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Livro psique negritude

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5 Elementos - Instituto de Educação e Pesquisa AmbientalAção Educativa - Assessoria Pesquisa e InformaçãoANDI - Agência de Notícias dos Direitos da InfânciaAshoka - Empreendedores SociaisCedac - Centro de Educação e Documentação para Ação ComunitáriaCENPEC - Centro de Estudos e Pesquisas em Educação, Cultura e Ação ComunitáriaConectas - Direitos HumanosFundação Abrinq pelos Direitos da Criança e do AdolescenteImprensa Oficial do Estado de São PauloInstituto KuanzaISA - Instituto SocioambientalMidiativa - Centro Brasileiro de Mídia para Crianças eAdolescentes

Conselho Editorial

Comitê Editorial Antonio Eleilson Leite - Ação EducativaAmabile Mansutti - CENPECDenise Conselheiro - ConectasFrançoise Otondo - AshokaHubert Alquéres - Imprensa OficialLiegen Clemmyl Rodrigues - Imprensa OficialLuiz Alvaro Salles Aguiar de Menezes - Imprensa OficialMaria Angela Leal Rudge - CENPECMaria de Fátima Assumpção - CedacMaria Inês Zanchetta - ISAMonica Pilz Borba - 5 ElementosRosane da Silva Borges - Instituto KuanzaVera Lucia Wey - Imprensa Oficial

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OS EFEITOS PSICOSSOCIAISDO RACISMO

“O que havia de mais difícil nas nações antigas era modificar a lei;

nas modernas, é modificar os costumes e,

para nós, a dificuldade real começa onde a antiguidade

a via terminar... A lei pode destruir a servidão;

mas...(como) fazer desaparecer as suas marcas (?).”

Aléxis de Tocqueville (1805-1859) A Democracia na América.

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Diretor-presidente

Diretor Industrial Diretor Financeiro

Diretora de Gestão de Negócios

Hubert Alquéres

Teiji TomiokaClodoaldo PelissioniLucia Maria Dal Medico

INSTITUTO AMMA PSIQUE E NEGRITUDE

Diretora-presidenteDiretora Administrativa

Diretora Financeira

Maria Lúcia da SilvaMaria de Lourdes Araújo AlmudiFabiane da Silva Reginaldo

IMPRENSA OFICIAL DO ESTADO DE SÃO PAULO

Governador José Serra

GOVERNO DO ESTADODE SÃO PAULO

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OS EFEITOS PSICOSSOCIAISDO RACISMO

São Paulo, 2008

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SUMÁRIO09 PALAVRAS INICIAIS

12 APRESENTAÇÃO INSTITUCIONAL

14 POR QUE DISCUTIR OS EFEITOS PSICOSSOCIAIS DO RACISMO?

16 A FORMAÇÃO E O MÉTODO

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22 O CONTO E A HISTÓRIA

29 A EDUCAÇÃO

38 O OLHAR

47 O CORPO

57 A DOMINAÇÃO

72 IMPACTOS

74 GLOSSÁRIO

78 PARA SABER MAIS

79 PARTICIPANTES, FORMADORES,FACILITADORAS

83 APOIOS

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PALAVRASINICIAIS

A suposta inferioridade do negro e a crença na supremacia de um

grupo sobre outro foram sustentadas pela ciência do século XIX, com

o intuito de justificar a escravização de negros.

O período escravagista foi marcado pela forma animalizada e coisifi-

cada como o africano era tratado , uma estratégia que resultou na

construção de uma imagem desumanizada do negro, e na desconstru-

ção de sua identidade.

Outra herança da escravização é o conjunto de atributos destinado ao

negro, que permanece vivo e atuante no inconsciente coletivo. A sua

exclusão do processo produtivo, após a abolição, promoveu uma situa-

ção social na qual foram reforçados estigmas e estereótipos tais como:

“incompetentes, preguiçosos e indolentes, malandros, sujos, margi-

nais...”. Essas representações, mediadoras das relações interétnico-

raciais, mantém e reproduzem o racismo.

Os sentimentos de inferioridade e de não pertencimento à categoria

de humanos – nefastos efeitos do racismo – são responsáveis pelo

acometimento à saúde psíquica da população negra.

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É neste cenário e com estas reflexões que o Instituto AMMA Psique e

Negritude constata que as leis antidiscriminatórias, embora de funda-

mental importância para a democracia racial, não conseguiriam, por

si só, eliminar o preconceito, pois para tanto também é necessário

intervir em crenças e valores de longa existência.

Assim, desde sua fundação, o Instituto AMMA tem por desafio inves-

tigar a dimensão psicológica do racismo através de uma abordagem

psicossocial e buscar compreender a dinâmica dos mecanismos discri-

minatórios que fazem perpetuar as desigualdades étnico-raciais.

A partir de reflexões e experiências, o Instituto AMMA desenhou

uma proposta piloto de formação sobre "Os Efeitos Psicossociais do

Racismo", voltada para educadores, psicólogos, trabalhadores da área

da saúde em geral e militantes do movimento negro.

Este projeto foi realizado em 2004, em São Paulo, com o objetivo

principal de desenvolver habilidades para a “elaboração dos sentidos

do racismo inscritos na psique”. Sentidos estes que não são apreendi-

dos completamente na luta política contra a discriminação racial,

devendo ser “enfrentados tanto politicamente quanto psicologicamen-

te”. As marcas emocionais, causadas por uma discriminação continua-

da, exigem estratégias de defesa e, ao mesmo tempo, recursos inter-

nos para “ir adiante”.

Todos sabem das peculiaridades do racismo à brasileira – um racismo

sem racistas. A pessoa negra conhece a discriminação desde seus pri-

meiros anos de vida, sem que nunca o outro lado se declare. Quando

perguntamos para a maioria dos brasileiros: “Você é racista?” A res-

posta invariável é: “Não.”.

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As instituições públicas também se declaram não-racistas, universalis-

tas. No entanto, não é o que experimenta a criança negra, por exem-

plo, na escola. Para ela, a escola pode tornar-se num espaço de exclu-

são. O contexto, à sua volta, muitas vezes, reproduz experiências de

rebaixamento concorrendo para o enfraquecimento da auto-estima e

para o desencorajamento. Alguns fatos relacionados a isso incluem a

maneira pela qual a história do povo negro brasileiro foi, tradicional-

mente, contada; a forma pela qual o negro é representado nos livros

didáticos e na mídia (submisso ou coadjuvante); os apelidos postos

pelos coleginhas brancos: “macaco, piche, cabelo ruim”, entre outros.

A longa exposição às situações de desvalorização causa efeitos múlti-

plos de dor, angústia, insegurança, auto-censura, rigidez, alienação,

negação da própria natureza e outros, deixando marcas profundas na

psique. Como lidar com essa realidade? Como proteger a saúde psí-

quica? Como estabelecer o diálogo entre as populações cultural e feno-

tipicamente diferentes? Como ampliar as ações de políticas públicas

para a superação do massacre psicológico sofrido pela população

negra?

Grandes perguntas que só podem ser respondidas com determinação e

com muito trabalho. A Formação sobre "Os Efeitos Psicossociais do

Racismo" é parte desde trabalho.

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APRESENTAÇÃOINSTITUCIONAL

ORIGEMO Instituto AMMA Psique e Negritude é uma organização não-governamental que foi criada, em 1995, por um grupo de psicó-logas1 com o objetivo de trabalhar as complexas relações inter-étnico-raciais, em especial as relações entre populações fenotipi-camente diferentes, por meio de uma abordagem psicossocial.Por entenderem que muitas das representações que habitam oimaginário brasileiro foram constituídas a partir de idéias racis-tas, de certa época, e que continuam a se reproduzir, ao longodo tempo, causando sérias conseqüências à saúde psíquica dapopulação negra, optou-se por um trabalho visando resgatar aauto-estima da população negra e promover a conscientizaçãosobre os efeitos do racismo para a sociedade.

MISSÃOElaboração das conseqüências do racismo introjetado.

ESTRATÉGIAEstimular o Diálogo entre populações cultural e fenotipicamentediferentes.

ÁREAS DE ATUAÇÃODireitos Humanos, Saúde, Educação, Psicologia.

ATIVIDADES Oficinas de sensibilização para o reconhecimento do racismoinstitucional;

Ciclos formativos sobre os efeitos psicossociais do racismo;

Assessoria para grupos, instituições, organizações governamen-tais e não-governamentais; bem como para profissionais dasáreas de saúde e educação;

Grupos de discussão e de vivência temáticos;

Orientação Familiar;

Produção de conhecimento.

1 Ana Maria Silva, Maria Lúcia da Silva, Marilza de Souza Martins, Silvia de Souza

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AMMA

Deus AMMA - espírito

fecundador, verbo original,

inaugurador de todas as

coisas - é simbolizado por

um pote envolvo por uma

espiral de cobre vermelho

em três voltas.

Para nós, do Instituto

AMMA, a espiral é um

símbolo muito especial.

Ela representa um

crescimento sem deformar

sua base original. Crescer

sem destruir a própria

essência nos parece a

grande lição da espiral.

CONSELHO DIRETIVO

Ana Clara Demarchi Bellan

Elisabeth Belizário

Fabiane da Silva Reginaldo

Jussara Dias

Márcia Ferreira Meireles

Maria de Lourdes Araújo Almudi

Maria Letícia Puglisi Munhoz

Maria Lúcia da Silva

Marilza de Souza Martins

Regina Maria Ferreira de Oliveira

Rosa Maria Alves de Almeida

REPRESENTAÇÕESComitê Técnico de Saúde da População Negra. SecretariaEstadual da Saúde. São Paulo.

PARCERIASAshoka – Empreendimento Social

Fundo Ângela Borba

Global Fund for Women

Hospital Geral de São Mateus

Instituto de Análise Bioenergética de São Paulo

Instituto Brasileiro de Estudos e Apoio Comunitário

Instituto Papai

PRÊMIO, MENÇÕESPrêmio Franz de Castro Hotzwarth de Direitos Humanos oferecido pela Ordem dos Advogados do Brasil - OAB - Seção São Paulo, na categoria Menção Honrosa, em 2006.

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Entrevista com Maria Lúcia da Silva, Presidenta do Instituto AMMA Psique e Negritude

Maria Lúcia - As conquistas do Movimento Social Afro-brasileiro, no âmbito da

legislação e das ações políticas, não têm sido suficientes para as mudanças

necessárias das relações interétnico-raciais do país. Por exemplo, o debate sobre

as ações afirmativas, embora respaldado pela demonstração das precárias condi-

ções materiais de existência da população negra, não tem sensibilizado a socie-

dade a ponto de legitimar a sua aplicação enquanto instrumento de superação

das desigualdades, que perpetuam há séculos, provocadas pelo racismo.

POR QUE DISCUTIR OS EFEITOS PSICOSSOCIAISDO RACISMO?

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As ações afirmativas não se popularizaram?

Maria Lúcia - Ainda não. Temos assistido frequentemente a manifestações queevidenciam a resistência da sociedade em relação às ações afirmativas. Há umdiscurso que responsabiliza os negros por eventuais retrocessos e que caracterizaas ações afirmativas como um racismo às avessas. Também é notável que maiorconsciência e maior conhecimento da realidade, por parte de setores da popula-ção negra, não são suficientes para desconstruir o discurso racista. Esta situaçãonos leva a buscar outras dimensões do conhecimento, para a compreensão daperpetuação das práticas discriminatórias.

Como a compreensão da dimensão subjetiva do racismo pode ajudar?

Maria Lúcia - É necessário saber que as relações entre brancos e negros estãopermeadas por representações que precisam sair do plano latente e vir para oplano da consciência. Isto também significa que ações envolvendo a dimensãosubjetiva do racismo precisam ser introduzidas na pauta do Movimento Negro,descortinando o impacto da imagem que brancos e negros têm de si e do outro.Essas imagens manifestam-se por meio de atitudes, brincadeiras, chacotas, des-respeitos, humilhações. As ações que praticamos no cotidiano estão mediadaspor fatores subjetivos que, na maioria das vezes, desconhecemos. Levar em con-sideração este aspecto será um passo importante para começarmos a compreen-der de que lugar se fala. A idéia é trabalhar a conexão entre percepção, senti-mento, ação. Tal conexão poderá facilitar a busca de saídas mais satisfatórias.

Quais os objetivos principais da Formação?

Maria Lúcia - A formação “os efeitos psicossociais do racismo” é parte de umaproposta mais ampla que visa à elaboração do racismo introjetado através deuma abordagem psicossocial, com vistas a favorecer o estabelecimento de novosparâmetros de convivência. Esperamos também, a partir da formação, criar umarede de interlocutores na área de saúde mental e educação.

É uma formação só para pessoas negras?

Maria Lúcia - Não. Um dos princípios fundamentais da nossa atuação é o estí-mulo ao diálogo interétnico-racial.

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A FORMAÇÃOE O MÉTODO

A formação sobre Os Efeitos Psicossociais do Racismo foidesenvolvida em módulos no formato de woorkshop residen-cial e de oficinas, totalizando 120 horas de atividades, das quais80 horas foram presenciais e 40 horas foram dedicadas a trabalho de investigação.

A experiência buscou sensibilizar e habilitar os participantes paraavaliar e monitorar suas práticas cotidianas, no que diz respeitoao enfrentamento da discriminação racial. Tal medida faz partede uma estratégia para a desconstrução do racismo introjetadoe, conseqüentemente, para a superação dos efeitos do racismona dimensão psíquica dos indivíduos.

A metodologia contemplou exposições dialogadas, dinâmicas degrupo, expressão corporal e gráfica, tudo partindo, na maioriadas vezes, da realidade dos participantes.

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OBJETIVOS ESPECÍFICOS • Possibilitar aos participantes a apropriação de suas vivências deexclusão, de emoções e efeitos gerados pelo racismo e práticasdiscriminatórias;

• Subsidiar os participantes na construção e implementação deações para resolução de conflitos interétnico-raciais vivenciadosem seu cotidiano pessoal e profissional;

• Fortalecer a auto-estima dos participantes por meio da identifi-cação de recursos pessoais e profissionais disponíveis para lidarcom os efeitos psicológicos do racismo.

PRESSUPOSTOS TEÓRICOS EMETODOLÓGICOS • As estratégias de transferência de conhecimentos, por meioda concepção interdisciplinar, privilegiando as áreas de psicolo-gia, psicanálise, sociologia, história e educação.

• O acolhimento das emoções dos participantes e a escutaatenta sobre suas vivências de humilhação e exclusão.

• O grupo como espaço privilegiado de apropriação de vivên-cias de exclusão e a construção coletiva de um saber sobre si esobre o outro.

• A auto-observação e o registro de situações de discrimina-ção vivenciadas e/ou testemunhadas através das interaçõessociais, ou de veículos de comunicação.

• O educador enquanto sujeito privilegiado para desencadearprocessos de mudança de atitude.

• A prática da investigação sobre as representações de negros ebrancos no imaginário social.

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ESTRUTURA DOS WOORKSHOPS EDAS OFICINAS

As ações formativas foram previstas visando assegurar a amplia-ção da consciência dos participantes acerca de suas experiências,no exercício de sua identidade étnico-racial. Esforços foram fei-tos para conjugar informação e vivência, apropriação e compar-tilhamento de lembranças, emoções e percepções.

O desafio foi lançado, e para trabalhar os conteúdos que possi-bilitassem o reconhecimento de preconceitos e estereótiposracistas que habitam o imaginário social, estruturamos as ofici-nas em seis momentos: aquecimento; jogos interativos eexpressão gráfica; fundamentação teórica; trabalhos dirigidos degrupo e individual; identificação e prática; avaliação e monitora-mento.

(1) AQUECIMENTO

O aquecimento consiste em ações destinadas a identificar aenergia grupal (“o clima”) e à preparação dos participantes paraque se encontrem nas melhores condições possíveis para ocontato consigo e com o outro.

Ao iniciar o grupo, através de uma atividade comum, busca-seque cada integrante expresse seu estado de ânimo, é uma estra-tégia para diminuir os estados de tensão e promover a interação.

São vários os recursos a serem utilizados, optamos por priorizaro corpo, tendo em vista a sua função de âncora das emoções, eo fato de ser moldado pelas circunstâncias históricas e sociaisdos indivíduos.

A expressão corporal ajuda cada integrante a encontrar seuritmo interno, evidencia conflitos e pode indicar situações temi-das ou problemas de difícil abordagem. E, ainda, contribui paradesenvolver a auto-percepção e o auto-conhecimento, na medi-da em que coloca o sujeito constantemente em contato consigomesmo, exercitando-o a identificar e a compreender os efeitosdas diferentes discriminações vividas (por raça/etnia, gênero,orientação sexual, condição social, religião, etc.).

(2) JOGOS INTERATIVOS E EXPRESSÃO GRÁFICA

Os jogos interativos são utilizados em vários momentos do desenvolvimento das oficinas atendendo a múltiplos propósitos:intensificar a proximidade entre os participantes; ampliar a per-cepção de si e do outro; exercitar a busca de consenso; identifi-car similaridades e divergências de visões; estimular a empatiaatravés da inversão de papéis; explorar diferentes possibilidadesde resolução de conflitos interétnico-raciais.

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Ainda na fase de integração, os jogos interativos auxiliam nolevantamento de expectativas e receios, e na construção coletivade acordos de convivência e funcionamento do grupo.

As técnicas de criatividade e desbloqueio contribuem para a ela-boração de conteúdos emocionais emergentes e preparam osujeito para uma melhor recepção de informações conceituais.

(3) FUNDAMENTAÇÃO TEÓRICA

As informações históricas, a ciência política e os dados sócio-econômicos a partir do recorte étnico-racial são fundamentaisno processo de desconstrução do racismo introjetado e desuperação de seus males mentais.

Temário desenvolvido:

• História da criança e do adolescente negros no Brasil.

• Educação e Cultura: os desafios de um educador para ainclusão social.

• Racismo e Psiquismo: impactos no desenvolvimento psi-cológico da criança e do adolescente.

• Humilhação Política: dominação e angústia.

• Corpo Real e Corpo Simbólico – representação e auto-representação.

• Auto-estima: preconceitos e estereótipos.

O conteúdo desenvolvido em cada tema é apresentado logoadiante nesta publicação, através de entrevistas realizadas comos formadores.

(4) TRABALHOS DIRIGIDOS DE GRUPO E INDIVIDUAL

Os trabalhos dirigidos de grupo são realizados após cada expo-sição teórica ou utilização de recurso áudio-visual. Através deroteiros ou consignas pré-elaborados os participantes são esti-mulados a correlacionar a informação recebida com a sua reali-dade pessoal e profissional. E também são incentivados a criarespaço para relatar e escutar as experiências de discriminaçãoque marcaram sua trajetória. Como exemplo, podemos observaradiante o resultado de uma reflexão sobre o papel da escola nocontexto étnico-racial (ver páginas 34 a 37).

Os trabalhos dirigidos individuais consistem num conjunto deprocedimentos que visam habituar o sujeito, em situação de dis-criminação, a identificar seus sentimentos; dimensionar oimpacto emocional; interpretar suas reações; monitorar o seugrau de satisfação com as atitudes tomadas.

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Compartilharemos a seguir alguns instrumentos utilizadosdurante a formação para desenvolver auto-conhecimento eauto-percepção:

CADERNO DE BORDO

Inspirado no Caderno de Viagem2 , é um instrumento de registro das “reflexões a partir de pensamentos, sentimentos,emoções, sensações corporais e ações”, surgidas frente a situações de discriminação vivenciadas, lidas ou ouvidas.

O caderno de bordo ajuda na resignificação das experiênciasde racismo e promove mudanças de atitudes e novas habilida-des para o enfrentamento de situações de discriminação.

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AS SITUAÇÕES DEDISCRIMINAÇÃO

vividas ou presenciadas(o fato)

O CONTEXTO (local/circunstância/

envolvidos)

OS SENTIMENTOS

IDENTIFICADOS

AS REAÇÕES TIDASNA SITUAÇÃO

MONITORAMENTO: em que medida se teriauma reação diferente a

daquele momento?

2 Yasbec, Vânia C. Refletindo em Contextos de Formação. In Novos Paradigmas em Mediação. Dora Fied Schnitman e Stephen Littlejohn (organizadores).ARTMED Editora, Porto Alegre, 1999.

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APRIMORANDO A AUTO-PERCEPÇÃO

Através de conceitos como estereótipo e preconceito, o exercíciopropõe uma reflexão sobre a diversidade dos grupos sociais e oreconhecimento dos próprios preconceitos (ver páginas 53 a 56).

(5) IDENTIFICAÇÃO E PRÁTICA

Foi prevista uma carga horária para atividades extra-curso com ointuito de:

• Criar condições para aplicação da aprendizagem;

• Aprimorar a escuta e o olhar em relação ao impacto doracismo nas ações pessoais e profissionais;

• Ampliar o auto-conhecimento através de exercícios coti-dianos de auto-observação;

• Identificar o significado das questões trabalhadas nocaderno de bordo.

Os participantes realizaram um trabalho de investigação sobrerepresentações sociais, especificamente sobre os atributos dis-pensados a negros e brancos. Dois dos trabalhos realizadosestão descritos nesta publicação (ver páginas 45 a 46).

(6) AVALIAÇÃO E MONITORAMENTO

Através de técnicas de associação livre investigam-se emoções,sentimentos e opiniões no início e final de cada atividade. Aidentificação do impacto emocional das atividades constitui-senum importante treino.

No final da formação os integrantes do grupo, através de expres-são gráfica, traçaram uma “linha do tempo” indicando descober-tas, e mudanças no seu desenvolvimento geradas pela participa-ção desta experiência.

Após alguns meses do término da formação foi realizada umaavaliação para estimular os participantes ao monitoramentoconstante (ver páginas 72 a 73).

Passaremos a seguir ao bloco de entrevistas com os formadores.

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Desde crianças, aprendemos que o povo brasileiro formou-se apartir da contribuição de três raças-etnias: os indígenas, os euro-peus e os africanos. Também vivenciamos uma fenomenal mis-cigenação, a ponto de ser impossível eleger o tipo brasileiro.Muito diferente, por exemplo, do tipo alemão ou do tipo bolivia-no. Na verdade, não temos um tipo, e sim uma caudalosa diver-sidade étnico-racial.

Tudo lindo! Não fosse a história de como essas três etnias secolocaram dentro do país. Os europeus, encarnados em portu-gueses, chegaram para conquistar, dominar, explorar. Os indíge-nas, antes os donos da terra, foram exterminados ou expulsospara o interior. Dos séculos XVI ao XIX, os africanos foram trazi-dos como escravos para servirem no eito, no leito, no leite, nalavoura, na casa, no campo e na cidade.

Tanto indígenas quanto africanos empreenderam uma luta semfim contra a tirania. Mas apenas no século XX, as histórias deresistências e de vitórias começaram a ser contadas pela históriaoficial. Foi, também, nas últimas décadas do século XX, que achamada abolição da escravatura, ocorrida em 1888, começou aser “problematizada”. Afinal, que abolição foi esta que vem man-tendo negros e negras do Brasil nos piores índices de qualidadede vida? Que abolição foi esta que mantêm as mulheres negrasna base da pirâmide socioeconômica, e os jovens negros emsituações vulneráveis?

Assistimos ao desmoronamento de um dos maiores mitos dahistória do Brasil: a democracia racial. A condição de vida denegros e negras tornou-se uma das importantes pautas da vidanacional. Graças aos esforços do movimento negro – sustentadopor organizações mistas e de mulheres – compreendeu-se queenquanto o Brasil não resolver a profunda desigualdade entrenegros e brancos, ele não será uma democracia digna do nome.

O que está na ordem do dia é a procura de formas de inclusãoda população negra nos benefícios socioeconômicos da socieda-de brasileira. Isso tem a ver com o acesso à moradia com sanea-mento básico, à saúde com eqüidade, à educação com qualida-de, à imagem com dignidade.

O CONTO E A HISTÓRIA

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DESCONSTRUIR, RESIGNIFICARRever a história do Brasil de um ponto de vista não racista e nãosexista talvez seja trabalho para gerações inteiras. Mas a largada jáfoi dada e seus pilotos são, principalmente, sociólogos, antropólo-gos, educadores, psicólogos, negros ou brancos comprometidoscom a tarefa de passar a limpo os conteúdos da nossa história.

No Módulo I da Formação sobre Os Efeitos Psicossociais doRacismo foi trabalhado um breve panorama da história da crian-ça negra no Brasil. Também buscou-se identificar o surgimento deinstituições de correção e confinamento, matrizes das atuaisFEBEMs e FUNABEMs.

Como formador foi convidado o historiador Marco AntonioCabral. Ele apontou para o itinerário da criança e do jovem mar-ginalizados.

O historiador situou sua fala na São Paulo do começo do séculoXX, uma cidade frenética caracterizada pelo final da escravidão -sem nenhuma política de compensação para os libertos e seus filhos -, e a entrada de enormes contingentes de imigrantes paracumprir uma dupla função: trabalhar nas lavouras paulistas ebranquear o país. Nesse momento, há um significativo aumentoda criminalidade e observa-se a criança e o adolescente (chama-do de menor) sendo punido por “desordens”, “vadiagens” e peque-nos furtos (qualquer semelhança com a São Paulo do século XXInão é mera coincidência).

Marco Antonio ressaltou que para combater os delitos juvenis, oEstado azeita seus aparelhos de repressão e correção. Assimnasce, em 1902, o Instituto Disciplinar destinado a recolher“pequenos mendigos, vadios, viciosos, abandonados, maiores de 9e menores de 14 anos que lá deveriam ficar até completarem 21anos”. Estava dado o empurrão para o confinamento de muitascrianças e adolescentes pobres da cidade de São Paulo. SegundoMarco Antonio, era o começo da transformação do “menino darua” em “menino de rua”.

No debate com os participantes, ficou claro que os atuais meninose meninas de rua bem como os “institucionalizados”, na sua maio-ria negros, não surgiram nas esquinas urbanas de repente. Atrásdeles, há uma história de discriminação e exclusão sistêmicas.

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ENTREVISTA COM MARCO ANTONIO CABRAL

Marco Antonio Cabral dos Santos, nascido em 1973, é doutor emHistória, pela Universidade de São Paulo (USP). Passou a infância ea adolescência ouvindo da mãe, diarista por profissão e com letrasescassas, a voz de comando: estude, estude, estude! Foi o que elefez. Não obstante o precário ensino da escola pública, Marco mer-gulhou nos livros e conseguiu entrar, em 1992, na USP.Seu primeiro emprego foi como contínuo em um banco. Para conse-

gui-lo, ele fez provas de português e de matemática. Saiu-se muitobem. “Para mim, o banco foi uma excelente oportunidade de apren-dizado, quando entrei não sabia nem preencher um cheque. Minhamãe nunca teve conta em nenhum banco.” Quando já era caixa,Marco Antonio entrou na Faculdade de História. Então, viu-se emuma encruzilhada: “Durante o dia eu trabalhava no sistema finan-ceiro, de noite eu respirava a liberdade da universidade. Era umavida dupla.” Marco Antonio pediu demissão e foi trabalhar no Arquivo do Estadode São Paulo, ganhando um quarto do salário do banco. Foi provi-dencial. No Arquivo do Estado, ele tomou contato com documentosque seriam fundamentais para sua futura tese de doutorado. Eletambém ganhou tempo para fazer o que mais gostava: estudar.Hoje, Marco Antonio vive o cotidiano de um intelectual ipsis litteris:escreve artigos acadêmicos, desenvolve projetos, ensina. Também nãose furta de colaborar para crescimento das idéias entre os jovens.Participa de um curso de formação política no distante bairro deErmelino Matarazzo, São Paulo. “É um curso amplo, com caráterapartidário. A gente discute de violência policial à televisão de quali-dade.Na entrevista a seguir, Marco Antonio Cabral dos Santos conta deseu amor pela História, fala de questões raciais e, principalmente,de seu entusiasmo pelo conhecimento.

A HISTÓRIA COMO ALIADA

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Como historiador e professor de História, você crê que o conhecimento dos fatoshistóricos pode nos ajudar na resolução de problemas cotidianos? Marco Antonio - Bom, a maneira como a Escola de primeiro e segundo graus apresenta aHistória não ajuda muito. O currículo escolar de História deveria ser repensado para que oaluno pudesse associar o passado coletivo ao seu presente individual. Eu me interessei peloestudo da História, justamente, por vislumbrar nela a possibilidade de ação social e de enten-der o Brasil. Quando eu era criança, assistia ao telejornal e não entendia o que as pessoasfalavam. Eu não compreendia qualquer notícia sobre política. Verdade que eu era bem jovem,natural que não atinasse. Mas não compreender, me incomodava muito. Eu acredito que, nãosó a História mas também as Ciências Humanas nos ajudam a ler a realidade e, a partir daí,podemos pautar nossas ações.

Por anos a fio, os livros didáticos brasileiros contaram a História de um pontode vista branco e masculino. Você concorda com esta afirmação?Marco Antonio - Os livros de História estão melhores, mas ainda longe do ideal. Na práti-ca, existe um descompasso entre o que se discute na universidade e o que se transmite na salade aula do ensino fundamental. A discussão da História do Brasil, dentro da academia, éavançada e delicada. É uma discussão preciosa. O problema é que essa discussão de qualida-de demora muito para chegar ao ensino fundamental. A História estudada na universidade jánão tem esse caráter eurocêntrico, masculino. Há muitas pesquisas sobre a História daMulher no Brasil e sobre a História do Negro também. Por exemplo, a escravidão é muitoestudada. Diria até que a academia está se voltando para a África, principalmente, paraentendermos como se compôs a nacionalidade brasileira, ou de onde vieram os negros. Enfim,compreender as conexões. Hoje se considera, inclusive, uma História Atlântica: Europa, Áfri-ca e Brasil, tendo o Oceano Atlântico como ponte e palco de atuação. Repito: o problema é odescompasso entre o conhecimento acadêmico e a transmissão desse conhecimento na EscolaFundamental. Cabe aos historiadores se organizar e fazer valer seus saberes.

A Lei 10.639/03 (11.645/08) institui a obrigatoriedade do ensino das histórias eculturas africana e afro-brasileira. Isso pode melhorar o ensino da História na EscolaFundamental? Marco Antonio - Quando eu entrei na Universidade de São Paulo, em 1992, não existiauma cadeira dedicada à África no Departamento de História. Hoje já temos. Vários pesquisa-dores se interessam pelo tema. Esse interesse tem muito a ver com a Lei. Ela cria umademanda. Agora, o professor que ensina na base não tem livros didáticos que dêem conta daÁfrica. Muitos professores não têm a mínima idéia do assunto. Eles ainda vêem o continenteafricano como fonte de mão-de-obra. Sou otimista. As mudanças são lentas, mas vão acabaracontecendo.

Quando se fala em Educação pela Igualdade Racial, comenta-se muito em resga-tar heróis e heroínas negros, com o objetivo de aumentar a auto-estima do alu-nato afrodescendente. Heróis e heroínas são necessários? Marco Antonio - O ideal seria não precisarmos de heróis e nem cultuá-los. Mas havendoheróis brancos, que haja heróis negros. Tem que existir um equilíbrio. Como temos um pan-

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teão de heróis da História do Brasil, e dificilmente nos livraremos disso, que os heróis negrostambém estejam representados. Nos Estados Unidos, em 1986, foi instituído o Dia deMartin Luter King como feriado federal, ou seja, uma vitória para os negros norte-america-nos. Da mesma forma, o 20 de Novembro – Dia da Consciência Negra, em homenagem àluta de Zumbi de Palmares, é fundamental para a afirmação da população negra brasileira.

A educação pode ser um canal de ascensão social para os negros?Marco Antonio - Como pregava a minha mãe, na década de 1970, a educação é quase umdos únicos canais de ascensão social para a juventude pobre em geral, e negra pobre em parti-cular. Ocorre que o ensino público está muito degradado. Muito mais do que há vinte anos.Se compararmos com cinqüenta anos atrás, é um escândalo. A derrocada do ensino públicosignifica, entre outras mazelas, que o negro está perdendo cada vez mais a possibilidade deascensão socioeconômica. Quando entrei na universidade, a minha primeira aula foi com oMilton Santos. Eu não sabia quem ele era. O auditório estava lotado para ouvir aquelehomem negro e baiano. Hoje imagino que é muito difícil que surja um Milton Santos. Porquê? É cada vez mais difícil entrar em uma universidade pública. A escola pública não dáconta. Nas décadas de quarenta e de cinqüenta, a escola pública era uma escola de excelên-cia. As pessoas se digladiavam para entrar. Em suma, se o Milton Santos estudasse na escolapública atual, ele teria mais dificuldades de entrar na universidade e talvez não chegasse aolugar em que chegou, mesmo com a sua genialidade.

O vestibular é injusto?Marco Antonio - Trata-se de um Sistema de Mérito. A pessoa é avaliada com dezessete,dezoito anos. Quer dizer, a formação básica dela já aconteceu. Se ela for pobre, certamentenão conseguiu pagar um ensino de qualidade, enquanto o rico pagou. Então o sistema demérito, representado pelo vestibular, para a maioria dos brasileiros, sobretudo para osnegros, representa uma barreira. Do jeito que está, o vestibular perpetua as desigualdadesraciais. Ora, meritocracia pressupõe que haja igualdade de oportunidade entre os concorren-tes. Na minha opinião, o Movimento Negro tem que lutar também por uma escola pública dequalidade. Aí está uma chave importante. Lutar por políticas de reparação é bom, mas não étudo. A meu ver, a luta maior é por um ensino público melhor.

O que você acha do sistema de cotas para negros?Marco Antonio - A cota é um instrumento da política afirmativa. Ela não é a política afir-mativa, e sim uma de suas facetas. Acredito que está havendo uma confusão. A cota não deveser vista como solução para todos os problemas. É preciso também olhar para outros espaçosalém da universidade. Espaços onde os negros estão sub-representados.

Por exemplo? Marco Antonio - Na chamada alta cultura. O negro é sub-representados na pintura, naescultura, na música erudita. Ele aparece no “Domingão do Faustão”, programa da RedeGlobo, tocando cavaquinho. Nada contra, o cavaquinho é um instrumento maravilhoso. Masexistem negros que tocam piano, violoncelo, oboé. Em suma, aparecer com a bola no pé oucom o pandeiro na mão contribui muito pouco para a afirmação do negro no Brasil.

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É uma espécie de reserva cultural em favor dos brancos...Marco Antonio - Isso é péssimo. Alguns programas sociais têm sérias limitações. Quando euera garoto, morava na periferia da periférica Embu. Era um lugar sem Lei. O poder públiconão aparecia; a criminalidade era altíssima. Eu estudava numa péssima escola, quando surgiuum programa do Governo Franco Montoro para tirar a garotada da rua. Funcionava em umacasa grande. Eu fui até lá, tinham só dois cursos: Marcenaria e Sapataria. O de Marcenariame encantou, fazer móveis, brinquedos. Mas como eu tinha treze anos, não podia mexer comserra elétrica. Tive que ir para a Sapataria. Aprendi a fazer sapato, chinelo, bolsas, foiótimo. No entanto, hoje, eu vejo que naquele momento não era Marcenaria o que eu necessi-tava. Precisava de alguém que pusesse um livro nas minhas mãos. Eu precisava ter educaçãoformal melhor do que eu tinha na escola que ficava a poucos metros. O Brasil, do século XXI,está cheio de programas sociais que continuam levando a garotada para batucar. Tudo bem,mas quem quer outra coisa se sente excluído. No fundo, esses programas reforçam o negroapenas como pagodeiro, capoeirista.

No curso do AMMA, você discorreu sobre Criança e Criminalidade no início doséculo em São Paulo. Qual é a idéia principal?Marco Antonio - A minha tese de Doutorado é sobre a Polícia em São Paulo na passagemdo século XIX para o século XX. Ela abrange um momento chave da história de São Paulo. Sópara termos uma idéia, em vinte anos, de 1890 até 1910, São Paulo passou de setenta milhabitantes para duzentos e cinqüenta mil! Um assombro. Foi um momento de aceleraçãofantástica. Eu estudei os mecanismos de regulamentação dessa cidade. Por isso que eu fui pes-quisar a polícia. Como é que se administra uma cidade dessa? Foi um período maluco dacidade em que a polícia tinha muito poder, e o cidadão não tinha cidadania. Dentro desseestudo é que eu dedico um capítulo à criança. Em síntese: as crianças tinham uma relaçãocom as ruas da cidade que o Poder Público vai começar a reprimir. A indústria, que cresciaem São Paulo, abocanhava uma parcela dos trabalhadores. A maior parte da população viviada economia informal, nos interstícios da economia formal. Era comércio, serviços, lavadeiras,enfim, essa coisa toda. As crianças pobres descobriram no agito da cidade formas de obterum ganho. O garoto rouba um pedaço de tecido numa loja na 25 de Março e vende alimesmo para outro dono de loja. As crianças começam a fazer da rua seu sustento por meiode pequenos delitos. Então o Estado se viu na obrigação de tomar providências. Resolveu ins-titucionalizar essas crianças e jovens. Em 1902, cria-se o Instituto Disciplinar do Tatuapé –embrião da atual FEBEM. Triste! Estamos vivendo com isso até hoje.

Pela virada do século XIX para o XX, também houve o projeto de imigração?Marco Antonio - Claro. O projeto imigrantista, cuja justificativa oficial era que, uma vezabolida a escravidão, seria preciso “importar” mão de obra para as lavouras. Como se o ex-escravo não fosse gente ou desconhecesse os ofícios agrícolas. Foi um projeto de branqueamen-to, de europeização do Brasil. Foi uma política étnica tão descarada, que a imigração de asiá-ticos, chamada de “imigração amarela”, sofreu muitas barreiras. A intenção era mesmo tra-zer europeus, leia-se, brancos.

Voltando para o presente. Os negros são discriminados porque são pobres ou ospobres são discriminados porque são negros?Marco Antonio - Eu creio que há muita confusão entre condição racial e condição social.Quer dizer, quando se fala em “raça”, refere-se não a uma condição, mas a uma essência.Condição social e discriminação racial são problemas distintos. No Brasil, há discriminação

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em relação à condição social de uma pessoa. Mas há também a discri-minação racial. Esta vai muito além da questão socioeconômica. Oimbróglio é que o problema racial não é encarado pela sociedade bra-sileira. As pessoas tratam a questão racial com dissimulação. Osnegros que têm coragem de reclamar são taxados de neuróticos.Muita gente acha um absurdo que os negros fiquem indignados com oracismo.

O negro de classe média é menos discriminado?Marco Antonio - Não é por aí, não é como consumidores que vamosequacionar os problemas raciais no Brasil. Eles são bem mais profun-dos. Nos Estados Unidos, a cidadania do negro se conquistou peloconsumo. Eu acho isso péssimo. É terrível que se conquiste cidadaniapelo consumo, isso para qualquer pessoa independentemente da suaetnia. Cidadania está para além disso.

O Brasil está menos racista? Marco Antonio - Eu não acho que ele está menos ou mais racista.Acho que o problema do racismo está sendo encarado de uma manei-ra diferente. Hoje, os negros estão mais organizados e conquistandoespaços. O racismo não vai acabar por decreto. É um processo longo.Talvez o racismo nunca acabe. Nos Estados Unidos, por exemplo, háuma lista imensa de Políticas Afirmativas e nem por isso a sociedadenorte-americana deixou de ser racista.

O que fazer?Marco Antonio - São inúmeros os caminhos. Dentre eles, eu avalioa ação do AMMA como muito importante. Porque o AMMA traba-lha com os efeitos psicossociais do racismo. Eu creio que é o cerne daquestão. É, justamente, nesse caráter pouco tangível do racismo queresidem as maiores seqüelas para os afro-brasileiros.

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A EDUCAÇÃO

Sempre que alguém pergunta: qual asaída para o Brasil crescer e distribuirmelhor sua renda, suas oportunidades,suas riquezas? Nove entre dez pessoasapontam a educação como condiçãosine qua non para seguirmos em frente.

É curioso que essa aposta na educaçãoseja quase unânime e, ao mesmo tempo,as escolas públicas brasileiras sejam tãomaltratadas. Certamente, essa situaçãonão surgiu hoje nem ontem. A escolabrasileira já nasceu complicada: branca epara poucos. Eurocêntrica e etnocêntrica.

Agora, no século XXI, os números ofi-ciais dão motivo à comemoração: nuncatanta gente esteve dentro das escolas.Garantido pela Constituição Brasileira,artigo 208, o ensino fundamental, obriga-tório e gratuito, é para todos sem distin-ção de classe, gênero e raça.

No entanto, a esmagadora maioria dascrianças, adolescentes e jovens não bran-cos, além de gramática e português, conhecem também o bê-à-bá da discri-minação racial na escola. Discriminaçãotraduzida em olhares, desatenções, indi-ferenças, inadequações culturais, palavrasofensivas.

Mas não apenas os alunos têm lições deintolerância, os educadores negros tam-bém enfrentam preconceitos dentro daescola além de barreiras para a suaascensão profissional.

Como sempre, no Brasil, muitas vozes selevantam para dizer que a escola nãopratica o racismo, que trata todos com

igualdade. Tal afirmação faz parte doracismo à brasileira – na maioria dasvezes, dissimulado e escorregadio.Praticado nas entrelinhas.

Mas como não reconhecer o racismoquando um professor desqualifica ouofende um aluno por sua raça/etnia?Como não ler racismo e sexismo noslivros didáticos que insistem em atribuirpapéis sociais subalternos aos negros eàs mulheres? Como não se indignar comaulas de história que são useiras e visei-ras em retratar a história da escravidãocomo uma história de submissão dapopulação negra. Ou nas aulas de geo-grafia que ignoram, solenemente, a com-plexidade do continente africano? Setodas essas manifestações não foremracistas, são o que?

Durante a formação sobre Os EfeitosPsicossociais do Racismo, Eliana Oliveira,responsável pela Oficina Educação eCultura, discorreu acerca dos temas: Opapel do Educador; História pessoal esua influência na aprendizagem; Funçãodos estereótipos na manutenção doracismo.

Na seqüência, leia a entrevista, dadapor Eliana Oliveria, especialmentepara esta publicação.

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ENSINAR COM RESPEITO

Pedagoga, mestre em Educação com doutorado em antropologiasocial, Eliana é uma educadora que, atualmente, trabalha comoutros educadores para a sensibilização e o enfrentamento das dis-criminações étnico-raciais no ambiente escolar, é professora universi-tária e coordenadora de curso de Pedagogia.

Quando criança, Eliana morou na pequena São Sebastião doParaíso, sul de Minas Gerais, cidade com ascendência predominan-temente italiana. Sua mãe era costureira. Algumas vezes, Eliana e airmã mais velha iam na casa das clientes tirar medidas de roupas.Em algumas ocasiões, Eliana ouvia meninas brancas perguntarempara irmã e para ela: “Essa cor pega?”

A discriminação não se limitou à infância, acompanhou a vida deEliana. “No primeiro dia de aula, os alunos quase morreram deespanto ao verem uma professora negra dando um curso de pós-gra-duação”. O preconceito não parte apenas dos alunos. Eliana contaque em uma reunião de Coordenadores de Pós-Graduação e de rei-tores de várias faculdades, uma professora branca se incomodoumuitíssimo com a presença de uma mulher negra e perguntou: “O que você está fazendo aqui?” Eliana respondeu na lata: “O mesmo que você.”.

Eliana Oliveira reconhece: “Todos os dias da minha vida são dias dedesafios. No entanto, tenho sido feliz nas minhas escolhas, mesmo que difíceis.”

ENTREVISTA COM ELIANA OLIVEIRA

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Qual o compromisso da escola na promoção da igualdade racial?Eliana - Na escola encontramos um caldeirão, no qual fervilham todas as etnias. A culturabrasileira está na sala de aula, principalmente na escola pública. Portanto, caberia à escola ocompromisso fundamental de trabalhar a promoção da igualdade racial. E o que vemos? Umparadoxo: a escola é o espaço que não poderia discriminar, mas acaba sendo o que mais dis-crimina. Uma das origens desse paradoxo vem do fato de, por séculos, a escola ter trabalhadocom um currículo de modelo europeu.

Um modelo que não tem nada a ver com os brasileiros?Eliana - Exatamente. Esse modelo favorece a homogeneização. Como se houvesse, no país,uma única cultura, no caso, branca e de ascendência européia. Dentro dessa concepção, ficaquase impossível trabalhar com as diferenças. Trata-se de um currículo que favorece a discri-minação racial/étnica.

Discriminação que incide sobre os alunos negros?Eliana - Discriminação que expulsa as crianças negras da escola. Elas sofrem um desgastecontinuado quando são chamadas de “negrinho” ou de “negrinha”. Muitas vezes, o professornem tem consciência do quanto isso dói na criança, e do quanto isso dificulta o aprendizado.Assim, cada vez que a criança negra vai para a escola ela é ridicularizada e tem sua complexi-dade reduzida a atributos estereotipados. Isso provoca menos interesse pelos estudos, além darecusa em ir para a escola, dificuldade de aprendizagem e, por fim, provoca a evasão escolar.Há também outra conseqüência da discriminação: o não-pertencimento. O aluno negro não sevê representado na maioria dos livros didáticos. Como exemplo, a contribuição dos africanosna construção do país, constituição da diversidade, valores culturais etc. Também não percebenem um pingo de respeito por ele, pela sua origem familiar e social. Quando chega na idadedo ensino médio, ele não está mesmo na escola, ele está na rua.

Qual o caminho para transformar essa situação?Eliana - Não existe um caminho. Há vários. Hoje, temos discutido como trabalhar a partir doaluno e não do professor. Também estamos esperançosos com a Lei 10639/2003 que inclui aobrigatoriedade da temática “História e Cultura Afro-Brasileira” no currículo oficial da Redede Ensino. Mas, por fim, insistimos para que os professores parem de naturalizar as desigualdades, repetindo velhas mentiras: “pobre é negro e não aprende, para quê eu vou meesforçar?” “Ela vai ser empregada doméstica mesmo”. “O pai dele é faxineiro, ele vai conti-nuar sendo faxineiro”.Dentro desse determinismo não há espaço para um pensamento maiorem favor da criança. Não há um trabalho para aproveitar o potencial inerente a todo o serhumano.

Os professores não têm sensibilidade?Eliana – A Lei 10.639/2003 (11.645/08) não basta. É preciso qualificar o professor.Poucos são sensíveis às questões raciais, mas quando se sensibilizam tornam-se professores epessoas melhores. A transformação pode ser rápida, na medida em que eles começam a com-preender a riqueza da diversidade. O racismo é a maior causa dos problemas educacionaisdos alunos negros. A escola pode e deve desempenhar um papel decisivo no sentido de elimi-nar o racismo institucional. Daí perceber a necessidade de um currículo multicultural, que leveem consideração todas as culturas. Nesse momento, o professor ou professora desperta nacriança ou o adolescente para o gosto de estudar. Precisamos ajudar o professor a entenderque a desigualdade também passa pela escola e que eles têm um papel importante para diri-mir os danos causados por essa desigualdade.

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Você acredita que a escola está menos racista? Eliana - Não! A gente percebe pelos apelidos, pelos estereótipos, pela falta de referênciaspositivas nos livros didáticos e pelo tratamento que grande parte dos professores dispensa aoaluno negro. O professor reforça todos esses estereótipos ao não chamar a criança pelo nome,ou a ignorá-la. Uma das soluções é desconstruir os estereótipos. Nós temos feito isso e chama-do a atenção dos professores. É necessário parar de rotular, parar de achar que o aluno nãoaprende porque é pobre, porque está sujo, porque vem com ranho no nariz. A partir domomento em que o educador começa a olhar a criança e a enxergar o potencial dela, a crian-ça mesma desabrocha e se desenvolve.

A família também tem um papel na promoção da igualdade racial?Eliana - Claro. Mas a família, muitas vezes, não trabalha a questão racial. Não consegueorientar a criança. Por conseqüência, a menina ou o menino ficam sem autodefesa e seminterlocutores. Isso acontece porque ser negro no Brasil é “ruim”. Reconhecer-se como negroé uma questão de depreciação. Tudo que se aproxima do negro é mostrado como negativo. O negro é o perdedor, o submisso, o cidadão de segunda categoria. Quando a família nãoconsegue trabalhar com as questões raciais, a responsabilidade da escola aumenta.

Deveria haver uma conexão escola-família?Eliana - Se a escola trabalhar a questão racial, a família passa a ser sensibilizada, uma vezque o aluno leva a informação da escola para dentro de casa. Com a escola e a família traba-lhando juntas, as crianças e os adolescentes negros podem criar estratégias de enfrentamento.Podem entender a sua posição na sociedade, entender o Brasil, entender os azeitados meca-nismos de exclusão. Um outro problema é que, na maioria das vezes, a escola rejeita a origemdo aluno, isto é, rejeita a família dele. Ela desvaloriza o que o aluno aprende com a família. É um desastre! Em casa, o aluno recebe informações maravilhosas. O Brasil é múltiplo. Hámuitas linguagens.

A escola está preparada para trabalhar com a diversidade?Eliana – No momento, eu não vejo uma educação aberta à diversidade, pois é preciso repen-sar o sistema educacional brasileiro a partir das diferenças para o currículo e para as açõespedagógicas. Para abrir-se à diversidade tem que haver diálogo. Diálogos entre as culturas.Esse é o papel do multiculturalismo: o reconhecimento da cultura do outro.Sem o conhecimento e o mútuo reconhecimento não há dialogo. É necessário também estar aberto para as influências. Uma cultura pode alterar a outra.Para isso, o melhor caminho é entender quais são as historias de cada uma. Entender comoas várias culturas contribuíram para a formação do país. Em síntese, entender a formação dopovo brasileiro. Qual o papel das diferentes culturas, das etnias que nos construíram. E qualo extrato social que cada grupo étnico ocupou e ocupa na sociedade. Também responder apergunta: por que o referencial é o branco de ascendência européia?

Por quê?Para encontrar respostas é preciso estudar a história, compreender como as coisas se deram,compreender para modificar. Se essa reflexão não for feita, não há diálogo entre as culturas.Quando o educador começa a entender a questão da diversidade, ele entende de onde vêemas crianças, suas origens, suas famílias, suas linguagens.

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O racismo deixa marcas psicossociais?Eliana - Muito mais do que isso! O racismo gera efeitos psicossociais duradouros sobre as pes-soas. Como o racismo à brasileira não é transparente, para a pessoa negra, em geral, a suaidentidade é multifacetada. Há uma certa ambigüidade na construção da sua identidade.Nós estamos trabalhando com educadores e educandos a questão da auto-estima e a necessi-dade de fomentar a consciência negra. Um grande entrave é a falta de referenciais positivos.Não há referencial nos livros didáticos, não há representatividade suficiente na televisão, e professores negros são poucos. Fica difícil se aproximar daquilo que é “invisível”

Há interseção entre as discriminações de raça e de gênero?Eliana - A mulher negra sofre a dupla discriminação, por ser mulher e por ser negra. Contraas mulheres, a discriminação é mais acentuada. Veja meu exemplo: apesar da minha forma-ção e dos anos de estrada, eu trabalho muito mais do que uma mulher branca e o reconheci-mento é sempre menor.

Você enxerga luz no fim do túnel?Eliana - Acho que é fundamental a formação de quadros. Mulheres e homens negros se tor-nando mestres, doutores. Isso irá fazer diferença. Agora, a pessoa não pode ascender e esque-cer da sua comunidade de origem. Temos que ajudar a população negra a se desenvolver,ajudá-la a sair do limbo econômico no qual foi colocada. Para isso é preciso discutir as mani-festações do racismo. A consciência ajuda a ser menos submisso, menos infeliz também. Oque está em questão é criar mecanismos e estratégias de enfrentamento das discriminações.Há também a questão da visibilidade! É importante ver negros e negras em cargos de statussociais. Quanto mais gente discutir a questão racial, nas escolas e em outros espaços, maisvisibilidade teremos.

E os brancos?Eliana - Aqueles que forem parceiros na luta anti-racista são bem-vindos. Parece óbvio queum Brasil melhor será construído com os brancos ao nosso lado.

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ALGUNS RELATOS DAS(OS) PARTICIPANTESSOBRE DISCRIMINAÇÃO NA ESCOLA

P1 - Eu sou professora de educação infan-til. Trabalho na rede municipal de ensino.Tenho uma turma com vinte e cincocrianças, na faixa etária de quatro anos.Fazemos um trabalho de prontidão paraalfabetização. As crianças com quatroanos já trazem muitas vivências das suasfamílias. Já trazem, na verdade, os precon-ceitos que a família tem. Às vezes, umacriança pequena já está vivendo um con-flito interno, se debatendo com precon-ceitos.

Outro dia, minha filha de cinco anos che-gou para mim e disse: “Mãe, eu não queromais ser negra”. O pai dela é branco, elatem a pele de tom bem claro. Mas elasempre se considerou negra, por causade mim e porque está junto da minhafamília. Ela tem uma convivência muitopróxima com as tias maternas etc.Quando ela me disse que não queriamais ser negra, eu quase entrei em para-fuso. Perguntei: "Como assim, filha?”. Elarespondeu: “Quero ser branca igual aminha amiguinha Lele”. Quer dizer, temalgo acontecendo na escola... Ela estáaprendendo que ser branco é melhor (?).E como ela tem a pele clara, de repente,ela pensou: “Posso escolher...”

Daí creio que as reflexões que estamosfazendo, nesse curso do AMMA, trazempossibilidades de lidar melhor com assituações. É lógico que “a negação da raça”sempre causa uma dor incomensurável. Éduro saber que minha própria filha estásofrendo com isso. Mas eu sei que possolidar com essa história de forma maisconsciente, porque eu tenho um acúmu-lo de reflexões. Também é preciso termuita sensibilidade para lidar com ascrianças confrontadas com situações deracismo. O importante é não passar porcima, não fingir que a questão não existe.No fundo, o tempo inteiro a gente temque fazer uma intervenção.

Eu também trabalho com o pessoal dacreche, uma população mais carente. Ospais trabalham, e a maioria é negra. Querdizer, essas crianças se deparam, o tempotodo, com o racismo na escola. Tenhocolegas professoras que não se dão contada questão e discriminam muitas vezes.Elas também precisam ser trabalhadas.

Por fim, acho que a dor, causada pela dis-criminação racial, sempre existirá inde-pendentemente de querermos falar ounão acerca dela. Se você finge que nãoestá vendo a discriminação, você acabatransferindo a dor para outro lugar. Porexemplo, a pessoa pode somatizar, ficarcom uma série de doenças. Às vezes, nasruas, vemos muitos negros completa-mente loucos e desvairados. Consideroisso como um sintoma da pressão dosilêncio.

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P2 - Meu primeiro dia de escola foi horrível.Minha avó era lavadeira. Ela tinha umaamiga mais velha que ela e também negra.As duas ficavam o dia inteiro lavando roupae conversando baixinho. Falavam dos tem-pos da escravidão. Minha mãe dizia que elasfalavam em nagô para ninguém entendê-las. No meu primeiro dia de escola, acheique a minha avó, a qual chamava de mãe,estava me abandonando. Chorei muito!Depois me acostumei.

Uma vez tive dor de dente e procurei odentista da escola. Mostrei-lhe o dente e eleo arrancou a sangue frio. Doeu muito.Depois daquela experiência, peguei traumade dentista. Quando tinha dor de dente,sofria silenciosamente. Naquela época,1969, segundo relatos de amigos, muitosdentistas de escolas públicas tratavamassim a maioria dos negrinhos e negrinhas.

P3 - Fui discriminada recentemente nafaculdade. Em uma aula da disciplina dePsicologia Social, eu falei acerca do “bran-queamento da escola”. Critiquei o modelode escola imposto pelos brancos. Levanteidados históricos. Fiz tudo direitinho. A salaera predominantemente branca. O profes-sor da disciplina interrompeu várias vezes aminha explanação. Chegou a dizer que euestava fazendo uma piada. Ou seja, ele medesqualificou e desqualificou as questõesque eu estava trazendo.

Fazendo um trabalho proposto pelo AMMApara os participantes deste curso, entrevisteialgumas pessoas que responderam à per-gunta: Você já sofreu alguma discriminaçãoem sua vida? De que tipo? Se sim, comovocê se sentiu e como reagiu a ela?

Confira duas respostas:

1) Estudante, 20 anos:

“Quando eu estava na primeira série, umcoleguinha de classe falou: “Essa preta aí”.Eu respondi: “Seu burro”! Mas pegou tantoem mim, que eu lembro até hoje...”

2) Arte-educadora, 22 anos:

“No magistério, eu era considerada forados padrões, diziam que eu não tinha pos-tura de professora. Porém nem foi precisoreagir. Minhas aulas foram as próprias res-postas, só que na voz dos alunos. O fato éque a escola, além de rançosa, nos ensinadesde cedo a segregação.”

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O vídeo Olhos Azuis (Blue Eyed), realizado em 1995, registra

uma oficina, criada e conduzida pela educadora norte-ameri-

cana Jane Elliot. A oficina de Jane foi contundente: propor

que pessoas brancas sentissem, por duas horas e meia, parte

da discriminação sentida, por toda a vida, pelos cidadãos

negros dos Estados Unidos. Por exemplo, ela chamava os

brancos de “irremediavelmente incompetentes”, “irresponsá-

veis”, “burros”, “preguiçosos” e “inferiores”.

O vídeo também documenta uma experiência-jogo, feita em

1970, com crianças brancas na sala de aula. A professora

Jane Elliot dividiu a turma entre as crianças com olhos cas-

tanhos e as crianças com olhos azuis. Combinou que as

crianças de olhos azuis teriam a prerrogativa de discriminar

as crianças de olhos castanhos. Fez mais: as crianças de

olhos castanhos ganharam um “estigma”, simbolizado por

um lenço no pescoço.

Durante o recreio, os olhos azuis se recusaram a conversar ou

brincar com os olhos castanhos. Assumiram uma atitude

provocadora forçando os “portadores” de olhos castanhos a

se retraírem. Na volta à sala, a professora perguntou como

havia sido a vivência de ser discriminado. “Péssima”, respon-

deram. O acontecido foi justo? “Não”, disseram em coro.

O vídeo finaliza com a questão, posta por Jane Elliot: As pes-

soas brancas acharam insuportáveis serem tratadas com dis-

criminação e desvalorização. O que devem sentir, então, as

pessoas negras que são discriminadas e desvalorizadas o

tempo todo?

Por fim, ela afirma: não basta que os brancos digam “eu não

discrimino, eu não sou racista”. É preciso que eles lutem, ao

lado dos negros, para que ninguém seja discriminado e vio-

lentado em sua humanidade.

ATIVIDADE COMPLEMENTAR: EXIBIÇÃO DO

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“No primeiro momento,achei o vídeo agressivo. Pensei: aconsciência da violência da discri-minação poder ser conquistada deforma menos traumática. Fiqueiincomodada da professora ter pro-posto um jogo tão cruel para crian-ças. Não estou desmerecendo a dorda criança negra ao ser constante-mente discriminada, mas não sei sejogar de “inverter papéis”, tornaráo indivíduo um cidadão melhor.Por outro lado, talvez eu estejapensando com cabeça de branco, seconsiderarmos que as criançasbrancas viveram a situação porhoras, enquanto as crianças negrasa vivem constantemente.”

“O vídeo “Olhos Azuis”me fez lembrar de coisas que sentina faculdade, por seu carátermuito opressor. Ela tem a dinâmi-ca de um querer negar o outro, deum querer negar a condição dooutro. Eu me sentia péssima,quando o professor devolvia umtexto meu todo riscado. Eu pensa-va: será que ele não vê que eu nãofiz cursinho? Ele não percebe queeu vim da escola pública? Fico con-fusa. Não sei se faculdade discrimi-na por uma questão racial ou seela é assim mesmo, incapaz deenxergar os alunos em suas dife-renças.”

“O que eu achei mais inte-ressante no vídeo é o tema de queo racismo é uma questão para serresolvida por toda a sociedade.Não é uma questão que diz respei-to somente aos negros. Isso signifi-ca que a luta anti-racista tem queincluir os brancos. A solução é deresponsabilidade de brancos enegros.”

“O vídeo “Olhos Azuis”confirmou que eu tenho que tra-balhar duro para entrar em conta-to com a dor. Só assim poderei dis-cernir e sair das confusões.”

“Uma das característicasdo racismo é fazer com que a pes-soa discriminada tenha dúvidas seestá sendo discriminada, ou se estáparanóica. Por exemplo, no Brasil,já existem recursos em favor dosdiscriminados, só que pouca gente,de fato, vai na delegacia fazer aqueixa. Acho que a pessoa fica emdúvida. Ela pergunta: será que istoestá acontecendo de verdade?”

“Eu vejo a professora dovídeo como aliada. Uma mulherbranca aliada. Ter parcerias combrancos pode ser de grande ajudapara o negro. Mas a gente aindanão conseguiu juntar um grupoanti-racista com 50% de negros e50% de brancos.”

“Eu desconfio um poucoda professora branca de “OlhosAzuis”. Talvez ela se sinta tão con-fortável e segura, exatamente, porser uma mulher branca puxando aorelha de outros brancos. Tenhodúvidas se uma mulher negra, ocu-pando o lugar dela, se sentiria tãosegura.”

“O que mais gostei naexperiência “Olhos Azuis” foi otrabalho em grupo. Ele permitiu oacordo e que as pessoas aceitassemparticipar de um jogo traumático.”

“Tenho que dar os para-béns para a ousadia da educadoraJane Elliot. Pois deve ser difícilpara o outro reconhecer que elenão é uma pessoa tão bacana comose imaginava.”

“Achei significativo obser-var como as crianças têm umaprontidão para experimentarmuito mais aguçada do que osadultos. Os adultos parecementrar em pânico com as pergunta:“Como vou agir diferente?”.Muitas vezes, a cristalização impe-de a transformação. Fazendo a lei-tura corporal das crianças e dosadultos, a hora em que um dosmeninos tira o lenço (o estigma), oritmo é rápido. Ele se livra rapida-mente. Isso tem a ver com a flexi-bilidade das crianças. Já o adultotira o “estigma” mais lentamente,com uma expressão meio semgraça.”

“Eu gostei muito. A Elliottambém deu uma oportunidadepara os brancos. Porque, de umamaneira geral, brancos não discu-tem sua etnia. É como se ela pai-rasse. Quando os brancos pensamem raça, parece que a raça é sem-pre do outro. Parece que só existea raça negra.”

Comentários dos debatedores:

DOCUMENTÁRIO “ OLHOS AZUIS” E DEBATE

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OLHAR EAUTO-ESTIMA

O seu olhar lá fora / O seu olhar no céu

O seu olhar demora / O seu olhar no meu/

O seu olhar melhora / Melhora o meu

Onde a brasa mora / E devora o breu

Como a chuva molha / O que se escondeu

O seu olhar o seu olhar melhora / Melhora o meu

O seu olhar agora / O seu olhar nasceu

O seu olhar me olha / O seu olhar é seu

O seu olhar o seu olhar melhora / Melhora o meu

“O seu olhar”, de Paulo Tati e Arnaldo Antunes.

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A auto-estima é um sentimento que alguém é capaz de nutrirpor si mesmo. É o reconhecimento e a valorização das própriasqualidades e atributos físicos, mentais, intelectuais etc. É tambémuma atitude de respeito para as próprias imperfeições e limita-ções.

Existem alguns aspectos relevantes na construção da auto-esti-ma: o olhar dos pais e da sociedade, pois o sujeito se constituino olhar do outro; o desejo de existir no olhar do outro, de sergostado; a família.

No que diz respeito à família, o primeiro olhar e o desejo mani-festo dos pais representam a janela pela qual a criança olhará omundo, determinam a qualidade das relações pessoais e coleti-vas. O papel dos pais é dar sustentação material e emocional àcriança, reafirmando sua existência no mundo e auxiliando nodesenvolvimento do senso de individualidade. Além disso, omodo como a criança é tratada, incluindo a linguagem verbal ecorporal que os pais usam para demonstrar o seu poder, poderepresentar o respeito ou o desrespeito às manifestações infan-tis, interferindo na formação do auto-conceito da criança.

Outro espaço importante no desenvolvimento da auto-estima éo sentimento de pertencimento a um grupo. Um grupo podereafirmar ou não valores, dar ou não referência de adequação deum indivíduo, bem como dar uma referência de como as outraspessoas reagem diante da presença de alguém.

Auto-estima, então, é um valor individual e coletivo que tem aver com o modo pelo qual alguém ou algum grupo se vê,sendo, portanto, um sentimento necessário à saúde física, men-tal e emocional que varia de acordo com a influência externa. Oprocesso de construção da auto-estima envolve amor, identida-de, respeito, positividades, valorização e sentir-se sujeito.

A psicanalista Isildinha Baptista Nogueira foi convidada paradebater temas cruciais na Formação sobre “Os EfeitosPsicossociais do Racismo”. Em duas horas eletrizantes, ela falouacerca da estruturação emocional do racismo e da construçãopsíquica dos indivíduos.

A seguir, leia entrevista exclusiva com Isildinha.

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Isildinha Baptista Nogueira é psicanalista. “Adoro o meu trabalho.Sinto imenso carinho pelas pessoas que eu atendo. Minha clien-te mais velha tem 89 anos; o mais novo, 4 anos.” A bem-sucedi-da profissão, aparte os esforços e os estudos integrais, teve, naspalavras de Isildinha “uma ajuda da sorte”. Em 1984, ela viajoupara a França com o objetivo de se especializar.

De cara, em Paris, foi jantar na casa do renomado filósofo FelixGattari. Ele a convidou para falar, no dia seguinte, em um con-gresso de psicanálise. Isildinha tremeu nas bases, ficou aflita,pois deveria falar sobre “Psicanálise e Negritude”, mas nuncahavia pensando no tema negritude. Gattari então sugeriu: “Contede você mesma. Fale da sua experiência como uma mulhernegra”. Ela topou e passou a noite escrevendo acerca do que eraser uma brasileira negra morando em São Paulo. O que era tersido a única aluna negra na escola e, mais tarde, uma das únicasda universidade. “Escrevi sobre como é sofrido ter um lugar queaparentemente é seu, mas que de fato não o é.”

Sua fala no congresso foi um sucesso. A ponto de a grande psi-canalista Radmila Zygouris declarar: “Isildinha, seu texto sangra,seu texto é você. Nós temos que nos envergonhar de nunca ter-mos pensado a questão dos negros dentro da psicanálise”. Apartir daí, a brasileira passou a conviver com monstros sagrados,entre eles, a brilhante Maud Mannoni (1923-1998). Isildinha foiconvidada a concluir sua formação nos Ateliês Psicanalíticos –uma escola com visão socialista.

De volta ao Brasil, ela não parou de trabalhar nem de produzirconhecimento. No seu entendimento: “o psicanalista não atuafora das estruturas de poder”. Sou uma profissional que trabalhalevando em conta as questões sociais e as questões clínicas pro-priamente ditas.”

Isildinha, que passa grande parte do seu tempo perscrutandoexperiências infantis de seus clientes, relata uma experiênciafundamental da própria infância. Uma vez brincando na rua,outra criança disse que meu cabelo era ruim. Fui correndo, cho-rando até a minha avó. Ela me acolheu e disse: “Isildinha, seucabelo não é ruim, é duro. Seu cabelo é lindo, ele é como omeu. Eu gosto dele, eu gosto de você.”

ENTREVISTA COM ISILDINHA BAPTISTA NOGUEIRA

NINGUÉM FOGE DA PRÓPRIA HISTÓRIA

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Isildinha Nogueira descobriu, então, que acontecesse o que acontecesse em sua vida,existia alguém que a amava do jeito que ela era. Enfim, “somos, porque somos no olhardo outro”.

Faz sentido falarmos de efeitos psicossociais do racismo?Isildinha - Acho fundamental pensar como a questão social bate no inconsciente. Eu nuncadeixei de trabalhar esse viés. É um assunto essencial, pois os efeitos psicossociais do racismoacabam por moldar a nossa conduta e o modo como nós pensamos, produzimos e sentimos.Eu entendo que é preciso, além da clareza das questões sociais, curar as feridas psíquicas.Elas existem e são as piores. Às vezes, a pessoa luta e consegue uma vitória pessoal ou social.Mas, ao mesmo tempo, ela se auto-destrói porque não se acredita. Não se vê capaz daquilo.Não se gosta. Internaliza a discriminação de tal forma que passa a se auto-discriminar semse dar conta. Este é o perigo maior!

As pessoas negras são continuamente discriminadas, como lidar com essa violên-cia em termos emocionais e afetivos?Isildinha - As pessoas negras são contínua e permanentemente discriminadas e lidar com adiscriminação é muito difícil, pois ela destrói a possibilidade de ser. Porém, no momento emque percebemos que a nossa história pessoal se insere na história da sociedade e da cultura,começamos a produzir antídotos contra o veneno da discriminação.

As marcas da infância são difíceis de serem removidas? Isildinha - Eu diria que é quase impossível. O que se imprime na primeira infância é parasempre. De 0 a 6 anos vivemos muito próximos da família. Alguém pode perguntar: “mascomo é que o racismo chega se nós vivemos muito próximos da família?” A resposta é que oracismo é internalizado. Nossos pais, certamente, sofreram o olhar da discriminação. A pró-pria família vivencia essa dor, essa ferida. As relações originais – as primeiras da vida queincluem pai e mãe - são importantíssimas. A maneira como nossos pais nos vêem, é como nósvamos nos ver para o resto das nossas vidas. Feridas da infância não saram nunca. O que agente pode aprender, ao longo da vida, é como lidar com elas.

Como fazer o curativo?Isildinha - Um curativo permanente. E de tão bom que fica, a gente consegue andar bem.Mas se esse curativo nunca foi feito é difícil. A gente caminha, mas caminha cheio de dor.Não é um caminhar muito firme, é um caminhar cambaleante.

É importante o olhar do outro?Isildinha - Nós só somos sujeitos porque existimos no olhar do outro, por isso somos quemsomos. Eu só sou psicanalista porque o outro me reconhece psicanalista. Eu não posso meauto nomear desse lugar do sujeito. Ser no próprio olhar é algo que construímos ao longo davida, mas essa construção não nos nomeia enquanto sujeitos. O sujeito é feito e anunciado naprimeira infância.

Se eu sou só sujeito no olhar do outro e se o outro não me vê, eu não sou!Isildinha - Uma das conseqüências disso, algo muito triste, é quando você percebe que a gran-de população dos hospitais psiquiátricos do País é negra. Por quê? Eu tenho a impressão quetem a ver com a história de não ter um lugar, de não ser. À medida que a pessoa se sente uma coisa e não se sente como pessoa. Não ser visto é enlou-quecedor.

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Conhecer as origens de uma dor ajuda a superá-la?Isildinha - É a única maneira! Não sei se de fato nós vamos às origens, mas creio que a genteconsegue se aproximar muito daquilo que provoca a dor. Ao descobrirmos o que é que provo-ca a dor, podemos escolher se queremos aquilo ou não. Quando me perguntam qual é o obje-tivo da psicanálise, eu respondo com as palavras da grande psicanalista Maud Mannoni: “oobjetivo da análise é tornar a pessoa sujeito da sua própria história.” Quando sabemos qualé a nossa história, podemos nos tornar donos dela. Enquanto não se entende direito e não sesabe que história é essa, não assumimos o personagem principal, ou seja, a pessoa não setorna o sujeito da própria história. É muito bom ter o controle da nossa história. Ir à derivapara a vida e na vida é muito dolorido, porque nunca se sabe onde vai bater. Quando agente se conhece um pouquinho, nós sabemos onde, como, quando e contra quem se bater. É qualitativamente diferente.

No Brasil, a discriminação tenta pôr os negros na invisibilidade? Isildinha - Exatamente. Ao ser colocada na invisibilidade, a pessoa se torna um fantasma. Agoraquando se tem noção clara dos mecanismos de discriminação - como e por que ela surgiu; quais asideologias que a sustentam - a pessoa tende a tomar posse dessa história de um outro lugar. Apartir desse conhecimento, ela se transforma em um cidadão ou cidadã que se dá o direito de, seoutorga o direito de. Quando entendemos que temos direto a ter direitos, lutar é um prazer. Caso contrário?

Isildinha - Quando a pessoa não entende que tem direito, a luta passa a ser um peso, vira tor-mento, porque não se sabe exatamente pelo que se está lutando, nem para quê, nem contra oquê, nem a favor do que, nem para onde se vai, e nem para onde isso vai levar. É muito ruim.

Em geral, as palavras preconceito, discriminação e racismo são empregadasindiscriminadamente. Como você conceituaria cada termo?Isildinha - De uma certa forma, o preconceito nos faz preservar nossa identidade, nosso cará-ter identitário. Por exemplo, se eu sou corintiana obviamente acharei que os são-paulinos sãoum horror. Direi: “o São Paulo é péssimo, ele não joga. Já Corinthians por mais que perca, éo melhor time do mundo.” Nesse caso, o preconceito ajuda a me perceber parte de umgrupo. Em outros casos, ele ajuda a me perceber parte de um lugar, de uma etnia, de umconjunto de valores. A discriminação é mais perigosa, porque segrega. Voltando ao exemplodas torcidas: quando eu impeço os são-paulinos de ir para o estádio, eu estou discriminando.Agora, o dia em que eu disser: “todos os são-paulinos devem morrer”, eu estou obviamentesendo racista. O racismo busca se justificar em “supostas inferioridades” de ordem biológica,se liberando para o descarte.

Então somos todos preconceituosos?Isildinha - O ser humano na sua natureza é preconceituoso. Para criar o caráter identitário,temos como base o preconceito. O preconceito ajuda a diferenciar um grupo de outro. Agora,quando esse viés da natureza humana se exacerba, caímos na discriminação e quando ela sefecha absolutamente caímos no racismo. A partir daí é o horror. Hitler não nos deixa mentiracerca das conseqüências do racismo.

Na formação do AMMA, você falou do ideal de alcançar a brancura.Explique melhor.Isildinha - A brancura está posta para a humanidade como a perfeição. Não importa qual araça, a etnia, a cultura em que viemos, todos temos o ideal da perfeição. A brancura seria aperfeição. Quem não gostaria de ter nascido um grande músico, um grande poeta, um gran-de médico? As crianças dizem: “Quando eu crescer, quero ser um grande cientista, um gran-

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de bombeiro, uma grande bailarina.” Ninguém que ser “pequeno”. Posto que o modelo dasgrandes atitudes ou das grandes obras vieram dos brancos e não dos negros, eu digo que ahumanidade é desejante da brancura. Até porque Deus e Cristo são representados comobrancos, o céu é dos brancos! Quando falo brancura penso no branco como ideal de pureza.Os humanos são desejantes da pureza, mesmo porque nenhum ser humano, de nenhumaetnia, se sente puro, brancos e negros. A brancura está para além dos brancos.

Então sempre existiu esse afã de alcançar a pureza? Isildinha - Pureza inatingível. Mesmo aquilo que consideramos perfeito está sempre aliado àimperfeição. Na verdade, nenhum gênio foi desprovido de defeitos ou do seu lado malévolo.Isso é interessante. Por exemplo, Amadeus Mozart (1756-1791) foi um gênio da música maspsiquicamente desequilibrado. Louis Althusser (1923-1998), outro gênio, matou a mulher.Não existe a perfeição nem entre os chamados “gênios”. A brancura é um ideal porque elanão existe. No fundo, todos nós, negros e brancos, temos esse desejo de perfeição.

No Curso, você falou também sobre a importância de as pessoas refletirem acer-ca de seus ancestrais. Isildinha - A idéia de família para os negros é muito recente. Os negros chegaram no Brasilcomo escravos. Éramos considerados peças, coisas, objetos e vendidos enquanto tal. Não éra-mos vistos como seres humanos. A família nuclear tem origem no casamento e os negros nãopodiam se casar entre si. Podiam e deviam procriar. Cada senhor tinha um negro que era oreprodutor. As crianças negras eram vendidas antes de nascerem. A escrava tinha como fun-ção amamentar o filho do senhor, mas não o seu próprio filho. O seu filho era amamentadopor quem estivesse disponível na senzala.

Até que chegou a Lei do Ventre Livre.Isildinha - Foi a primeira possibilidade da criança negra permanecer com a matriz, isto é, coma mãe. A origem da família negra é matriarcal, não é patriarcal. Com o Ventre Livre (1871)a escrava tinha o direito de ficar com o seu filho, mas não havia nada em relação ao direitodo pai ou acerca do casamento. Como herança dessa circunstância, até hoje, as figuras fortesdas famílias negras são as mulheres. E muitas famílias ainda seguem gregárias. Muitas crian-ças não sabem quem é o pai.

Ou ele foi embora.Isildinha - Durante séculos de escravidão, os homens negros não tinham o direito a pensar emcasamento, porque a escrava era um objeto do senhor. O senhor poderia possuí-la. Vamoslembrar que a idéia de casamento é idéia de território e de posse. O homem negro nuncapôde ser “dono” de uma mulher. Ele não tinha direito a nada. Era desprovido de qualquersentido de posse, seja de coisas materiais ou de vínculos afetivos e sociais. Jogar luz nessaquestão desmonta o mito de que os negros são incapazes de fazer família.

Essa força da mulher negra se estende até os nossos dias?Isildinha - A mulher negra tem uma posição de poder dentro do que se entende por família.Quem manda na família negra é a mulher. O homem negro está subordinado à mulher. Noentanto, do lado de fora da família o masculino segue representando o poder. O falo ainda éum poder muito grande. É preciso entender que a categoria mãe é recente para a mulhernegra. Mas quando ela pôde ser mãe, ela usou de toda a sua força para manter isso. Em geral,a mãe negra é uma mãe feroz, controladora, dominadora. Lembrando um pouco de Jung(1875-1961), pensando na força dos arquétipos, entendo que a maternidade é absolutamenteforte para a mulher negra. Dificilmente ela abre mão dos seus filhos, nem que seja para andarcom eles na rua, arrastando meia dúzia de filhos. Ela não abre mão da maternagem.

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Afinal o que é auto-estima? Qual a relação entre auto-estima e assumir a negritude?Isildinha - A auto-estima é importante para brancos e negros. Ela é uma construção. Nenhumde nós, branco ou negro, nasce com auto-estima. Nós construímos nossa auto-estima aolongo das relações originais, afetivas, sociais. A auto-estima é aquilo que nos reconhece dolugar positivo, do lugar do possível, da possibilidade. Sempre que há uma impossibilidade dereconhecimento, instala-se a baixa auto-estima. Quem sofre discriminação não pode ter umaboa auto-estima, porque não tem o reconhecimento. Até para que o racismo se mantenha,tem que se manter a baixo auto-estima. Como fazer isso? Por meio da ideologia de que ooutro é inferior.

Voltamos à história do olhar.Isildinha - A auto-estima é o que nos dá confiança de que somos queridos, amados, capazes.Agora se somos vistos como uma “coisa” suja, ruim, nojenta, como é que nós vamos ser capa-zes de fazer alguma coisa de bom? Impossível! É impossível ter auto-estima num regimeracista.

A sociedade brasileira está menos racista?Isildinha - Ela sempre foi e continua sendo racista. A diferença é que hoje o racismo estámais exposto. A máscara começou a cair e quanto mais ela cair menos dor teremos. À medidaem que o mito da Democracia Racial ruiu, nós, os negros, deixamos de nos imaginar birutas,loucos, lutando contra o nada. A Democracia Racial era uma enorme mentira que só nos fezmal.

O racismo é feito de ignorância ou de ódio? Isildinha - O racismo é feito da ignorância e o ódio é um elemento da ignorância. O racismo édestruidor na sua essência. Normalmente se é racista por ignorância. As pessoas não têm ohábito de pensar por que é que elas optam por uma coisa e não por outra. Porque optarampor um modo de pensar ou por um modo de ser. Nenhum racista sabe explicar porque é racis-ta. O motor fundamental do racismo é a ignorância.

Você acredita que as leis anti-racistas, a Lei Educacional do Estudo da África, asAções Afirmativas ajudarão a população negra brasileira a melhorar a sua qua-lidade de vida?Isildinha - Entendo que as leis são importantes até que a gente aprenda. Uma lei nos obriga apensar, a nos posicionar em algum lugar. Então a lei nos educa. As Ações Afirmativas aju-dam os negros a pensar acerca dos seus direitos e ajuda os brancos a pensar nos direitos dosnegros. Também há problemas, sabemos que as Ações Afirmativas não trouxeram para osnegros norte-americanos nenhum paraíso; trouxeram alguns benefícios. Em suma, penso asAções Afirmativas como uma etapa, não como uma panacéia para todos os males. Elas signi-ficam um bom começo.

O que ainda não aprendemos?Isildinha - Não aprendemos que a diferença não faz mal. A diferença é rica. Sonho com o diaem que possamos ver na diferença estímulos de crescimento, enriquecimento, possibilidade desermos felizes.

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N E G R O S• População mais vulnerável em todos os

aspectos.• As mulheres negras são todas guerreiras,

pois, mesmo com o mundo contra elas,resistem.

• Elas reerguem seu povo, reencantando ereconstruindo a nossa história.

• Imagem dos negros, (homem e mulher)mais negativa do que positiva em relaçãoaos brancos.

• Vivem em um mundo diferente dos brancos, por causa do preconceito.

• Sofrem preconceitos. • As negras são mais discriminadas. • Os homens negros são menos discrimina-

dos, impõem mais respeito.• Pessoas vencedoras, pois conseguiram

driblar o racismo que não os deixa viver em igualdade.

• Sofrem com o preconceito da sociedade.• Enfrentam preconceitos para trabalhar

nas empresas.• Ganham menos do que os brancos. • Sofrem em um mundo racista e

preconceituoso.• São socialmente desfavorecidos.• São julgados pela sua cor, não por

aquilo que são.• A mulher negra é uma mulher guerreira

e muito sofrida.• Estão excluídos tanto do mercado de

trabalho quanto da sociedade.

ATIVIDADE COMPLEMENTAR: A REPRESENTAÇÃODE NEGROS E BRANCOS NO IMAGINÁRIO SOCIAL

Parte integrante da metodologia do Curso “Efeitos Psicossociais do Racismo” foi a aplicação deatividades extra-curso. Os participantes foram instigados a entrevistar pessoas nas ruas eno ambiente de trabalho. A seguir, o resultado do trabalho de dois participantes .

Leia as respostas à pergunta formulada: “Qual a imagem que você tem de negros e brancos”?

B R A N C O S• Alguns brancos continuam reproduzindo

a opressão.• Os homens são oportunistas, se

fundamentam em preconceitos para explorar e degradar outras pessoas.

• A mulher é cúmplice e beneficiária da opres-são gerada sobre mulheres e homens deoutras etnias.

• Conseguem sempre uma boa imagem.• Pessoas sem problemas.• São cheios de preconceitos.• Sempre levam vantagem na busca

de empregos.• Pessoas preconceituosas (...) que estão

aprendendo que o preconceito não leva a lugar nenhum.

• Alguns se acham melhores do que os negros.• Eles têm muitas facilidades, principalmente

no mercado de trabalho.• Muita facilidade para trabalharem em

qualquer empresa.• Detêm mais privilégios.• Não sofrem os mesmos preconceitos.• São socialmente favorecidos.• São preconceituosos com as pessoas negras.• Acessam mais oportunidade, especialmente

no mercado de trabalho.• Não sofrem a desconfiança dos outros. • Têm mais oportunidades na vida do

que um negro.• Penso que todos os brancos se beneficiam

direta ou indiretamente do racismo.• A imagem é de riqueza, fama e de muita

inteligência.

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Negra, 20 anos, auxiliar administrativoAcredito que a cor ou a textura do cabelode uma menina negra, crespo ou liso, nãoinfluenciará a sua consciência racial. Oprincipal é o que está no interior da cabeçae não no seu exterior. Afinal, nós queremosigualdade para todas as etnias. A versatili-dade é bem-vinda: as pessoas podem mudaro cabelo e ninguém vai dizer que estão indocontra as suas raízes. A evolução da histó-ria faz com que as pessoas queriam serdiferentes das pessoas dos séculos passados.

Negra, 24 anos, estudante de Ciências Contábeis Essa mãe precisará buscar mais conheci-mento, pois se sua filha for aprender sozinha será pior, uma vez que a sociedadeé fria e calculista. A menina talvez não con-siga descobrir a verdadeira beleza de sernegra.

Negra, 23 anos, estudante de Jornalismo Totalmente errada a conduta da mãe. Eladeve procurar exaltar as qualidades damenina, a beleza de ser negra e não camu-flar a situação. Comprando uma peruca elaestá admitindo que ser branca é melhor.Deve fazer um trabalho para que a filha seaceite, tenha auto-estima por ser negra, enão reforçar o estigma de que o cabelolouro e liso é melhor. Pela atitude da mãe,percebe-se que ela não possui boa auto-esti-ma e muito menos consciência racial.

AUTO-IMAGEM DA CRIANÇA NEGRA

Formulou-se a seguinte questão: “uma menina negra queria ter o cabelo louro eliso como o da apresentadora Xuxa, tendo entrado num processo de auto-rejei-ção tão doloroso, a mãe, em desespero, comprou uma peruca para ela”. Confiraalgumas opiniões:

Branca, 42 anos, psicóloga Esta mãe, ao comprar a peruca, reforça oprocesso de anulação e auto-rejeição vividopela filha. Nem o desespero justifica estaatitude, pois imprime na filha a certeza deque só assim será aceita. Será que a mãenão partilha desta convicção? Pois de outramaneira, teria investido na valorização desuas próprias características e facilitado osentimento de auto-aceitação.

Negra, 21 anos, auxiliar administrativo A mãe deveria se informar sobre sua pró-pria etnia para passar uma imagem positivado negro, e não tentar “resolver” o proble-ma comprando uma peruca loira. A meninacom certeza irá crescer preconceituosa comsua própria cor.

Negra, 29 anos, advogada Eu considero que é enorme a influência damídia no processo de embranquecimento danossa cultura, bem como nos nossos concei-tos de beleza. Tudo leva a crer que nãoseria exigível, quando se trata de uma garo-ta jovem, consciência racial. Especialmentequando se vê, como no caso levantado, queos pais não possuem essa consciência e nãotiveram condições de preparar os filhosnegros para viverem num “mundo branco”.Necessário se faz um trabalho psicológico ede contato com a cultura negra.

Não declarou a etnia, 18 anos, secretária Do meu ponto de vista, isto acontece quan-do nós não nos gostamos. Quando a pessoase gosta não deixa que sua admiração poralguém ultrapasse seu próprio eu.

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O corpo é nossa casa. Casa que habitamos do nascimento até àmorte. O corpo também é a nossa presença indelével nos espaços domundo. Ele também é o lugar onde carregamos nossas razões e emo-ções.

O corpo nunca é passivo: o mundo imprime marcas no nosso corpo enosso corpo imprime expressões no mundo. Há todos os tipos de cor-pos: gordo, magro, alto, médio, baixo.

Corpos brancos, corpos indígenas, corpos asiáticos, corpos negros sãorigorosamente iguais: cabeça, tronco, membros, um coração, umfígado, dois rins, uma bexiga, um baço, dois pulmões etc. Uma únicadiferença fundamental: corpos femininos, corpos masculinos.

Então qual o sentido de falarmos em corpos negros e corpos não-negros? É um sentido político. Os corpos carregam, para além dosmembros e dos órgãos internos, paisagens da História.

A cor dos corpos, os traços da exterioridade são colocados em espa-ços desiguais no mundo.

Durante a Formação sobre “Os Efeitos Psicossociais do Racismo”,os debates em torno do corpo foram uma presença constante. Nãosomente o corpo físico, mas também o corpo simbólico.

Também foram propostos vários exercícios corporais, entre eles, derelaxamento e autoconhecimento.

Liane Zink foi responsável por aprofundar o tema e desenvolveu umadinâmica 100% emoção. Ela propôs que o grupo de participantespusesse o dedo na ferida, “dramatizando” o silêncio familiar emtorno do sofrimento dos escravos.

O CORPO“Ser negro é ser violentado de forma constante, contínua ecruel, sem pausa ou repouso, por uma dupla injunção: a deencarnar o corpo e os ideais de ego do sujeito branco e orecusar, negar e anular a presença do corpo negro.”

Jurandir Freire Costa

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ENTRE O SILÊNCIO E O GRITO

Para Liane Zink, o corpo e a mente batem em um sócompasso. Sendo o corpo a ancoragem das emoções,advindas do próprio “eu” e, também, das circunstân-cias sociais e históricas nas quais cada indivíduo seinscreve. Psicoterapeuta e educadora corporal, Liane éuma das diretoras do Instituto Brasileiro deBiossíntese – ramo do conhecimento que integra sen-timento e pensamento.

Sua experiência profissional é larga e “enérgica” comoela. Com trinta anos de estrada, trabalhou em váriospaíses. Portanto, teve o privilégio de conhecer e refle-tir acerca de culturas e posturas corporais diferentes.

Liane Zink enfrentou muita ignorância e preconceitoem relação ao seu trabalho. Foi tachada de superficialou “muito sexualizada” por intelectuais engessados.Por ser filha de um general do exército, durante osanos de ditadura, sofreu a desconfiança de colegas dauniversidade.

Dona do próprio nariz e da própria cabeça, Liane nãose intimidou e construiu uma vigorosa história profis-sional.

Corpo e cultura se entrelaçam?Liane - A cultura forma o nosso corpo. Por exemplo, o alemãoexpressa a raiva com muita energia. O japonês até que consigaexpressar a raiva já passou por todas as questões. A cultura é umaancoragem muito grande de forma, de corpo, de expressão, de emo-ção. Eu trabalhei com negras africanas. Elas são completamentediferentes das negras brasileiras.

ENTREVISTA COM LIANE ZINK

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Diferentes em que? Liane - Elas, em geral, têm a cultura afro do poder da rainha, da altivez. São altivas: “eu vimda tribo tal, da qual eu sou a rainha-chefe”. Portanto, muito diferente da nossa questão comos escravos que achatou a auto-estima da maioria dos afro-brasileiros.

Você poderia resumir como foi o seu trabalho no curso do AMMA?Liane - Não sei se dá para resumir, mas vou tentar. As perguntas foram: Que lugar eu ocupono mundo? Como é que eu posso ocupar esse lugar? Com que poder? Como é que eu menutro dessa ocupação? Planejei todos os exercícios e na medida em que fui trabalhando com adinâmica de grupo, os exercícios foram crescendo em expressão de emoção, inclusive da emo-ção da raiva. Nós tínhamos planejado fazer uma constelação sistêmica, pois creio que é muitoimportante pensar sistemas hoje em dia. Por exemplo, como o corpo se inclui na cultura e nosvários sistemas. Daí, fomos montando a constelação sistêmica. Foi quase uma dramatizaçãopara trabalhar a questão das marcas da escravidão.

Como foi essa montagem? Liane - Foi assim: havia uma moça no grupo que estava muito mexida com a história da avó,a história do escravo. Então, eu pedi para que ela escolhesse pessoas do grupo e as mandassem para o fundo da sala. Essas pessoas passaram a representar os escravos. Depoishavia os que representavam os avós, pai, mãe, tios, tias. Pronto: estava formada uma constelação transgeracional. Na verdade, em toda constelação familiar existe um segredo.

Um segredo?Liane - Até aquele momento da oficina eu não tinha absolutamente nada. Daí comecei aincentivar: “Vai ocupando esse lugar, vai pensando que você está no lugar do escravo”. Foi,então, que as pessoas que representavam os escravos começaram a cair, não conseguiamandar, choravam. Um rapaz foi se torcendo em uma dor. A segunda geração, a do pai e damãe, não olhava para aquilo. Não olhava para a dor dos escravos. E esse era o segredo.

O segredo de não falar da dor e da humilhação sofridas?Liane - Exatamente. Muito diferente de quando eu trabalho em Israel, onde todo mundo fala,o tempo todo, do Holocausto. No Brasil, há o silêncio em relação à escravidão. Aquela dorhorrível dos escravos é silenciada. O grupo ficava de costa para eles. Os escravos gritavam,caiam no chão e choravam. Isso aconteceu espontaneamente. Por quê? Porque é um lugar dealma, vamos falar assim. A moça foi se afastando cada vez mais. Ela chorou muito, entrouem um estado de angústia muito grande. Então eu pedi que todos olhassem para os escravos.Pedi que não fugissem deste olhar.

E qual foi o desenlace?Liane - Fomos descobrindo o porquê desse silêncio. Qual a razão de não contarem essa histó-ria? E a moça realmente não quis ver, ficou em pânico, apavorada. Eu disse para os escravos:“Honro vocês, integro vocês no meu coração, eu perdôo vocês por não terem me falado, maseu vou seguir o meu caminho, agora é a minha história”. A moça saiu em direção à porta.Foi um exercício pesado. Eu fiquei muito emocionada. Depois disso a gente faz uma cena res-sonante - que é compartilhar o que ressoou em todo mundo.

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O que as pessoas falaram?Liane - Todo mundo falou: “Realmente, ninguém me contava nada, toda vez que eu pergunta-va, a minha avó dizia que não podia falar”. Todos choraram muito, porque pegou no segredo,na ferida. E era essa a questão. De alguma maneira, enquanto o Brasil não pedir perdão aosdescendentes dos escravos, o país não irá para frente. Teve uma hora em que eu pensei:“Tenho vontade, como representante do Brasil, de dizer: me perdoem. Eu estou envergonhadacom tudo isso”. Mas engoli o choro, engoli a minha emoção porque eu achei que não podiasair do meu lugar de líder naquela situação.

Senão seria um descontrole...Liane - Mas esse foi o meu erro. Como a minha emoção não apareceu, eu fiquei de novo nolugar daquele que escraviza, do branco... Eu deveria ter dito: “Esta história também é minha,eu não estou fora disso, eu tenho que me integrar também”. Agora, o importante é que otrabalho, que fizemos, veio de uma estrutura de corpo. Pôr o pé no chão, organizar a energia,dar vazão à expressão de energia. O pico do trabalho foi a constelação – onde a gente pôdeolhar, dentro de cada pessoa, a questão da escravidão. O silêncio de não contar a história dosmaus-tratos, de não contar todo o sofrimento.

Um pacto de silêncio?Liane - O oposto da reação dos judeus em relação ao Holocausto. As vítimas do nazismo con-tam tudo: “Ah, não olhou para mim, não deixou eu comer um pão naquele dia”. Falam dasmínimas coisas, eles estão o tempo inteiro relembrando. E aqui o segredo foi esse silêncio. Oque mais me impressionou, na dinâmica, foi a reação da jovem. Ela não queria escutar olamento dos “escravos”. Ela sentia raiva e muita tristeza. Como se ela dissesse: “Esta histórianão me pertence”. No entanto, óbvio, é impossível fugir da própria história.

Seu trabalho dá uma grande ênfase ao corpo simbólico. Por quê?Liane - Sim. Interessa-me saber como o corpo dói, como ele não dói. O corpo orgânico é cheiode amarras. A cada trauma ou a cada dor, o corpo forma couraças musculares. Só que, alémdisso, existe uma imagem corporal interna, que chamamos de corpo simbólico. Esse corpo écomo a pessoa constrói a imagem do próprio corpo dentro da mente. A pessoa vai construindoeste corpo simbólico a partir da relação com a família, com a mãe, com o pai, com a comuni-dade. Eu trabalho com o corpo orgânico e com o simbólico.

Nem só do corpo orgânico somos feitos... Liane - Tudo o que está embaixo, tudo o que o seu inconsciente está formando, tem a ver como corpo simbólico. Por exemplo, pessoas que são anoréxicas têm um corpo simbólico dentrodelas dizendo que são gordas. Por mais magras que sejam, se sentem gordas. Não adiantaapelar para a “razão” nem dizer para elas se olharem no espelho.

Você acredita que a discriminação e a humilhação vão para o corpo? Elas seimprimem? Liane - Corpo e mente funcionam juntos. A primeira experiência de um bebê se dá por sensa-ções corporais. A gente poderia dizer que o corpo nasceu primeiro. Depois, vem a mente. O

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corpo é o palco das emoções. É nele onde eu me coloco, onde eu me faço. Então, humilhação,abandono, raiva, tristeza, poder, prepotência vão se estruturando no chamado corpo simbólicoe no corpo muscular. Nós temos que fazer uma leitura corporal das emoções.

Isso é muito interessante. Liane - Por exemplo, a emoção da humilhação apareceu muito na dinâmica que fizemos nocurso do AMMA. A primeira coisa que os “escravos” fizeram foi baixar a cabeça. Nãoadianta você dizer: “Levanta a cabeça”. A pessoa humilhada pode até levantar, mas dentrodela a atitude será sempre de cabeça abaixada. A gente olha a postura corporal e vai lendotodas as emoções que estão colocadas nesse corpo. É importante juntar a leitura da históriacom a leitura do corpo. Não existe uma dissociação entre corpo e circunstância.

Você já se sentiu discriminada? Liane - Eu tenho um metro e setenta e seis. A minha família é muito discriminada no Brasil.Meu filho foi embora para o Canadá por se sentir tão discriminado. Ele falou outro dia aotelefone: “Mãe, aqui eu me sinto menos E.T.” Eu tenho uma família muito alta mesmo.

Você já sentiu discriminação por ser mulher? Liane - Claro! Uma vez fiz um contrato de trabalho na então Tchecoslováquia, no períodocomunista. Eu fui com um assistente homem. Na hora do pagamento, eles deram o dinheirona mão do assistente. Na Alemanha, em outro trabalho, quando eles tinham que me pagar ofaziam com desprezo: “Você é uma mulher sul-americana que vem aqui e nós, os grandesmédicos terapeutas, temos que pagar para você”? Eu senti que eles pagavam com discrimina-ção por eu ser mulher e sul-americana. Ao mesmo tempo que eles se submetiam ao meu conhecimento, eles me pagavam com discriminação.

O Brasil está menos racista?Liane - Não acredito. Mas acredito que a questão da negritude está posta fortemente. Osbrancos estão sendo obrigados a encarar o racismo brasileiro. Agora, a percepção do racismonão é a mesma em todo o país. Eu morei na Bahia, tenho um filho baiano. Lá eu sentia umaintegração maior, apesar da discriminação. Tive várias amigas negras. Já em São Paulo, sintoainda essa coisa meio apartheid. Por aqui, ainda tem aquela história do elevador social. Hojemesmo, eu estava dentro de um elevador com mais gente, então entrou uma mulher negra.Uma branca lançou aquele constrangimento de olhar.

Como é o constrangimento de olhar?Liane - Aquele olhar forte de desprezo que mantém o outro à distância, que parece dizer:“Não encosta em mim”. Então olhei para a plaquinha que proíbe a discriminação e olheipara a mulher branca. Acho importante que existam leis que coíbam a discriminação, porquesai no jornal, na Tv, em suma, cria uma agitação. É importante que as vítimas sintam que háleis que as protegem. É um primeiro passo.

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Na sua opinião, as mentalidades e os corpos podem evoluir? O ser humanosente vontade de melhorar? Liane - Eu sou filosoficamente otimista. O ser humano pode melhorar. Emocionalmente, creioque já mapeamos muitas coisas. Mesmo quando uma pessoa está muito deprimida, ela tem apossibilidade de passar pela depressão sem morrer. Ela pode ir em direção à vida. Por outrolado, vivemos uma época de narcisismo exagerado, na qual o indivíduo pensa: “Eu construo amim mesmo, pode deixar que eu me faço”. E claro, isso é mentira.

O que é mais forte o eu ou as circunstâncias? Liane - Os dois. O eu é construído em relação com a mãe, a matriz materna, ele se constróiprimeiro. Depois vêm todas as circunstâncias de vida: os traumas, se nasceu na Europa ou senasceu aqui, se nasceu branco ou negro, se é menina ou menino, pobre ou rico. Agora existemmomentos da vida em que o “eu” está mais confiante, a pessoa está feliz com o que cria, suaauto-estima está alta. Nesse momento, a pessoa consegue transformar um pouco suas circuns-tâncias. Em outros momentos o “eu” aparece mais fragilizado, a auto-estima baixa, a pessoanão tem a mínima confiança em si mesma, aí as circunstâncias ficam mais fortes. Eu tenhoclientes que chegam e falam: “Estou me sentindo bem, estou lidando com as circunstâncias daminha vida, com o meu divórcio, com a perda do emprego etc.” São momentos nos quais nossentimos conectados às coisas da vida, em uma dança de fruição. Mas, na maioria das vezes,nos sentimos em um descompasso, entre o que queremos e como a realidade é. Na maioriadas vezes sentimos a hora da menos valia, a hora do poder, a hora das circunstâncias maispoderosas. Então precisamos trabalhar para conseguir um equilíbrio entre o “eu” e as “cir-cunstâncias”

Efeitos psicossociais do racismo, isso faz sentido?Liane - Todo o sentido. Nesse caso, são as circunstâncias sociais e históricas que interferem nocorpo psicológico. Foi o que vimos na oficina do AMMA: os “escravos” sem voz, sem podergritar, sem poder falar. Quer dizer, eu acredito que o emocional é feito por meio do social,como a gente acabou de falar. A pergunta é: como emocionalmente podemos quebrar essasamarras?

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Um dos exercícios propostos aos participantes do curso, suscitou um debate acalorado.As pessoas tiveram que escolher três grupos e associar estereótipos e preconceitos emrelação a eles. O debate que se seguiu às escolhas foi muito rico. Mostrou o quantoestamos eivados de estereótipos e prontos para os preconceitos. Mas o debate tambémcomprovou que os preconceitos podem ser desconstruídos.

ESTEREÓTIPO

O estereótipo categoriza, funciona como um CARIMBO: as pessoas deixam de ser vistas por suas reais qualidades e passam a ser julgadas pelo carimbo recebido. É uma caricatura, uma imagem mental coletiva que apóia o preconceito.

PRECONCEITO

É um conjunto de idéias preconcebidas, de opiniões e crenças negativas em relação aos grupos racialmente discriminados. Em psicologia social, o preconceito é também um fenômeno político, que envolve PERCEPÇÃO e ATITUDE.

Dos grupos relacionados a seguir, escolha três (3) e transcreva-os no quadro abaixo :

INDÍGENAS ESTRANGEIROS(AS) IDOSAS(OS)

PORTADORES DE DEFICIÊNCIA MULHERES HOMENS

PORTADORES DE HIV/AIDS NEGROS(AS) BRANCOS(AS)

GAYS ASIÁTICOS LÉSBICAS

NO QUADRO ABAIXO:

Descreva o ESTEREÓTIPO mais marcante que a sociedade atribui a cada um deles.

Identifique ao menos um PRECONCEITO que você tem ou já teve em relação a eles.

GRUPOS ESTEREÓTIPOS PRECONCEITOS

1

2

3

Finalmente, reflita sobre as ATITUDES que em geral você tem, quando se relaciona compessoas pertencentes a estes grupos.

ATIVIDADE COMPLEMENTARREVENDO CONCEITOS: PRECONCEITOS E ESTEREÓTIPOS

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• A gente tem que tomar cuida-do. Por exemplo, você pode criti-car os alemães por isso ou poraquilo. Isso não significa quevocê vai desenvolver um precon-ceito contra os alemães: "os ale-mães são nazistas". Eles nãosão nazistas, alemãozinho nãonasce nazista.

• Para mim, todos os estereóti-pos são muito lentos e bobos.Ver com estereótipo é o contrá-rio de ver com inteligência.

• Eu acho que gostar ou nãogostar é um direito meu.

• É verdade, você pode gostar ounão gostar. O que você nãopode é discriminar, prejudicar ooutro por conta do seu gosto.

• Estava pensando na flexibilida-de e rigidez do preconceito.Quanto é que o preconceitopode ser mudado?

• O que não acredito é na frase:“não tenho nenhum preconceitocontra negros. Meu preconceitoé contra os árabes ou judeus.”Para mim, essa pessoa seguepreconceituosa. Ela não enten-deu nada sobre estereótipos epreconceitos.

• Não é necessariamente imutá-vel. Eu já tive preconceito. Não

• Senti dificuldade de fazer oexercício. Não sei diferenciarbem o que é estereótipo e o queé preconceito.

• Eu tenho um preconceito geralcontra asiáticos. Tenho proble-mas com japoneses, em particu-lar. Tenho dois grandes amigos,uma mulher e um homem, deorigem japonesa, mas não gostodo jeito que eles se relacionamcom o país. Essa coisa de "euvim de outro país". Eu reconhe-ço o poder que eles tiveram dereconstrução no país deles,tenho todo respeito. Mas achoque eles vêm para o Brasil coma idéia de se apropriar, ganhardinheiro. Eles não se misturam.Isso me incomoda muito.

• Acho que isso é uma generali-zação perigosa. As culturas têmas suas diferenças. Mas nenhu-ma é melhor ou pior do que aoutra.

• Tento enxergar no macro. Sãopoucos os laços que tenho comjaponeses. Lembro que tenteiconhecer o Budismo em umaépoca. Lembro da minha dificul-dade ao saber que poderia terum neto japonês. Mas essasdificuldades precisam ser trabalhadas.

O DEBATE

Estereótipos, preconceitos são grandes questões, acompanham nossas vidas.“Como é que eles funcionam? Quando é que a gente percebe que existem coisas que tomam a dimensão das represen-tações? Podemos até dizer: eu aprendi que são atribuídas ao negro determinadas representações, mas acabo esque-cendo que tais representações são estereótipos. Por quê? Porque os estereótipos têm uma força incrível, eles vão deter-minar os preconceitos nas concepções e atitudes. Creio que um antídoto seria aprimorarmos a nossa autopercepçãoem relação ao racismo. Um esforço individual de apropriar-se dos sentimentos.”

• Não sei se não gostar de umgrupo é preconceito. Acho quepreconceito é algo apoiado nacaricatura, no estereótipo.Apoiado na representação dosvalores atribuídos a um determi-nado grupo e que não corres-ponde à realidade. Quandogeneralizo, eu falo de uma con-duta geral: esse grupo age dessaforma etc. Eu sei que não é umacoisa real: "todo japonês ageassim”.

• Japonês é uma cultura imensae, como todas as outras, mara-vilhosa. Para mim, lutar contraestereótipos e preconceitos éuma postura global. Se eu tenhopreconceito contra um grupohumano, eu tenho contra todosos grupos. Os “japoneses” nãose apropriaram porque são japo-neses. Fizeram isso porqueforam imigrantes.

• Eu não vejo assim. Os japone-ses fazem festas em que só elesparticipam.

• Bom, os judeus também fazemfestas só para eles. Qual é oproblema?

• Também existe o preconceitopositivo, o estereótipo positivo:“todo japonês passa no vestibu-lar”.

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é uma coisa que você tem e vaimorrer com isso.

• Tive dificuldade com este exer-cício. Dificuldade em expressarmeu preconceito. Passou muitopor essa coisa da falta de conhe-cer. Uma vez, a partir de umaexperiência de trabalho, conheciuma aldeia indígena. Tive aoportunidade de ver os proces-sos de organização, de educar ascrianças. Enfim, toda uma vidasocial. Percebi que meu precon-ceito foi nunca ter pensado queos indígenas se organizassem. Omesmo com portadores de HIV,na década passada, eles eramrelacionados rapidamente aque? A afeminados. Uma idéiade quem tinha o vírus HIV erahomossexual. Durante esse perí-odo, até eu descobrir o que sig-nificava o HIV realmente, acha-va que era isso mesmo. Achavaque eram essas pessoas que tinham a doença. O estereótipodos idosos é de que são aquelesvelhinhos que estão cuidandodos netos ou são pessoas doen-tes que estão no hospital. A par-tir do momento que você faz aleitura de que idoso não é neces-sariamente aquele que está nafila do INSS ou na fila do hospi-tal, você começa a mudar suarelação com eles.

• O preconceito tem muita a vercom a ignorância, com o desco-nhecimento do outro. Eu convivicom homossexuais da infânciaaté a adolescência e achavamuito estranho a imagem nega-tiva que eles tinham na tv, aspiadinhas. Eu não via elesfazendo os tipos de coisas que a

tv mostrava. O meu preconceitomesmo foi em relação à Aids,associá-la automaticamente aoshomossexuais masculinos.

• Quando começamos a falar dosestereótipos, pensei que a genteia relacionar brancos e negros,estereótipo em cima dos negros edos negros e conseqüentes pre-conceitos. Por exemplo, o negó-cio do samba, “branco nãosamba tão bem”. Isso é um este-reótipo e que leva ao preconceitode que “branco não tem ritmo”.Outra coisa interessante é quepara haver estereótipo tem queexistir compara-ções. Funcionaem dupla. “Brancos sambammal / negros sambam bem” ou“Negros falam alto / brancosfalam baixo” etc.

• Outro estereótipo é com oshomens. A história de que elessempre querem transar, sempreestão a fim de transar. E o pre-conceito é que você não confiatotalmente neles.Mas será que sempre eles que-rem transar?

• Meu preconceito foi formadopor reiteração de que os indíge-nas “adoram a natureza”. Isso épositivo, adorar a natureza.Mas daí eu embarquei no este-reótipo de que os indígenas são“naturalmente infantis”.Exóticos. Nós somos educados para osestereótipos. Por exemplo, ter aimagem do indígena como pre-guiçoso. A imagem de que eles

não trabalham com a terra, nãofazem nada.Na verdade, eles são muito maisavançados. A concepção de vidada sociedade, de estruturasocial. Mesmo que fossem mais“atrasados”, a pergunta é: mais“atrasados” em relação a que?

• Quando me relaciono com pes-soas brancas, em geral, tenhomuita reserva. Acho que é umtipo de preconceito também.Tenho reserva porque tenhomedo de ser machucada.Gato escaldado tem medo deágua fria.

• O estereótipo e o preconceitosão muito próximos porque opreconceito é apoiado pelo este-reótipo. O estereótipo estámuito colado também em comovou perceber o outro. Querdizer, ele vai interferir na minharelação com o outro.

• Eu me relaciono com as pessoasbrancas, mas preciso de um tempopara me acostumar com elas. Nãovou me relacionando logo que con-heço, não converso de cara. Acho que é uma defesa, não épreconceito.

• Em geral, os brancos falam:“Cuidado com os negros, sãobandidos, marginais, estãoassaltando as pessoas. Se vocêvir um negro, de madrugada,tem que sair correndo". Entãodesenvolvi um preconceito pormedo de ser agredida. É estere-ótipo e preconceito.

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• Creio que o preconceito é amaterialização do estereótipo.

• Outra coisa interessante doestereótipo é que ele “economi-za” o pensamento. Quando vocêaplica o estereótipo você pensamenos. É um carimbo: “negros,à noite, assaltam”. “Policial ésempre violento”. “Homembranco, de terno e gravata, éexecutivo”. “Velhinhas são sem-pre honestas”, e assim pordiante. Interessante é a vingança doestereótipo. O cara branquinho,bacana, assalta com facilidadeporque a vítima esperava umcara negro, pobre. Os bandidos agora pensam: "Éfácil, é só se vestir de outramaneira"...

• Outro preconceito é contra asmulheres. A história de que sãofrágeis. Também tem o estereótipo emrelação às mulheres negras, deque são quentes, gostosas,sabem sambar. É o que mos-tram nas novelas.

• O estereótipo de que todojudeu é sovina, todo negro éladrão, todo gay é promíscuo,toda mulher é frágil. Essas coi-sas estão dadas. É o estereótipoda sociedade e nosso também.Nós fazemos parte da sociedade.

• O estereótipo, muitas vezes,vai detonar minha relação como outro. Vai determinar minhasatitudes em relação a ele ou ela.Por exemplo, um homem negrocorrendo na rua, alguém semprevai falar (ou pensar); “Segura abolsa que é ladrão”. Essa é aimagem. É diferente do gostarou não gostar de uma pessoa oude uma nacionalidade. Sedizem: "Todo japonês é inteli-gente", cada vez que eu estiverdiante de um japonês, vou espe-rar que ele dê grandes soluções.Se sou um recrutador em umaempresa, e na seleção tiver umbranco, um negro, um japonêsos estereótipos irão favoreceralguns e prejudicar outros.

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ENTREVISTA COM JOSÉ MOURA GONÇALVESFILHO*

A dominação é como o diabo.

Quando perguntado: Quem é você?

Ele responde: Sou uma legião.(*)

AUTO-RETRATO

Sou tomado pelo gosto da comunidade. Sinto alegria emsituações de comunhão com a natureza, comunhão comas coisas, com a cultura e, muito decisivamente, acomunhão com os outros humanos. Essa comunhãoenvolve comunicação. Envolve também o silêncio, umsilêncio hospitaleiro, o silêncio da hospitalidade: estarsolto na companhia dos outros, sem preocupação comagradar ou acertar. Comunicação e silêncio são como umcolo: o colo da conversa, da colaboração, da interação e ocolo da solidão compartilhada. Tornei-me um psicólogosocial que procura enfrentar o problema da humilhaçãosocial, talvez porque humilhação social seja o contrárioda comunhão. A humilhação social representa a rupturada comunidade, muito especialmente da comunidadeentre pessoas.

HUMILHAÇÃO POLÍTICA:DOMINAÇÃO E ANGÚSTIA

ADOMINAÇÃO

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ENTRE O MATO E A UNIVERSIDADE

Nasci em Ribeirão Preto, porque meu pai, eminícios dos anos cinqüenta, mudou-se para láe participou da fundação da Faculdade deMedicina. A Faculdade foi construída sobre oterreno de uma fazenda doada àUniversidade de São Paulo, Fazenda MonteAlegre. Ele e os outros professores contaramcom residência no próprio campus universi-tário. Havia casas em volta do prédio princi-pal reservadas aos professores e suas famí-lias. Ao lado da minha casa havia um pomar.Do outro lado, sem muros separando, ascasas dos vizinhos. Por todo canto, havia tra-ços fortes do ambiente universitário: estu-dantes, professores, o movimento de umcampus. Minha experiência de infância con-jugou mato, universidade e convivência comgente ligada ao trabalho, trabalhadores muitomodestos, o jardineiro, o lixeiro, a lavadeira.Eu tinha um amigo, Afonsinho: era filho dalavadeira e do jardineiro que trabalhavampara vários professores. Tomei café com leitee pão com manteiga na casa da Sueli e doFernando, os pais do Afonsinho; joguei bolasde gude e estilingue no quintal. Convivi compessoas pobres, visitei a modéstia e a casadeles, fui recebido por eles, tudo ainda semaquele sentimento demais pesado das des-igualdades de classe e das barreiras. O senti-mento havia, era amargo mas fraco. Ospobres são naturais com as crianças, sãofrancos como não podem ser com seuspatrões. E crianças passam por porteirasmuito naturalmente. Depois, franquear por-teiras vai depender de luta: o segredo é que aluta não dependa de esforço, mas do desejo eseja natural.

PSICOLOGIA SOCIAL

Minha profissão é praticar, pesquisar e ensi-nar psicologia social. Mesmo quando ocupa-do com psicanálise, o que também escolhicom entusiasmo, sou um psicólogo social. Opensamento sempre me pareceu um amigo.Falando mais concretamente: prezo muito osprofessores e os livros, sempre encareci pro-fessores e livros como parceiros. Muito

importantes, decisivos. Foi tanto amá-los eme tornei um professor também, um profes-sor menor. Vim para São Paulo com dez anosde idade, em 1970. Foi só depois que minhaprofissão se definiu. Em meados da décadade setenta, apareceu clandestinamente naescola – e representou para mim um fatomuito importante de politização – um textoassinado por bispos da Conferência Nacionaldos Bispos do Brasil (CNBB). Este textodenunciava torturas e mortes no campo, pro-vocadas por conflitos de terras. Lembro queesta leitura descortinou, para mim, ummundo, uma realidade de violência quenunca eu tinha sentido até o fim. Já tinhacertamente sentido a violência, mas nuncatinha sentido politicamente a violência, nuncahavia sentido a violência como coisa que agente pode juntos contrariar.

Chegava a consciência da dominação, a cons-ciência da violência que parte não da nature-za mas da história. A violência alimentadanão por forças do ar ou da água, forças dofogo ou da terra, mas a violência alimentadapela força humana. Não a fúria das ventanias,das tempestades e das enchentes, não a vio-lência dos incêndios, dos terremotos ou dasferas, mas a violência muitas vezes furiosadas forças sociais, a violência dos grupos, aspessoas associadas por interesse, a força dasclasses dominantes e a força da subserviên-cia, a força da servidão voluntária. É a violên-cia que juntos praticamos e que juntos pode-mos contrariar.

Com o passar do tempo, tornei-me uma pes-soa ligada a pessoas que, por sua vez, eramligadas a comunidades eclesiais de base. Erammoradores da Vila Joanisa. A influência dessagente foi tão forte que não tive dúvida dequerer o meu trabalho comprometido comaquelas pessoas e comprometido com causase lutas populares. Não tive dúvida de que meencaminharia para alguma área de ciênciaspolíticas e sociais. Apesar disso, curiosamente,não fui diretamente para a sociologia ou paraa história. Fui para a psicologia. A preocupa-ção política me movia muito; ao mesmotempo, o sentido da política era para mim adefesa de gente. Para cientistas políticos ecientistas sociais haverá de ser assim: mas,para mim, eu talvez tivesse perdido este sen-tido se não tivesse me tornado um psicólogo.

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O GOSTO DE GENTE

Eu esperava servir pessoas.Encontrei, então, Ecléa Bosi e apsicologia social. Passei a traba-lhar com pesquisa, com docên-cia, e prossegui com serviçoscomunitários antes assumidosna Vila Joanisa. Alguma tarefaclínica, pouca, mas importante epersistente, vivida com muitaconsideração, sempre me aju-dou: prestar demais atenção àvida social pode embriagar, agente pode um tanto abando-nar a pesquisa de dentro. Haviaum risco pessoal de me tornardistante e superficial em relaçãoàs pessoas: foi por necessidadee por precaução que pedi amão dos psicólogos e dos psicanalistas.

A psicologia se torna psicologiasocial porque a alma humanatem raiz eminentemente social.Ouvimos sempre: os sereshumanos são animais sociais.Isso quer dizer não apenas quea gente tem necessidade dosoutros para contar com certosbenefícios de vida. É evidenteque a gente tem necessidadedos outros para morar, comer,vestir-se. Temos uma necessida-de funcional dos outros. Mas avida social não é só feita dessasnecessidades nem sobretudodessas necessidades. Nóstemos, mais radicalmente, umanecessidade dos outros paraalcançar de modo mais sólido aexperiência de nossa própriahumanidade.

Há certas capacidades humanasque só assumem suficiente rea-lidade em companhia dosoutros humanos. Certas capaci-dades humanas de que a genteé potencialmente capaz nãochegariam a se realizar, não che-gariam a assumir realidade paranós, se não fossem praticadasem companhia dos outros.

BELEZA

Os seres humanos são capazesde apreciar a beleza das coisas,o que significa que somos capa-zes de nos deter longamente namera aparência das coisas. E deum modo desinteressado, semnada pedir delas. Não estoufalando aqui da fruição de bele-za que é controlada pelo merca-do das imagens. O mercadodas imagens confunde beleza eaparência padronizada. A belezaé um fenômeno ligado à apari-ção e não tanto à aparência. As aparências são rastros deixa-dos pela beleza, mas beleza éaparição.

A beleza sempre está associadaà liberdade de manifestação. Abeleza das pessoas é ligada deperto à liberdade de agir, defalar, de movimentar-se no meiodos outros. Também a liberdadede sossegar no meio dosoutros. Pessoas livres são neces-sariamente muito bonitas. Aexperiência de olhar a belezadas pessoas justifica-se por simesma, não tem outro fimsenão transcorrer: a beleza nãoé como instrumento para outracoisa, mas ela mesma vale aexperiência.

E a beleza é dessas experiênciasque, se a gente não comparti-lhar, pode ficar perdida. A gentepode, no isolamento, deixarsem vigor a experiência. Nomeio de quem se fechou para abeleza e vive de aparências, agente pode perder a capacidadede manter-se sensível ao que ébonito.

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A aparência sempre pode enganar. Posso rapi-damente tomar alguém como bonito porquetem a aparência em conformidade com abeleza oficial ou em conformidade com abeleza que já vi antes noutra pessoa. Mas sedurar o olhar – a experiência da apariçãopede tempo, é diferente da instantânea expe-riência da aparência – pode acontecer dagente testemunhar a pessoa sem liberdade deaparição, pois tudo nela é imitação, é prisão, écontrole dos outros. Desde então, fica logofeia.

A aparição depende da liberdade defalar, depende da liberdade de agir edepende da liberdade de sossegar. Adominação, atingindo em cheio aliberdade, impedindo a voz, o gesto ea quietude, atinge a porta de passa-gem da beleza, atinge a beleza.

Posto isso, acho que a gente nunca sabe decara o que uma jovem negra quer dizerquando declara que se sente feia. Pode serque se sinta feia por estar fora do padrãobranco, independentemente de estar feia ounão quanto à liberdade. Há meninas livres,mas que se sentem feias. São meninas poten-cialmente lindas, mas que são vistas comofeias por quem não tem liberdade, por quemse agarrou ao controle social e à ordemdominante e que, portanto, não tem olhospara a beleza, só tem olhos para o prestígio.Não tem olhos para as pessoas, só tem olhospara os prestigiados.

GOSTAR, VERBO INTRANSITIVO

Dona Zica, já falecida, morou a vida toda emNova Lima, uma pequena cidade perto deBelo Horizonte. Nova Lima se formou emtorno dos negócios da empresa mineradoraMorro Velho. A cidade foi toda construídanuma encosta de vale. Na parte baixa do valeestava a mineradora e formou-se também obairro dos trabalhadores mineiros. Na partemédia da cidade, em altura e em sentidosocioeconômico, concentraram-se os técnicosligados à mineradora. Na parte alta, os patrõ-es que, a maior parte do tempo, foram capita-listas ingleses. Uma série de necessidades foinaturalmente se definindo e atraiu muitosoutros agentes, ligados ao comércio, à escola,à saúde. E a cidade, então, foi se compondointegralmente.

BELEZA E NEGRITUDE

Jussara Dias, Maria Lúcia da Silva e MariaAparecida Miranda me trouxeram para muitoperto do depoimento de jovens negros quese sentiam feios, meninas negras que se con-sideravam feias. Quando chamados a apontaro que achavam feio, respondiam: o cabelo, oslábios, o nariz.

Penso que devemos aprofundar o tema dadominação até este ponto, um ponto muitopsicológico: existe alguma coisa incompatívelentre dominação e beleza. A dominaçãotorna feios dominadores e dominados para sipróprios e uns para os outros, porque adominação interrompe a aparição. Outra vez:a aparição entendida como a experiência vivadas aparências, o que não é a mesma coisaque as aparências simplesmente. A apariçãodeixa como rastro aparências. Enquanto asaparências não são meros rastros da apari-ção, são um meio atual e vivo de aparição.

A pessoa dominada tende a viver sua pele eseu corpo apenas como aparência. Mas o quetraz beleza é a aparição. Toda pessoa que apa-rece fica bonita, mesmo que sua aparênciaesteja em falta com o padrão social. Ospadrões de beleza são formas fixadas de apa-rição, consagrados como representantes dabeleza e, aos poucos, mais que representan-tes, são consagrados como sendo a própriabeleza. Existe um controle social da belezaque faz com que o espectro das aparênciasbonitas estreite-se muitíssimo.

Sempre haverá muita gente fora do padrãooficial de beleza. A beleza, no sentido queestou reivindicando, é fenômeno mais origi-nário do que o fenômeno de sua padroniza-ção. A beleza quase nada tem a ver com abeleza socialmente consagrada, amortecida,congelada. O fenômeno para o qual apelotem a ver com a experiência de aparição.Todo mundo, contanto que livre do controlesocial da beleza, é capaz de admitir e de con-firmar que beleza é aparição. Pessoas afasta-das dos padrões controlados de beleza, quan-do aparecem, quando livres para aparecer,são necessariamente bonitas. Mesmo a pes-soa marcada por defeitos corporais, sem aaparência do corpo normal ou oficial, é boni-ta quando aparece. E existe muita gente, emconformidade com o padrão social de beleza,que é feia, porque não está em liberdade.

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As diferenças de classe sempre muito marca-das. Dona Zica era moradora da parte baixada cidade, bairro dos mineiros. Casada comum senhor que se havia tornado cozinheiroem Morro Velho. O homem contava com aconfiança dos patrões ingleses, tanto que eraele o cozinheiro escolhido para acompanhá-los nas caçadas de antas em finais de sema-na. O cozinheiro preparava a carne depois deabatidos os bichos. Foi dona Zica quemme contou o caso e observou: “Osmiolos de anta são bem saborosos,lombo eu nunca comi”. A desigualda-de de classes, que operou a repartiçãodos bairros, também operava a repar-tição da carne.

O fato é que um dos engenheiros de MorroVelho foi demitido. A casa em que residia,pertencente à mineradora, ficou disponível.Os patrões, em agradecimento ao cozinheiro,ofereceram-lhe o imóvel. Disseram quepoderia adquiri-la mediante longas e suavesprestações. Ele consultou dona Zica e topa-ram a idéia. Os vizinhos apostaram que amudança nunca ocorreria. Dona Zica contouque uma das vizinhas dizia: “No dia dissoacontecer, as galinha vão ter criado dente”.Aconteceu, chegou o dia e a família levantouacampamento. Não sem alguma aflição: cus-tava afastar-se dos vizinhos, os irmãos declasse, irmãos de destino. Dona Zica assegu-rou os amigos sobre a porta sempre aberta,mas não deixou de brincar com a vizinha:“Espia o fundo do quintal que, hoje, galinhanão cisca mais milho e vai roer a espiga”.

Quando marido, dona Zica e filhos chegam ànova casa, recepção desagradável: a fiação ediversos canos tinham sido partidos. A famíliado engenheiro, já aborrecida com a demissãodo pai, tinha se indignado com a notícia deque seriam sucedidos pela família do cozi-nheiro. Deixaram então o seu protesto. DonaZica instalou-se assim mesmo. Com o tempo,tudo teria conserto.

E haveria tempo inclusive para um sonhoantigo: um quintal de flores. Mãos à obra,dona Zica plantou flores e fez canteiros que,revezando-se, floresciam o ano inteiro. Dizemque o povo da cidade até se orientava sobreas estações do ano pelas flores que davamno quintal de dona Zica. Numa papelaria de

Nova Lima, encontrei dois e só dois tipos decartão-postal da cidade: num deles, a fachadada mineradora Morro Velho, orgulho oficialde Nova Lima; noutro, a fachada era da casade dona Zica e o seu jardim.

Mas a história prosseguiu. “Um belo dia, dissedona Zica, chega a madame ao meu portão.Uma senhora toda de amarelo. Sapatos ama-relos. Meias amarelas. Saia, blusa e casaqui-nho – Amarelos! E levava um chapelão enor-me, também amarelo! Tão grande que, quan-do aquilo pendia para a direita, a mulhertinha que se jogar para a esquerda, de modoque pudesse seguir em linha reta. A madameme viu assim no jardim, fez psiu bem alto.Atendi. E ela foi logo resmungando: Êêê, Zica!Eu aqui procurando um lote de gente e vocême ocupando esse terreno todo com flor.” Amulher amarela falou por falar, de maneiraestapafúrdia: o terreno, mesmo sem flores,não serviria para residência de madame. Masa gente entende por que dona Zica conta ahistória, por que vai me dizer o que talveznão tenha dito para aquela senhora.Devolvida ao passado e ao portão, diante damadame, Dona Zica agora parece pron-ta para finalmente retrucá–la. Olhou-me como se outra vez visse a mulher.Olhou-me de maneira muito grave, orosto tomado de amargura, o dedoem riste apontando meu rosto: “Adona ’tava desfazendo da gente. Fossecasa dela, podia. O senhor sabe?Pobre também pode gostar!”.“

Nunca mais esqueci a frase. Esse protestocontra alguém “desfazendo da gente”, colabo-rando para desmanchar a realidade da gente.“Desfazer” é palavra que, na cultura popular,quer dizer “desprezar”. É o verbo usado paraassinalar golpes de desprezo e humilhação,golpes de rebaixamento moral e político.

O outro trecho: “Fosse casa dela, podia”. DonaZica consciente de que a fruição de certasexperiências, certos direitos, está reservadapara uma só classe. E finalmente: “O senhorsabe? Pobre também pode gostar!”. Repare ouso intransitivo do verbo. Não se disse: “Pobretambém pode gostar de flores”. Ela disse sim-

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NÃO SOMOS SEM OS OUTROS

Nós somos animais sociais, nãosó porque a gente precisa dosoutros para viver, mas porque agente precisa dos outros paraviver como gente. Há certascapacidades que a gente temque não alcançamos sozinhos.

O indivíduo, inclusive, para fazera experiência de si próprio, pre-cisa do outro. Um indivíduo nãoé alguém em isolamento, apesarda palavra indivíduo, etimologi-camente, associar-se à idéia deum ser destacado da convivên-cia com outros seres. O indiví-duo só assume singularidade setiver alguém com quem com-partilhá-la, caso contrário ficaum tanto apagada, fica sem rea-lidade para ele próprio. Trata-sede um paradoxo que pode serainda mais radicalmente formu-lado: precisamos de laços paraatinar com o fato de que somosseparados. Somos irredutíveisàs relações que habitamos e deque partimos para atinar comnossa irredutibilidade. Daí nãoser difícil a psicologia se tornarpsicologia social, contanto queo psicólogo mantenha-se atentoà dependência que gente temde gente, inclusive para viversua radical alteridade.

A psicologia social quer justa-mente lembrar que as vivênciasse enraízam em convivências.Vivências podem ser rompidasem convivências, justamentequando a convivência é supera-da ou é impedida pela violência,pela violência política, pela vio-lência moral. Violência política éinterromper a iniciativa ou avoz, interromper a palavra dosoutros. Não conversar; coman-dar. Não trocar; forçar, obrigar,subordinar.

plesmente: “pode gostar”. Écomo se o experiência implica-da na fruição de flores (essascoisas que não são nem refei-ção e nem instrumentos) fosseamplificada e generalizada: gos-tar, apenas gostar. Gostar vaientão valer não uma experiên-cia de consumo e nem umaexperiência utilitária. Vai assina-lar uma capacidade que, talvezdispensável para nossa grossei-ra subsistência, é indispensávelpara a nossa subsistência moralou espiritual. Trata-se da capaci-dade de manter o sentido dasflores e da beleza, uma capaci-dade incomparavelmentehumana.

A atitude e a frase da mulhermarcaram como um núcleotraumático a memória de donaZica. Anos depois, dona Zicaainda lhe devia uma resposta.Uma resposta, tarde que seja,mas que acerte o ponto, pareceimprescindível para curar o maldisparado. O mal, justamente,penso que consistiu na exposi-ção de dona Zica a alguém quenão lhe valeu como fiador desua humanidade e como fiadorde uma experiência humana.Sem reparar o rosto e a belezade Dona Zica, sem afiançar aalegria de Dona Zica, a alegriade viver no meio de flores, nomeio de coisas que não são decomer e nem de usar ou ven-der, coisas só de admirar, a se-nhora de amarelo ameaçouenfraquecer e roubar a realida-de de dona Zica, das flores e dafruição de flores. A realidade eo sentido da beleza, a alegriadisso, em Dona Zica, poderiamter sido interrompidos por umaoutra mulher. Mulher que,nesse caso, não abordou frater-nalmente dona Zica, abordou-ade maneira soberba. Como umapatroa.

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A violência moral está muito ligada àexperiência da visão e da escuta.Muito ligada aos olhos, ao impedi-mento do entreolhar. Muito ligada aoimpedimento das trocas de atenção ede audição. Violência moral é a violência deolhar sem calma para os outros. Olhar comcalma é ultrapassar a visão dedicada ao outroquando dele precisamos só para nos servir.Olhar com calma é olhar além das condiçõesde trabalho e, sobretudo, olhar com calma éolhar fora das condições de dominação. Oolhar, quando é calmo, dura, esposa o tempo,apóia o sentimento de que alguém é diferen-te de uma coisa. O sentimento de que é dife-rente até mesmo de um organismo. Apóia osentimento de alguém enquanto tal: nemcoisa e nem organismo, também diferente denada, a pessoa aquém e além da identidadeem que a capturamos.

É arriscado distinguir violência moral e vio-lência política: são sempre reversíveis. O maisdecisivo é percorrer estas comutações, atéque se mostrem como lados de uma sótrama, a frente e o avesso.

OLHARES NA VILA JOANIZA

Trabalhei e entrevistei mulheres migrantes daVila Joanisa, periferia sul de São Paulo.Tinham assumido tarefas dos Centros deJuventude. Lembro uma história concreta.Perguntei para Natil como havia ingressadono Centro de Juventude São João, do qual elase tornou coordenadora. Achei que mencio-naria convocação para uma reunião ou luta.De maneira inesperada, ela contou ter passa-do pela frente do prédio do Centro deJuventude - que é casinha em pirambeira.

Curiosa, foi espiar o que havia dentro. Olhoupor cima do portão. Neste momento, umamulher está subindo a ladeira e os olhares secruzam. Natil, muito constrangida, sentindo-se intrusa, bisbilhoteira, recolhe-se logo paraa rua e vai apressando o passo embora. Amulher alcança o portão, abre, volta-se para Natil e mal a chama compalavras; acena com as mãos e comlábios mudos: “Entra, pode entrar”.

Há um olhar de que nós todos somos capa-zes, mas que abandonamos na dominação. Adominação cega ou apressa a visão. A curiosapassou pelo portão e nunca mais saiu.

OUVIR, VER, NOMEAR

Penso, como Emanuel Lévinas, que ouvir osoutros é um dom. Não depende de aprendi-zagem. Um dom geral, não é reservado auma ou a outra pessoa. Ouvir é coisa de quea gente nasce capaz. Em que sentido? Veja oexemplo das crianças muito pequenininhas:não participam rigorosamente da conversa-ção, não são ainda plenamente capazes disso;mas a voz dos outros chega-lhes com umpoder enorme. A voz consola, abriga, fazninar. Pode perturbar. A voz sem palavras,mero som, tem já um poder fabuloso: omurmúrio das mães, aquelas frases maismurmuradas do que ditas.

Do mesmo modo, penso que o rostoganha o olhar das crianças, tem tam-bém um poder originário irresistível.Consola, abriga, faz ninar. As máscarasde olhos vasados ou vidrados podemhorrorizar. Não há ninguém – a nãoser mediante certas circunstânciassociais – que não seja sensível à visãode alguém.

O nome é a palavra que vem justamente tra-zer linguagem à experiência de ouvir e veralguém. Quando a gente ouve alguém, quema gente ouve? Quando a gente vê alguém,quem a gente vê? O que faz o nome? Onome designa, aponta a pessoa, mostra, des-taca, justamente sem defini-la, sem determi-ná-la, sem conhecer ou decifrar. O nome,quando pronunciado, não nos quer remeter atraços externos, traços que fazem nossoparentesco com coisas ou seres vivos, tam-pouco traços que aproximam ou distinguempessoas e nem mesmo traços de personali-dade.

Se eu digo “Francisco chegou”, não estoudizendo a mesma coisa que “o paulista che-gou”. Suponhamos que o tal Francisco sejapaulista. Ao dizer “o paulista chegou”, digomenos do que digo quando digo: “Francisco

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sempre jovem. Bonita visão da juventude!Porque é uma definição ética da juventude.Não é definição etária. Jovem é quem perma-neceu sensível e animado com a chegada ecom a visita dos outros. Não fica sem respon-der e sem cumprimentar. O jovem permane-ceu na audição e na visão de pessoas.

O jovem, por isso, é perturbado e inquietocom a violência política. E daí ser quem apóialutas de direitos humanos. Os agentes dedireitos humanos são joviais porque não per-deram de vista o rosto e não perderam deaudição o nome. Não perderam a compreen-são de que tratar gente abaixo da condiçãode gente é faltar com uma necessidade que agente tem desde o nascimento. A necessidadede respeitar gente.

O respeito por gente vem depois dosoutros, não vem antes. Para respeitarpessoas, a gente tem que se expor aelas. Não se trata de aprender a res-peitá-las para depois se expor a elas.

POLITIZAR

Há pessoas que são movidas pela sua fome epela fome dos seus agregados. Há pessoasque tem o seu desejo colocado no atendi-mento de necessidades econômicas e queacabam vivendo a política, a cidadania, comouma extensão disso, uma função prolongadada vida doméstica. Quando então se envol-vem em problemas públicos, será para me-lhor providenciar bens econômicos para si epara sua família.

Há pessoas que lutam em favor de supressãoda fome que não é a sua e nem da própriafamília. Nessas horas, a experiência da fomeé politizada: não é minha fome simplesmen-te, mas é a fome dos outros. Considerominha fome depois de passar pela considera-ção da fome dos outros. Chego à minhafome, mas tendo passado pela fome dosoutros. Não chego à fome dos outros pas-sando pela minha fome, como no caso ante-rior. Quando chego à minha fome tendo pas-sado pela fome dos outros, a consciência dafome não é mais mesquinha, espiritualizou-se, assumiu grande dignidade.

Hannah Arendt, trocando em miúdos, dizcoisa muito semelhante. E ousaria dizer emseu nome: minha fome me detém na esfera

chegou”. Se digo “o generoso chegou” tam-bém digo menos que “Franscisco chegou”. Onome tem lugar diferente de certos substan-tivos, de certos adjetivos que identificamalguém, que caracterizam alguém. Opera dife-rentemente. O nome aponta sem caracterizare superando qualquer caracterização. Nãodeixa dúvida sobre quem interpelamos, masinterpela sem manjar. O nome chama nãoum traço da pessoa, chama a pessoa.Convoca alguém, não o torna objeto de per-cepção plástica, acústica ou objeto de conhe-cimento. O nome faz falar a outrem e convi-da-o a falar: o nome prepara para ouvi-lo,mostrando atenção não simplesmente para“o que” vai falar, mas para “quem” vai falar. Onome dirige mais para quem diz do que parao que é dito.

Quando a gente ouve alguém, a gente ouvemais do que a pessoa diz, a gente ouve a pes-soa. Quando a gente vê uma pessoa, a gentevê mais do que uma máscara facial: a visão éabandonada ao rosto como quem se abando-na a alguém, a gente vê alguém. Alguém nãose deixa ouvir como as coisas que fala.Alguém não se deixa ver como uma aparên-cia. Testemunhar a voz e o rosto de alguémé, mais radicalmente, testemunhar alguémmesmo.

O dom de ouvir e ver, entretanto, não resistea tudo, especialmente pode não resistir à vio-lência. Contra a violência, dispomos funda-mentalmente do dom, ainda o dom, enquan-to não estiver quebrado o doador ou antesque o dom fique sem o reconhecimento dodoador embrutecido. Acrescente-se que, con-tra a violência, aí sim, a aprendizagem pode edeve contar. Nunca a aprendizagem mais queo dom, mas logo depois. A gente aprende aproteger o dom. A gente aprender a enfrentara violência contra o dom. O segredo estaráem que a aprendizagem não se arrogue subs-tituir o dom e só comece quando muitoantes houver sentido o começo do dom.

Para Emanuel Lévinas, o dom de ouvir e ver éo sentido da juventude. E por isso é que osjovens inclinam-se para a defesa dos outroshumanos. A juventude é o traço de quemnão perdeu o dom. Quem não perdeu dom é

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idiota de um problema privado,mas a fome do outro me trans-porta para a esfera espiritual deum problema político.

DOMINAÇÃO

Penso que na base de toda dis-criminação está a violência dorebaixamento político. Omachismo, por exemplo, come-ça pela posição da mulhernuma condição de serviço uni-lateral. O ato de servir ficareservado à mulher mais doque ao homem. Não há reveza-mento de homem e mulher noato de servir. O homem come-ça a assumir posição de coman-do em relação à mulher. E issotambém está na base do racis-mo.

Para o branco, o negro deve sermantido na posição compulsó-ria de um servidor, um serviçal,um subordinado. Não há reve-zamento na posição de serviçoentre brancos e negros. Claroque o revezamento supõe queo ato de servir nunca seja servil,quando o ato de servir é unila-teral tende ao servilismo.Insisto que a dominação está nabase do racismo.

Os negros enquanto negros,percebidos por raça e por cultu-ra, possivelmente provoquemnos brancos algum estranha-mento e, nessa medida, algumaresistência. Gostaria de maisargumentar, mas vou apressar esimplesmente afirmar que essaresistência desmancha-se como tempo, contanto que o conta-to seja um encontro, uma trocaentre brancos e negros. Agora,se a desigualdade marca o con-tatos, as resistências vão seragravadas, aprofundadas, cadavez mais racionalizadas e conge-ladas.

A razão do congelamento nãoestá no estranhamento, está nohorror dos brancos em renun-ciar à posição de superiores.Está no horror de verem osnegros em posição que nãofosse a dos trabalhadores a seuserviço e sob seu comando. Osbrancos tem horror da igualda-de política e este horror é origi-nariamente horror de morrer, éexpressão de um apego à vidaprivada; só em terceiro tempo éque o horror vai comutar-se emhorror dos negros, tendo emsegundo tempo comutado-seem horror de um contato igua-litário com trabalhadores. Umasociedade de gente livre, umasociedade igualitária vai ser maismodesta do que a nossa, por-que não poderemos sacrificarvidas por razão de tanta riquezae tanto luxo, por razão de tantasegurança contra a morte, porrazão de tanto medo de morrer.

Uma sociedade igualitária terámais gente dispensada do tra-balho manual, o que tambémquer dizer mais gente reconci-liada com o trabalho manual,porque mais oferta de trabalhomanual qualificado. É que asuperação do antagonismoentre administradores e operá-rios, a participação dos trabalha-dores no governo do trabalho,tende a recuperar dimensõesintelectuais do trabalho manual(exceção feita as trabalhosmuito simples, necessariamentemuito simples e que, então,deverão ser socialmente genera-lizados, um dever de todos ecada um, sem mais seremreservados a uma classe de pes-soas aviltadas). Ao invés degente rebaixada para trabalhosmanuais simplificados, o traba-lho outra vez complexo teráque supor vocação e estudopara serem exercidos. Essas coi-sas mexem muito com segu-

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ALEGRIA JOANISENSE

A renúncia ao mandonismo, mais que renún-cia, exprime o desejo quase irresistível deigualdade. O desejo de igualdade: não conhe-ço alegria maior. Há alegrias de mesma altura,mas nenhuma maior. A alegria de dirigir-se aalguém de igual para igual. A alegria de assistira pessoa mais envergonhada também dirigir-se a você de igual para igual. Vivi experiênciasassim na Vila Joanisa. Como descrevê-las bre-vemente? Vou tentar.

As mulheres com quem trabalhei, nosCentros de Juventude, praticavam ali um tra-balho sem patrões. A coordenadora de um CJtinha o seu papel assim definido: “coordena-dora é quem leva o grupo a mandar no tra-balho, não manda em ninguém e trabalhatambém”. A definição resumia o sentimentode todas elas: coordenadora, monitoras ecozinheiras, ninguém acima de ninguém, nin-guém abaixo de ninguém.

Havia grande diversidade entre elas. Raízesdiversas. Um grupo podia contar com mulhe-res de origem roceira ou operária. Mulheresbrancas ou mulheres negras. Jovens, adultasou idosas. Gente capaz de ler e gente iletrada.Eram diferentes os talentos. Havia quemfosse prendada em cozinha, bordados ouartesanatos. Havia quem trazia a memória decantos ou jogos de roda. Havia quem tivessegosto em contar histórias e quem acalentasseprovérbios e conselhos. Havia quem fosseprático e quem fosse de muito matutar. Osdiferentes talentos não valiam para autorizarcomandos, mas só para trocar.

Para educar crianças, as mulheres precisavamaplicar muita imaginação sobre pouco mate-rial e pouco espaço. A pobreza e a mentalida-de profundamente religiosa era o que tinhamem comum. Haviam crescido politicamente:enfrentavam prefeitos em caravanas e man-tinham ativa simpatia pelo movimento desaúde na zona leste, pelo movimento contraa carestia na zona sul e pelo novo sindicalis-mo no ABC paulista.

O governo dos CJ era assunto de todos, tare-fa sempre de uma reunião em círculo. As reu-niões eram o centro do poder: um problemaera resolvido só depois de circular pela voz

ranças psicossociais dos dominadores ou doscúmplices de dominadores.

CONCRETUDE DA DOMINAÇÃO

É muito importante considerar a especificida-de do racismo. Vale a pena examinar casosconcretos. A dominação não é nunca umfenômeno abstrato, um fenômeno geral quese apresentaria igual em toda a parte.

A dominação é como o diabo nos evange-lhos; quando consultado sobre quem é, eleresponde: “Sou legião”. A dominação élegião de dominações. Existe sob for-mas concretas, muito particulares,antes de assumir aspecto comum.Existe sempre concretamente, semprede maneira especial e muito determi-nada. Não deveríamos falar em dominação,pretender uma posição universal sobre oproblema, sem antes termos sofrido o deta-lhe de uma das suas manifestações. Existe adominação dos negros, das mulheres, dosíndios, dos gays, dos velhos, dos loucos, dospobres. A dominação se faz de um modoconcreto e precisa ser concretamente enfrentada.

Feita essa ressalva, vou ousar afirmaçõesmuito abrangentes, apenas justificado pelofato de há muitos anos seguir cidadãospobres e cidadãos negros. São afirmaçõesabertas à prova, mas retiradas desse contatoe do diálogo.

Enfrentar as formas concretas da dominaçãoexige renunciar à soberba. Enfrentar a domi-nação requer desejar a igualdade, o que émais do que renunciar à soberba. O desejoabraça e excede a renúncia. Renunciar é sem-pre ação negativa: uma inibição de ação. Aface positiva da renúncia à soberba é a alegriada igualdade, uma liberação da ação. Numcaso concreto de dominação, quando a gentecai no desejo da igualdade, quando cai na ale-gria disso, a gente então se prepara para revi-ver isso noutros casos: quem sai de umaexperiência de igualdade não aparece auto-maticamente capaz de todas as outras, masestá inclinado e se prepara para elas.

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de cada um e misturar as iniciativas. Isto fazialembrar o que lemos em Hannah Arendt: opoder é o que sai do igual direito de agir efalar. Só caminhamos para um poder popularquando cada um está livre para tomar inicia-tivas e para conversar.

Sem conversa, nada era decidido. Sem oassentimento de cada um, nada feito. O con-senso nunca era completo, mas era sempreensaiado. Ninguém estava sempre satisfeitoou sempre infeliz. Ninguém era obrigado afalar e, aos poucos, ninguém ficava sem falar.Não pegava bem falar demais. Ouvir pegavasempre bem. Só quando um grupo mostravaouvir é que merecia que a gente falasse. Umgrupo surdo era abandonado ou xingado.

Os grupos mais firmes foram os que rema-ram gradualmente e abraçaram as horas demal-estar. Não censuravam os conflitos enem os deixavam minguar. Uma reunião nãobastasse, então duas ou três, quem sabe qua-tro. Os melhores caminhos não apressavamsaídas. E nem demoravam demais.

Os grupos mancos foram os alarmistas.Apavoravam-se com contradições e desperdi-çavam as divergências. Emudeciam nas crises.Engoliam amarguras. Varriam objeções parabaixo do tapete. Abrigavam-se nos acordosforçados. Queriam caminhar em bloco, semsoltar ninguém.

A memória de escola, que marcava aquelasmulheres, não podia ser pior. A escola dainfância tinha geralmente valido um lugar dehumilhação. Ninguém aprende nada quandorebaixado. Engole ou cospe, não cai no gostode aprender quando cai como inferior.Ninguém logra ensinar quando avança comoum superior. Naqueles anos de CJ, o que cha-mou minha atenção foi que muitas mulheresforam outra vez sacudidas pelo desejo deestudar. Com a experiência comunitária, sen-tindo-se outra vez de pé, várias delas retoma-ram seus estudos fundamentais. Algumas atéalcançaram faculdade. De volta à escola reen-contraram humilhações. Mas não caíammais. Essas mulheres foram devolvi-das à escola por uma experiência decidadania. Por isso é que ouvíamosdelas: “Escola faz cidadania? Não, cida-dania é que faz escola!”.

MARTIN LUTER KING

A causa do respeito à diversidade é muitoimportante. Mas não pode ficar desligada dacausa da igualdade política. O desrespeito àdiversidade, a meu ver, é um sintoma da de-sigualdade política. Não adianta pedir tole-rância às diferenças sem pedir, mais radical-mente, que nos encontremos politicamentecomo iguais, ou seja, todos e cada um noigual direito de falar e de tomar iniciativas. Oque está radicalmente por trás do preconcei-to contra os pobres, contra os negros, contraos índios, contra as mulheres, contra os gays,contra os velhos e os loucos, é a desigualda-de política.

Martin Luther King logo que começoua reivindicar igualdade entre negros ebrancos, encontrou problemas.Todavia, em grande medida, a causafoi entendida segundo a bandeira dorespeito à diversidade. Para muita gente,a começar pelo então presidente Kennedy, oque Martin Luther King desejava não contra-riava o projeto norte-americano. Contrariavasomente a intolerância relativa às diferençasraciais e culturais.

Mas quando aconteceu do pastor negro, me-lhor do que nunca, frisar que a luta pelaigualdade entre negros e brancos era lutacontra a dominação, e não só a dominaçãode norte-americanos por norte-americanos,mas também a dominação de nações pornações, perdeu a ostensiva amizade do presi-dente. Foi assassinado. Ficou precisamenteperigoso quando encontrou parentesco entrea luta dos negros nos Estados Unidos e a lutade proletários no mundo todo. Foi quando,sob nova luz, voltou a ligar sua luta e a lutade Ghandi. Martin Luther King foi assassinadoquando compreendeu e afirmou nexos entrea luta dos negros, as lutas operárias, as lutaspor reforma agrária.

AMIZADE

Hannah Arendt sustentou de diversas manei-ras que a qualidade maior de um cidadão é acapacidade de imaginar-se num lugar que não

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O impedimento de agir e falarproduz gente invisível, reduzidaao desempenho de funções ser-vis exigidas pelo seu senhor oupatrão. A pessoa dominada ficacomo que colada ao desempe-nho da função, sem governá-la,como se não existisse e apenasfuncionasse. Sem existir, sempoder distender-se em palavrase em ações, perde dois meiosespeciais da aparição pessoal.

Agir e falar não são as únicasformas pelas quais alguém apa-rece, mas são formas decisivas.Contam do lado da cidade. Hátambém aparição no silêncioque, digamos, conta do lado decasa: a pessoa silenciosamenteamada aparece para quem aama, para quem a ama assimtão delicada e maternalmente.Estes dois lugares da aparição, acidade e o colo, não são reversí-veis embora apóiem-se mutua-mente. E são ambos indispen-sáveis. Sem hospitalidade dapraça e de casa, a pessoa apaga.

Negras e negros, africanose afro-descendentes, noBrasil, foram secularmentecolocados em posição elugar de servidão.Apareceram ostensivamentecomo escravos, como servos,depois assalariados inferioriza-dos, mas essa aparição servil dáo mesmo que não aparecer. Suaaparição pessoal, a aparição decidadãos, a aparição de gover-nantes, sua casa e sua cidade,isto tudo foi severamente inter-ceptado. O que os tornouostensivamente visíveis comoescravos ou subordinados tam-bém apagou o seu rosto e o seunome.

é o seu. Para imaginar-se nolugar do outro, nada maisimprescindível do que conver-sar. Nada como ouvir alguémpara imaginar o mundo sobperspectiva que não é a minha.

Amigo não é apenas quemguarda comigo uma relação deintimidade. Existe uma formade amizade que não dependede intimidade e que consisteem mostrar pela opinião alheiaa mesma consideração reserva-da à própria opinião. Este res-peito público é o que HannahArendt frisou como a formapolítica da amizade.

INVISÍVEL, VISÍVEL

Invisibilidade pode ser um dosefeitos de dominação. Quandoquem fala é todavia impedidode falar, impedido de opinar,impedido de responder por umponto de vista e participar dedecisões, começa a desaparecersocialmente. Quem age e fala,aparece: toma iniciativas, fazgestos e faz propostas em dire-ção que excede as direçõesconhecidas e automáticas.

A dominação representa umimpedimento da voz e da inicia-tiva. Quando há impedimentoda voz alheia, aquele ou aquelesque a impedem, por sua vez,não costumam falar: costumamdar ordens, gritando e tambémsem gritar. Aqueles que impe-dem a ação de outros e delibe-ram sobre o comportamentoalheio, não agem: forçam, coa-gem. A dominação, apesar deacertar de modo especial odominado, acerta também odominador. Dominado e domi-nador, cada qual sob sua medi-da, são ambos excluídos daexperiência de agir e falar.

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Ser lançado ao mando e desmando dosoutros. Viver comandos que não hesitam cairsobre mim. Estar sempre na contingência dereceber ordens, obrigado a obedecer semcontestar. Isto desenha, ao mesmo tempo,superexposição e subexposição. Uma mesmaexperiência sob ângulos diferentes. Não hácontradição. Há dominação. No servo super-exposto há desaparição de rosto, nome, pala-vras e iniciativas, amortecimento de biografiae memória.

HISTÓRIAS JUSTIFICAM VIDAS

A matéria das biografias são as palavras e osfeitos deixados por alguém. Contar histórias arespeito de alguém implica lembrar suas ini-ciativas e seus discursos. A pessoa cuja histó-ria é contada não vai aparecer toda ilumina-da, toda manjada, como aparecem os servos.

É por superexposição que a gente se relacio-na com os servos, como se soubéssemossuficientemente quem são eles, por que epara que estão ali. Mas alguém ou um cida-dão nunca a gente dirá conhecer suficiente-mente. Quem é? Que faz? Por que faz? Paraonde vai? Dependemos de conviver com elepara atinar com respostas, sem nunca repou-sarmos nelas. Porque pessoas têm mistérioou sombra, cidadãos têm mistério ou som-bra: alteridade, irredutibilidade, singularidadeinsondável e que não se deve devassar.Pessoas são agentes de surpresa, não sãomáquinas previsíveis ou organismos de com-portamento manjado.

Já o servo é manjado. A gente sabe o queesperar dele, esperamos aquilo a que estáobrigado. É obrigatório que nos satisfaça.Agora, de cidadãos nunca sabemos o queesperar, porque são seres de iniciativa, depalavras. São livres.

Contar e ouvir histórias ou biografias é indis-pensável para a cidadania e para a personali-dade. Quem não deixa história, quem ficasem o testemunho dos outros, desaparecepara a cidade e, desaparecendo para a cidade,em alguma medida, desaparece para si pró-prio. Também é fato que a gente precisa reite-radamente sair da luz pública, precisa do

silêncio, da casa, do recolhimento, ambientesou posições de profundidade, que nos põemmais densos, menos superficiais nos devol-vem ainda mais pessoais para a cidade. A rea-lidade, dirá Hannah Arendt, a gente retira daconvivência pública com os outros. Quandoos outros nos abordam como gente que falae age é que nos tornamos mais reais. Mas elaacrescentará que precisamos do recolhimen-to para entrar na cidade de maneira mais ori-ginal e menos impessoal. O recolhimento ali-menta pontos de vista que confrontaremosna cidade, tornando mais difícil e mais verda-deira a descoberta do mundo comum. A des-coberta do mundo é mediada por nossostestemunhos e depoimentos: e é tanto maisverdadeira quanto mais reúne e supera pon-tos de vista particulares, retirados de opiniõesque não sejam automáticas e que forammaturadas no recolhimento.

IDENTIDADE

Identidade de alguém ou de um grupo não éa mesma coisa que alguém, não é a mesmacoisa que o grupo. A identidade é signo dealguém ou signo de um grupo. É realidadeque tem expressão sensível e que podemosfixar. Valores, hábitos, atitudes aparecem apartir de certos ambientes. Por exemplo, aidentidade dos índios Bororo vem pela arqui-tetura das casas e da aldeia, vem pelo modojustamente como as casas estão distribuídas,vem por certos valores compartilhados, valo-res transmitidos dos velhos para os jovens. Aidentidade vem por formas assumidas pelotrabalho e pelo parentesco.

Os índios Bororo, entretanto, não coincidemcom sua identidade Bororo. Apóiam-se nestestraços comuns, para poderem ir cada um etodos realizarem a aventura das suas vidasmais próprias. Do mesmo modo, uma pes-soa encontra nos traços identitários uma ala-vanca para suas palavras e ações, nem mais enem menos. As palavras e ações não podemser previstas de seus apoios e alavancas. Adominação atinge o direito de agir efalar, também tende a desmoralizar aidentidade. Na dominação, a culturado dominado é desmoralizada, suascrenças aparecem como crendices,sua religião como superstição, sua lín-gua como instrumento tosco.

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raiz: amor desprendido, amorconsistente. Um movimentoleva ao outro.

Se me perguntassem o que pre-ciso fazer para respeitar as raí-zes do outro, eu diria: respeitarminhas próprias raízes. E pararespeitar minhas próprias raízes,o que preciso fazer? Respeitaras raízes do outro.

PAPEL DOS BRANCOS

Os brancos precisam compre-ender que sua dignidade supõea defesa da dignidade dosnegros. Precisamos atinar com ofato de que dominação é vio-lência e faz estragos gerais, entredominados, entre dominadores,entre uns e outros. Não é sim-plesmente a condição do domi-nado que é miserável, a condi-ção complementar, do domina-dor, também o é.

Necessitamos compreender queas lutas concretas e particularessão o caminho para as lutasuniversais. A gente não luta uni-versalmente pelo direito, se nãolutar concreta e particularmentepelo direito do negro, do índio,da mulher, do operário e assimsucessivamente. O universalnão tem meio de alcance quenão seja o concreto e o particular.

A superação da dominação seráparticular e concreta. Ninguémsabe o que é o preconceito, senão tiver atinado com o pre-conceito contra o negro, contraa mulher, contra os pobres.Ninguém sabe o que é o pre-conceito se não tiver feito umaexperiência concreta de exposi-ção ao preconceito.

Se a gente dispara a luta contraessas experiências singulares deviolência e a interrogação sobre

Os apoios e alavancas identitá-rios, apoios e alavancas paraações e palavras de grupos e depessoas, desmoralizados, ficamsem apreço num ambiente dedesprezo. É preciso resistir con-tra a desmoralização e comba-ter a dominação.

TROCA DE INFLUÊNCIAS

A identidade não pode ser con-fundida com a própria pessoaque, em situação que não sejade dominação, tem necessidadede trocar influências com pes-soas de outras raízes. SimoneWeil frisava a necessidade deraiz, o enraizamento, o direito àraiz, o que para ela era o direitoà participação real, ativa e natu-ral em grupos que vivamenteconservam tesouros do passadoe pressentimentos do futuro.

A defesa das raízes é defesa daidentidade cultural. Mas SimoneWeil igualmente frisava a neces-sidade de trocar influências, atroca entre pessoas e mundosdiferentes, contanto que a trocanão fosse uma espécie deimportação pela pessoa ounação rebaixadas dos traçoscaracterísticos de pessoas ounações acimadas.

Na dominação não há troca.Uma cultura, como nos dizEcléa Bosi, deixa de valer comouma revelação, pois há imposi-ção de uma identidade contraoutra.

Identidade e troca: há dialéticaaqui. O bem não está numa ounoutra tanto quanto entre elas.Aquele que ama suas raízesconsistentemente e não imagi-nariamente, idealizando-as, esti-ma raízes alheias. E a pessoacapaz de amar raízes de umoutro é pessoa que cresce noamor desprendido pela própria

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a coisa, sobre a origem da coisa,a gente começa respondendoquestões que são pertinentesaqui entre os negros, ali entreos índios, lá entre as mulheres.Fazendo isso, a gente começa afalar, por exemplo, um idiomanegro, mas que as mulheres eos índios vão entender. Existeuma comunidade de destinoentre os oprimidos e, sobretu-do, uma comunidade de desti-no entre os guerreiros, uma vezque os guerreiros e as guerrei-ras são justamente os quetomam o seu destino nas mãose associam–se aos outros, seuspares e seus companheirospolíticos.

Os brancos precisam compre-ender que a defesa da dignidadede uns supõe a afirmação dadignidade de todos.

DEFESA PROFUNDA

Um problema de certas organi-zações para assistência aospobres, aos doentes, aos loucos,aos índios, forma-se quandonão percebem que a defesa dosdireitos de outrem confirmadireitos de todos. Quem podesentir que seus direitos estãogarantidos, quando os direitosdos negros não estão? Só quemdistingue os direitos dos bran-cos e os direitos dos negros.Quem pensa assim não com-preendeu o sentido do direito,porque o sentido do direitocombina particularidade e uni-versalidade.

DIVERSIDADE EDOMINAÇÃO

Não devemos subestimar enem exagerar o papel da intole-rância no racismo. Afirmar adiversidade, o direito à diversi-

dade e a beleza da diversidadeé imprescindível. Mas é precisocuidar para não dissociar aafirmação da diversidade e aluta contra a dominação. Àsvezes, me dá impressão que,para alguns militantes, a domi-nação é efeito de intolerânciacultural.

O que está na raiz da intole-rância cultural, parece-me, é adominação. Quando não tiver-mos mais necessidade de nosservir do trabalho rebaixadode alguém, quando a gentenão tiver mais nossa segurançapsicossocial na servidão dosoutros, quando a gente estiverlivre de uma sociedade que seorganizou sobre a desigualda-de, o racismo deixará de ope-rar, pois deixará de fazer senti-do. E também deixará de com-portar impulsos de sentidoignorado, mas até agora apoia-dos e racionalizados.

Quando então pessoas dife-rentes se encontrarem, haveráestranhamento. O estranha-mento, nesse caso, representa-rá a confirmação de que nóssomos diversos.Estranhamento que, nessecaso, é pedido de tempo paraa abertura da gente, tempopara o gozo do outro, para afruição do outro.

Na dominação, o estranha-mento rapidamente se degradaem desprezo. O desprezo pelodiferente rapidamente tomaconta da experiência deestranhamento do diferente.Eis outro traço terrível e psico-lógico da dominação: a domi-nação abrevia e congela a pro-funda experiência do estranha-mento, que é uma experiênciaamorosa.

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Durante o curso buscou-se identificar o impacto do métodoproposto. Fossem para corrigir rotas do processo, fossem paraajudar a pensar conteúdos e dinâmicas de futuros cursos.

Foram usadas várias técnicas de avaliação: orais, por escrito, portelefone. A seguir, vamos resumir o que os participantes falaramacerca de suas experiências de contato com o tema efeitos psicosso-ciais do racismo.

Os primeiros impactos foram fundamentalmente emocionais.Foi citada como muito importante a identificação de situaçõesde preconceito e de discriminação. Infância, família, escola,emprego foram indicados como “lugares” particularmente sensí-veis.

Conhecimento e autoconhecimento. O primeiro, por observaçãoe reflexão das coisas do mundo. O segundo, pela análise dasrepercussões externas no interior de cada um.

O “estar junto” foi bem valorizado! Falar, ouvir, falar, ouvir. Aspalestras e oficinas trouxeram subsídios para a reflexão e provo-cação para o intelecto. Os participantes foram unânimes emreconhecer o quanto a proposta do Curso mexeu com cada um.Para a maioria ficou claro que experiências individuais de sentira discriminação e a humilhação não impedem pensar estratégiascomuns de enfrentamento.

CINCO MESES DEPOISDEPOIMENTOS DOS PARTICIPANTES

IMPACTO DO CURSO NO AUTO-DESENVOLVIMENTO:

Novas maneiras de lidar com o preconceito e a discriminação.Muitos se esforçam por “racionalizar” no lugar de “afogar-se naraiva”. Pensar a situação e ter respostas mais eficazes foi umatônica nas avaliações. Também foi citada uma menor tolerânciapara as afrontas raciais, ao lado, de uma maior consciência daidentidade “negra”. Mudanças na forma de ver, a médio prazo,podem significar mudanças na forma de agir.

IMPACTOS

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MUDANÇAS NOS RELACIONAMENTOS INTERÉTNICOS:

Aumentou o desejo de trabalhar com pessoas negras, principal-mente, com os jovens. O fato de o Curso ter contado com bran-cos foi visto como positivo, pois houve um entendimento deque o racismo é um problema que afeta quem o sofre e quemo pratica. A solução do problema passa por negros e brancos.

DESDOBRAMENTOS DO CURSO NAS PROFISSÕES:

Alguns consideram que cinco meses é pouco para avaliar des-dobramentos na profissão. Outros apontam que processos vivi-dos, durante o curso, causaram impacto positivo nos seus coti-dianos de trabalho. Maior sensibilidade e apropriação de algu-mas dinâmicas.

DESDOBRAMENTOS DO CURSO NAS RELAÇÕES FAMILIARES:

Abertura para comentar percepções de discriminação. O cursoforneceu subsídios para a introdução do tema racismo na rodafamiliar. Ajudou a ampliar momentos de reflexão.

O QUE FAZER PARA MELHORAR A SI MESMO:

Estudar, ler, refletir acerca da realidade das pessoas negras noBrasil. Também criar, se expressar, sonhar com a realidade daspessoas negras no Brasil. Trabalhar com o corpo, soltar as ener-gias. Cuidar da psique.

RECURSOS PARA DESCONSTRUIR RELAÇÕES RACISTAS:

Consciência, reflexão. Autocrítica no tocante aos preconceitos.Lutar e conquistar espaços.

INTERVENÇÃO SOCIAL:

Discutir mais as questões raciais. Não deixar que as coisas pas-sem distraidamente. Cobrar das pessoas brancas um posiciona-mento mais firme em relação à discriminação contra os negros.

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ALTERIDADE: significa consi-derar, valorizar, identificar, dia-logar com o outro (alter, emlatim). Diz respeito aos relacionamen-tos tanto entre indivíduos comoentre grupos culturais. Na rela-ção alteritária, o modo de pen-sar e de agir, bem como as expe-riências particulares são preser-vadas e consideradas, sem quehaja sobreposição, assimilaçãoou destruição.Eis o desafio: estabelecer umarelação pacífica e construtivacom os diferentes. Um caminhode superação deste embate esta-ria baseado em três fases: iden-tificar, entender e aprender como contrário.AUTO-ESTIMA: imagem ouconceito de si próprio.Para os homens negros e asmulheres negras, a construçãode uma imagem positiva, essen-cial para o desenvolvimento daauto-estima, foi sempre dificul-tada. Vivendo em uma socieda-de que os discrimina, eles inter-nalizam imagens negativas deseu povo e de si próprios.Espera-se que, gradativamente,esse quadro possa ser mudado.Através de um maior conheci-mento e valorização da culturaafricana, os afro-descendentespoderão se auto-afirmar etnica-mente e construir sua identida-de, elevando sua auto-estima.

GLOSSÁRIOpor Eliana de Oliveira

BANZO: saudade da África. A tristeza dos negros escraviza-dos, na forma de saudade dasua terra natal, era tão grandeque levava ao enlouquecimentoou à morte. Muitos negros,tomados pelo banzo, suicida-vam-se comendo terra, enfor-cando-se ou envenenando-se.

CANDOMBLÉ: religião deorigem africana que cultua asenergias da natureza na formade orixás. A sede onde se prati-ca a religião. Ex.: Roça de can-domblé (igual a terreiro).O candomblé significou para oescravo um elo com o mundoafricano de onde foi arrancado.Essa religião, sem dúvida, foium mecanismo de resistênciacultural.

CONSCIÊNCIA:Conhecimento. Noção. Idéia.Noção do que se passa em nós.Percepção mais ou menos clarados fenômenos que nos infor-mam a respeito da nossa pró-pria existência.

CONSCIÊNCIA NEGRA:reconhecimento de suas origensétnicas. Afirmação da identida-de racial. Orgulho e valorizaçãodas raízes africanas.

CULTURA: é o modo de vidade um povo, o ambiente que umgrupo de seres humanos, ocu-pando um território comum,criou, na forma de idéias, insti-tuições, linguagem, instrumen-tos, serviços e sentimentos.

Cultura é um todo complexo decrenças, conhecimentos, arte,moral, leis, costumes e qualquercapacidade ou hábitos adquiri-dos pelo homem como membrode uma sociedade. A culturanão nata é adquirida através daeducação incluindo os conheci-mentos.

CULTURA NEGRA: os povosafricanos tinham uma formaprópria de organização social euma maneira de se relacionarcom o meio ambiente que eramuito diferente daquela propi-ciada pela visão de mundo euro-péia.Na cultura africana, a pessoahumana é vista como uma tota-lidade integrada à terra e ànatureza, cujos elementos sãodeificados. Os valores morais,sociais e ecológicos representam-se através das religiões, dos ritose das artes em geral.O Brasil é herdeiro dessa cultu-ra que nos influencia há mais de400 anos!

DEMOCRACIA: é o governono qual o povo, titular da sobe-rania, ou a exercer diretamenteou por meio de seus represen-tantes. Geralmente define-sedemocracia como o governo dopovo, pelo povo e para o povo,querendo, com isso, dizer que,na democracia, o povo além detitular da soberania, a exercepor si mesmo, ou por delegaçãoexpressa em benefício do própriopovo.

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Democracia racial: a ideolo-gia da democracia racial preco-niza que as relações raciais noBrasil foram construídas atravésde interações sociais predomi-nantemente harmônicas e tole-rantes; que os senhores deengenho foram generosos e afe-tuosos com os africanos escravi-zados.Ainda hoje existem defensoresdesta idéia, apresentando oBrasil como um “paraíso racial”de negros e brancos. Mas sabe-mos que essa ideologia foi umaestratégia perversa para impediro povo negro de perceber o cará-ter racista da sociedade e doEstado brasileiro e de se organi-zar politicamente.

DESCENDÊNCIA: série deindivíduos que procedem de umprogenitor comum.Descendência afro-brasileira:diz-se dos indivíduos que nasce-ram no Brasil, mas que têm suaorigem nos africanos que foramtrazidos como escravos para oBrasil.

DISCRIMINAÇÃO: ação dediscriminar; separação, distin-ção, tratamento desfavorável.Discriminação racial: é umcomportamento coletivo obser-vável, até mensurável ligado acertos modos de funcionamentosocial. Ela é produzida quandose recusa aos indivíduos ou aosgrupos humanos, a igualdade detratamento que tem direito dereceber.

É o tratamento depreciativodado a pessoas de determinadaraça. Os afrodescendentes sãovítimas da discriminação racial. Pela atual legislação brasileira adiscriminação racial é crimeimprescritível, inafiançável eprevê reclusão.

ESCRAVIZAÇÃO: ato deescravizar. É a redução de umser humano à condição de escra-vo.Escravização no Brasil: no sécu-lo XVI, os africanos foram trazi-dos como escravos para o Brasil.O sistema escravista perversa-mente transformava homens emulheres negras em “coisas”,tentando destruir sua identida-de, sua cultura, suas lembran-ças. Esse sistema se prolongoupor três séculos e meio.

ESTEREÓTIPO: são precon-ceitos cristalizados em imagensou expressões verbais. Reduz odiferente em traços pejorativos.São preconceitos cristalizadosem imagens ou expressões ver-bais, em geral não se baseiamem experiências verdadeiras.Atribuem-se traços de personali-dade ou comportamento, a pes-soas, grupos, etc. Como dizer:os negros são preguiçosos, osorientais são pacientes, etc. Elenão é um problema da ignorân-cia. Ele tem a sua racionalidadeembutida na própria ideologia.

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MISCIGENAÇÃO: cruza-mento inter-racial. Mestiçagem.A miscigenação, que tem umacaracterística espontânea enatural, foi transformada pelaselites brasileiras em estratégiavisando ao branqueamento,“melhoramento” da populaçãodo Brasil, que era predominan-temente negra.

MULTICULTURALISMO:prática de acomodar culturasdistintas, numa única sociedade,sem preconceito ou discrimina-ção. Implica o reconhecimentoda diferença, o direito à diferen-ça, colocando em questão o tipode tratamento que as identida-des tiveram e vêm tendo nasdemocracias tradicionais. Como cada povo e grupo socialtêm uma cultura, permite pen-sar alternativas para as mino-rias e justificar a fragmentaçãoque reproduzem desigualdadessociais.

NEGRITUDE: é a consciênciade ser negro, a aceitação de suahistória e de sua cultura. Podeser definido como identidade,fidelidade e solidariedade.A valorização da negritude temsido uma das estratégias escolhi-das pelos movimentos sociaisnegros para a elevação da cons-ciência da comunidade afro-bra-sileira, para a luta contra oracismo e suas mais diversasmanifestações.

PLURALIDADE CULTURAL: pluralismo cultu-ral diz respeito às característicasétnicas e culturais de diferentesgrupos sociais que convivem emterritório brasileiro.Como a sociedade brasileira éformada por diversas etnias, apluralidade cultural é um tema

ETNIA: um grupo social cujaidentidade se define pela comu-nidade de língua, cultura, tradi-ções, monumentos históricos eterritórios.

ÉTNOCENTRISMO: senti-mento de superioridade de umacultura sobre as outras. É pen-sar que os meus valores são melhores. É usado como umaarma ideológica para dominaroutros povos. A passagem doetnocentrismo ao racismo requeracrescentar a idéia de uma dife-rença biológica imaginária efalsa.

IDENTIDADE: é o conjuntode caracteres próprios e exclusi-vos de uma pessoa. Consciênciaque alguém tem de si mesmo.Ela nasce da tomada de cons-ciência do outro, é construídadentro de uma relação dialógica.Identidade étnica: “é oreconhecimento, por parte deindivíduos e grupos, de perten-cer à determinada tribo oupovo. A existência de traçoscomuns como fenótipo, cultura ehistória é a base para a constru-ção da identidade étnica”. (cita-do por Diva in Zumbi dosPalmares vai às escolas – SEE,Belo Horizonte, 1996 [apostila])

INTOLERÂNCIA: é a falta derespeito diante das crenças edas práticas alheias. Manifesta-se quando alguém serecusa a deixar o outro agir demaneira diferente ou expressaropiniões diversas. Traduz-se pelarejeição ou exclusão de pessoaspor causa de sua crença religio-sa, opção sexual, tipo de vesti-menta ou corte de penteado etc.

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RACISMO: é a referência docomportamento do indivíduo à“raça” (etnia) a que pertence e,principalmente, o uso político dealguns resultados aparentemen-te científicos para levar à crençada superioridade de “um gruposobre os demais, através de ati-tudes de discriminação e perse-guição contra os grupos” que seconsideram inferiores.No Brasil não existem leis segre-gacionistas, nem que proclamemoficialmente a inferioridade dopovo negro. Mas uma das váriasformas de perceber o racismo noBrasil é verificar a situação dedesigualdade e exclusão dapopulação negra em relação àpopulação branca.

REMANESCENTE: queremanesce, que resta. O quefica de um todo depois de reti-rada uma parte.

Remanescente de qui-lombos: são comunidadesnegras, descendentes dos qui-lombolas. Em 1988, o artigo216 da Constituição Federalincluiu os “remanescentes dequilombos” como integrantes dopatrimônio histórico do país e oartigo 68, das “Disposiçõestransitórias”, garantiu o direitode propriedade sobre as terrasque ocupam.O Governo Federal “já mapeou743 comunidades, mas essenúmero pode chegar a mais de2000”.

RESISTÊNCIA: oposição, rea-ção, recusa de submissão à von-tade de outrem.

especialmente importante. Odesafio é respeitar os diferentesgrupos e culturas que compõemo mosaico étnico brasileiro,incentivando o convívio dosdiversos grupos e fazer dessacaracterística um fator de enri-quecimento cultural, visando àmanutenção ou à transformaçãode valores.A Pluralidade Cultural é um dostemas transversais propostos nosParâmetros CurricularesNacionais (PCN/MEC).

PRECONCEITO: é um julga-mento formulado sobre umapessoa, grupo de indivíduos oupovo que ainda não se conheceou não compreendemos. É umdado universal, ligado à psicolo-gia humana, um dado inerentea todas as culturas e a todas ascivilizações.

PRECONCEITO RACIAL:simplesmente uma disposiçãoafetiva imaginária ligada aosestereótipos étnicos, uma atitu-de, uma opinião que pode serverbalizada ou não, que podetornar-se uma crença.

QUILOMBO: aldeia organi-zada por negros que fugiam daescravidão. Estas comunidadesproliferaram como sinal de pro-testo contra as condições desumanas a que os escravosestavam sujeitos.Existiram muitos quilombosespalhados pelo Brasil.Palmares foi o mais importantedeles.Os quilombos foram refúgios demuitos brasileiros que erammarginalizados pela sociedadeescravista. Formavam umasociedade multirracial compostade negros, índios e brancospobres.

Resistência negra: foram asformas de reação do povo negrocontra a violência do escravismo.Resistência para conservar suahumanidade, para não perdersua identidade cultural.A resistência negra aconteceuatravés de fugas, suicídios,assassinatos de senhores, feito-res e capitães do mato; rejeiçãoao trabalho e também por seuscultos, rezas e danças. A forma-ção de quilombos foi a formamais elaborada de resistênciaempreendida pelos escravos.Lamentavelmente, essa históriada resistência do povo negrobrasileiro ainda não foi bemcontada pela história oficial.

SINCRETISMO: sistema queconsiste em conciliar os princí-pios de várias doutrinas.Os africanos que chegavam aoBrasil povos de diferentes cultu-ras e etnias. Com o tempocomeçavam a mesclar cultos,crenças e deuses.O sincretismo de divindadesafricanas com santos católicosfoi adotado como forma de fugirà perseguição da igreja, quecondenava as religiões africanas.Foi também uma forma deresistência adotada pelos africa-nos no Brasil para poderemmanter o culto às divindades,aos orixás.

XENOFOBIA: Termo de ori-gem grega, que significa “medoou aversão ao estrangeiro”. Étraduzido muitas vezes com hos-tilidade ou com violência contrapessoas originárias de outrospaíses e regiões ou membros deminorias étnicas.

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SUGESTÃO BIBLIOGRÁFICA

PARA SABER MAIS

Arendt, H. A condição humana. Rio deJaneiro, Forense Universitária, 1993.

Articulação para o Combate ao RacismoInstitucional e Instituto AMMA Psique eNegritude (org.). Identificação e Abordagemdo Racismo Institucional. DFID. Brasília, 2007.

Barth, Fredrik. Teorias da Etnicidade. SãoPaulo, UNESP, 1998

Bento, M.A. & Carone, I. Psicologia Social doRacismo. São Paulo. Editora Vozes, 2002.

Bobbio, Norberto e outros. Dicionário Político.Brasília: UNB, 1986.

Borges, Edson; Medeiros, Carlos Alberto eD’Adesky, Jacques. Racismo, preconceito eintolerância. São Paulo: Atual, 2002.

Bosi, A. Dialética da Colonização. São Paulo:Companhia das Letras, 1992.

Bosi, A. Fenomenologia do olhar. In: O Olhar.São Paulo: Companhia das Letras, 1988.

Bosi, A. Literatura e resistência. São Paulo:Companhia das Letras, 2002.

Bosi, E. Cultura de massa e cultura popular.Petrópolis: Vozes, 2000

Crochík, J. L. Preconceito, Indivíduo e Cultura.São Paulo: Robe Editorial, 1997.

Fanon, F. Pele negra, máscaras brancas. Rio deJaneiro: Fator, 1980.

Fernandes, F. A Integração do negro na socie-dade de classes. São Paulo. Ática, 1978.

Ferreira, Aurélio Buarque de Holanda. NovoAurélio século XXI: o dicionário da línguaportuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira,1999.

Gonçalves Filho, J. M. O bairro proletário e ahospitalidade. In: Revista Boletim dePsicologia de São Paulo, v. XLVIII, n. 108,Janeiro-Junho 1998, 27-47.

_______ Humilhação Social: um problemapolítico em Psicologia. In: Revista PsicologiaUSP. São Paulo, IPUSP, v. 9, n. 2, 1998 , p. 11-67.

_______ A invisibilidade pública (prefácio). In:Costa, F. B. da. Homens invisíveis – relatos deuma humilhação social. São Paulo, Globo,2004.

Ianni, O. Raças e classes no Brasil. Rio deJaneiro. Civilização Brasileira, 1972.

_______ Escravidão e Racismo. São Paulo.Hucitec, 1988.

La Boétie, E. Discurso da servidão voluntária.São Paulo, Brasiliense, 1982.

Lévinas, E. Ética e Infinito. Lisboa: Edições 70,1988.

Lévinas, E. Humanismo do outro homem.Petrópolis: Vozes, 1993.

Miranda, M.A. A beleza negra na subjetividadedas meninas. Dissertação de Mestrado. SãoPaulo. USP, 2004.

Munanga, K. As facetas de um racismo silen-cioso. In: Schwarcz & Queirós. (org.). Raça eDiversidade. São Paulo: EDUSP, 1996.

_______ Teorias sobre o racismo. IN: Racismo:perpectivas para um estudo contextualizadoda sociedade brasileira. Niterói: EDUFF, 1998.

Nogueira, I. B. Significações do Corpo Negro.Dissertação de doutorado. São Paulo: USP,1998.

Oliveira, L.O.A. Expressões de vivências dadimensão racial de pessoas brancas:Representações de branquitude entre indiví-duos brancos. Dissertação de Mestrado.Salvador: UFBA, 2007.

Rocha, Rosa Maria de Carvalho. Alfabetonegro. Belo Horizonte: Mazza Edições, 2000.

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PARTICIPANTESChindalena Ferreira Barbosa

Cipriano do Espírito Santo Filho (Black)

Edson Osmar Rodrigues Arruda

Elizangela André dos Santos

Fernanda Pompeu

Iara Rosa dos Santos

Karina Fanny Fernandez Arias

Lucia Castro

Márcia Adão de Souza

Maria de Lourdes Araujo Almudi

Maíra Villas Bôas Estima

Nathalia Villas Bôas Estima

Regiane Luzia Lopes

Silvia Mara dos Santos Silva

Tania Pedrina Portella

FORMADORES (AS)Eliana Oliveira é psicopedagoga com especia-lização em Antropologia Social.

Isildinha Baptista Nogueira é psicanalista edoutora em Psicologia Escolar e doDesenvolvimento Humano pela Universidadede São Paulo.

José Moura Gonçalves Filho é psicólogo, pro-fessor e doutor em Psicologia Social pelaUniversidade de São Paulo.

Liane Zink é psicoterapeuta, educadora cor-poral e diretora do Instituto Brasileiro deBiossíntese.

Marco Antonio Cabral é doutor em Historiapela Universidade de São Paulo.

FACILITADORASJussara Dias é psicóloga, especialista em Psicodrama peloCentre International de Psychothérapie Expressive(CIPE/Québec). Possui larga experiência em projetos sociais ededica-se ao estudo das relações interétnico-raciais, a partirdo enfoque psicossocial.

Maria Aparecida Miranda é mestre em Psicologia Clínicapelo Instituto de Psicologia da Universidade de São Paulo.Experiência profissional em consultoria, elaboração, gerencia-mento, supervisão e coordenação de programas nas áreas:sociais, saúde, educação e cultura.

Maria Lúcia da Silva é psicóloga e psicoterapeuta especiali-zada em trabalhos com grupos. Há quinze anos, atua com astemáticas gênero e raça/etnia, com foco psicossocial.Atualmente, é presidente do Instituto AMMA Psique eNegritude e empreendedora social da Ashoka.

Marilza de Souza Martins é psicóloga com experiência naárea clínico-institucional. Há mais de 20 anos, é psicoterapeutareichiana e analista bioenergética-CBT. É professora doDepartamento Reichiano do Instituto Sedes Sapientiae.

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A ESCOLA SUSTENTÁVEL - 1ª E 2ª EDIÇÃOEco - alfabetiza ndo pelo ambienteLucia LeganIPEC / Imprensa Oficial/SP

ÁLBUM DE HISTÓRIASAraçuaí de U.T.I educacional a cidade educativaTião Rocha Centro Popular de Cultura e Desenvolvimento /Imprensa Oficial/SP

ALIANÇAS E PARCERIAS Mapeamento das publicações brasileiras sobrealianças e parcerias entre organizações dasociedade civil e empresasAliança CapoavaInstituto Ethos / Imprensa Oficial/SP

APRENDENDO PORTUGUÊS NAS ESCOLAS DO XINGUParque indígena do XinguTerra indígena PanaráTerra indígena Capoto-JarinaLivro inicialVários autoresISA / ATIX/ Imprensa Oficial/SP

A VIOLÊNCIA SILENCIOSA DO INCESTOGabriella Ferrarese Barbosa, Graça PizáClipsi / Imprensa Oficial/SP

BRINCAR PARA TODOSMara O. Campos SiaulysLaramara / Imprensa Oficial/SP

CENPECUma história e suas históriasMaria do Carmo Brant de CarvalhoCenpec / Imprensa Oficial/SP

EDUCAÇÃO INCLUSIVA: O que o professor tem a ver com isso?Marta GilAshoka / Imprensa Oficial/SP

EM QUESTÃO 2 Políticas e práticas de leitura no BrasilVários OrganizadoresObservatório da Educação / Ação Educativa / Imprensa Oficial/SP

ESPELHO INFIEL O negro no jornalismo brasileiroFlávio Carrança, Rosane da Silva BorgesGeledés / Imprensa Oficial/SP

ESSA TURMA NINGUÉM PASSA PARA TRÁS Guia do consumidor para crianças e adolescentesVários autoresFundação Abrinq / Criança Segura Safe Kids Brasil / Idec / ImprensaOficial/SP

EU SOU ATLÂNTICA Sobre a trajetória de vidade Beatriz NascimentoAlex RattsInstituto Kuanza/Imprensa Oficial/SP

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GOGÓ DE EMAS A participação das mulheres na história do estadode AlagoasShuma ShumaherREDEH / Imprensa Oficial/SP

HISTÓRIA FALADAMemoria, rede e mudança socialKaren Worcman e Jesus Vasques PereiraInst. Museu da Pessoa.Net/Imprensa Oficial/SP

INFLUIR EM POLÍTICAS PÚBLICAS EPROVOCAR MUDANÇAS SOCIAISExperiências a partir da sociedadecivil brasileiraKaren Worcman e Jesus Vasques PereiraInstit. Museu da Pessoa.Net / Imprensa Oficial/SP

JOVENS LIDERANÇAS COMUNITÁRIAS EDIREITOS HUMANOSConectas / CDH/ Imprensa Oficial/SP

KOOTIRA YA ME’NE BUEHINA WA’IKINA KHITI KOOTIRIA YAME’NEVários OrganizadoresISA / FOIRN / Imprensa Oficial/SP

O CAMINHO DAS MATRIARCASMaria do Rosário Carvalho SantosGeledés / Imprensa Oficial/SP

ORIENTAÇÃO PARA EDUCAÇÃO AMBIENTALNas bacias hidrográficas do estado de São PauloCyntia Helena Ravena Pinheiro, Mônica Pilz Borbae Patrícia Bastos Godoy Otero5Elementos / Imprensa Oficial/SP

PELA LENTE DO AMORFotografias e desenhos de mães e filhosCarlos SignoriniLua Nova / Imprensa Oficial/SP

SAÚDE, NUTRIÇÃO E CULTURA NO XINGUEstela WürkerISA / ATIX/ Imprensa Oficial/SP

VIOLÊNCIA NA ESCOLAUm guia para pais e professoresCaren Ruotti, Renato Alves e Viviane de OliveiraCubasAndhep / Imprensa Oficial/SP

VIVÊNCIAS CAIPIRASPluralidade cultural e diferentes temporalidadesna terra paulistaMaria Alice SetúbalCenpec / Imprensa Oficial/SP

VOZES DA DEMOCRACIAVários autoresIntervozes / Imprensa Oficial/SP

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APOIO ADMINISTRATIVOCelina Chrispim

Jeferson Bernardes de Souza

APOIO PARA A REALIZAÇÃO DO CURSO

Global Fund for Women

Instituto Brasileiro Bioenergético.

APOIO PARASISTEMATIZAÇÃO E PUBLICAÇÃO

Ashoka – Empreendimento Social

CFP – Conselho Federal de Psicologia

Global Fund for Women

OPAS – Organização Panamericana de Saúde

REALIZAÇÃO INSTITUTO AMMA PSIQUE E NEGRITUDE

WWW.AMMAPSIQUE.ORG.BR

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CRÉDITOS:

COORDENAÇÃO EDITORIAL:MARIA LÚCIA DA SILVAJUSSARA DIAS

EDIÇÃO E ENTREVISTAS:FERNANDA POMPEU [email protected]

ASSESSOR DE COMUNICAÇÃOPAULO [email protected]

PROJETO GRÁFICO E FINALIZAÇÃO:ANGELA [email protected]

REVISÃO:CAROLINA [email protected]

Todas as fotos foram feitas pela equipe durante o curso com a autorização das(os) participantes.Todos os desenhos contidos nesta publicação são de autoria das(os) participantes do curso.

AGRADECEMOS AOS PARTICIPANTES

PELA CORAGEM DE OLHAR PARA SI E PARA O OUTRO,

PELA GENEROSIDADE EM COMPARTILHAR EXPERIÊNCIAS,

PELA CRIATIVIDADE E COMPROMISSO DIANTE DO TEMA RAÇA/ETNIA.

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Dados Internacionais de Catalogação na PublicaçãoBiblioteca da Imprensa Oficial

Índices para catálogo sistemático:

1. Brasil : Discriminação racial 305.8

Imprensa Oficial do Estado de São PauloRua da Mooca, 1.921 Mooca03103 902 São Paulo [email protected] Grande São Paulo 11 5013 5108 | 5109SAC Demais localidades 0800 0123 401

Instituto Amma Psique e NegritudeAvenida Dr. Arnaldo, 2.08301255 000 São Paulo [email protected]/Fax 11 3865 9305

Os efeitos psicossociais do racismo / [Edição e entrevistas deFernanda Pompeu] – São Paulo : Imprensa Oficial do Estadode São Paulo : Instituto AMMA Psique e Negritude, 2008.88p. : il.

Vários entrevistados.Vários depoimentos.Glossário.Bibliografia.

ISBN 978-85-7060-597-9

1.Discriminação racial – Brasil 2. Racismo – Psicologia social3. Racismo – Sociologia I. Pompeu, Fernanda

CDD 305.8

Foi feito o depósito legal na Biblioteca Nacional (Lei nº 10.994, de 14/12/2004)Impresso no Brasil 2008

Direitos reservados e protegidos pela Lei 9.610/98

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TítuloFormatoTipologia

Papel mioloPapel capa

Número de páginasTiragem

Os Efeitos Psicossociais do Racismo21 x 28 cm ITC Legacy SansDiotimaOffset 90 g/m2

Triplex 250 g/m2

882500

Esta publicação foi possível graças a um programa de Responsabilidade Social da

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