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A PAZ PERPTUA
Um Projecto Filosfico
Immanuel Kant(1795)
Tradutor:Artur Moro
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FICHA TCNICA
Ttulo: A Paz Perptua. Um Projecto FilosficoAutor: Immanuel KantTradutor: Artur MoroColeco: Textos Clssicos de FilosofiaDireco da Coleco: Jos Rosa & Artur MoroDesign da Capa: Antnio Rodrigues TomPaginao: Jos RosaUniversidade da Beira InteriorCovilh, 2008
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A Paz Perptua.Um Projecto Filosfico
(1795)
Immanuel Kant
Contedo[Introduo] 3Primeira Secco que contm os Artigos Preliminares... 4Segunda Seco que contm os Artigos Definitivos... 10Suplemento Primeiro: Da Garantia da Paz Perptua 23Suplemento Segundo: Artigo Secreto para a Paz Perptua 32Apndice I: Sobre a discrepncia entre a Moral e a Poltica... 34Apndice II: Da Harmonia da Poltica com a Moral...... 46
[Introduo]
Pode deixar-se em suspenso se esta inscrio satrica na tabuleta deuma pousada holandesa, em que estava pintado um cemitrio, interessaem geral aos homens, ou em particular aos chefes de Estado que nuncachegam a saciar-se da guerra, ou to-s aos filsofos que se entregama esse doce sonho. Mas o autor do presente ensaio estipula o seguinte:visto que o poltico prtico est em bons termos com o terico e comgrande autocomplacncia o olha de cima como a um sbio acadmico
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que, com as suas ideias ocas, nenhum perigo traz ao Estado este deveantes partir dos princpios da experincia e a quem se pode permitirarremessar de uma s vez os onze paus, sem que o estadista, conhe-cedor do mundo, com isso se preocupe, no caso de um conflito como terico, ele deve proceder de um modo consequente e no farejarperigo algum para o Estado por detrs das suas opinies, aventadas aoacaso e publicamente manifestadas com esta clausula salvatoria quero autor saber-se a salvo expressamente e da melhor forma contra todaa interpretao maliciosa.
PRIMEIRA SECO
QUE CONTM OS ARTIGOS PRELIMINARESPARA A PAZ PERPTUA ENTRE OS ESTADOS
1. No deve considerar-se como vlido nenhum tratado de pazque se tenha feito com a reserva secreta de elementos para uma guerrafutura.
Seria ento, pois, apenas um simples armistcio, um adiamento dashostilidades e no a paz, que significa o fim de todas as hostilidades,e juntar-lhe o epteto eterna j um pleonasmo suspeitoso. As cau-sas existentes para uma guerra futura, embora talvez no conhecidasagora nem sequer pelos negociadores, aniquilam-se no seu conjuntopelo tratado de paz, por muito que se possam extrair dos documentosde arquivo mediante um escrutnio penetrante. A restrio (reserva-tio mentalis) sobre velhas pretenses a que, no momento, nenhuma daspartes faz meno porque ambas esto demasiado esgotadas para pros-seguir a guerra, com a perversa vontade de, no futuro, aproveitar paraeste fim a primeira oportunidade, pertence casustica jesutica e no
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corresponde dignidade dos governantes, do mesmo modo que tam-bm no corresponde dignidade de um ministro a complacncia emtais dedues, se o assunto se julgar tal como em si mesmo.
Se, pelo contrrio, a verdadeira honra do Estado se colocar, segundoos conceitos ilustrados da prudncia poltica, no contnuo incrementodo poder seja por que meios for, ento aquele juzo afigurar-se- comoescolar e pedante.
2. Nenhum Estado independente (grande ou pequeno, aqui tantofaz) poder ser adquirido por outro mediante herana, troca, compra oudoao.
Um Estado no patrimnio (patrimonium) (como, por exemplo,o solo em que ele tem a sua sede). uma sociedade de homens so-bre a qual mais ningum a no ser ele prprio tem de mandar e dispor.Enxert-lo noutro Estado, a ele que como tronco tem a sua prpria raiz,significa eliminar a sua existncia como pessoa moral e fazer desta l-tima uma coisa, contradizendo, por conseguinte, a ideia do contrato ori-ginrio, sem a qual impossvel pensar direito algum sobre um povo1
). Todos sabem a que perigo induziu a Europa at aos tempos maisrecentes o preconceito deste modo de aquisio, pois as outras partesdo mundo jamais o conheceram, isto , de os prprios Estados poderementre si contrair matrimnio; este modo de aquisio , em parte, umnovo gnero de artifcio para se tomar muito poderoso mediante alian-as de famlia sem dispndio de foras e, em parte tambm, serve paraassim ampliar as possesses territoriais. Deve tambm aqui incluir-seo servio das tropas de um Estado noutro contra um inimigo no co-mum, pois em tal caso usa-se e abusa-se dos sbditos vontade, comose fossem coisas de uso.
1 Um reino hereditrio no um Estado que possa ser herdado por outro Estado; um Estado cujo direito a governar se pode dar em herana a outra pessoa fsica.O Estado adquire, pois, um governante, no o governante como tal (isto , que jpossui outro reino) que adquire o Estado.
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3. Os exrcitos permanentes (miles perpetuus) devem, com otempo, de todo desaparecer.
Pois ameaam incessantemente os outros Estados com a guerra, de-vido sua prontido para aparecerem sempre preparados para ela; osEstados incitam-se reciprocamente a ultrapassar-se na quantidade dosmobilizados que no conhece nenhum limite, e visto que a paz, emvirtude dos custos relacionados com o armamento, se torna finalmentemais opressiva do que uma guerra curta, eles prprios so a causa deguerras ofensivas para se libertarem de tal fardo; acrescente-se que pr-se a soldo para matar ou ser morto parece implicar um uso dos homenscomo simples mquinas e instrumentos na mo de outrem (do Estado),uso que no se pode harmonizar bem com o direito da humanidade nanossa prpria pessoa. Algo de todo diverso defender-se a si e defen-der a Ptria dos ataques do exterior com o exerccio militar voluntriodos cidados empreendido de forma peridica. O mesmo se passariacom a acumulao de um tesouro; considerado pelos outros Estadoscomo uma ameaa de guerra, for-los-ia a um ataque antecipado, sea tal no se opusesse a dificuldade de calcular a sua grandeza (poisdos trs poderes, o militar, o das alianas e o do dinheiro, este ltimopoderia decerto ser o mais seguro instrumento de guerra).
4. No se devem emitir dvidas pblicas em relao aos assuntosde poltica exterior.
Para fomentar a economia de um pas (melhoria dos caminhos, no-vas colonizaes, criao de depsitos para os anos maus de forneci-mentos, etc.) fora ou dentro do Estado, esta fonte de financiamento nolevanta suspeitas. Mas um sistema de crdito, como aparelho de opo-sio das potncias entre si, um sistema que cresce ilimitadamente, sempre um poder financeiro perigoso para a reclamao presente (por-que certamente nem todos os credores o faro ao mesmo tempo) dasdvidas garantidas a engenhosa inveno de um povo de comercian-tes neste sculo ou seja, um tesouro para a guerra, que supera os
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tesouros de todos os outros Estados tomados em conjunto e que s sepode esgotar pela eminente queda dos impostos (que, no entanto, semantero ainda durante muito tempo, graas revitalizao do comr-cio por meio da retroaco deste sobre a indstria e a riqueza). Estafacilidade para fazer a guerra, unida tendncia dos detentores do po-der que parece ser congnita natureza humana, , pois, um grandeobstculo para a paz perptua; para o debelar, deveria, com maior ra-zo, haver um artigo preliminar porque, no fim, a inevitvel bancarrotado Estado envolver vrios outros Estados sem culpa o que seria umaleso pblica destes ltimos. Por conseguinte, outros Estados tm aomenos o direito de se aliar contra semelhante Estado e as suas preten-ses.
5. Nenhum Estado se deve imiscuir pela fora na constituio eno governo de outro Estado.
Que que a tal o pode autorizar? Porventura o escndalo que daos sbditos de outro Estado? Mas tal escndalo pode antes servir deadvertncia mediante o exemplo do grande mal que um povo atraiu so-bre si em virtude da sua ausncia de leis; e, alm disso, o mau exemploque uma pessoa livre d a outra no (enquanto scandalum accep-tum) nenhuma leso. No se aplicaria, decerto, ao caso em que umEstado se dividiu em duas partes devido a discrdias internas e cadauma representa para si um Estado particular com a pretenso de ser otodo; se um terceiro Estado presta, ento, ajuda a uma das partes nose poderia considerar como ingerncia na Constituio de outro Estado(pois s existe anarquia). Mas enquanto essa luta interna ainda no estdecidida, a ingerncia de potncias estrangeiras seria uma violao dodireito de um povo independente que combate a sua enfermidade in-terna; seria, portanto, um escndalo, e poria em perigo a autonomia detodos os Estados.
6. Nenhum Estado em guerra com outro deve permitir tais hosti-lidades que tomem impossvel a confiana mtua na paz futura, como,
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por exemplo, o emprego no outro Estado de assassinos (percussores),envenenadores (venefici), a ruptura da capitulao, a instigao trai-o (perduellio), etc.
So estratagemas desonrosos; mesmo em plena guerra deve aindaexistir alguma confiana no modo de pensar do inimigo j que, casocontrrio, no se poderia negociar paz alguma e as hostilidades resul-tariam numa guerra de extermnio (bellum internecinum); a guerra apenas o meio necessrio e lamentvel no estado da ntureza (em queno existe nenhum tribunal que possa julgar, com a fora do direito),para afirmar pela fora o seu direito; na guerra, nenhuma das partes sepode declarar inimigo injusto (porque isso pressupe j uma sentenajudicial). Mas o seu desfecho (tal como nos chamados juzos de Deus) que decide de que lado se encontra o direito; entre os Estados, porm,no se pode conceber nenhuma guerra de punio (bellum punitivum)(pois entre eles no existe nenhuma relao de superior a inferior). Daqui se segue, pois, que uma guerra de extermnio, na qual se podeproduzir o desaparecimento de ambas as partes e, por conseguinte, tam-bm de todo o direito, s possibilitaria a paz perptua sobre o grandecemitrio do gnero humano. Logo, no se deve de modo algum per-mitir semelhante guerra nem tambm o uso dos meios que a ela levam. Que os mencionados meios levam inevitavelmente a ela depreende-sedo facto de que essas artes infernais, em si mesmas nunca convenien-tes, quando se pem em uso no se mantm por muito tempo dentrodos limites da guerra, mas transferem-se tambm para a situao depaz como, por exemplo, o uso de espias (uti exploratoribus), onde seaproveita a indignidade de outros (que no pode erradicar-se de uma svez); e assim destruir-se-ia por completo o propsito da paz.
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Embora as leis aduzidas sejam simples leis objectivamente proibi-tivas (leges prohibitivae), isto , na inteno dos que detm o poder, htodavia algumas que tm uma eficcia rgida, sem considerao pelas
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circunstncias (leges strictae), que obrigam imediatamente a um no-fazer (como os nmeros 1, 5, 6) Mas outras (como os nmeros 2, 3, 4),sem serem excepes norma jurdica, tendo porm em consideraoas circunstncias na sua aplicao, ampliando subjectivamente a com-petncia (leges latae), contm uma autorizao para adiar a execuosem, no entanto, se perder de vista o fim, que permite, por exemplo,a demora na restituio da liberdade subtrada a certos Estados, se-gundo o nmero 2, no para o dia de S. Nunca Tarde (ad calendasgraecas, como costumava prometer Augusto), portanto a sua no resti-tuio, mas s para que ela tenha lugar de um modo apressado e assimcontra a prpria inteno. Pois a proibio afecta aqui apenas o modode aquisio, o qual no deve valer para o futuro, mas no a possessoque, embora desprovida do ttulo jurdico requerido, foi todavia consi-derada por todos os Estados no seu tempo (da aquisio putativa) comoconforme ao direito, segundo a opinio pblica da altura2.
2 At agora, duvidou-se e no sem fundamento que, alm do mandado (legespreceptivae) e da proibio (leges prohibitivae), pode ainda haver leis permissivas(leges permissivae) da razo pura. Pois as leis em geral contm um fundamento denecessidade prtica objectiva, mas a permisso contm um fundamento da contingn-cia prtica de certas aces; por isso, uma lei permissiva conteria o constrangimento auma aco a que no se pode estar obrigado, o que seria uma contradio se o objectoda lei tivesse o mesmo significadoo em ambos os casos. Mas agora aqui, na leipermissiva, a suposta proibio refere-se apenas ao modo de aquisio futura de umdireito (por exemplo mediante herana), ao passo que o levantamento da proibio,isto , a permisso, se refere posse presente, a qual pode ainda persistir segundo umalei permissiva do direito natural na transio do estado de natureza para o estado ci-vil como uma posse, se no conforme ao direito, todavia sincera (possesio putativa).Ora uma posse putativa, logo que se reconheceu como tal, proibida no estado denatureza do mesmo modo que um tipo semelhante de aquisio proibido no ulteriorestado civil (aps a passagem); a possibilidade de uma posse duradoira no existiriase tivesse havido uma aquisio putativa no estado civil, pois, neste caso, teria de ces-sar imediatamente como uma leso, logo aps a descoberta da sua no conformidadecom o direito.
Aqui, tentei apenas incidentalmente chamar a ateno dos professores de direitonatural para o conceito de uma lex permissiva, que se apresenta como tal a uma ra-zo sistematicamente classificadora; de semelhante conceito faz-se muitas vezes uso,sobretudo no direito civil (estatutrio), s que com a diferena de que a lei impera-
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SEGUNDA SECO
QUE CONTM OS ARTIGOS DEFINITIVOSPARA A PAZ PERPTUA ENTRE OS ESTADOS
O estado de paz entre os homens que vivem juntos no um es-tado de natureza (status naturalis), o qual antes um estado de guerra,isto , um estado em que, embora no exista sempre uma exploso dashostilidades, h sempre todavia uma ameaa constante. Deve, pois,instaurar-se o estado de paz; a omisso de hostilidades no ainda agarantia de paz e, se um vizinho no proporcionar segurana a outro(o que s pode acontecer num estado legal), cada um pode considerarcomo inimigo a quem lhe exigiu tal segurana3.
tiva se apresenta por si mesma, ao passo que a permisso no entra como condiolimitativa (como devia) naquela lei, mas atirada para as excepes. Assim, porexemplo: probe-se isto ou aquilo, excepto os nmeros um, dois, trs e assim indefini-damente, pois as permisses introduzem-se na lei s de um modo casual, no segundoum princpio, mas s apalpadelas entre casos concretos. Pois, de outro modo, se ascondies se tivessem introduzido na frmula da lei proibitiva, esta ter-se-ia conver-tido ao mesmo tempo numa lei permissiva. , pois, de lamentar que to depressase tenha abandonado o problema, engenhoso e no resolvido, do to sbio quantopenetrante Conde Windischgrtz, que apontava justamente para a ltima. De facto, apossibilidade de uma frmula assim (semelhante s frmulas matemticas) a nicae genuna pedra-de-toque de uma legislao que permanece consequente, sem a qualo chamado ius certum permanecer sempre um pio desejo. De outro modo, ter-se-o apenas leis gerais (que valem em geral), mas no leis universais (com eficciauniversal), como todavia parece exigir o conceito de lei.
3 Supe-se comummente que no se pode proceder de forma hostil contra nin-gum excepto s quando ele me tenha j lesado de facto, e isto tambm inteira-mente correcto se ambos se encontram num estado civil-legal. Com efeito, poreste ter ingressado no mesmo estado proporciona quele (mediante a autoridade quepossui poder sobre ambos) a segurana requerida. Mas o homem (ou o povo), nosimples estado de natureza, priva-me dessa segurana e j me prejudica em virtudeprecisamente desse estado, por estar ao meu lado, se no efectivamente (facto), pelomenos devido ausncia de leis do seu estado (statu iniusto), pela qual eu estou
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/ Primeiro Artigo definitivo para a Paz Perptua
A Constituio civil em cada Estado deve ser republicana.
A constituio fundada, primeiro, segundo os princpios da liber-dade dos membros de uma sociedade (enquanto homens); em segundolugar, em conformidade com os princpios da dependncia de todosem relao a uma nica legislao comum (enquanto sbditos); e, emterceiro lugar, segundo a lei da igualdade dos mesmos (enquanto cida-dos), a nica que deriva da ideia do contrato originrio, em que sedeve fundar toda a legislao jurdica de um povo a constituiorepublicana4.
constantemente ameaado por ele; e no posso for-lo a entrar comigo num estadosocial legal ou a afastar-se da minha vizinhana. Logo, o postulado que subjaza todos os artigos seguintes este: Todos os homens que entre si podem exercerinfluncias recprocas devem pertencer a alguma constituio civil.
Mas toda a constituio jurdica, no tocante s pessoas que nela esto, 1) Uma constituio segundo o direito poltico (Staatsbrgerrecht) dos homens
num povo (ius civitatis);2) Segundo o direito das gentes (Vlkerrecht) dos Estados nas suas relaes rec-
procas (ius gentium);3) Uma constituio segundo o direito cosmopolita (Weltbrgerrecht), enquanto
importa considerar os homens e os Estados, na sua relao externa de influncia rec-proca, como cidados de um estado universal da humanidade (ius cosmopoliticum).Esta diviso no arbitrria, mas necessria em relao ideia da paz perptua. Pois,se um destes Estados numa relao de influncia fsica com os outros estivesse emestado da natureza, isso implicaria o estado de guerra, de que justamente nossopropsito libertar-se.
4 A liberdade jurdica (portanto externa) no se pode definir, como habitual fa-zer, mediante a faculdade de fazer tudo o que se quiser, contanto que a ningumse faa uma injustia. Pois, que significa faculdade (Befg nis)? A possibilidadede uma aco enquanto por ela a ningum se faz uma injustia. A explicao dadefinio soaria ento assim: Liberdade a possibilidade de aces pelas quais aningum se faz uma injustia. No se faz dano a ningum (faa-se o que se quiser), seapenas a ningum se fizer dano algum: portanto uma tautologia vazia. A minhaliberdade exterior (jurdica) deve antes explicar-se assim: a faculdade de no obe-decer a quaisquer leis externas seno enquanto lhes pude dar o meu consentimento. Igualmente, a igualdade exterior (jurdica) num Estado a relao entre os cidados
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Esta , pois, no tocante ao direito, a que em si mesma subjaz atodos os tipos de constituio civil; e, agora, surge apenas a questo:ser tambm ela a nica que pode conduzir paz perptua?
A constituio republicana, alm da pureza da sua origem, isto ,de ter promanado da pura fonte do conceito de direito, tem ainda emvista o resultado desejado, a saber, a paz perptua; daquela esta o fun-damento. Se (como no pode ser de outro modo nesta constituio)o consentimento dos cidados se exige para decidir se deve, ou no,
segundo a qual nenhum pode vincular juridicamente outro sem que ele se submeta aomesmo tempo lei e possa ser reciprocamente tambm de igual modo vinculado porela. (No necessria nenhuma explicao a propsito do princpio da dependnciajurdica, j que este est implcito no conceito de uma constituio poltica). A vali-dade dos direitos inatos inalienveis e que pertencem necessariamente humanidade confirmada e elevada pelo princpio das relaes jurdicas do prprio homem comentidades mais altas (quando ele as imagina), ao representar-se a si mesmo segundoesses mesmos princpios tambm como um cidado de um mundo supra-sensvel. No tocante minha liberdade, no tenho qualquer obrigao mesmo em relao sleis divinas por mim conhecidas atravs da simples razo a no ser que eu prpriotenha podido prestar o meu consentimento (pois, mediante a lei da liberdade da mi-nha prpria razo que fao, primeiro, para mim um conceito da vontade divina).No tocante ao princpio de igualdade em relao ao Ser supremo do mundo, fora deDeus, tal como eu o poderia imaginar (um grande Eo), no existe fundamento algumpara que eu, se no meu posto fizer o meu dever como aquele Eo no seu, tenha sim-plesmente o dever de obedecer, e aquele o de mandar. O fundamento da igualdadereside em que este princpio (tal como o da liberdade) tambm no se ajusta relaocom Deus, porque este Ser o nico no qual cessa o conceito de dever.
Mas, no que diz respeito ao direito da igualdade de todos os cidados enquantosbditos, necessrio contestar a questo da admissibilidade da nobreza hereditria:se o estatuto concedido pelo Estado (a posio de um sbdito sobre o outro) devepreceder o mrito, ou este quele. Ora, claro que, se o estatuto est vinculadoao nascimento, de todo incerto se o mrito (capacidade e fidelidade profissionais)tambm vir depois; por conseguinte, como se ele fosse concedido (ser chefe) aobeneficiado sem qualquer mrito o que nunca a vontade geral do povo decidir numcontrato originrio (que, no entanto, o princpio de todos os direitos). Com efeito,um nobre no necessariamente por isso um homem nobre. No tocante nobrezade cargo (como se poderia denominar o estatuto de uma elevada magistratura e qual necessrio elevar-se por meio dos mritos), o estatuto no pertence pessoa comouma propriedade, mas ao lugar, e a igualdade no por isso lesada; pois, quando apessoa abandona o seu cargo deixa, ao mesmo tempo, o estatuto e retoma ao povo.
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haver guerra, ento nada mais natural do que deliberar muito emcomearem um jogo to maligno, pois tm de decidir para si prpriostodos os sofrimentos da guerra (como combater, custear as despesas daguerra com o seu prprio patrimnio, reconstruir penosamente a de-vastao que ela deixa atrs de si e, por fim e para cmulo dos males,tomar sobre si o peso das dvidas que nunca acaba (em virtude de no-vas e prximas guerras) e toma amarga a paz. Pelo contrrio, numaconstituio em que o sbdito no cidado, e que portanto no umaconstituio republicana, a guerra a coisa mais simples do mundo,porque o chefe do Estado no um membro do Estado, mas o seu pro-prietrio, e a guerra no lhe faz perder o mnimo dos seus banquetes,das suas caadas, dos palcios de recreio, das festas cortess, etc., epode, portanto, decidir a guerra como uma espcie de jogo por causasinsignificantes e confiar indiferentemente a sua justificao por causado decoro ao sempre pronto corpo diplomtico.
* * *
Para no se confundir a constituio republicana com a democrtica(como costuma acontecer), deve observar-se o seguinte. As formas deum Estado (civitas) podem classificar-se segundo a diferena das pes-soas que possuem o supremo poder do Estado, ou segundo o modo degovernar o povo, seja quem for o seu governante; a primeira chama-seefectivamente a forma da soberania (forma imperii) e s h trs formaspossveis, a saber, a soberania possuda por um s, ou por alguns queentre si se religam, ou por todos conjuntamente, formando a sociedadecivil (autocracia, aristocracia e democracia; poder do prncipe, da no-breza e do povo). A segunda a forma de governo (forma regiminis)e refere-se ao modo, baseado na constituio (no acto da vontade geralpela qual a massa se torna um povo), como o Estado faz uso da pleni-tude do seu poder: neste sentido, a constituio ou republicana, oudesptica. O republicanismo o princpio poltico da separao entre
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o poder executivo (governo) e o legislativo; o despotismo o princ-pio da execuo arbitrria pelo Estado de leis que ele a si mesmo deu,portanto a vontade pblica manejada pelo governante como sua von-tade privada. Das trs formas de Estado, a democracia , no sentidoprprio da palavra, necessariamente um despotismo, porque funda umpoder executivo em que todos decidem sobre e, em todo o caso, tam-bm contra um (que, por conseguinte, no d o seu consentimento),portanto todos, sem no entanto serem todos, decidem o que umacontradio da vontade geral consigo mesma e com a liberdade.
Toda a forma de governo que no seja representativa , em termosestritos, uma no forma, porque o legislador no pode ser ao mesmotempo executor da sua vontade numa e mesma pessoa (como tambma universal da premissa maior num silogismo no pode ser ao mesmotempo a subsuno do particular na premissa menor); e, embora as duasoutras constituies polticas sejam sempre defeituosas porque propor-cionam espao a um tal modo de governo, nelas ao menos possvelque adoptem um modo de governo conforme com o esprito de um sis-tema representativo como, por exemplo, Frederico II ao dizer que eleera apenas o primeiro servidor do Estado5, ao passo que a constituiodemocrtica torna isso impossvel porque todos querem ser soberano. Pode, pois, dizer-se: quanto mais reduzido o pessoal do poder estatal(o nmero de dirigentes), tanto maior a representao dos mesmos,tanto mais a constituio poltica se harmoniza com a possibilidadedo republicanismo e pode esperar que, por fim, a ele chegue mediantereformas graduais. Por tal razo, chegar a esta nica constituio ple-namente jurdica mais difcil na aristocracia do que na monarquia e
5 Muitas vezes se censuraram os altos ttulos que, com frequncia, se atribuema um princpe (os de ungido de Deus, administrador da vontade divina na Terra erepresentante seu) como adulaes grosseiras e fraudulentas; mas parece-me que taiscensuras so sem fundamento. Longe de tornarem arrogante o prncipe territorial,devem antes deprimi-lo no seu interior, se ele tiver entendimento (o que, no entanto,se deve pressupor) e pensar que recebeu um cargo demasiado grande para um homem,isto , administrar o que de mais sagrado Deus tem sobre a Terra, o direito doshomens, e deve estar constantemente preocupado por se encontrar excessivamenteprximo da menina-do-olho de Deus.
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impossvel na democracia, a no ser mediante uma revoluo violenta.Mas ao povo interessa mais, sem comparao, o modo de governo6
do que a forma de Estado (embora tenha tambm muita importnciaa sua maior ou menor adequao quele fim). Ao modo de governoque deve ser conforme ideia de direito pertence o sistema represen-tativo, o nico em que possvel um modo de governo republicano esem o qual todo o governo desptico e violento (seja qual for a suaconstituio). Nenhuma das denominadas repblicas antigas conhe-ceu este sistema e tiveram, de facto, de se dissolver no despotismo que,sob o poder supremo de um s, ainda o mais suportvel de todos osdespotismos.
/ Segundo Artigo definitivo para a Paz Perptua
O direito das gentes deve fundar-se numa federao de Estadoslivres.
Os povos, enquanto Estados, podem considerar-se como homenssingulares que, no seu estado de natureza (isto , na independncia deleis externas), se prejudicam uns aos outros j pela sua simples coexis-tncia e cada um, em vista da sua segurana, pode e deve exigir do outroque entre com ele numa constituio semelhante constituio civil, na
6 Malais du Pain vangloria-se com a sua linguagem pomposa, mas vazia e oca, de,aps uma experincia de muitos anos, se ter por fim convencido da verdade do conhe-cido mote de Pope: Deixa os loucos disputar sobre o melhor governo; o que melhorgoverna o melhor. Se isto equivale a dizer que o governo que melhor governa omais bem governado, Pope, segundo a expresso de Swift, trincou uma noz e foi-lhedispensado um verme; se, porm, significa que tambm a melhor forma de governo,isto , de constituio poltica, radicalmente falso; pois, exemplos de bons governosnada demonstram sobre a forma de governo. Quem governou melhor do que umTito ou um Marco Aurlio? E, no entanto, um deixou como sucessor um Domiciano,e o outro um Cmodo; o que no poderia ter acontecido com uma boa constituiopoltica, pois a incapacidade dos ltimos para o cargo tinha sido conhecida bastantecedo e o poder do Imperador era tambm suficiente para os ter excludo.
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qual se possa garantir a cada um o seu direito. Isto seria uma federaode povos que, no entanto, no deveria ser um Estado de povos. Have-ria a uma contradio, porque todo o Estado implica a relao de umsuperior (legislador) com um inferior (o que obedece, a saber, o povo)e muitos povos num Estado viriam a constituir um s povo, o que con-tradiz o pressuposto (temos de considerar aqui o direito dos povos nassuas relaes recprocas enquanto formam Estados diferentes, que nose devem fundir num s).
Assim como olhamos com profundo desprezo o apego dos selva-gens sua liberdade sem lei, que prefere mais a luta contnua do quesujeitar-se a uma coero legal por eles mesmos determinvel, esco-lhendo antes a liberdade grotesca racional, e consideramo-lo comobarbrie, grosseria e degradao animal da humanidade; assim tam-bm deveria pensar-se os povos civilizados (cada qual reunidonum Estado) teriam de se apressar a sair quanto antes de uma situa-o to repreensvel: em vez disso, porm, cada Estado coloca antesa sua soberania (pois a soberania popular uma expresso absurda)precisamente em no se sujeitar a nenhuma coaco legal externa, eo fulgor do chefe de Estado consiste em ter sua disposio muitosmilhares que, sem ele prprio se pr em perigo, se deixam sacrificar7
por uma coisa que em nada lhes diz respeito, e a diferena entre os sel-vagens europeus e os americanos consiste essencialmente nisto: mui-tas tribos americanas foram totalmente comidas pelos seus inimigos,ao passo que os europeus sabem aproveitar melhor os seus vencidosdo que comendo-os; aumentam antes o nmero dos seus sbditos, porconseguinte, tambm a quantidade dos instrumentos para guerras aindamais vastas.
Tendo em conta a maldade da natureza humana, que se pode ver sclaras na livre relao dos povos (ao passo que no Estado legal-civil seoculta atravs da coaco do governo) , sem dvida, de admirar que a
7 Eis a resposta que um prncipe blgaro deu ao imperador grego, que queriaresolver uma disputa com um duelo: Um ferreiro que tem tenazes no tirar docarvo o ferro em brasa com as mos.
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palavra direito no tenha ainda podido ser expulsa da poltica da guerracomo pedante, e que nenhum Estado tenha ainda ousado manifestar-sepublicamente a favor desta ltima opinio; pois persiste-se ainda a ci-tar candidamente Hugo Grcio, Pufendorf , Vatel e outros (incmodosconsoladores apenas!). Embora o seu cdigo elaborado filosfica oudiplomaticamente no tenha a mnima fora legal nem a possa tambmter (pois os Estados enquanto tais no esto sob nenhuma coaco exte-rior comum) para a justificao de um ataque blico, sem que exista umexemplo de que alguma vez um Estado tenha abandonado os seus pro-psitos em virtude dos argumentos reforados com os testemunhos deto importantes homens, esta homenagem que todos os Estados pres-tam ao conceito de direito (pelo menos, de palavra) mostra que se podeencontrar no homem uma disposio moral ainda mais profunda, sebem que dormente na altura, para se assenhoriar do princpio mau quenele reside (o que no pode negar) e para esperar isto tambm dos ou-tros; pois, de outro modo, a palavra direito nunca viria boca dos Esta-dos que se querem guerrear entre si, a no ser para com ela praticarema ironia como aquele prncipe gauls, que afirmava: A vantagem quea natureza deu ao forte sobre o fraco que este deve obedecer quele.
Visto que o modo como os Estados perseguem o seu direito nuncapode ser, como num tribunal externo, o processo, mas apenas a guerra,e porque o direito no se pode decidir por meio dela nem pelo seu re-sultado favorvel, a vitria, e dado que pelo tratado de paz se pe fim auma guerra determinada, mas no ao estado de guerra (possibilidade deencontrar um novo pretexto para a guerra, a qual tambm no se podedeclarar como justa, porque em tal situao cada um juiz dos seus pr-prios assuntos); e, uma vez que no pode ter vigncia para os Estados,segundo o direito das gentes, o que vale para o homem no estado des-provido de leis, segundo o direito natural dever sair de tal situao(porque possuem j, como Estados, uma constituio interna jurdicae esto, portanto, subtrados coaco dos outros para que se subme-tam a uma constituio legal ampliada em conformidade com os seusconceitos jurdicos); e visto que a razo, do trono do mximo poderlegislativo moral, condena a guerra como via jurdica e faz, em contra-
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partida, do estado de paz um dever imediato, o qual no pode todaviaestabelecer-se ou garantir-se sem um pacto entre os povos: - tem, pois,de existir uma federao de tipo especial, a que se pode dar o nome defederao da paz (foedus pacificum), que se distinguiria do pacto de paz(pactum pacis), uma vez que este tentaria acabar com uma guerra, aopasso que aquele procuraria pr fim a todas as guerras e para sempre.Esta federao no se prope obter o poder do Estado, mas simples-mente manter e garantir a paz de um Estado para si mesmo e, ao mesmotempo, a dos outros Estados federados, sem que estes devam por isso(como os homens no estado de natureza) submeter-se a leis pblicas e sua coaco. possvel representar-se a exequibilidade (realidadeobjectiva) da federao, que se deve estender paulatinamente a todosos Estados e assim conduz paz perptua. Pois, se a sorte dispe queum povo forte e ilustrado possa formar uma repblica (que, segundoa sua natureza, deve tender para a paz perptua), esta pode constituiro centro da associao federativa para que todos os outros Estados serenam sua volta e assim assegurem o estado de liberdade dos Es-tados conforme ideia do direito das gentes e estendendo-se sempremais mediante outras unies.
compreensvel que um povo diga: No deve entre ns haverguerra alguma, pois queremos formar um Estado, isto , queremos im-por a ns mesmos um poder supremo legislativo, executivo e judicial,que dirima pacificamente os nossos conflitos. Mas se este Estado dis-ser: No deve haver guerra alguma entre mim e os outros Estados,embora no reconhea nenhum poder legislativo supremo que asse-gure o meu direito e ao qual eu garanta o seu direito, no pode entocompreender-se onde que eu quero basear a minha confiana no meudireito, se no existir o substituto da federao das sociedades civis, asaber, o federalismo livre, que a razo deve necessriamente vincularcom o conceito do direito das gentes, se que neste ainda resta algumacoisa para pensar.
No conceito do direitto das gentes enquanto direito para a guerranada se pode realmente pensar (porque seria um direito que determina-ria o que justo segundo mximas unilaterais do poder, e no segundo
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leis exteriores, limitativas da liberdade do indivduo, e universalmentevlidas); por tal conceito entender-se-ia que aos homens que assim pen-sam lhes acontece o que justo, se uns aos outros se aniquilarem e, porconseguinte, encontrarem a paz perptua no amplo tmulo que ocultatodos os horrores da violncia e dos seus autores. Os Estados comrelaes recprocas entre si no tm, segundo a razo, outro remdiopara sair da situao sem leis, que a simples guerra implica, seno o dese acomodar a leis pblicas coactivas, do mesmo modo que os homenssingulares entregam a sua liberdade selvagem (sem leis), e formar umEstado de povos (civitas gentium), que (sempre, claro, em aumento)englobaria por fim todos os povos da Terra. Mas se, de acordo com asua ideia do direito das gentes, isto no quiserem, portanto se rejeitaremin hipothesi o que correcto in thesi, ento, a torrente da propensopara a injustia e a inimizade s poder ser detida, no pela ideia posi-tiva de uma repblica mundial (se que tudo no se deve perder), maspelo sucedneo negativo de uma federao antagnica guerra, perma-nente e em contnua expanso, embora com o perigo constante da suairrupo [Furor impius intus fremit horridus ore cruento8, Virglio]9.
8 Um mpio e horrvel furor ferve bem dentro da sua boca sangrenta.9 Depois de acabada a guerra e ao concluir-se a paz, talvez no fosse inconveniente
para um povo que, aps a festa de aco de graas, se convocasse um dia de penitnciapara implorar ao cu, em nome do Estado, misericrdia pelo grande pecado que ognero humano comete constantemente, ao no querer unir-se a outros povos numaconstituio legal e ao preferir, orgulhoso da sua independncia, o meio brbaro daguerra (pelo qual alis no se estabelece o que se procura, a saber, o direito de cadaEstado). A festa de aco de graas por uma vitria conseguida durante a guerra,os hinos que se cantam ao Senhor dos exrcitos ( boa maneira israelita) contrastamem no menor grau com a ideia moral do Pai dos homens; pois, alm da indiferenaquanto ao modo (que bastante triste) como os povos buscam o seu direito mtuo,acrescentam ainda a alegria de ter aniquilado muitos homens ou a sua felicidade.
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/ Terceiro Artigo definitivo para a Paz Perptua
O direito cosmopolita deve limitar-se s condies da hospita-lidade universal.
Fala-se aqui, como nos artigos anteriores, no de filantropia, masde direito, e hospitalidade significa aqui o direito de um estrangeiro ano ser tratado com hostilidade em virtude da sua vinda ao territrio deoutro. Este pode rejeitar o estrangeiro, se isso puder ocorrer sem danoseu, mas enquanto o estrangeiro se comportar amistosamente no seu lu-gar, o outro no o deve confrontar com hostilidade. No existe nenhumdireito de hspede sobre o qual se possa basear esta pretenso (para talseria preciso um contrato especialmente generoso para dele fazer umhspede por certo tempo), mas um direito de visita, que assiste todosos homens para se apresentarem sociedade, em virtude do direito dapropriedade comum da superfcie da Terra, sobre a qual, enquanto su-perfcie esfrica, os homens no se podem estender at ao infinito, masdevem finalmente suportar-se uns aos outros, pois originariamente nin-gum tem mais direito do que outro a estar num determinado lugar daTerra. Partes inabitveis desta superfcie, o mar e os desertos dividemesta comunidade, mas o barco ou o camelo (o barco do deserto) tornampossvel uma aproximao por cima destas regies sem dono e o usodo direito superfcie para um possvel trfico, direito que pertenceao gnero humano comum. A inospitalidade das costas martimas (porexemplo das costas berberescas), os roubos de barcos nos mares prxi-mos ou a reduo escravatura dos marinheiros que arribam costa, oua inospitalidade dos desertos (dos bedunos rabes) em considerar a suaproximidade s tribos nmadas como um direito a saque-las tudo ,pois, contrrio ao direito natural; mas o direito de hospitalidade, isto, a faculdade dos estrangeiros recm-chegados no se estende almdas condies de possibilidade para intentar um trfico com os antigoshabitantes. Deste modo, partes afastadas do mundo podem entre siestabelecer relaes pacficas, as quais acabaro por se tornar legais e
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pblicas, podendo assim aproximar cada vez mais o gnero humano deuma constituio cosmopolita.
Se, pois, se comparar a conduta inospitaleira dos Estados civilizadosda nossa regio do mundo, sobretudo dos comerciantes, causa assom-bro a injustia que eles revelam na visita a pases e a povos estrangeiros(o que para eles se identifica com a sua conquista). A Amrica, os pa-ses negros, as ilhas das especiarias, o Cabo, etc., eram para eles, na suadescoberta, pases que no pertenciam a ningum, pois os habitantesnada contavam para eles. Nas ndias Orientais (Industo), introduziramtropas estrangeiras sob o pretexto de visarem apenas estabelecimentoscomerciais, mas com as tropas introduziram a opresso dos nativos, ainstigao dos seus diversos Estados a guerras muito amplas, a fome,a rebelio, a perfdia e a ladanha de todos os males que afligem o g-nero humano. A China10 e o Japo (Nipon), que tinham lidado com
10 Para escrever o nome com que este grande reino se chama a si mesmo (a saberChina, no Sina, ou outro som semelhante) pode consultar-se o Alphab. Tib. de Geor-gius, pp. 651/654, sobretudo a nota b. Segundo a observao do Prof. Fischer, dePetersburgo, no tem um nome determinado com que a si mesmo se designa; o nomemais habitual ainda o da palavra Kin, isto , ouro (que os Tibetanos exprimem comSer), pelo que o imperador se chama Rei do ouro (do pas mais magnfico do mundo);esta palavra poderia pronunciar-se nesse reino como Chin, mas pode ter sido pronun-ciada Kin pelos missionrios italianos (por causa da gutural). Daqui se infere queo pas chamado pelos Romanos Pas dos Seres era a China, mas a seda era trazidapara a Europa atravs do Grande Tibete (provavelmente atravs do Pequeno Tibete ede Bucara pela Prsia) o que d lugar a algumas consideraes acerca da antiguidadedeste surpreendente Estado, em comparao com o Industo, no lao com o Tibete e,atravs deste, com o Japo; no entanto, o nome de Sina ou Tschina que lhe deviamdar os vizinhos deste pas no leva a nada. Talvez se possa explicar tambm o an-tiquissmo, se bem que nunca correctamente conhecido, intercmbio da Europa como Tibete, a partir do que nos refere Hesquio, a saber, do grito dos hierofantes pi (Konx Ompax) nos mistrios de Elusis (ver Reise des Jngern Anacarsis, 5a.parte, pp. 447 s.). Pois, segundo o Alphab. Tibet. de Georgius, a palavra Concioasignifica deus, e esta palavra tem uma semelhana muito marcante com a de Konx:Pah-cio (ib. p. 520), que facilmente poderia ser pronunciada pelos gregos como pax ,significa promulgator legis, a divindade repartida por toda a natureza (chamada tam-bm Cencresi, p. 177). Mas Om, que Lacroze traduz por benedictus, bendito, nadamais pode significar na sua aplicao divindade do que bem-aventurado, p. 507.
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semelhantes hspedes, permitiram sabiamente o acesso, mas no a en-trada, no caso da China, e s um acesso limitado a um nico povo euro-peu, os Holandeses, no caso do Japo, aos quais no entanto, como a pri-sioneiros, excluem da comunidade dos nativos. O pior de tudo isto (ou,do ponto de vista de um juiz moral, o melhor) que no esto conten-tes com esta actuao violenta, que todas estas sociedades comerciaisse encontram no ponto da runa iminente, que as ilhas do acar, sededa escravido mais violenta e deliberada, no oferecem nenhum autn-tico benefcio, mas servem apenas directamente um propsito e, claroest, no muito recomendvel, a saber, a formao dos marinheirospara as frotas de guerra, portanto tambm para as guerras na Europa;e tudo isto para potncias que querem fazer muitas coisas por piedadee pretendem considerar-se como eleitas dentro da ortodoxia, enquantobebem a injustia como gua.
Ora, como se avanou tanto no estabelecimento de uma comuni-dade (mais ou menos estreita) entre os povos da Terra que a violaodo direito num lugar da Terra se sente em todos os outros, a ideia deum direito cosmopolita no nenhuma representao fantstica e ex-travagante do direito, mas um complemento necessrio de cdigo noescrito, tanto do direito poltico como do direito das gentes, num di-reito pblico da humanidade em geral e, assim, um complemento dapaz perptua, em cuja contnua aproximao possvel encontrar-se ssob esta condio.
Mas o P. Franz Horatius afirma que, ao interrogar muitas vezes os lamas tibetanossob o que eles entendiam por deus (concioa), obteve sempre a resposta: a reuniode todos os santos (isto , dos bem-aventurados que, atravs do renascimento la-masta, aps muitas migraes por toda a classe de corpos, regressaram finalmente divindade e se tomam Burchane, isto , seres dignos de serem adorados, almas trans-formadas; p. 223). Pelo que a palavra misteriosa Konx Ompax dever significar osupremo ser difundido por todo o mundo (a natureza personificada): santo, pela pala-vra Konx Ompax, bem-aventurado (Om) e sbio (pax); e estas palavras utilizadas nosmistrios gregos significaram o monotesmo dos epoptas em oposio ao politesmodo povo, embora P. Horatius suspeite aqui de um certo atesmo. Mas o modo comoessa misteriosa palavra chegou aos Gregos atravs do Tibete explica-se da maneiraantes indicada e, inversamente, toma provvel um remoto trfico da Europa com aChina atravs do Tibete (talvez ainda antes do trfico com o Industo).
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SUPLEMENTO PRIMEIRO
DA GARANTIA DA PAZ PERPTUA
O que subministra esta garantia to-s a grande artista, a Natu-reza (natura daedala rerum), de cujo curso mecnico transparece comevidncia uma finalidade: atravs da discrdia dos homens, fazer surgira harmonia, mesmo contra a sua vontade. Chama-se, por isso, tambmdestino, enquanto compulso de uma causa necessria dos efeitos se-gundo leis que nos so desconhecidas, e Providncia11 em referncia
11 No mecanismo da natureza, a que o homem (como ser sensvel) pertence,manifesta-se uma forma que j subjaz sua existncia e que no podemos conceberde nenhum outro modo a no ser supondo-lhe um fim de um Autor do mundo, que apredetermina; a esta determinao prvia chamamos providncia (divina) em geral;enquanto est no comeo do mundo, damos-lhe o nome de providncia fundadora[providentia conditrix; semel iussit, semper parent] (Ordenou uma s vez, obede-cem sempre, Agostinho); mas enquanto conserva o curso da natureza, segundo leisuniversais de finalidade, damos-lhe o nome de providncia governante(providentiagubernatrix); em relao aos fins particulares, mas no previsveis pelo homem e scognoscveis a partir do resultado, chamamos-lhe Providncia directora (providentiadirectrix) e, por ltimo, em relao a alguns acontecimentos singulares, enquantofins divinos, no a chamamos providncia, mas disposio (directio extraordinaria).Seria, porm, presuno louca do homem querer conhec-la como tal (na realidade,refere-se a milagres, embora tais acontecimentos no se denominem assim), pois infe-rir de um acontecimento singular um princpio particular da causa eficiente (que esteconhecimento seja um fim e no uma simples consequncia marginal do mecanismonatural a partir de um outro fim que nos totalmente desconhecido) um disparatee uma arrogncia total, por piedosa e humilde que a este respeito a linguagem res-soe. Igualmente, a diviso a Providncia (considerada materialiter) em universale particular, segundo os objectos do mundo a que se refere, falsa e contraditriaem si mesma (porque cuida, por exemplo, da conservao das espcies de criaturase abandona os indivduos ao acaso); chama-se, pois, precisamente universal segundoo ponto de vista de que nenhuma coisa singular dela fica excluda. Provavelmente,
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finalidade que existe no curso do mundo, enquanto sabedoria profundade uma causa mais elevada que tem em vista o fim ltimo objectivo dognero humano e predetermina o devir do mundo, causa essa que nopodemos realmente reconhecer nos artifcios da natureza nem sequerinferir a partir deles, mas (como em toda a relao da forma das coisascom os fins em geral) s podemos e devemos pensar, para assim for-marmos para ns um conceito da sua possibilidade, segundo a analogia
quis classificar-se aqui a Providncia (formaliter considerada), segundo o modo derealizao dos seus propsitos, isto , providncia ordinria (por exemplo a morte eo ressurgimento anual da natureza de hrmonia com o ciclo das estaes) e extraor-dinria (por exemplo o transporte de troncos de rvores s costas geladas, onde elasno podem crescer, por aco das correntes martimas, e sem os quais os habitantesdessas paragens no podiam viver); caso este em que, apesar de podermos explicarmuito bem as causas fsico-mecnicas dos fenmenos (por exemplo, pelo facto de asmargens dos rios dos pases temperados estarem povoadas de rvores que caem aguae so transportados para longe como por uma espcie de corrente do Golfo), apesarde tudo, no devemos descurar tambm a causa teleolgica, que se refere previsode uma Sabedoria que preside natureza. O que deve desaparecer, isso sim, o queconcerne ao conceito, to usado nas escolas, de uma colaborao ou concurso divino(concursus) na produo de um efeito do mundo dos sentidos. Pois, em primeirolugar, contraditrio em si mesmo querer conjugar o que no da mesma natureza[gryphes jungere equis (Atrelar grifos e cavalos)] e completar a prpria causa per-feita das transformaes no mundo com uma providncia especial predeterminante docurso do mundo (pelo que aquela deveria ter sido uma causa deficiente), dizendo, porexemplo, que a seguir a Deus o mdico curou o doente, portanto foi uma ajuda. Comefeito, causa solitaria non juvat [uma causa sozinha no actua]. Deus o autor domdico com todas as suas medicinas e, por isso, se se quiser subir at ao fundamentooriginrio e supremo, teoricamente inconcebvel, deve atribuir-se-lhe todo o efeito.Ou tambm se pode atribuir inteiramente ao mdico, contanto que consideremos esteacontecimento como explicvel segundo a ordem da natureza, na cadeia das causasmundanas. Em segundo lugar, esse modo de pensamento destri tambm todos osprincpios determinados de avaliao de um feito. Mas em sentido prticomoral(que se refere totalmente ao supra-sensvel), o conceito do concursus divino conve-niente e at necessrio; por exemplo na f de que Deus completar a deficincia danossa prpria justia, se a nossa disposio for genuna, atravs de meios para ns in-concebveis, portanto, se nada descurarmos no esforo pelo bem; mas evidente queningum deve intentar explicar a partir daqui uma aco boa (como acontecimentono mundo) o que um pretenso conhecimento terico do supra-sensvel, portantoabsurdo.
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da arte humana: a relao e a consonncia desta causa com o fim que arazo nos. prescreve mediatamente (o fim moral) representar para siuma ideia que , sem dvida, arrebatada no propsito terico, est noentanto bem fundada no plano dogmtico e, segundo a sua realidade,no propsito prtico (por exemplo utilizar o mecanismo da natureza emrelao com o conceito de dever da paz perptua). O uso da palavraNatureza, visto que aqui se trata apenas de teoria (e no de religio), tambm mais apropriado para os limites da razo humana (que sedeve manter, no tocante relao dos efeitos com as suas causas, nosconfins da experincia possvel) e mais modesto do que a expresso deuma providncia para ns cognoscvel, expresso com a qual algumpresunosamente para si prepara as asas de caro, a fim de se aproximardo mistrio do seu desgnio imperscrutvel.
Ora, antes de determinarmos com maior preciso esta garantia, serpreciso examinar o estado que a natureza organizou para as pessoas queagem no seu grande cenrio, estado que toma necessrio, em ltimotermo, a garantia da paz; e em seguida examinar, primeiro, o modocomo ela subministra esta garantia.
A organizao provisria da natureza consiste em que ela 1) pro-videnciou que os homens, em todas as partes do mundo, possam justa-mente a viver, 2) atravs da guerra, levou-os mesmo s regies maisinspitas, para as povoar, 3) tambm por meio da guerra, obrigou-os aentrar em relaes mais ou menos legais. digno de admirao que nosfrios desertos, junto do oceano glacial, cresa apesar de tudo o musgo,que a rena busca debaixo da neve para ela prpria ser a alimentaoou tambm o veculo do ostaco ou samoiedo; ou tambm digno deadmirao que os desertos de areia contem ainda com o camelo, queparece ter sido criado para a sua travessia, para os no deixar inutiliza-dos. Mas mais claramente ainda brilha a finalidade da natureza quandose tem em conta que, nas margens do oceano glacial, alm dos animaiscobertos de peles, as focas, as morsas e as baleias proporcionem aosseus habitantes alimentos com a sua carne e fogo com a sua gordura.A previso da Natureza suscita, porm, a mxima admirao em vir-tude da madeira que ela arrasta flutuando at estas regies sem flora
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(sem que se saiba ao certo de onde vm); sem tal material, eles nopoderiam construir os seus veculos de transporte, nem as suas armasou as suas cabanas; tm assim j bastante que fazer com a luta contraos animais, para viverem em paz entre si. Mas o que os levou atali provavelmente no foi outra coisa seno a guerra. O primeiro ins-trumento de guerra que, entre todos os animais, o homem aprendeu adomar e a domesticar, na poca do povoamento da Terra, foi o cavalo(pois o elefante pertence a uma poca posterior, a saber, poca doluxo de Estados j estabelecidos); a arte de cultivar certas classes deervas, chamadas cereais, cuja primitiva natureza j no conhecemos, eigualmente a reproduo e o melhoramento das variedades de frutasmediante transplante e enxerto (na Europa, talvez s de dois gneros,da macieira e da pereira) s podiam aparecer em Estados j estabeleci-dos, onde existisse uma propriedade fundiria garantida, depois que oshomens, anteriormente numa liberdade sem leis, foram compelidos davida de caa12 , pesca e pastorcia para a agricultura e se descobriu osal e o ferro, talvez os primeiros artigos mais amplamente procuradosno trfico comercial dos diferentes povos, graas ao qual estabelece-ram entre si uma relao pacfica e entraram assim igualmente com ospovos mais afastados numa relao de compreenso, de comunidade ede paz.
Visto que a natureza providenciou que os homens possam viver so-bre a Terra, quis igualmente e de modo desptico que eles tenham deviver, inclusive contra a sua inclinao, e sem que este dever pressu-ponha ao mesmo tempo um conceito de dever que a vincule mediante
12 Entre todos os modos de vida, a caa decerto o mais oposto a uma constituioestabelecida, porque as famlias foradas a isolar-se depressa se tomam estranhas en-tre si e assim, dispersas por ingentes bosques, tambm depressa se tornam inimigos,j que cada uma precisa de muito espao para a aquisio do alimento e do vesturio. A proibio de No de comer sangue, 1 Moiss, IX, 46 (que, muitas vezes repe-tida, foi depois transformada pelos judeo-cristos em condio para os novos cristosvindos do paganismo, se bem que com outro sentido, Actos dos Apstolos, XV, 20,XXI, 25), no parece inicialmente ter sido outra coisa a no ser a proibio de se de-dicar caa; porque nesta deve ocorrer com frequncia comer carne crua e, proibindoesta ltima, tambm se interdiz ao mesmo tempo aquela.
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uma lei moral; a natureza escolheu a guerra para obter este fim. Ve-mos, por um lado, povos que manifestam na unidade da sua lngua aunidade da sua origem, como os samoiedos no oceano glacial, e ve-mos, por outro, um povo com uma lngua semelhante nas montanhasde Altai, separados entre si por duzentas milhas; entre eles intrometeu-se pela fora um outro povo, o mongol, povo de ginetes e, portantoguerreiro, e dispersou assim uma parte daquela raa para longe desta,para as inspitas regies geladas, para onde certamente no se teriamestendido por inclinao prpria13
. O mesmo se passa com os finlandeses na regio setentrional daEuropa, os chamados Lapes, agora to afastados dos hngaros, mascom eles aparentados pela lngua, separados entretanto pela irrupodos povos gticos e srmatas; e que outra coisa pode ter impelido osesquims (talvez os aventureiros europeus mais antigos, uma raa intei-ramente diversa de todas as americanas) para o Norte, e os Fueguinos,no sul da Amrica, para a Terra do Fogo seno a guerra, de que a na-tureza se serve como de um meio para povoar a Terra? Mas a guerrano precisa de um motivo particular, pois parece estar enxertada na na-tureza humana e, aparentemente, impe-se at como algo de nobre, aque o homem incitado pelo impulso da honra sem motivos egos-tas; pelo que a coragem guerreira se considera como dotada de umgrande valor imediato (tanto pelos selvagens americanos como peloseuropeus, na poca da cavalaria) no s quando h guerra (o que sen-sato), mas tambm se considera de grande valor que haja guerra e, comfrequncia, esta iniciou-se para simplesmente mostrar aquela coragem;por isso, pe-se na guerra em si mesma uma dignidade intrnseca e detal modo que alguns filsofos chegam a fazer-lhe um panegrico como
13 Poderia perguntar-se: se a natureza quis que estas costas geladas no permane-am desabitadas, que ser dos seus habitantes quando no lhes chegar mais madeira(como de esperar)? Devemos ento crer que, com o progresso da cultura, os ncolasdas regies temperadas aproveitem melhor a madeira que cresce nas margens dos seusrios e j no cair s torrentes, e assim no ser tambm levada ao mar. Respondo:Os habitantes do Obi, do Jenisei, do Lena, etc., fornec-las-o atravs do comrcio etrocando por ela os produtos do reino animal em que o mar nas costas polares torico, quando a natureza os tiver primeiro obrigado paz entre eles.
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se fora um enobrecimento da humanidade, esquecendo-se do mote da-quele grego: A guerra m, porque faz mais gente m do que a queleva. At aqui a questo do que a natureza faz para o seu prpriofim, considerando o gnero humano como uma espcie animal.
Surge agora a questo que concerne ao essencial do propsito dapaz perptua: O que a natureza faz neste desgnio em relao ao fimque a razo apresenta ao homem como dever, portanto para a promooda sua inteno moral, e como a natureza fornece a garantia de queaquilo que o homem deveria fazer segundo as leis da liberdade, masque no faz, fique assegurado de que o far, sem que a coaco danatureza cause dano a esta liberdade e, decerto, de harmonia com astrs relaes do direito pblico, o direito poltico, o direito das gentese o direito cosmopolita. Quando digo que a natureza quer que istoou aquilo ocorra no significa que ela nos imponha um dever de o fazer(pois tal s o pode fazer a razo prtica isenta de coaco), mas que elaprpria o faz, quer queiramos quer no (fata volentem ducunt, nolentemtrahunt [o destino guia o que voluntariamente se sujeita, arrasta aqueleque se recusa]).
1. Mesmo se um povo no fosse compelido por discrdias internas asubmeter-se coaco de leis pblicas, f-lo-ia contudo a guerra a par-tir de fora, pois, segundo a disposio natural antes mencionada, todoo povo encontra diante de si outro povo que se impe como vizinhoe contra o qual ele deve constituir-se internamente num Estado paraassim, como potncia, estar armado contra aquele. Ora a constituiorepublicana a nica perfeitamente adequada ao direito dos homens,mas tambm a mais difcil de estabelecer, e mais ainda de conservar, ea tal ponto que muitos afirmam que deve ser um Estado de anjos porqueos homens, com as suas tendncias egostas, no esto capacitados parauma constituio de to sublime forma. Mas vem ento a natureza emajuda da vontade geral, fundada na razo, respeitada mas impotente naprtica, e vem precisamente atravs das tendncias egostas, de modoque dependa s de uma boa organizao do Estado (a qual efectiva-mente reside no poder do homem) a orientao das suas foras, a fim
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de que umas detenham as outras nos seus efeitos destruidores ou os eli-minem: o resultado para a razo como se essas tendncias no exis-tissem e, assim, o homem est obrigado a ser um bom cidado, emborano esteja obrigado a ser moralmente um homem bom. O problemado estabelecimento do Estado, por spero que soe, tem soluo, inclu-sive para um povo de demnios (contanto que tenham entendimento), eformula-se assim: Ordenar uma multido de seres racionais que, paraa sua conservao, exigem conjuntamente leis universais, s quais, po-rm, cada um inclinado no seu interior a eximir-se, e estabelecer asua constituio de um modo tal que estes, embora opondo-se uns aosoutros nas suas disposies privadas, se contm reciprocamente, peloque o resultado da sua conduta pblica o mesmo que se no tivessemessas disposies ms. Um problema assim deve ter soluo. No setrata, de facto, do aperfeioamento moral do homem, mas apenas domecanismo da natureza; a tarefa consiste em saber como que no ho-mem tal mecanismo se pode utilizar a fim de coordenar o antagonismodas suas disposies pacficas no seio de um povo e de modo tal que seobriguem mutuamente a submeter-se a leis coactivas, suscitando assimo estado de paz em que as leis tm fora. Isto tambm se pode obser-var nos Estados existentes, organizados ainda muito imperfeitamente,pois, na sua conduta externa, aproximam-se muito do que prescreve aideia de direito, embora, claro est, a causa de semelhante comporta-mento no seja o cerne da moralidade (como tambm no causa daboa constituio do Estado, antes pelo contrrio, desta ltima que sedeve esperar, acima de tudo, a boa formao moral de um povo); porconseguinte, o mecanismo da natureza atravs das inclinaes egostas,que se opem entre si de modo natural tambm externamente, pode serutilizado pela razo como um meio de criar espao para o seu prpriofim, a regulao jurdica, e assim tambm, tanto quanto depende doprprio Estado, de fomentar e garantir a paz interna e externa. Isto sig-nifica, pois, que a natureza quer a todo o custo que o direito conserve,em ltimo termo, a supremacia. O que no se faz, aqui e agora, pornegligncia far-se- finalmente por si mesmo, embora com muito inc-
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modo. Se a cana se dobrar demasiado quebra; e quem demasiado quernada quer (Bouterweck).
2. A ideia do direito das gentes pressupe a separao de muitosEstados vizinhos, entre si independentes; e, embora semelhante situa-o seja em si j uma situao de guerra (se uma associao federativados mesmos no evitar a ruptura das hostilidades), todavia melhor,segundo a ideia da razo, do que a sua fuso por obra de uma potnciaque controlasse os outros e se transformasse numa monarquia univer-sal; porque as leis, com o aumento do mbito de governao, perdemprogressivamente a sua fora, e tambm porque um despotismo semalma acaba por cair na anarquia, depois de ter erradicado os germesdo bem. No entanto, o anseio de todo o Estado (ou da sua autoridadesuprema) estabelecer-se numa situao de paz duradoira de modo adominar, se possvel, o mundo inteiro. Mas a natureza quer outra coisa. Serve-se de dois meios para evitar a mescla dos povos e os separar: adiferena das lnguas e das religies14 ; esta diferena traz, sem dvida,consigo a inclinao para o dio mtuo e o pretexto para a guerra, mascom o incremento da cultura e a gradual aproximao dos homens deuma maior consonncia nos princpios leva conivncia na paz, a qualse gera e garante no atravs do enfraquecimento de todas as foras,como acontece no despotismo (cemitrio da liberdade), mas medianteo seu equilbrio, na mais viva emulao.
3. Assim como a natureza separa sabiamente os povos, que a von-tade de cada Estado gostaria de unir com astcia ou violncia, baseando-se mesmo no direito das gentes, assim une tambm, por outro lado, po-vos que o conceito do direito cosmopolita no teria protegido contra aviolncia e a guerra, mediante o seu prprio proveito recproco. o es-
14 Diversidade das religies: expresso estranha! Tal como se tambm se falassede diferentes morais. Pode, sem dvida, haver diferentes tipos de f que no radicamna religio, mas na histria dos meios utilizados para o seu fomento, pertencentes aocampo da erudio; e pode igualmente haver diferentes livros religiosos (Zendavesta,Veda, Coro, etc.); mas s pode existir uma nica religio vlida para todos os ho-mens e em todos os tempos. Por conseguinte, as crenas apenas contm o veculo dareligio que acidental e pode variar segundo os tempos e os lugares.
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prito comercial que no pode coexistir com a guerra e que, mais cedoou mais tarde, se apodera de todos os povos. Porque entre todos ospoderes (meios) subordinados ao poder do Estado, o poder do dinheiro decerto o mais fiel, os Estados vem-se forados (no certamente pormotivos da moralidade) a fomentar a nobre paz e a afastar a guerra me-diante negociaes, sempre que ela ameaa rebentar em qualquer partedo mundo, como se estivessem por isso numa aliana estvel, pois asgrandes coligaes para a guerra, por sua natureza prpria, s muito ra-ramente podem ocorrer e, ainda com muito menos frequncia, ter xito. Deste modo, a natureza garante a paz perptua atravs do mecanismodas inclinaes humanas; decerto com uma segurana que no sufici-ente para vaticinar (teoricamente) o futuro, mas que chega, no entanto,no propsito prtico, e transforma num dever o trabalhar em vista destefim (no simplesmente quimrico).
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SUPLEMENTO SEGUNDO
ARTIGO SECRETO PARA A PAZ PERPTUA
Um artigo secreto nas negociaes do direito pblico objectivamente,isto , considerado segundo o seu contedo, uma contradio; mas podemuito bem ter em si um segredo, subjectivamente, isto , avaliado se-gundo a qualidade da pessoa que o dita, por esta achar inconvenientepara a sua dignidade manfestar-se publicamente como seu autor.
O nico artigo desta espcie est contido na proposio: As m-ximas dos filsofos sobre as condies de possibilidade da paz pblicadevem ser tomadas em considerao pelos Estados preparados para aguerra.
Parece, porm, minimizar a autoridade legisladora de um Estado,ao qual naturalmente se deve atribuir a mxima sabedoria, procurarconselho nos seus sbditos (os filsofos) sobre os princpios do seucomportamento em relao aos outros Estados; no entanto, muitoaconselhvel faz-lo. O Estado convidar, pois, tacitamente os filso-fos (fazendo disso, portanto, um segredo), o que significa tanto comodeix-los falar livre e publicamente sobre as mximas gerais da con-duo da guerra e do estabelecimento da paz (pois eles faro isso porsi mesmos, sempre que no lhes for proibido); e a coincidncia dosEstados entre si acerca deste ponto no precisa tambm de nenhumarazo especial com este propsito, mas reside j na obrigao mediantea razo humana universal (moral e legisladora). No se pretendecom isto dizer que o Estado deve conceder a prioridade aos princpiosdo filsofo sobre as determinaes do jurista (representante do poderpoltico), mas simplesmente que se lhe dem ouvidos. O jurista, queadoptou como smbolo a balana do direito e tambm a espada da jus-tia, serve-se comummente desta ltima no s para apartar da balana
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toda a influncia estranha, mas tambm para a pr na balana, quandoum dos pratos no se quer baixar (vae victis [Ai dos vencidos!]); ojurista que no ao mesmo tempo filsofo (mesmo segundo a mora-lidade), sente a tal respeito a maior tentao, porque prprio do seuofcio aplicar apenas as leis existentes, mas no investigar se estas ne-cessitam de um melhoramento, e considera como superior este nvel dasua faculdade que, efectivamente, inferior, por estar acompanhado dopoder (como tambm acontece nos outros dois casos). O poder dafilosofia est num nvel muito inferior por baixo deste poder associado.Diz-se assim, por exemplo, que a filosofia a serva da teologia (e omesmo se afirma acerca das outras duas). Mas no se v muito bemse ela vai frente da sua digna senhora com a tocha, ou se segue atrspegando na cauda.
No de esperar nem tambm de desejar que os reis filosofem ouque os filsofos se tornem reis, porque a posse do poder prejudica ine-vitavelmente o livre juzo da razo. imprescindvel, porm, para am-bos que os reis ou os povos soberanos (que se governam a si mesmossegundo as leis de igualdade) no deixem desaparecer ou emudecer aclasse dos filsofos, mas os deixem falar publicamente para a elucida-o dos seus assuntos, pois a classe dos filsofos, incapaz de formarbandos e alianas de clube pela sua prpria natureza, no suspeita dadeformao de uma propaganda.
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APNDICE
I
SOBRE A DISCREPNCIAENTRE A MORAL E A POLTICAA RESPEITO DA PAZ PERPTUA
A moral j em si mesma uma prtica em sentido objectivo, comoconjunto de leis incondicionalmente obrigatrias, segundo as quais de-vemos agir, e uma incoerncia manifesta, aps se ter atribudo a au-toridade a este conceito de dever, querer ainda dizer que no se podecumprir. Pois ento este conceito sai por si mesmo da moral (ultraposse nemo obligatur [ningum est obrigado ao que excede o seupoder]): logo, no pode existir nenhum conflito entre a poltica, en-quanto teoria do direito aplicado, e a moral, como teoria do direito,mas teortica (no pode, pois, haver nenhum conflito entre a prtica e ateoria): deveria ento entender-se pela ltima uma teoria geral da pru-dncia (Klugheitslehre), isto , uma teoria das mximas para escolheros meios mais adequados aos seus propsitos, avaliados segundo a suavantagem, isto , negar que existe uma moral em geral.
A poltica diz: Sede prudentes como a serpente; a moral acres-centa (como condio limitativa): e sem falsidade como as pombas.Se as duas coisas no podem coexistir num preceito, ento h real-mente um conflito entre a poltica e a moral; mas se ambas devem unir-se, ento absurdo o conceito do contrrio e nem sequer se pode prcomo tarefa a questo de como eliminar semelhante conflito. Emboraa proposio a honradez a melhor poltica contenha uma teoriaque, infelizmente muitas vezes, a prtica contradiz, a proposio, igual-mente terica a honradez melhor que toda a poltica - infinitamenteacima de toda a objeco, a condio ineludvel da ltima. O deus-trmino da moral no recua perante Jpiter (o deus-trmino do poder),
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pois este encontra-se ainda sob o destino, isto , a razo no est sufici-entemente elucidada para abarcar a srie das causas antecedentes que,segundo o mecanismo da natureza, permitam com segurana anunciarpreviamente o resultado bom ou mau das aces e omisses dos ho-mens (embora permitam aguard-lo de harmonia com o desejo). Masilumina-nos em toda a parte com suficiente claridade para sabermos oque temos de fazer, a fim de permanecermos na senda do dever (se-gundo as regras da sabedoria) e alcanarmos o fim ltimo.
Ora, o prtico (para quem a moral simples teoria) funda a sua des-consolada negao da nossa benvola esperana (mesmo admitindo odever e o poder) precisamente em que, a partir da natureza do homem,pretende ver com antecedncia que este nunca querer o que se exigepara realizar o fim que leva paz perptua. Sem dvida, a vontadede todos os homens singulares de viverem numa constituio legal se-gundo os princpios da liberdade (a unidade distributiva da vontade detodos) no suficiente para tal fim, mas exige-se ainda que todos emconjunto queiram esta situao (a unidade colectiva das vontades uni-das); esta soluo de um difcil problema requer-se ainda para que seconstitua o todo da sociedade civil, e visto que diversidade do quererparticular de todos se deve acrescentar ainda uma sua causa unificadorade modo a suscitar uma vontade comum, o que nenhum deles consegue,no se deve contar, na execuo daquela ideia (na prtica) com nenhumoutro comeo do estado jurdico a no ser o comeo pela fora, sobrecuja coaco se fundar ulteriormente o direito pblico o que per-mite decerto esperar j antecipadamente grandes desvios daquela ideia(da teoria) na experincia real (em virtude de aqui pouco se poder terem conta a disposio moral do legislador de deixar, aps uma reunioefectiva da multido inculta de um povo, que este pela sua vontadecomum realize uma constituio legal).
Quer isto ento dizer: quem alguma vez tem nas mos o poder nodeixar que o povo lhe prescreva leis. Um Estado, uma vez senhor dasituao de no se sujeitar a nenhuma lei exterior, no admitir, no to-cante ao modo como deve buscar o seu direito contra outros Estados,tornar-se dependente do seu tribunal, e mesmo uma parte do mundo,
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quando se sente superior a outra que, de resto, no se atravessa no seucaminho, no deixar sem uso o meio de fortalecer o seu poder, medi-ante a rapina ou at a dominao sobre a mesma; e assim se desvane-cem ento todos os planos da teoria acerca do direito pblico, do direitodas gentes e do direito cosmopolita, em ideais impraticveis e vazios;em contrapartida, uma prtica fundada em princpios empricos da na-tureza humana, que no considera demasiado baixo tirar ensinamentospara as suas mximas do modo como as coisas ocorrem no mundo, anica que poderia esperar encontrar um fundamento seguro para o seuedifcio da prudncia poltica.
Certamente, quando no existe liberdade nem lei moral nela fun-dada, mas tudo o que acontece ou pode acontecer simples meca-nismo da natureza, ento a poltica (enquanto arte de o utilizar parao governo dos homens) constitui toda a sabedoria prtica, e o conceitode direito um pensamento sem contedo. Se, porm, se considerarinevitavelmente necessrio associar tal pensamento poltica, e maisainda elev-lo condio limitante da ltima, dever ento admitir-sea possibilidade de unir as duas. Posso pensar, sem dvida, um pol-tico moral, isto , um homem que assume os princpios da prudnciapoltica de um modo tal que eles possam coexistir com a moral, masno posso pensar um moralista poltico, que forja uma moral til sconvenincias do homem de Estado.
O poltico moral formular para si este princpio: se alguma vezna constituio de um Estado ou nas relaes entre Estados se encon-trarem defeitos que no foi possvel impedir, um dever, sobretudopara os chefes de Estado, ponderar como eles se poderiam, logo quepossvel, corrigir e coadunar-se com o direito natural, tal como ele seoferece aos nossos olhos como modelo na ideia da razo, mesmo quetenha de custar o sacrifcio do amor-prprio. Ora, visto que a rupturade uma unio estatal ou de uma coligao cosmopolita, antes de se dis-por de uma constituio melhor que a substitua, contrria a toda aprudncia poltica conforme neste ponto com a moral, seria absurdoexigir que aquele defeito fosse erradicado imediatamente e com vio-lncia; o que se pode exigir ao detentor do poder que, pelo menos,
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tenha presente no seu ntimo a mxima da necessidade de semelhantemodificao para se manter numa constante aproximao ao fim (a me-lhor constituio segundo as leis jurdicas). Um Estado pode j tam-bm governar-se como uma repblica embora ainda possua, segundoa constituio vigente, um poder soberano desptico, at que o povose torne progressivamente capaz de receber a influncia da pura ideiada autoridade da lei (como se esta possusse fora fsica) e, por con-seguinte, se encontre preparado para a si mesmo dar uma legislaoprpria (que originariamente se funda no direito). Se tambm pela vi-olncia de uma revoluo, gerada por uma m constituio, se tivesseconseguido de um modo ilegtimo uma constituio mais conforme lei, no se deveria j considerar lcito reconduzir o povo novamente antiga constituio, embora durante a vigncia desta quem tenha per-turbado a ordem com violncia ou astcia ficasse justamente submetidos sanes do rebelde. Mas, no tocante s relaes exteriores dos Es-tados, no se pode exigir a um Estado que tenha de renunciar suaconstituio, ainda que desptica (que , porm, a mais forte em re-lao aos inimigos exteriores), enquanto corre o perigo de ser imedi-atamente devorado por outros Estados; por isso, com essa finalidadedeve permitir-se tambm o adiamento da execuo at melhor oportu-nidade15 .
Pode, pois, acontecer sempre que os moralistas despticos (que fa-lham na execuo) choquem de diferentes maneiras contra a prudn-cia poltica (atravs de medidas tomadas ou recomendadas pressa);assim, nesta sua infraco contra a natureza, a experincia que os
15 So leis permissivas da razo conservar a situao de um direito pblico, viciadopela injustia, at por si mesma estar madura para uma transformao plena ou seaproximar da sua maturao por meios pacficos; pois qualquer constituio jurdica,embora s em grau mnimo seja conforme ao direito, melhor do que nenhuma; umareforma precipitada depararia com o seu ltimo destino (a anarquia). A sabedoriapoltica, no estado em que as coisas agora esto, converter num dever a realizao dereformas adequadas ao ideal do direito pblico: utilizar, porm, as revolues, ondea natureza por si mesma as suscita, no para desculpar uma opresso ainda maior, mascomo apelo da natureza a instaurar, por meio de reformas profundas, uma constituiolegal fundada nos princpios da liberdade, como a nica constituio permanente.
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deve levar, a pouco e pouco, para uma senda melhor. Pelo contrrio,os polticos moralizantes, mediante a desculpa de princpios polticoscontrrios ao direito sob o pretexto de uma natureza humana incapazdo bem, segundo a ideia que a razo lhe prescreve, tornam impossvel,tanto quanto deles depende, o melhoramento e perpetuam a violaodo direito.
Em vez da prtica, de que estes astutos polticos se ufanam, lidamcom prticas, porque s pensam em adular o poder agora dominante(para no perderem a sua vantagem particular), abandonando o povo e,se possvel, o mundo inteiro, maneiira de verdadeiros juristas quandosobem poltica (juristas de ofcio, no de legislao). Como no negcio seu usar de subtilezas a propsito da legislao, mas aplicaros preceitos actuais do Landrecht, toda a constituio legal agora exis-tente e, se esta for modificada por uma instncia superior, a que se seguedeve para eles ser sempre a melhor, pois assim tudo se encontra na suaconveniente ordem mecnica. Mas se esta habilidade para se adaptar atodas as circunstncias lhes inspirar a iluso de tambm poderem julgaros princpios de uma constituio poltica em geral, segundo os concei-tos do direito (portanto a priori, e no empiricamente); se assumiremares de conhecer os homens (o que decerto de esperar, pois tm delidar com muitos) sem todavia conhecer o homem e o que dele se podefazer (para isso exige-se o ponto de vista superior da observao antro-polgica), e munidos destes conceitos se acercarem do direito polticoe do direito das gentes, tal como a razo o prescreve, s podero entofazer essa transio com esprito de chicana, pois seguem o seu proce-dimento habitual (o de um mecanismo que actua segundo leis coactivasdespoticamente dadas), mesmo onde os conceitos da razo querem ape-nas fundar a coaco legal segundo os princpios da liberdade, coacopor meio da qual apenas possvel uma constituio poltica conformeao direito. Eis um problema que o pretenso prtico, passando por altoaquela ideia, julga poder resolver empiricamente a partir da experin-cia do modo como foram institudas as constituies vigentes at aomomento, na sua maior parte, porm, contrrias ao direito. As mxi-
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mas de que se serve (embora, sem dvida, no as formule em voz alta)desembocam, mais ou menos, nas seguintes mximas sofistas.
1. Fac et excusa [Actua e justifica-te.] Aproveita a ocasio favor-vel para arbitrariamente entrares na posse (ou de um direito do Estadosobre o seu povo ou sobre outro povo vizinho); a justificao ser muitomais fcil e mais elegante depois do facto, e pode dissimular-se a vio-lncia (sobretudo no primeiro caso, em que o poder supremo no interior tambm a autoridade legisladora a que se deve obedecer, sem usar desubtilezas a seu respeito), do que se antes se quisesse reflectir sobremotivos convincentes e esperar ainda as objeces. Esta audcia con-fere mesmo uma certa aparncia de convico interior legitimidadedo acto e o deus bonus eventus [acontecimento favorvel] , depois,o melhor advogado.
2. Si fecisti nega [Se fizeste algo, nega]. O que tu prprio per-petraste, por exemplo, para levar o teu povo ao desespero e assim revolta, nega que seja culpa tua; afirma, pelo contrrio, que a culpa re-side na obstinao do sbdito ou, se te apoderas de um povo vizinho,a culpa da natureza do homem, o qual, se no se antecipa ao outrocom violncia, pode estar certo de que ser este a antecipar-se-lhe e asubmet-lo ao seu poder.
3. Divide et impera [Cria divises e vencers]. Isto , se no teupovo existem certas personalidades privilegiadas que simplesmente teescolheram como seu chefe supremo (primus inter pares) desune-as eisola-as do povo; fica ento ao lado deste ltimo sob a falsa preten-so de maior liberdade e assim tudo depender da tua vontade absolutaou, se se trata de Estados exteriores, a criao da discrdia entre eles um meio bastante seguro de os submeteres a ti um aps outro, sob aaparncia de apoiar o mais dbil.
Com estas mximas polticas ningum decerto se engana, pois jso todas universalmente conhecidas; tambm no o caso de delasse envergonhar, como se a injustia brilhasse com demasiada evidnciadiante dos olhos. Com efeito, porque as grandes potncias nunca se en-vergonham do juzo da multido comum, mas apenas se envergonham
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umas diante das outras, no tocante queles princpios no a revela-o pblica, mas apenas o fracasso dos mesmos que as pode levar vergonha (pois, quanto moralidade das mximas, todas elas esto deacordo), pelo que lhes resta sempre a honra poltica, com a qual podemcontar com toda a segurana, a saber, a honra do engrandecimento doseu poder, seja qual for o caminho para se poder alcanar16.
De todas estas sinuosidades de uma teoria imoral da prudncia parasuscitar o estado de paz entre os homens, a partir do estado naturalde guerra, depreende-se o seguinte: os homens no podem subtrair-seao conceito de direito nem nas suas relaes privadas, nem nas pbli-cas, e no se atrevem a fundar a poltica abertamente s nas manobrasda astcia, portanto a recusar toda a obedincia ao conceito de um di-reito pblico (o que sobretudo surpreendente na obedincia ao direitodas gentes); tributam-lhe, pelo contrrio, em si mesmo todas as honras
16 Embora se possa duvidar de uma certa maldade radicada na natureza dos homensque convivem num Estado e, em vez dela, se possa com alguma aparncia aduzir acarncia de uma cultura ainda no suficientemente desenvolvida (a barbrie) comocausa das manifestaes do seu modo de pensamento contrrias ao direito, contudo,nas relaes externas dos Estados entre si essa maldade manifesta-se de um modopatente e incontestvel. No seio de cada Estado, encontra-se encoberta pela coacodas leis civis, pois a tendncia dos cidados para a violncia recproca activamenteinibida por um poder maior, a saber, o do governo, e assim no s fornece ao conjuntoum verniz moral (causae non causae), mas tambm em virtude de impedir a erupode tendncias contrrias lei facilita muito o desenvolvimento da disposio moralao respeito pelo direito. Com efeito; cada um cr por si mesmo que considerariasagrado o conceito de direito e o acataria com fidelidade, se pudesse esperar o mesmode todos os outros o que, em parte, o governo lhe garante; deu-se, pois, assim umgrande passo para a moralidade (se bem que ainda no um passo moral), ao aderir-sea este conceito de dever por si mesmo, sem tomar em conta a reciprocidade. Masvisto que cada um na sua boa opinio acerca de si prprio pressupe, no entanto, umam disposio em todos os outros, o juzo que mutuamente tm de si mesmos quetodos, no tocante realidade, pouco valem (pode ficar sem explicao a origem detal juzo, j que no possvel culpar a natureza do homem como um ser livre). Mas,dado que o respeito pelo conceito de direito, a que o homem no se pode subtrair,sanciona do modo mais solene a teoria da sua capacidade para se lhe adequar, cadaum v ento que, da sua parte, deveria agir em conformidade com o direito, seja qualfor o modo como os outros o queiram observar.
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devidas, embora devam tambm inventar centenas de desculpas e es-capatrias para o iludir na prtica e atribuir falsamente ao poder astutoa autoridade de ser a origem e o vnculo de todo o direito. Para prtermo a esses sofismas (embora no injustia por meio deles dissimu-lada) e levar os falsos representantes dos poderosos da terra a confessarque no falam em prol do direito, mas da fora, do qual tomam o tomcomo se eles prprios tivessem aqui algo que mandar, ser bom reve-lar a iluso com que algum se engana a si e aos outros, descobrir emostrar o supremo princpio, de que promana a inteno da paz perp-tua: que todo o mal que se lhe atravessa no caminho provm de que omoralista poltico comea no ponto em que justamente o poltico moralacaba e, ao subordinar assim os princpios aos fins (isto , ao pr os ca-valos atrs da carroa), torna vo o seu propsito de conciliar a polticacom a moral.
Para harmonizar a filosofia prtica consigo mesma necessrio, emprimeiro lugar, resolver a questo de se, nos problemas da razo pr-tica, se deve tomar como ponto de partida o princpio material dela,o fim (como objecto do arbtrio), ou antes o princpio formal, isto ,o princpio (fundado apenas sobre a liberdade na relao exterior) quediz: age de tal modo que possas querer que a tua mxima se torne umalei universal (seja qual for o fim que ele queira).
Sem dvida alguma, este ltimo princpio deve ir frente, pois tem,como princpio de direito, uma necessidade incondicionada; o primeiroprincpio, pelo contrrio, s necessitante sob o pressuposto das con-dies empricas do fim proposto, a saber, da sua realizao, e se estefim (por exemplo a paz perptua) fosse tambm um dever deveria eleprprio deduzir-se do princpio formal das mximas para a aco exte-rior. Ora, o primeiro princpio, o do moralista poltico (o problemado direito poltico, do direito das gentes, do direito cosmopolita), um simples problema tcnico (problema tecnicum), ao passo que o se-gundo como princpio do poltico moralista, para o qual um problemamoral (problema morale), diametralmente diverso do outro no proce-dimento para suscitar a paz perptua, que se deseja agora no s como
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um bem fsico, mas tambm como um estado nascido do. reconheci-mento do dever.
Para a soluo do primeiro, isto , do problema da astcia poltica,requere-se um grande conhecimento da natureza para utilizar o seu me-canismo a favor do fim pensado e, no entanto, todo este conhecimento incerto quanto ao seu resultado, no tocante paz perptua, quer setome ora uma ora outra das trs divises do direito pblico. incertose o povo no interior e, claro est, por muito tempo, se poderia man-ter melhor na obedincia e, ao mesmo tempo, no florescimento pelorigor ou graas ao chamariz da vaidade, ou pelo poder supremo de umnico indivduo, ou atravs da unio de vrios chefes, talvez tambms mediante uma nobreza ou pelo poder do povo. Na histria, h exem-plos do contrrio de todos os tipos de governo (excepto o republicanoautntico, que s pode ser pensado por um poltico moral). Maisincerto ainda um direito das gentes presumivelmente erigido sobreestatutos de planos ministeriais, um direito que na realidade apenasuma palavra sem contedo e se baseia em contratos que encerram, jno prprio acto da sua concluso, a reserva secreta da sua transgres-so. Pelo contrrio, a soluo do segundo problema, o da sabedoriapoltica, impe-se, por assim dizer, por si mesma, clara para toda agente e faz de todo o artifcio uma vergonha e vai directamente ao fim;recordando porm a prudncia para no puxar o fim com violncia ecom precipitao, mas se aproximar dele incessantemente, segundo acaracterstica das circunstncias favorveis.
Significa isto ento: Aspirai, antes de mais, ao reino da razo puraprtica e sua justia e o vosso fim (o benefcio da paz perptua) vosser dado por si mesmo. Pois a moral tem em si a peculiaridade, edecerto no tocante aos seus princpios do direito pblico (portanto emrelao a uma poltica cognoscvel a prior), de que quanto menos fazdepender o comportamento acerca do fim proposto, da vantagem in-tentada, seja ela fsica ou moral, tanto mais com ele se torna em geralconsonante. Isto sucede porque precisamente a vontade geral dada apriori (num povo ou na relao de vrios povos entre si) a nica quedetermina o que de direito entre os homens; esta unio da