4
Profundamente Quando ontem adormeci Na noite de São João Havia alegria e rumor Estrondos de bombas luzes de Bengala Vozes, cantigas e risos Ao pé das fogueiras acesas. No meio da noite despertei Não ouvi mais vozes nem risos Apenas balões Passavam, errantes Silenciosamente Apenas de vez em quando O ruído de um bonde Cortava o silêncio Como um túnel. Onde estavam os que há pouco Dançavam Cantavam E riam Ao pé das fogueiras acesas? — Estavam todos dormindo Estavam todos deitados Dormindo Profundamente. *** Quando eu tinha seis anos Não pude ver o fim da festa de São João Porque adormeci Hoje não ouço mais as vozes daquele tempo Minha avó Meu avô Totônio Rodrigues Tomásia Rosa Onde estão todos eles? — Estão todos dormindo Estão todos deitados Dormindo Profundamente.

Manuel Bandeira

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Manuel Bandeira

Profundamente

Quando ontem adormeciNa noite de São JoãoHavia alegria e rumorEstrondos de bombas luzes de BengalaVozes, cantigas e risosAo pé das fogueiras acesas.

No meio da noite desperteiNão ouvi mais vozes nem risos

Apenas balõesPassavam, errantes

SilenciosamenteApenas de vez em quandoO ruído de um bondeCortava o silêncioComo um túnel.

Onde estavam os que há poucoDançavamCantavam

E riamAo pé das fogueiras acesas?

— Estavam todos dormindoEstavam todos deitadosDormindoProfundamente.

***

Quando eu tinha seis anosNão pude ver o fim da festa de São JoãoPorque adormeci

Hoje não ouço mais as vozes daquele tempoMinha avóMeu avôTotônio RodriguesTomásiaRosaOnde estão todos eles?

— Estão todos dormindoEstão todos deitadosDormindoProfundamente.

Análise:

O poema pode ser dividido em duas partes : o passado e o presente. O passado mostra as lembranças do eu-lírico da noite de São João (“Quando eu tinha seis anos”), ele dormiu antes do fim da festa e ao acordar no meio da noite percebeu que o barulho tinha se transformado em silêncio, porque todos da casa estavam dormindo profundamente.

O presente mostra o hoje do eu-lírico, que não ouve mais as vozes da noite de São João pois estão todos dormindo profundamente, mas dessa vez no sentido conotativo. Estão todos mortos.

O Homem e a Morte

O homem já estava deitado

Dentro da noite sem cor.

Ia adormecendo, e nisto

À porta um golpe soou.

Não era pancada forte.

Contudo, ele se assustou,

Pois nela uma qualquer coisa

De pressago adivinhou.

Levantou-se e junto à porta

- Quem bate? Ele perguntou.

- Sou eu, alguém lhe responde.

- Eu quem? torna. – A Morte sou.

Um vulto que bem sabia

Pela mente lhe passou:

Esqueleto armado de foice

Que a mãe lhe um dia levou.

Guardou-se de abrir a porta,

Antes ao leito voltou,

E nele os membros gelados

Cobriu, hirto de pavor.

Mas a porta, manso, manso,

Page 2: Manuel Bandeira

Se foi abrindo e deixou

Ver – uma mulher ou anjo?

Figura toda banhada

De suave luz interior.

A luz de quem nesta vida

Tudo viu, tudo perdoou.

Olhar inefável como

De quem ao peito o criou.

Sorriso igual ao da amada

Que amara com mais amor.

- Tu és a Morte? Pergunta.

E o Anjo torna: - A Morte sou!

Venho trazer-te descanso

Do viver que te humilhou.

-Imaginava-te feia,

Pensava em ti com terror...

És mesmo a Morte? Ele insiste.

- Sim, torna o Anjo, a Morte sou,

Mestra que jamais engana,

A tua amiga melhor.

E o Anjo foi-se aproximando,

A fronte do homem tocou,

Com infinita doçura

As magras mãos lhe cerrou...

Era o carinho inefável

De quem ao peito o criou.

Era a doçura da amada

Que amara com mais amor.

Análise:

O poema fala da imagem que se tem da morte e do pavor provocado por ela. O personagem, com medo, tenta fugir, mas quando ela entra ele percebe que a morte não é tão terrível assim e que a sua figura se assemelha à de um anjo. Um anjo que veio trazer paz e conforto, que é tão doce quanto a amada “que amara com mais amor”.

Morte Absoluta

Morrer.Morrer de corpo e de alma.Completamente.

Morrer sem deixar o triste despojo da carne,A exangue máscara de cera,Cercada de flores,Que apodrecerão — felizes — num dia,Banhada de lágrimasNascidas menos da saudade do que do espanto da morte.

Morrer sem deixar porventura uma alma errante...A caminho do céu?Mas que céu pode satisfazer teu sonho de céu?

Morrer sem deixar um sulco, um risco, uma sombra,A lembrança de uma sombraEm nenhum coração, em nenhum pensamento,em nenhuma epiderme.

Morrer tão completamenteQue um dia ao lerem o teu nome num papelPerguntem: “Quem foi?...”

Morrer mais completamente ainda,— Sem deixar sequer esse nome.

Análise: O poema trata de uma morte que não deixa saudade, que não deixa restos (corpo), que não deixa um sinal de existência uma morte absoluta.

A

Page 3: Manuel Bandeira