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O SOCIALISMO EXISTIU ALGUMA VEZ? E TEM FUTURO? Mario Bunge Departamento de Filosofia, Universidade McGill 2009

Mario bunge o socialismo existiu alguma vez e tem futuro

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O SOCIALISMO EXISTIU ALGUMA VEZ? E TEM FUTURO?

Mario Bunge

Departamento de Filosofia, Universidade McGill

2009

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ÍNDICE

1- Crise e renovação1.1 A crise atual1.2 Definição de Socialismo

2- Anteontem: Emancipação e Ditadura2.1 Precursores: Socialismo Utópico2.2 Cooperativismo

3- Ontem: da oposição ao poder3.1 As duas Internacionais Socialistas3.2 A pacífica social-democracia

4- Fracasso do Socialismo?4.1 Socialismo estatista e terrorista4.2 O que fracassou e por que?

5- Hoje: Estado assistencialista e eleitoralismo5.1 Socialismo estatal ou capitalismo com rede de previdência5.2 Eleitoralismo

6- Amanhã6.1 Propriedade cooperativa6.2 Democracia integral

7- Conclusão

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1- Crise e renovação

1.1 A crise atual

Em 1989 foi derrubado o Muro de Berlim, que simbolizava a moribunda ditadura comunista. Vinte anos depois, despluma-se Wall Street, cúpula e símbolo do capitalismo desenfreado. Curiosamente, os sismógrafos socialistas não registraram nenhum de ambos terremotos. Não aproveitaram 1989 para buscar os motivos do fracasso chamado “socialismo realmente existente”. Os socialistas tampouco estão aproveitando a atual crise econômica para investigar se o fracasso do capitalismo é estrutural ou conjuntural: ou seja, se o mal chamado livre mercado é reparável com uma emenda keynesiana ou se terá de ser substituído por um sistema mais racional, justo e sustentável.

A que se deve o silêncio dos socialistas em meio aos escombros destas duas derrubadas? Perderam os ideais? Somente lhes interessam as próximas eleições? Já não se interessam pelo que ocorre fora de suas fronteiras nacionais? Ou perderam o que Fernando VII chamava de “o funesto hábito de pensar” porque se acostumaram a administrar uma sociedade capitalista com Estado assistencialista? Porque continuam na planície e perderam a esperança de reformar a sociedade? Não tenho respostas a estas perguntas, já que exigem investigações empíricas as quais sou incapaz de empreender.

Por ser filósofo, limitar-me-ei a descrever e analisar os grandes riscos da família de filosofias políticas que agrupamos sobre o “socialismo” vermelho, e que de fato, vão desde um liberalismo figurado até a um igualitarismo autoritário (o qual, desde já, é contraditório e portanto impossível). Espero que outros, mais competentes que eu, documentem em detalhe as ideias e as ações dos socialistas de distintos tipos. Concentrarei minha atenção no que me parece essencial.

Minha intenção não é historiográfica, mas filosófica e política: interessa-me destacar a grande variedade da família socialista, a fim de ver o que ainda resta vigente dela, e o que haveria de ser agregado ou retirado da tradição socialista para que possa servir como alternativa ao capitalismo em crise.

1.2 Definição de socialismo

Adotarei uma definição de “socialismo” que acredito ser congruente com todas as correntes de esquerda. Em uma sociedade autenticamente

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capitalista, os bens e os impostos, os direitos e os deveres se distribuem igualmente. Em outras palavras, o socialismo realiza o ideal de justiça social.

Este ideal se justifica tanto ética como cientificamente. Com efeito, a igualdade social coloca em prática o princípio moral de igualdade ou justiça; contribui de modo poderoso com a coesão social; e é fisiologicamente benéfica, como sugerem estudos recentes, que mostram que a exclusão é causa de stress e que por sua vez, debilita o sistema imunológico a ponto de causar doenças e até mesmo, matar (p ex. Kemeny 2009).

Contudo, há duas maneiras de entender a justiça ou a igualdade social: literal e qualificada, ou mediocrática e meritocrática respectivamente. A igualdade literal descarta o mérito, enquanto que a qualificada o exalta sem conferir-lhe privilégios. O socialismo que engloba a igualdade literal nivela por baixo: nele, como disse Discépolo em seu tango Cambalache, um burro é igual a um professor (obviamente, o ilustre tanguista não se referia ao socialismo, mas a sociedade argentina de seu tempo). Por outro lado, o socialismo que engloba a igualdade qualificada é meritocrático: fomenta que cada qual realize seu potencial e, na hora de assumir responsabilidades, dá prioridade à competência.

No socialismo meritocrático, pratica-se a divisão proposta por Louis Blanc em 1839: A cada qual conforme suas necessidades, e de cada qual, segundo suas capacidades. Blanc chamou a esta forma de igualitarismo, de qualificado ou meritocrático. Esta fórmula é complementada com a divisão da Primeira Internacional Socialista: nem deveres sem direitos e nem direitos sem deveres.

Em qualquer uma de suas versões, o igualitarismo implica a igualdade econômica, e por sua vez, esta implica em uma limitação drástica da propriedade privada dos meios de produção, intercâmbio e financiamento. Em outras palavras, o socialismo inclui a socialização de tais meios.

As diferenças entre as distintas formas de socialismo aparecem quando se pergunta se o socialismo limita-se à esfera econômica, e quando se pergunta em que consiste a chamada socialização. O socialismo economicista limita-se à justiça distributiva, enquanto que o socialismo amplo abarca a todas as esferas sociais. Também há socialismo autoritário, ou que vem de cima, e socialismo democrático, ou que vem de baixo.

Argumentarei em favor da socialização de todas as esferas. Em outras palavras, defenderei o que chamo de democracia integral: biológica, econômica, política e cultural. Defenderei que a democracia parcial, embora possível, não é plena, nem justa e nem sustentável. Em particular, a democracia política não pode ser plena enquanto haja indivíduos que

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possam comprar votos e cargos públicos; a democracia econômica não é plena sobre uma ditadura que imponha o governo sem consulta popular; e a democracia cultural não é plena enquanto o acesso a cultura for limitado a privilégios econômicos ou políticos.

Em síntese, o ideal seria combinar a democracia com socialismo. Esta combinação poderia ser chamada de democracia socialista, a distinguir de social-democracia ou socialismo débil, que de fato não é nada a não ser capitalismo com rede de previdência, também chamado de socialismo estatal, ou que vem cima.

Em resumo, tanto a democracia como o socialismo ou são totais ou não são autênticos. A democracia socialista total só existiu e subsiste nas tribos primitivas. A questão é saber se é possível construí-la sem renunciar à modernidade e, em particular, sem romper com as máquinas e nem abandonar a racionalidade. Mas, antes de abordar este problema, nos convirá dar uma olhada nos socialismos do passado e do presente. Para facilitar a leitura do apurado leitor, dividirei o passado em dois períodos: anteontem e ontem.

2- Anteontem: Emancipação e Ditadura

2.1 Os precursores: o Socialismo Utópico

O socialismo nasceu nos cérebros de alguns intelectuais do Renascimento, em particular, Thomas Morus, o criador de Utopia (1516), e Tommaso Campanella, o autor de Cidade do Sol (1623). É verdade que eles precederam Platão com suas Leis, mas ele imaginou uma sociedade autoritária, enquanto as sociedades imaginadas por Morus e Campanella eram livres e igualitárias.

De fato, as utopias de Morus e Campanella destacaram-se dentre as centenas que se imaginaram quando se difundiram novidades sobre os povos “descobertos” pelos grandes exploradores e geógrafos europeus. Essas notícias surpreendentes, particularmente a referente à propriedade comum entre os chamados selvagens, desataram a imaginação social europeia, até então limitada pela ignorância de sociedades distintas e pelo acatamento à autoridade feudal e eclesiástica.

As utopias socialistas do Renascimento e de meados da Idade Moderna não tiveram impacto político. O primeiro político utopista parece ter sido Gracchus Babeuf, executado em 1797 por participar na Conjuração dos Iguais. Babeuf foi talvez o primeiro comunista totalitário: imaginou uma sociedade sem

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propriedade privada, em que a vida estava rigidamente regimentada, e não era permitido sobressair-se em nada, nem mesmo em conhecimentos. Um século e meio depois, o regime genocida de Pol Pot poria em prática no Camboja o programa de Babeuf, contribuindo para o descrédito do socialismo.

Durante a primeira metade do século XIX floresceram na França e na Inglaterra os socialistas utópicos. Friedrich Engels (1986 [1881]) destacou em particular a Charles Fourier, Henri de Saint Simon e Robert Owen. O falanstério, utopia imaginada por Fourier era uma pequena sociedade igualitária onde cada qual teria seu posto fixo, com tarefas pré-determinadas: a sociedade de Fourier era tão totalitária como a sociedade teocrática a que aspiravam os dirigentes das religiões monoteístas e do hinduísmo. Era o que Popper chamou de sociedade fechada: sem liberdade e portanto, sem possibilidade de progredir, já que as boas ideias nascem em cérebros privilegiados.

Fourier teve partidários em toda a França. Reuniam-se em pequenas sociedades semi-clandestinas vigiadas pela polícia e rebelavam-se com outros grupos socialistas, tais como os cabetistas, icarianos, mutualistas e babeuvistas. Em sua novela O paraíso na outra esquina (2003), Mario Vargas Llosa narra as andanças de Flora Tristán, sua extraordinária compatriota, entre essas seitas. Também nos conta que o ingênuo Fourier publicava anúncios nos periódicos, nos quais convidava a filantropos para visitar-lhe e para tratar a modalidade de suas doações a sua causa do socialismo de cima. Diga-se de passagem, Vargas Llosa confunde o socialismo com a aspiração ao paraíso, lugar onde ninguém trabalha. Longe de pretender abolir o trabalho, os socialistas pretendem abolir a desocupação.

O revolucionário francês Henri de Saint Simon, o conde que renunciou a seu título de nobreza, não foi socialista, mas foi o primeiro tecnocrata. Com efeito, defendeu a propriedade privada e limitou-se a planejar a organização do trabalho e da economia, pelo que teve discípulos como o empresário Péreire, rivais dos Rothschild, e o famoso engenheiro Ferdinand de Lesseps, famoso pelo Canal de Suez. Por isso, é de se estranhar o porquê Engels chamou-o de socialista.

O caso de Robert Owen foi muito distinto: não foi um sonhador ou um projetista, mas um homem de ação. Industrial têxtil cheio de êxito, Owen reformou sua fábrica em New Lanark, melhorando consideravelmente as condições de trabalho; também fundou o primeiro jardim de infância da Grã-Bretanha. Provou assim que a empresa capitalista pode dar utilidades sem explorar desrespeitosamente. Mas Owen não repartiu sua propriedade entre seus trabalhadores e nem os incentivou a administrá-la eles mesmos: foi um

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grande reformista social, precursor do estado assistencialista (Welfare State). Não praticou o socialismo, embora pregou-o com inteligência e eloquência.

Em resumo, a ordem social estabelecida não foi aceita por todos, sina em que foi criticado por ser desigual, e ele não foi somente criticado pelos precursores do socialismo moderno, mas também pelo primeiro apólogo e teórico do capitalismo industrial. Com efeito, em seu livro fundacional e monumental, Adam Smith (1976 [1776] 2, 232) admitiu que “a abundância dos poucos supõe a indigência dos muitos”, e chegou a estimar que cada rico é sustentado pelo trabalho de 500 pobres. Quase dois séculos depois, John Maynard Keynes (1973: 372), outro grande renovador da teoria econômica, deplorou tanto a desocupação como a “distribuição arbitrária e desigual da riqueza e das receitas”. Os casos de Smith e Keynes mostram que não é preciso ser socialista nem anarquista para advertir a injustiça inerente ao capitalismo.

2.2 O Cooperativismo

Ao mesmo tempo em que Fourier e outros utopistas desenhavam comunas, pessoas práticas organizavam cooperativas e sociedades de socorro mútuo. As cooperativas são empresas possuídas e administradas por seus trabalhadores. As primeiras cooperativas modernas emergiram na Inglaterra junto com as estradas de ferro, e quase todas dedicaram-se ao comércio a granel ou a crédito para aquisição da casa própria. O Movimento Cooperativista, dedicado a promover as cooperativas, nasceu em Rochdale, arredores de Manchester, em 1844. Seus princípios, postos em dia em 1995, foram adotados pela Aliança Cooperativa Internacional, a que agrupa centenas de milhares de cooperativas de todo o mundo.

O cooperativismo é socialismo em ação. Mas esta ação está estritamente limitada pelo marco sócio-econômico-jurídico da sociedade. Se a sociedade é capitalista, a cooperativa é pouco mais que um balde em um lago, já que só afeta significativamente a seus membros e suas famílias, e não pode competir com os setores oligopolistas da economia capitalista. Com efeito, não há cooperativas importantes nas indústrias de petróleo, aço, armamento, veículos, aeroespacial, alimentos secos, cerveja, tabaco e televisão. A Suíça é o único país em que prosperam duas cadeias de cooperativas de supermercados; e somente Alemanha, França e Canadá têm grandes bancos cooperativos. Contudo, as 300 maiores cooperativas do mundo têm uma cifra anual de vendas de mais de um bilhão (1012) de dólares (Cronan 2006). Isto é o equivalente ao PIB (valor adicionado) do Canadá e algo mais que o “pacote de estímulo” ao setor privado do governo do Presidente Obama (a rigor, não é correto comparar cifra de venda com valor agregado

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ou PIB, mas dá uma ideia de tamanho).

Além desta limitação externa, está a autoimposta: é excepcional a cooperativa que produza ou circule bens culturais, tais como livros, e não há cooperativas que participem da política. Por estes motivos, o cooperativismo atraiu aos socialistas da ala reformista, ou social-democratas.

Os socialistas revolucionários, que aspiram a uma mudança social total e súbita o rejeitaram pelo mesmo motivo. Em particular, Marx e Engels acreditavam que o cooperativismo, e em geral o reformismo, não eram nada a não ser uma distração na marcha revolucionária até ao socialismo.

Quando alcançaram o poder, os socialistas autoritários submeteram as cooperativas ao controle do Estado, o que subverteu o princípio cooperativista de autogoverno. Com efeito, os koljoses soviéticos foram cooperativas só de nome. As cooperativas iugoslavas, autênticas e prósperas durante vários decênios, terminaram por ser manipuladas e arruinadas por políticos da estirpe nacionalista e autoritária de Milosevich. E os ejidos mexicanos tiveram uma história parecida antes de serem privatizados pelo governo de Carlos Salinas: algumas delas prosperaram enquanto governavam-se a si mesmas, mas outras foram vítimas do partido governante ou da incompetência do banco fundado para ajudá-los (Restrepo e Eckstein 1979).

Deixaremos para o final a questão de se a cooperativa pode ser o embrião da economia de uma sociedade socialista. Nos limitaremos a dois importantes antecedentes teóricos e contudo, esquecidos: Louis Blanc e John Stuart Mill. Em 1839, Louis Blanc, o jornalista, historiador e militante socialista francês (embora nascido em Madri), publicou seu livro L'organisation du travail, uma defesa eloquente da organização cooperativa da produção. Este livro, impresso por uma cooperativa, teve grande difusão e foi reeditado várias vezes.

Blanc argumentou com grande clareza que, mesmo quando os trabalhadores das “oficinas sociais” (cooperativas de produção) trabalhassem somente 7 horas diárias (ou seja, metade do usual nessa época), os benefícios para si mesmos e para a sociedade seriam imensos, porque trabalhariam com entusiasmo, e planejariam o trabalho para evitar o excesso de produção e a concorrência desleal.

Nove anos depois, e independentemente de Blanc, o economista e filósofo John Stuart Mill expressou sua esperança de que o regime de propriedade privada, ao que considerava injusto, fosse eventualmente substituído por um regime de propriedade coletiva ou cooperativa. Mill escreveu isto em seus Principles of Political Economy (1848), um dos tratados de economia mais

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respeitados e difundidos de seu tempo (que diferença em relação aos atuais elogiadores do livre mercado!). Mas, enquanto Blanc preconizou uma economia planejada e sem concorrência, Mill elogiou o mercado e a livre troca, de modo que foi um precursor do que hoje chama-se socialismo de mercado.

A empresa cooperativa é mais que uma invenção social: é um ideal social e psicológico, o de construir uma sociedade de sócios. A cooperação em alguns casos é tão indispensável para formar e manter sistemas sociais, da família até a comunidade internacional, assim como também é a competência para obter e sustentar a autonomia individual. O altruísta é premiado com a estima de seus conhecidos, enquanto que o egoísta é castigado com ostracismo. E há mais: investigações recentes mostram que dar causa mais prazer que receber, e que a exclusão social pode danificar tanto a saúde como o dano provocado por estímulos físicos (Lieberman e Eisenberger 2006). O cooperativismo tem, pois, sólidas bases sociológicas e psicobiológicas.

Nem os socialistas utópicos e nem os cooperativistas interessaram-se por política. O grande movimento democrático, que incorporou gradualmente as massas desde a Revolução Francesa de 1789, lhes passou adiante.

3 – Ontem: Da Oposição ao Poder

3.1 As duas Internacionais Socialistas

A Associação Internacional de Trabalhadores, fundada em 1864, estava constituída por sindicatos e associações socialistas e anarquistas de vários países europeus, em particular Alemanha, França, Grã-Bretanha, Bélgica, Itália e Suíça. A primeira internacional esteve representada inclusive na Argentina (Tarcus 2007). Chegou a agrupar entre 5 e 8 milhões de sócios, o que é muito para uma associação recém-nascida e perseguida em muitos países.

A primeira Internacional não conseguiu fazer nada de importante, e isto por dois motivos: porque se manteve à margem da política e porque desde o seu nascimento esteve dividida em duas facções irreconciliáveis. Estas eram a socialista, encabeçada pelos intelectuais alemães Marx e Lassalle, e a anarquista, dirigida pelo revolucionário russo Mikhail Bakunin. A primeira Internacional dissolveu-se voluntariamente em 1876.

Mas o socialismo foi fazendo-se cada vez mais popular, tanto no movimento sindical como no campo político. Foram organizados partidos socialistas em

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muitos países. O mais poderoso deles foi o Partido Socialista Alemão. Em seu congresso fundacional de Gotha, celebrado em 1875, os delegados estavam divididos em duas facções: a reformista ou democrática, encabeçada pelo jurista alemão Ferdinand Lassalle, e a revolucionária e autoritária, inspirada por seu compatriota, o famoso economista Karl Marx.

O Congresso de Gotha aprovou um programa inspirado por Lassalle, e foi duramente criticado por Marx (1986 [1875]). A principal crítica de Marx estava dirigida a democracia política: Marx defendeu a “ditadura revolucionária do proletariado”. Obviamente, não advertiu que onde há ditadura, não há igualdade. Esta contradição foi o pecado original do socialismo marxista, que uma geração depois, inspirou a facção bolchevique encabeçada por Lenin.

Tampouco a facção democrática de Lassalle era inocente: seu ódio à burguesia industrial o levou a forjar uma aliança mais ou menos tácita com a oligarquia vigente e seu dirigente máximo, o conde Otto von Bismarck, apelidado “Chanceler de Ferro”. Este, assustado com a comuna de Paris (1871), inspirou a lei que colocou o socialismo fora da lei, apesar de que sentia grande estima e simpatia por Lassalle. Curiosamente, essa aliança mais ou menos tácita de socialistas com conservadores, fundada em sua hostilidade comum à burguesia industrial, também se deu na Argentina.

3.2 A Pacífica Social-Democracia

Os partidos socialistas democráticos cresceram exponencialmente entre 1880 e a primeira guerra mundial, especialmente na Alemanha, França, Grã-Bretanha e Itália. Em todos esses países, os socialistas conseguiram fortes representações parlamentares e possuíram prédios, jornais e editoriais próprios; além disso, contribuíram para fundar e administrar cooperativas de consumo e crédito. Colocaram-se como opositores leais à ordem estabelecida.

Os parlamentares socialistas propuseram inúmeras leis tendentes a melhorar a situação das classes trabalhadoras. Algumas dessas propostas converteram-se em leis, sempre com o apoio dos parlamentares de outros partidos. Assim, pouco a pouco, foi se construindo o Estado Assistencialista, ou socialismo estatal.

Os grandes partidos socialistas de um século atrás, governavam-se por oligarquias que se eternizavam no poder. Tanto que, o politólogo Robert Michels anunciou sua publicação “Lei de Ferro da Oligarquia” estudando a organização do partido social-democrata alemão.

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Esta respeitabilidade dos partidos socialistas foi conseguida renunciando-se tacitamente a ideais especificamente socialistas. Por exemplo, a divisa do Partido Socialista Argentino a inícios do século XX não era sequer “Liberdad, Igualdad, Fraternidad”, mas “O Partido do Sufrágio Universal”. E na Itália confiou-se a direção do Avanti, o diário do partido, a Benito Mussolini, um assassino convertido do anarquismo. Mas sempre houve socialistas que arriscaram sua vida e liberdade por seus ideais. Basta lembrarmos de Jean Jaurès, o líder do socialismo francês, assassinado por advertir contra o iminente perigo de guerra que estourou meses depois; de Karl Liebknecht, parlamentar assassinado por um militar na esquerda socialista; e de Giacomo Matteotti, o dirigente do socialismo italiano, assassinado por denunciar veementemente a nascente ditadura fascista. Inclusive Juan B. Justo, o fundador do socialismo argentino, recebeu um balaço que o deixou paralítico.

Quando eclodiu-se a primeira guerra mundial, os socialistas europeus viram-se perante a disjuntiva pátria / socialismo. A maioria optou pela pátria. Somente os bolcheviques e uns poucos socialistas alemães opuseram-se a guerra. A posição dos socialistas franceses e belgas era difícil, porque a França e a Bélgica haviam sido agredidas pelas potências centrais, e o socialismo não manda baixar a cabeça ao agressor. Por outro lado, o apoio dos social-democratas alemães e austríacos a seus respectivos governos foi uma decepção.

Pouco antes de terminar a primeira guerra mundial, Max Weber (1918), o iminente sociólogo liberal, viajou a Viena para falar ao Estado Maior do exército austro-húngaro. Os militares queriam saber se os social-democratas austríacos tinham alguma chance de subir ao poder, e se havia razão para temê-los. Embora crítico do socialismo, Weber os tranquilizou: assegurou-os de que os social-democratas não poriam em perigo a ordem estabelecida. Os fatos deram-lhe razão.

Ao terminar a guerra, o partido social-democrata alemão foi convidado gentilmente a tomar o poder. Harold Laski (1935), o grande teórico do laborismo britânico, castigou duramente aos dirigentes do Partido Socialista Alemão de 1918. Acusou-os de terem concluído acordos secretos com as forças da velha ordem, e de deixar os grandes magnatas industriais à frente do poder econômico. Além disso, perseguiram com sanha a esquerda de seu próprio partido, enquanto perdoaram aos golpistas da velha direita conservadora e militarista.

Em resumo, entre 1918 e 1933, a social-democracia alemã trocou o socialismo por poder. Os comunistas reagiram chamando-os de “social-fascistas”, impedindo assim a formação de uma frente comum contra o fascismo. E o governo francês encabeçado pelo socialista Léon Blum negou-

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se a vender armas ao governo espanhol, acusado de fascismo. As duas grandes alas da esquerda europeia rivalizaram-se assim em estupidez. O único dos partidos socialistas que combateu ao fascismo de forma consequente, foi o espanhol.

4 – Fracasso do Socialismo?

4.1 O socialismo estatista e terrorista

Em fevereiro de 1917, a autocracia zarista foi derrotada por uma coalizão encabeçada pelos social-democratas liderados por Alexandr Kerensky. Por sua vez, pouco depois este governo foi desmantelado pelos bolcheviques. Muitos anos depois, Kerensky explicou o motivo de seu fracasso: havia prosseguido a guerra, que era muito impopular, enquanto que seus sucessores fizeram a paz em separado com a Alemanha. Neste ponto, Lenin e os seus tiveram muita razão desde o começo: essa guerra mundial havia sido um conflito entre potências imperialistas, e portanto, os socialistas deveriam opor-se a ela em lugar de apoiá-la.

O regime sedizente comunista durou de 1917 a 1991. Até onde sei, também não se fez um balanço objetivo do mesmo. É dizer, conhecemos seus fracassos e seus crimes, mas a maioria dos analistas políticos ocultam seus trunfos, o que nos impede de entender a popularidade do regime. Basta lembrar os feitos seguintes. Primeiro, o regime soviético transformou uma sociedade semifeudal em uma das maiores potências industriais do mundo. Segundo, levou a cultura moderna às massas. Terceiro, diminuiu as desigualdades de renda, tanto que seu índice de Gini baixou a 0.25, que é o nível atual em Dinamarca e Japão. Em resumo, a nação progrediu enormemente sobre a ditadura comunista em quase todas as frentes. Isto é tão indubitável que, longe de progredir politicamente, os cidadãos da nação mais extensa do mundo trocaram a gola zarista pela gola totalitária.

4.2 O que fracassou e por que?

A que deveu-se o súbito colapso do regime comunista, acontecimento que ninguém havia previsto? Acredito que deveu-se a um grande número de causas, que assinalei em meu livro Las ciencias sociales em discusión. Houve causas internas e externas. A principal causa externa foi a Guerra Fria, que minou consideravelmente os recursos econômicos da URSS e desacreditou ao governo.

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E quanto as causas internas do colapso, aqui me limitarei a recordar as seguintes:

1/ Causas políticas, tais como a ditadura, que aliena ao povo, já que todo o poder, longe de socializar-se, concentrou-se na elite. Sobre uma ditadura, a maioria dos cidadãos torna-se temerosa e indiferente à sorte do bem comum.

2/ Causas econômicas, tais como a concentração excessiva da planificação e a direção em mãos de uma burocracia tão indiferente como tirânica e ignorante dos problemas locais, os quais só o conhecimento local pode resolver.

3/ Causas culturais, tais como o isolamento do resto do mundo e a ausência da liberdade de criação e crítica, assim como o cinismo que substituiu o entusiasmo inicial pelos ideais socialistas.

Em resumo, o regime sedizente comunista falhou por não ser autenticamente socialista: porque, longe de socializar a economia, a política e a cultura, estatizou-as e por sua vez, submeteu o Estado à ditadura do partido. Mais uma vez: não pode haver socialismo autêntico, ou seja, igualdade, ali onde o poder econômico, político e cultural estão concentrados nas mãos de uma pequena minoria.

As reformas instigadas por Mikhail Gorbachov foram bem intencionadas, mas chegaram muito tarde e não foram suficientemente radicais: o poder continuou estando nas mãos do partido, e nada aconteceu para que se esboçasse um projeto nacional de renovação, em todos os terrenos, que convidasse a todos a participar em sua execução. Em particular, os meios de produção continuaram em mão do Estado ao invés de distribuirem-se em cooperativas; o estado seguiu identificado com o partido, e não se renunciou à ideologia marxista-leninista; não se fomentou o estudo científico dos problemas sociais; e, sobretudo, não se promoveu uma ampla discussão, dentro e fora do partido, dos valores sociais e dos meios para realizá-los: a perestroika veio de cima, enquanto que no socialismo autêntico não existe nem acima e nem abaixo, exceto em matéria de talento.

Em resumo, não se pode afirmar que o socialismo fracassou, já que nunca foi ensaiado. Nem no Império Soviético ou em nenhuma outra parte do mundo. O que fracassou na URSS foi o marxismo autoritário, essa impossível tentativa de impor a igualdade a todos.

5.1 Socialismo estatal ou capitalismo com rede de previdência

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Não há dúvidas de que as sociedades contemporâneas mais avançadas são aquelas em que reina o chamado Estado Assistencialista, que combina capitalismo e a democracia política com amplos serviços sociais prestados pela máquina estatal (Berman 2006, Nun 2005, Pontusson 2005). Exemplos: as nações escandinavas, Holanda, Bélgica, França, Itália, Coreia do Sul e Japão. Estes são os países com os maiores índices de desenvolvimento humano, o que mede a qualidade de vida das pessoas: seu bem estar econômico, estado de saúde, e nível de conhecimentos (UNDP 2006). Este índice é muito superior ao ao Produto Interno Bruto per capita, embora seja criticável porque não engloba a igualdade e nem a sustentabilidade, variáveis que se pode incluir (Bunge 2009).

Embora esta ordem socioeconômica seja chamada de socialista, de fato não o é, porque não engloba a socialização das empresas. O nome alternativo, welfare capitalism, é mais adequado, já que combina o capitalismo com a beneficência. O mesmo vale para o “socialismo bolivariano”. Não há socialismo enquanto perdurem desigualdades sociais notáveis. Isto não implica em menosprezar os êxitos dos governos social-democratas, particularmente na escandinávia (Sachs 2006).

Em todos os casos em que se falou de governos socialistas, tratou-se do socialismo estatal. Este foi proclamado em 1881 na Alemanha pelo próprio imperador a instâncias do estadista conservador, Conde Otto Von Bismarck, a fim de restar força ao partido socialista alemão (Kirkup 1892: 274 ss). A legislação social na Grã-Bretanha nasceu durante o governo conservador de Benjamin Disraeli e foi reforçada a descobrir que, em 1899 os jovens britânicos sofriam de tão má saúde que eram inaptos a servirem ao exército (Gilbert 1966: 89). Qualquer conservador que não seja norte-americano entende que, para manter um império, necessita-se de soldados aptos.

Ironicamente, o êxito do socialismo estatal, apoiado e por vezes fundado pelos social-democratas, foi um dos fatores da decadência dos partidos de esquerda, tanto comunistas como socialistas. O outro fator foi a televisão. Para quê ir as ruas protestar, e expor-se a um cassetete policial, se já dispõe do necessário para sobreviver e ao mesmo tempo, corre-se o perigo de perder um episódio da série televisiva em que tornou-se viciado? Mas esta passividade é um grave erro, porque favorece aos partidos reacionários, que fazem o possível para desmantelar o Estado Assistencialista. Entretanto, este começou a decair, inclusive nas nações mais prósperas (OECD 2008).

5.2 Eleitoralismo

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Os partidos socialistas no poder tornaram-se administradores do Estado Assistencialista. Com o apoio dos sindicatos, contribuíram para incrementar os serviços sociais e a elevar consideravelmente o número de escolas e universidades. Por além disso, não tocaram na peça-chave do capitalismo: a propriedade privada e os meios de produção, intercâmbio e finanças.

Ocasionalmente, os social-democratas do pós-guerra ajudaram aos piores inimigos do progresso social. Bastam dois exemplos. A Internacional Socialista reconstituiu-se em 1946 como “uma mola de resistência contra o comunismo”, a ponto de Morgan Phillips, o secretário do Labour Party, proclamar que “a política americana atual está marcada por um caráter progressista e altruísta” (Droz 1978, v. 4: 552). Seis décadas depois, o primeiro ministro laborista, Tony Blair, mereceu ser chamado de “o cachorrinho mulherengo do Presidente Bush” e arrastou seu país a uma guerra ilegal. Ou seja, a grande parte da social-democracia era mais OTANista que socialista: apoiaram a um dos bandos em batalha na Guerra Fria, ao invés de opor-se a ambos.

Os socialistas do último século tornaram o capitalismo mais sofrível, mas renunciaram ao ideal de justiça social pelo qual os socialistas do século XIX combatiam (Lindemann 1983: 351 ss). Sua meta atual é muito mais modesta: ganhar as próximas eleições.

Esta política pode dar resultados a muito curto prazo, a saber, até as próximas eleições. Mas é suicida a longo prazo porque, quando diminuem as diferenças entre os partidos, o eleitorado perde interesse: não apenas as pessoas já não militam desinteressadamente no movimento, mas que nem sequer preocupam-se em votar. Além disso, todos, dirigentes e massa, se esquecem o que significa “sociedade socialista”, a saber, sociedade sem classes. Este esquecimento é tanto, que John Mayor, o sucessor de Margaret Thatcher, declarou impunemente que a Grã-Bretanha era uma sociedade sem classes.

É hora dos partidos socialistas, se quiserem conservar seu nome, repensarem o ideário socialista: que o coloquem em dia à luz das ciências sociais e da dura crise atual. Esta crise é motivo de vergonha para os defensores da política de laissez-faire, tais como o ex-super banqueiro Alan Greenspan, mas é uma oportunidade para os socialistas de todo tipo: a oportunidade para denunciar a injustiça e insustentabilidade do capitalismo desenfreado. Também é uma grande oportunidade para explorar a possibilidade de uma ordem mais sustentável, e sobretudo, mais justa. Se semelhante mudança diminuir sua torrente eleitoral, paciência: a autenticidade custa.

6 – Amanhã

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6.1 Propriedade Coletiva

Para avaliar a possibilidade política do socialismo, comecemos por recordar a diferença entre esfera pública e esfera privada numa sociedade qualquer. Privado é aquilo que apenas interessa ao indivíduo e sua família. Coisas tais como: habitação, mobília, artigos domésticos e biblioteca; e atividades tais como comer, descansar, jogar, criar filhos e interagir com amigos. Público é aquilo que é compartilhado com outros. Coisas tais como: ruas, parques, escolas, hospitais, museus, templos, e propriedades do Estado; e atividades tais como aprender, trabalhar, fazer comércio e atuar em política ou em ONGs.

Os socialistas totalitários sonham com uma sociedade em que não haja nenhuma outra esfera a não ser a pública: uma sociedade em que os indivíduos não sejam donos de nada, nem sequer de si mesmos, e fazem apenas aquilo que é permitido pelo governo. Os socialistas democráticos, por outro lado, respeitam tanto a esfera privada quanto aos liberais, embora diferenciem-se destes no que diz respeito à propriedade dos recursos naturais e das grandes empresas. Com efeito, os socialistas democráticos procuram a socialização de todo o possível fora da esfera privada. Ou seja, respeitam a liberdade na esfera privada ao mesmo tempo em que a limitam na pública. O que não poderia ser de outra maneira, já que a democracia implica a liberdade, embora o inverso seja inválido, como mostra o caso dos neoliberais que negociaram com as ditaduras fascistas pela causa do livre mercado.

No socialismo, minha escova de dentes continuará sendo exclusivamente minha, mas teu direito a tua fábrica de escova de dentes será questionado: tu a conservarás se esta é uma empresa familiar, desde que se empregue a outras pessoas, os socialistas tentarão fazer com que ela se converta em uma empresa cooperativa possuída e administrada por seus trabalhadores. Por outro lado, a terra e a água não serão privados e nem serão de cooperativa alguma, mas sim, bens públicos administrados pelo Estado, que poderá arrendá-los a pessoas ou a cooperativas. Como haviam proposto há um século, os seguidores de Henry George.

Tanto os marxistas como os fundamentalistas de mercado (como os chama o financiador George Soros) defendem que as cooperativas não podem sobreviver em um meio capitalista, onde as grandes empresas contam com a ajuda dos bancos e do Estado e podem produzir em grande escala a preços baixos graças ao uso de técnicas avançadas, as quais podem resistir concorrências desleais já que podem explorar a seus empregados,

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particularmente se estes não se unem em sindicatos combativos. Esta é uma proposição empírica, e portanto, sustenta-se ou decai-se ao confrontá-la com a realidade.

O que os fatos nos dizem? Que o cooperativismo triunfou em pequena escala em alguns países e que fracassou em outros. Por exemplo, na Grã Bretanha, um curto e forte movimento cooperativo nasceu em Rochdale em 1844. Por outro lado, florescem cooperativas de vários tipos e tamanhos em países tão diversos como Argentina, Brasil, Espanha, França, Estados Unidos, Índia, Itália, Suécia e Suíça. Por exemplo, são inegáveis os êxitos alcançados pela Lega delle Cooperative e Mutue fundada em 1886 e que inclui a umas 15.000 cooperativas italianas, um décimo do total (Earle 1986). Outro notável exemplo é Mondragón Corporación Cooperativa, um conglomerado basco de uma centena de cooperativas, que acaba de cumprir meio século de existência e ocupa o nono lugar entre as empresas espanholas.

A que se devem os triunfos e fracassos em questão? Acredito que este problema ainda não foi investigado a fundo. Um dos motivos do triunfo da Mondragón é que ela tem seu próprio banco e sua própria universidade para a formação de seus técnicos e gerentes. E a que se deveu o fracasso da cooperativa argentina El Hogar Obrero um século depois de sua fundação? Acredito que um fator foi o de que seus dirigentes eram funcionários do Partido Socialista: acreditavam que a devoção à causa poderia substituir a competência profissional.

Outra causa da decadência da El Hogar Obrero pode ser a de que havia indicado seu fundador, o Dr Juan. B Justo (1947 [1909]: 420), há exatamente um século. Ela é, paradoxalmente, o triunfo de uma cooperativa que pode levar a sua ruína. Com efeito, quando uma empresa cresce muito, a distância entre a cúpula e a base aumenta tanto, que não há participação efetiva. E sem participação efetiva, não há autogestão, que é a essência do “espírito cooperativo”, e também, da democracia autêntica.

Em qualquer caso, o certo é que as cooperativas são muito mais longevas que as empresas capitalistas: a taxa de sobrevivência das empresas unidas à Mondragón é de quase 100% e a das cooperativas federadas na Lega é de 90% ao cabo de três décadas. Este fato surpreenderá aos economistas, mas não aos cooperativistas, já que os cooperantes, diferente dos empregados, trabalham para si mesmos e estão dispostos a esforçarem-se mais e inclusive, a sacrificarem-se pelo bem comum, que é de todos.

Com efeito, a cooperativa oferece a seus membros vantagens inigualáveis: segurança no emprego, satisfação no trabalho e orgulho de pertencer a uma empresa comum inspirada em ideais nobres: igualdade, democracia

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participativa e solidariedade dentro da empresa e com empresas similares. É imaginável que uma sociedade em que todas as empresas fossem cooperativas, como são de fato as empresas familiares, fosse menos imperfeita que as sociedades atuais, as que não oferecem segurança econômica e tampouco, política.

Mas, como assinalou Marx contra os cooperativistas de seu tempo, a cooperativa apenas atende ao lado econômico do polígono social e tem uma existência precária em um mercado capitalista dominado por potentes oligopólios que gozam dos privilégios que lhes outorgam leis e governos desenvolvidos para favorecerem os interesses dos poderosos. Em outras palavras, a igualdade econômica dentro da empresa não basta: é preciso estendê-la a toda a sociedade.

Os marxistas-leninistas defenderam teoricamente a igualdade total, mas a um alto preço: a desigualdade política. Com efeito, defenderam que a igualdade total ou comunismo, somente poderia ser alcançada após um período de ditadura, que pouco a pouco iria suavizar-se automaticamente: o Estado-partido por si só murcharia e finalmente chegar-se-ia à Idade do Ouro. Mas nem Marx e nem seus seguidores explicaram o suposto processo do murchar da ditadura do proletariado. Isto é imaginário, já que a burocracia e as forças armadas não são apenas instrumentos das classes dominantes, mas também possuem interesses próprios. Isto faz com que a máquina estatal seja conservadora, e longe de encolher e de perder poder, se manteria poderosa ou inclusive, aumentaria seu poder.

Em qualquer caso, já sabemos o que aconteceu no império soviético: a ditadura transitória se tornou permanente, a sociedade estagnou-se, as pessoas perderam os ideais iniciais, e os dirigentes perderam a visão e foram incapazes de resolver a crise final. Quando lhes acabou a capacidade de pensar ideias novas, renunciaram humildemente ao poder. Não pediram ajuda ao povo porque haviam perdido contato com ele: não confiavam na democracia porque, seguindo a Marx, a consideravam uma instituição limitada à “liberdade do capital para esmagar o trabalhador”. E o povo respondia: não confiava em seus supostos dirigentes.

Em suma, as cooperativas são viáveis mesmo dentro da economia capitalista, mas não curam os males macrossociais, em particular às crises econômicas e as guerras. Além disso, as cooperativas não podem substituir ao mercado e nem eliminar a concorrência. O mercado socialista conservará algumas das características de todo mercado, capitalista ou pré-capitalista: conhecerá tanto a concorrência como a cooperação entre empresas do mesmo setor e tentará explorar as diferenças de custos entre as distintas regiões, mas poder-se-á evitar o conluio desonesto, o dumping e a exploração se o Estado e a comunidade internacional se regerem por

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normas honestas.

6.2 Democracia Integral

Não basta recuperar o sentido original da palavra “socialista” e nem recordar as variedades de socialismo que existiram no decurso dos dois últimos séculos. Devemos também averiguar se os ideais de igualdade e da melhoria da qualidade de vida continuam tendo vigência, e em caso afirmativo, o que se pode fazer para realizá-los. Por enquanto, já sabemos o que não funciona: a ditadura do proletariado. Também sabemos o que é insuficiente: o socialismo estatal, o que pode ser praticado tanto por governos autoritários como o de Bismarck, como por governos liberais e democrata-cristãos.

Temos de perguntar que tipo de socialismo pode atrair a enorme maioria das pessoas: o que promete mais benefícios com menos sacrifícios. O seja, qual regime pode melhorar a qualidade de vida sem sacrificar o presente certo por uma manhã imaginária; que sociedade permite que cada qual possa fazer a vida que deseje e não a que lhe mandem, sem prejudicar ao próximo; que ordem social é a mais justa, é dizer, a que melhor equilibra os direitos com os deveres; e que tipo de gestão de Estado pode fazer o melhor uso das ciências e das tecnologias sociais ao invés de sujeitar-se a ideologias pré-concebidas.

Para resolver este problema, devemos começar por recordar que a sociedade moderna é um supersistema de sistemas: ambiental, biológico, econômico, cultural e político. Estes sistemas interagem entre si, de modo que o progresso de qualquer um deles requer o dos demais. Por exemplo, a economia não pode avançar muito se os trabalhadores estão doentes e não há engenheiros e gestores competentes; por sua vez, não se formarão engenheiros competentes se a economia não precisa deles; e se o nível cultural é baixo a cultura não avançará se estiver submetida à censura do partido político governante e se as pessoas não têm energia, tempo e nem vontade de estudar; e a política não se renovará a menos que as pessoas participem massivamente dela e disponham da informação necessária para identificar os problemas sociais e propor soluções. E nada disto será possível sem proteger ao meio ambiente.

A moral do parágrafo anterior é a de que, para se curar os males sociais, é preciso fazer reformas sistêmicas, ou seja, renovar todos os aspectos da sociedade em lugar de limitar-se a apenas um, tal como o econômico, o político e o cultural. E esta reforma global não poderá ser feita da noite para o dia, mas levará várias gerações: há de se abandonar maus hábitos (tais como o autoritarismo e o consumismo) e criar novos hábitos (tais como a

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participação e a austeridade). Nada disso será conseguido com revoluções ou “terapias de choque” vindas de cima (do Estado), porque as mudanças súbitas geralmente possuem consequências mais inesperadas. A democratização começa de baixo para cima e marcha gradualmente porque abarca a todos os setores.

7 – Conclusão

A sociedade capitalista, caracterizada pelo chamado livre mercado, está em grave crise. Embora os políticos e seus economistas nos prometam que eventualmente sairemos dela, não nos dizem como e nem quando. Não podem fazê-lo porque carecem de teorias econômicas e políticas adequadas: apenas dispõem de modelos matemáticos irrealistas e de slogans ideológicos antiquados. Isto vale não apenas para os dirigentes liberais, mas também para os socialistas, tanto moderados como autoritários. Os liberais não nos explicam a alquimia que transformaria a liberdade de empresa em prosperidade; e os poucos marxistas que restam regozijam-se com a crise que profetizaram tantas vezes mas não propõem ideias novas e realistas para reconstruir a sociedade sobre bases mais justas e sustentáveis.

Defendo que há motivos práticos e morais para preferir o socialismo autêntico ao capitalismo, e que a construção do socialismo não requer a restrição da democracia, mas, muito pelo contrário, sua ampliação, do terreno político a todos os demais. Isto é o que chamo de “democracia integral”: ambiental, biológica, econômica, cultural e política. Tal sociedade não teria exclusões nem por sexo e nem por raça, nem por exploração econômica e nem por opressão política.

Você poderá se perguntar, com razão, se esta não é uma utopia, e se minha postura não é a de um cantamañanas. Minha resposta é que a democracia integral poderá demorar vários séculos para realizar-se, mas que seu embrião nasceu há mais de um século, quando se constituíram as primeiras cooperativas de produção e trabalho na Itália, sobre a base de empresas capitalistas falidas. Um exemplo parecido, mais recente e modesto, é o movimento argentino das fábricas recuperadas; estas foram as empresas que, quando foram abandonadas por seus donos por considerarem-nas improdutivas, foram ocupadas e reativadas por seus trabalhadores. Estes são exemplos em pequena escala do socialismo cooperativista.

Se nos Estados Unidos permanecem sindicatos e partidos políticos progressistas, estes aproveitariam a ocasião atual e transformariam em cooperativas as grandes empresas em falência, tais como Ford e General Motors. Obviamente, semelhante mudança requer o consentimento das

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autoridades públicas, pois envolve o reconhecimento legal das empresas “recuperadas” por seus empregados, coisa que aconteceu na Argentina. Mas o que o governo dos Estados Unidos vem fazendo desde 2008 é usar dinheiro público para salvar essas empresas privadas falidas por má gestão. Ou seja, estão fazendo o oposto de Robin Hood. Garrett Hardin chamou isto de “socializar as perdas e privatizar as ganâncias”.

Em suma, o socialismo tem futuro se pretende ir socializando gradualmente todos os setores da sociedade. Sua finalidade seria a de expandir o estado de bem-estar para construir o socialismo cooperativo, liberal e democrático. Isso seria implementar uma versão atualizada do slogan da Revolução Francesa de 1789, a saber: liberdade, igualdade, fraternidade, participação e adequação.

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