmente, aos processos globalizantes. Concomitante à globalização está o desenvolvimento de novas tecnologias, que são

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associadas aos meios de comunicação tradicionais (rádio, televisão ou imprensa) ou responsáveis pela criação de novas mídias (como as surgidas através dos mecanismos da Internet).

Nessa conjuntura, certas tecnologias de mídia, bem como suas lógicas, linguagens e estratégias, tornam-se disponíveis para serem utilizadas facilmente por diferentes atores sociais e com isso acabam sendo incorporadas ao dia-a-dia dos indivíduos, imbricando-se nas dinâmicas recorrentes no espaço social. A esse processo social dá-se o nome de “processo de midiatização” (VERÓN, 1997; SODRÉ, 2002; FAUSTO NETO, 2006).

Segundo Fausto Neto (2006) a sociedade em que a “midiatização” se aplica se chamaria de “sociedade midiatizada” e é considerada um avanço deste momento.

Trata-se de uma nova ambiência, de uma nova forma de vida que resulta da inscrição crescente das tecnologias nos processos de interação das práticas sociais, que passam a ser organizados pela “sócio-técnica”. Nesses termos, a experiência contemporânea é realizada por novos artefatos, cuja lógica, forma de saber de pensar e de fazer, decorrem menos dos fundamentos clássicos nos quais se produzam os vínculos sociais, e mais e mais da ordem informatividade4. Não existe nenhuma prática social dos mais diferentes campos e em distintos processos de funcionamento - que não seja afetada pela ordem da midiatização. Ela se converte num fenômeno social ao mesmo tempo em que ela própria transforma o “modo de ser” da sociedade onde ela opera. (FAUSTO NETO, 2006, p.23-24)

4 Fausto Neto (2006b) utiliza o termo informatividade a partir do conceito de Scott Lasch, descrito na publicação LASCH, Scott. Crítica de la información. Buenos Aires: Amorrortu, 2006.

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Na “sociedade midiatizada” há uma nítida complexificação dos processos de comunicação. No panorama dos meios de comunicação tradicionais, a percepção fixa do emissor e do receptor, típica dos modelos clássicos da comunicação e que prezava a lógica emissor-mensagem-receptor, é extrapolada. Hoje, já é possível ver que as funções dos atores se tornam mestiças - o leitor pode assumir características de produtor e vice-versa e ambos adquirem o papel de interagentes. Logo, o emissor e o receptor deixam de serem pólos estanques e tornam-se híbridos, trocando suas atribuições.

A popularização da máquina fotográfica digital, dos artefatos de celular e a possibilidade da criação facilitada (por qualquer pessoa) de sites através do sistema da Internet, por exemplo, permitem que as relações particulares entre os indivíduos possam se processar através de tecnologias midiáticas. Segundo o pesquisador Muniz Sodré (2002), essas relações sociais específicas implicam em uma qualificação particular da vida, um novo modo de presença do indivíduo no mundo.

Ao se instalar no interior dos campos sociais e no próprio espaço social como um todo, o “processo de midiatização” estimula a criação de uma ambiência singular para os indivíduos. Sodré (2002) acredita que a “midiatização”, como uma nova ambiência, interfere na consciência individual e coletiva, provocando visíveis alterações no sentido de espacialidade e temporalidade das relações.

Essa nova ambiência acaba por configurar um tipo singular de controle moral, de um quarto âmbito existencial5, o bios midiático - ethos midiatizado, tal como explica Sodré 5 De acordo com as construções do advindas da Grécia antiga a esfera do homem na sociedade era constituída

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(2002). Para o pesquisador, na jurisdição do bios midiático há o domínio mercadológico, com uma designação cultural própria - a “tecnocultura”, que rege nova qualificação da vida, originária da evolução tecnológica. O bios midiático configura novos quadros de sociabilidades, de valores, de percepções, de afetos, de costumes e hábitos, de padrões identitários e culturais. Isso acaba por ressoar, de maneira marcante, na construção dos sentidos e significados socialmente participados, na formação de cada ator social, em suas ações cotidianas e estratégias de sobrevivência.

Desse modo, observamos que os “processos de midiatização” expõem uma nova realidade social a partir de transformações na edificação dos discursos, das interações e das práticas elaboradas no cerne dos variados atores sociais e os respectivos campos sociais a qual pertencem. Nessa linha de raciocínio, Fausto Neto entende que essas novas condições sociais repercutem nos “processos de construção dos discursos sociais, nas operações de produção de sentido” (2007, p.2). Isso aconteceria de modo particular nos campos sociais implicados “nos processos de construção da realidade” tal como o campo midiático.

Portanto, as mídias, como “construtoras de realidade” (local em que os discursos são produzidos através de operações sociotécnicas), são ativamente responsáveis pelos “processos de midiatização”, simultaneamente, são vistas como a primeira instância

por pelo bios polítco, (Sodré, 2002, p.) Em sua Ética a Nicômaco, Aristóteles concebe três formas de existência humana (bios) na Polis: bios theoretikos (vida contemplativa), bios politikos (vida política) e bios apolaustikos (vida prazerosa)

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a ser atingida por eles. Em outras palavras, salientamos que, de maneira recursiva, essas transformações causadas pela “midiatização” acabam por interferir e modificar primeiramente os processos recorrentes no próprio perímetro do campo das mídias - no trabalho dos meios de comunicação tradicionais, de modo especial, no âmbito do jornalismo - como veremos a seguir.

A estratégia da autorreferencialidade na realidade do JornalismoO Jornalismo tem o papel de mobilizar o espaço público através da divulgação de

informações de interesse público, em veículos de comunicação específicos, coordenados por empresas de mídia6. Para a pesquisadora Viviane Borelli (2005) o jornalismo é um dos “lugares privilegiados” para a “construção da atualidade e realidade social”. “Isto se efetiva porque o jornalismo é o espaço onde se constrói sentidos a partir do que de fato ocorreu, ao contrário da telenovela, do cinema, etc, que se caracterizam pelo aspecto ficcional, pela recriação de um real” (BORELLI, 2005, p. 6).

O advento da “sociedade midiatizada” ativou mutações nos processos significantes desenvolvidos no interior das mídias. As instâncias e profissões midiáticas tal como o Publicitário, o Relações Públicas e o Jornalista, ao mesmo tempo que estimulam a “midiatização”, são os primeiros a serem impactados por esse processo. Ao observarmos,

6 “As empresas de comunicação são, ao mesmo tempo, instituições que exercem um bem público e empresas comerciais que se regem pelas leis do mercado da concorrência e da necessidade de lucro para subsistir. Essas duas dimensões convivem dialeticamente e condicionam-se reciprocamente, fazendo com que seus processos internos sejam extremamente complexos.” (GOMES, 2004, p.21).

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de modo especial, o Jornalismo constatamos múltiplas alterações em suas dinâmicas, tanto no âmbito da produção, quanto da recepção, através da evidência de estratégicas como a de autorreferencialidade.

Com efeito, Fausto Neto observa que a “midiatização” acaba por afetar “[...] não somente a estruturação da sociedade, mas também as operações desenvolvidas pelo trabalho de produção de sentido das práticas midiáticas (jornalísticas) que organizam as operações de produção da referência e de sua própria auto-referência” (2007, p. 6). Assim, a estratégia da auto-referencialidade passa a ser uma forma utilizada pelo Jornalismo para buscar sua aceitação, valorização e reconhecimento por parte de seus públicos na “sociedade midiatizada”.

Para Sgorla e Fossá (2008), a autorreferencialidade se apresenta como uma maneira de chamar atenção para a sua própria sistemática, o Jornalismo destaca suas rotinas, lógicas, estratégias intrínsecas, suas técnicas e intervenções tecnológicas, culturais e sociais desencadeadas para a fabricação de seus produtos.

No plano prático, a auto-referencialidade se mostra nas matérias jornalísticas, por exemplo, por meio da narração das rotinas produtivas, dos detalhes técnicos, do percurso até as fontes, da checagem de informações, da construção do discurso, das estratégias de edição, diagramação, a apresentação do making-off de reportagens ou entrevistas, entre outras. (SGORLA; FOSSÀ, 2008, p. 4)

Em muitos casos a estratégia correferência surge associada à estratégia de

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autorreferência. A correferencialidade se expressa no exercício do Jornalismo em momentos em que são apresentados argumentos que demonstram qualidades da própria prática jornalística - como um modo de auto-promoção. Através dessa estratégia, que, por vezes, surge em meio a processos de comparação – sejam eles explícitos ou implícitos – entre diferentes veículos de comunicação ou entre programa jornalístico em específico, objetiva buscar a credibilidade e o elogio do público. A correferencialidade aparece também em situações em que certas notícias aparecem como fonte de outras notícias.

Segundo Sgorla e Fossá, ao “falar de si” através da autorreferencialidade e da correferencialidade, o Jornalismo acaba também por mostrar, de modo mais explícito, “sua hierarquia de valores, normas, condutas, critérios de noticiabilidade e demais elementos, objetivos e subjetivos, fundamentais em sua conformação (2008, p.5)”. Ao deixar transparecer esses aspectos ao seu público o mesmo pode perceber a ideologia (relações econômicas, políticas, sociais e culturais) que compõe a empresa de mídia, os veículos de comunicação e a própria prática jornalística.

A Internet revela-se hoje como um dos principais espaços em que o Jornalismo radiofônico, impresso ou televisivo apresenta o discurso auto-referencial. Os sites são constantemente utilizados como complemento dos telejornais, ainda que a Internet apresente uma defasagem de público em relação à televisão. Após observar o contexto em que a autorreferencialidade se processa e as características da autorreferencialidade no Jornalismo contemporâneo, cabe-nos investigar, empiricamente, como a

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autorreferencialidade se apresenta no caso do telejornalismo e sua extensão na Internet.

Estudo empíricoTendo em vista os objetivos propostos neste artigo, procuramos observar a

autorreferencialidade do Jornalismo que se apresenta no site oficial (www.globo.com/globorural) do telejornal Globo Rural (Rede Globo de Televisão). Segundo informações disponíveis no site do programa, o Globo Rural foi criado em 6 de janeiro de 1980 para atender o telespectador que surgia com a expansão do sinal da televisão: “o homem do campo”. Essa data coincidia também com um momento próspero da agricultura brasileira, chamado de “revolução verde”, que é marcado pelo aumento dos índices de produção e produtividade agrícola propiciados pela intensa utilização de defensivos agrícolas.

As reportagens do Globo Rural documentam as atividades técnicas da agricultura e da pecuária de todas as regiões do Brasil e também de várias partes do mundo. O termo ‘Rural’, explícito no título do Programa, é entendido pelo programa para além dos aspectos produtivos da agropecuária, incorporando a cultura, os costumes, as tradições, o folclore, as paisagens, enfim, o cotidiano de quem vive no campo. O público alvo do programa são os pequenos produtores e médios proprietários rurais, os quais têm menos acesso à informação e igual necessidade de atualização que os grandes proprietários. São esses produtores que interagem como programa através de cartas e e-mails.

O Globo Rural pode ser considerado como o principal programa do segmento na televisão brasileira, arrebatando, ao longo desses 29 anos, importantes premiações

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do jornalismo nacional, como o Prêmio Esso, o Prêmio Wladimir Herzog, alcançando reconhecimento dentro e fora do país. Em seu primeiro ano, o Globo Rural foi eleito o melhor programa jornalístico da TV de 1980 pela revista Veja. No mesmo ano, devido à grande audiência, o programa dobra a sua duração, passando a ter 1 hora semanal. Em 1985, foi lançada a revista Globo Rural como complemento ao programa. Em 2000, o programa passou a contar com versão diária e também nesse ano, foi lançado o site do programa (www.globorural.com).

São duas as estruturas do programa Globo Rural: a edição diária e a edição de domingo. O programa diário (segunda a sexta das 6h10min às 6h30min) tem o objetivo de fornecer informações atualizadas sobre cotações, normativas, eventos e novidades para o campo, já a edição de domingo (das 8h00min às 9h00min) que é mais longa e diversificada e elaborada, continua sendo o carro-chefe do programa. É no domingo que o programa atinge seus picos de audiência, que ficam, em media, em 12 pontos, segundo o IBOPE - número bastante expressivo considerado que mais de 80 % da população brasileira vive nas cidades. O programa semanal é reapresentado no canal da Globo News às 17h05 e no cabal Futura às 23h00.

A autorreferencialidade no Globo RuralAo visitar (12 de março de 2009) o site oficial do Globo Rural verificamos no link

“Redação” dois vídeos sobre os bastidores da produção dos programas. O primeiro vídeo, intitulado “Um passeio pelo Globo Rural diário com Priscila Brandão”, possui 2 minutos

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e 30 segundos de duração e o segundo vídeo, intitulado “Conheça a redação do Globo Rural”, possui 4 minutos e 26 segundos de duração.

Resumidamente, o vídeo “Um passeio pelo Globo Rural diário com Priscila Brandão” apresenta uma visita aos bastidores do programa Globo Rural diário, com a narração da apresentadora Priscila Brandão. Ele inicia mostrando Priscila Brandão chegando ao estacionamento da emissora às 4 horas e 30 minutos da manhã e seguindo seu caminho até a redação do programa. Nesse momento, a câmera focaliza repórteres e computadores e acelera suas imagens, mostrando equipamentos e máquinas da sala de redação, inclusive a própria apresentadora, deixando claro que ela também realiza outras atividades além da apresentação.

O vídeo insiste na apresentação dos equipamentos do estúdio, como câmeras e ilhas de edição, as quais a repórter apresenta associados aos seus operadores. Cada operador e cada jornalista é apresentado e é associado à sua função. Toda a apresentação é feita de modo descontraído e cordialmente.

Os temas são introduzidos de maneira didática e informal, exatamente aos moldes do próprio programa: “muita gente me pergunta porque eu tenho que chegar à redação do Globo Rural tão cedo, mas, olha só, esse aqui é o texto de abertura do Globo Rural” (mostra as folhas do script). A insistência no horário de trabalho é marcante, de modo que o tempo é constantemente citado pela apresentadora: chega-se cedo, tem-se pouco tempo para realizar as atividades e trabalha-se também depois que o programa vai ao ar.

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O vídeo também mostra toda a preparação de Priscila Brandão para a apresentação, como as etapas de maquiagem e cabelo, isto é, exibe o que há demais “íntimo” e “pessoal” na produção telejornalística. Por fim, explica o que é uma reunião de pauta, mostrando como ela ocorre - em círculo, em meio aos computadores- e quem dela participa. Na ocasião, a narradora conceitua “reunião de pauta”. Finaliza com a abertura de uma edição do Globo Rural diário, que é o “em frente às câmeras”, o resultado de todo um processo de “por trás das câmeras”, explicitado ao longo do vídeo.

Já o segundo vídeo, intitulado “Conheça a redação do Globo Rural”, é apresentado por Nelson Araújo, apresentador do programa Globo Rural de domingo. O vídeo inicia com uma imagem panorâmica da redação e focaliza o jornalista Nelson Araújo, que é o cicerone do telespectador no passeio pelos bastidores do telejornal. Ele utiliza a analogia (estratégia didática) entre a organização do programa e uma árvore (elemento muito presente na vida do “homem do campo”): “Se o globo rural fosse assim uma árvore, diria que a raiz e o tronco estão fincados aqui nesta sala”, “não é fácil reunir o pessoal aqui, os galhos dessa árvore se estendem pelo Brasil todo”.

O apresentador insiste na menção de que o programa conta com uma equipe madura, cujos profissionais estão na equipe há muitos anos, muitos deles desde as primeiras edições. O narrador busca explicitar que a maturidade, a permanência e o companheirismo são os valores que perpassam dessa apresentação, os quais estão de acordo com os valores do público do programa. Também aqui, jornalistas são apresentados

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e cada um deles é associado à sua função. Esse vídeo insiste menos nos equipamentos da emissora e mais na organização do

trabalho. Mostra as equipes do programa no mapa, evidenciando os locais do Brasil pelos quais elas estão espalhadas. Também destaca o sistema de trabalho: o próprio repórter edita, monta sua matéria. Para ressaltar a quantidade de trabalho que o programa exige, estabelece uma relação entre tempo de material gravado e tempo de material editado (meia hora para cada minuto), bem como entre material gravado e horas de trabalho (cada meia hora de gravação, seis de trabalho).

Para ressaltar a qualidade do telejornal, Nelson Araújo apresenta dois avaliadores técnicos, um Engenheiro Agrônomo e um Médico Veterinário, que avaliam cartas e e-mails, assim como o material que vai ao ar: como jornalistas não são especialistas em agricultura ou pecuária, estes – os especialistas - compõem o quadro de pessoal do telejornal para avalizar o conteúdo e aumentar a credibilidade do programa.

Para atestar a qualidade do Globo Rural, o apresentador destaca a atuação de seus repórteres cinematográficos, que já receberam vários prêmios jornalísticos. Nesse caso, quem avaliza o telejornal são outras instituições, isto é, agentes externos. Desse modo, a qualidade, um dos pilares do telejornal - que tem tempo e capacidade de elaboração narrativa, diferente do que ocorre com outros telejornais - é duplamente reafirmada.

Por fim, o vídeo traz a afirmação de Nelson Araújo sobre a integração entre o programa semanal e os diários, que ocorre especialmente nos aspectos mais informativos

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(já que o dominical poderia ser considerado mais interpretativo), como indicadores econômicos, novidades técnicas e eventos. Essa integração temática é resultado do compartilhamento de profissionais.

Considerações finaisDiante do cenário social midiatizado, a autorreferencialidade, bem como a

correferencialidade, apresenta-se como estratégias cada vez mais presentes no Jornalismo contemporâneo e que buscam a aceitação, o reconhecimento e a validação de suas práticas a partir da captura de seu público, seja ele leitor, telespectador, usuário ou mesmo interagente. A autorreferencialidade passa a marcar uma significativa transformação na construção do discurso jornalístico, no status de sua linguagem e nos efeitos de sentido pretendidos e provocados.

O desenvolvimento das tecnologias de informação e comunicação, ligadas à Internet, ampliou densamente as possibilidades de operacionalização das estratégias auto-referenciais. Através dos exemplos sinalizados neste artigo vimos que, na atualidade, a conexão entre o suporte midiático da televisão e da Internet é um modo comum em que estratégia de autorreferencialidade se aplica no contexto do telejornalismo. Os espaços dos sites são ocupados hoje para apresentar os bastidores de seus processos produtivos das notícias e apresentação de programas jornalísticos televisivos. Isso é constatado, tendo em vista que a televisão apresenta possibilidades temporais e espaciais limitadas ao passo que a Internet constitui-se como um suporte midiático com vastas estruturas

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produtivas.Ao disponibilizar em seu site oficial vídeos apresentando os bastidores de

sua produção, o programa Globo Rural acaba por explicitar a sua estratégia de autorreferencialidade e também de correferencialidade. Ao revelar suas “entranhas” o programa sinaliza transparência e estabelece uma relação de amizade com seu público. A amizade e a transparência são valores importantes para o telespectador do programa, que se não é morador do campo tem um forte vínculo com ele e valoriza esse tipo de conduta. Estratégias como apresentar os profissionais pelo primeiro nome e revelar intimidade e gentileza contribuem para a formação dessa aura em torno do programa.

Observa-se, também, diferença de tratamento em termos de autorreferencialidade entre o programa diário e o dominical, de modo que cada um reproduz no vídeo auto-referencial características observadas no respectivo programa. Assim, o primeiro enfatiza questões associadas a equipamentos, estrutura e técnica, enquanto o segundo focaliza as rotinas produtivas e a organização do trabalho jornalístico. Poderíamos considerar que, a autorreferencialidade observada nos vídeos reproduz o perfil de cada um dos programas: o diário, voltado à informação técnica e econômica, objetivo e breve; o dominical, com uma abordagem mais humana e menos tecnicista, mais interpretativo e longo. Outra constatação é a de que no vídeo relativo ao programa de domingo estão presentes muitos adjetivos, relacionados tanto à constituição do Globo Rural, quanto à própria postura dos profissionais do programa, o que evidência uma insistência maior na estratégia da

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correferencialidade nesse caso.

Bibliografia Consultada

BRAGA, José Luiz. Quando a mídia é notícia. In: Anais do XXVIII Congresso Brasileiro de Ciências da Comunicação. Rio de Janeiro, 2005.

BORELLI, Viviane. Jornalismo como atividade produtora de sentidos. Biblioteca On Line de Ciências da Comunicação, Portugal, 2005.

FAUSTO NETO, Antônio. Um programa em tempos de midiatização. Revista Animus, Santa Maria: UFSM, v. 5, p. 9-26, jun, 2006b.

________________________. Mudanças da Medusa? A enunciação midiatizada e sua incompletude. In: Anais do Encontro da Rede Prosul. São Leopoldo/RS: UNISINOS, 2007.

GOMES, Pedro Gilberto. O processo de midiatização da sociedade e sua incidência em determinadas práticas sócio-simbólicas na contemporaneidade. A relação mídia e re-ligião. In: Anais do Encontro da Rede Prosul. São Leopoldo/RS: UNISINOS, 2007.

GOMES, Pedro Gilberto. Processos midiáticos como objeto de estudo. In: Tópicos teoria de comunicação. São Leopoldo/RS: Editora Unisinos, 2004. (p.21)

RIBEIRO, Marcelo Jorge Pereira Ribeiro. O globo rural e a comunicação no campo. Mono-grafia de conclusão de curso. Curso de Comunicação Social. UFJF-MG, 2005.

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SGORLA, Fabiane & FOSSÁ, Maria Ivete Trevisan. Estratégias e operações de auto-refe-rencialidade no telejornalismo. VI ENCONTRO NACIONAL DE PESQUISADORES EM JOR-NALISMO, 6, 2008, São Paulo. Anais eletrônicos. CD ROM

SODRÉ, Muniz. O ethos midiatizado. In: Antropológica do Espelho. Por uma teoria da comunicação linear e em rede. Petrópolis: Vozes, 2002. (p.11 a 82)

GLOBO RURAL. Conheça a redação do Globo Rural. Disponível em: <<http://video.glo-bo.com/Videos/Player/Noticias/0,,GIM385857-7823-CONHECA+A+REDACAO+DO+GLOBO+RURAL,00.html>. Acessado em: 12 de março de 2009.

_____________. Um passeio pelo Globo Rural diário com Priscila Brandão. Disponível em: <http://video.globo.com/Videos/Player/Noticias/0,,GIM385860-7823-UM+PASSEIO+PELO+GLOBO+RURAL+DIARIO+COM+PRISCILA+BRANDAO,00.html. Acessado em: 12 de março de 2009.

VERÓN, Eliseo. Esquema para el análisis de la mediatización. In: Revista Diálogos de la comunicación. N.48. Lima: Felafacs, 1997. p. 9-17

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O medo no telejornalismo brasileiro: um estudo do caso João Hélio1

Elza Aparecida de OLIVEIRA FILHA2

Taianá MARTINEZ3

João Hélio Fernandes Vieites tinha 6 anos de idade quando três assaltantes roubaram o automóvel de sua mãe, na zona norte do Rio de Janeiro. A mãe e a irmã conseguiram sair do carro, mas ele ficou pendurado pelo cinto de segurança e foi arrastado por cerca de sete quilômetros. Os assaltantes pararam e fugiram a pé quando João Hélio já estava morto. Entre os cinco envolvidos no crime, um deles era menor de idade. Este episódio desencadeou uma série de manifestações pelo fim da violência no Brasil e também pela redução da maioridade penal. Em janeiro de 2008 os criminosos foram condenados a penas que somam juntas 167 anos de prisão. O adolescente em conflito com a lei recebeu a pena sócio-educativa mais grave, que é a internação por no máximo três anos, de acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente.

O caso João Hélio foi amplamente mostrado nos veículos de comunicação do Brasil. Só no Jornal Nacional foram doze reportagens relacionadas ao tema entre os dias

1 Texto-base originariamente apresentado no Intercom Sul 2009, realizado na Furb, Blumenau (SC).2 Doutora em Ciências da Comunicação pela Unisinos Professora do curso de jornalismo da Universidade Positi-vo, em Curitiba. E-mail: [email protected] Jornalista formada pela Universidade Positivo em 2008; pauteira da TV Iguaçu de Curitiba, afiliada SBT no Paraná.

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8 e 15 de fevereiro de 2007. No jornalismo brasileiro atual há uma intensa valorização de temas como a violência, crime e seus autores. Mostra-se a marginalidade, o perigo e o risco social que as pessoas enfrentam na vida urbana, principalmente. O presente estudo se propôs a verificar como as notícias sobre crimes veiculadas pelo telejornal de maior audiência no país, o Jornal Nacional, provocam sensação de medo, criando e fortalecendo preconceitos no imaginário social da população de Curitiba, partindo das hipóteses de que o medo gerado pela veiculação de violência fortalece o preconceito racial e social, de que o espaço cedido às notícias de violência cria a idéia de um real também violento, mais do que é na realidade, e de que as matérias veiculadas sobre o assassinato de João Hélio Fernandes geraram apenas revolta, mas não reflexão.

O trabalho buscou, portanto, o principal objetivo de verificar como as notícias de crime e violência são tratadas no telejornalismo e se há um reforço de preconceitos raciais e sociais. Para atingir este objetivo, foi pesquisado como o jornalismo contribui para a construção do imaginário social, identificado como o medo e a violência se relacionam com o jornalismo, foram também analisadas reportagens televisivas que tratam de violência urbana e examinado se o medo da violência é construído pelo telejornalismo no imaginário coletivo da população de Curitiba e se reforça preconceitos raciais e sociais.

Violência e medoO homem é considerado um ser racional, dotado de inteligência e discernimento.

Assim, torna-se difícil entender os atos agressivos e brutos reconhecidos diariamente na

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sociedade contemporânea. A teoria social, utilizada neste trabalho, “entende a violência como um fenômeno social” (MICHAUD, 2001, p.92). Uma particularidade da violência como fenômeno social, apontada pelos teóricos, é a sua ligação com as normas e leis humanas. Segundo Michaud (2001, p. 8), pode haver quase tantas formas de violência quantas forem as espécies de normas. Cada sociedade qualifica a violência conforme as normas que a regem. Uma agressão é considerada mais violenta em uma sociedade de normas rígidas do que em uma de normas mais brandas. Dentro deste aspecto normativo, compreende-se a violência como conseqüência da definição de direitos e deveres dentro da sociedade. Merton, citado por Michaud (2001), afirma que qualquer sociedade designa objetivos e finalidades legítimos a seus membros, ao mesmo tempo em que demarca e controla os meios legais de atingi-los.

A sociedade capitalista, por exemplo, define que o homem deve buscar o lucro, mas existem meios determinados socialmente para conquistá-lo. Porém, para Regis de Morais, “aqueles que, não podendo acompanhar a maratona do possuir, transformam a fragilidade que suas frustrações impõem num feroz potencial de agressividade” (1985, p.16). Além disso, “deste ponto de vista, a violência é para atores sociais uma opção possível sob vários aspectos: como comportamento desviante a serviço da busca de fins socialmente legítimos (os criminosos que procuram fazer fortuna), como comportamento rebelde para mudar os fins ou os meios socialmente reconhecidos” (MICHAUD, 2001, p.94). Quem rouba, na batalha pelo ganho, está transgredindo normas, portanto, comete

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violência.Morais acredita que a maior parte dos crimes é resultado da “opressão das injustiças

sociais, da miséria financeira ou afetiva” (1985, p.80). Para ele, a violência “sempre se originou de necessidades e interesses antagônicos geradores de um clima de disputa, de medição de forças” (p. 79). Na sociedade atual, mais do que nunca, a competição individual ou entre pequenos grupos é incentivada culturalmente. É a competição pela conquista de status social que é demarcado principalmente pela capacidade de consumo do indivíduo. O autor também considera, em menor escala, que a motivação para alguns atos de violência são a falta de “fé no futuro, a uma morte das esperanças pessoais e coletivas” (MORAIS, 1985, p.86), características da sociedade pós-moderna. As agressões morais e psicológicas também são consideradas formas de violência. Apesar disso, de acordo com Michaud (2001, p.11), os prejuízos materiais e físicos são mais importantes, porque a violência física e material deixa marcas visíveis.

A criminalidade, a corrupção e a desigualdade social são facilmente encontradas no Brasil atual dentro de um ciclo vicioso de violência. Resultados obtidos pela 88ª Pesquisa de Opinião Pública Nacional da Confederação Nacional do Transporte (CNT) e Sensus Pesquisa e Consultoria, de abril de 2007, indicam que 90,9% dos brasileiros entrevistados acham que a violência no país aumentou nos últimos anos e as causas disso, para 24,1% dos entrevistados, são a pobreza e a miséria. Maria Victoria Benevides, citada por Cecília Pires (1985, p. 59), diz que a violência é o problema mais grave que o Brasil enfrenta na

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atualidade, porque atinge todas as classes sociais indiscriminadamente. Mas, segundo ela, pune apenas uma: a classe pobre e marginalizada, que é quem assume efetivamente a culpa e acaba indo para a cadeia.

O medo da violência urbana, quando se trata do aspecto da criminalidade, pode ser considerado a principal angústia social da atualidade. Na 88ª Pesquisa CNT Sensus, os brasileiros que consideram a cidade onde moram violenta ou muito violenta somam 34,8%. Barry Glassner (2003) mostra a realidade estadunidense na qual cerca de 62% da população do país, na década de 1990, se descreviam como “verdadeiramente desesperados” em relação à criminalidade. As sensações de insegurança e de desconfiança permeiam as relações cotidianas. O medo que invade o ser humano é de ser assaltado ou sofrer um seqüestro, por exemplo. “O sentimento de insegurança, que se encontra no coração das discussões sobre o aumento da violência, raramente repousa sobre a experiência direta da violência. Ele corresponde à crença, fundada ou não, de que tudo pode acontecer, de que devemos esperar tudo, ou ainda de que não podemos mais ter certeza de nada nos comportamentos cotidianos” (MICHAUD, 2001, p. 13).

Segundo Cecília Pires, a camada mais pobre da população das cidades foi denominada por alguns estudiosos do século XIX como “classe perigosa” (1985, p.60), iniciando-se aí a fobia social da criminalidade. A visão da classe empobrecida da sociedade como sinônimo de perigo reforça os privilégios da classe rica e ainda “enfraquece os laços do homem com a comunidade e fragmenta o ser humano” (PIRES, 1985, p. 12). Além

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disso, este espectro cria a chamada cultura do medo, já que a “permanente fabricação de estereótipos de inimigos permite o entendimento do medo como uma interpretação da realidade, uma maneira de olhar o mundo, uma estética peculiar à civilização mosaico-cristã” (BATISTA, 2003, p. 84).

Mesmo sendo considerado uma defesa essencial por Delumau (1989), o medo afeta negativamente tanto a interioridade e a psique dos cidadãos quanto as relações sociais do mundo contemporâneo. Como conseqüência desse anseio por segurança, surgem os discursos de supressão das “classes perigosas” e pedidos de mais rigidez nas normas da sociedade. “O medo da desordem dispara entre os conservadores a retórica da restrição de direitos e da impunidade” (BATISTA, 2003, p. 186). O medo, tanto individual quanto coletivo, é sempre do que é desconhecido. Teme-se o diferente. Na opinião de Batista, “no Brasil, a difusão do medo do caos e da desordem tem sempre servido para detonar estratégias de neutralização e disciplinamento planejado do povo brasileiro” (2003, p.52). A cultura do medo serve, então, como ferramenta de controle social. A visão que se tem hoje da violência, e a conseqüente cultura do medo, acabam por manter o nível de insegurança nos indivíduos e, assim, sustentar as relações sociais de dominação e privilégios.

Jornalismo Agindo no imaginário social, a mídia pode provocar, propositalmente ou não, o

medo nos indivíduos, principalmente o medo do outro, de um igual, no sentido de ser

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humano. São medos que dão continuidade a preconceitos e são usados como justificativa para alguns tipos de violência (física ou moral), como trata o antropólogo social Luiz Eduardo Soares (2005).

A visão que um indivíduo tem de outro determina sua ação em relação a ele. Se esta visão é negativa, ela pode levar a uma ação violenta. De acordo com Frei Betto (2003), “quanto menos alteridade existe nas relações pessoais e sociais, mais conflitos ocorrem”. Alteridade, segundo ele, “é ser capaz de apreender o outro na plenitude da sua dignidade, dos seus direitos e, sobretudo, da sua diferença” (BETTO, 2003). Fica claro que, nos países em que a violência é um problema recorrente tem-se também grandes barreiras entre as diferenças raciais e sociais respeitadas – caso do Brasil. Ou seja, a violência é temida, mas também as interações raciais e sociais não são aceitas.

Jesús Martin-Barbero e Germán Rey consideram que os medos nas comunidades urbanas provêm não somente do aumento da delinqüência e da criminalidade, mas principalmente “da perda do sentido de pertença em cidades nas quais a racionalidade formal e comercial foi acabando com os referenciais em que se apoiavam a memória coletiva” (2001, p.40). Os autores defendem a idéia de que existe uma grande relação entre mídias e medos nos países da América Latina, principalmente na Colômbia. “Medos, enfim, que procedem de uma ordem construída sobre a incerteza e a desconfiança que nos produz o outro, qualquer outro – étnico, social, sexual – que se aproxima de nós na rua e é compulsivamente percebido como ameaça” (MARTÍN-BARBERO e REY, 2001, p. 40).

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Barry Glassner afirma que o jornalismo é o principal formador e transmissor da cultura do medo. “Entre as diversas instituições com mais culpa por criar e sustentar o pânico, a imprensa ocupa indiscutivelmente um dos primeiros lugares” (GLASSNER, 2003, p. 33). O autor se fundamenta em uma pesquisa estadunidense de 1996, na qual foi perguntado aos entrevistados porque acreditam que os Estados Unidos enfrentam um sério problema em relação ao crime: 76% das pessoas citaram matérias vistas na mídia (GLASSNER, 2003).

No telejornalismo, a principal ferramenta de informação são as imagens, que, de acordo com Jean-Jacques Jespers, “evocam de maneira indirecta a realidade à qual se referem, mas sem a representar” (1998, p. 135). Ainda segundo o autor, estas imagens são portadoras de um conteúdo emocional em detrimento de uma discussão racional. “As imagens de violência ou emocionalmente perturbadoras colocam, por outro lado, um problema especial de mediatização: a imagem de um acontecimento violento reduz a zero os esforços de explicação fornecidos anteriormente” (JESPERS,1998, p. 137). A escolha de noticiar uma ação violenta em horário nobre da televisão pode diminuir o valor de outras notícias, evitando a discussão de determinados assuntos e apontar para outros mais polêmicos e menos necessários para a sociedade.

A televisão, como meio de comunicação, tem nas suas características a criação do simulacro. Para Muniz Sodré, o simulacro “é entendido como uma produção artificial (mecânica, química, eletrônica) de uma imagem” (SODRÉ, 1994, p. 28). O simulacro é ao

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mesmo tempo imaginário e real, é o apagamento da diferença entre o real e o imaginário entre o “verdadeiro” e o “falso”. A realidade da televisão, diz Sodré, é mais real do que a verdadeira realidade.

Sobre a contribuição da imprensa nos rumos das sociedades, Jorge Pedro Sousa (2004, p. 107) vai além e assegura que “embora as notícias representem determinados aspectos da realidade quotidiana, pela sua mera existência contribuem para construir socialmente novas realidades e novos referentes”. Para Martín-Barbero, isto ocorre “pois os meios de comunicação não somente descentralizam as formas de transmissão e circulação do saber, mas constituem um âmbito decisivo de socialização, de dispositivos de identificação/projeção de pautas de comportamento, estilos de vida e padrões de gosto” (2003, p. 67).

O jornalismo se insere nesse processo de socialização já que é considerado ferramenta de difusão de diferentes vozes. Para isso, porém, na maior parte das vezes “a imprensa funciona como agente modeladora do conhecimento, usando os estereótipos como forma simplificada e distorcida de entender a realidade” (LIPPMAN citado por PENA, 2005, p. 142), e é por esse motivo que as diferentes vozes na sociedade podem ser desvirtuadas ou, ainda, simplesmente ignoradas.

Por ser impossível para o jornalismo acompanhar e transmitir todos os fatos ocorridos a cada dia, existem alguns critérios que levam os profissionais a cobrirem ou não um acontecimento. Os critérios utilizados pelos jornalistas para determinar o que

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vai para o noticiário são chamados de valores-notícia. A morte, de acordo com Traquina (2005) é um grande valor-notícia para a comunidade jornalística, bem como o conflito com violência física. Traquina, citado por Sousa, enumera as características que tem uma informação com o valor-notícia de construção4:

amplificação – hiperbolização do acontecimento e das suas conseqüências; relevância – capacidade de mostrar como o acontecimento é importante; potencial de personalização; potencial de dramatização; consonância – ou potencialidade de enquadrar um acontecimento em enquadramentos anteriores (TRAQUINA apud SOUZA, 2004, p.113)

A morte do menino João Hélio, objeto de estudo deste trabalho, tem algumas características acima citadas. O assassinato cruel, dramático em todas as suas dimensões, permitiu uma “amplificação” do acontecimento: foram realizadas passeatas pelo fim da violência no Rio de Janeiro; foi discutida a redução da maioridade penal, já que um dos criminosos era menor de idade; e até mesmo o presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, manifestou-se sobre a morte do menino, entre outros desdobramentos.

Cecília Pires (1985) vai além das teorias da comunicação para explicar as escolhas do jornalismo sobre o que é ou não notícia. Em uma abordagem social, ela entende que, para a notícia ser veiculada em jornais, ela deve atender aos interesses dos assinantes e 4 Stephens, citado por Sousa, “notou que os valores-notícia são historicamente estáveis: privilegia-se o extraor-dinário, o insólito, a atualidade, a referência a pessoas de elite, a transgressão, as guerras, as tragédias e a morte” (2004, p. 112). É como se apenas o tempo e os personagens das notícias mudassem, mas as situações retratadas nos jornais fossem as mesmas.

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lembra que poucos assinantes moram na periferia das grandes cidades, ou seja, pertencem a classes mais pobres. Esta visão pode explicar o afinco com que o assassinato do João Hélio foi abordado pela imprensa, quando membros de classes sociais menos favorecidas sofrem diariamente de crimes igualmente violentos e não são sequer citados nos jornais. A família de João Hélio, neste caso, representa as famílias dos assinantes dos jornais.

A imprensa retira as informações de seu contexto real, mas isso se intensifica no telejornalismo. Nele, as mensagens são curtas e fragmentadas em poucos minutos (algumas vezes até em segundos), diferentemente do jornalismo impresso, por exemplo, em que há a oportunidade de um aprofundamento maior das informações. Na opinião de Marcondes Filho (1988, p. 54), nos telejornais, ninguém se informa seriamente de nada, só se tem a impressão de ficar informado. Barbeiro e Lima tratam da preocupação com a desinformação no telejornalismo ao falar da utilização das sonoras nas matérias. Segundo os autores, as sonoras devem ser as mais opinativas possíveis. “Sonoras que contenham emoção também rendem boas edições. Um choro, uma gargalhada ou uma frase em tom de desabafo às vezes dizem mais que uma declaração de 20 segundos” (2002, p.104). Mas, para eles, o jornalista precisa ter cuidado diante dessas escolhas porque “a emoção pode ser tanto um instrumento enriquecedor como o caminho para a desinformação” (2002, p. 104). Seja no texto falado pelo repórter, na escolha das imagens ou no conteúdo emocional das sonoras, o fato se modifica em sua realidade.

O casamento da palavra com a imagem, característico do telejornalismo, constitui

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a linguagem telejornalística. Existem algumas convenções práticas que acabam por caracterizar esta linguagem. Uma delas é, dentro da mistura de assuntos que o telejornal aborda e da rapidez com que eles devem ser tratados, a clareza no texto. Segundo Barbeiro e Lima (2002), contar a história de forma cronológica e evitando duplos sentidos facilita a compreensão do telespectador. “Qualquer reportagem fracassa se o repórter não disser o que é compreensível para a pessoa comum” (2002, p.69). Eugênio Bucci, por outro lado, sustenta que há muita espetacularização da informação televisiva. “O telejornalismo no Brasil é muito mais dramático do que factual. Organiza-se como ficção, e uma ficção primária: tem suspense, tem lição de moral, tem mocinhos e bandidos, os ‘do bem’ e os ‘do mal’, como desenho animado de super-heróis” (2000, p. 49). O autor argumenta que, ao dramatizar tudo, o telejornalismo não tem sido capaz de explicar temas mais complexos.

A hegemonia da televisão como veículo de comunicação no Brasil afeta de forma indireta esferas como a cultura e a educação. “Um veículo como a televisão, por exemplo, certamente muda nossas formas de aprendizado, pois passamos a nos acostumar com a velocidade das edições e a telegrafia da linguagem. Reflexões profundas e demoradas tornam-se mais difíceis para as gerações que crescem em frente aos aparelhos de TV” (PENA, 2005, p. 144). A televisão é o meio de comunicação mais utilizado para se obter informação no Brasil. E ela é capaz de fornecer um sentimento de pertencimento ao telespectador. “A TV capta, expressa e constantemente atualiza representações de uma comunidade nacional imaginária” (HAMBURGUER, 1998, p. 441). Porém, essa comunidade

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nacional pode ser muitas vezes considerada falsa. Martín-Barbero (2003), baseado em conceitos de Muniz Sodré, revela os problemas das representações pela televisão. Alguns grupos sociais têm sua representação distorcida e seu espaço reduzidos no telejornalismo brasileiro.

Não é com imagens baratas e esquemáticas dos indígenas, dos negros, dos primitivos que a imensa maioria dos discursos midiáticos, e especialmente da televisão, nos aproxima dos outros? E de forma parecida funciona o mecanismo de distanciamento: exotiza-se o outro, folcloriza-se o outro em um movimento de afirmação da heterogeneidade que, ao mesmo tempo que o torna “interessante”, o exclui de nosso universo negando-lhe a capacidade de interpelar-nos e questionar-nos (MARTÍN-BARBERO, 2003, p. 72).

Para que a televisão no Brasil seja realmente criadora de uma unidade nacional, é necessário que todas as esferas da sociedade sejam diariamente representadas nela, principalmente no telejornalismo. Um dos papéis do jornalismo é dar voz a diversos agentes sociais. Porém, não é em geral o que se vê no telejornalismo que cria heróis e bandidos em discursos simples, descontextualizados e superficiais.

A cobertura do caso João HélioO Jornal Nacional exibiu 12 reportagens, somando 29 minutos e 65 segundos,

sobre a morte do menino João Hélio Fernandes Vieites, entre os dias 8 a 15 de fevereiro de 2007, período que corresponde à semana subseqüente ao assalto que levou à morte da criança. Quatro delas foram apresentadas individualmente a dez pessoas residentes de

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Curitiba5, compondo um panorama geral sobre a cobertura semanal do caso6. Estas quatro reportagens e as demais (oito) foram analisadas com base em conceitos de teóricos sociais e da comunicação. Os entrevistados assistiram individualmente em suas casas, local de trabalho ou estudo, a seleção de reportagens de duração de cerca de 10 minutos e em seguida responderam a um formulário de doze questões abertas e fechadas, aplicado oralmente e gravado.5 1)ANGÉLICA, estudante de 18 anos, está completando o Ensino Fundamental e mora no bairro São Braz. Ela assiste ao Jornal Nacional pelo menos uma vez por semana e confia totalmente nas informações veiculadas. 2)EDGAR, empresário de 64 anos, morador do bairro Cabral, tem o Ensino Médio completo. Assiste todos os dias o telejornal e confia parcialmente no noticiário. 3) ELIZENE, auxiliar de serviços gerais, 33 anos, é moradora do bairro Parigot de Souza e tem o Ensino Fundamental completo. Assiste o Jornal Nacional de 3 a 4 vezes por semana e confia totalmente em suas informações. 4) JOSIANE, dona de casa de 21 anos, mora no bairro São Braz e tem o Ensino Fundamental completo. Assiste o Jornal Nacional pelo menos uma vez por semana e confia totalmente nele. 5) LEANDRO é cabeleireiro, tem 24 anos e o Ensino Médio completo. É morador do centro de Curitiba, assiste de 3 a 4 vezes por semana o telejornal e confia totalmente nas informações veiculadas. 6) LEO-NILDA é dona de casa, tem 58 anos e o Ensino Fundamental incompleto, mora no bairro São Braz, assiste o Jornal Nacional de 3 a 4 vezes por semana e confia totalmente nas informações. 7) NANCY é cirurgiã dentista, moradora do bairro Champagnat, tem 36 anos e seu grau de escolaridade é de nível Superior com Especializações. Assiste o Jornal Nacional de 3 a 4 vezes por semana e confia totalmente nas informações veiculadas. 8) ROSÂNGELA é vendedora, tem 34 anos e o Ensino Médio completo, moradora do bairro Mercês, assiste o Jornal Nacional de 3 a 4 vezes por semana e confia totalmente nele. 9) SILVIO JOSÉ é motorista, tem 42 anos e o Ensino Fundamental incompleto. É morador do bairro Botiatuvinha, assiste o telejornal pelo menos uma vez por semana e confia to-talmente em suas informações. 10) TIAGO é estagiário na área de Biologia, tem 21 anos e está cursando o Ensino Superior. Mora no bairro Bacacheri, assiste o Jornal Nacional pelo menos uma vez por semana e confia em partes nas informações do telejornal. A escolha do perfil de cada um dos dez entrevistados foi baseada em indicativos sociais da população de Curitiba, como sexo, faixa etária, grau de escolaridade e classe social, buscando refletir o universo dos habitantes da capital paranaense. 6 A primeira foi veiculada um dia após o crime, a segunda três dias depois, a terceira após seis dias da morte do menino e a quarta reportagem sete dias depois do crime.

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Sensação de medoAo serem perguntados sobre quais sensações tinham ao assistir reportagens

como as que foram mostradas, alguns entrevistados falaram que era a de medo: Edgar relatou “me dá uma sensação de pânico, de medo”; Josiane disse não saber explicar, porém, acrescentou “mas é uma sensação de medo”; e Elizene juntou à sensação de medo a de insegurança e revolta. Leonilda ligou a sensação de medo ao que vê nos telejornais quando respondeu se tinha medo da violência: “É que a gente vê muita coisa no jornal, muitas coisas difíceis. Mas eu tenho muito medo. Depois essa cidade é muito grande, você vai ficando preocupada com as coisas que você vê. Tanto vê como assiste na televisão”, explica. Sensações como dor, raiva, indignação e revolta também foram citadas pelos entrevistados. Nancy ficou com os olhos cheios de lágrimas quando assistia a uma reportagem e lembrou o quanto o crime foi brutal. A sensação de raiva descrita por Rosângela foi acrescentada pela revelação: “Dá vontade de eu mesma matar um cara desses, sabe”.

As reportagens apresentadas aos entrevistados possuem um conteúdo de sentimentalismo e comoção. Em uma delas, que mostra a missa de 7º dia da morte do menino, o repórter diz que o sofrimento e as lágrimas aproximam, descrevendo imagens das pessoas dentro da igreja, principalmente a de uma mulher chorando e sendo abraçada por um menino. As narrações que explicam como foi a brutal morte de João Hélio não

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são tão emotivas quanto as que mostram as manifestações e a família durante o velório ou na igreja. O sensacionalismo, a preferência por acontecimentos negativos e o fato de a imprensa “ficar em cima” de determinados casos também foram abordados pelos entrevistados. Edgar e Tiago, que disseram confiar em partes nas informações do Jornal Nacional – ao contrário dos outros que declararam confiar totalmente – falaram que há muito sensacionalismo e apelação no telejornal7.

Os participantes da pesquisa também percebem o valor noticioso dos fatos negativos para o jornalismo, a exemplo dos teóricos como citado no item 2 deste trabalho. Elizene diz assistir aos telejornais, mas apenas folhear um jornal impresso e não ouvir rádio: “É muita tragédia para estar repetindo tanto no jornal quanto no rádio... então é muita coisa pra gente, tem que se poupar um pouco”, explica. Outro aspecto citado pelos entrevistados foi a sensação de que nada é feito para modificar a realidade mostrada pelas reportagens. Pode-se tomar como exemplo a fala de Leandro. “Só que daí, nessas quatro matérias que você passou, eu acho assim, as pessoas pedem justiça, mas na verdade ninguém faz nada pela justiça”. Elezine propõe que manifestações como as que aparecem em três reportagens do conjunto aplicado para a amostra devem ser feitas em todo o país, pois manifestações apenas na cidade do Rio de Janeiro não solucionam os problemas. “A

7 Danilo Angrimani (1995) explica que o telespectador (ou ouvinte/ leitor) remete a palavra sensacionalismo aos veículos de comunicação que tenham cometido algum deslize informativo, exagerado nas informações ou publicado/veiculado uma imagem ousada, etc. Mas ele explica que sensacionalismo “é tornar sensacional um fato jornalístico que, em outras circunstâncias editoriais, não mereceria esse tratamento. (...) Sensacionalismo é a produção de noticiário que extrapola o real, que superdimensiona o fato” (p. 16).

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passeata adverte bastante, chama bastante atenção, mas até agora nada foi resolvido”.Das manifestações mostradas nas reportagens, duas eram contra o fim da violência

e em homenagem a João Hélio e uma em frente à delegacia, onde populares se reuniram para esperar a chegada dos acusados para a acareação. A exemplo da manifestação em frente à delegacia, em que um homem bate na porta de trás da ambulância que transportava o acusado menor de idade, Rosângela diz que “a população tinha que se unir num caso desses, matar um cara desses e não deixar nem ter direito a ser julgado, nada”. Revolta e indignação, portanto, são alguns dos sentimentos desencadeados por reportagens como as apresentadas. Nancy destaca que, buscando uma justificativa pelo que assistiu, está faltando investimento básico em formação do cidadão: “Cultura, educação, esporte, pra gente criar um ser humano melhor”. Tiago diz que reportagens como as assistidas por ele durante a exposição causam indignação, mas critica a cobertura jornalística: “Ao mesmo tempo que me dói ver e saber que a criança morreu desta forma, eu sei que tem muitas outras crianças morrendo por causa de outro fatores e que nem aparecem no jornal. Dá uma revolta por eles mostrarem somente esses casos. Na hora em que os caras são presos dá até uma sensação de alívio, ainda assim comove, mas não tanto”.

A exemplo disto, uma das reportagens mostradas aos entrevistados revela o descaso que mortes de crianças de classes mais pobres às vezes recebem da imprensa, quando comparadas a de um filho da classe média. João Hélio é, nada mais correto, sempre tratado pelos termos “menino” ou “criança” pelas reportagens. Já ao relembrar a chacina

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da Candelária o repórter chama as vítimas de “menores”. “Hoje, na igreja da Candelária, onde há 14 anos oito menores foram mortos por policiais, dezenas de famílias afetadas pela violência rezaram missa em nome de João Hélio Fernandes”.

Quem é e de onde vem o malQuando perguntados como são os criminosos que geralmente aparecem nos

telejornais, algumas pessoas tiveram dificuldade em responder, ou por não terem compreendido a questão ou por temerem parecer preconceituosas. Para Silvio, eles são todos iguais, já para Josiane, não é possível descrevê-los porque eles têm várias características diferentes. Descrições como “cara de ruim”, de “drogado”, “fisionomia negativa” ou de “cabelo rapadinho, tipo bandido mesmo”, também foram usadas pelos participantes. Para a maioria dos dez entrevistados, porém, o criminoso que geralmente aparece nos telejornais é moreno ou negro e pobre. “Até acho chato falar isso, mas geralmente são pessoas mais morenas, negras, apesar de realmente ter uma ligação com classe social e negros, excluídos, periféricos”, disse Tiago. Leandro observa da mesma maneira. “Não sendo preconceituoso, mas são negros, geralmente. Se noticia muito do Rio de Janeiro e no Rio de Janeiro tem muito moreno, talvez por isso a gente já associe o bandido com o negro. Mas aqui em Curitiba também, se você for parar para ver um telejornal regional, são negros”. Morador de favela também foi citado como uma particularidade do criminoso que é mostrado no telejornalismo. Rosângela acha que “moram em favelas, já

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são viciados, drogados, não têm estrutura familiar nenhuma, é sempre o mesmo perfil” e acrescenta que “já nascem no meio de bandidos, já são todos assim, filhos de bandidos e já vão virando bandido”.

Alguns entrevistados, incluindo Rosângela, disseram achar que os criminosos têm realmente as características apresentadas pelo telejornalismo. Dois acreditam que a maioria pertence à etnia e à classe social citada, um não respondeu e três não acham que todos os criminosos são assim. Uma delas é Leonilda. Ela explica que na televisão sempre se vê homens de cabeça baixa, mal vestidos e que parecem pobres. Acha que, ao contrário, muitos estão bem vestidos e ninguém espera que sejam ladrões. Tiago também não acredita que esta é a figura do criminoso: “Tanto que pra mim crime pior é você roubar 10 milhões, crimes de colarinho branco, do que pegar e assaltar uma família inteira. Não precisa e faz pra ficar ainda mais rico e ainda tira de muitas famílias, contra essas pessoas que estão roubando às vezes por necessidade ou por estar naquela condição de vida, por estar rodeado daquilo, ele nasceu no meio daquilo. O que sai no jornal é aquele cara todo acabado”. Dois entrevistados ainda deram ênfase ao aspecto da divisão de classes que criminaliza a pobreza. Edgar diz que são pessoas de classe abaixo da miséria “que têm raiva de você estar numa situação e ele estar mal. Eu vejo que eles olham com ódio”. Para Nancy, o que acontece é que “o povo não tem acesso a nada, o povo é pobre, não tem acesso a educação. Eles vêem televisão, eles querem, eles se projetam nos personagens das novelas, aquilo de bonito, então eles vão tirar de quem tem que somos nós”.

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Nas quatro reportagens apresentadas para os participantes deste estudo aparecem imagens dos acusados da morte do João Hélio. Os cinco com características citadas pelos entrevistados: negros ou morenos, jovens, vestidos só de bermuda ou calça e chinelos, um ou outro aparece de camiseta. Em uma delas há também imagens de uma instituição sócio-educativa para menores em conflito com a lei. São cenas de uma grade sendo trancada com cadeado e dos pés dos internos usando chinelos e formando uma fila no pátio da instituição. O texto do repórter que cobre estas imagens reforça o medo que se deve ter de um jovem como estes (menor em conflito com a lei). Ao explicar a pena que ele poderá cumprir o repórter fala: “Em regime fechado o prazo máximo é de três anos, a partir daí ele poderá voltar para as ruas em regime semi-aberto até completar 21 anos. Uma possibilidade que assusta uma família ainda marcada pela dor”. A última frase, porém, não é confirmada pela sonora do pai da criança, que entra em seguida na reportagem. Ele apenas diz que essa luta não é só dele, que é de todos que estão ali (em uma manifestação na igreja da Candelária).

Na quarta reportagem mostrada aos entrevistados, a jornalista e apresentadora do Jornal Nacional, Fátima Bernardes, fala que cidadãos assustados pediram socorro na igreja da Candelária, durante a missa de 7º dia da morte do João Hélio. A partir desta afirmação, foi perguntado a cada um dos depoentes se eles concordavam com a apresentadora quando ela diz que a população está assustada com a violência. Todos disseram concordar. Angélica disse: “Concordo, porque a violência está na porta da nossa casa”. Para Elizene, a

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população está assustada com a violência porque “a criminalidade está maior do que as pessoas de bem, as pessoas que trabalham e eles têm mais poder do que as pessoas de bem, por isso que a população está assustada e eles têm mais poder em tudo”. É importante destacar que, ao responder se ela achava que a violência no Brasil era muito repercutida pela imprensa nacional, Elizene disse que acredita que delinqüentes em geral se sentem bem ao ver seus crimes no telejornal: “Os bandidos vendo isso se sentem vitoriosos por estar repercutindo aquela história que eles cometeram... pra eles é um troféu”.

Um outro aspecto que pode ser destacado, já que foi citado pelos participantes da pesquisa, é a idéia de que problemas com a violência urbana é mais comum e característica do Rio de Janeiro e que a capital paranaense ainda não sofre de tal problema, como explicou Edgar: “Em Curitiba ainda não temos tudo isso, no Rio já é pior, está mais violento, nossa capital ainda está um pouquinho mais leve”. Rosângela, que também não tem tanto medo da violência em Curitiba, diz que no Rio de Janeiro e em São Paulo é bem pior e acrescenta que não moraria nestes lugares. Silvio, que é motorista e por isso esteve várias vezes na cidade do Rio de Janeiro, disse ter medo da violência. “Principalmente no Rio de Janeiro, aqui nem é tanto. Curitiba é gostoso de se viver, mas lá a violência é demais. Eu tenho medo”.

Edição atípica e balanço da coberturaEntre as edições do Jornal Nacional avaliadas na presente pesquisa, a do dia 12

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de fevereiro pode ser considerada atípica. Não apenas porque entraram três reportagens sobre o assunto, mas sim porque os apresentadores Willian Bonner e Fátima Bernardes comentaram informalmente a entrevista que ela fez com os pais do João Hélio e que foi veiculada no domingo no programa Fantástico. Bonner diz que a produção do Jornal Nacional recebeu muitos emails e telefonemas. Além disso, fala que os colegas jornalistas comentaram sobre as dificuldades que Fátima deve ter enfrentado para realizar o trabalho. Ela, então, explica que quando entrou no apartamento da família se sentiu “invadindo a dor alheia”, mas que estava lá porque a família queria fazer esse “desabafo”. Em seguida, entram trechos da entrevista dos pais emocionados. O comentário dos apresentadores mais os trechos da entrevista com os pais durou ao todo 3´42´´. As outras duas matérias apresentadas no dia 12 são exibidas em seguida. A primeira, que ocupa 5´00´´do telejornal, mostra a opinião de diversos especialistas sobre a redução da maioridade penal. A maioria, como explica Fátima Bernardes antes de entrar a reportagem, é contrária a mudanças na legislação em períodos de comoção por um crime como a morte de João Hélio. Já a segunda reportagem, de duração de 2´31´´, fala sobre a reincidência de crimes no Brasil, que chega à casa de 80%, de acordo com Ministério da Justiça. As duas reportagens partem do perfil de um dos acusados do crime: um menor de idade e Carlos Eduardo, o chefe da quadrilha, que foi recolhido por furto cinco vezes quando ainda era menor de idade e, depois dos 18 anos respondeu a três condenações.

Em geral, as doze reportagens apresentam uma abordagem em que a indignação

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e o medo são sempre reforçados. Termos como apelos, tragédias, desespero, dor e perplexidade são utilizados diversas vezes; imagens de manifestações pela paz ilustram um sentimento comum ao carioca da classe média, próximo à comoção, mas distante de verdadeiras mudanças. Na opinião dos pais da criança e de alguns especialistas ouvidos, as mudanças ficam por parte dos governantes. Já esses últimos se dividem entre os que querem punições mais rígidas para jovens envolvidos na violência e os que defendem que a solução não virá com a redução da maioridade penal. Tomando duas reportagens que versam uma sobre a redução da maioridade penal e outra sobre diminuição da progressão de regime (o que reduziria o direito ao regime semi-aberto de condenação) pode-se dizer que ambas tratam de assuntos polêmicos e, portanto, como estabelece o conceito de imparcialidade jornalística, foram ouvidos um lado que defende e outro que é contra.

Nas reportagens em questão aparecem vozes de especialistas e autoridades, mas em ambos os casos as opiniões deixadas para o final foram as que defendem que as leis em vigor sejam mudadas e se tornem mais punitivas. As declarações que fecham as reportagens têm maiores chances de serem guardadas e refletidas pelo telespectador, como explica Perseu Abramo (2003, p. 37): “a retenção dessas imagens finais da notícia do telejornalismo vai subsistir, no telespectador, como a mensagem essencial da matéria”. Na que fala da redução da maioridade penal a última sonora é do deputado Fernando Gabeira que defende a votação do assunto o quanto antes e reforça a situação de medo. “Há casos que comovem o país de vez em quando. Mas agora o país fica comovido

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permanentemente. Há pessoas que dizem: não vamos votar agora porque nós estamos sob emoção. Eles supõem que vai haver uma normalidade e nunca mais vai haver normalidade no Brasil se nós não intervirmos. Pura e simplesmente não há momento sem emoção. A cada semana praticamente se sucede um crime trágico no Brasil”.

Quando o tema é a progressão de regime, a reportagem defende em vários aspectos que a lei atual é muito branda. Um dos autores do crime e da morte de João Hélio é o exemplo de que o regime semi-aberto permite que o condenado saia da prisão e se envolva novamente na criminalidade. O repórter explica que a última condenação de Carlos Eduardo foi de 4 anos por assalto a mão armada, mas ele cumpriu um ano. Ele estava em regime semi-aberto, mas em dezembro de 2006 foi dado como foragido. Apenas uma sonora, com o secretário do Sistema Penitenciário do Rio de Janeiro, defende que a solução não é manter a maioria dos condenados em regime fechado e, sim, que é preciso programas eficazes de re-socialização do preso. A última sonora da reportagem é a de uma especialista que defende um maior policiamento mas o repórter também fornece outra interpretação à fala dela: “Esta especialista diz que a insegurança nas ruas só vai diminuir quando os bandidos tiverem certeza que vão ser punidos. Sonora da especialista: Aquele infrator que está à beira de cometer um ato violento ele não pensa ‘eu vou ficar na cadeia 5 anos, 10 anos ou 20 anos’, agora ele pensa assim: ‘a polícia vai me pegar ou não vai me pegar?’ Isso inibe, isso faz com que ele pense duas vezes antes de puxar o gatilho e cometer a violência”.

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Como é possível perceber, as duas matérias terminam oferecendo um posicionamento ao telespectador e uma visão do quanto a insegurança e o medo fazem parte do cotidiano do brasileiro. Outro aspecto que mostra o reforço que a cobertura dá ao medo e à insegurança pode ser observado em algumas das reportagens em que as sonoras de testemunhas do crime ou apenas de pessoas que se chocaram com o fato na rua não foram identificadas. Um efeito foi colocado no rosto das pessoas e reflete o medo que se tem da criminalidade.

Considerações finaisA densa cobertura da morte do menino João Hélio Fernandes contribuiu sob vários

aspectos para o reforço do medo da violência nas grandes cidades, principalmente no Rio de Janeiro. Reportagens que têm como tema a violência contribuem para o fortalecimento da sensação de medo no telespectador, como ficou claro nos depoimentos dos entrevistados desta pesquisa. Alguns mecanismos observados na análise das reportagens mostram que o telejornalismo do Jornal Nacional apresenta ao público o que ele deve sentir com base em generalizações e preceitos.

A hipótese de que o medo gerado pela veiculação de violência no telejornalismo fortalece o preconceito racial e social foi comprovada com esta pesquisa. A imagem do criminoso como pertencente à etnia negra e da classe social pobre foi citada pelos entrevistados como a mais veiculada no telejornalismo. E como comprovação do reforço

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de preconceitos, alguns dos entrevistados acreditam que essa é realmente a figura do criminoso, portanto, a que deve ser temida socialmente.

Outra hipótese que pode ser confirmada neste trabalho é a de que as reportagens veiculadas sobre o assassinato do menino João Hélio Fernandes geraram apenas revolta, mas não reflexão. Pelo conteúdo das reportagens pode-se observar que a sociedade acabou discutindo soluções simplistas para a diminuição do quadro de violência no país, como a redução da maioridade penal. Além disso, fica claro quando analisado os textos e as imagens das reportagens que o objetivo principal é a indignação e a repulsa. A hipótese de que o espaço cedido às notícia de violência criam no imaginário social a idéia de uma realidade mais violenta do que realmente é não pôde ser totalmente comprovada. Porém, a pesquisa evidenciou que, para os curitibanos que participaram do estudo, o Rio de Janeiro é uma cidade com muita violência urbana e essa não é a mesma realidade da capital paranaense. Para a maioria dos entrevistados esta visão foi formulada pela imprensa e pode ser entendida como um espectro deturpado da realidade.

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O João Goulart de Silvio Tendler: uma análise do acontecimento jornalístico golpe militar no filme Jango1

Maria Joana Chiodelli CHAISE2

“Os acontecimentos daqueles diasainda estão na memóriafechado no escuro do quartoquerendo fugir do mundo que me chegava pelo rádio.

Eu pouco mais que um meninochorando como se fosse mortea viagem-fuga do Presidente Jango.

Os anos passados, a maturidadea visão diária da injustiça e do ódioda opressão, da mentira e do medome levam agora, maduro, em nome da verdade e da históriaa reafirmar o menino: as lágrimas derramadas de 64 continuam justas”.

O poema que abre este texto, de Fernando Brant, é também o epitáfio do

1 Texto-base apresentado durante o Intercom Sul 2009, realizado na Furb, Blumenau (SC)..2 Jornalista graduada pela Universidade de Passo Fundo (2002), mestranda pelo Programa de Pós-Graduação em Ciências da Comunicação da Universidade do Vale do Rio dos Sinos – Unisinos/RS.

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documentário Jango. Como, quando e porque se depõe um Presidente da República, de Sílvio Tendler, objeto de análise deste artigo. O texto, síntese do propósito do filme realizado em 1984, é colocado sobre a imagem do túmulo do gaúcho João Belchior Marques Goulart, único presidente a morrer no exílio, na Argentina, em 1976. Considerado herdeiro político do mito Getúlio Vargas, Jango, como era conhecido desde a infância, apresenta uma biografia marcante. Foi ele, enquanto ministro do Trabalho do governo Vargas, que dobrou o salário mínimo, e assegurou aos assalariados uma velha reivindicação trabalhista que perdura até hoje, o pagamento do décimo terceiro salário. Defendendo a bandeira do desenvolvimento nacionalista, encaminhou ao Congresso as reformas estruturais de base - agrária, educacional, fiscal, administrativa, bancária e urbana -, sem as quais, julgava, o Brasil não poderia romper a barreira do atraso e da miséria. Impôs à agenda nacional a regulamentação da remessa de lucros das empresas multinacionais estrangeiras para fora do país e buscou a aproximação entre o Brasil e a China comunista de Mao Tse Tung. Governou no parlamentarismo e no presidencialismo. Caiu a 4 de abril de 1964, derrubado pela última das ditaduras.

Observadores da política e historiadores debruçam-se a decifrar o que acreditam ser um enigma da República: por que a figura política de João Goulart é esmaecida? A pesquisadora Marieta de Moraes Ferreira, do Centro de Pesquisa e Documentação da História Contemporânea do Brasil, autora do livro João Goulart: entre a memória e a história (2006), lembra que no campo da memória social, não se encontra qualquer destaque para

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a atuação política de Jango e, por mais que inúmeros trabalhos tenham sido produzidos a respeito da conjuntura econômica e política daquele período, o personagem histórico de João Goulart não ocupa papel central na grande maioria dos estudos3.

Trinta e dois anos depois de sua morte e mais de quatro décadas após o golpe que apeou o fazendeiro-sindicalista do poder, porém, uma espécie de reparação do estado brasileiro é concedida ao presidente injustiçado, deposto pela ditadura. Em 15 de novembro de 2008, o ministro da Justiça, Tarso Genro, anunciou a concessão da anistia política ao presidente João Goulart e à sua esposa, Maria Teresa. O pedido, movido pela viúva, foi julgado pela Comissão de Anistia Política do Ministério da Justiça em caráter extraordinário durante o 20º Congresso Nacional dos Advogados, em Natal, no Rio Grande do Norte. Na ocasião, Tarso Genro afirmou que João Goulart foi um homem injustamente cassado, perseguido e derrubado por meios ilegais: “[a concessão da anistia] significa dizer à nação que ele foi injustiçado, que ele foi um grande brasileiro”, afirmou em seu discurso. Na ocasião, Tarso Genro também leu uma carta do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, na qual este destacou a anistia a Jango como um pedido oficial de desculpa do estado brasileiro: “O governo reconhece os erros do passado e pede desculpas a um homem que defendeu a nação e seu povo do qual jamais poderíamos ter prescindido”.

É a partir desta construção problemática da imagem do presidente João Goulart - 3 Sua análise também é sustentada pela comparação com o tratamento dispensado à memória política de Jus-celino Kubitschek, personagem que emergiu recentemente nos discursos dos políticos e mesmo em produções televisivas como líder maior da história do Brasil republicano.

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ora considerado um herói injustiçado, ora sobreposto por outras figuras políticas de seu tempo e avaliado como agente comunista inexperiente, despreparado e desinformado - que pretendemos analisar a produção de Sílvio Tendler enquanto uma narrativa audiovisual de reconstituição do acontecimento, por meio de documentos e memórias de quem viveu ou testemunhou o período. Consideraremos, assim, o tom documental que é apresentado no filme e a proposta de uma nova significação, além de, sobretudo, a própria memória do cineasta gerador da versão que inspira a produção4.

O documentário como produto jornalístico de reflexãoRecorrendo às palavras de um dos principais documentaristas brasileiros, Eduardo

Coutinho, podemos perceber qual é a dimensão de verdade a partir da qual os cineastas que se propõem a desenvolver filmes documentários atuam: “[...] o documentário, ao contrário do que os ingênuos pensam, e grande parte do público pensa, não é a filmagem da verdade. Admitindo-se que possa existir uma verdade, o que o documentário pode pressupor, nos seus melhores casos – e isso já foi dito por muita gente – é a verdade da filmagem” (COUTINHO, 1997, p.167).

Para a perspectiva desenvolvida neste trabalho, esta abordagem é bastante adequada, já que rompe com a relação corrente entre documentário e realidade e torna possível pensarmos o documentário como um texto autoral, abrindo possibilidade para

4 O cineasta possui graduação em História, Sorbonne (1974), mestrado em Cinema e História, École des Hautes-Études, Sorbonne (1976) e especialização em Cinema Aplicado às Ciências Sociais pelo Musée Guimet (Paris).

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discutir seus pressupostos e os argumentos que sustentam suas afirmações. Dito de outra forma, podemos pensar o cinema documentário como passível de manipulação, por meio das narrativas, da mesma forma como acontece com o jornalismo convencional.

Em texto onde sugere que o filme documentário problematiza questões fundamentais da constituição de uma epistemologia do fazer jornalístico – a natureza do acontecimento, as dinâmicas do tempo e as tramas da memória-, o pesquisador Ronaldo Henn esclarece o entrelaçamento entre cinema documentário e jornalismo a partir da natureza semiótica que ambos possuem5. “O cinema documentário adensa o sistema jornalístico. Trabalhando fundamentalmente com a memória e, muitas vezes, com a memória subterrânea, o documentário dinamiza a agenda, recupera personagens e fatos, estabelece nexos perdidos: tem a capacidade de produzir textos fronteiriços com a potência de se irradiar até o conservador centro do jornalismo”6 (HENN, 2008, p.9).

Partindo-se do pressuposto de que o cinema documentário acumula e reproduz no seu modo de produção os postulados do jornalismo convencional, atualizando ou recuperando os acontecimentos do plano histórico, é necessário compreender o que é este acontecimento e de que forma ele é tratado pela mídia – neste caso especificamente pelo produto audiovisual em que se configura o filme documentário.

O historiador francês Pierre Nora (1979) afirma que o fato de uma ocorrência ter 5 Esta natureza semiótica é dada por meio da compreensão da Teoria Geral dos Signos, de Charles Sanders Peirce. 6 A referência à memória subterrânea citada pelo autor e trabalhada no artigo é feita a partir do texto de Michael Pollak, “Memória, esquecimento, silêncio” (1989), publicado pela revista Estudos Históricos.

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sido registrada a torna somente histórica. Para que haja acontecimento, o fato precisa ser conhecido. O autor segue a linha do também historiador Jacques Le Goff, para o qual o jornalismo tem fundamental importância para a compreensão da história. Assim, Pierre Nora acredita que, na sociedade contemporânea, é através dos mass media que o acontecimento nos toca e não pode evitar-nos.

Imprensa, rádio, imagens agem apenas como meios de que os acontecimentos seriam relativamente independentes, mas como a própria condição da sua existência. {...} Acontecimentos capitais podem ter lugar sem que deles se fale. {...} O fato de que tenham tido lugar não os torna históricos. Para que haja acontecimento, é preciso que ele seja conhecido (NORA, 1979, p.245).

Na era de advento dos meios de comunicação de massa, esta relação nos parece naturalizada, já que as afinidades entre o acontecimento e a mídia são tão intensas que chegam a parecer inseparáveis. Os media não agem apenas como meios transmissores dos acontecimentos, mas como condição mesma de sua existência, tal qual pressupõe o historiador.

A partir desta perspectiva, abordar o que podemos denominar como construção do acontecimento pela mídia não significa pensar nos termos de uma criação artificial do acontecido, mas sim a partir de uma dimensão realista de impossibilidade de acessar o acontecimento bruto, sem interpretação. O exercício de relatar um acontecimento pressupõe uma escolha, que acaba por subtrair outros caminhos possíveis e, por isso mesmo, de certa forma, reduzir a complexidade própria do acontecimento.

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Não há captura da realidade empírica que não passe pelo filtro de um ponto de vista particular, o qual constrói um objeto particular que é dado como um fragmento do real. Sempre que tentamos dar conta da realidade empírica, estamos às voltas com um real construído, e não com a própria realidade” (CHARAUDEAU, 2006, p.131).

Tal como pressupõe Pierre Nora, o acontecimento também é uma seqüência de ocorrências com ligação dos fatos entre si, uma seqüência de pequenas notícias tomadas juntas e oferecidas como síntese inteligível. O autor critica, por este motivo, o esvaziamento produzido pelo que ele chama de máquina informativa, que cria pseudo-acontecimento quando deveria apenas apresentar pequenas notícias, estas que, pela repetição e hábito, anulam o sentido inicial do acontecimento. “O sistema informativo dos media fabrica o ininteligível. Ele bombadeia-nos com um saber interrogativo, enucleado, vazio de sentido, que espera de nós o seu significado, nos frustra e nos realiza simultaneamente com a sua evidência perturbadora” (Nora, 1979, p. 253-254).

Enquanto produto jornalístico, talvez, o filme documentário possua alguma vantagem no aspecto de oferecer mais subsídios para uma totalidade inteligível ao seu público. Inicialmente, porque sempre há algo nele que remete ao real e, principalmente, porque o filme documentário é desenvolvido fora do contexto das rotinas produtivas do jornalismo, práticas estas que suprimem o espaço que deveria ser de reflexão e aprofundamento.

No filme Jango, analisado neste artigo, além de o jornalismo inscrever a ocorrência

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nos arquivos sociais, por assim dizer, a sucessão de acontecimentos do período apresentado forma o que Pierre Nora (1979) convencionou chamar de grande acontecimento ou acontecimento expandido. O pressuposto deste conceito é interessante por oferecer subsídios que permitem uma compreensão do contexto social, político, histórico e cultural de produção dos discursos apresentados. Em outras palavras, mesmo o filme documentário sendo uma construção, da mesma forma que outros produtos jornalísticos que tem como base a realidade, ele possui como vantagem a abertura de espaço para reflexão acerca do tema abordado, por tratar o assunto diferenciadamente, integrando a sucessão de pequenos acontecimentos que possuem ligação entre si.

Se a repetição ou o saturamento na mídia anulam o sentido inicial do acontecimento e o transformam em outro fenômeno, como sugere Nora (1979), a escolha pela lembrança e não pelo esquecimento não é um acaso. Mesmo que, na opinião de alguns historiadores, de forma mais restrita do que mereça, o governo João Goulart continuou sendo lembrado nestes mais de 40 anos. Dois estudos publicados recentemente corroboram esta análise. O primeiro, do historiador da UFF Marcelo Badaró Mattos, que apresenta em seu artigo “O governo João Goulart: novos rumos da produção historiográfica” (2008) um balanço da produção acadêmica recente sobre o período presidencial de Jango. Já a doutora em História e pesquisadora da UnB, Flávia Biroli, traz em seu artigo “João Goulart e o golpe de 1964 na imprensa, da transição aos dias atuais: uma análise das relações entre mídia, política e memória” (2006) um estudo sobre como o personagem do presidente Jango é

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abordado pela imprensa nos aniversários de 20, 30 e 40 anos do golpe militar e no momento da transferência do poder aos civis, em 19857. Por mais que o objetivo deste texto não seja analisar nem como a imprensa apresentou Jango nestes mais de 40 anos, tampouco como os historiadores construíram sua imagem, os dois estudos revestem-se de importância na medida em que nos oferecem a possibilidade de conhecer a conjuntura historiográfica e midiática que envolveu o cineasta Sílvio Tendler em 1984, quando da produção do filme ora estudado. Acreditamos que as condições do entorno social, apresentadas pelos estudos, estão inseridas na maneira peculiar pela qual a narrativa audiovisual do filme Jango constrói a memória do presidente.

A construção do acontecimento “golpe militar” no filme JangoDiversos fatores podem ter mobilizado Sílvio Tendler para a produção do filme

Jango. Talvez apresentar as novas teses sobre o golpe, produzidas em torno dos seus vinte anos. Talvez lançar uma nova significação com base em depoimentos de quem vivenciou o período ou, quem sabe, como defendem Jean Claude Bernardet e Alcides Freire Ramos (1988), mostrar que a questão social deve merecer maior atenção. “João Goulart foi escolhido para ser o personagem central porque esteve preocupado com os trabalhadores. Aliás, de acordo com o filme, isto podia ser observado já na infância. O locutor nos informa que o presidente desde pequeno conviveu espontaneamente com os peões da fazenda”

7 Para a reflexão a pesquisadora analisou textos de alguns dos principais jornais e revistas do país: Folha de S. Paulo, O Estado de S. Paulo, O Globo, Jornal do Brasil e Correio Braziliense; Isto é, Época, Veja e Carta Capital.

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(BERNARDET; RAMOS, 1988, p.44). O teórico de cinema e o historiador, respectivamente, acreditam que o filme é calcado em um mecanismo ideológico e pretende demonstrar a idéia de que o golpe de 1964 é a ruptura de um projeto nacional-progressista que acabaria com as injustiças e a opressão por meio da figura de Goulart e de seus partidários. “O filme faz com que a visão destes grupos apareça como a mais válida sobre o tema. As opiniões contrárias ao governo oferecidas pelos militares funcionam como reforço da versão do PTB, do PCB e do filme. As outras versões de esquerda, divergentes em relação a do filme, são eliminadas” (BERNARDET; RAMOS, 1988, p.45).

As outras versões às quais os autores se referem podem ser compreendidas a partir dos textos de Mattos (2008) e Ostermann (2003). Para ambos, Jango procurou implantar uma política reformista, conciliadora das várias forças sociais – as reformas de base (agrária, administrativa, bancária, fiscal) – e uma política externa independente – como condição essencial do desenvolvimento nacional, e pagou com a oposição tanto da direita quanto de alguns setores da própria esquerda.

Essa estratégia política, com base no populismo e no desenvolvimento do capitalismo nacional, provocou violenta oposição. Oficiais, a maioria do Congresso, a imprensa mais conservadora, empresas americanas concessionárias de serviços públicos, a esquerda radical, alguns setores populares ficaram seriamente descontentes com o que, para alguns, era o comunismo, para outros, o caos, a inflação desenfreada e, mesmo, o estado da ilegalidade (OSTERMANN, 2003, p.123).

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Na década seguinte ao golpe, as interpretações acadêmicas mais comuns pousavam em torno de dois fatores, como aponta Mattos (2008). O primeiro, a questão econômica da crise de acumulação, já que o modelo que precedeu o governo Jango, montado principalmente com Juscelino Kubitschek, vivia uma crise cuja superação exigiria do Estado uma intervenção que o abriria para o capital estrangeiro e ofereceria ainda mais vantagens ao grande capital. Esta intervenção passava, até mesmo, “por garantir total controle sobre as organizações e lutas dos trabalhadores, de forma a viabilizar o arrocho salarial” (MATTOS, 2008, p.246). Combinada a este fator, aparecia a tese que derivava o golpe da crise do populismo, ou seja, o pacto populista que sustentava a base de dominação de classes naquela fase entrara em crise a partir do momento em que as massas buscaram ir além dos limites estabelecidos pelas classes dominantes para suas concessões. Mesmo com críticas a esta redução da forma organizativa dos trabalhadores a um “sindicalismo populista”, Mattos considera que, de forma geral, esse marco interpretativo permanece importante, por enfatizar dimensões econômicas, políticas e sociais do golpe, entendido em meio à análise de um processo mais amplo. Nos anos seguintes, quando é produzido o filme Jango, porém, novas questões vêm à tona.

Para o jornalismo, um fator que atua como importante gancho para oferecer uma notícia ao público é o acréscimo de pelo menos um elemento novo. Patrick Charaudeau (2006) considera que a atualidade fundamenta o discurso midiático e se renova com a apresentação de um elemento que seja portador de uma forte carga de inesperado. O

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passado também se torna presente, na opinião deste autor, em ocasiões específicas: uma comemoração ou uma “celebração de um acontecimento pertencente a um passado cujo valor simbólico é preciso reviver” (CHARAUDEAU, 2006, p.134). O acontecimento, para Charaudeau, somente se torna notícia a partir do momento em que é levado ao conhecimento de alguém e nomeado, ou seja, passa a existir discursivamente. Temos, assim, a necessidade de aparição de acontecimentos históricos na mídia calcada não em representar simplesmente fatos do passado, mas sim em sintetizar noções, acrescentar valores da atualidade e, porque não, mobilizar uma nova reflexão.

Para uma melhor compreensão do golpe militar, surge na década de 1980 uma análise considerada abrangente e significativa pelos historiadores sobre as articulações entre os setores das classes dominantes e militares que resultaram no desfecho do processo. Escrita pelo historiador René Dreifuss, a tese sustentou a imagem do golpe como um movimento social civil-militar, demonstrando como os empresários brasileiros agiam politicamente sob a liderança do bloco multinacional. “O trabalho de Dreifuss tem um sentido bem mais profundo do que a análise do acontecimento golpe enquanto fenômeno imediato. Seu estudo nos posiciona sobre as condições que viabilizaram o sucesso da tomada do poder pelo movimento civil-militar e a natureza das políticas postas em prática nos anos seguintes” (MATTOS, 2008, p.248). No filme de Tendler, esse contexto é rememorado a todo o momento. A socióloga Maria Vitória Benevides, que figura entre os entrevistados extras do DVD8, acredita ser este documentário uma 8 Não há ano de identificação das gravações de entrevistas extras da cópia do filme Jango distribuída em DVD.

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experiência pedagógica e multiplicadora. Para ela, em 1984, a produção ganha ainda maior sentido por ser a época de luta pela convocação de uma assembléia constituinte soberana e de eleições diretas. A pesquisadora também enfatiza a intervenção norte-americana exposta no filme, que não ocorreu apenas no Brasil, mas em outros países latinos, já que a questão da democracia estava no contexto da guerra fria e os Estados Unidos não hesitavam em apoiar golpes militares para garantir o poder de seus aliados ditos liberais. No documentário, a referência do apoio estadunidense aos políticos e estados que faziam oposição a Jango é apresentada no depoimento do jornalista Marcos Sá Corrêa. À época repórter do Jornal do Brasil, o jornalista apresentou no periódico e, em 1977, no livro “O Golpe de 64 visto e comentado pela Casa Branca” os resultados de sua pesquisa na Biblioteca norte-americana Lyndon Johnson, revelando detalhes da chamada operação Brother Sam, montada pelo governo dos Estados Unidos em dezembro de 1963, como parte da estratégia dos mentores do golpe militar no Brasil. Corrêa conta no filme que quatro petroleiros, seis navios de guerra, um porta-aviões e 24 aviões de combate e transporte de munição e combustível foram remetidos à costa brasileira para apoiar os militares caso houvesse resistência à derrubada do governo João Goulart.

A forma como a figura do ex-presidente era tratada pela imprensa também nos auxilia a compreender o contexto vivido quando foi proposto o documentário de Sílvio Tendler. Na pesquisa de Biroli (2006), nos anos anteriores ao golpe, Jango é caracterizado

Entretanto, nas biografias dos entrevistados, constam indicações de suas produções até o ano de 2006, o que subentende a brevidade destas entrevistas.

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pela imprensa como um demagogo, ora sem controle ou capacidade de conduzir o processo político, ora como um oportunista:

Sobretudo nos anos de 1963 e início de 1964, quando a propaganda pró-golpe encontra-se em estágio avançado, a maior parte dos jornais de grande circulação faz oposição aberta a Goulart e anuncia o “caos” que serviria de justificativa mais imediata para o golpe. O Correio da Manhã é um exemplo. Depois de defender que Jango assumisse a Presidência, diante de estratégias golpistas que se anunciavam após a renúncia de Jânio Quadros, em 1961, passa, paulatinamente, a uma oposição cada vez mais agressiva, chegando aos famosos editoriais “Fora” e “Basta”, que pediam o afastamento de Goulart às vésperas do golpe (BIROLI, 2006, p.15).

A pesquisadora lembra que durante o regime militar o controle imposto à imprensa fez com que a imagem do antigo presidente fosse algo sobre o qual era preciso silenciar. Passados 20 anos do golpe, no entanto, discursos ainda conflituosos e não homogêneos eram produzidos para relembrar a atuação de Jango, mas a caracterização do ex-presidente passou a ser positiva, em contraste à imagem anterior ao golpe.

Tomado em conjunto, [o discurso] tende a uma caracterização positiva de Goulart, na mesma medida em que o noticiário, já a partir de 1984, caracteriza, predominantemente, de maneira negativa o golpe desfechado por civis e militares em 1964. Assim como a democracia que surgia com o enfraquecimento do regime, Goulart vai sendo caracterizado como um “outro” do golpe e da ditadura (BIROLLI, 2006, p.15).

No documentário de Sílvio Tendler, a construção do acontecimento golpe militar

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como algo negativo e a opção por representar de maneira positiva a imagem do presidente pode ser compreendida sob diversos aspectos. Vamos nos deter, neste texto, a analisar algumas sequências de cenas, consideradas fundamentais à versão pretendida; ainda, a opção pelos entrevistados, que oferecem veracidade aos fatos a partir de suas memórias; e a seleção da trilha sonora que ilustra o produto audiovisual.

Os personagens, as imagens e os sons da proposta de TendlerO filme produzido por Tendler em 110 minutos de cenas documentais apresenta

um total de 15 depoimentos de políticos, jornalistas, sociólogos e pessoas que conviveram com Jango durante os anos de seu governo no Brasil. As entrevistas intercalam-se às cenas e apresentações de documentos e periódicos, que situam os telespectadores e dão a chancela necessária para o grau de veracidade dos fatos apresentados. Juntamente com depoimentos de participantes do golpe que fazem duras críticas ao governo Goulart, o documentário apresenta testemunhos daqueles que faziam parte do campo progressista e de esquerda, que reforçam a imagem positiva de Jango. A escolha dos entrevistados pode ser considerada como um ponto forte para reforçar a versão positiva do presidente proposta por Tendler e, pode-se acrescentar, comprovam não somente que o presidente tinha uma grande preocupação com a justiça social, mas que ele também possuía amplo apoio popular. Bernardet e Ramos (1988) exemplificam uma das passagens em que a edição do material audiovisual favorece o crédito às ações de João Goulart. “Sobre o comício da

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Central [histórico comício de Jango na Praça da Central do Brasil, dias antes do golpe militar], o entrevistado é Raul Riff, Secretário de Imprensa do governo Goulart, lembrando com orgulho a posição adotada pelo presidente à época: ‘eu prefiro cair, mas cair em pé’” (BERNARDET; RAMOS, 1988, p.45). A posição é assegurada com a declaração de Leonel Brizola, cunhado de Jango, sobre os episódios que sucederam o comício e tiveram como desfecho a tomada de poder por parte dos militares. “Jango decidiu que não houvesse a resistência porque considerava que seria um tributo de sangue demasiadamente grande que o povo brasileiro teria que pagar para restaurar seus direitos”, afirma em seu depoimento o consultor político e apoiador do presidente. Em oposição, a versão militar oferecida pelo general Muricy, o principal entrevistado do filme neste aspecto, serve, de acordo com os historiadores, para dar respaldo, em negativo, às versões favoráveis ao golpe. “Os espectadores não se identificam com aqueles que falam contra o governo, poucas são as pessoas que concordariam com o diagnóstico e com a solução proposta pelo general Antonio Calos Muricy. Por outro lado, o leque daqueles que falam a favor do governo é um pouco mais amplo e despertaria, provavelmente, a simpatia do público” (BERNARDET; RAMOS, 1988, p.45).

Da forma como são colocadas as entrevistas, à primeira vista tem-se a impressão de que o objetivo do diretor em oferecer entrevistados favoráveis e contrários ao governo é apresentar posições conflitantes e oferecer material para que os telespectadores reflitam. Porém, ao vincular os contrários ao governo diretamente ao projeto da ditadura militar,

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cumpre-se o objetivo de reforçar a imagem positiva de Jango. Como já exposto neste texto, em 1984, o projeto da ditadura militar já estava caracterizado como violento, antidemocrático, articulado aos interesses das classes dominantes e do imperialismo norte-americano, ou seja, em total descompasso das propostas que apresentava o dirigente deposto, de participação popular9.

A narrativa fílmica construída por Tendler por meio de imagens também favorece a proposta de sua versão. A abertura do documentário apresenta cenas da viagem do, à época, vice-presidente João Goulart à antiga União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. Já neste momento constrói-se a idéia do político estadista que, mesmo antes de assumir a presidência, reagia aos interesses imperialistas das nações ocidentais, em especial aos Estados Unidos, e pretendia uma política externa independente para o Brasil, em nome do interesse maior da nação. Durante toda a produção aparecem, constantemente, fotos e vídeos do presidente sempre sorridente, equilibrado e disposto ao sacrifício pessoal para colocar o interesse da nação em primeiro plano. Um exemplo representativo desta análise é a sequência de cenas que apresenta, primeiro, o histórico comício de Jango na Praça da Central do Brasil, e, logo em seguida, a Marcha da família com Deus pela liberdade, em São Paulo. O comício, que reuniu mais de 200 mil pessoas, é apresentado por cenas carregadas de dramaticidade em que Jango, ao lado de sua esposa, proclama a execução 9 Francisco Julião, ex-dirigente das ligas camponesa, por exemplo, afirma em seu depoimento que Jango defen-dia as reformas de base e que seu governo deu espaço para a participação popular. Aldo Arantes, ex-dirigente estudantil, e também Gregório Bezerra, destacam de forma positiva as reformas e chamam atenção para o clima democrático garantido por este governo.

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das reformas que pretendia – agrária, tributária e eleitoral. O locutor, em off, explica que horas antes o presidente havia assinado decretos desapropriando terras improdutivas e encampando refinarias. As cenas que seguem mostram a esperança do povo expressa em faixas e cartazes de apoio ao presidente que discursava no mesmo palanque que Vargas costumava fazê-lo em suas aparições públicas. A mobilização contrária aparece de forma breve em seguida, na descaracterizada Marcha da família com Deus pela liberdade, movimento realizado na capital paulista em conjunto pelo governo daquele estado, sociedade rural, igreja e representantes do comércio contrários às reformas.

Após o desfecho do golpe pelos militares e do exílio do presidente Jango no Uruguai, a locução dá uma clara idéia sobre a opinião do diretor do filme: “1964 fechava o ciclo dos coronéis de 54. Desta vez eles estavam unidos e tinham um programa. Os conceitos forjados na Escola Superior de Guerra substituíam a justiça social pelo desenvolvimento e a democracia pela segurança”. Em seguida, o locutor também explica as providências tomadas pelo governo de Castelo Branco, que havia assumido o poder: revogar a lei de remessas de lucros e anular o decreto de desapropriação de terras improdutivas, ações adotadas com o intuito de restabelecer a crença dos Estados Unidos na democracia brasileira e tranquilizar os grandes proprietários rurais. Esta última locução esclarece com relação à construção da imagem que o diretor quis construir com relação aos militares que tomaram o poder por meio do golpe.

Outro elemento que confere dramaticidade e apóia o desafio almejado por Tendler

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é a trilha sonora do filme, que se utiliza prioritariamente da emoção das composições. A música principal é “Coração de estudante”, de Milton Nascimento, feita em 1983 especialmente para configurar-se melodia da produção. A canção é uma homenagem à memória do estudante Edson Luís, de 16 anos, morto em 28 de março de 1968 em um confronto entre estudantes e policiais militares, no Rio de Janeiro. Edson integrava a Frente Unida dos Estudantes do Calabouço e, no momento de sua morte, participava de uma manifestação contra os preços do restaurante Calabouço, custeado pelo governo e criado para atender alunos carentes. Longe de ser um líder político, o estudante havia se deslocado do interior para estudar e, de acordo com o que relata Zuenir Ventura (2008), para se manter recorria a pequenos trabalhos, inclusive na limpeza do restaurante.

Ele não tinha nenhum dos componentes míticos para sonhar em ser o que acabou sendo: um mártir [...]. A repercussão de certos acontecimentos políticos nem sempre é proporcional à importância dos atores neles envolvidos. O episódio do Calabouço, que desencadeou uma série de manifestações de protesto que iriam culminar com a lendária Passeata dos 100 Mil, três meses depois, ficou na história como um marco” (VENTURA, 2008, p.99-100).

Além da inspiração para a composição “Coração de Estudante”, Milton Nascimento também compôs em homenagem a Edson Luís a canção “Menino”, em parceria com Ronaldo Bastos. A letra pode ser considerada um apelo: “Quem cala sobre teu corpo/ consente na tua morte/ talhada a ferro e fogo/ nas profundezas do corte/ que a bala traçou no peito/ quem cala morre contigo/ mais morto que estás agora”. No documentário, a

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canção ilustra as cenas do enterro do jovem, ao qual compareceram centenas de pessoas, numa cerimônia tensa e dramática realizada na Igreja Nossa Senhora da Candelária sob a mira de fuzileiros armados, conforme lembra Ventura (2008).

Já celebrando a Passeata dos Cem Mil, em agosto de 1968, é introduzida a canção “Enquanto seu lobo não vem”, de Caetano Veloso. Por meio de uma evocação à fábula infantil do Chapeuzinho Vermelho, o passeio na floresta ao qual o compositor convida se dá sob o perigo iminente da presença do ‘lobo mau’: “Vamos passear na floresta/ Enquanto seu Lobo não vem/ [...] Vamos passear nos Estados Unidos do Brasil/ Vamos passear escondidos/ Vamos desfilar pela rua onde Mangueira passou/ Vamos por debaixo das ruas/ Debaixo das bombas, das bandeiras/ Debaixo das botas/”.

Os componentes citados, a escolha dos entrevistados, a seleção de cenas e a trilha sonora que acompanha a produção não têm papel secundário no filme. Tomados de um modo geral para análise, estes elementos nos dão a compreender que foram escolhidos cuidadosamente para fazer parte do projeto proposto pelo diretor Silvio Tendler, que buscou, por meio da figura de Jango, oferecer nova interpretação ao contexto histórico do golpe militar de 1964. O efeito final obtido com as locuções simpáticas ao governo, os depoimentos de participantes daquele período histórico e o aparato cinematográfico proposto nos oferecem uma nova compreensão dos acontecimentos daquele ano, conforme lembra Ricardo Kotscho, à época repórter do Jornal Folha de São Paulo, em entrevista contida nos extras do documentário: “Jornalistas e cineastas têm a obrigação

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de resgatar a nossa história, para não ficar só a história oficial, que muitas vezes é contada pela mídia e que muitas vezes não corresponde ao que nós vimos”.

A contribuição do filme para a memória do presidente João GoulartA narrativa audiovisual do filme Jango pode ser compreendida como uma

construção da memória do presidente-personagem, pontuada por imagens de arquivo e depoimentos de amigos e correligionários. À sua maneira, apresenta o ponto de vista e o sentimento de seu diretor e destaca-se pelo envolvimento afetivo do cineasta com o tema. Pode-se considerar, ainda, conforme já exposto, que o filme forja uma visão diferenciada da história do golpe militar e, por este motivo, também parcial, por buscar submeter a visão oficial a questionamentos, principalmente os relacionados aos encobrimentos e lembranças, à memória.

Produzido em 1984, ainda durante o período da ditadura militar, mas já em clima de euforia proporcionado pela abertura política, o filme de Tendler busca apresentar um sentido de explicação ou, dito de outra forma, uma versão do acontecimento, aqui compreendido como momento singular da história do país, que foi o período do golpe militar e os anos subseqüentes, do regime. De acordo com Christa Berger (2006), a partir de uma investigação acerca da memória do período da ditadura militar, identificada como uma memória de trauma, as primeiras descrições da ditadura foram feitas por militares que registraram suas vivências, ora contando o que aconteceu com eles, ora contando o

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que viram acontecer com seus pares.

São depoimentos e testemunhos que foram impondo-se no espaço público num tempo marcado pela progressiva introdução da figura da testemunha na configuração de uma específica expressão cultural: a cultura da memória que floresce entre nós. A memorialística do regime militar ainda é história oral, provem das narrativas dessas testemunhas e constitui-se ao mesmo tempo em fonte e objeto históricos, pois se é certo que descreve a época, também pode ser estudada como um discurso em que diferentes versões disputam sentidos (BERGER, 2006, p.2).

Ao considerarmos, desta forma, a memória de quem testemunhou o período como uma expressão cultural e mesmo um objeto histórico de construção de sentido, no filme Jango estamos diante de vários discursos que pretendem configurar uma versão para narrar um acontecimento, todos eles eleitos para que configurem uma versão maior, proposta pelo diretor Sílvio Tendler. Se tivermos em mente, ainda, que o documentário pode ser compreendido como um produto jornalístico que recupera personagens, fatos e ainda propõe o estabelecimento de nexos, estaremos diante de um produto jornalístico audiovisual que desenvolveu um processo de processamento de informações do passado e propôs uma nova significação da realidade.

Henn (2006) argumenta que, na medida em que o jornalismo participa ativamente da construção social da realidade, é lógico pensá-lo como um grande produtor de memória coletiva. Valendo-se da concepção construcionista do jornalismo apresentada por Traquina, o pesquisador explica que para esta perspectiva, é impossível uma distinção

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radical entre realidade e os mídias noticiosos que deveriam refleti-la, na medida em que estes próprios mídias atuam na constituição desta realidade, teorização que corrobora as análises de Nora (1979) e Charaudeau (2006), anteriormente expostas. “Mesmo que se desconsidere as diversas interveniências do processo, só o fato do jornalismo poder incluir, excluir e hierarquizar os fatos segundo determinadas lógicas, já o coloca como instância que dá forma ao que é realidade relevante” (HENN, 2006, p.6, grifo do autor).

Conforme já exposto neste texto, o documentário possui compromisso com a realidade e apresenta vantagens sobre o modelo convencional de trabalho jornalístico. A partir desta premissa, pode ser pensado como uma fonte rica para estudos historiográficos e mesmo como um espaço de construção de memória. Entretanto, parte-se do pressuposto que esta construção seja algo mais que um rememorar, mais que uma simples retomada do ocorrido ou do já significado.

Pode-se pensar no filme Jango, por este viés, como um produtor de um discurso que configura uma relação entre o passado e o presente e que propõe, a partir desta conexão, uma reorganização dos discursos previamente emitidos ou significados, uma nova significação da imagem do presidente, ou um novo presidente para a memória historiográfica.

Considerações finaisCom a produção do documentário Jango e a partir do exposto neste trabalho,

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consideramos que Silvio Tendler consegue apresentar um resgate do período em que foi deflagrado o golpe militar no Brasil, em 1964, e oferecer um novo entendimento sobre o momento histórico narrado, à luz das novas condições sociais, políticas e culturais. Além disso, consegue recuperar o personagem de destaque na cena política nacional que foi João Goulart, já que o filme escapa de um registro meramente personalista em torno da figura do antigo presidente e, pode-se dizer, aproveita o momento de sua realização, de abertura política, para enunciar um discurso com relação à volta da democracia.

Em boa parte da produção, o diretor também insere imagens históricas do regime militar, como no momento em que mostra a repressão às passeatas após 1968, buscando conferir realidade e apresentando em uma produção cinematográfica nacional toda a brutalidade vivenciada pelos brasileiros durante a ditadura. Por este motivo, mesmo passados mais de 20 anos do fim do regime militar, as cenas apresentadas no documentário ainda mantêm seu impacto.

Além disso, é pela compreensão de Pierre Nora (1979) de que o acontecimento tem por virtude amarrar um feixe de significações esparsas que reiteramos nossa compreensão de que o filme Jango promove uma releitura do acontecimento que foi o golpe militar, oferecendo uma nova compreensão a respeito das motivações pelas quais os militares depuseram o então presidente e desmistificando a imagem deste, por longo tempo injustiçado.

Os interesses sociais conflitantes no período também aparecem representados

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de forma esclarecedora no filme. Após estudar as lutas do período, o historiador Moniz Bandeira não tem dúvida em afirmar que “o golpe de Estado no Brasil, instigado e sustentado pela comunidade dos homens de negócios e pelos proprietários de terras, constituiu nitidamente um episódio da luta de classes” (BANDEIRA in MATTOS, 2008, p.262).

A visão de uma história política renovada do governo Goulart também aparece no depoimento da socióloga Maria Vitória Benevides que consta nos extras do DVD. Entretanto, para ela, alguns dos problemas políticos apresentados ainda permanecem: “acentuo a reforma agrária, que foi de certa maneira o estopim do movimento popular pré 64 e depois um dos principais motivos para o golpe e continua hoje como bandeira crucial daqueles que estavam do lado das lutas justas, como diz Fernando Brant no poema”. E é com esta referência ao poema de Brant, que abriu este texto, que ele também é encerrado, já que assim como as lágrimas derramadas em 64 permanecem justas na opinião do poeta, pode-se afirmar que o filme de Tendler, produzido em 1984, permanece atual.

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Entre a lança e a prensa:Conhecimento e Realidade no discurso do jornal O Povo (1838)1

Camila Garcia KIELING2

A imprensa oitocentista em perspectivaO recente movimento de resgate do estudo dos primeiros periódicos brasileiros se

faz através de um olhar cultural, que serve tanto para o campo da Comunicação quanto ao da História, ao redimensionar o objeto como fonte para as memórias de um tempo escoado3, na versão de Sandra Pesavento “apresentando visões distintas de um mesmo fato” e despontando “como agente histórico que intervém nos processos e episódios, e não mais como um simples ingrediente do acontecimento” (Neves, 2006, p.10).

Em um momento de cunho historicista ou positivista da historiografia tradicional, os periódicos foram tratados como fontes privilegiadas, por constituírem uma porta de acesso do pesquisador à “verdade”. Mais tarde, os estudos críticos enxergaram nos jornais a questão ideológica e suas imbricações socioeconômicas, abordando-os como reflexo de uma infra-estrutura e “falsificadores da verdade” (Morel; Barros, 2003, p.8).

1 Texto-base originariamente apresentado no Intercom Sul 2010, realizado em Blumenau (SC).2 Jornalista e editora, mestranda em Comunicação Social na PUCRS na linha de pesquisa de Práticas Profissionais e Processos Sociopolíticos nas Mídias e na Comunicação das Organizações. E-mail: [email protected] “Tempo escoado”, na expressão da professora Sandra Pesavento: PESAVENTO, Sandra Jatahy. Fronteiras da his-tória: uma leitura sensível do tempo. In.: SCHÜLER, Fernando, AXT, Gunter e SILVA, Juremir Machado da (orgs.). Fronteiras do Pensamento – Retratos de um mundo complexo. São Leopoldo: Ed. Unisinos, 2008.

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O movimento seguinte renova a importância da imprensa como referencial interativo na complexidade de um contexto (Morel: Barros, 2003). Ela passa a “ser considerada fonte documental (na medida em que enuncia discursos e expressões de protagonistas) e também agente histórico que intervém nos processos e episódios, em vez de servir-lhes como simples ‘reflexo’” (MOREL: BARROS, 2003, p.9). Assim, pesquisas buscam a riqueza de representações presentes nas páginas dos periódicos do século XIX.

Nessa linha interpretativa, a ênfase no atraso, na censura e no oficialismo como fatores explicativos destes primeiros tempos da imprensa “não parecem suficientes para explicar a complexidade e compreender as características de tal imprensa, gerada numa sociedade em mutação, do absolutismo em crise” (Morel, 2008, p.1). Assim, entendemos que o nascimento da imprensa no Brasil deu-se em um rico caldo de cultura social, político, econômico e cultural, que teve como impulso inicial a chegada da família real portuguesa ao Brasil. Daí para diante, os jornais, mesmo que de propriedade de governos ou representantes declarados de ideais políticos, sempre estiveram imbricados com a circulação das idéias e com a realidade cotidiana da sociedade, através de artigos de opinião, notícias, crônicas, poesias, anúncios. Os papéis incendiários4 foram constantemente alimentados pela lenha dos “extraordinários do dia-a-dia”, mas também pelas grandes transformações sociais, como os movimentos pela independência ou, mais tarde, a peleja

4 Referência às primeiras manifestações impressas ou manuscritas que, desde o século XVIII, na França, cau-savam comoção e disse-que-disse na vida urbana, manifestando uma noção de “opinião pública”, na visão da historiadora Arlette Farge (Morel, 2003, p. 12).

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entre o Império e os movimentos republicanos.Esta última teve como expoente, na então Província de São Pedro do Rio Grande do

Sul, a Revolução Farroupilha (1835-1845). O confronto entre farrapos e legalistas deu-se para além dos campos de batalha, refletindo-se também nos jornais. Apesar de incipiente (o primeiro jornal da província, o Diário de Porto Alegre, data de 1827), a imprensa sul-rio-grandense também representou a grande agitação política do período regencial brasileiro: “As publicações periódicas serviam então às duas causas em conflito, pois tanto farroupilhas quanto legalistas organizaram uma série de periódicos através dos quais defendiam suas idéias e atacavam-se mutuamente” (ALVES, 2000, p.19).

O Povo foi o mais longevo periódico oficial da República Rio-Grandense, circulou entre 1838 e 1840, e começou a ser editado na cidade de Piratini, somando 160 números. Os equipamentos necessários para impressão foram comprados pelo Ministro da Fazenda Domingos José de Almeida, com o produto da venda de 17 escravos (Hartmann, 2002). O primeiro redator d’O Povo foi Luiz Rossetti, um italiano refugiado no Brasil, partidário do movimento Jovem Itália5, que pretendia a unificação italiana. A influência de Rossetti na direção do periódico não pode ser minimizada, como veremos com mais detalhes adiante. De acordo com Riopardense de Macedo (1994), autor de precioso levantamento intitulado

5 O movimento Jovem Itália foi fundado por Giuseppe Mazzini, em 1831, na Marselha. Dissidente da Carbone-ria, sua intenção era “promover a insurreição popular republicana, com a participação do povo, que os liberais evitavam” (Bones, 1996, p. 82). Em 1832, passa a publicar um jornal homônimo ao movimento, onde afirma: “As revoluções têm que ser feitas pelo povo e para o povo. Não podem ser mera substituição de uma aristocracia por outra” (Bones, 1996, p.82-83).

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Imprensa Farroupilha, o italiano ajudou a produzir uma “propaganda republicana de bom nível que já ensaiava críticas aos processos próprios da burguesia” 1994, (p.7).

À luta política, econômica e militar somou-se a peleja simbólica, provocadora de grandes gestos e paixões, os quais repercutiram de diversas formas na vida cotidiana da sociedade sulina, incluindo o jornalismo. Se “Napoleão Bonaparte dizia que três pasquins raivosos são mais perigosos que mil baionetas” (Bones, 1996, p. 122), parece que os farroupilhas entenderam bem o recado, tratando de produzir suas versões dos fatos.

O texto que analisamos neste artigo, o Prospecto, apresenta-nos diversas faces da visão de mundo dos farroupilhas: o modo como encaram a guerra, o papel do jornalista e da imprensa, a perspectiva de futuro. O título traz em sua polissemia a riqueza simbólica de uma sociedade em um momento contundente de crise e mudanças. Um “prospecto”, além de uma folha avulsa contendo idéias ou propaganda, significa uma probabilidade, uma perspectiva, e também um projeto e uma visão. Trata-se do texto inaugural do jornal O Povo, publicado na primeira página do primeiro número, que circulou numa quarta-feira, dia 1º de setembro de 1838.

Nesse sentido, o discurso presente n’O Povo é de grande relevância como fonte de estudo das formas simbólicas e das representações sociais daquele momento histórico, ainda tão caro à sociedade sulina, através das palavras e idéias que fazia circular. Como os farrapos se referiam ao Império? Como se auto-referiam? Qual o papel do jornal e do jornalista no processo? Quais idiossincrasias marcam o ideal republicano? Para responder

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tais questionamentos, é nossa intenção analisar o discurso do jornal O Povo, através da amostra Prospecto, utilizando a Sociologia do Conhecimento (Berger; Luckmann, 1991) e a Análise do Discurso (Charaudeau, 2008).

A Sociologia do Conhecimento e a Análise do Discurso como lentesA Sociologia do Conhecimento (Berger; Luckmann, 1991) preocupa-se com a análise

do processo de construção social da realidade, entendida como a vida cotidiana. Os autores estão interessados no conhecimento que dirige a conduta na vida diária, que é dotada de sentido e coerência pelos homens que dela fazem parte através das objetivações e tipificações. Assim, entramos no terreno da sociabilidade, ou seja, “o conjunto de relações interpessoais e atitudes pessoais que, ainda que dependam de padrões adquiridos, são pragmaticamente reproduzidas ou modificadas na vida cotidiana” (CORREIA, 2005, p.12-13).

É através da relação com os outros indivíduos que passamos a integrar a realidade da vida cotidiana, um mundo de representações sociais, tomadas aqui como parte das objetivações e tipificações que estão “prontas” antes de começarmos a interagir e que se modificam com o passar do tempo. No contato face-a-face, considerado por Berger e Luckmann como o mais completo no relacionamento interpessoal, e nas outras formas mais remotas de interação (como através dos meios de comunicação), os indivíduos aprendem e compreendem a sua realidade social. A experiência comunicativa com o outro, com o diferente, possibilita a transcendência do que conhecemos como cotidiano e, neste sentido,

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tanto o entendimento quanto a estranheza contribuem para a complexa engrenagem que move as representações sociais (Correia, 2005). Esse movimento não ocorre apenas entre contemporâneos: as tipificações de predecessores e sucessores também influenciam a construção social da realidade. No caso dos predecessores, a relação pode ser de natureza mítica, como no caso das tipificações envolvendo a Revolução Farroupilha na sociedade sul-rio-grandense, principalmente da década de 1950 até a atualidade6. Daí a riqueza da observação de um objeto de pesquisa como o jornal O Povo, que nos transporta para as objetivações e tipificações presentes na sociedade que viveu o conflito.

Entendemos, assim, que a Sociologia do Conhecimento propõe uma análise que quer ver a imbricada relação entre o psicologismo e o sociologismo, entre o indivíduo e a sociedade, entre o conhecimento e a realidade. Uma das formas que encontramos de fazer essa análise é através da linguagem, já que “é o mais importante sistema de sinais na sociedade humana” (Berger; Luckmann, 1991, p.56). Os autores explicam seu papel preponderante nas objetivações:

As objetivações comuns da vida cotidiana são mantidas primordialmente pela significação lingüística. A vida cotidiana é sobretudo a vida com a linguagem, e por meio dela, de que participo com meus semelhantes. A compreensão da linguagem é por isso essencial para a minha compreensão da realidade da vida cotidiana. (BERGER; LUCKMANN, 1991, p.56-57)

6 Entra aí a Revolução Farroupilha como “mito fundador” da sociedade sulina, tal como o quer o MTG – Movimen-to Tradicionalista Gaúcho. Trata-se de um tema de grande relevância, mas que não nos cabe aprofundar aqui. Sugerimos a leitura de OLIVEN, Ruben George. A parte e o todo: diversidade cultural no Brasil-Nação. Petrópolis: Vozes, 1992.

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Desta forma, a linguagem destaca-se também pela capacidade de referir conceitos ou situações diferentes do aqui e agora. Através dela, é possível reportar-se a situações jamais experimentadas de forma presencial e, “deste modo, a linguagem é capaz de se tornar o repositório objetivo de vastas acumulações de significados e experiências, que pode então preservar no tempo e transmitir às gerações seguintes” (Berger; Luckmann, 1991, p.57), como é o caso dos textos presentes n’O Povo. Assim, entendemos que a Análise do Discurso, por sua visão abrangente da situação de comunicação (como explicaremos a seguir), é uma técnica adequada ao propósito de desvendar algumas das representações contidas no Prospecto.

A fim de sedimentar sua proposta de teoria de Análise do Discurso, Patrick Charaudeau (2008) traça um panorama de duas diferentes vertentes do pensamento lingüístico, evidenciando grandes tendências em relação ao Objeto, ao Método e ao Conhecimento e chegando aos seguintes tipos de abordagem da linguagem:

- uma que se caracteriza por sua concepção de linguagem-objeto-transparente, por seu método de atividade de abstração, e se interessa por do que nos fala a linguagem;- outra se caracteriza por sua concepção de linguagem-objeto-não-transparente, por seu método de atividade de elucidação, e se interessa por como nos fala a linguagem. (CHARAUDEAU, 2008, p. 20, grifos do autor)

Por um lado, temos a linguagem em uma situação de comunicação neutra, com

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emissor e receptor ideais, esgotando sua significação em si mesma. O método de análise dos textos é a abstração, através de comparações e analogias, chegando a uma explicação última da estrutura linguageira ou, em outras interpretações, à “verdade”. Assim, essas teorias buscam do que fala a linguagem, ou seja, qual é o mundo já organizado que se encontra por trás dela.

Por outro, distintas abordagens entendem que o ato de linguagem não se esgota no seu significado, ligando-se ao contexto sociohistórico e constituindo um jogo entre implícitos e explícitos. Os seres da fala (emissor e receptor) são definidos em suas diferenças. Aqui, o método de análise baseia-se na atividade de elucidação, que joga com a manifestação linguageira e o contexto, entre o sujeito coletivo e o individual, interessando-se em como fala a linguagem, ou seja, como a significação é significada.

O que o autor pretende, ao expor essas tendências, é alertar-nos para a importância de integrá-las em uma mesma problemática, pois a linguagem é marcada pelo selo da discordância e da concordância: “O mundo não é dado a princípio. Ele se faz através da estratégia humana de significação. O Método seguido deverá então ser duplo: elucidante do ponto de vista do como e abstratizante do ponto de vista do do quê” (CHARAUDEAU, 2008, p.21, grifo do autor).

Charaudeau define o ato de linguagem como uma encenação. Trata-se de um ato inter-enunciativo entre quatro sujeitos, “lugar de encontro imaginário de dois universos de discurso que não são idênticos” (2008, p. 45). Esquematicamente, o autor representa

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sua teoria no quadro ao lado.

Quadro 1. Situação de comunicação (CHARAUDEAU, 2008, p. 52).

Onde:EUc = sujeito comunicante. É um sujeito agente que se institui como locutor e

articulador da fala. É testemunha de um determinado real ligado ao discurso.EUe = sujeito enunciador. É uma imagem de enunciador construída pelo sujeito

produtor da fala e representa seu traço de intencionalidade no ato de produção.TUd = sujeito destinatário. É o interlocutor fabricado pelo EU como destinatário

ideal, adequado a seu ato de enunciação, de acordo com as circunstâncias de discurso e com o contrato de comunicação.

TUi = sujeito interpretante. É responsável pelo processo de interpretação que escapa do domínio do EU. Encontra-se em relação de opacidade com a intencionalidade do EU.

No espaço externo do quadro está o contexto “real”. O ambiente interno abriga os imaginários, as representações, os ideais de comunicação. O sucesso na empreitada de comunicar depende da maior ou menor coincidência entre TUi e TUd. A noção de contrato pressupõe que os sujeitos pertencem a um mesmo corpo de práticas sociais e estão de acordo com as representações linguageiras das mesmas e determina os protagonistas da

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linguagem em sua dupla existência de agentes e sujeitos da fala. O contrato pode deixar transparecer as estratégias de poder existentes na sociedade, num jogo de ser e parecer do estatuto social dos sujeitos da ação linguageira (2008, p.61-62).

Charaudeau afirma, ainda, que a análise de um discurso deve dar conta não apenas de EU ou TU, mas sim dos diferentes “possíveis interpretativos que surgem (ou se cristalizam) no ponto de encontro dos dois processos de produção e de interpretação” (2008, p. 63). Em síntese, a proposta teórica do autor instiga o pesquisador a responder à pergunta: Quem o texto faz falar?, ou Quais sujeitos o texto faz falar?

Nesse sentido, a Análise do Discurso coloca-se em harmonia com a Sociologia do Conhecimento, pois as diferentes instâncias dos sujeitos enunciadores e interpretantes integram-se à dinâmica da relação entre a realidade e o conhecimento, o social e o subjetivo, que movimenta o jogo das objetivações. Além disso, as teorias contam tanto com o entendimento quanto com a falha do processo comunicativo, o que dá instrumento ao pesquisador para questionar os diferentes possíveis interpretativos que os textos dão a ler.

Entre a lança e a prensa, a realidade e as idéiasPara a análise do texto Prospecto, publicado no primeiro número do jornal O Povo,

de 1º de setembro de 1838, começamos por uma contextualização do momento político no Brasil e a situação da imprensa sul-rio-grandense no século XIX, a fim de orientar o

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leitor na atmosfera de produção do texto, o “espaço externo” do esquema de Charaudeau (2008). Sobre a relação entre texto e contexto, Castro (2004) explica:

A realidade do discurso [...] parte da sua historicidade, representa-da na relação entre o que é repetível, ou exterior ao sujeito e a produção da seqüência lingüística específica, onde o sujeito intervém. O repetível ou domínio do saber é uma sistematicidade do discurso, que é histórica, e os objetos deste adquirem estabilidade através de formas pré-construídas, que ligam o contexto da enunciação ao contexto do enunciado. (CASTRO, 2004, p. 44)

Assim, o uso das palavras leva a uma sedimentação, que é construída de forma social e também individual, seja pelo contato com os predecessores realizado através da linguagem, ou da experiência pessoal de cada indivíduo, formando um repertório de conhecimento que age na interação cotidiana das representações sociais (Oltramari, 2005, p.5). Para entender o repertório de que falamos aqui, faz-se necessário trazer alguns aspectos contextuais do período regencial brasileiro.

Os nove anos de duração do governo regencial (de 1831 a 1840), que seguiu a abdicação de D. Pedro I, foram marcados pelos conflitos políticos entre as classes dominantes e uma grave crise econômica e financeira que assolou o país e estimulou as províncias a exigir maior autonomia em relação ao poder central. Nesse cenário, os produtores de café do Rio de Janeiro e do Vale do Paraíba representavam 44% do total das exportações (Silva, 1992), número que indica a sua relevância nas decisões políticas.

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A Revolução Farroupilha (1835-1845) insere-se num contexto de revolta das elites de províncias periféricas, como a Cabanagem (Grão-Pará, 1835-39), a Sabinada (Bahia, 1837-38) e a Balaiada (Maranhão, 1838-41).

Pesavento (1997), ao analisar os componentes que incendiaram os revolucionários sulinos, cita os fatores militar-fronteiriços (os constantes conflitos militares para defesa das fronteiras imperiais) e o atraso, os altos impostos e a dependência do mercado interno da atividade-base da economia sulina, a produção de charque. A ameaça à propriedade privada dos estancieiros do sul (no entendimento deles mesmos) foi determinante para eclosão da Revolução Farroupilha, em 1835, e a separação do Império através da proclamação da República Rio-Grandense, em 1836. Entendemos, dessa análise, que há uma correspondência entre os objetivos da Revolução e sua base social: trata-se de uma revolta das elites interessadas em defender seus interesses privados.

Para Alves (2000), as motivações político-partidárias ligadas ao processo de preparação e eclosão da revolta promoveram um grande crescimento das atividades jornalísticas na então Província de São Pedro do Rio Grande do Sul e, depois, na República Rio-Grandense. O mesmo fervor foi responsável pela superação das dificuldades financeiras e técnicas da época. Esse é o caso de Luiz Rossetti, que, entre a lança e prensa, foi ao mesmo tempo redator d’O Povo e comandante da Marinha, morrendo no combate de Viamão, em 1840, aos 40 anos:

Os escritores públicos responsabilizavam-se por praticamente todas as tarefas

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ligadas à elaboração dos periódicos, já que redigiam a notícia, selecionavam a transcrição, revisavam as provas, gerenciavam a tesouraria e a distribuição da folha e, em alguns casos, faziam mesmo, às vezes de tipógrafo, no intento de manter acesa a flama jornalística que acompanhava as disputas políticas. (Alves, 2000, p. 19-20)

Hartmann (2002) explica que a decisão de ter um jornal oficial ocorreu por volta de 1837, quando os farrapos haviam perdido a cidade de Porto Alegre e a barra da Lagoa dos Patos (Rio Grande e São José do Norte) para o Império. A idéia era levar às várias outras cidades dominadas por suas tropas e aos oficiais que elas comandavam as principais notícias do que ocorria na República. Percebemos, pelas informações fornecidas por Hartmann, que essas derrotas suscitaram a necessidade de um novo fator agregador das forças pró-revolução, e o jornal aparece para preencher essa lacuna, como veículo de coesão da sociedade civil e militar envolvidas na batalha. Nesse sentido, o Prospecto, texto que apresenta o jornal à opinião pública, traz em suas linhas a representação de um ideal pelo qual valia matar ou morrer: a República.

O texto é escrito na primeira pessoa do plural e não é assinado. Estas são características importantes, reveladoras de uma importante simbiose entre os sujeitos enunciadores (EUc e EUe). Do ponto de vista enunciativo, como explica Charaudeau, o Prospecto encaixa-se em um comportamento Elocutivo, ou seja, aquele que visa “revelar o ponto de vista do locutor” (2008, p.82, grifo do autor). O locutor mostra que tem conhecimento de um propósito, realiza um julgamento sobre ele, enumera razões

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para segui-lo e ainda demonstra adesão a esse projeto. Todas essas características estão presentes no discurso analisado.

O Prospecto defende e conclama os patrícios a uma entrega abnegada aos ideais da guerra: a República representa a salvação e a felicidade. Justifica o rompimento com o Império por suas “usurpações do poder”7 e pela “incapacidade dos governantes”. O texto refere-se ao Império com grande hostilidade, começando com “inimigo” e chegando, no último parágrafo, a “abominável monstro que engole as vidas, e acomete os destinos de províncias inteiras”.

De acordo com o discurso analisado, vencer o Império e consolidar a República é o objetivo maior que deve guiar a sociedade daquele momento, mesmo que sobrepujando as liberdades individuais. Tempos extraordinários que exigiam medidas extraordinárias: “quando se trata dos destinos da Pátria, qualquer meio feito é santo, qualquer arma empunhada pelo valoroso que se oferece vítima consagrada, é abençoada de Deus, que somente concede a palma da vitória aos que insurgem firmemente resolvidos a obtê-la”, ou ainda: “Para chegar da tirania à Liberdade, é mister valer-se de medidas incompatíveis com a Liberdade regular e permanente”.

O texto inflamado pretende incitar o TU a se identificar com a imagem de mundo apresentada pelo EU, utilizando uma subjetividade afetiva e prometendo: “mereceremos da posteridade imparcial, o merecido prêmio de nossos esforços, por termos corajosamente

7 A partir daqui, os exemplos retirados do texto e destacados entre aspas estão no jornal O Povo, 1º de setembro de 1838, páginas 1 e 2.

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defendido a causa legítima do progresso e da humanidade” [grifos nossos].O uso do “nós” é bastante revelador em termos de Análise do Discurso e, em nosso

caso, indica relações importantes entre os sujeitos emissores da fala. Esquematicamente, podemos identificar o sujeito comunicador (EUc), aquele do plano concreto, como o redator Luiz Rossetti, pois, apesar do Prospecto não ser assinado, é consenso nas pesquisas históricas que ele foi um dos idealizadores e o redator d’O Povo em sua fase inicial. Bones relata que foi encontrada no Arquivo Histórico do Rio Grande do Sul uma carta do ministro Domingos José de Almeida em que pedia que “se dirigissem a Luiz Rossetti, o redator do jornal” (1996, p.77).

Já o sujeito enunciador (EUe), aquele que assume publicamente o texto, é o Governo da República Rio-Grandense. O cabeçalho logo abaixo do título não deixa dúvidas: “Este periódico é de Propriedade do Governo”. A coesão entre os enunciadores é revelada na correspondência entre Rossetti e seu companheiro de Jovem Itália, Giovanni Batista Cuneo: “O jornal é do governo e precisa parecer que tudo sai do seu laboratório” (BONES, 1996, p.77), escreve o editor d’O Povo.

A mistura entre EUc e EUe fica evidente já no começo do texto. O primeiro parágrafo traz a reprodução de um trecho do folheto Jovem Itália, movimento do qual Rossetti era oriundo, e que faz fortes afirmações sobre os sacrifícios a serem feitos em nome da “Liberdade”, palavra repetidamente utilizada para designar a mais alta benesse trazida pela República: “Para chegar da tirania à Liberdade, é mister valer-se de medidas,

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incompatíveis com a Liberdade regular, e permanente”. Ou seja: para atingir a liberdade maior, era preciso, pelo menos temporariamente, abrir mão daquela já conquistada. Toda a confiança deveria ser depositada no “Poder que governa a revolução”. A seguir, outras marcas indicam essa mistura: “Devemos nos identificar com o poder que rege a guerra” ou “Procurar com todas as nossas forças” (grifos nossos).

O trecho do manifesto do Movimento Jovem Itália reproduzido no cabeçalho do jornal8, que fica em destaque até o seu fim, em 1840, não deixa dúvidas sobre a influência da Jovem Itália trazida por Rossetti na construção do texto e, conseqüentemente, nas objetivações e tipificações que traz em suas linhas. A República é sempre articulada com palavras como liberdade, felicidade, salvação e, até mesmo, democracia. A inserção de “doutrinas democráticas” parece mesmo um aparte ideológico de Rossetti, já que o pedido do Governo é no sentido de tolerância a um regime de exceção, onde é preciso que o povo, para ajudar a vencer o inimigo, aceite concentrar “a vontade de todos em mui poucos, ou em uma só”, por uma questão até mesmo prática, já que “os Decretos têm de suceder-se com a rapidez dos golpes no combate, e a mais pequena dilação poderia ser fatal ao êxito da guerra”. Assim, entendemos que a idéia republicana defendida pelo jornal naquele momento traz uma clara contradição com sua prática, apresentando um modus operandi característico dos governos centralizadores, justamente o seu objeto de repulsa. Mais tarde, a divergência entre os ideais republicanos e democráticos de Rossetti e os

8 “O poder que dirige a Revolução tem que preparar os ânimos dos Cidadãos aos Sentimentos de fraternidade, de modéstia, de igualdade e desinteressado e ardente amor da Pátria”.

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planos dos estancieiros farrapos ficaria cada vez mais clara, o que fez o italiano manifestar seu descontentamento com os rumos da Revolução: “A guerra perdeu o sentido”, escreveu a Garibaldi (BONES, 1996, p.77).

As incoerências da proposta republicana sulina estão presentes em contradições no próprio texto, por exemplo, quando afirma que o poder que rege a guerra deve utilizar “todos os meios lícitos” [grifo nosso] para vencer o confronto, mas ao mesmo tempo, declara com firmeza que “Querer governar a época tumultuosa da revolução com as regras conservadoras do regime definitivo, seria o mesmo que avaliar a paz como a guerra” e estabelece que o conflito é, enfim, “uma guerra de insurreição”. Em outras palavras, o que ocorria naquele momento era a transgressão (ou violação) das leis e não o uso de meios lícitos para combater o Império.

Outra peculiaridade do discurso é a invocação de princípios religiosos na argumentação, como em: “quando se trata dos destinos da Pátria, qualquer meio feito é santo, qualquer arma empunhada pelo valoroso que se oferece vítima consagrada é abençoada de Deus ” e também na seguinte passagem:

Aquele que se propõe a escrever por um Povo e mais particularmente para um Povo que está para surgir à nova vida, tem que assumir o caráter do sacerdócio; e para que a voz dele soe venerada, e clara entre as multidões, deve, como a do interprete de Deus, ser forte, pura, e solene.

Se analisarmos o discurso em um sentido puramente ideológico, parece-nos

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contraditório que um movimento que execrava a monarquia use a imagem de Deus como recurso discursivo, já que a Igreja é uma histórica aliada dos regimes centralizadores, atuando, inclusive, como legitimadora da autoridade do rei, da linhagem escolhida por Deus. Além disso, o movimento da Jovem Itália, do qual Rossetti era oriundo, era ligado à maçonaria. Essa divergência revela mais uma das singularidades do pensamento republicano sulino.

Rossetti deixa suas marcas através de sua visão sobre o ofício do jornalista. Em suas próprias palavras, seu papel como redator era de Educador, ajudando a guiar os leitores no caminho da verdade e da retidão de princípios que o governo que comandava a guerra percebia como convenientes. Em oposição ao conceito de imparcialidade, um dos bastiões do jornalismo como o conhecemos hoje, O Povo deixava claro que se permitia excluir de suas colunas “qualquer correspondência ou comunicado que não esteja em perfeita harmonia com nossas doutrinas”. Outro fato interessante é a constatação de que a pecha de “vendido” ou “interesseiro” em relação aos jornais e jornalistas parece estar imbricada com a gênese do periodismo:

E agora perguntamo-nos: todos esses jornais sem vida, e sem alvo, a não ser aquele vergonhoso do lucro, verdadeiras torres de Babel, onde se vê a soberba, e a confusão; e que saem corajosamente, para todo o Império, a cada dia, não sei se, mais para experimentar a constância, do que para cansar a excessiva vontade dos assinantes, cumprirão eles a santidade de seus deveres?

Vê-se aí a importância da peleja simbólica através dos periódicos. Assim, o jornal

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O Povo, estudado aqui através da amostra Prospecto, aparece como uma manifestação das relações intersubjetivas, tanto no campo da produção da enunciação, através ligação estreita entre os produtores da fala (Rossetti e Governo Republicano Rio-Grandense) como na relação com a opinião pública da época, com quem os sujeitos enunciador e comunicador dividiam ou confrontavam uma rica gama de representações, objetivações e tipificações.

Procuramos no texto, através da linguagem, este elemento preponderante no terreno das objetivações, algumas amostras da visão de mundo dos representantes oficiais da Revolução Farroupilha. Trata-se de um momento exemplar da conexão entre o conhecimento e a realidade, pois as dificuldades econômicas vividas pela Província afetaram a vida cotidiana dos sul-rio-grandenses como um todo, seja através da “ameaça” à propriedade privada, no caso das elites, seja nas necessidades materiais e na incumbência de arriscar a vida na Revolução, no caso dos escravos e peões que lutaram na guerra. Sabemos que os conflitos vão além do campo de batalha real, onde o sangue escorre, e são transportadas para o campo do simbólico, onde as idéias povoam e inflamam os discursos.

A Sociologia do Conhecimento trata das relações entre o pensamento humano e o contexto social dentro do qual surge (Berger; Luckmann, 1991). Nesse sentido, o ideal republicano expresso no Prospecto parece adequado com o momento histórico vivido, de crise do Império, e também em harmonia com o repertório trazido por Rossetti para a

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redação do jornal. Bones relata o projeto de Luiz Rossetti, citando também um trecho de carta endereçada ao amigo Cuneo:

Para ele, o regime republicano seria conseqüência de um processo histórico irreversível, deflagrado com a independência dos Estados Unidos, em 1776, e que culminaria com a supressão de todas as monarquias e estruturas de privilégio. “Eu não vejo senão a humanidade, família imensa da qual também sou membro e desprezo bastante todos os que limitam seus esforços à felicidade do pequeno círculo de parentes e concidadãos no meio dos quais se acham eventualmente colocados”, dizia. (BONES, 1996, p.77)

No caso estudado, parece-nos que a necessidade material das elites locais se sobrepôs ao ideal republicano democrático, de ampla participação popular, que se mostra pela pena de Rossetti. O ideal republicano era o motor do pensamento naquele contexto histórico, mas não chegou a ser consolidado na vida cotidiana sulina, onde prevalecia o estado de exceção, de guerra, demandado pela Revolução. Assim, corrobora-se o que afirma Pesavento (1985), sobre a correspondência entre a base social que promoveu a insurreição e seu discurso:

o movimento circunscreveu-se aos limites da classe dominante, pecuarista, latifundiária e escravocrata. Estes eram os “cidadãos” que se autodenominavam “o povo do Rio Grande” e que arrastavam junto a si seus empregados e dependentes para lutarem num movimento em torno de causas alheias aos horizontes destas camadas dominadas. Não há, portanto, falta de correspondência entre o discurso político e a sua base social. O pensar e o agir correspondem aos interesses dos grupos que empresariam o movimento,

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bem como à sua necessidade de manter a dominação sobre o corpo social. (PESAVENTO, 1985, p.28)

Entretanto, essa correspondência, no discurso analisado, não se dá de forma direta, linear, objetiva. Através dos exemplos trazidos neste artigo, julgamos mostrar alguns indicativos de que o discurso articula-se de forma matreira, sutil, irregular. A encenação do processo comunicativo de que nos fala Charaudeau (2008) traz uma riqueza de significados que tornam o discurso revolucionário d’O Povo um desfile de idiossincrasias ideológicas. Essas peculiaridades e contradições revelam a ligação das idéias com a realidade cotidiana, pois mesmo aqueles que se querem revolucionários não podem fugir de certas amarras do tempo histórico.

Este exercício, realizado com uma amostra do corpus de nossa pesquisa para a Dissertação de Mestrado, nos leva a crer que O Povo pode ser estudado como ponte para uma sensibilidade que fala de representações predecessoras no tempo histórico, mas que dialogam com a atualidade, mesmo que sob uma “nuvem mítica”. O jornal, como mediador das subjetividades, atua como indicativo da relação entre o conhecimento e a vida cotidiana, e, ao mediar tipificações e objetivações da época, permite o acesso do pesquisador a algumas das sutilizas do discurso do movimento farroupilha.

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Bibliografia Consultada

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“Todo compositor brasileiro é um complexado”Anonimato e fama de Tom Zé na mídia impressa especializada1

Lygia Maria Silva ROCHA2

Esta pesquisa parte de duas hipóteses preliminares: primeiro, a de que o músico Tom Zé obteve reconhecimento midiático nas décadas de 60 e 70 e que na década de 80 caiu praticamente em um ostracismo; segunda que, a partir da década de 90, este músico foi novamente consagrado pelos cadernos culturais. Para comprová-las, coletamos e analisamos 71 aparições de Tom Zé, entre matérias, notas, críticas e entrevistas, na mídia jornalística impressa brasileira no período de 1968 até 20023. A partir deste universo, a primeira constatação que fizemos foi a discrepância de números de aparições comparando-se as décadas. A maior diferença se verifica quando vemos os dados da década de 90.

ANO Matéria Nota Crítica Entrevista TOTAL1960 3 1 0 0 41970 10 2 0 0 12

1 Texto-base originariamente apresentado no Intercom Sul 2009, realizado na Furb, Blumenau (SC).2 Bacharel em Comunicação Social – Jornalismo pela Universidade Federal do Pará (2003). Especialista em Co-municação Jornalística – Jornalismo Cultural pela Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (2006). Mestran-da em Jornalismo na Universidade Federal de Santa Catarina. Endereço eletrônico: [email protected] Este artigo é uma adaptação (redução) e atualização da pesquisa, de mesmo título, realizada na Pontifícia Uni-versidade Católica de São Paulo, em 2006, para obtenção do título de Especialista em Jornalismo Cultural. Devi-do ao formato exíguo do artigo, não apresentamos a parte da pesquisa que trata do contexto histórico, político, cultural e estético dos anos 60 e do movimento tropicalista (onde insere-se o trabalho do músico Tom Zé).

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1980 9 4 2 0 151990 17 2 6 5 302000 5 0 4 1 10

Em primeiro lugar, devemos frisar que a década de 1960 envolve apenas dois anos, os de 1968 e 1969, e que a década de 2000 também abrange apenas três anos, o de 2000, 2001 e 2002. Escolhemos o ano de 1968 porque foi neste ano que Tom Zé apareceu efetivamente para o grande público quando participou, e foi vencedor, do IV Festival de Música Popular Brasileira da TV Record. Já o ano de 2002, foi escolhido como ano limite da busca de aparições de Tom Zé na mídia, devido ao tempo hábil para a entrega da pesquisa. A partir daí, pode-se perceber facilmente o pequeno número de aparições do músico nas décadas de 1960 e de 2000, comparado às outras décadas. Mesmo assim, podemos perceber que nos 3 anos da década de 2000, Tom Zé teve mais do que o dobro de aparições na mídia impressa comparado aos dois anos da década de 1960, além de contar, a partir de 2000, com 4 críticas e 1 entrevista que, devido à própria estrutura destes textos jornalísticos, respectivamente dão atenção mais aprofundada à obra e espaço ao artista para que comente seu trabalho e dê suas opiniões.

Já vemos aí uma diferença de tratamento ao trabalho de Tom Zé. É óbvio que isso se deve também ao fato de que na década de 1960, Tom Zé estava em começo de carreira, era praticamente um desconhecido do grande público. Já em 2000, Tom Zé é tratado como artista experiente e consagrado. Mas isso se deve, principalmente, aos fatos ocorridos durante a década de 90, pois, até esse momento, Tom Zé estava, ao contrário, praticamente

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esquecido. O próprio Tom Zé constata esse esquecimento ao falar de como um dos recursos estilísticos de seu trabalho, o ostinato - motivo melódico ou rítmico repetido obstinadamente, em geral parte baixa de trecho musical repetida persistentemente -, denominado por ele carinhosamente de mulher e namorada, o ajudou a ser novamente reconhecido: “O fato é que a aventura com essa mulher me introduziu nos Estados Unidos e na Europa. Com ela, David Byrne criou pra mim uma nova vida e me tirou da sepultura onde eu fora enterrado na divisão do espólio do Tropicalismo”(TOM ZE, 2003, p.35).

Podemos ver que desde a sua primeira grande aparição, em 1968, até 2002, o músico se faz presente no meio jornalístico, mas é nítida a discrepância desta presença. Por exemplo, se somarmos o material jornalístico sobre ele das décadas de 70 e 80, não alcançamos o número do material da década de 90 inteira. Sem contar que, comparando as décadas de 80 e 90, podemos ver que na primeira, dos 15 textos jornalísticos 4 são notas pequenas, o que deixa apenas 11 textos mais aprofundados e interessados em sua obra. Já na década de 90 a valorização da mídia impressa sobre do trabalho de Tom Zé é perceptível através das 17 matérias, 6 críticas, 5 entrevistas e somente 2 notas. Através das críticas e das entrevistas percebe-se o interesse da mídia não apenas na divulgação do trabalho do músico, mas também na busca de compreensão de seu trabalho, de imergir mais profundamente na obra de Tom Zé e, principalmente através das entrevistas, na vontade de ouvir o que o artista tem a dizer tanto sobre a sua obra, como sobre o mundo a sua volta. Ele passa, desta forma, de um esquecido da indústria cultural para um produto

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de interesse da mesma; não apenas produto, mas também sujeito ativo desta mesma industria, obtendo também o lugar de avaliar e consagrar outros produtos culturais.

Constatado o esquecimento e o re-aparecimento de Tom Zé na grande mídia impressa, ficam as questões: de que forma isso se deu e, principalmente, porque isso aconteceu? Trabalhamos com a hipótese de que isso ocorreu devido a dois fatores fundamentais.

O primeiro indica que Tom Zé não havia alcançado, totalmente, a legitimidade cultural atribuída pelos seus pares dentro do campo de produção musical, nas décadas de 60 e 70; tendo apenas alcançado esta legitimidade quando um produtor cultural, dotado de capital cultural para tal, o reconheceu, repassando para Tom Zé este mesmo capital cultural e realizando, desta forma, o processo de consagração. Sendo importante lembrar que não apenas o produtor cultural que reconhece Tom Zé – o músico norte-americano David Byrne -, detém o capital cultural necessário à consagração, mas o país de origem deste mesmo produtor – os Estados Unidos - também detém capital cultural, em relação a outros países, e, conseqüentemente, detém o poder de consagrar.

O segundo fator fundamental desse descobrimento da obra de Tom Zé se deve a intensificação do processo de globalização e de duas características importantes do momento pós-moderno, analisadas em profundidade pelo sociólogo brasileiro Renato Ortiz (1999) e pelo antropólogo argentino Nestor García Canclini (2000): a mundialização da cultura e o hibridismo cultural, sendo que estes alteram profundamente um outro

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conceito, o de identidade. A partir da constatação de que um país – no caso, os Estados Unidos - começa a valorizar uma manifestação cultural de outro – no caso, o Brasil - e a partir desta mesma valorização o segundo país passa a reconhecer o que antes estava esquecido, temos aí uma relação não apenas cultural, mas política e econômica, complexa e hierárquica que demonstra que os limites das culturas nacionais e a constituição da identidade cultural dos indivíduos não são mais os mesmos, principalmente se compararmos com a década de 60, onde se vivia exatamente o contrário: um certo tipo de xenofobismo cultural, principalmente com relação aos Estados Unidos. Na verdade, foi a partir deste período histórico que as características da globalização e do ambiente pós-moderno começam a se tornar mais nítidas, mais presentes, e foram os tropicalistas os primeiros a constatarem e valorizarem essas transformações. Nada mais sintomático disso do que o fato da redescoberta de Tom Zé se dê no momento onde essas transformações iniciadas há 40 anos se encontram, atualmente, cristalizadas e fortemente presentes no cenário cultural e político mundial.

A consagração de Tom Zé a partir da transferência de capital culturalSegundo o pensamento do sociólogo francês Pierre Bourdieu, todas as práticas

sociais são desenvolvidas a partir de trocas, sendo estas sempre trocas lingüísticas (no sentido de linguagem e não de língua, não apenas verbal). Não há, portanto, prática social sem linguagem. A linguagem seria, portanto, o suporte material (através de sons,

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formas, cores, números etc.) e o discurso produzido por essa linguagem seria o suporte simbólico carregado de sentidos. Neste sentido, a interação social, seja ela qual for, se dá pelo meio de uma troca tanto de sentidos quanto de interesses, demonstrando e revelando poderes hierárquicos e formas de dominação. Portando, a produção de sentido em uma comunidade é travada numa luta social (trocas) em que os atores sociais buscam o controle ou o acesso aos modelos de produção de sentido. Através de uma visão nitidamente materialista-marxista, em contraposição às tradicionais teorias dos signos e da semiótica (mais individualista e psicológica), o filósofo iguala as trocas simbólicas às trocas econômicas propriamente ditas: aqueles que detêm os modos de produção de sentido detêm o capital simbólico assim como quem detêm os modos de produção dos bens matérias detêm o capital econômico, como na análise marxista clássica. Desta forma, historicamente, pode-se constatar que nos estados totalitários do passado, o controle sobre os modos de produção do sentido – assim como sobre os modos de produção materiais - recaía sobre o próprio Estado, já com o liberalismo – e posteriormente, com o neo-liberalismo – o controle desses modos de produção de sentido são controlados pelo mercado.

Desta forma, percebe-se que o universo econômico é formado por vários mundos econômicos que, por sua vez, possuem razões práticas específicas que os caracterizam. Um desses mundos seria justamente o da economia das trocas simbólicas. A economia dos bens simbólicos possui suas peculiaridades específicas, mas na verdade funciona a partir

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da mesma lógica hierárquica e dominadora quanto a economia dos bens econômicos. O que acontece é um disfarce com relação ao funcionamento da primeira, na verdade, uma hipocrisia. Toda a engrenagem da economia dos bens simbólicos funciona no sentido de ver esses bens dotados de uma alma imaterial e superior que não se deixa atingir pela mesquinharia e competitividade presentes no mercado dos bens materiais. Porém, segundo Bourdieu, o bens simbólicos não estão situados pelas dicotomias (material/espiritual, corpo/espírito etc.) no lado espiritual. O que acontece é um recalque coletivo que nega a verdade da troca, a troca por troca, que, por sua vez, aniquilaria a troca de dons, de talentos. A economia dos bens simbólicos se baseia, portanto, nesta dualidade, em um verdadeiro “interesse no desinteresse” (BORDIEU, 2001, p.122), em uma hipocrisia estrutural que transfigura as relações econômicas por trás das trocas simbólicas e, em particular, transfigura as relações de exploração. Mas para que esse sistema de falseamento funcione é preciso que haja uma espécie de desconhecimento coletivo cujo fundamento se inscreve nas estruturas objetivas e mentais, excluindo a possibilidade de pensar ou agir de outra forma. É o que Bourdieu chama de “tabu da explicitação”, conceito que explica uma característica da economia dos bens simbólicos em contraposição a economia das trocas econômicas. O que na primeira não se pode explicitar é justamente aquilo que na segunda é nítido: o preço.

Mas se há um tabu na explicitação do preço, como ocorrem, então, as trocas dentro da economia dos bens simbólicos? As trocas simbólicas são sempre trocas de atos, de

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conhecimento e de reconhecimento sendo, portanto, necessárias categorias de percepção e de apreciação idênticas entre as duas partes. Mesmo com categorias de percepção idênticas as relações de troca são sempre desiguais já que há sempre aquele que detêm o que Bourdieu chama de “capital simbólico” ou “capital de reconhecimento”.

O capital simbólico é uma qualquer propriedade, força física, riqueza, valor guerreiro, que, percebida por agentes sociais dotados das categorias de percepção e de apreciação permitindo percebê-la, conhecê-la e reconhecê-la, se torna simbolicamente eficaz, como uma verdadeira força mágica: uma propriedade que, por responder a “expectativas coletivas”, socialmente constituídas, a crenças, exerce uma espécie de ação à distância, sem contato físico (BOURDIEU, 2001, p.130).

O capital simbólico é comum a todos os membros de uma determinada comunidade, manifestando-se, ou sendo percebido, de forma positiva ou negativa. É ao mesmo tempo o instrumento e o objeto em jogo de estratégias coletivas visando adquirí-lo ou conservá-lo, por meio de associação com os grupos dele dotados e distinguindo-se dos grupos pouco dotados ou desprovidos. Já que, para que exista o capital simbólico é necessário a cumplicidade de categorias de percepção entre os atores, forma-se, portanto um “campo” em torno do qual giram os interesses comuns. Um campo se constitui a partir de vários fatores aglutinadores: idade, interesses, classe social, raça, país, período histórico etc. Um deles é campo artístico, no qual são produzidos e consumidos os bens culturais. Como vimos anteriormente com a trocas dos bens simbólicos, aqui também acontece

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uma negação do econômico, o valor do bem se estabelece simbolicamente dissimulando a operação econômica que há por trás da troca. Esta operação só funciona a partir de um constante recalque coletivo, entre os participantes do campo, no caso do campo artístico: produtores, intermediários e público. Há, portanto, desníveis de acúmulo de capital simbólico, fazendo com que a relação que, a priori, deve-se basear na negação do econômico entre os atores, seja de dominação ou exploração. Afinal, quem tem o poder de atribui um valor a determinado produto artístico já que este valor deve ser simbólico? É justamente o campo, numa metáfora de um campo de forças, que organiza e articula os valores. É necessário prestígio e autoridade dentro do campo para que o valor seja atribuído, para que se tenha o poder de consagrar.

Um exemplo desta operação é o que aconteceu com o músico Tom Zé. O artista desponta do anonimato através do IV Festival de Música Popular Brasileira da TV Record, em 1968. Através da matéria “Tom Zé e Chico Vencem o Festival” (DEL RIOS, 1986) podemos aferir algumas análises a partir dos conceitos de Bourdieu. Em primeiro lugar, vemos a consagração do músico através do subtítulo: “Tomzé, o novo ídolo” e do texto: “Nasceu ontem o novo ídolo do público paulista: Tomzé, o baiano de Irará, Antônio José, Santana Martins”. A TV Record neste caso, é o agente dotado de capital cultural que legitima o músico. Mas a emissora de televisão não é o único, o júri também funciona como este agente, e no caso de Tom Zé, um detalhe importante deve ser considerado. No IV Festival da Record foram escolhidos dois vencedores através de dois júris distintos: um especial

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e outro popular, sendo que o primeiro era formado por artistas e especialistas da área musical e segundo pelo público que assistiu ao festival. Com a música “São São Paulo meu amor”, Tom Zé levou o primeiro lugar no júri especial, e Chico Buarque, com a música “Benvinda” foi considerado o melhor pelo júri popular.

Uma característica marcante do mercado de bens culturais é a denegação do econômico, a indiferença pelas sanções do mercado. Isso quando o mercado de bens culturais ocorre dentro de campos de produção cultural autônomos. Autônomos no sentido de não se deixar atingir por cobranças ou sanções exteriores a esse próprio campo como “os fatores de diferenciação econômica, social, ou política, como a origem familiar, a fortuna, o poder (...), bem como as tomadas de posição política” (BOURDIEU, 2001, p.106).

Essa característica de autonomia se verifica nos campos de produção cultural que ainda estão no início do seu processo de formação, como o campo de produção literária ou de artes plásticas, do século XIX, na Europa, ou, no caso do campo musical brasileiro dos anos 60, em um período em que a industria cultural ainda não estava totalmente formada e solidificada no país.

Desta forma, o júri especial (formado pelo maestro Gabriel Migliori, os músicos Julio Medaglia e Cláudio Santoro, o pianista João Carlos Martins, os críticos Carlinhos de Oliveira, Sergio Cabral e Raul Duarte e o autor teatral e jornalista Roberto Freire) escolhe Tom Zé mesmo este não tendo a mesma consagração popular. No caso, o gosto popular fica com Chico Buarque, autor já consagrado, vendedor de discos e vencedor de festivais.

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Aqui podemos perceber que, dentro do campo de produção artística, existem distinções. Um desses campos dentro do campo é o da produção erudita. Mesmo sendo nomeado como de produção erudita, este campo não está somente vinculado às manifestações artísticas mais facilmente vinculadas a este termo, como a música erudita de câmara, à orquestras, à chamada “música clássica”. O campo erudito, tal como Bourdieu analisa é aquele que se opõe ao campo da indústria cultural.

o campo de produção erudita enquanto sistema que produz bens culturais (e os instrumentos de apropriação deste bens) objetivamente destinados (ao menos a curto prazo) a público de produtores de bens culturais que também produzem para produtores de bens culturais e de outro, o campo da indústria cultural especificamente organizado com vistas à produção de bens culturais destinados a não-produtores de bens culturais (“o grande público”) que podem ser recrutados tanto nas frações não-intelectuais das classes dominantes (“o público cultivado”) como nas demais classes (BOURDIEU, 2001a, p.105).

De acordo com esta conceituação, podemos perceber que o músico Tom Zé e seu trabalho se enquadram nos regras do campo de produção erudita. A sua consagração dentro do campo, mesmo sendo feita através de um instrumento da indústria cultural (um festival de uma emissora de televisão), ocorreu a partir do reconhecimento dos seus pares: por “produtores de bens culturais que também produzem para produtores de bens culturais”, basta ver a formação dos membros do júri especial. Já Chico Buarque se encontra no outro campo, como o vitorioso do júri formado pelos “não-produtores de bens culturais

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(‘o grande público’)”. Se o festival contasse apenas com o júri popular, Tom Zé não levaria o primeiro lugar (no júri popular ele ficou na quinta colocação) ou provavelmente seria desclassificado, como já ocorrera outras vezes na carreira do músico.

O importante aqui é perceber que as linhas de diferenciação são tênues e que a riqueza da música popular brasileira cria uma série de matizes que ora se encontram ora se distanciam, na verdade, como toda manifestação cultural, sempre mutante, nunca rígida. Porem, também não podemos esquecer que existem extremos: do ye-ye-ye da jovem guarda à música aleatória de Rogério Duprat há diferenças gritantes e, entre uma e outra, há uma gama de subdivisões e misturas incalculáveis, sendo que a jovem guarda seria a representação mais próxima do campo de produção da indústria cultural, e Duprat do campo de produção erudita.

Percebe-se também que um campo não é homogêneo e apático. Dentro deste mesmo campo há conflitos entre os pares. O campo de produção erudita é um campo difícil e complexo de trocas. O fato dos artistas produzirem não apenas para um público, mas para um público de pares, que são também seus concorrentes torna a entrada e a manutenção dentro deste grupo extremamente difícil. Cria-se, portanto, uma relação de dependência muito forte: “...poucos agentes sociais dependem tanto, no que são e no que fazem, da imagem que têm de si próprios e da imagem que os outros e, em particular, os outros escritores e artistas, têm deles e do que eles fazem” (BOURDIEU, 2001a, p.108).

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Além de manifestar a ruptura com as demandas externas e a vontade de excluir os artistas suspeitos de se curvarem a tais demandas, a afirmação do primado da forma sobre a função, do modo de representação sobre o objeto da representação, constitui, na verdade, a expressão mais específica da reivindicação de autonomia do campo e de sua pretensão a deter e a impor os princípios de uma legitimidade propriamente cultural tanto no âmbito da produção como na recepção da obra de arte (BOURDIEU, 2001a, p.110).

Podemos fazer uma comparação desta afirmativa sobre o campo de produção dos artistas do final do século XIX, na Europa, com o contexto brasileiro da década de 60. Isso porque se verifica a mesma questão de busca por autonomia do campo. Os artistas tropicalistas surgem no cenário, entre outras características, como sendo aquele grupo que prima justamente pela forma em detrimento do conteúdo. Já vimos nas análises anteriores que a questão do “objeto representado” nos trabalhos tropicalistas, na verdade, nem era tão diferente daquele representado pelas alas mais nacionalistas e ideológicas da música brasileira. A questão é que a forma de criticar a realidade política e cultural brasileira era diferente. É neste sentido, e também através do uso de elementos estéticos diferenciados, de temas inéditos, da mistura de estilos, que o tropicalismo deixava mais à mostra a preocupação com forma da música do que com o que a música se referia. Podemos, portanto, afirmar que o tropicalismo representou este momento de reivindicação de autonomia do campo de produção. Não é à toa que um dos grupos que mais apoiou o tropicalismo foi o dos artistas concretos, que basicamente primavam pela forma em detrimento do conteúdo.

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Além disso, podemos concluir que a autonomia do campo de produção erudita vai se minimizando a partir do momento que se deixa atingir pelos princípios externos. É o que acontece no Brasil depois da década de 60, com desenvolvimento cada vez mais forte de uma indústria cultural que, nos países desenvolvidos já tinha ocorrido nas décadas anteriores. É neste sentido que podemos comparar o contexto do final do século XIX, na Europa, e nos anos 60 no Brasil. Com o desenvolvimento da indústria fonográfica e do alcance dos meios de comunicação de massa, os trabalhos do grupo baiano foram cada vez mais se adequando aos princípios desta indústria, esvaziando, assim, o conteúdo estético revolucionário do movimento. Além, é claro da situação política do Brasil. A explosão tropicalista praticamente durou apenas 2 anos: do III Festival de Música Brasileira da Record, em 1967, até o AI-5, em 1968, a prisão de Caetano Veloso e Gilberto Gil e depois o exílio dos dois músicos em 1969.

Com o passar do tempo e a chegada da liberdade de expressão total ao esperada, alguns desses autores deixaram a vida artística, e aqueles que permaneceram na ativa e com sucesso contínuo foram dedicando-se mais a carreiras individuais. Toda aquela preocupação com a problemática nacional e com a movimentação da cultura musical no país desaparece, dando lugar a carreiras do tipo pop star, repletas de glamour e tietagem (MEDAGLIA, disponível em http://tomze.com.br – acesso em 22/04/2009).

Percebe-se, portanto, que o campo de produção erudita dentro da música popular brasileira vai perdendo aos poucos sua autonomia, deixando cada vez mais se atingir por princípios externos, sendo cada vez mais absorvido pelo campo de produção da indústria

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cultural. Essa é a nossa hipótese para o declínio cada vez maior da aparição de Tom Zé na

mídia impressa especializada. Isso porque, dentre os integrantes do tropicalismo, Tom Zé é o músico que continuou mais fiel aos preceitos criativos estéticos revolucionários do início do movimento, sendo, portanto, cada vez mais membro de um campo artístico que se via em processo de esgotamento. O campo de produção erudita, que já é originalmente fechado por natureza se viu cada vez mais restrito, com seus membros, produtores, agentes, cada vez mais ligados à indústria cultural, um campo onde age a lei da concorrência para a conquista do maior mercado possível, diferentemente do campo erudito, que obedece à lei fundamental da concorrência pelo reconhecimento propriamente cultural concedido pelo grupo de pares.

Podemos perceber como as características do trabalho do músico desviam daquelas buscadas pelo campo de produção da indústria cultural, justamente por estarem vinculadas a uma tradição do campo de produção erudito, que produz para os pares de produtores concorrentes que detêm um código específico de leitura e compreensão da obra.

Não agradando à indústria e cada vez mais vinculado a um certo elitismo do campo de produção erudita, Tom Zé vai deixando aos poucos, como vimos anteriormente, tanto de fazer shows de grande visibilidade quanto de aparecer na grande mídia. Grava seu último disco de forma experimental em 1984. Isso até 1990, quando o artista volta à cena

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novamente.

Trocas simbólicas no ambiente globalizadoPorém, podemos compreender essa relação não apenas como relação de

dominação, dependência ou violência, mas a intensificação de um processo que teve início a partir da segunda metade do século passado e que foi percebida, valorizada e utilizada pelo grupo tropicalista baiano: a globalização econômica e a mundialização da cultura.

Segundo Ortiz, a construção da idéia de nação está intimamente ligada à idéia de modernidade e à Revolução Industrial. Até o desenvolvimento do capitalismo, tinha-se a idéia de Estado, de um Estado centralizador, mas a idéia de Estado-nação está vinculada a uma unificação lingüística, escolar, comunicativa, ou seja, simbólica. A integração se dá através de dimensões políticas econômica e culturais, e não apenas com a violência física, a conquista e delimitação de território e a força de uma burocracia real.

Se nação e modernidade estão intimamente ligados, pode-se considerar que nos países centrais, ou desenvolvidos, esse processo de deu primeiro e de forma mais independente. É o caso dos Estados Unidos, França, Grã-Bretanha etc. Nos países periféricos já não se pode fazer essa correlação mediata mesmo porque o desenvolvimento capitalista foi completamente diferente e posterior. É neste sentido que Ortiz fala que “no ‘Terceiro Mundo’ a nação é uma utopia, uma busca situada no futuro (...) Por isso, nossos

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modernistas diziam: ‘para sermos modernos é preciso sermos nacionais’” (ORTIZ, 1999, p.143-144). E é por isso que a questão com o nacional e com a identidade brasileira são preocupações constantes das produções artísticas a partir década de 20. Daí analisamos a divisão que se deu na música popular brasileira dos anos 60 entre uma ala nacionalista e outra ligada à contracultura.

Porém, com o passar da história, com o avanço do capitalismo, o aumento da produção, a busca de novos mercados e a conseqüente globalização da economia, este mesmo capitalismo necessita de novas bases territoriais para se desenvolver e cria o que Ortiz denomina de “modernidade-mundo”. A unificação simbólica necessária para a constituição das nações do período moderno amplia-se a nível global no contexto desta “modernidade-mundo”. A noção de “espaço” altera-se profundamente. A modernidade, no início nacional, propicia a circulação dos indivíduos entre os espaços que antes estavam separados, segmentados. Já a “modernidade-mundo” radicaliza este movimento de desterritorialização, rompendo a unidade nacional. Podemos visualizar bem essa questão se compararmos as nações aos indivíduos. No momento da modernidade ligada à idéia de nacional, o camponês, que passa a ter direito à freqüentar a escola e a votar, está ocupando um espaço, um território, que antes não era seu. No contexto da modernidade-mundo temos a circulação cultural em escala global, e o uso de códigos e símbolos fora do seu espaço, do se território original, daí a idéia de desterritorialização.

O tropicalismo foi um dos movimentos que percebeu essa mudança de contexto,

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nos anos 60. É por isso que a idéia de violência simbólica ou de dependência cultural na relação entre um país periférico e um central, a partir do caso do músico Tom Zé, não explicita totalmente a questão. Na verdade, o que ocorre é uma relação circular ou, na verdade, um desenvolvimento de um processo que se inicia naquele período de surgimento do movimento tropicalista. Já vimos que os músicos se valeram de elementos culturais dos países desenvolvidos, como a arte pop e a música erudita contemporânea, em suas obras realizando fusões que, além de serem inovadoras esteticamente, posicionavam o Brasil diante de sua realidade história local e mundial.

Naquele período, o Brasil vivia o contexto de uma modernidade centrada na constituição de uma nação, daí a incompreensão de uma parcela do público e da crítica com relação ao tropicalismo. Porém, 30 anos depois, com o desenvolvimento do capitalismo e a emersão de uma “modernidade-mundo”, o trabalho tropicalista se torna atual. Tom Zé foi o mais radical do movimento, ou o mais tropicalista dentre os tropicalistas, seguindo na linha de experimentação iniciada no fim dos anos 60. Com a intensificação da circulação dos bens simbólicos, sua música acaba realizando o caminho inverso, indo fazer sucesso em outro território e acaba influenciando artistas de países como os Estados Unidos.

É neste sentido que Ortiz rejeita a visão de crise das culturas nacionais a partir de uma ameaça externa, mas compreende o atual estado de coisas como o desenvolvimento de um processo histórico específico:

A globalização das sociedades e a mundialização da cultura fazem parte

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de um processo que atravessa as sociedades nacionais. Ela corresponde portanto á formação de um outro tipo de singularidade social (a “sociedade global”). A crise da sociedade nacional não decorre, pois, de uma “falha” no processo de sua construção (por exemplo a ganância das oligarquias latino-americanas ou o desvirtuamento de elites norte-americanas que buscariam no mercado mundial o sentido de suas ações). Ela é intrínseca ao modo como a modernidade- mundo se desenvolveu (ORTIZ, 1999, p.146).

Fazendo, novamente, a transposição do local para o global, podemos perceber que assim como ao longo do processo de formação da nação brasileira foram-se quebrando as rígidas divisões entre o popular e o erudito, assim também, no atual momento do desenvolvimento do período moderno, com a mundialização da cultura, fundem-se as barreiras culturais entre as nações hegemônicas e as da periferia.

Essas fusões são outra característica deste contexto. É o que o antropólogo argentino Néstor García Canclini chama de “culturas híbridas”. Segundo ele, há uma visão maniqueísta nos processos constitutivos da modernidade, que iguala o moderno ao culto e ao hegemônico e os opõe, respectivamente, ao tradicional, ao popular e ao subalterno.

Os modernizadores extraem dessa oposição a moral de que seu interesse pelos avanços, pelas promessas da história, justifica sua posição hegemônica, enquanto o atraso das classes populares as condena à subalternidade. Se a cultura popular se moderniza, como de fato ocorre, isso é para os grupos hegemônicos uma confirmação de seu tradicionalismo não tem saída; para os defensores das causas populares torna-se outra evidência da forma como a dominação os impede de ser eles mesmos (CANCLINI, 2000, p.206).

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O que o desenvolvimento do sistema capitalista e a intensificação do processo de modernização e de mundialização da cultura provocam é justamente a quebra destes estamentos, destas coleções. Ao utilizar criativamente a música popular tradicional nordestina, as cantigas de roda, com enceradeiras e música dodecafônica, Tom Zé se insere neste novo tipo de consciência e de visão do universo dos bens simbólicos. Faz isso desde os anos 60, mas só consegue o real reconhecimento quando o contexto torna mais nítido essas características da pós-modernidade, ou do contexto da “modernidade-mundo” para usar o termo de Ortiz.

Uma manchete de uma matéria sobre Tom Zé demonstra bem esse momento: “Tom Zé em fase world music” (O Estado de S. Paulo, 18/04/1991). O próprio termo world music não consegue significar um estilo definido. É um termo norte-americano para quase tudo aquilo que é estranho à sua cultura. Há aí uma certa relação de menosprezo com as manifestações culturais dos demais países, principalmente os periféricos em relação aos Estados Unidos, mas, ao mesmo tempo que iguala – ou até diminui – divulga, valoriza, consagra. A música de Tom Zé volta a ser ouvida a partir justamente de um processo de hibridização cultural internacional que se relaciona com sua própria arte, também híbrida,

Tom Zé fala de tradução intersemiótica e explica a Tropicália na razão direta da existência da ponte aérea São Paulo-Rio: a visão do alto que permitiu enquadrar na mesma imagem a favela Ordem e Progresso e as mansões do Morumbi. E, conseqüentemente, usar esse imenso plano geral para unir Beatles e Vicente Celestino (O Estado de S. Paulo, 1991).

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A mundialização da cultura, iniciada com o processo de globalização da economia, intensifica essas trocas e o consequente hibridismo cultural que daí se forma. Isto nada mais é do que um processo iniciado na década de 60 e que os músicos tropicalistas perceberam e valorizaram. É como se o trabalho de Tom Zé estivesse, a partir do final da década de 90, num campo mais propício sociologicamente para ser apreciado justamente porque é quase uma metáfora deste mesmo campo. Uma metáfora da própria capacidade humana de se comunicar, de interagir, de trocar, de produzir cultura.

A dominação econômica de países mais desenvolvidos e da própria indústria cultural – e a mídia está aí incluída – impõe regras que facilitam a exclusão de muitos artistas. Porém, não se deve esquecer que o contexto desta indústria e do mercado de bens simbólicos facilita interações importantes no âmbito do desenvolvimento cultural dos indivíduos, das comunidades e dos países. Um jogo de forças que não é mais tão explícito como antes, e que expõe brechas tanto para as resignificações de produtos estrangeiros quanto para a valorização do próprio território simbólico de origem do produtor.

Bibliografia Consultada

BOURDIEU, Pierre. A economia das trocas simbólicas. São Paulo: Perspectiva, 2001.

BOURDIEU, Pierre. Razões Práticas: sobre a teoria da ação. Oeiras: Celta, 2001.

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CANCLINI, Nestor García. Culturas Híbridas. São Paulo: Edusp: 2000.

MEDAGLIA, Júlio. Caminhos da Tropicália, Disponível em: http://www.tomze.com.br/art81.htm. Acesso em: 22/ 04/2009.

ORTIZ, Renato. Um outro território – ensaios sobre a mundialização. São Paulo: Olho D´Água, 1999.

TOM ZÉ. Tropicalista lenta luta. São Paulo: Publifolha, 2003.

DEL RIOS, Jéferson. Tom Zé e Chico vencem o Festival. Folha de S. Paulo, 10/12/1968.

JOE, Jimie. Tom Zé em fase world music. O Estado de S. Paulo, 18/04/1991.

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The Beatles Setting the Agenda: Considerações Sobre a Cobertura Jornalística daBeatlemania na Inglaterra1

Bruna do Amaral PAULIN2

A Hipótese de Agenda-SettingSurgida como resultado de pesquisas durante os anos 1970, a hipótese de agenda

setting é a representação de uma insatisfação em relação às teorias de comunicação mais utilizadas em estudos da época. Com o problema de serem sistemas fechados e excludentes, as teorias criadas e utilizadas entre as décadas de 1920 e 1960 prejudicavam os resultados finais, já que não conseguiam englobar todos os pontos de vista das amostras escolhidas.

Formulada inicialmente pelos norte-americanos Maxwell E. McCombs e Donald L. Shaw, a hipótese de agenda setting, nasce parte integrante do que, segundo Antonio Hohlfeldt, “hoje se costuma denominar de communication research” (2001, p. 188),

(...) através de diferentes pesquisadores que, não apenas se propunham a atuar em equipe, quanto buscavam o cruzamento das diferentes teorias e, muito especialmente, de múltiplas disciplinas, a fim de compreender o mais amplamente possível a abrangência do processo comunicacional (HOHLFELDT, 2001, p.188)

1 Texto-base originalmente apresentado no Intercom Sul 2009, realizado na Furb, Blumenau (SC).2 Mestranda do Programa de Pós-Graduação em Comunicação Social da PUCRS.

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O que podemos chamar de “vantagem” da hipótese de agenda setting, em relação a estudos anteriores, é que, diferente de uma teoria, um paradigma hermético, a hipótese é um processo aberto, imune a erros, exatamente o oposto de uma teoria:

Assim, a uma hipótese não se pode jamais agregar um adjetivo que caracterize uma falha: uma hipótese é sempre uma experiência, um caminho a ser comprovado e que, se eventualmente não der certo naquela situação específica, não invalida necessariamente a perspectiva teórica. Pelo contrário, levanta, automaticamente, o pressuposto alternativo de que uma outra variante, não presumida, cruzou pela hipótese empírica, fazendo com que, na experiência concretizada, ela não se confirmasse (HOHLFELDT, 2001, p. 189).

O agendamento trata da influência dos meios de comunicação em pautar as conversas de seus leitores e espectadores, através de um fluxo contínuo de informação, com efeitos a longo prazo. Felipe Pena afirma: “a mídia nos diz sobre o que falar e pauta nossos relacionamentos, sendo a principal ligação entre os acontecimentos do mundo e as imagens desses acontecimentos em nossa mente” (2005, p. 142).Porém, o autor defende que manipulação não é a palavra correta para o procedimento que ocorre nessa hipótese:

A hipótese do agenda setting não defende que a imprensa pretende persuadir. A influência da mídia nas conversas dos cidadãos advém da dinâmica organizacional das empresas de comunicação, com sua cultura própria e critérios de noticiabilidade [...]. Nas palavras de Shaw, citado por Wolf, “as pessoas têm tendência para incluir ou excluir de seus próprios conhecimentos aquilo que os mass media incluem ou excluem do seu próprio conteúdo”. É

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disso que trata o agendamento (PENA, 2005, p. 144).

O objetivo maior dessa hipótese é verificar como, após longos períodos e um bombardeio diário das mais variadas informações, os veículos conseguem influenciar pensamentos e conversas de seu público, “embora não sejam capazes de impor o quê pensar em relação a um determinado tema, como desejava a teoria hipodérmica”3. Sem perceber, o público inclui a pauta agendada pela mídia em suas preocupações, fato que provavelmente não aconteceria espontaneamente, dependendo do assunto em si. E assim, “a agenda da mídia de fato passa a se constituir também na agenda individual e mesmo na agenda social” (HOHLFELDT, 2001, p. 191).

McCombs afirma que esses eventos incluídos na agenda pública são absorvidos graças ao provável engrandecimento que a notícia dá ao fato, construindo um pseudoambiente, onde essas notícias são expostas ao público. Essa não é a realidade retratada, mas sim, uma versão construída pela imprensa e veiculada aos seus leitores/espectadores.

As notícias diárias nos alertam sobre os mais recentes eventos e mudanças em um ambiente maior além de nossa experiência imediata. Porém jornais e noticiários de televisão, até mesmo as páginas de um tablóide editado

3 A teoria hipodérmica, também conhecida como teoria da bala mágica, surge na década de 1920 defendendo o poder absoluto da mídia sobre o público receptor, onde as mensagens quando enviadas atingiam a todos de maneira igual, com a mesma força de influência. O receptor era “concebido como vítima indefesa de toda e qualquer mensagem emitida por alguma fonte. Esta teoria considerava o conceito de massa informe e indefesa, oriunda sobretudo das experiências da 1ª Grande Guerra e dos sistemas políticos autoritários então vigentes” (HOHLFELDT, 2005, p.222).

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rigorosamente ou um site da internet, fazem muito mais do que assimilar a existência de grandes acontecimentos e questões (MCCOMBS, 2004, p. 1, tradução nossa) .

Esse pseudo-ambiente é construído pela mídia através do Enquadramento – Framing de acordo com McCombs, um processo de raízes sociológicas e psicológicas. Dietram Scheufele e David Tewsbury definem o termo da seguinte maneira:

[Visto] como uma macroconstrução, o termo framing refere-se aos modos de apresentação que os jornalistas e outros comunicadores usam para apresentar a informação de uma maneira que remetesse à já existentes esquemas subjacentes entre sua audiência (Shoemaker & Reese, 1996). [...] De fato, enquadrar, para eles é uma ferramenta necessária para reduzir a complexidade de um tema, dadas as limitações de seus respectivos suportes relacionados com a notícia (Gans, 1979). O framing, em outras palavras, torna-se uma ferramenta inestimável para a veiculação de questões relativamente complexas, como a investigação sobre células estaminais, de maneira eficiente e em esquemas cognitivos. Como uma microconstrução, descreve a forma como as pessoas utilizam a elaboração e apresentação de características que dizem respeito a questões que formam impressões (SCHEUFELE; TEWSBURY, 2007, p. 12)64.

4 As a macroconstruct, the term “framing” refers to modes of presentation that journalists and other communica-tors use to present information in a way that resonates with existing underlying schemas among their audience (Shoemaker & Reese, 1996)”. […] In fact, framing, for them, is a necessary tool to reduce the complexity of an issue, given the constraints of their respective media related to news holes and airtime (Gans, 1979). Frames, in other words, become invaluable tools for presenting relatively complex issues, such as stem cell research, efficiently and in cognitive schemas. As a microconstruct, framing describes how people use information and presentation features regarding issues as they form impressions.

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O enquadramento apresenta-se como uma ferramenta essencial na construção deimagens e personagens através da imprensa. É a partir da moldura do jornalista que se constrói uma história que o público absorverá e construirá para si a imagem dos personagens citados. Os diferentes focos apresentados e publicados nunca são completos e nem conseguem englobar todos os aspectos de uma pessoa; porém, não deve ser encarado como um procedimento negativo ou positivo, mas sim, como parcial e específico, tendo diferentes funções, de acordo com o contexto do universo apresentado pela reportagem.

McCombs ressalta que a repetição e o destaque (ou saliência) dados à informação são uma poderosa receita para transformar a ênfase dos meios de comunicação de massa em questões importantes para as audiências. De acordo com o autor, “a calibração de tempo envolvido na questão da transferência de saliência de agenda dos meios de comunicação para a agenda do público em geral dura o intervalo de quatro a oito semanas” (MCCOMBS, 2004, p. 44). A saliência está relacionada diretamente com os seguintes fatores: tempo de repetição, duração ou tamanho da matéria e destaque entre as outras notícias.

O ponto mais importante no agendamento seria, então, como o receptor absorve e assimila as mensagens que recebe. Hohlfeldt afirma que “consciente ou inconscientemente, guardamos de maneira imperceptível em nossa memória uma série de informações de que, repentinamente, lançamos mão” (2005, p. 190).

Já Pena destaca que “o que vale é o significado daquilo a que as pessoas estão

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expostas e, também, o impacto acumulativo dessa exposição, cuja freqüência continuada e cotidiana influencia na cognição”, e que essa ação da mídia de espalhar visões de acontecimentos é a responsável por transformar a realidade que “forma a cultura e age sobre ela” (2005, p. 45).

Tversky e Kahneman relatam como essa influência se concretiza na audiência:

[A agenda–setting] é baseada em uma memória formada por um repertório de modelos de processamento de informações. Esses modelos presumem que as pessoas constroem suas atitudes baseadas nas considerações mais salientes (ou seja, mais acessível) quando elas tomam decisões (Hastie & Park, 1986). Em outras palavras, julgamentos e definições de atitudes são diretamente correlacionadas com “a facilidade em instâncias ou associações que podem ser trazidas à mente” (TVERSKY; KAHNEMAN apud SCHEUFEKE; TEWSBURY 2007, p. 11)75.

O que poderia ser encarado como uma influência negativa, por algumas visões, pode ser uma excelente maneira de interação social. Não somente durante eleições, por exemplo, os eleitores, através desse estímulo dos veículos, acabam por buscar mais dados sobre os candidatos e suas propostas, auxiliando na definição do voto e conseqüentemente influenciando o resultado da votação, como o agendamento pode possibilitar uma maior integração social, gerando discussões nos pequenos núcleos comunitários, como

5 Based on memory-based models of information processing. These models assume that people form attitudes based on the considerations that are most salient (i.e., most accessible) when they make decisions (Hastie&Park, 1986). In other words, judgments and attitude formation are directly correlated with “the ease in which instances or associations could be brought to mind” (Tversky & Kahneman, 1973, p. 208).

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familiares, vizinhos, entre colegas de trabalho, ampliando o efeito da influência para um positivo resultado de aproximação dos indivíduos.

Cada mídia desenvolve um tipo diferenciado de influência, graças às especificidades que apresenta, mas o que fica bastante claro é que, graças a este envolvimento da mídia, e seu posterior agendamento, amplia-se também a comunicação fora do circuito estrito da mídia, isto é, as pessoas aumentam, no conjunto de suas relações sociais, as mais variadas, do círculo familiar aos amigos do clube ou aos companheiros de trabalho ou escola, a troca de opiniões e informações, dinamizando o processo informacional comunicacional (HOHLFELDT, 2001, p. 199-200).

O que se pode detectar é que, diferentemente da teoria hipodérmica, a hipótese de agendamento não coloca a mídia como vilã manipuladora, mas revela a integração e a interação de diferentes áreas, que alimentam e são alimentadas, influenciam e absorvem conceitos distribuídos, tendo mais resultados positivos nessas trocas. Teoricamente, segundo o autor,

conclui-se, assim, que a influência do agendamento por parte da mídia depende, efetivamente, do grau de exposição a que o receptor esteja exposto, mas, mais que isso, do tipo de mídia, do grau de relevância e interesse que este receptor venha a emprestar ao tema, a saliência que ele lhe reconhecer, sua necessidade de orientação ou sua falta de informação, ou ainda, seu grau de incerteza, além dos diferentes níveis de comunicação interpessoal que desenvolver (HOHLFELDT, 2005, p.200).

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O Surgimento da Beatlemania“Os Beatles foram os primeiros a fazer com que os jovens ingleses se sentissem

confiantes” (STARK, 2005, p. 138), declarou Richard Lester, cineasta que dirigiu A Hard day’s night e Help!. A mudança social no país era latente, já estava acontecendo gradativamente desde os anos 1950, mas foi durante os primeiros anos da década de 1960 que as transformações alcançaram maior impacto. Diversos fatores foram influência dessa revolução, e um dos acontecimentos mais marcantes foi o aumento de quase 10 milhões de discos vendidos em um ano, graças ao grupo de Liverpool.

Os Beatles tornaram-se os primeiros representantes de nova geração que emergia na Inglaterra, que agora, oficialmente, era intocável pela guerra, diferente de seus ancestrais. “Nós finalmente tínhamos uma geração de homens que não seriam mortos”, disse Virginia Ironside, que tornou-se uma colunista de Londres. (STARK, 2005, p. 139 – tradução nossa).86

A banda não era a principal responsável por essas mudanças no país, mas seus integrantes estavam disponíveis e pareciam ser os melhores personagens para darem voz a esses acontecimentos.

Depois do lançamento do primeiro LP, a mudança para a capital era imprescindível, já que os estúdios de gravação, emissoras de TV e rádio, grandes clubs, teatros, as novidades, uma revolução social, tudo acontecia em Londres. Era a capital que concentrava os meios 6 The Beatles would become the first representatives of a fresh new generation to emerge in a Britan that now, officially, would be untouched by war, unlike its predecessors. “We finally had a generation of men who wouldn’t be killed”, said Virginia Ironside, who became a young London columnist.

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de comunicação mais representativos e de maior alcance de audiência do país, veículos esses que, por sua abrangência e relevância, pautavam ingleses de todas as regiões e níveis sociais e veículos de menor audiência ou de distribuição regional, afirmação que pode ser reforçada através das idéias de McCombs (2004), que destaca que veículos de maior cobertura, como os jornais The New York Times, nos Estados Unidos ou The Times, na Inglaterra, influenciam com extrema eficiência não só seus leitores, como jornais de menor porte e programas de televisão e rádio.

Durante o ano de 1963, foram quatro turnês pela Grã-Bretanha e fora do país, apresentações na Suécia e Irlanda. Essas turnês ocorriam com diversas bandas, que acompanhavam a apresentação de um artista já consolidado. Os Beatles, por exemplo, começaram uma dessas viagens para se apresentar com a troupe que seguia Roy Orbinson, mas a estrela do show mudou no meio da excursão, e a quantidade de meninas histéricas gritando pelos Beatles cresceu enormemente.

A devoção crescente dos fãs foi um fenômeno popular. Sem um considerável estímulo da mídia inglesa, no entanto, poderia ter tomado uma forma muito diferente. “Nas suas características, coletivas e individuais, os Beatles eram perfeitos ‘McLuhanistas”, escreveu Ian MacDonald. Isso significa, em parte, que eles tinham a distinta vantagem de serem os favoritos dos três meios de comunicação que dominavam a nação (STARK, 2005, p. 143 – tradução nossa)7.

7 The growing devotion of the fans was a grassroots phenomenon. Without a considerable boost from England’s media, however, it might well have taken a very different form. “In their characters, collective and individual, the Beatles were perfect McLuhanites”, wrote Ian MacDonald. That mean, in part, that they had the distinct advan-tage on being favorites of all three major media then dominating their nation.

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A declaração de Stark reforça a explicação de Tamir Sheafer de como um tema se torna agenda de extrema importância para o público:

Os meios de comunicação influenciam a opinião pública enfatizando determinadas questões e abrindo mão de outras. O montante da atenção ou saliência despendida por todos os veículos a determinados temas aumentam a sua acessibilidade e, conseqüentemente, influenciam o grau de preocupação pública em relação a estas questões (DEARING; ROGERS; MCCOMBS et MCCOMBS; SHAW apud SHEAFER, 2007, p. 22 – tradução nossa)8.

Goldsmith (2004, p. 85-86) retrata o início da Beatlemania da seguinte maneira: “repentinamente, eles estavam em todos os lugares – nas ondas de rádio, nos jornais, revistas, e ainda muito na estrada, tocando para jovens platéias que, mais e mais demonstravam por que a palavra fã deriva de fanático”9.

Além disso, as meninas tornaram-se cada vez mais audaciosas: não mediam esforços para encontrá-los, inventando planos que as fizessem entrar no quarto de hotel com sucesso e passar uma noite com os rapazes, por exemplo. Além de criativas, eram extremamente persistentes, como declarou George Harrison a Goldsmith: “Você pode 8 […] the media influence public opinion by emphasizing certain issues over others. The amount of media attention, or the media salience, devoted to certain issues increases their accessibility and consequently influences the degree of public concern for theses issues. 9 Suddenly they seemed to be everywhere – on the airwaves, in the newspapers and magazines, and still very much on the road, performing for young audiences who, more and more, demon-strated just why the word fan derives from fanatic.

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colocá-las para fora do quarto, escorraçá-las, e mais tarde elas voltam”. O risco de serem presas, a chance de se machucarem, nada era empecilho para elas.

Um dos argumentos para esse desejo explosivo e desesperador das fãs está relacionado à mensagem trazida aos admiradores pelas canções. As palavras proferidas pelos Beatles representavam, de acordo com Goldsmith, o que todos os que faziam parte da Sensitive New Age Guy10 queriam dizer:

A canção [She Loves You] é tão evocativa na essência do que podemos chamar de primeiros momentos da Beatlemania que os Beatles usaram mais de uma vez essa proposta em canções feitas em seguida. É um sincero conselho de um homem para outro, enquanto ele tenta arrumar o que pode se tornar o fim de um relacionamento entre o amigo e a namorada do amigo. O primeiro homem reconhece o medo, a culpa, e o irredutível orgulho que causou o desentendimento, mas traz boas notícias: apesar de tudo, ela ama você, e (conseqüentemente, você é um babaca estúpido) você sabe que deve ser muito orgulhoso disso. Então, deixe de ser um babaca e faça acontecer! (GOLDSMITH, 2004, p. 92 – tradução nossa)11.

O posicionamento de um jovem rapaz, no início dos anos 1960, como um homem 10 “Era do cara sensível”, que assume seus sentimentos, sofre por amor, um perfil completamente diferente do caminhoneiro machão de Elvis, por exemplo. Obviamente essa nova postura masculina enlouqueceu as garo-tas.11 [...] The song [She Loves You] that so evokes the essence of early Beatlemania that the Beatles twice quoted it in later songs. It's a sincere piece of advice from one man to another as he tries to patch up what could become a relationship-ending quarrel between his friend and the friend's girlfriend. The first man acknowledges the fear, the guilt, and the stubborn pride that the rift has wrought but brings good news: despite everything, she loves you, and (by implication, you stupid jerk), you know you should be very glad about that. So stop being a jerk and make up!

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sensível, que chora por amor e que sabe que, para ser feliz, deve deixar o orgulho de lado é uma raridade, inclusive se pensarmos que uma das grandes influências do grupo é Elvis Presley, o eterno machão, bruto, rebelde, do tipo que tem várias mulheres, nunca sofreu por amor e que a única mulher que assume amar é sua mãe. A postura de que aceitar os sentimentos é uma atitude essencial, é uma afirmação concreta da banda, que crê na insubstituível importância do amor (GOLDSCHIMTH, 2004). Essa delicadeza e honestidade de sentimentos, tão mais próximas de um perfil feminino, certamente pode ser considerada um fator de grande influência da Beatlemania.

No dia 23 de agosto, data de lançamento do single She Loves You, mais de 500 mil cópias já haviam sido pré-vendidas. Esse compacto foi disco de ouro, o que significa que um milhão de cópias foram vendidas no dia 11 de outubro. She Loves you, em poucas semanas, tornou-se o single mais comercializado de toda história da Inglaterra.

Um dia definitivo para o surgimento do fenômeno foi 13 de outubro, quando o conjunto alcançou outro patamar de reconhecimento: apresentou-se no programa Sunday Night at London Palladium, transmitido em cadeia nacional aos domingos. Segundo Bob Spitz , biógrafo do grupo, “era quase como uma instituição: praticamente cada aparelho do país era sintonizado a todas as noites de domingo no palco das estrelas inglesas e das visitas americanas [...] Todas as grandes estrelas eventualmente acabavam aparecendo no programa” (2005, p. 426).

Novamente, encontramos a questão de que veículos influentes, com grandes

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índices de audiência e reconhecimento de sua credibilidade, pautam a agenda pública com extrema força e facilidade e são exemplo e fonte para outros veículos. Ainda analisando a citação de Spitz, podemos salientar mais uma característica de agendamento, a da força de assuntos relacionados a entretenimento, como explica McCombs:

A mídia de entretenimento pauta os veículos diários. Uma extensa análise de artigos sobre o Holocausto nos principais jornais canadenses durante quinze anos, de 1982 a 1996, constatou que o filme A lista de Schindler tinha uma influência – sobre o número de artigos e a duração do impacto ao longo do tempo – mais poderosa do que as notícias relacionadas ao Holocausto durante esses anos (MCCOMBS, 2004, p. 117 – tradução nossa)12.

O show não teve nada de espetacular, mas ver seus nomes no letreiro do Palladium e assistir à confusão do lado de fora do teatro, isso sim, foi marcante. O movimento na entrada do prédio era muito maior do que atrasados tentando adquirir ingressos e curiosos na esperança de enxergar o grupo entrando ou na saída do show: era uma multidão, que interrompeu a rua de acesso ao prédio e as ruas próximas a ele, e a quantidade de policiais não era o suficiente para conter a multidão. Spitz narra a tentativa de fuga do grupo após a passagem de som, ao final da tarde, algumas horas antes do início do programa:

Neil [Aspinall] veio com um Austin Princess pela Argyll Street e esperava pelos

12 Entertainment media set the agenda of the newsmedia. Extensive examination of articles about the Holo-caust in major Canadian newspapers over a fifteen-year period, 1982 to 1996, found that the film Schindler's list had an influence - on the number of articles and the duration of the impact over time - that was more powerful than a number of Holocaust-related news events during those years.

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Beatles na esquina. Havia passado poucos minutos da cinco da tarde. A rua estava vazia, e pelo andar das coisas, eles estavam com uma boa chance de fugir discretamente. Havia muito espaço para passagem até a entrada do carro, ninguém à vista. “O que nós não estávamos contando”, disse Barrow [Tony Barrow, assistente de Brian Epstein], “é que haviam garotos de olho no carro”. No exato momento em que os Beatles saíram pelas portas principais do teatro, fãs – “hordas de garotos” – convergiam de todos os lados e “tudo aconteceu de uma vez”. Uma incrível multidão veio, e não qualquer multidão, mas um estrondo ensurdecedor de exultação, misturado com surpresa, êxtase, temor e com desenfreio. Era um pandemônio na calçada. Empurrando estava a massa se movendo em bloco, atrás do ágil e galopante quarteto. [...] A cena na rua pegou a imprensa de surpresa, mas em dez minutos todas as redações de Londres entraram em alerta, prontas para cobrir uma história que tinha vida própria (SPITZ, 2005, p. 427 – tradução nossa)13.

No dia seguinte, a manchete do jornal Daily Herald de Londres era “Assédio dos Beatles”14 e duas matérias foram destaque: uma falava da confusão na rua, das garotas que gritavam e se jogavam contra a polícia, e outra que comentava o sucesso do show dentro do teatro: “Pela Inglaterra, 15 milhões de pessoas, a maior platéia da banda até então, 13 Neil pulled na Austin Princess around to Argyll Street and waited for the Beatles by the curb. It was a few mi-nutes after five o’clock. The street lay in dusky shadows, and from the look of things, they were in good shape to make a clean getaway. There was a clear path to the entrance, no one in sight . “What we hadn’t counted on”, says Barrow, “were the kids who’d been keeping their eyes on the car.” At exactly the moment the Beatles broke throu-gh the doors, fans – “hordes of kids” – converged from everywhere, and “it all happened at once.” An incredible roar went up, and not merely any roar but an ear-splitting blast of exultation, mixed with surprise, rapture, awe, and abandon. It was pandemonium on the sidewalk. Pushing and shoving broke out as the crowd moved en masse toward the agile, galloping quartet. The Beatles ran headlong through a gauntlet of grabby hands, diving for cover through the hastily opened car doors, as security guards moved quickly to hold back the crowd.14 “Siege of the Beatles”.

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ligou-se para compartilhar amor” (GOLDSMITH, 2004, p. 95).Quem batizou esse fenômeno como conhecemos, logo depois dos acontecimentos

daquela noite, foi o jornal Daily Mirror, que, na capa, manchetou: “Beatlemania!” (2004, p. 95). Na verdade, essa empolgação excessiva das fãs já fora assistida diversas vezes em Liverpool, algumas outras em Leeds, Blackpool ou Bournemouth, mas a quantidade de pessoas daquela noite de outubro, e com aquela intensidade de desespero, ainda não. Outro fator que influiu para essa manifestação favorável da imprensa foi a apresentação dos rapazes, sua enorme audiência e o que sua performance provocou nos expectadores.

O que Goldsmith (2004, p. 95) afirma, na verdade, é que o provincianismo dos editores de jornais londrinos era tanto, que eles acreditavam que para um fato estar ocorrendo de verdade, ele tinha que acontecer em Londres. Logo, esse atraso do nascimento do fato pela imprensa londrina foi somente porque ela só abriu seus olhos e ouvidos naquela noite, e o despertar que se deu através do público, fenômeno destacado por Hohlfeldt (2005), já que, em alguns casos, a opinião pública torna-se a fonte de agendamento dos veículos.

Spitz entrevistou o repórter Don Short, “que cobriu todo o espectro do show bussiness da época para o Mirror”, que garante que os Beatles eram exatamente o tipo de história que a imprensa estava esperando:

Até aquela época, eu rodava pelo Claridge’s ou pelo Savoy e entrevistava Sammy Davis Jr. em uma semana, Andy Williams na outra, mas os Beatles tinham todo o drama à sua volta – e eles eram sexy, era uma história muito

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sexy (SHORT apud SPITZ, 2005, p.428 – tradução nossa)15.

Os jornais britânicos haviam descoberto o sexo como uma pauta naquela primavera de 1963, com o caso do secretário de Estado da Guerra, John Profumo, flagrado tendo um caso extraconjugal com uma moça, chamada Christine Keeler. Na seqüência, a duquesa de Argyll fora pressionada pelo marido a pedir o divórcio. Esses dois casos foram responsáveis pelo aumento considerável na venda dos jornais naquela estação, e a necessidade de encontrar mais pautas sexies era urgente. Os Beatles vieram na hora certa: uma nova história, com drama, emoção, excitação e carregada de ousadia: era disso que a imprensa inglesa tanto necessitava e não encontrava. Um prato cheio para as publicações, uma divulgação gigantesca para o grupo e notícias e mais notícias para os fãs: tudo que pede um fenômeno.

Podemos relacionar esses acontecimentos ao procedimento de Framing, já que a busca da imprensa inglesa era de enquadrar as histórias que publicava através da temática sexy. A banda poderia ser divulgada através de matérias sobre suas composições, seu passado em Liverpool, sobre as influências artísticas e as prováveis influências provocadas em novas bandas que surgiam. Porém, o enfoque encontrado para noticiar o fenômeno foi o que provocava, de uma maneira quase animal, o público jovem (principalmente feminino): a sexualidade. A opção da imprensa em focar a notícia por um aspecto específico 15 Up until that time, I’d merely go around to Claridge’s or the Savoy and interview Sammy Davis Jr. one week, Andy Williams the next, but the Beatles had all the draam swirling around them – and they were sexy, a very sexy story.

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é uma das questões mais definitivas no agendamento de um tema.Outro fator de enorme influência para o aumento da popularização da banda

foi – dois dias depois da apresentação no Sunday Night – o convite da Rainha Mãe para que o grupo tocasse no “Show de Variedades Real” (Royal Variety Performance), no mês de novembro. Essa notícia fez com que não só a imprensa especializada em música e os tablóides dessem atenção ao grupo, mas que a imprensa de referência também os procurasse. De acordo com Spitz, o fato “jogou a Beatlemania para fora das pequenas salas de cinema e colocasse no centro de um grande palco, com a benção da Rainha” (2005, p. 429). Os tão prestigiados jornalistas da imprensa séria, aqueles com que a equipe de Brian tentara por meses a fio apenas uma conversa telefônica, eram os mais insistentes repórteres nos dias seguintes ao convite da Rainha.

Dessa maneira, tudo que os Beatles faziam virava notícia. Logo nenhum veículo perdia de publicar uma minúscula nota sobre qualquer fato relacionado a eles. A revista Melody Maker chegou a criar uma coluna semanal chamada “This Week’s Beatlemania”, que catalogava todos os incidentes e fatos estranhos relacionados à banda, como os seguintes, encontrados na obra de Spitz: “Garotas desmaiam e se machucam. Polícia não tem controle sobre as multidões. Fãs estão acampando na rua dias antes dos ingressos para o show serem postos à venda” (2005, p. 429). Spitz explica o que era de mais assustador desse feito:

Parecia não haver limite para as cenas selvagens. Os vandalismos durante

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os shows de Bill Haley sete anos antes eram basicamente trabalho dos teddy boys [denominação dada aos rockers nos EUA], que usavam a música como trilha sonora para suas intermináveis brigas. Mas os Beatles produziram o que aparentava ser um desmaio coletivo. Garotas de todas as classes foram niveladas pelos gritos, promessas de amor, soluços, puxões de cabelo e desmaios que acompanhavam cada show (SPITZ, 2005, p. 430 – tradução nossa)16.

No dia 24 de outubro, o grupo fez uma viagem à Suécia, o que aliviou a demanda da mídia e tranqüilizou temporariamente a histeria. Porém, na sua volta, no dia 31, milhares de fãs foram ao aeroporto receber o grupo aos berros e realimentar a loucura em torno do conjunto. Por coincidência, a comoção foi assistida por um jornalista da TV norte-americana, Ed Sullivan, que havia chegado à Inglaterra exatamente com o intuito de selecionar novos talentos. Abismado com o que estava acontecendo com o grupo, ele logo entrou em contato com Epstein, fazendo uma proposta de exclusividade nos EUA, onde o grupo só faria apresentações em seu programa na TV.

Porém, os Beatles recusavam a idéia de visitar a América antes de ser sucesso lá. Já sabendo das experiências anteriores de outros artistas ingleses, que chegavam aos Estados Unidos para fracassar, voltando sem nada, aceitar exclusividade com Ed Sullivan sem nem somente ter um compacto aceito pela gravadora para lançamento parecia aos

16 There seemed no limit to wild scenes. The riots during Bill Haley concerts seven years earlier were basically the handiwork of teddy boys, who used the music as a soundtrack for their ongoing punch-ups. But the Beatles had touched off what appered to be a mass swoon. Girls of all classes were caught up in the screaming, love pledging, sobbing, hair pulling, and fainting that accompanied each show.

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Beatles um suicídio. Brian Epstein, segundo Spitz, “tinha um instinto – um bom instinto – para o tempo certo. Não somente ele sentiu que era o momento certo, ele soube – ele parecia saber instintivamente – como sincronizar os momentos” (2005, p. 431 – tradução nossa)17. Enquanto a banda se apresentava na Suécia, ele fechou as negociações com a United Artists para um filme que a banda estrelasse. Com um filme distribuído e bem divulgado por um grande estúdio cinematográfico, as chances de sucesso na excursão americana eram maiores. E para o filme, eles teriam de compor uma trilha sonora.

O empresário do grupo tinha um arsenal para construir uma estrela: o contrato para o filme, propostas de merchandising, um potencial agendamento de apresentações na TV diretamente com Ed Sullivan, um extraordinário novo single, e o mais impressionante pacote de clipagem. Epstein embarcou para Nova York com todas as suas armas e alguns telefones importantes.

ConsideraçõesÉ possível encontrar diversas características e acontecimentos que enquadram o

fenômeno Beatlemania como um caso de agendamento. Desde o fato de ser um episódio relacionado à área do entretenimento, como afirma McCombs (2004), tem uma enorme influência a longo prazo nas pautas relacionadas; ou informações curiosas e grandiosas, como o número de pessoas presentes em um show, o volume de audiência ou até mesmo

17 […] had an instinct – a good instinct – for timing. Not only did he feel the moment was right, he knew – he seemed to know instinctively – how to synchronize it.

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a quantidade de discos vendidos pelo grupo podem representar fatores definidores deagenda-setting.A ferramenta utilizada pela imprensa para selecionar um ponto de vista, que

enquadra e salienta um foco específico, o Framing, é detectado na cobertura dos jornais, rádios e televisões ingleses, que construíram suas reportagens baseadas na temática sexual, tema que já havia pautado agendas anteriores tanto dos veículos quanto do público com sucesso. Apesar das diversas facetas que um fenômeno como esse pode oferecer, foi escolhido o enfoque de maior impacto e repercussão, o aspecto sexual.

Outro argumento que classifica a cobertura da Beatlemania na Inglaterra como um caso de agendamento é a importância da apresentação do grupo no Sunday Night – programa de enorme audiência e credibilidade, produzido e sediado na capital do país e transmitido para todo território inglês – veículo forte que imediatamente pauta as agendas de seu público e de outros veículos.

Porém, não é em todos os casos de agendamento que a fonte de influência surge dos veículos mais tradicionais e da produção jornalística carregada de credibilidade. No caso da Beatlemania, somente após o público tomar proporções de histeria extraordinárias e o assunto entrar na pauta política – o grupo ser convidado para participar do Show de Variedades Real, com “a benção da Rainha” – é que grandes jornais e emissoras de televisão e rádio inseriram o assunto em suas publicações e principalmente, jornais de referência também começaram a considerar o tema uma pauta possível em suas páginas.

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A análise definitiva desse estudo de caso necessita de um maior aprofundamentodessa pesquisa, onde deve-se considerar um levantamento de dados, teorias e

apreciações mais densas sobre o tema. Não se tem aqui, a intenção de realizar um estudo absoluto, mas de lançar ao debate e instigar novas pesquisas no assunto.

Bibliografia Consultada

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TRAQUINA, Nelson. Teorias do jornalismo. Volume 1: Porque as notícias são como são. Chapecó: Argos, 2002a.

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Midiatização de imagens: entre circulação e circularidade1

Ana Paula da ROSA

Midiatização : quando o campo ordena a sociedadeA sociedade se modificou com o surgimento dos meios de comunicação, não

apenas porque foi possível representar a realidade e aguardá-la em fotografias e textos impressos, mas através dos meios a comunicação passou a ditar as regras da vida em sociedade, gerando uma nova forma de vida, não mais focada na experiência, mas sim na vivência midiatizada. Desde que a Revolução Industrial ocorreu, muitas transformações se deram não apenas em termos de aparatos técnicos, mas em termos de comportamento, de acesso à informação e de organização, propriamente dita. Com a invenção da prensa de Gutemberg, o surgimento da fotografia , do cinema, do rádio e da televisão, os aparelhos (ou seriam dispositivos?) tecnológicos passaram a ser adotados no cotidiano das pessoas, criando novas formas de relação, seja entre os homens e os aparelhos, entre os aparelhos e os aparelhos e entre o sentido gerado pelos aparelhos. Explicando melhor, com o advento das “tecnologias” foi possível promover a comunicação “massiva” de modo que mudanças profundas ocorreram na maneira de se relacionar com o mundo existente. Os aparelhos passaram a mostrar e revelar um mundo, nem sempre o mundo acessível pelos olhos. Se antes dos aparelhos tecnológicos era possível saber apenas daquilo que estava próximo, 1 Trabalho originariamente apresentado ao Intercom Sul 2009, realizado na Furb, Blumenau (SC).

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com eles a informação alcançou ampla escala; se antes era possível discursar no praça, para um pequeno público, com os meios a discursividade migrou para um plano muito amplo e mais complexo.

Eliseo Veron (2001) argumenta que num primeiro momento os meios surgiram com fim “nobre”, ou seja, como meios a serviço da comunicação, como “funcionários” dela. “Una sociedad mediática es una sociedad donde los medios se instalan: se considera que estos representan sus mil facetas, constituyen así una clase de espejo” (VERON, 2001, p.14). Um espelho que reflete a sociedade industrializada e que passa a depender destes “aparatos técnicos” para se comunicar. A sociedade passa a ser representada nos meios e mais que isso, pelos meios. Isto quer dizer que o surgimento dos meios de comunicação ou do campo dos media traz consigo uma crise representacional, uma vez que a representação social passa a ser feita pelos meios que, por sua natureza técnica, passam a também produzir “leituras” deste ser ou objeto que representam. A velha discussão da fotografia de que é o aniquilamento do real versus a realidade fiel figurativizada. Neste sentido, Jacques Aumont (1997) defende que o real é “aniquilado no momento em que passa a ser mediado”, pois o procedimento adotado para efetuar a fotografia modifica a forma de percepção daquele referente ou do acontecimento em si. Veron (2001, p.15) argumenta que os meios não apenas são dispositivos de reprodução de um real que copiam de forma aproximada, mas são, sim, dispositivos de produção de sentido. “ Una sociedad em vias de mediatización es aquella donde el funcionamento de las instituciones, de las practicas, de

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los conflictos, de la cultura, comienza a estructurarse en relacion direta con la existencia de los medios”. Um exemplo disso são as próprias guerras, que mediatizadas, se transformam em guerras reais. Hitler usou da fotografia e da propaganda para difundir suas idéias e pregar o medo, Bush recorreu aos meios e a censura para filtrar a realidade da guerra, sendo que a própria guerra muitas vezes não passa de uma fachada midiática construída pelas e para as lógicas da mídia.

Desta forma convém explicitar que a sociedade mediatizada surge quando os meios passam a ser não meramente uma forma de intermediação, de ligação entre o vivido (real) e o representado, mas, sim, quando os meios passam a se tornar um agente comunicativo que gera e cria ações que repercutem na vida do cidadão, ocasionando de certa forma o que Ítalo Calvino (1998), em as “Seis propostas para o novo milênio”, temia, a substituição da experiência concreta pela experiência midiatizada. Sem apelar para as posições de Jean Baudrillard sobre a inexistência do real, é possível dizer que o mundo existe fora da mídia, entretanto a realidade passa a ter uma única fonte que é a mídia, pois sem a mediação os fatos propriamente ditos são esvaziados de sentido. Assim, a mídia não é mais uma transportadora, mas uma produtora de sentidos.

Portanto, os dispositivos midiáticos seriam não apenas uma revolução técnica, mas um suporte que propicia, gera e transmite sentidos, sentidos estes que fora dos meios talvez não seriam possíveis. Conforme Fausto Neto (2006) a midiatização é uma ação interna, crescente e generalizada, que constitui a formação da sociedade permeada por

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valores e protocolos focados na técnica. No entanto, a midiatização é algo maior do que instrumentos e funções, ela é resultado da própria prática da comunicação, uma vez que os meios, na concepção de Fausto Neto (2006), passam a operar não apenas como meios de representação da sociedade ou de campos sociais, mas a agir como “meios-pulsão”, onde se institui um novo tipo de real, um real que está ligado, diretamente, a produção de sentido, uma produção que se dá não na sociedade, simplesmente, mas através de meios “sócio-técnicos”.

Entre a midiatização e a sincronização: uma aproximação possívelA midiatização atravessa todas as práticas sociais que se utilizam da mídia para

atingir seus públicos e objetivos, assim sendo a midiatização nada mais é do que a força organizativa atribuída aos meios de comunicação que regulam e ordenam o que os demais campos sociais dizem e fazem. Harry Pross (1987), embora não se dedicasse ao estudo da midiatização, atribuí aos meios de comunicação a capacidade de sincronizar a vida e os tempos de vida. De certa forma é possível fazer uma aproximação do pensamento de Pross com as definições de midiatização. Através do discurso midiático e dos dispositivos empregados pela mídia, este campo social acaba por representar os demais, legitimando-os e se auto-legitimando, propiciando a sincronização. Isto é, o que a mídia diz é verdade, é importante e merece ser visto, percebido, pensado. A mídia, desta forma, através da habilidade comunicativa acaba por construir o próprio acontecimento atribuindo a ele

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sentido e valor social.Um exemplo disso é o que Antônio Fausto Neto (2006) apresenta no artigo

“Dispositivos de telecura e contratos de salvação”. Ao abordar as estratégias midiáticas empregadas pelo campo religioso, Fausto Neto mostra a articulação direta do campo midiático com o religioso em torno dos dispositivos de operações discursivas que geram uma nova forma de fazer religião. Se no passado a religião era conhecida por mobilizar multidões em torno de “messias”, “profetas da palavra Divina”, “pregadores”, hoje as multidões são mobilizadas por meio da televisão o que cria uma nova forma de “fazer a religião”. Uma religião que “prega” a palavra de Deus, mas que reforça esta palavra através dos recursos disponíveis na midiatização, criando uma religião muito mais simbólica do que qualquer outra coisa. Hoje, no novo sistema midiático-religioso, o fiel não é aquele que se ajoelha diante da cruz para orar, mas aquele que, ajoelhado, protagoniza um depoimento em que demonstra o valor de sua fé. Em função do dispositivo midiático, os receptores se tornam atores, ainda que coadjuvantes, de um fazer da religião baseado na necessidade de exteriorizar esta fé, seja abraçando a pessoa ao lado, seja enviando um e-mail ou se oferecendo para “agradecer”a Deus em uma missa-midiática-teatral. Esse novo “fazer religioso” afeta o campo religioso, mas também a legitimidade do processo junto aos demais campos sociais. É aí que a mídia, em especial o rádio e a televisão, se constitui em produtora de telecuras, estratégias que fomentam e permitem novas maneiras de vínculos sociais e interações.

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Neste sentido, Adriano Duarte Rodrigues (1999) aponta para uma dependência dos dispositivos de mediação para a compreensão do mundo.

De facto, a percepção que temos hoje do mundo tornou-se dependente de complexos e permanentes dispositivos de mediatização que marcam o ritmo da nossa vida cotidiana, sobrepondo-se cada vez mais não à nossa percepção imediata do mundo, mas também aos ritmos de funcionamento das instituições que formam os quadros da nossa experiência individual e coletiva. São cada vez mais os complexos dispositivos técnicos de mediação que ajustam a nossa percepção do mundo às suas capacidades de simulação. (DUARTE, 1999, p.1)

A vida é, cada dia mais, demarcada pelas lógicas dos meios de comunicação que são adotadas não apenas pela religião, mas pelos governos que determinam suas agendas através da mídia, pelas famílias que organizam seu calendário-tempo conforme os calendários seguido pelos meios. Até mesmo os movimentos sociais se valem dos protocolos da mídia para que possam exibir seus protestos e, assim, ter direito a voz, em meio ao emaranhado de vozes que não ganham relevo senão via a midiatização. Tudo isso demonstra o quanto a sociedade é depende dos meios para se organizar, gerando o que Adriano Duarte Rodrigues chama de “autonomização” do campo dos media, ou seja, o campo dos media se tornando a forma de acesso, de visibilidade, e detentor de um poder delegado pelos demais campos. Em síntese, a sociedade midiatizada é aquela caracterizada pelo fato de que suas práticas sociais precisam levar em conta a referência da existência das lógicas mediáticas. É o campo dos media que organiza os acontecimentos,

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faz a gestão destes e regula ou determina a presença dos outros campos, bem como seus discursos. Um exemplo disso é o recente caso da morte da menina Isabella em São Paulo. A midiatização do caso fez com que delegados, legistas, passassem a valer-se da mídia e de suas lógicas para apresentar argumentos, para ter acesso aos meios e, logo, para estimular e pautar o pensamento dos cidadãos e dos demais campos. A morte da menina fez com que a mídia se tornasse o próprio investigador da causa, ela se revestindo de um discurso que não é dela, mas que ao ser adotado gerou uma série de situações midiáticas como um repórter sendo entrevistado enquanto “autoridade” e o “público” acompanhando na porta da delegacia o “circo midiático” da revelação de quem matou ou não. Em função da midiatização os discursos dos campos passam a se imbricar e se misturar já não sendo mais possível identificar quem é aquele que fala.

Circulação : espaço da construção do sentidoO campo dos media atribui sentido à realidade e faz com que “bens” intangíveis e

imateriais circulem, sendo que o que interessa aqui é exatamente as operações de sentido realizadas. De que forma estes sentidos são percebidos pela sociedade? Há algo para além dos sentidos dados? Para Antônio Fausto Neto (2006) o “mistério” para a comunicação está exatamente na circulação, ou seja, nas condições em que as realidades são afetadas pelas lógicas dos meios.

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Os processos de produção de significação dão lugar a novos métodos de operações de sentidos, em função de lógicas de sentido pelas quais palavras abandonam suas pertenças a sistemas culturais de significação e ingressam nas lógicas de fluxos. Do ato significativo, ao acting out, ou ato indicial que beira o acting out. As lutas já não tem como meta velhas teologias morais, éticas, confessionais e políticas. São travadas visando o acesso à operacionalidade do código e não o exercício/aprendizado das gramáticas significacionais instituídas pelas racionalidades das instituições que definiam esquemas e modelos de pertença. (FAUSTO NETO, 2006, p.5)

Deste modo o ator social já não é mais o intérprete, mas se constitui naquele que faz as conexões com o campo dos media. Para Jairo Ferreira (2007) é na circulação que o processo de produção de sentido se efetiva.

Partimos , num primeiro momento de aproximação desse foco, da análise da circulação centralizada no conceito de discurso (modelo de Veron sobre circulação). Em seu modelo há uma gramática de produção (representada por operações de produção) de discursos e uma gramática de reconhecimento (representada pelos processos de reconhecimento), sobre as quais novas gerações de produção discursiva são realizadas. O ciclo interminável forma a circulação. (FERREIRA, 2007, p.137)

Isto quer dizer que a circulação se dá em dois momentos distintos: primeiro há um processo de produção do discurso propriamente dito e depois este discurso passa a ser reconhecido e volta a gerar sentidos, produzindo novos discursos sobre esta produção anterior. Há, desta forma, uma constante relação entre as operações de produção e as

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operações de reconhecimento, ainda mais quando se pensa este reconhecimento se dando a partir dos dispositivos midiáticos e de seus protocolos estabelecidos. O reconhecimento passa, necessariamente, pela influência do próprio dispositivo que acrescenta sentidos para além dos já previstos. A comunicação, e em especial o jornalismo, implica sempre no movimento de trocas incessantes de materiais significantes, o que para Jairo Ferreira (2005) representa que a comunicação é “em sua gênese, circulação”. O campo dos media recebe informações, dados, sentidos que são redimensionados dentro do próprio campo e quando chegam até o “receptor-leitor-telespectador” já são revestidos de camadas de sentidos atribuídos pelo campo, não mais pelos atores sociais primeiros de onde partiu a informação. E por que se torna pertinente compreender este processo? Porque à primeira vista o que se recebe, em casa, é apenas o sentido gerado já em sua segunda instância, já na fase de reconhecimento, onde o que é apresentado é produto de uma leitura guiada pelo próprio dispositivo e meio de comunicação. No que tange às imagens fotográficas que chegam em capas de revistas ou jornais, todo o esforço feito para criar elementos, juntar situações e frases, faz com que aquele objeto seja revestido de sentidos a mais, os quais o receptor assumirá como verdadeiros, principalmente, quando se trata do jornalismo, visto que ainda paira no ar a máxima de que o jornalismo é a realidade, ou representa o real de forma objetiva. Ainda conforme Jairo Ferreira (2005), em função do processo de circulação,

o discurso é objeto do discurso, em que as falas de agentes, instituições e

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campos sociais são reintegrados a outras, numa distribuição conforme as posições sociais (objetivas) dos interlocutores. Esse processo se expressa enquanto processo em que os materiais significantes são objetos interpretados e transformados, deslocando o lugar social de fala dos outros, através de diversos agentes do processo enunciativo que entrelaçam objetos (referentes) e imagens de outros agentes sociais (vinculados a instituições e campos sociais). (FERREIRA, 2005, p.7)

A circulação a partir desta visada é, portanto, um processo em que o sentido circula, muda, altera-se conforme a lógica dos meios, que ao sintetizarem fatos na forma de imagens (objeto de estudo deste artigo) reinterpretam, gerando outras formas de vínculos. Poderia se dizer que as imagens quando chegam nas redações possuem o sentido atribuído por fotógrafos e jornalistas, mas que quando são midiatizadas passam a receber influência dos dispositivos, das lógicas dos meios e recebem um novo sentido, este último o consumido pelo receptor final que ainda pode assumir o sentido dado, reconhecer-se nele ou produzir novos sentidos a partir de então. No entanto, cada vez mais os outros campos sociais que não o midiático já se valem das regras do trabalho jornalístico e passam a gerar processos de noticiabilidade.

Vejamos como exemplo a capa da revista Veja de abril de 2008 que traz o jogador de futebol Ronaldo, conhecido e popularizado como fenômeno, já esmaecido, em um fundo esbranquiçado com o título “A escolha de Ronaldo”, remetendo ao caso que se tornou público de que o jogador teria se envolvido com três travestis na noite do Rio do Janeiro e que estes teriam extorquido dinheiro do jogador. O caso só se tornou público

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após a denúncia de um dos travestis à Polícia e quando este chantageou Ronaldo com a exibição do ocorrido em meios de comunicação. Sem entrar na questão em si, a capa traz ainda a linha de apoio “O Fenômeno podia ser um Pelé, mas de escândalo em escândalo sua imagem se desfaz como a de Maradona”. A fotografia escolhida não é especial, não faz alusão ao caso em debate, mas ao relacionar a imagem se esvaindo da capa como o famoso jogador argentino, a construção de sentido fica clara, Ronaldo está se perdendo não apenas como jogador, mas como ídolo que foi construído imageticamente, inclusive pela própria revista em diversas edições anteriores. Além disso, Ronaldo foi acusado de estar envolvido com drogas, sendo que a alusão a Maradona traz à tona, ainda que veladamente, este posicionamento. Ronaldo não é um Pelé, mas pode vir a ser um Maradona, constantemente em clínicas de recuperação.

Mas este não é o primeiro caso em que Ronaldo vira assunto e tema de discussões. No final dos anos 90 foi acusado de ter se envolvido com prostituição na Itália, mas na época, em tempo do auge da carreira, foi tratado como vítima pela própria revista.

Após a sua recente aparição na capa da Veja os próprios leitores criaram a sua capa da revista, principalmente porque hoje, com a Internet, as imagens podem ser alteradas, modificadas e sentidos antes que só pertenciam ao imaginário individual passam a ser socializados e reproduzidos. O que se percebe na imagem abaixo é que a construção de sentido efetuada para um blog possui a mesma lógica que é adotada pela revista, o jogo de palavras, as entrelinhas, embora muito mais direta.

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Este caso se torna emblemático não apenas pela construção de sentido efetuada pela revista, mas pela postura adotada pelo próprio jogador que valeu-se da lógica dos meios para tentar reverter o abalo em sua imagem. No programa Fantástico, Ronaldo concedeu entrevista exclusiva à repórter-apresentadora Patrícia Poeta. Em uma mostra de que havia “baixado a guarda” Ronaldo confessa ter se envolvido com travestis, alega desconhecimento, pede desculpas ao país e se diz culpado “pela própria inocência”. Se a estratégia foi eficaz para reverter os abalos causados é cedo para saber, mas o caso demonstra o quanto a midiatização está presente e como cada vez mais, conforme Fausto Neto (2007, p. 02) “seus fluxos de produção, circulação e de recepção estão subordinados e dispostos a uma complexa rede de dispositivos e uma teia de relações entre campos, afetados por lógicas, regras e operações do próprio trabalho de midiatização”.

Circularidade: imagens em replicaçãoA midiatização das imagens é um fenômeno cada vez mais presente, visto que a

circulação não se vale apenas do discurso verbal. Vive-se uma época em que as imagens já não pertencem mais aos retratados, mas sim à própria mídia que passa a deter o poder sobre a imagem do indivíduo, o poder de exibir ou não. Ronaldo não teve escolha, sua imagem foi veiculada em jornais de todo o mundo, em revistas, associada aos travestis que viraram “celebridades” instantâneas em depoimentos, em canais de televisão aberta e até em sátiras de programas de humor. A imagem de Ronaldo não se esvaiu só na capa

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de Veja, mas lhe escapou das mãos no momento em que a mídia passou a determinar quando e como ela deveria ser usada. O próprio jogador precisou se transformar em imagem, através das lentes da televisão, para tentar, ironicamente, pedir desculpas por ter tido sua privacidade alardeada. Deste modo, a midiatização das imagens se relaciona diretamente com a idéia não só de circulação, mas de circularidade. A imagem de Ronaldo da revista migrou para a TV, que disponibilizou para outra emissora, que repercutiu nos jornais, que pautou blogs e assim por diante, sem saber onde começa e onde termina, numa circularidade sem fim.

Neste sentido Dietmar Kamper (2000) coloca que tudo o que não é visível parece ter perdido a condição de existente e como num acordo tácito, todos sabem, mas todos estão vidrados nas poucas imagens que se mostram.

Tudo o que não for visível tem que ser descartado como objeto sem valor, antes mesmo de entrar no jogo. Em compensação, toda imagem conformável ao olhar pode ser configurada ativamente, apresentada e reapresentada em encenações repetidas uma vida inteira, inclusive com a participação das pessoas que se colocam sob os olhares controladores. (KAMPER, 2000, p. 1)

Ronaldo se fez imagem. A midiatização fez a imagem de Ronaldo: a primeira, de jogador prodígio, e a última de jogador em fim de carreira que se envolve em escândalos após escândalos.

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Qual será a imagem futura?Quando não são as imagens que se repetem, são os ângulos de cobertura, os

elementos, os aspectos. Assim, é a partir das imagens selecionadas para serem vistas que ocorre a sincronização pelo olhar, que consiste num processo de combinação de fatos, ou melhor de fotos, para serem vistas de forma simultânea. Uma sociedade que vê a mesma imagem, repetidas vezes, em vários suportes diferentes (televisão, jornal impresso, Internet) acaba por crer que aquela imagem é a única que vale a pena ser vista, mesmo que um contingente imenso de imagens tão, ou até mais, relevantes seja, simplesmente, deixado de lado.

Desta forma, a ordenação pelo olhar se dá, principalmente, pela ritualização das imagens que são oferecidas insistentemente, num processo circular que ocorre de duas formas no fotojornalismo. Primeiro, as imagens aparecem como se fossem pontuais, ou seja, apenas discursos visuais da notícia, fruto de coberturas jornalísticas pseudo preocupadas com a transmissão da realidade. Num segundo momento, essas fotografias passam a ser reiteradas massivamente, fazendo com que tais imagens mediadas integrem a agenda dos cidadãos. Mais do que isso, estas imagens repetidas contribuem para a sincronização da sociedade, que não apenas aceita e inclui em sua agenda pessoal determinados temas e ângulos que são mostrados pela mídia, como também do olhar que, de tanto ser exigido, passa a ser sincronizado, a ponto de já não se ter mais autonomia para ver diferente do que é mostrado. De concreto é possível dizer que os símbolos e seus sentidos nascem e

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morrem. Para Baitello Junior (1999, p. 109-110), os símbolos só podem se afirmar e manter quando são reiterados e repetidos. Os símbolos “carecem do apoio e da confirmação reiterados do coletivo para que possam ter sua credibilidade legitimada e mantida. Sem a legitimação da sociedade eles retornam ao universo da fantasia individual”. E quem possui o poder da legitimação? A própria mídia. A circularidade assim se inscreve em dois movimentos: o de apropriação das imagens pela mídia e o de sua legitimação replicante. Os meios passam a ser a fonte única da realidade, onde os acontecimentos e os próprios envolvidos se submetem à lógica dos processos midiáticos.

Considerações finaisO surgimento dos meios de comunicação resultou numa nova forma de vida, uma

vida mediada. Os aparatos tecnológicos fizeram com que o homem se relacionasse de modo diferente com outros homens, bem como criaram novas relações entre homem e aparelho, aparelhos e aparelhos. Se no princípio os meios eram subordinados à comunicação existente e, portanto, funcionários desta, com a sua evolução e massificação a comunicação se tornou subordinada aos meios, invertendo o processo. O campo dos media há muito deixou de ser um reflexo do real, um meio de representação, para se constituir na própria apresentação do mundo. Isto gerou a substituição da experiência concreta pela midiática, ou seja, o homem já não precisa mais experimentar, vivenciar, pois os meios já lhe fornecem a experiência completa.

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Vive-se uma era onde sem a mediação há um esvaziamento do sentido, já que são as lógicas dos meios que determinam quanto e qual sentido deve ser transmitido. A midiatização permite que ocorra a sincronização social, ou seja, por aquilo que é tornado público, por aqueles discursos que a mídia disponibiliza, a sociedade passa a ser organizada e regida. Só aquilo que é veiculado é pertinente, só aquela perspectiva é válida, o restante não é legitimado e, portanto, não possui peso o suficiente para durar. São as lógicas da midiatização que regulam e ordenam a sociedade, valendo-se da sua inerente função de portadora/determinadora do acesso. Adriano Duarte Rodrigues deixa claro que o campo dos media se autonomizou, ou seja, tornou-se autônomo e capaz de falar com propriedade em nome de quem, realmente, fala. A mídia cada vez mais tem se apropriado dos discursos dos demais campos, passando a reproduzi-los e disseminá-los a partir de uma nova perspectiva, esta baseada em sentidos diversos.

O que está em jogo é a comunicação como circulação de sentido, um sentido criado e mantido a partir das operações de produção presentes e integrantes dos próprios meios. No caso das imagens midiatizadas, quando estas fotografias ou vídeos chegam ao campo dos media elas deixam de pertencer àqueles que as criaram ou que estão por elas representados. O corpo que aparece na imagem, a intenção, pouco importa. Importa, sim, o poder do campo do media de atribuir novos, e mais, sentidos. No caso do jogador Ronaldo, por exemplo, a Revista Veja deu ampla cobertura sobre seu provável envolvimento com travestis. Embora o jogador tenha tentado argumentar, sua imagem virou motivo de

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chacota e até de novas imagens. Para evitar maiores danos, Ronaldo recorreu às lógicas dos meios, se fez imagem em entrevista na maior rede de televisão brasileira, a Globo. Se desculpou diante das câmeras e ao responder todas as perguntas abriu caminho para que seja possível pensar qual será sua próxima aparição. Em 98 seu rosto já havia estampado uma capa de revista, logo após o fracasso na Copa, anos depois, no auge da carreira, Ronaldo foi visto como um rei . Sucessivamente, sua imagem foi sendo tratada na mídia, ora como um ídolo, ora como um jogador “metido em escândalos”. A circularidade da imagem de Ronaldo deixa uma brecha, um espaço em branco para se questionar: qual será a próxima? Certamente ela virá. E se Ronaldo se fez imagem, a midiatização fez e mantém a imagem de Ronaldo.

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