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MANUAL DE PROCESSO PENAL AÇÃO PENAL E AÇÃO CIVIL EX DELICTO . 211 c.3) uma última subespécie de ação penal pública subsidiária da pública pode se dar nos casos de incidente de deslocamento da competência da Justiça Estadual para a Justiça Federal (IDC). Referida medida, que será estudada no capítulo pertinente à competência criminal, foi inserida na Constituição Federal pela Emenda Constitucional nº 45/04 (art. 109, V-A, c/c art. 109, §5º), estando o deslocamento da competência subordinado à presença de 02 (dois) requisitos: 1) crime com grave violação aos direitos humanos; 2) risco de descumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, em virtude da inércia do Estado-membro em proceder à persecução penal. Como o IDC importa em deslocamento da competência da Justiça Estadual, onde atua o Ministério Público dos Estados, para a Justiça Fede- ral, onde funciona o Ministério Público Federal, tem-se aí mais uma espécie de ação penal pública subsidiária da pública. A outra espécie de ação penal condenatória é a ação penal de iniciativa privada. Certos crimes atentam contra interesses tão próprios da vítima que o próprio Estado transfere a ela ou ao seu representante legal a legitimidade para ingressar em juízo. Como será visto com mais detalhes ao tratarmos da legitimidade para o exercício da ação penal de iniciativa privada, em situações excep- cionais, que serão oportunamente estudadas, a queixa-crime também pode ser oferecida não só pelo ofendido ou por seu representante legal, como também por curador especial (CPP, art. 33), pelos sucessores do ofendido, em caso de morte ou declaração de ausência (CPP, art. 31), ou até mesmo por entidades e órgãos da administração pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, assim como associações, especificamente destinadas à defesa dos interesses e direitos do consumidor (Lei nº 8.078/90, art. 80, c/c art. 82, III e IV). São espécies de ação penal de iniciativa privada: a) ação penal exclusivamente privada: em se tratando de ação penal de iniciativa privada, funciona como a regra; b) ação penal privada personalíssima: são raras as espécies de crimes subordinados a esta espécie de ação penal privada. Na verdade, subiste apenas o crime de induzimento a erro essencial e ocultação de impedimento (CP, art. 236, parágrafo único), já que o adultério foi revogado pela Lei nº 11.106/05. Diferencia-se da hipótese anterior porque a queixa só pode ser oferecida pelo próprio ofendido, sendo incabível a sucessão processual; c) ação penal privada subsidiária da pública (ou ação penal acidentalmente privada) : diz a Constituição Federal que “será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal” (art. 5º, LIX). Seu cabimento está subordinado à inércia do Ministério Público. 6. PRINCÍPIOS DA AÇÃO PENAL PÚBLICA E DA AÇÃO PENAL DE INI- CIATIVA PRIVADA Por razões didáticas, e visando uma melhor compreensão do assunto, preferimos abordar os princípios da ação penal em conjunto. 6.1. Princípio do ne procedat iudex ex officio A partir do momento em que a Constituição Federal adota o sistema acusatório (CF, art. 129, I), determinando que o órgão da acusação seja distinto do órgão jurisdicional, não mais poderá o juiz dar início a um processo de ofício, sendo-lhe vedado o exercício da ação. É esse o significado do princípio do ne procedat iudex ex officio, também conhecido como princípio da iniciativa das partes ou do nullum iudicio sine actore. Funciona como consectário do direito de ação, e dele deriva a

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c.3) uma última subespécie de ação penal pública subsidiária da pública pode se dar nos casos de incidente de deslocamento da competência da Justiça Estadual para a Justiça Federal (IDC). Referida medida, que será estudada no capítulo pertinente à competência criminal, foi inserida na Constituição Federal pela Emenda Constitucional nº 45/04 (art. 109, V-A, c/c art. 109, §5º), estando o deslocamento da competência subordinado à presença de 02 (dois) requisitos: 1) crime com grave violação aos direitos humanos; 2) risco de descumprimento de obrigações decorrentes de tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil seja parte, em virtude da inércia do Estado-membro em proceder à persecução penal. Como o IDC importa em deslocamento da competência da Justiça Estadual, onde atua o Ministério Público dos Estados, para a Justiça Fede-ral, onde funciona o Ministério Público Federal, tem-se aí mais uma espécie de ação penal pública subsidiária da pública.

A outra espécie de ação penal condenatória é a ação penal de iniciativa privada. Certos crimes atentam contra interesses tão próprios da vítima que o próprio Estado transfere a ela ou ao seu representante legal a legitimidade para ingressar em juízo. Como será visto com mais detalhes ao tratarmos da legitimidade para o exercício da ação penal de iniciativa privada, em situações excep-cionais, que serão oportunamente estudadas, a queixa-crime também pode ser oferecida não só pelo ofendido ou por seu representante legal, como também por curador especial (CPP, art. 33), pelos sucessores do ofendido, em caso de morte ou declaração de ausência (CPP, art. 31), ou até mesmo por entidades e órgãos da administração pública, direta ou indireta, ainda que sem personalidade jurídica, assim como associações, especificamente destinadas à defesa dos interesses e direitos do consumidor (Lei nº 8.078/90, art. 80, c/c art. 82, III e IV).

São espécies de ação penal de iniciativa privada:

a) ação penal exclusivamente privada: em se tratando de ação penal de iniciativa privada, funciona como a regra;

b) ação penal privada personalíssima: são raras as espécies de crimes subordinados a esta espécie de ação penal privada. Na verdade, subiste apenas o crime de induzimento a erro essencial e ocultação de impedimento (CP, art. 236, parágrafo único), já que o adultério foi revogado pela Lei nº 11.106/05. Diferencia-se da hipótese anterior porque a queixa só pode ser oferecida pelo próprio ofendido, sendo incabível a sucessão processual;

c) ação penal privada subsidiária da pública (ou ação penal acidentalmente privada): diz a Constituição Federal que “será admitida ação privada nos crimes de ação pública, se esta não for intentada no prazo legal” (art. 5º, LIX). Seu cabimento está subordinado à inércia do Ministério Público.

6. PRINCÍPIOS DA AÇÃO PENAL PÚBLICA E DA AÇÃO PENAL DE INI-CIATIVA PRIVADA

Por razões didáticas, e visando uma melhor compreensão do assunto, preferimos abordar os princípios da ação penal em conjunto.

6.1. Princípio do ne procedat iudex ex officioA partir do momento em que a Constituição Federal adota o sistema acusatório (CF, art. 129,

I), determinando que o órgão da acusação seja distinto do órgão jurisdicional, não mais poderá o juiz dar início a um processo de ofício, sendo-lhe vedado o exercício da ação. É esse o significado do princípio do ne procedat iudex ex officio, também conhecido como princípio da iniciativa das partes ou do nullum iudicio sine actore. Funciona como consectário do direito de ação, e dele deriva a

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diretriz segundo a qual o juiz não pode dar início a um processo sem que haja provocação da parte. Dele também deriva a proibição de que o juiz profira um provimento sobre matéria que não tenha sido trazida ao processo por uma das partes (princípio da correlação entre acusação e sentença).

Até o advento da Constituição Federal de 1988, era possível que o órgão jurisdicional desse início a um processo penal condenatório de ofício (processo judicialiforme). Era o que ocorria nas hipóteses estabelecidas na Lei nº 4.611/65 (crimes culposos de lesão corporal ou de homicídio) e nos casos de contravenções penais: vide arts. 26 e 531 (o art. 531 teve sua redação alterada pela Lei nº 11.719/08). Consistia o processo judicialiforme, assim, na possibilidade de se dar início a um pro-cesso penal através de auto de prisão em flagrante ou por meio de portaria expedida pela autoridade policial ou judiciária, daí porque era denominado de ação penal ex officio (sem provocação). Com a outorga da titularidade da ação penal pública ao Ministério Público pela Constituição Federal, doutrina e jurisprudência já eram uníssonas em apontar que os arts. 26 e 531 (em sua redação original) não haviam sido recepcionados pela Carta Magna de 1988. Com a reforma processual de 2008, não há mais qualquer dúvida acerca da inaplicabilidade de tais dispositivos: a uma, porque o art. 531 teve sua redação modificada, dispondo, atualmente, sobre o procedimento sumário; a duas, porque o art. 257, I, do CPP, passou a prever de maneira expressa que ao Ministério Público cabe promover, privativamente, a ação penal pública, na forma estabelecida no CPP, revogando, tacitamente, o art. 26 do CPP.

Se, diante da titularidade da ação penal pública pelo Ministério Público, ao magistrado não é dado iniciar um processo criminal de ofício (ne procedat iudex ex officio), isso não significa dizer que juízes e tribunais não possam conceder ordem de habeas corpus de ofício. De fato, de acordo com o art. 654, §2º, do CPP, juízes e tribunais têm competência para expedir de ofício ordem de habeas corpus, quando no curso de processo verificarem que alguém sofre ou está na iminência de sofrer coação ilegal.

Por fim, se a inércia do juiz é dogma intangível no processo penal de conhecimento, aplicável tanto à ação penal pública quanto à ação penal de iniciativa privada, o mesmo não pode se dizer em relação processo penal de execução. Transitada em julgado a sentença penal condenatória, inicia-se de ofício sua execução, independentemente de qualquer iniciativa por parte do autor da ação penal de conhecimento, seja ele o Ministério Público ou o querelante.53

6.2. Princípio do ne bis in idemConhecido no direito norte-americano como double jeopardy, ou seja, para se evitar o risco

duplo, entende-se que, por força do princípio do ne bis in idem (ou da inadmissibilidade da perse-cução penal múltipla), ninguém pode ser processado duas vezes pela mesma imputação. Entende-se que duas ações penais são idênticas quando figura no polo passivo o mesmo acusado e quando o fato delituoso atribuído ao agente em ambos os processos criminais for idêntico. Supondo-se, assim, que determinado indivíduo tenha sido absolvido em um processo criminal pela prática de furto em virtude da ausência de provas, operando-se o trânsito em julgado, não será possível o oferecimento de nova denúncia (ou queixa) em relação à mesma imputação, mesmo que surjam, posteriormente, provas cabais de seu envolvimento no fato delituoso.

Apesar de não constar expressamente da Constituição Federal, o princípio do ne bis in idem consta da Convenção Americana sobre Direitos Humanos. Segundo o art. 8º, nº 4, do Dec. 678/92, “o acusado absolvido por sentença passada em julgado não poderá ser submetido a novo processo

53. Nesse contexto: BASTOS, Marcelo Lessa. Processo penal e gestão da prova: a questão da iniciativa instrutória do juiz em face do sistema acusatório e da natureza da ação penal. Rio de Janeiro: Lumen Juris, 2011. p. 12-13.

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pelos mesmos fatos”. O Estatuto de Roma também dispõe sobre o referido princípio em seu art. 20. Como destaca a doutrina, “o princípio tem uma latitude maior do que a coisa julgada, uma vez que impede inclusive que tramite simultaneamente duas ações sobre o mesmo fato imputado ao réu (abrange, portanto, inclusive a questão da litispendência)”.54 Portanto, da mesma forma que uma pessoa não pode ser alvo de nova persecução criminal em relação à imputação que já foi objeto de processo penal com sentença definitiva transitada em julgado, também não pode ser perseguida criminalmente pela mesma imputação simultaneamente em processos diferentes.

Mas e na hipótese dessa sentença absolutória ter sido proferida por juízo absolutamente incom-petente? Decisão absolutória ou extintiva da punibilidade, ainda que prolatada com suposto vício de competência, é capaz de transitar em julgado e produzir efeitos, impedindo que o acusado seja novamente processado pela mesma imputação perante a justiça competente. De fato, nas hipóteses de sentença absolutória ou declaratória extintiva da punibilidade, ainda que proferida por juízo incom-petente, como essa decisão não é tida por inexistente, mas sim como nula, e como o ordenamento jurídico não admite revisão criminal pro societate, não será possível que o acusado seja novamente processado perante o juízo competente, sob pena de violação ao princípio do ne bis in idem, o qual impede que alguém seja processado duas vezes pela mesma imputação.55

Só se pode falar em aplicação do princípio do ne bis in idem se o fato delituoso atribuído ao agente em ambos os processos criminais for idêntico. Em outras palavras, evidenciando-se que as imputações deduzidas nas peças acusatórias referem-se a fatos distintos, não há falar em violação ao princípio do ne bis in idem. Se a imputação for distinta, é perfeitamente possível, portanto, o oferecimento de nova peça acusatória em face do acusado.56

Em interessante exemplo encontrado na jurisprudência acerca do assunto, relativo a Policial Militar que teria aceitado transação penal no âmbito dos Juizados pela prática do crime de abuso de autoridade, com ulterior declaração da extinção da punibilidade pelo cumprimento integral das condições ali estabelecidas, entendeu-se possível o oferecimento de denúncia perante a Justiça Militar pela prática dos crimes militares de lesão corporal leve e de violação de domicílio (CPM, arts. 209 e 226, §§ 1º e 2º, respectivamente). Para o Supremo, na conduta imputada ao paciente, haveria, em tese, infrações de natureza funcional e militar, cada qual com sua definição própria, repreendidas por legislações penais específicas e processadas por juízos de competências distintas, a saber: o crime de abuso de autoridade, por não estar inserido no CPM, de competência da justiça comum, ao

54. BEDÊ JÚNIOR, Américo; SENNA, Gustavo. Princípios do processo penal: entre o garantismo e a efetividade da sanção. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2009. p. 346.

55. Nessa linha: STF – HC 86.606/MS – 1ª Turma – Relatora Ministra Cármen Lúcia – DJE-072 – DJ 03/08/2007 p. 86. Em caso concreto em que fora aceita proposta de suspensão condicional do processo perante a Justiça Comum Estadual pela prática de crime militar, entendeu a 2ª Turma do Supremo que seria inadmissível a instauração de novo processo perante a Justiça Militar em relação à mesma imputação: STF, 2ª Turma, HC 91.505/PR, Rel. Min. Cezar Peluso, j. 24/06/2008, DJe 157 21/08/2008.

56. Nessa linha: STJ, 6ª Turma, HC 27.142/RS, Rel. Min. Hamilton Carvalhido, j. 21/03/2006, DJ 28/08/2006 p. 309. E ainda: STJ, 5ª Turma, HC 91.403/RJ, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 17/06/2010, DJe 02/08/2010. No mesmo sentido: “A absolvição, pelo júri, da imputação da autoria material do crime de homicídio não faz coisa julgada impeditiva de o paciente responder em nova ação penal como participante, por autoria intelectual, do mesmo crime cuja autoria material é imputada a outrem” (RT 615/358 e RTJ 120/117). Em sentido diverso, Bedê Júnior e Senna (op. cit. p. 350) entendem que o princípio do não risco duplo impede novo processo pela simples alteração da condição do réu de autor para partícipe ou da mudança do elemento anímico (de dolo para culpa). Segundo os autores, o Estado deveria, ao imputar ao réu o fato, fazê-lo com precisão; se perdeu essa oportunidade, infelizmente não há de se conceder uma segunda chance de punição. Ora, se se entende que a narração dos fatos deve conter o elemento anímico e a conduta do réu com detalhamento, aquele contexto deduzido e dedutível é inexoravelmente abrangido pela coisa julgada, ou, como preferem os civilistas pela eficácia preclusiva da coisa julgada.

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passo que os crimes de lesão corporal e de violação de domicílio, da justiça militar. Entendeu-se, assim, que o eventual reconhecimento da coisa julgada ou da extinção de punibilidade do crime de abuso de autoridade na justiça comum não teria o condão de obstar o processamento do paciente na justiça militar pelos delitos de lesão corporal leve e violação de domicílio.57

Em conclusão, convém destacar que, a nosso ver, o princípio do ne bis in idem não deve ser invocado quando se verificar que, no julgamento originário, o processo não fora conduzido de maneira independente ou imparcial, ou que tenha sido conduzido de modo a subtrair o acusado à sua responsabilidade criminal. Afinal, como proclama o velho brocardo, ninguém pode se beneficiar de sua própria torpeza. Nessa linha, em caso concreto em que o acusado apresentou certidão de óbito falsa, e teve declarada a extinção de sua punibilidade, o Supremo entendeu que é possível a revogação da decisão extintiva de punibilidade, à vista de certidão de óbito falsa, por inexistência de coisa julgada em sentido estrito, pois, caso contrário, o paciente estaria se beneficiando de con-duta ilícita. Nesse ponto, asseverou-se que a extinção da punibilidade pela morte do agente ocorre independentemente da declaração, sendo meramente declaratória a decisão que reconhece, a qual não subsiste se o seu pressuposto é falso.58

O princípio do ne bis in idem é aplicável tanto à ação penal pública quanto à ação penal de iniciativa privada.

6.3. Princípio da intranscendência

Por força do princípio da intranscendência, entende-se que a denúncia ou a queixa só podem ser oferecidas contra o provável autor do fato delituoso. A ação penal condenatória não pode passar da pessoa do suposto autor do crime para incluir seus familiares, que nenhuma participação tiveram na infração penal.

Esse princípio funciona como evidente desdobramento do princípio da pessoalidade da pena, previsto no art. 5º, XLV, da Constituição Federal. Como o Direito Penal trabalha com uma res-ponsabilidade penal subjetiva, não se pode admitir a instauração de processo penal contra terceiro que não tenha contribuído, de qualquer forma, para a prática do delito (CP, art. 29).

Não obstante, se estivermos diante de uma responsabilidade não penal, como, por exemplo, a obrigação de reparar o dano, é perfeitamente possível que, na hipótese de morte do condenado e tendo havido a transferência de seus bens aos seus sucessores, estes respondam até as forças da herança, nos moldes preconizados pelo art. 5º, XLV, da Carta Magna, e pelo art. 1.997, caput, do Código Civil, segundo o qual “a herança responde pelo pagamento das dívidas do falecido; mas, feita a partilha, só respondem os herdeiros, cada qual em proporção da parte que na herança lhe coube”.59

Esse princípio é aplicável tanto à ação penal pública quanto à ação penal de iniciativa privada.

57. STF, 1ª Turma, HC 92.912/RS, Rel. Min. Cármen Lúcia, j. 20.11.2007, DJe 165 18/12/2007. Em sentido semelhante: STF, 2ª Turma, HC 105.301/MT, Rel. Min. Joaquim Barbosa, j. 05/04/2011, DJe 089 12/05/2011.

58. STF, HC 84.525/MG, Rel. Min. Carlos Velloso, j. 16/11/2004. Como não há nenhuma diferença ontológica entre a hipótese de extinção da punibilidade ou de absolvição fundada em fraude perpetrada pelo réu, situações em que não há motivo para se invocar a proteção do ne bis in idem, Bedê Júnior e Senna (op. Cit. p. 354) defendem a releitura da proibição da reformatio in pejus para a sociedade para admitir, em tese, o prosseguimento do processo quando a absolvição ou extinção de punibilidade estiver fundada em fraude praticada pelo réu, até porque tal conduta significa que apenas formalmente e não materialmente o réu se submeteu ao processo penal. Parece, aos autores, o mais adequado e justo admitir um novo (melhor dizendo, um primeiro) julgamento real nessas hipóteses.

59. Nessa linha: GRECO, Rogério. Curso de direito penal: parte geral. Volume 1. 12ª ed. Rio de Janeiro: Editora Impetus, 2010. p. 75.

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6.4. Princípio da obrigatoriedade da ação penal pública

De acordo com o princípio da obrigatoriedade da ação penal pública, também denominado de legalidade processual, aos órgãos persecutórios criminais não se reserva qualquer critério político ou de utilidade social para decidir se atuarão ou não. Assim é que, diante da notícia de uma infração penal, da mesma forma que as autoridades policiais têm a obrigação de proceder à apuração do fato delituoso, ao órgão do Ministério Público se impõe o dever de oferecer denúncia caso visualize elementos de informação quanto à existência de fato típico, ilícito e culpável, além da presença das condições da ação penal e de justa causa para a deflagração do processo criminal.

Esse princípio impõe um dever de atuação aos órgãos oficiais encarregados da investigação (CPP, art. 5º) e da ação penal (CPP, art. 24), nos crimes de ação penal pública. Por força dele, tanto a Polícia investigativa quanto o Ministério Público devem agir compulsoriamente para apurar e denunciar a infração, respectivamente. Não contam com nenhuma disponibilidade, ao contrário, vale o dever de persecução e de acusação.

Para grande parte da doutrina, o princípio da obrigatoriedade não tem status constitucional, sendo extraído do art. 24 do CPP, segundo o qual “nos crimes de ação pública, esta será promovida por denúncia do Ministério Público, mas dependerá, quando a lei o exigir, de requisição do Ministro da Justiça, ou de representação do ofendido ou de quem tiver qualidade para representá-lo”. Na mesma linha, o art. 30 do CPPM estabelece que a denúncia deve ser apresentada sempre que houver: a) prova de fato que, em tese, constitua crime; b) indícios de autoria.

O legislador prevê alguns mecanismos para a fiscalização do princípio da obrigatoriedade. Um primeiro instrumento de fiscalização do cumprimento do dever de oferecer a denúncia é o art. 28 do CPP, que impõe ao juiz o exercício da função anômala de fiscal do princípio da obrigatoriedade, podendo remeter os autos do inquérito policial ao Procurador-Geral de Justiça caso não concorde com a promoção de arquivamento formulada pelo Promotor de Justiça. Outro mecanismo é a ação penal privada subsidiária da pública, que nada mais é do que uma importante formal de controle da inércia ministerial.

Como aduz Silva Jardim, “o raciocínio é o seguinte: se a denúncia é oferecida, caiu-se na regra geral do código; se o Ministério Público requer o arquivamento do inquérito policial ou das peças de informação, o juiz examina o acerto deste procedimento (analisando se a hipótese não seria de denúncia), podendo remeter os autos ao Procurador-Geral; entretanto, se o Ministério Público não faz uma coisa nem outra, surge para o ofendido uma legitimação extraordinária para instaurar o processo, tendo em vista a inércia da parte ordinariamente legitimada. Averbe-se que o Ministério Público será obrigado a retomar a ação como parte principal, caso o querelante se torne negligente”.60

A obrigatoriedade de oferecer a denúncia não significa que, em sede de alegações orais (ou de memoriais), o Ministério Público esteja sempre obrigado a pedir a condenação do acusado. Afinal, ao Parquet também incumbe a tutela de interesses individuais indisponíveis, como a liberdade de locomoção. Logo, como ao Estado não interessa uma sentença injusta, nem tampouco a condena-ção de um inocente, provada sua inocência, ou caso as provas coligidas não autorizem um juízo de certeza acerca de sua culpabilidade, deve o Promotor de Justiça manifestar-se no sentido de sua absolvição. A propósito, o art. 385 do CPP dispõe que, nos crimes de ação pública, o juiz poderá proferir sentença condenatória, ainda que o Ministério Público tenha opinado pela absolvição.

60. JARDIM, Afrânio Silva. Ação penal pública: princípio da obrigatoriedade. 4ª ed. Rio de Janeiro: Editora Forense, 2001. p. 101.

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Se a regra, em sede de ação penal pública, é o princípio da obrigatoriedade, algumas exceções merecem ser lembradas:

a) transação penal: em se tratando de infrações de menor potencial ofensivo, ainda que haja lastro probatório suficiente para o oferecimento de denúncia, desde que o autor do fato delituoso preencha os requisitos objetivos e subjetivos do art. 76 da Lei nº 9.099/95, ao invés de o Ministé-rio Público oferecer denúncia, deve propor a transação penal, com a aplicação imediata de penas restritivas de direitos ou multa. Nessa hipótese, há uma mitigação do princípio da obrigatoriedade, comumente chamada pela doutrina de princípio da discricionariedade regrada ou princípio da obrigatoriedade mitigada;

b) termo de ajustamento de conduta: a Lei nº 7.347/85, que disciplina a ação civil pública de responsabilidade por danos causados ao meio ambiente, ao consumidor, a bens e direitos de valor artístico, estético, histórico, turístico e paisagístico, à ordem econômica e à economia popular, à ordem urbanística e a qualquer outro interesse difuso ou coletivo, prevê em seu art. 5º, §6º, que “os órgãos públicos legitimados poderão tomar dos interessados compromisso de ajustamento de sua conduta às exigências legais, mediante cominações, que terá eficácia de título executivo extrajudi-cial”. Inserido nas disposições finais da Lei nº 9.605/98 em 2001, o art. 79-A também dispõe que os órgãos ambientais integrantes do Sisnama, responsáveis pela execução de programas e projetos e pelo controle e fiscalização dos estabelecimentos e das atividades suscetíveis de degradarem a quali-dade ambiental, ficam autorizados a celebrar, com força de título executivo extrajudicial, termo de compromisso com pessoas físicas ou jurídicas responsáveis pela construção, instalação, ampliação e funcionamento de estabelecimentos e atividades utilizadores de recursos ambientais, considerados efetiva ou potencialmente poluidores.

É comum que a simples instauração de um inquérito civil ou a celebração de um termo de ajustamento de conduta resulte na solução da controvérsia, quer porque a conduta lesiva nem se iniciou, quer porque os seus efeitos maléficos são plenamente reparados, tornando ausente o interesse jurídico de se propor demanda judicial. Apresenta-se o termo de ajustamento de conduta, portanto, como importante instrumento de solução extrajudicial desses conflitos. Ademais, pelo princípio da subsidiariedade, como as sanções não penais serão suspensas em virtude da celebração e cumpri-mento do quanto pactuado no termo de ajustamento de conduta, não se afigura razoável, a nosso juízo, cobrar responsabilidade penal pela mesma conduta delituosa.

Para além disso, não se pode perder de vista que o cumprimento das penas restritivas de direitos a que estão submetidas as pessoas jurídicas (interdição temporária de direitos, suspensão parcial ou total de atividades e prestação pecuniária – Lei nº 9.605/98, art. 8º) pode ser obtido por meio do termo de ajustamento de conduta, sem a necessidade de se iniciar um processo penal, com todos os custos dele decorrentes, seja para o acusado, que se livraria das cerimônias degradantes do processo penal,61 seja para o próprio Ministério Público, que passaria a se preocupar com os delitos mais graves. Portanto, lavrado um termo de ajustamento de conduta, e desde que o acordo esteja sendo cumprido, o oferecimento de denúncia em razão de ilícito ambiental praticado perde com-pletamente o sentido e, em especial, a utilidade, condição da ação penal sem a qual não é possível a deflagração da persecutio criminis in judicio. Logo, pelo menos enquanto houver o cumprimento do quanto acordado no termo de ajustamento de conduta, o Ministério Público está impedido de oferecer denúncia. Como se pronunciou o Supremo, cuidando-se de delitos ambientais, o termo de

61. O conceito de cerimônias degradantes (status-degradation cerimony) foi introduzido em 1956 por H. Garfinkel para indicar os procedimentos ritualizados nos quais uma pessoa é condenada e despojada de sua identidade, recebendo outra, dita degradada.

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ajustamento de conduta não pode consubstanciar salvo-conduto para que empresa potencialmente poluente deixe de ser fiscalizada e responsabilizada na hipótese de reiteração da atividade ilícita.62

c) parcelamento do débito tributário: o parcelamento do débito tributário também figura como exceção ao princípio da obrigatoriedade, já que a sua formalização antes do recebimento da denúncia é causa de suspensão da pretensão punitiva, impedindo, pois, o oferecimento da peça acusatória pelo Ministério Público (Lei nº 9.430/96, art. 83, §2º).

Atente-se para as várias leis que, ao longo dos anos, passaram a tratar do assunto. Inicialmente, o art. 9º da Lei nº 10.684/03 passou a dispor que a pretensão punitiva do Estado seria suspensa, referente aos crimes previstos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137, de 27 de dezembro de 1990, e nos arts. 168A e 337A do CP, durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estivesse incluída no regime de parcelamento. Ainda segundo a referida lei, a pres-crição criminal não correria durante o período de suspensão da pretensão punitiva, extinguindo-se a punibilidade dos crimes acima referidos quando houvesse o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribuições sociais, inclusive acessórios (Lei nº 10.684/03, art. 9º, §§ 1º e 2º).63

Posteriormente, entrou em vigor a Lei nº 11.941/09, que modificou a legislação tributária federal e instituiu novo regime de parcelamento de débitos tributários, sendo conhecida como Lei do Refis 4. De acordo com seu art. 68, “é suspensa a pretensão punitiva do Estado, referente aos crimes previstos nos arts. 1º e 2º da Lei nº 8.137/90, e nos arts. 168-A e 337-A do Decreto-Lei nº 2.848/40 – Código Penal, limitada a suspensão aos débitos que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento, enquanto não forem rescindidos os parcelamentos de que tratam os arts. 1o a 3o desta Lei, observado o disposto no art. 69 desta Lei. Parágrafo único. A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva”. Por sua vez, consoante dispõe o art. 69 da Lei nº 11.941/09, extingue-se a punibilidade dos crimes referidos no art. 68 quando a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos e contribui-ções sociais, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento. Ademais, na hipótese de pagamento efetuado pela pessoa física prevista no § 15 do art. 1o desta Lei, a extinção da punibilidade ocorrerá com o pagamento integral dos valores correspondentes à ação penal.64

Por fim, por força da Lei nº 12.382, de 25 de fevereiro de 2011, o art. 83 da Lei nº 9.430/96 ganhou nova redação. Segundo o art. 83, §1º, da Lei nº 9.430/96, na hipótese de concessão de par-celamento do crédito tributário, a representação fiscal para fins penais somente será encaminhada ao Ministério Público após a exclusão da pessoa física ou jurídica do parcelamento. Ademais, é suspensa a pretensão punitiva do Estado referente aos crimes previstos no caput, durante o período em que a pessoa física ou a pessoa jurídica relacionada com o agente dos aludidos crimes estiver incluída no parcelamento, desde que o pedido de parcelamento tenha sido formalizado antes do recebimento

62. STF, 1ª Turma, HC 92.921/BA, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, j. 19/08/2008, DJe 182 25/09/2008. Em sentido diverso, tem prevalecido no âmbito do STJ o entendimento de que a assinatura do termo de ajustamento de conduta não obsta a instauração do processo penal, pois esse procedimento ocorre na esfera administrativa, que é independente da penal. Logo, a assinatura de termo de ajustamento de conduta, com a reparação do dano ambiental e posterior arquivamento do inquérito civil público são circunstâncias que não se prestam para elidir a tipicidade penal, nem tampouco para obstar o prosseguimento da persecução penal: STJ, 6ª Turma, HC 187.043/RS, Rel. Min. Maria Thereza de Assis Moura, j. 22/03/2011, DJe 11/04/2011. E ainda: STJ, 5ª Turma, HC 82.911/MG, Rel. Min. Arnaldo Esteves Lima, j. 05/05/2009, DJe 15/06/2009.

63. No sentido de que, por força do art. 9º, §2º, da Lei nº 10.684/03, o pagamento integral de débito fiscal empreendido pelo acusado em momento anterior ao trânsito em julgado da condenação que lhe foi imposta é causa de extinção de sua punibilidade: STF, 1ª Turma, HC 116.828/SP, Rel. Min. Dias Toffoli, j. 13/08/2013.

64. Encontra-se em tramitação perante o Supremo a ADI 4273/DF (pendente de julgamento), sob a relatoria do Min. Celso de Mello, em que se questiona a constitucionalidade dos artigos 67 a 69 da Lei 11.941/2009.

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da denúncia criminal (Lei nº 9.430/96, art. 83, §2º). A prescrição criminal não corre durante o período de suspensão da pretensão punitiva, extinguindo-se a punibilidade dos crimes referidos no caput quando a pessoa física ou a pessoa jurídica relacionada com o agente efetuar o pagamento integral dos débitos oriundos de tributos, inclusive acessórios, que tiverem sido objeto de concessão de parcelamento (Lei nº 9.430/96, art. 83, §§ 3º e 4º). O disposto nos §§ 1º a 4º não se aplica nas hipóteses de vedação legal de parcelamento (Lei nº 9.430/96, art. 83, §5º). Ademais, as disposições contidas no caput do art. 34 da Lei no 9.249, de 26 de dezembro de 1995, aplicam-se aos processos administrativos e aos inquéritos e processos em curso, desde que não recebida a denúncia pelo juiz. (Lei nº 9.430/96, art. 83, §6º);

d) acordo de leniência: também conhecido como acordo de brandura ou doçura,65 este acordo é uma espécie de colaboração premiada prevista na Lei que dispõe sobre o Sistema Brasileiro de Defesa da Concorrência. Segundo consta dos arts. 86 e 87 da Lei nº 12.529/11, o acordo de leniência poderá ser celebrado pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (CADE) com pessoas físicas e jurídicas que forem autoras de infração à ordem econômica, desde que colaborem efetivamente com as investigações e o processo administrativo e que dessa colaboração resulte: I – a identificação dos demais envolvidos na infração; e II – a obtenção de informações e documentos que comprovem a infração noticiada ou sob investigação. Nos crimes contra a ordem econômica, tipificados na Lei nº 8.137/90 e nos demais crimes diretamente relacionados à prática de cartel, tais como os tipificados na Lei nº 8.666/93 e os tipificados no art. 288 do Código Penal, a celebração de acordo de leniência determina a suspensão do curso do prazo prescricional e impede o oferecimento da denúncia com relação ao agente beneficiário da leniência. Ademais, cumprido o acordo de leniência pelo agente, extingue-se automaticamente a punibilidade dos crimes acima referidos;

e) colaboração premiada na nova Lei das Organizações Criminosas: consoante disposto no art. 4º, §4º, da Lei nº 12.850/13, se da colaboração do agente resultar um ou mais dos seguin-tes resultados – identificação dos demais coautores e partícipes da organização criminosa e das infrações penais por eles praticadas, a revelação da estrutura hierárquica e da divisão de tarefas da organização criminosa, a prevenção de infrações penais decorrentes das atividades da organização criminosa, a recuperação total ou parcial do produto ou do proveito das infrações penais praticadas pela organização criminosa ou a localização de eventual vítima com sua integridade física preser-vada –, o Ministério Público poderá deixar de oferecer denúncia se preenchidos dois requisitos concomitantemente: I – o colaborador não for o líder da organização criminosa; II – o colaborador for o primeiro a prestar efetiva colaboração nos termos deste artigo. Como se percebe, o legislador aí inseriu mais uma exceção ao princípio da obrigatoriedade, porquanto o órgão ministerial poderá deixar de oferecer denúncia se a colaboração levar à consecução de um dos resultados constantes dos incisos do art. 4º da Lei nº 12.850/13. Apesar de o legislador ter previsto a possibilidade de não oferecimento da denúncia, nada disse quanto ao fundamento de direito material a ser utili-zado para fins de arquivamento do procedimento investigatório. Diante do silêncio da nova Lei de Organizações Criminosas, parece-nos possível a aplicação subsidiária do art. 87, parágrafo único, da Lei nº 12.529/11, que prevê que o cumprimento do acordo de colaboração premiada acarreta a extinção da punibilidade do colaborador.

65. Na dicção de Damásio Evangelista de Jesus, o acordo de leniência “significa que à colaboração do autor de infrações à ordem econômica, sejam administrativas ou penais, corresponde um tratamento suave, brando, da autoridade administrativa ou judicial” (Phoenix: órgão informativo do Complexo Jurídico Damásio de Jesus. São Paulo, nº 1, fev. 2001).

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6.5. Princípio da oportunidade ou conveniência da ação penal de iniciativa privada

Por conta deste princípio, cabe ao ofendido ou ao seu representante legal o juízo de oportunidade ou conveniência acerca do oferecimento (ou não) da queixa-crime. Consiste, pois, na faculdade que é outorgada ao titular da ação penal para dispor, sob determinadas condições, de seu exercício, com independência de que se tenha provado a existência de um fato punível contra um autor determinado.

É evidente que, à ação penal de iniciativa privada, jamais seria possível a aplicação do princípio da obrigatoriedade. Como não há qualquer mecanismo de controle sobre o exercício do direito de ação penal de iniciativa privada – tal qual o art. 28 do CPP em relação à ação penal pública –, recai sobre o ofendido, de maneira autônoma, a liberdade de escolha entre a propositura (ou não) da queixa-crime. Ademais, nas hipóteses de ação penal exclusivamente privada ou personalíssima, se o legitimado a oferecer a queixa-crime optar pelo não exercício de seu direito, o Ministério Público não poderá oferecer denúncia, pois não possui legitimidade ad causam para propor a ação penal, já que tais delitos estão sujeitos exclusivamente à ação penal de iniciativa privada.

Referido princípio também se aplica à representação e à requisição do Ministro da Justiça, onde o legitimado ao exercício do direito pode, segundo critérios próprios de conveniência ou de oportunidade, deixar de exercê-lo.

Nas hipóteses de ação penal de iniciativa privada, caso o ofendido não queira exercer seu direito de queixa, há 2 (duas) possibilidades:

a) decadência: com natureza jurídica de causa extintiva da punibilidade, consiste a decadência na perda do direito de queixa ou de representação pelo seu não exercício dentro do prazo legal (seis meses), contados, em regra, a partir do conhecimento da autoria;

b) renúncia: a renúncia também funciona como causa extintiva da punibilidade, de aplicação restrita à ação penal exclusivamente privada e à ação penal privada personalíssima. Caso o ofendido queira abrir mão do seu direito de queixa, poderá fazê-lo por meio da renúncia, expressa ou tácita.

6.6. Princípio da indisponibilidade da ação penal pública

Também conhecido como princípio da indesistibilidade,66 funciona o princípio da indispo-nibilidade como desdobramento lógico do princípio da obrigatoriedade. Em outras palavras, se o Ministério Público é obrigado a oferecer denúncia, caso visualize a presença das condições da ação penal e a existência de justa causa (princípio da obrigatoriedade), também não pode dispor ou desistir do processo em curso (indisponibilidade). A diferença é que, enquanto o princípio da obrigatoriedade é aplica-se para a fase pré-processual, reserva-se o princípio da indisponibilidade para a fase processual.

Como desdobramentos do princípio da indisponibilidade da ação penal pública, o Ministério Público não poderá desistir da ação penal (CPP, art. 42). Por sua vez, segundo o art. 576 do CPP, o Ministério Público não poderá desistir de recurso que haja interposto. Veja-se que o Parquet não é obrigado a recorrer, haja vista que os recursos são voluntários (CPP, art. 574, caput). Porém, se o fizer, não poderá desistir de recurso que haja interposto.

Aplicável à ação penal pública, o princípio da indisponibilidade também se aplica à ação penal privada subsidiária da pública quanto ao Ministério Público, pois este não apenas tem que assumir

66. MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo penal. 18ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2006. p. 98.

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o processo que foi iniciado e negligenciado pelo querelante, como também não pode dele desistir (CPP, art. 29).

Nos mesmos moldes do que acontece com o princípio da obrigatoriedade, há de se ficar atento à seguinte exceção ao princípio da indisponibilidade da ação penal pública:

a) suspensão condicional do processo: de acordo com o art. 89 da Lei nº 9.099/95, “nos crimes em que a pena mínima cominada for igual ou inferior a 1 (um) ano, abrangidas ou não por esta Lei, o Ministério Público poderá propor a suspensão do processo, por 2 (dois) a 4 (quatro) anos, desde que o acusado não esteja sendo processado ou não tenha sido condenado por outro crime, presentes os demais requisitos que autorizariam a suspensão condicional da pena (art. 77 do Código Penal)”. Preenchendo o acusado os requisitos objetivos e subjetivos para a suspensão, oferecida a proposta pelo órgão ministerial, com posterior aceitação do acusado e de seu defensor, e ulterior homologação da autoridade judiciária, o processo permanecerá suspenso. Logo, trata-se de exceção ao princípio da indisponibilidade.67

6.7. Princípio da disponibilidade da ação penal de iniciativa privada (exclusiva ou personalíssima)

À ação penal de iniciativa privada (exclusiva ou personalíssima) aplica-se o princípio da dis-ponibilidade, que funciona como consectário do princípio da oportunidade ou conveniência. Diferenciam-se na medida em que o princípio da oportunidade incide antes do oferecimento da queixa-crime, ao passo que, por força do princípio da disponibilidade, é possível que o querelante desista do processo criminal em andamento, podendo fazê-lo de 3 (três) formas:

a) perdão da vítima: consiste em causa extintiva da punibilidade de aplicação restrita à ação penal exclusivamente privada e à ação penal privada personalíssima, cabível quando houver a acei-tação por parte do querelado;

b) perempção: ainda que o querelado não aceite o perdão, é possível dispor da ação penal exclusivamente privada ou personalíssima por meio da perempção, causa extintiva da punibilidade, consubstanciada na perda do direito de prosseguir no exercício da ação penal privada em virtude da desídia do querelante;

c) conciliação e termo de desistência da ação no procedimento dos crimes contra a honra de competência do juiz singular: grande parte dos crimes contra a honra é tida como infração de menor potencial ofensivo, e, portanto, da competência do Juizado Especial Criminal, já que a pena máxima privativa de liberdade não é superior a 2 (dois) anos. É o que ocorre, por exemplo, com os crimes de calúnia, difamação e injúria, previstos nos arts. 138, 139 e 140 do Código Penal, respec-tivamente. Supondo, no entanto, a prática de crime contra a honra cuja pena máxima seja superior a 02 (dois) anos (v.g., a calúnia, que tem pena de 6 (seis) meses a 2 (dois) anos, quando cometida na presença de várias pessoas, sujeita-se a uma causa de aumento de pena de 1/3, prevista no art. 141,

67. Sob a égide da Lei nº 10.684/03 (art. 9º), o parcelamento, que podia ser celebrado a qualquer momento, também funcionava como exceção ao princípio da indisponibilidade da ação penal pública, já que, em curso o processo cri-minal, a pretensão punitiva do Estado ficaria suspensa durante o período em que a pessoa jurídica relacionada com o agente dos crimes ali referidos estivesse incluída no regime de parcelamento. Ocorre que, ante a nova redação do art. 83, §2º, da Lei nº 9.430/96, o parcelamento do débito tributário só terá o condão de acarretar a suspensão da pretensão punitiva se formalizado antes do recebimento da denúncia. Logo, conclui-se que o parcelamento deixa de funcionar como exceção ao princípio da indisponibilidade da ação penal pública, porquanto, doravante, só terá o condão de obstar a persecução penal se formalizado antes do início do processo.

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inciso III, do CP), logo, da competência do juiz singular, o procedimento a ser observado é aquele compreendido entre os arts. 519 e 523 do CPP. Ali está previsto que, antes de receber a queixa, o juiz oferecerá às partes oportunidade para se reconciliarem, fazendo-as comparecer em juízo e ouvindo-as, separadamente, sem a presença dos seus advogados, não se lavrando termo. Se, depois de ouvir o querelante e o querelado, o juiz achar provável a reconciliação, promoverá entendimento entre eles, na sua presença. No caso de reconciliação, depois de assinado pelo querelante o termo da desistência, a queixa será arquivada (CPP, art. 522).

6.8. Princípio da (in)divisibilidade da ação penal pública

De acordo com o princípio da indivisibilidade, o processo criminal de um obriga ao processo de todos.

Há intensa discussão quanto a sua incidência na ação penal pública. Parte da doutrina entende que, à ação penal pública, aplica-se o princípio da indivisibilidade, no sentido de que, havendo ele-mentos probatórios quanto a coautores e partícipes, o Ministério Público está obrigado a oferecer denúncia em relação a todos. É essa a nossa posição. Afinal, se vigora, quanto à ação penal pública, o princípio da obrigatoriedade, não se pode admitir que o Parquet tenha qualquer margem de dis-cricionariedade quanto aos acusados que figurarão no polo passivo da demanda. Se há elementos de informação em face de duas ou mais pessoas, o Ministério Público se vê obrigado a oferecer denúncia contra todos eles.68

Há, conduto, posição em sentido contrário. Parte da doutrina entende que o Ministério Público pode oferecer denúncia contra apenas parte dos coautores e partícipes, sem prejuízo do prossegui-mento das investigações quanto aos demais envolvidos.69

Nos Tribunais Superiores, tem prevalecido o entendimento de que, na ação penal pública, vigora o princípio da divisibilidade. Como já se pronunciou o STJ, o princípio da indivisibilidade da ação penal aplica-se tão somente à ação penal privada (CPP, art. 48). Não há nulidade no oferecimento de denúncia contra determinados agentes do crime, desmembrando-se o processo em relação a suposto coautor, a fim de se coligir elementos probatórios hábeis à sua denunciação.70

Entendendo-se que se aplica à ação penal pública o princípio da indivisibilidade, é bom destacar que tal princípio também foi mitigado pela introdução da transação penal e da suspensão condicio-nal do processo pela Lei nº 9.099/95. De fato, supondo-se que três pessoas tenham praticado em concurso de agentes uma infração de menor potencial ofensivo, é possível que, oferecida a proposta de transação penal, apenas uma delas a aceite, hipótese em que o processo criminal terá seguimento normal quanto às demais.

6.9. Princípio da indivisibilidade da ação penal de iniciativa privada

Se há controvérsias quanto à aplicação da indivisibilidade na ação penal pública, dúvidas não há quanto a sua incidência no âmbito da ação penal de iniciativa privada. De acordo com o art.

68. Entre outros, é esse o entendimento de Fernando da Costa Tourinho Filho (Processo penal. Volume 1. 31ª ed. São Paulo: Editora Saraiva, 2009. p. 345), Aury Lopes Jr. (Direito processual penal e sua conformidade constitucional. Volume 1. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2008. p. 351) e Marcellus Polastri Lima (Manual de processo penal. 2ª ed. Rio de Janeiro: Editora Lumen Juris, 2009. p. 167).

69. É essa a posição de Denilson Feitoza: Direito processual penal. 7ª ed. Niterói/RJ: Editora Impetus, 2010, p. 268.70. STJ, 6ª Turma, Resp 388.473/PR, Rel. Min. Paulo Medina, j. 07/08/2003, DJ 15/09/2003 p. 411.

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48 do CPP, “a queixa contra qualquer dos autores do crime obrigará ao processo de todos, e o Ministério Público velará pela sua indivisibilidade”.

Como visto acima, por força do princípio da oportunidade ou conveniência, cabe ao ofendido ou ao seu representante legal fazer a opção pelo oferecimento (ou não) da queixa-crime. Agora, se optar pelo oferecimento da queixa, uma coisa é certa: o querelante não pode escolher quem vai processar; ele está obrigado a processar todos os autores do delito, por força do princípio da indivisibilidade.

Aliás, em decorrência da indivisibilidade, a renúncia ao exercício do direito de queixa, em relação a um dos autores do crime, a todos se estenderá (CPP, art. 49). Na mesma linha, o perdão concedido a um dos querelados aproveitará a todos, sem que produza, todavia, efeito em relação ao que o recusar (CPP, art. 51).

Mas a quem compete e como se dá a fiscalização do princípio da indivisibilidade da ação penal de iniciativa privada? Como deixa entrever o próprio art. 48 do CPP, ao Ministério Público incumbe velar pela observância do referido princípio. Há doutrinadores que entendem que, verificando a ausência deliberada de determinado coautor e/ou partícipe, deve o Ministério Público promover o aditamento da queixa-crime para inseri-lo no processo penal. A nosso ver, tal posicionamento apresenta-se equivocado, porquanto o órgão ministerial não é dotado de legitimatio ad causam para aditar queixa-crime com o objetivo de incluir coautores, partícipes e outros fatos delituosos em crimes de ação penal exclusivamente privada e de ação penal privada personalíssima. Com fundamento no art. 45 do CPP, o Parquet pode até corrigir ou complementar a queixa-crime, porém trabalhando apenas com os elementos trazidos a juízo pelo querelante, incluindo, por exemplo, circunstâncias relativas ao tempo, lugar ou modus operandi do crime. Destarte, como o Parquet não possui legitimidade ativa em relação a crimes de ação penal de iniciativa privada, duas são as possibilidades:

a) omissão voluntária: verificando-se que a omissão do querelante foi voluntária, ou seja, mesmo tendo consciência do envolvimento de mais de um agente, o ofendido ofereceu queixa-crime em relação a apenas um deles, há de se reconhecer que teria havido renúncia tácita quanto àquele que foi excluído, renúncia tácita esta que se estende a todos os coautores e partícipes, inclusive àqueles que foram incluídos no polo passivo da demanda (CPP, art. 49). Logo, verificando-se que, apesar de ter consciência quanto ao envolvimento de um coautor ou partícipe na prática delituosa, o ofendido deliberadamente tenha deixado de propor a ação penal em relação a ele, entende-se que houve renúncia tácita quanto ao que foi excluído, renúncia esta que se estende àquele que constou da queixa-crime (CPP, art. 49), acarretando a extinção da punibilidade de todos os autores da infração penal;

b) omissão involuntária: tratando-se de omissão involuntária do querelante, ou seja, caso fique constatado que, por ocasião do oferecimento da queixa-crime, o querelante não tinha cons-ciência do envolvimento de outros agentes, deve o Ministério Público requerer a intimação do querelante para que proceda ao aditamento da queixa-crime a fim de incluir os demais coautores e partícipes. Se o querelante assim o fizer, o processo terá curso normal. Se, todavia, instado pelo Promotor, o querelante não promover o adequado aditamento à queixa-crime, deixando de nela incluir outros coautores e partícipes do fato delituoso que tenham sido identificados, há de se reconhecer evidente violação ao princípio da indivisibilidade da ação penal de iniciativa privada (CPP, art. 48), o que configura renúncia tácita ao direito de queixa (CP, art. 104), que se comunica a todos os supostos autores do delito, tal qual prevê o art. 49 do CPP, e constitui causa extintiva da punibilidade (CP, art. 107, V).

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A propósito, em caso concreto relativo a mensagens eletrônicas por meio das quais foram praticados em coautoria os crimes de calúnia, injúria e difamação, porém cuja queixa-crime foi oferecida contra apenas uma das autoras dos delitos, concluiu a 5ª Turma do STJ que cabe ao querelante propor a ação penal privada obrigatoriamente contra todos os supostos coautores do delito, sobretudo quando todos eles forem perfeitamente identificáveis. O direito de queixa é indivisível. Assim, a queixa contra qualquer autor do crime obrigará ao processo de todos os envolvidos (art. 48 do CPP). Esclareceu o Min. Relator que não observar o princípio da indivi-sibilidade da ação penal, que torna obrigatória a formulação da queixa contra todos os autores, coautores e partícipes do crime, além de acarretar a renúncia ao direito de queixa a todos, é causa da extinção da punibilidade (art. 107, V, do CP).71

6.10. Princípio da oficialidadeConsiste na atribuição da legitimidade para a persecução criminal aos órgãos do Estado. Em

outras palavras, a apuração das infrações penais fica, em regra, a cargo da polícia investigativa, enquanto que a promoção da ação penal pública incumbe ao Ministério Público, nos exatos termos do art. 129, I, da Constituição Federal. Aplica-se à ação penal pública, tanto na fase pré-processual, quanto na fase processual. Em relação à ação penal de iniciativa privada, vigora apenas para a fase pré-processual, já que prevalece o entendimento de que ao particular, pelo menos em regra, não foram conferidos poderes investigatórios.72

6.11. Princípio da autoritariedadeOs órgãos responsáveis pela persecução criminal são autoridades públicas. Aplica-se à ação

penal pública, tanto na fase pré-processual, quanto na fase processual. Em relação à ação penal de iniciativa privada, vigora apenas para a fase pré-processual, já que prevalece o entendimento de que ao particular, pelo menos em regra, não foram conferidos poderes investigatórios.73

6.12. Princípio da oficiosidadeEm se tratando de crimes de ação penal pública incondicionada, os órgãos incumbidos da

persecução penal devem agir de ofício, independentemente de provocação do ofendido ou de terceiros. Nas hipóteses de ação penal pública condicionada, a autoridade policial e o Ministério Público ficam dependendo do implemento da representação do ofendido ou da requisição do Ministro da Justiça. Referido princípio não tem aplicação às hipóteses de ação penal de iniciativa privada, já que a atuação da polícia investigativa está subordinada à prévia manifestação do ofendido ou de seu representante legal (CPP, art. 5º, §5º).

71. STJ, 5ª Turma, RHC 26.752/MG, Re. Min. Felix Fischer, j. 18/02/2010.72. Quanto à investigação criminal defensiva, vide capítulo pertinente à investigação preliminar.73. Idem.

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6.13. Quadro comparativo dos princípios da ação penal

PRINCÍPIOS DA AÇÃO PENAL PÚBLICA

PRINCÍPIOS DA AÇÃO PENAL DE INICIATIVA PRIVADA

Princípio do ne procedat iudex ex officio: com a adoção do sistema acusatório pela Constituição Federal, ao juiz não é dado iniciar um processo de ofício. O denominado processo judicialiforme, por meio do qual o juiz dava início a um processo por meio de portaria, não foi recepcionado pela Constituição Federal.

Princípio do ne procedat iudex ex officio: também se aplica à ação penal de iniciativa privada.

Princípio do ne bis in idem: ninguém pode ser pro-cessado duas vezes pela mesma imputação. Previsto expressamente na Convenção Americana sobre Direitos Humanos (Dec. 678/92, art. 8º, nº 4)

Princípio do ne bis in idem: também se aplica à ação penal de iniciativa privada.

Princípio da intranscendência: a ação penal pública só pode ser proposta em relação ao provável autor do delito.

Princípio da intranscendência: a ação penal de inicia-tiva privada só pode ser proposta em relação ao provável autor do delito.

Princípio da Obrigatoriedade (ou legalidade proces-sual): presentes as condições da ação penal e havendo justa causa para a deflagração de um processo criminal, o Ministério Público é obrigado a oferecer denúncia. Deriva do art. 24 do CPP e do art. 30 do CPPM. Exceções ao princípio da obrigatoriedade:1) Transação penal (art. 76 da Lei nº 9.099/95);2) Acordo de leniência (Lei nº 12.529/11, arts. 86 e 87);3) Termo de ajustamento de conduta (Lei nº 7.347/85, art. 5º, §6º);4) Parcelamento do débito tributário (Lei nº 9.430/96, art. 83, §2º, com redação dada pela Lei nº 12.382/11).5) Colaboração premiada na nova Lei das Organizações Criminosas (Lei n. 12.850/13, arts. 4º a 7);

Princípio da oportunidade ou da conveniência: mediante critérios próprios de oportunidade ou con-veniência, o ofendido pode optar pelo oferecimento (ou não) da queixa-crime. Caso não pretenda exercer seu direito, pode permanecer inerte durante o curso do prazo decadencial, ou renunciar (expressa ou tacita-mente) ao direito de queixa, situações que darão ensejo à extinção da punibilidade em relação aos crimes de ação penal exclusivamente privada e de ação penal privada personalíssima, nos termos do art. 107, inciso IV e V, do Código Penal.

Princípio da indisponibilidade: se, por conta do princípio da obrigatoriedade, o Ministério Público é obrigado a oferecer denúncia, não pode desistir da ação penal pública, nem tampouco do recurso que haja interposto (CPP, arts. 42 e 576). Isso, todavia, não significa dizer que o Ministério Público não possa pedir a absolvição do acusado. Exceção ao princípio da indisponibilidade:1) suspensão condicional do processo (Lei nº 9.099/95, art. 89);

Princípio da disponibilidade: se a ação penal de iniciativa privada está sujeita a critérios próprios de oportunidade ou conveniência do ofendido ou de seu representante legal, isso significa dizer que o querelante poderá dispor do processo penal em andamento. Formas de disposição:1) perdão do ofendido: tem natureza jurídica de causa extintiva da punibilidade nos crimes de ação penal exclu-sivamente privada ou personalíssima, porém, ao con-trário da renúncia, depende de aceitação do querelado;2) perempção: é a perda do direito de prosseguir com o exercício da ação penal exclusivamente privada ou personalíssima em virtude da desídia do querelante, com a consequente extinção da punibilidade;3) conciliação e assinatura de termo de desistência, no procedimento dos crimes contra a honra de competência do juiz singular (CPP, art. 522).

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PRINCÍPIOS DA AÇÃO PENAL PÚBLICA

PRINCÍPIOS DA AÇÃO PENAL DE INICIATIVA PRIVADA

Princípio da (in)divisibilidade: parte da doutrina entende que vigora na ação penal pública o princípio da indivisibilidade. Logo, havendo lastro probatório contra todos os coautores e partícipes, o Ministério Público é obrigado a oferecer denúncia contra todos (nossa posição). Outra parte da doutrina e a juris-prudência majoritária entende que vigora o princípio da divisibilidade, significando que o Parquet pode oferecer denúncia contra certos agentes, sem preju-ízo do aprofundamento das investigações quanto aos demais envolvidos.

Princípio da indivisibilidade: o ofendido não é obri-gado a agir (princípio da oportunidade ou conveniência). Porém, se quiser exercer seu direito de queixa-crime, é obrigado a exercê-lo em relação a todos os coauto-res e partícipes do fato delituoso. Como dispõe o art. 48 do CPP, o processo de um obriga ao processo de todos. Como consequência desse princípio, a renúncia ao exercício do direito de queixa em relação a um dos autores do crime estende-se aos demais (CPP, art. 49). Da mesma forma, o perdão concedido a um dos quere-lados aproveita a todos, salvo se um deles não o aceitar (CPP, art. 51). O fiscal desse princípio é o Ministério Público, que não tem legitimidade ad causam para aditar a queixa crime para incluir coautores. Verificando-se que a omissão do querelante fora voluntária, haverá renúncia tácita, extensiva a todos os envolvidos. Afinal, se sabia da existência de outros coautores e partícipes, e deixou de inclui-los no polo passivo da demanda, é porque renunciou ao direito de ação quanto a eles, renúncia esta que se estende aos demais, nos termos do art. 48 do CPP. Se, todavia, a omissão do querelante foi involuntária, deve o MP instar o querelante a aditar a queixa-crime para incluir os demais envolvidos, sob pena de caracterização de renúncia tácita, acarretando a extinção da punibilidade de todos os envolvidos.

Princípio da oficialidade: a legitimidade para a per-secução penal recai sobre órgãos do Estado, tanto na fase pré-processual, quanto na fase processual.

Princípio da oficialidade: aplica-se à ação penal de iniciativa privada, porém apenas na fase pré-processual.

Princípio da autoritariedade: o órgão responsável pela persecução criminal é autoridade pública, tanto na fase pré-processual, quanto na fase processual.

Princípio da autoritariedade: aplica-se à ação penal de iniciativa privada, porém apenas na fase pré-processual.

Princípio da oficiosidade: nos crimes de ação penal pública incondicionada, as autoridades estatais são obrigadas a agir de ofício, independentemente de pro-vocação do ofendido ou de terceiros.

Princípio da oficiosidade: não se aplica à ação penal de iniciativa privada, já que, mesmo na fase investigatória, a atuação da polícia investigativa depende de prévio requerimento do ofendido ou de seu representante legal.

7. AÇÃO PENAL PÚBLICA INCONDICIONADA

Se a pena deixou de ser um mero instrumento de restabelecimento da ordem jurídica violada pelo autor do fato delituoso e passou a ser um instrumento dissuasório da prática de infrações penais, nada mais natural do que o exercício da ação penal também deixasse de ser um direito exclusivo do ofendido e passasse a ser, em regra, um direito público, a ser exercido pelo próprio Estado.

O titular da ação penal pública incondicionada é o Ministério Público (CF, art. 129, I), e sua peça inaugural é a denúncia. É denominada de incondicionada porque a atuação do Ministério Público não depende da manifestação da vontade da vítima ou de terceiros. Ou seja, verificando a

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5º da Lei nº 12.850/13, a fim de que possam impugnar a prova produzida, exercendo o direito à ampla defesa.

Destarte, por força do art. 7º, §3º, da Lei nº 12.850/13, a partir do momento em que a fase judicial da persecução penal tiver início, dar-se-á ampla publicidade ao acordo de colaboração premiada, desde que preservado o sigilo das informações constantes do art. 5º, que constituem direitos do colaborador.

Interpretando-se a contrario sensu o art. 7º, §3º, da Lei nº 12.850/13, conclui-se que, durante o curso das investigações, deve ser preservado o caráter sigiloso do acordo de colaboração premiada. A propósito, em julgado anterior ao advento da nova Lei das Organizações Criminosas, em que se discutia a possibilidade de advogados de coautores terem acesso aos autos de investigação em que firmados acordos de delação premiada, a partir dos quais foram utilizados documentos que subsi-diaram ações penais contra ele instauradas, a 1ª Turma do STF afastou a pretensão de se conferir publicidade ao acordo, por lhe ser ínsito o sigilo, inclusive por força de lei.429

13. AÇÃO CONTROLADA

13.1. Conceito e previsão legalA depender do caso concreto, é estrategicamente mais produtivo, sob o ponto de vista da colheita

de provas, evitar a prisão prematura de integrantes menos graduados de determinada organização criminosa, pelo menos num primeiro momento, de modo a permitir o monitoramento de suas ações e subsequente identificação e prisão dos demais membros, notadamente daqueles que exercem o comando da societas criminis. Exsurge daí a importância da chamada ação controlada, que consiste no retardamento da intervenção do aparato estatal, que deve ocorrer num momento mais oportuno sob o ponto de vista da investigação criminal.

Cuida-se de importante técnica especial de investigação, prevista expressamente na Lei de Drogas (Lei nº 11.343/06, art. 53, II), na Lei de Lavagem de Capitais (Lei nº 9.613/98, art. 4º-B, com redação dada pela Lei nº 12.683/12) e na nova Lei das Organizações Criminosas (Lei nº 12.850/13, art. 8º).430

De acordo com o art. 53, inciso II, da Lei de Drogas, em qualquer fase da persecução criminal relativa aos crimes ali previstos, é permitida, mediante autorização judicial e ouvido o Ministério Público, a não atuação policial sobre os portadores de drogas, seus precursores químicos ou outros produtos utilizados em sua produção, que se encontrem no território brasileiro, com a finalidade de identificar e responsabilizar maior número de integrantes de operações de tráfico e distribuição, sem prejuízo da ação penal cabível. Nesse caso, a autorização judicial fica condicionada ao conhecimento do itinerário provável e da identificação dos agentes do delito ou de colaboradores.

A Lei nº 9.613/98 também prevê, em seu art. 4º-B, com redação determinada pela Lei nº 12.683/12, uma espécie de ação controlada, consistente na suspensão pelo juiz da ordem de prisão de pessoas ou das medidas assecuratórias de bens, direitos ou valores, ouvido o Ministério Público, quando sua execução imediata puder comprometer as investigações, seja por impedir a identifi-cação de outros criminosos envolvidos com o esquema de lavagem de capitais, seja por impedir a descoberta de outros bens objeto dos crimes previstos nesta lei (princípio da oportunidade). Com

429. STF, 1ª Turma, HC 90.688/PR, Rel. Min. Ricardo Lewandowski, DJe 074 24/04/2008. Na mesma linha: STJ, 5ª Turma, HC 59.115/PR, Rel. Min. Laurita Vaz, j. 12/12/2006, DJ 12/02/2007 p. 281.

430. A ação controlada também estava prevista expressamente na antiga Lei das Organizações Criminosas (revogada Lei nº 9.034/95, art. 2º, inciso II), podendo ser executada independentemente de prévia autorização judicial.

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a obtenção prévia da autorização judicial para a efetivação da medida e o sobrestamento de sua eficácia, a investigação criminal é otimizada com o ganho de tempo, já que, chegado o momento oportuno para o cumprimento da ordem judicial, não mais será necessário requerê-la e aguardar seu deferimento pela autoridade judiciária competente para somente então dar-lhe cumprimento. Diversamente da Lei nº 11.343/06, a Lei nº 9.613/98 silenciou quanto ao adiamento da prisão em flagrante. De fato, ao se referir à suspensão da ordem de prisão de pessoas, inequivocamente refe-riu-se à prisão preventiva, eis que a prisão em flagrante não depende de ordem judicial. Assim, para a autoridade policial e seus agentes, a prisão em flagrante continua figurando como obrigatória nos casos de lavagem de capitais, eis que não abrangida pelo dispositivo em análise.431

No Capítulo II, referente à investigação e aos meios de obtenção da prova, a nova Lei das Organi-zações Criminosas cuida da ação controlada na Seção II, que abrange os arts. 8º e 9º, conceituando-a nos seguintes termos: “consiste a ação controlada em retardar a intervenção policial ou adminis-trativa relativa à ação praticada por organização criminosa ou a ela vinculada, desde que mantida sob observação e acompanhamento para que a medida legal se concretize no momento mais eficaz à formação de provas e obtenção de informações”.

Diversamente do art. 2º, II, da revogada Lei nº 9.034/95, que fazia referência expressa ape-nas ao retardamento da interdição policial, o art. 8º da Lei nº 12.850/13 autoriza o retardamento da intervenção policial ou administrativa. Isso significa dizer que a não atuação imediata poderá abranger não apenas diligências policiais, como também intervenções administrativas. Por conse-quência, agentes das receitas estaduais e federal, integrantes da Agência Brasileira de Inteligência, corregedorias e outras autoridades administrativas também poderão retardar sua intervenção para que esta se concretize num momento mais eficaz sob o ponto de vista da colheita de elementos de informação.432

A ação controlada não é incompatível com o direito à não autoincriminação. Como destaca Maria Elizabeth Queijo, se, à primeira vista, a inexistência de advertência quanto ao nemo tenetur se detegere conduz à conclusão de que há violação ao citado direito fundamental, pois os averigua-dos acabariam por produzir provas em seu desfavor, na verdade, o interesse público na persecução penal dos delitos praticados por organizações criminosas justifica a restrição ao referido princípio, representada pela ação controlada, em consonância com o princípio da proporcionalidade.433

13.2. (Des) necessidade de prévia autorização judicialDiversamente das Leis de Drogas e de Lavagem de Capitais, a Lei nº 12.850/13 não faz

referência expressa à necessidade de prévia autorização judicial para a execução da ação controlada quando se tratar de crimes praticados por organizações criminosas, assemelhando-se, nesse ponto, à sistemática vigente à época da revogada Lei nº 9.034/95 (art. 2º, II).

Consoante disposto no art. 8º, §1º, da Lei nº 12.850/13, o retardamento da intervenção policial ou administrativa será previamente comunicado ao juiz competente que, se for o caso, estabelecerá os seus limites e comunicará ao Ministério Público. Como se percebe, a nova Lei das Organizações

431. No mesmo sentido: MAIA, Rodolfo Tigre (Lavagem de dinheiro – lavagem de ativos provenientes de crime – Anotações às disposições criminais da Lei 9.613/98. São Paulo: Malheiros, 2004. p. 134). Marco Antônio de Barros (Lavagem de capitais e obrigações civis correlatas – com comentários, artigo por artigo, à Lei 9.613/98. São Paulo: Editora Revista dos Tribunais, 2004, p. 250) sustenta ser possível o retardamento da prisão em flagrante pela autoridade policial.

432. Nesse contexto: PINTO, Ronaldo Batista. Op. cit. p. 91.433. QUEIJO, Maria Elizabeth. O direito de não produzir prova contra si mesmo (o princípio nemo tenetur se detegere e

suas decorrências no processo penal. São Paulo: Saraiva, 2003. p. 368.

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Criminosas em momento algum faz menção à necessidade de prévia autorização judicial. Refere-se tão somente à necessidade de prévia comunicação à autoridade judiciária competente. Aliás, até mesmo por uma questão de lógica, se o dispositivo legal prevê que o retardamento da intervenção policial ou administrativa será apenas comunicado previamente ao juiz competente, forçoso é con-cluir que sua execução independe de autorização judicial.

De mais a mais, quando a Lei nº 12.850/13 exige autorização judicial para a execução de determinada técnica especial de investigação, o legislador o fez expressamente. Nesse sentido, basta atentar para o quanto disposto no art. 10, caput, que faz menção expressa à necessidade de prévia, circunstanciada, motivada e sigilosa autorização judicial para fins de infiltração de agentes. Se, ao cuidar da infiltração policial, o legislador mencionou expressamente a necessidade de prévia autorização judicial, limitando-se, todavia, ao tratar da ação controlada, a fazer menção apenas à necessidade de prévia comunicação, parece ficar evidente que a Lei nº 12.850/13 quis dispensar tratamento diverso aos dois institutos.

Mas por que se faz necessária prévia comunicação ao juiz se a ação controlada envolvendo infrações penais praticadas por organizações criminosas pode ser executada sem anterior autorização judicial?

A nosso juízo, a eficácia da ação controlada pode ser colocada em risco se houver necessidade de prévia autorização judicial, haja vista a demora inerente à tramitação desses procedimentos perante o Poder Judiciário. A título de exemplo, suponha-se que, por meio de denúncia anônima, as autoridades policiais obtenham informações de que um agente, integrante de organização criminosa especializada em falsificação de moeda, esteja levando consigo grande quantidade de notas falsas em um voo doméstico. Fosse necessária prévia autorização do juiz competente para a ação controlada, dificilmente a autoridade policial poderia postergar a prisão em flagrante no momento do desem-barque na cidade de destino, porquanto não teria em mãos a necessária ordem judicial para que deixasse de levar adiante o flagrante obrigatório, a não ser que se admitisse uma absurda execução da diligência pelo próprio magistrado, o que, à evidência, feriria de morte o sistema acusatório e a garantia da imparcialidade. Por consequência, o objetivo inerente à ação controlada de se identificar os demais integrantes dessa organização criminosa especializada em falsificação de moeda restaria prejudicado, porquanto, ausente a prévia autorização judicial para a ação controlada, ver-se-ia a autoridade policial obrigada a efetuar a prisão em flagrante de apenas um de seus membros. Daí a importância de se permitir que a ação controlada possa ser executada pela autoridade policial inde-pendentemente de prévia autorização judicial, postergando-se o momento do flagrante obrigatório.

Se, de um lado, o art. 8º, §1º, da Lei nº 12.850/13, dispensa prévia autorização judicial para a execução da ação controlada, do outro, passa a exigir que o retardamento da intervenção policial ou administrativa seja comunicado com antecedência ao juiz competente que, se for o caso, esta-belecerá os seus limites e comunicará ao Ministério Público. O objetivo dessa comunicação prévia é dar conhecimento ao juiz competente e ao órgão do Ministério Público acerca do retardamento da intervenção policial ou administrativa. Logo, a depender das peculiaridades do caso concreto, a autoridade judiciária poderá estabelecer os limites da ação controlada.

Os limites que podem ser impostos pelo juiz à ação controlada são de duas espécies: a) tem-porais: em tese, é possível que o juiz estabeleça um prazo máximo de duração da ação controlada, findo o qual a autoridade policial seria obrigada a representar pelo prosseguimento da medida, já, então, sob o controle judicial; b) funcionais: diante da possibilidade de dano a bens jurídicos de maior relevância, deve o juiz determinar a pronta intervenção da autoridade policial.

Com essa comunicação prévia, o legislador também visa evitar que uma autoridade corrupta utilize a ação controlada como justificativa para o fato de ter permanecido inerte diante de situ-

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ação de flagrância na qual estava obrigada a agir. Explica-se: na vigência da legislação pretérita, a ação controlada era executada sem prévia autorização judicial e sem que houvesse necessidade de comunicação anterior ao juiz e ao órgão ministerial. Assim, quando uma autoridade corrupta era flagrada deixando de efetuar a prisão em flagrante de crimes praticados por organizações crimino-sas – lembre-se que o flagrante é obrigatório para as autoridades policiais e seus agentes (CPP, art. 301) –, incorrendo, em tese, no crime de prevaricação (CP, art. 319), ou até mesmo nos próprios crimes praticados pela organização criminosa, já que trata de garantidor que concorreu para a prática delituosa ao se omitir no cumprimento de dever imposto por lei (CP, art. 13, §2º), era comum que sustentasse que, na verdade, tinha postergado o flagrante por força da ação controlada, haja vista seu interesse em obter mais informações quanto aos demais integrantes do grupo.

De se notar, então, que o objetivo da Lei nº 12.850/13 foi pôr fim a essa verdadeira ação controlada descontrolada, vigente à época da Lei nº 9.034/95, quando não havia necessidade de prévia autorização judicial, nem tampouco de comunicação ao juiz competente. Doravante, a ação controlada na Lei das Organizações Criminosas continua sendo passível de execução sem prévia autorização judicial, o que, de certa forma, vem ao encontro da otimização dessa importante técnica especial de investigação. Do outro, de modo a se obter maior controle na execução dessa medida, sua execução deve ser precedida de comunicação à autoridade judiciária competente, que, ouvido o Ministério Público, poderá estabelecer certos limites a sua execução.

Como a quase totalidade dos ilícitos relativos ao tráfico de drogas para cuja investigação se faz necessária a ação controlada são cometidos por meio de organizações criminosas, não se pode descartar a possibilidade de se utilizar, por empréstimo, a regulamentação constante da Lei nº 12.850/13, dispensando-se prévia autorização judicial.434

Nesse sentido, referindo-se à sistemática vigente à época da Lei nº 9.034/95, Mendonça e Carvalho observam que “a ação controlada, em regra, necessita urgência e a exigência de autori-zação judicial poderia inviabilizar a efetividade da diligência. Justamente por isto, na prática, em caso de investigação de tráfico de drogas, a Polícia requer autorização judicial prévia, já no início das investigações, para realização de ações controladas, caso as situações de fato se apresentem”.435

13.3. Flagrante prorrogado, retardado ou diferidoComo visto anteriormente, nas hipóteses da Lei de Drogas e da Lei de Organizações Crimi-

nosas, a ação controlada funciona como uma autorização legal para que a prisão em flagrante seja retardada ou protelada para outro momento, que não aquele em que o agente está em uma situação de flagrância (CPP, art. 302). Daí por que é chamada de flagrante prorrogado, retardado, protelado ou diferido. Apresenta-se, pois, como uma mitigação ao flagrante obrigatório, que determina que as autoridades policiais e seus agentes têm o dever de efetuar a prisão em flagrante sempre que se deparam com alguém em situação de flagrância (CP, art. 301). A título de exemplo, supondo-se uma situação de flagrância envolvendo a prática de roubo por organização criminosa especializada na subtração de cargas, a despeito da obrigação de efetuar a prisão em flagrante por parte da auto-ridade policial – flagrante obrigatório (CPP, art. 301, 2ª parte) –, esta poderá deixar de fazê-lo, a

434. Na vigência da revogada Lei nº 9.034/95, cuja ação controlada também dispensava prévia autorização judicial, era firme o entendimento jurisprudencial no sentido de que tal medida podia ser executada sem anterior autorização do juiz competente, mesmo se utilizada para a prisão referente a tráfico de drogas: STJ, 5ª Turma, HC 119.205/MS, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 29/09/2009, DJe 16/11/2009. Na mesma linha: STJ, 5ª Turma, RHC 29.658/RS, Rel. Min. Gilson Dipp, j. 02/02/2012, DJe 08/02/2012.

435. MENDONÇA, Andrey Borges; CARVALHO, Paulo Roberto Galvão de. Lei de drogas: Lei nº 11.343, de 23 de agosto de 2006 – comentada artigo por artigo. 3ª ed. São Paulo: Editora Método, 2012. p. 280.

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fim de que seja capaz de identificar os demais integrantes do grupo, assim como o local em que a res furtiva é guardada.

Pelo menos enquanto houver sequência de acompanhamento da situação de flagrante pró-prio, impróprio ou presumido, nos termos dos incisos do art. 302 do Código de Processo Penal, será possível a execução da prisão dentro dos critérios da prisão em flagrante. Exemplificando, se as autoridades policiais perseguirem determinado integrante de uma organização criminosa logo após a prática do crime, sem solução de continuidade, e sem que o criminoso perceba a persegui-ção policial, nada impede ulterior prisão em flagrante, haja vista a presença de flagrante impróprio (CPP, art. 302, III).436

Todavia, se, por ocasião da descoberta dos elementos probatórios mais relevantes, não houver qualquer situação de flagrância, a autoridade policial não poderá realizar a prisão em flagrante pelo ato pretérito que foi tolerado visando à eficácia da investigação. Se a ação controlada envolvendo crimes praticados por organizações criminosas independe de prévia autorização judicial, seria no mínimo temerário concluir que a autoridade policial passaria a ter discricionariedade plena para efe-tuar a prisão quando melhor lhe aprouvesse, sem qualquer limitação temporal e independentemente de situação de flagrância ou de ordem do juiz competente. Como a própria Constituição Federal estabelece que ninguém será preso senão em flagrante delito ou por ordem escrita e fundamentada da autoridade judiciária competente (art. 5º, LXI), a prisão a ser efetuada nesse momento posterior estará condicionada à verificação de situação de flagrância (v.g., a localização da carga roubada com os receptadores autoriza a prisão em flagrante por se tratar, a receptação, de crime permanente), ou à decretação prévia de eventual prisão preventiva e/ou temporária.437

Em ambas as hipóteses acima referidas, a ação controlada deve ser executada pela autoridade policial com a máxima cautela, de modo a se evitar que os autores da infração penal escapem da persecução penal. Nesse sentido, a Lei nº 12.850 deixa claro que o procedimento investigatório em questão deve ser levado a efeito mediante observação e acompanhamento das ações praticadas por organizações criminosas. Aliás, consoante disposto em seu art. 9º, se a ação controlada envol-ver transposição de fronteiras (delitos transnacionais), o retardamento da intervenção policial ou administrativa somente poderá ocorrer com a cooperação das autoridades dos países que figurem como provável itinerário ou destino do investigado, de modo a reduzir os riscos de fuga e extravio do produto, objeto, instrumento ou proveito do crime.438

A Lei de Drogas, por sua vez, condiciona a execução da ação controlada ao conhecimento do itinerário provável e da identificação dos agentes do delito ou de seus colaboradores (art. 53, pará-grafo único). Do contrário, autorizar o trânsito de pessoas carregando drogas sem se ter noção do provável itinerário colocaria em risco a própria eficácia do procedimento investigatório.

Se, a despeito de toda a cautela empregada, não for possível a identificação e prisão dos demais agentes – ou até mesmo dos primeiros criminosos identificados –, não há falar em crime de prevari-cação (CP, art. 319), a não ser que fique evidenciado que o flagrante não foi efetuado pela autoridade policial para satisfazer interesse ou sentimento pessoal.

436. Nessa linha: MENDRONI, Marcelo Batlouni. Crime organizado: aspectos gerais e mecanismos legais. 2ª ed. São Paulo: Editora Atlas, 2007, p. 50.

437. Com entendimento semelhante: BADARÓ, Gustavo. Processo Penal. Rio de Janeiro: Elsevier, 2012. p. 724.438. Em seu sistema organizacional, a Polícia Federal dispõe de uma Coordenação-Geral de Cooperação Internacional

(CIGE), composta por um serviço de cooperação policial, que é exatamente a “Interpol”, além de outros setores de suporte a essa espécie de atividade, consoante disposto no art. 2º, VI, da Portaria MJ nº 2.877/11, que aprovou o Regimento Interno do Departamento de Polícia Federal.

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13.4. Entrega vigiadaUma das técnicas mais tradicionais de ação controlada é a entrega vigiada,439 cujo objetivo é a

identificação do maior número possível de agentes do esquema criminoso, bem como localização dos ativos ocultos, e descoberta de outras fontes de prova. Ganhou este nome justamente por denotar fielmente aquilo que representa: entrega vigiada, porque as remessas ilícitas de drogas, armas, etc., são monitoradas do ponto de partida até o destino final, com identificação dos agentes envolvidos na prática delituosa.

De acordo com o art. 2º, alínea “i”, da Convenção de Palermo, entrega vigiada é a técnica que consiste em permitir que remessas ilícitas ou suspeitas saiam do território de um ou mais Estados, os atravessem ou neles entrem, com o conhecimento e sob o controle das suas autoridades compe-tentes, com a finalidade de investigar infrações e identificar as pessoas envolvidas na sua prática.

A entrega vigiada surgiu como técnica de monitoramento de remessas ilícitas de substâncias entorpecentes. Com o passar dos anos, todavia, deixou de ser um procedimento investigatório de uso exclusivo para fins de enfrentamento ao tráfico de drogas, já que sua aplicação foi estendida para o combate do tráfico de armas, da lavagem de dinheiro, joias ou qualquer outro bem de valor (v.g., obras de arte), com previsão em diversos tratados internacionais.

A entrega vigiada pode ser classificada da seguinte forma:a) entrega vigiada limpa (ou com substituição): as remessas ilícitas são trocadas antes de

serem entregues ao destinatário final por outro produto qualquer, um simulacro, afastando-se o risco de extravio da mercadoria;

b) entrega vigiada suja (ou com acompanhamento): a encomenda segue seu itinerário sem alteração do conteúdo. Portanto, a remessa ilícita segue seu curso normal sob monitoramento, chegando ao destino sem substituição do conteúdo. À evidência, como não há substituição da mercadoria, esta espécie de entrega vigiada demanda redobrado monitoramento, exatamente para atenuar o risco de perda ou extravio de objetos ilícitos.440

14. INFILTRAÇÃO DE AGENTES

14.1. Conceito e previsão normativaIntegrante da estrutura dos órgãos policiais, o agente infiltrado (undercover agent) é introduzido

dissimuladamente em uma organização criminosa, passando a agir como um de seus integrantes, ocultando sua verdadeira identidade, com o objetivo precípuo de identificar fontes de prova e obter elementos de informação capazes de permitir a desarticulação da referida associação.

No ordenamento jurídico pátrio, é possível chegarmos a uma definição comum de agente infiltrado, observando-se algumas características que lhe são inerentes: a) agente policial; b) atuação de forma disfarçada, ocultando-se a verdadeira identidade; c) prévia autorização judicial; d) inserção de forma estável, e não esporádica, nas organizações criminosas; e) fazer-se passar por criminoso

439. Parte minoritária da doutrina sustenta que a entrega vigiada não se confunde com a ação controlada. Nesse con-texto: RASCOVSKI, Luiz. Entrega vigiada: meio investigativo de combate ao crime organizado. São Paulo: Saraiva, 2013, p. 83.

440. Segundo Luiz Rascovski (op. cit. p. 124), há uma outra espécie de entrega vigiada, denominada de interdição: tra-ta-se de espécie anômala de entrega vigiada, pois nesta modalidade a entrega da remessa ilícita ao seu destino é interrompida com a sua apreensão, porém desde que atingidos os objetivos de desmantelamento da organização criminosa.

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para ganhar a confiança dos integrantes da organização; f) objetivo precípuo de identificação de fontes de provas de crimes graves.441

Com natureza jurídica de técnica especial de investigação passível de utilização em qualquer fase da persecução penal, o agente infiltrado está previsto na Lei de Drogas, cujo art. 53, inciso I, dispõe que, mediante autorização judicial e ouvido o Ministério Público, é permitida a infiltração por agentes de polícia, em tarefas de investigação, constituída pelos órgãos especializados pertinentes.

Com esta mesma simplicidade assustadora para tratar de instituto tão complexo, e, por isso, tão polêmico, também havia previsão legal do agente infiltrado na revogada Lei nº 9.034/95. Sem maior detalhamento ou regulamentação, o art. 2º, inciso V, da antiga Lei das Organizações Cri-minosas, limitava-se apenas a dizer que, em qualquer fase da persecução criminal, era possível a infiltração por agentes de polícia ou de inteligência, em tarefas de investigação, constituída pelos órgãos especializados pertinentes, mediante circunstanciada autorização judicial.

Se, até bem pouco tempo atrás, a infiltração policial era tratada de forma omissa e lacunosa, a nova Lei das Organizações Criminosas passa a dispensar maior atenção à matéria, tratando de regulamentar este importante procedimento investigatório ao prever, por exemplo, seus requisitos, prazo de duração, legitimidade para o requerimento, necessidade de oitiva do órgão ministerial, controle jurisdicional prévio, tramitação sigilosa do pedido de infiltração, outorgando, ademais, diversos direitos ao agente infiltrado.

A Convenção das Nações Unidas contra o Crime Organizado Transnacional, internalizada pelo Decreto nº 5.015/2004, também faz menção à infiltração em seu art. 20: “Se os princípios fundamentais do seu ordenamento jurídico nacional o permitirem, cada Estado Parte, tendo em conta as suas possibilidades e em conformidade com as condições prescritas no seu direito interno, adotará as medidas necessárias para permitir o recurso apropriado a entregas vigiadas e, quando o considere adequado, o recurso a outras técnicas especiais de investigação, como a vigilância eletrônica ou outras formas de vigilância e as operações de infiltração, por parte das autoridades competentes no seu território, a fim de combater eficazmente a criminalidade organizada” (nosso grifo).

De modo semelhante ao que ocorre com a colaboração premiada, muito se discute acerca da validade da infiltração policial à luz da ética. A crítica se baseia na utilização da fraude e da mentira pelo agente infiltrado, e na conivência do Estado com a utilização dessa técnica especial de inves-tigação, quando fornece, de maneira imoral, um de seus agentes para a execução dessa operação. Em síntese, se a finalidade das penas é a confirmação das normas éticas, a partir do momento em que o próprio Estado viola esses preceitos éticos para lograr a aplicação de uma pena, estar-se-ia demonstrando que pode valer a pena violar qualquer norma fundamental cuja vigência o direito penal se propõe a assegurar.

Para Antônio Magalhães Gomes Filho, cuida-se “de procedimento cuja legitimidade ética e jurídica é cada vez mais contestada em sociedades mais avançadas, como a alemã e a norte-ameri-cana, pois é incompatível com a reputação e dignidade da Justiça Penal que seus agentes se prestem a envolver-se com as mesmas práticas delituosas que se propõem a combater; e mesmo as eventuais provas resultantes dessas operações terão sido conseguidas através de instigação, simulação ou outros meios enganosos, e portanto de duvidosa validade. De outro lado, não constitui heresia supor que, entre nós, sobretudo pela notória má remuneração atribuída aos agentes policiais, tais expedientes encerrariam um sério risco de atraírem para a criminalidade pessoas que, por sua ligação com as

441. Nesse contexto: NEISTEIN, Mariângela Lopes. O agente infiltrado como meio de investigação. 2006. Dissertação (Mestrado) – Universidade de São Paulo, São Paulo.

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estruturas oficiais, teriam excepcionais condições para se integrarem às mesmas associações crimi-nosas, incrementando suas atividades ilegais”.442

Mais uma vez somos obrigados a discordar. Os tradicionais meios de obtenção de prova previstos na legislação processual penal têm se mostrado ineficazes para fazer frente à expansão das organi-zações criminosas, daí por que o Estado precisa se valer de novas técnicas especiais de investigação. Como essas técnicas caracterizam-se pelo emprego do sigilo e da dissimulação, certamente serão tidas como mais agressivas contra os criminosos, porquanto trazem consigo maior restrição não apenas à liberdade de locomoção, mas também a outros direitos fundamentais. Isso, no entanto, não autoriza qualquer conclusão no sentido da sua inconstitucionalidade. Em primeiro lugar, porque se trata de procedimento investigatório que demanda prévia autorização judicial. Segundo, porque sua utilização é medida de ultima ratio (Lei nº 12.850/13, art. 10, §2º). Em conclusão porque, à luz do princípio da proporcionalidade, a periculosidade social inerente às organizações criminosas acaba justificando o emprego de procedimentos investigatórios mais invasivos, sem os quais os órgãos estatais não seriam capazes de localizar fontes de prova e coligir elementos de informação necessários para a persecução penal.443

14.2. Atribuição para a infiltração: agentes de políciaA revogada Lei nº 9.034/95 autorizava a infiltração de agentes de polícia ou de inteligência.

Segundo a Lei nº 9.883/99, considera-se inteligência a atividade que objetiva a obtenção, análise e disseminação de conhecimentos dentro e fora do território nacional sobre fatos e situações de imediata ou potencial influência sobre o processo decisório e a ação governamental e sobre a salvaguarda e a segurança da sociedade e do Estado (art. 2º). Por sua vez, o art. 3º, além de criar a Agência Brasileira de Inteligência – ABIN –, órgão da Presidência da República, a colocou na posição de órgão central do Sistema Brasileiro de Inteligência, com as funções de planejar, executar, coordenar, supervisionar e controlar as atividades de inteligência do País, observadas as disposições da referida Lei.

Essa autorização para a infiltração de agentes de inteligência era de duvidosa constitucionalidade. Sem embargo da importância das atividades de inteligência, as atividades investigatórias devem ser exercidas precipuamente por autoridades policiais, sendo vedada a participação de agentes estranhos à autoridade policial, sob pena de violação do art. 144, § 1º, IV, da CF/1988, da Lei nº 9.883/1999, e dos arts. 4º e 157 e parágrafos do CPP. Não por outro motivo, os Tribunais Superiores vêm considerando que a execução de atos típicos de polícia judiciária como monitoramento eletrônico e telemático, bem como ação controlada, por agentes de órgão de inteligência (v.g., ABIN), sem autorização judicial, acarreta a ilicitude da provas assim obtidas. A título de exemplo, em habeas corpus referente à operação “Satiagraha”, o STJ considerou irregular a participação de dezenas de funcionários da ABIN e de ex-servidor do SNI em investigação conduzida pela Polícia Federal, declarando a ilicitude de diversas provas por eles produzidas.444

Em consonância com a Lei de Drogas (art. 53, I), a nova Lei das Organizações Criminosas faz referência à infiltração apenas por agentes de polícia. Por consequência, temos que, doravante, a

442. GOMES FILHO, Antônio Magalhães. Também em matéria processual provoca inquietação a Lei Anti-Crime Organizado, In: Boletim do Instituto Brasileiro de Ciências Criminais, São Paulo, nº 13, p. 01, fev. 1994.

443. Com entendimento semelhante: PEREIRA, Flávio Cardoso. A moderna investigação criminal: infiltrações policiais, entregas controladas e vigiadas, equipes conjuntas de investigação e provas periciais de inteligência. In Limites Constitucionais da Investigação. Luiz Flávio Gomes, Pedro Taques, Rogério Sanches Cunha (coords). São Paulo: Revista dos Tribunais, 2009, p. 100.

444. STJ, 5ª Turma, HC 149.250/SP, Rel. Min. Adilson Vieira Macabu – Desembargador convocado do TJ/RJ –, j. 07/06/2011, DJe 05/09/2011.

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ação infiltrada poderá ser executada exclusivamente por agentes de polícia, não mais por agentes do Sistema Brasileiro de Inteligência (Sisbin) e da Agência Brasileira de Inteligência (Abin). Como se trata, a infiltração de agentes, de técnica especial de investigação, devem ser entendidos como agentes de polícia apenas as autoridades policiais que tenham atribuição para a apuração de infrações penais.

14.2.1. (Im) possibilidade de infiltração de particularesOs dois dispositivos legais que cuidam do agente infiltrado no ordenamento jurídico pátrio –

art. 53, inciso I, da Lei nº 11.343/06, e art. 10 da Lei nº 12.850/13 – deixam entrever que não se admite a infiltração de particulares. Logo, na hipótese de infiltração de “gansos” ou “informantes” – civis que prestam serviços esporádicos aos organismos policiais sem qualquer hierarquia funcional –, ter-se-á verdadeira prova ilícita.445

No entanto, caso um dos integrantes da organização criminosa resolva colaborar com as inves-tigações para fins de ser beneficiado com a celebração de possível acordo de colaboração premiada, há quem entenda ser possível que o colaborador atue de modo infiltrado. Nesse caso, por mais que esse colaborador não seja servidor policial, desde que haja autorização judicial para a conjugação dessas duas técnicas especiais de investigação – colaboração premiada e agente infiltrado –, é pos-sível que o colaborador mantenha-se infiltrado na organização criminosa com o objetivo de coletar informações capazes de identificar os demais integrantes do grupo.446

14.3. Requisitos para a infiltraçãoPor força do art. 2º, V, da Lei nº 9.034/95, a infiltração policial está condicionada ao preen-

chimento dos seguintes requisitos:a) prévia autorização judicial: quando a Lei nº 9.034/95 foi aprovada pelo Congresso

Nacional, a infiltração de agentes policiais estava prevista em seu art. 2º, inciso I, nos seguintes termos: “a infiltração de agentes da polícia especializada em quadrilhas ou bandos, vedada qualquer co-participação delituosa, exceção feita ao disposto no art. 288 do Decreto-lei nº 2.848, de 7 de dezembro de 1940 – Código Penal, de cuja ação se preexclui, no caso, a antijuridicidade”. Como se percebe, nos termos em que foi aprovado, o referido dispositivo legal permitia a infiltração policial independentemente de prévia autorização judicial. Por tal motivo, e pelo fato de conceder expressa autorização legal para que o agente infiltrado cometesse crimes, o art. 2º, inciso I, da Lei nº 9.034/95, acabou sendo vetado pelo Presidente da República (mensagem nº 483, de 3 de maio de 1995). Daí a origem da Lei nº 10.217/01, que reintroduziu a figura do agente infiltrado à Lei nº 9.034/95, inserindo-o no inciso V do art. 2º, porém com expressa menção à necessidade de circunstanciada autorização judicial. Na mesma linha que a revogada Lei nº 9.034/95, o art. 10, caput, da Lei nº 12.850/13, também dispõe que a infiltração de agentes de polícia em tarefas de investigação deverá ser precedida de circunstanciada, motivada e sigilosa autorização judicial, que estabelecerá seus limites.

Em fiel observância ao art. 93, IX, da Constituição Federal, esta autorização judicial deve ser devidamente fundamentada, sob pena de nulidade absoluta. Para além de fazer menção à duração razoável da infiltração, a decisão judicial também deve indicar certas diretrizes a serem observadas

445. Nessa linha: CONSERINO, Cassio Roberto. Crime organizado e institutos correlatos. Série Legislação Penal Especial. Organizadores: Clever Rodolfo Carvalho Vasconcelos e Levy Emanuel Magno. São Paulo: Editora Atlas, 2011, p. 82.

446. É nesse sentido a lição de Vladimir Aras (Técnicas especiais de investigação. Lavagem de dinheiro: prevenção e controle penal. Porto Alegre: Editora Verbo Jurídico, 2011. p. 429). O autor afirma que, em 2005, na operação TNT, o MPF no Paraná fez uso dessa técnica conjugada, sob a coordenação do Procurador Regional da República Januário Paludo, tendo o colaborador “Xis” realizado interceptação ambiental mediante autorização judicial do juiz Sérgio Moro, de Curitiba.

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pelo agente infiltrado (v.g., abstenção de prática de crimes de dano),447 além da descrição detalhada dos procedimentos investigatórios que poderão ser por ele produzidos, na medida em que o sucesso dessa medida depende de sua combinação com outros procedimentos investigatórios (v.g., apreensão de objetos, gravações ambientais e/ou telefônicas, vigilância eletrônica, etc.). Afinal, a infiltração não pode constituir uma “carta branca” para violações, realizáveis pela discricionariedade (ou arbitra-riedade) do próprio agente infiltrado. Logo, há necessidade de autorização e monitoramento para que, antes mesmo da violação do direito, possa o juiz fazer tal julgamento, autorizando ou não, nos limites legais, a violação de uma garantia fundamental. Fosse o agente infiltrado obrigado a buscar autorização judicial para cada situação vivenciada durante a execução da operação, haveria evidente prejuízo à eficácia desse procedimento investigatório, além de colocar em risco a própria segurança do policial. Daí a importância de o magistrado, ao conceder a autorização judicial para a infiltração, pronunciar-se, desde já, quanto à execução de outros procedimentos investigatórios. De mais a mais, também deve constar determinação expressa no sentido de que haja uma equipe de policiais que prestem apoio constante ao agente infiltrado, viabilizando eventual proteção caso sua verdadeira identidade seja revelada.

b) fumus comissi delicti e periculum in mora: de modo semelhante ao que ocorre com outras técnicas especiais de investigação, a determinação de infiltração de agentes de polícia está condicionada à existência de elementos indiciários da existência de crimes praticados por orga-nizações criminosas ( fumus comissi delicti). A propósito, o art. 10, §2º, primeira parte, da Lei nº 12.850/13, dispõe expressamente que a infiltração será admitida se houver indícios de infração penal de que trata o art. 1º. Não se faz necessária a prova cabal da existência da organização criminosa, até mesmo porque, fosse isso necessário, não haveria motivo para a produção de quaisquer outros elementos de informação. Face a complexidade dos crimes decorrentes de organizações criminosas, geralmente praticados por agentes residentes em estados e/ou países diversos, o que acaba dificul-tando a identificação de todos os integrantes, o dispositivo legal sob comento não exige a presença de indícios de autoria (ou de participação), como se faz necessário, por exemplo, para a decretação da prisão preventiva (CPP, art. 312). Na verdade, basta a presença de indícios de infração penal de que trata o art. 1º da Lei nº 12.850/13. Prova disso, alías, é o quanto previsto no art. 11 da Lei nº 12.850/13: ao tratar dos requisitos do pedido de infiltração, o dispositivo deixa claro que a indicação de nomes ou apelidos dos membros da organização criminosa deve ser feita apenas quando possível. Em relação ao periculum in mora, há de ser levado em consideração o risco ou prejuízo que a não realização imediata dessa diligência poderá representar para a aplicação da lei penal, para a investi-gação criminal ou para evitar a prática de novas infrações penais (CPP, art. 282, I);

c) indispensabilidade da infiltração: de aplicação subsidiária e complementar, a infiltração só deve ser admitida quando a prova não puder ser produzida por outros meios disponíveis (ultima ratio). Por força do princípio da proporcionalidade – subprincípio da necessidade –, dentre diversas medidas investigatórias idôneas a atingir o fim proposto, deve o magistrado buscar aquela que produza menores restrições à esfera de liberdade individual do agente. Enfim, a infiltração deve ser precedida por outros meios de obtenção de prova, mesmo que igualmente invasivos, como, por exemplo, a interceptação das comunicações telefônicas. Considerando-se, então, os riscos inerentes

447. Para Vladimir Aras (Op. cit. p. 435), deve haver uma vedação ao concurso em delitos sexuais ou crimes violentos (dolosos contra a vida) e a tortura, porém a decisão judicial pode autorizar o agente infiltrado a transportar pessoas e produtos ilícitos, de modo a facilitar a descoberta e a prova de uma determinada infração penal. No plano inter-nacional, a figura do agente infiltrado é utilizada quase sempre permitindo que sejam praticadas algumas condutas criminosas que não afetem interesse individual ou o afetem de forma proporcional, ou que somente atinjam a bens supraindividuais como, por exemplo, na compra de drogas em que teoricamente se atinge a saúde pública.

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à infiltração de agentes de polícia e o grau de invasão inerente à adoção dessa técnica especial de investigação, antes de adotá-la, deve o magistrado verificar se não há outro meio de prova ou de obtenção de prova menos invasivo (v.g., prova testemunhal, pericial, busca domiciliar, etc.). Daí dispor o art. 10, §2º, in fine, da Lei nº 12.850/13, que a infiltração será admitida apenas se a prova não puder ser produzida por outros meios disponíveis;

d) anuência do agente policial: consoante disposto no art. 14, I, da Lei nº 12.850/13, o agente policial tem o direito de recusar ou fazer cessar a atuação infiltrada. Como se percebe, eventual recusa do agente policial em participar da infiltração não caracteriza insubordinação, nem tampouco vio-lação aos seus deveres funcionais. É um direito do agente policial.448 Com efeito, diante do grau de periculosidade envolvido na infiltração policial, a própria Lei determina que o agente policial deve, voluntariamente, manifestar seu interesse em participar da operação, daí por que sua prévia anuência deve ser apontada como verdadeiro requisito para a realização desse procedimento investigatório.

14.4. Duração da infiltraçãoConsoante disposto no art. 10, §3º, da Lei nº 12.850/13, a infiltração será autorizada pelo prazo

de até 6 (seis) meses, sem prejuízo de eventuais renovações, desde que comprovada sua necessidade.Esse prazo de 6 (seis) meses é o prazo-limite para cada autorização judicial, o que não impede

o juiz de conceder a autorização por prazo inferior, caso entenda ser tal prazo suficiente para auxi-liar nas investigações. De mais a mais, como a própria Lei estabelece que o agente infiltrado pode fazer cessar a atuação infiltrada, é evidente que a execução desse procedimento investigatório pode ser interrompida a qualquer momento, se acaso houver risco à integridade física do agente policial.

Havendo necessidade de renovação do prazo, esta deve se dar antes do decurso do prazo fixado na decisão originária, evitando-se uma solução de continuidade na realização da infiltração. Como o controle judicial deve ser prévio, seja no tocante à concessão inicial da infiltração, seja em relação à renovação do prazo, se a infiltração se prolongar por período “descoberto” de autorização judicial, os elementos probatórios aí obtidos devem ser considerados inválidos, por violação ao preceito do art. 10, caput, da Lei nº 12.850/13, que demanda prévia autorização judicial para a execução da infiltração de agentes.

Como deixa entrever o próprio art. 10, §3º, da Lei nº 12.850/13, a renovação do prazo da infiltração não pode se dar de maneira automática, sendo imprescindível a existência de decisão fundamentada comprovando que subsiste a necessidade da medida. Portanto, se a prorrogação da medida não for devidamente fundamentada pela autoridade judiciária competente, é perfeitamente possível o reconhecimento da ilicitude da prova, com o consequente desentranhamento das infor-mações obtidas a partir da renovação da infiltração.

Não se exige que o deferimento das renovações seja sempre precedido de relatório circuns-tanciado da atividade de infiltração, sob pena de se frustrar a rapidez na obtenção da prova e até mesmo a própria segurança do agente infiltrado. Na verdade, este relatório deverá ser apresentado apenas ao final da infiltração policial ou a qualquer tempo, mediante determinação do Delegado de Polícia ou do Ministério Público (Lei nº 12.850/13, art. 10, §§ 3º e 5º).

Ante a redação do art. 10, §3º, da Lei nº 12.850/13, que faz referência expressa ao prazo de até 6 (seis) meses, sem prejuízo de eventuais renovações, parece não haver dúvidas de que o prazo da

448. Se a própria Lei nº 12.850/13 confere ao agente policial o direito de recusar ou fazer cessar a atuação infiltrada, eventual recusa por parte do servidor público não caracteriza infração funcional ao disposto no art. 116 da Lei nº 8.112/90, que impõe ao servidor o dever de cumprir as ordens superiores, exceto quando manifestamente ilegais.

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infiltração pode ser renovado indefinidamente, desde que comprovada a indispensabilidade do meio de prova. Com a crescente profissionalização das organizações criminosas em nosso país, é no mínimo ingênuo acreditar que uma infiltração pelo prazo de 6 (seis) meses possa levar ao esclarecimento dos diversos crimes por ela praticados e à identificação de todos os seus integrantes. A depender da extensão, intensidade e complexidade das condutas delitivas investigadas, e desde que demonstrada a razoabilidade da medida, o prazo para a renovação da infiltração pode ser prorrogado enquanto persistir a necessidade da captação das comunicações telefônicas. De qualquer sorte, é no mínimo desaconselhável admitir infiltrações tão longas. A imersão pessoal do agente infiltrado dentro da organização criminosa e o nível de intimidade que se pode esperar de períodos tão extensos pode vir a fragilizar as investigações, expondo o infiltrado a toda sorte de cooptação.449

14.5. Agente infiltrado e agente provocador (entrapment doctrine ou teoria da armadilha)

O agente infiltrado tem autorização judicial para se infiltrar em determinada organização cri-minosa com o objetivo de colher elementos capazes de proporcionar seu desmantelamento, devendo agir precipuamente de maneira passiva, não instigando os demais integrantes do bando à prática de qualquer ilícito. Logo, se os agentes de polícia ou de inteligência têm indícios suficientes da existência de uma organização criminosa e nela se infiltram em busca de informações que permitam identificar os diversos ilícitos praticados por seus integrantes, não há falar em crime impossível, porquanto a intenção de delinquir já havia surgido firmemente nos sujeitos que estão praticando as infrações penais, por meio de decisão livre e anterior à intervenção do agente infiltrado.

Consequentemente, na hipótese de as informações prestadas pelo agente infiltrado serem úteis para a prisão em flagrante de determinados integrantes da organização criminosa, este flagrante esperado será plenamente válido. No entanto, se a autoridade policial que estiver monitorando seu agente infiltrado entender que a prisão em flagrante naquele momento pode se revelar inoportuna sob o ponto de vista probatório, afigura-se válida a prorrogação daquela medida para outro momento temporal e espacial mais adequado (ação controlada).

Como se percebe, a depender das circunstâncias do caso concreto, se a infiltração visar tão somente a identificação de uma situação de flagrância de modo a permitir a captura de determi-nados integrantes da organização criminosa, este procedimento investigatório poderá ser utilizado sem a utilização concomitante da ação controlada (Lei nº 12.850/13, arts. 8º e 9º). No entanto, se as autoridades responsáveis pela persecução penal entenderem que o flagrante deve ser postergado para um momento mais oportuno sob o ponto de vista da colheita de provas, é possível que o procedimento investigatório do agente infiltrado seja utilizado em conjunto com a ação controlada (Lei nº 12.850/13, arts. 8º e 9º, c/c arts. 10 a 14).

Noutro giro, a atuação do agente provocador (entrapment doctrine ou teoria da armadilha), geralmente realizada sem prévia autorização judicial, caracteriza-se pela indução de alguém à prática de determinado ilícito, sem que esta pessoa tivesse previamente tal propósito, hipótese na qual se viola o direito fundamental de não se autoacusar e o da amplitude de defesa, comprometidos pelo engano provocado pelo agente infiltrado.

Quando alguém (particular ou autoridade policial), de forma insidiosa, instiga o agente à prá-tica do delito com o objetivo de responsabilizá-lo criminalmente, ao mesmo tempo em que adota

449. Nesse contexto: OLIVEIRA, Eugênio Pacelli de. Atualização da 17ª edição do curso de processo penal em virtude da Lei nº 12.850/13. Disponível em: http://eugeniopacelli.com.br/atualizacoes/curso-de-processo-penal-17a-edicao--comentarios-ao-cpp-5a-edicao-lei-12-85013-2/. Acesso em 05/11/2013.

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todas as providências para que o delito não se consume, prevalece o entendimento de que haverá crime impossível, em virtude da ineficácia absoluta do meio (CP, art. 17). Nesses casos de atuação de agente provocador, o suposto autor do delito não passa de um protagonista inconsciente de uma comédia, cooperando para a ardilosa averiguação da autoria de crimes anteriores, ou da simulação da exterioridade de um crime. Exemplificando, suponha-se que, após prender o traficante de uma pequena cidade e com ele apreender seu computador pessoal no qual consta um cronograma de distribuição de drogas, a autoridade policial passe a efetuar ligações aos usuários, simulando uma venda de droga. Os usuários comparecem, então, ao local marcado, efetuando o pagamento pela aquisição da droga. Alguns minutos depois, são presos por agentes policias que se encontravam à paisana, sendo responsabilizados pela prática do crime do art. 28 da Lei nº 11.343/06.

Nesse caso, diante da atuação do agente provocador, estará caracterizado o flagrante preparado, como espécie de crime impossível, em face da ineficácia absoluta dos meios empregados. Logo, diante da ausência de vontade livre e espontânea dos autores e da ocorrência de crime impossível (CP, art. 17), a conduta deve ser considerada atípica. Cuidando-se de flagrante preparado, e, por conseguinte, ilegal, pois alguém se vê preso em face de conduta atípica, afigura-se cabível o relaxamento da prisão pela autoridade judiciária competente (CF, art. 5º, inciso LXV). Sobre o assunto, confira-se o teor da Súmula nº 145 do Supremo Tribunal Federal: “Não há crime, quando a preparação do flagrante pela polícia torna impossível a sua consumação”. A leitura da súmula fornece os dois requisitos do flagrante preparado: preparação e não consumação do delito. Logo, mesmo que o agente tenha sido induzido à prática do delito, porém operando-se a consumação do ilícito, haverá crime e a prisão será considerada legal.

Em síntese, para serem válidas em juízo, “as provas colhidas pelo undercover agent devem derivar de atos preparatórios iniciados espontaneamente pelo investigado, ou devem resultar de iter criminis por ele percorrido também espontaneamente. Cabe ao Ministério Público provar que não houve instigação e que o crime teria ocorrido mesmo sem a infiltração policial. Qualquer prova que tenha sido obtida por provocação do agente infiltrado é inadmissível, por ilicitamente obtida”.450

Não por outro motivo, em caso concreto envolvendo a infiltração de agente policial em associação criminosa voltada ao tráfico de drogas, concluiu o STJ que, diante da inexistência de induzimento à prática delituosa, não seria possível qualquer questionamento em relação à legalidade da prisão e ulterior condenação pelo crime de tráfico de drogas. Afinal, se as provas produzidas comprovaram que o acusado, não obstante não estar comercializando a droga no momento da prisão, portava, juntamente com outros corréus, elevada quantidade de substância tóxica, caracterizada estaria a traficância e o estado de flagrância, na medida em que a consumação do ilícito em questão já vinha se protraindo no tempo e era preexistente à ação policial.451

450. ARAS, Vladimir. Técnicas especiais de investigação. Lavagem de dinheiro: prevenção e controle penal. Porto Alegre: Editora Verbo Jurídico, 2011. p. 435-436. Ainda segundo o autor, há provocação quando a conduta do infiltrado ou do agente encoberto é decisiva para a consumação do crime. Não há provocação quando o dolo é latente e ante-cede o induzimento policial, não havendo ardil ou persuasão dos investigadores para viciar a vontade do suspeito ou fazer surgir a intenção criminosa.

451. STJ, 5ª Turma, HC 92.724/SC, Rel. Min. Jorge Mussi, j. 14/04/2009, DJe 01/06/2009. Em caso concreto envolvendo a infiltração de agente policial para a investigação de tráfico internacional de drogas e associação para o tráfico, o TRF da 3ª Região também concluiu que o dolo de praticar o tráfico de drogas não foi provocado nos agentes pelo undercover agent, porquanto os criminosos já haviam executado, ao menos, os verbos "expor a droga à venda", "importar", "transportar" e "trazer consigo", situação idônea para se afastar a aplicação da Súmula nº 145 do STF: TRF3ª Região, 2ª Turma, Apelação Criminal nº 35.261, Rel. Desembargador Cotrim Guimarães, j. 20/10/2009).

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14.6. Sustação da operaçãoA preocupação do legislador com a proteção da integridade física (e da própria vida) do agente

infiltrado fica evidenciada diante do dispositivo constante do art. 12, §3º, da Lei nº 12.850/13, que dispõe: “Havendo indícios seguros de que o agente infiltrado sofre risco iminente, a operação será sustada mediante requisição do Ministério Público ou pelo delegado de polícia, dando-se imediata ciência ao Ministério Público”. O art. 14, I, por sua vez, confere expressamente ao agente policial o direito de recusar ou fazer cessar a atuação infiltrada.

Se o início da infiltração está condicionado à aquiescência do agente policial e à prévia auto-rização judicial, a sustação das operações deverá ocorrer de imediato, antes mesmo de qualquer requisição do Ministério Público ou do Delegado de Polícia. Afinal, seria no mínimo temerário que se exigisse a continuidade da infiltração a despeito da presença de indícios seguros de que o undercover agent estivesse sofrendo risco iminente. Portanto, após sustar a operação, o agente policial deverá comunicar o fato ao Delegado de Polícia e ao Ministério Público, a fim de que o juiz seja cientificado do encerramento da diligência.

14.7. Responsabilidade criminal do agente infiltradoA partir do momento em que o agente infiltrado passar a integrar a organização criminosa

como se fosse um de seus membros, é evidente que os demais integrantes desse grupo podem exigir sua contribuição para a execução de certos crimes. Aliás, a depender do caso concreto, a recusa do agente infiltrado em concorrer para essas práticas delituosas pode inclusive levantar suspeitas acerca de sua verdadeira identidade, colocando em risco não apenas o procedimento investigatório, como também sua própria integridade física.

Nada dizia a revogada Lei 9.034/95 acerca da responsabilidade criminal do agente infiltrado. A Lei de Drogas, apesar de regulamentar a infiltração de agentes, também silencia acerca do assunto. Daí a importância da nova Lei das Organizações Criminosas, cujo art. 13 prevê que o agente que não guardar, em sua atuação, a devida proporcionalidade com a finalidade da investigação, respon-derá pelos excessos praticados.

A despeito da redação genérica do dispositivo legal sob comento, que faz referência à atuação desproporcional do agente com a finalidade da investigação, sem explicitar melhor o que poderia ser compreendido como excesso por ele praticado, parece-nos evidente que o undercover agent não poderá ser responsabilizado por quaisquer das infrações penais de que trata o art. 2º da Lei nº 12.850/13 (v.g., integrar organização criminosa), nem tampouco associações criminosas (v.g., art. 35 da Lei nº 11.343/06 ou art. 288 do CP). Afinal, o fato de haver prévia autorização judicial para a utilização dessa técnica especial de investigação, permitindo sua infiltração no seio da organização criminosa, tem o condão de afastar a ilicitude de sua conduta, diante do estrito cumprimento do dever legal (CP, art. 23, III). Nesse sentido, como observa Mendroni, “a exclusão da antijuridicidade é evidente e inafastável, pois, havendo autorização para a infiltração do agente, que significa integrar o bando, mas para fins de investigação criminal, que serve aos fins dos órgãos de persecução, ele não estaria na verdade integrando a organização criminosa, mas sim dissimulando a sua integração com a finalidade de coletar informações e melhor viabilizar o seu controle”.452

Na hipótese de o agente ser coagido a praticar outros crimes (v.g., tráfico de drogas, receptação), sob pena de ter sua verdadeira identidade revelada, o ideal é concluir pela inexigibilidade de conduta

452. MENDRONI, Marcelo Batlouni. Op. cit. p. 55. Na mesma linha: ARAS, Vladimir. Técnicas especiais de investigação. Lavagem de dinheiro: prevenção e controle penal. Porto Alegre: Editora Verbo Jurídico, 2011. p. 434.

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diversa, com a consequente exclusão da culpabilidade, desde que respeitada a proporcionalidade e mantida a finalidade da investigação. É evidente que, em prol da infiltração do agente, nada justifica o sacrifício de uma vida. No entanto, se um policial infiltrado, impossibilitado de impedir o pior, se ver obrigado a atirar contra uma pessoa por ter uma arma apontada para sua própria cabeça, não se pode estabelecer um juízo de reprovação sobre sua conduta, porquanto, no caso concreto, não lhe era possível exigir conduta diversa.

Nesse sentido, o art. 13, parágrafo único, da Lei nº 12.850/13, dispõe expressamente que “não é punível, no âmbito da infiltração, a prática de crime pelo agente infiltrado no curso da investigação, quando inexigível conduta diversa”. Apesar do caráter dúbio do dispositivo legal, que, inicialmente, faz referência à não punibilidade do agente infiltrado para, na sequência, referir-se à inexigibilidade de conduta diversa, preferimos entender que se trata de hipótese de exclusão da culpabilidade, e não de causa extintiva da punibilidade.453

Excluindo-se apenas a culpabilidade do injusto penal praticado pelo agente infiltrado, isso significa dizer que subsiste a tipicidade e ilicitude da conduta, permitindo, por meio da teoria da acessoriedade limitada, a punição dos demais integrantes da organização criminosa pelas infrações penais praticadas.

453. Há quem entenda que, sob o ponto de vista da dogmática penal, melhor seria concluir que a não punição do agente infiltrado afasta apenas a punibilidade. Nesse sentido, antes da vigência da Lei nº 12.850/13, Alexis Couto de Brito (op. cit. p. 259) advertia: “embora o agente pratique conduta criminosa em todos os seus elementos (conduta típica, ilícita e culpável), não haveria necessidade de aplicar-lhe uma pena – dependendo sempre do caso concreto – diante da ausência de finalidades preventivas”.