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Padre Manuel Bernardes (1644-1710) Meditações sobre os principais mistérios da Virgem Santíssima Senhora Nossa Mãe de Deus, Rainha dos Anjos e Advogada dos Pecadores Oferecidas à mesma Senhora 1ª EDIÇÃO 2010 Editora Pinus Brasília

Meditações sobre os Principais Mistérios da Virgem Santíssima Senhora Nossa, do Pe. Manuel Bernardes

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Page 1: Meditações sobre os Principais Mistérios da Virgem Santíssima Senhora Nossa, do Pe. Manuel Bernardes

Padre Manuel Bernardes(1644-1710)

Meditações sobre os principais mistérios da Virgem

Santíssima Senhora Nossa

Mãe de Deus, Rainha dos Anjos e Advogada dos Pecadores

Oferecidas à mesma Senhora

1ª EDIçÃO2010

Editora PinusBrasília

Page 2: Meditações sobre os Principais Mistérios da Virgem Santíssima Senhora Nossa, do Pe. Manuel Bernardes

© 2010 Editora Pinuswww.editorapinus.com.br

Todos os direitos reservados.

Revisão:3GB Consulting e Alexandre Pinheiro

Capa:Pulsar Design

Projeto gráfico e diagramação:Yara Borghi Campi

Bernardes, Manuel, Padre.

Meditações sobre os principais mistérios da Virgem Santíssima Senhora Nossa Mãe de Deus, Rainha dos Anjos e Advogada dos Pecadores oferecidas à mesma Senhora / Padre Manuel Bernardes (1644-1710). — 1. ed. — Brasília : Ed. Pinus, 2010. xxxp.

ISBN: 978-85-63176-01-1

1. Literatura portuguesa. 2. Meditação. 3. Oração mental. 4. Mariologia. I. Título.

CDU 821.134.3CDU 27-583

CDU 27-312.47

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Licenças

DO SANTO OFÍCIOPodem-se tornar a imprimir os livros de que se trata, e depois de

impressos tornarão conferidos para se dar licença que corram, sem a qual não correrão. Lisboa Ocidental, 22 de março de 1737.

Alancastre. Teixeira. Silva. Soares. Abreu

DO ORDINáRIOPodem-se tornar a imprimir os livros de que se trata, e depois de im-

pressos tornarão para conferir e dar licença para que corram. Lisboa Ocidental, 22 de março de 1737.

Gouveia

DO PAçOQue se possam tornar a imprimir vistas as licenças do Santo Ofício e

Ordinário, e depois de impressos tornarão à Mesa para se conferirem e tax-arem, e sem isso não correrão. Lisboa Ocidental, 7 de julho de 1737.

Pereira. Teixeira

Estes livros estão conformes com o original. Lisboa Ocidental e Congregação do Oratório, 10 de setembro de 1737.

José Troiano

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Visto estarem conformes com o original, podem correr. Lisboa Ocidental, 10 de setembro de 1737.

Alancastre. Teixeira. Soares. Abreu.

Visto estarem conformes com o original, podem correr. Lisboa Ocidental, 12 de setembro de 1737.

Gouveia

Que possa correr, e taxam e, setecentos réis. Lisboa Ocidental, 20 de setembro de 1737.

Pereira. Teixeira. Rego

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ÍNDICE

Licenças ..................................................................................................... 03

Exortação ao pio leitor ................................................................... 07

MEDITAÇÕESI – De como Maria Santíssima Senhora Nossa, no primeiro instante do seu ser, foi concebida sem mácula de pecado original ....................... 23II – Da feliz e alegre Natividade da Virgem Santíssima Senhora Nossa, formosa aurora do divino Sol de Justiça............................................... 37III – Do misteriosíssimo, eficacíssimo e dulcíssimo nome de Maria .... 53IV – Da apresentação da Santíssima Menina Maria no Templo....... 73V – Dos desposórios da Virgem das virgens Maria Santíssima com o Sagrado Esposo e venturoso Patriarca S. José. ................................ 85VI – Da Anunciação de Maria Santíssima Senhora Nossa pelo Príncipe Embaixador S. Gabriel Arcanjo ........................................................... 101VII – Da Visitação da Senhora a sua prima Santa Isabel ................ 119VIII – Da Expectação do Parto da Beatíssima sempre Virgem Maria Senhora Nossa ........................................................................................ 133IX – Do Sacratíssimo Parto da sempre impoluta Virgem Maria Senhora Nossa ........................................................................................ 147X – Da Purificação da Virgem Senhora Nossa, apresentando a seu Bendito Filho no Templo ..................................................................... 167

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XI – Da cruel espada de angústia que traspassou o coração da Virgem ao pé da Cruz e em sua Soledade ........................................................ 185XII – Dos inefáveis prazeres da Virgem Santíssima na triunfante Ressurreição de seu Filho glorioso Cristo Jesus ............................... 205XIII – Do saudoso e felicíssimo trânsito da Rainha dos Anjos Maria Santíssima Senhora Nossa .................................................................... 221XIV – Da soleníssima Assunção da Virgem Maria Senhora Nossa ao Céu Empíreo, em corpo glorificado .................................................... 241XV – Da Coroação da Augustíssima Rainha do Céu e de todas as criaturas. Maria Santíssima Senhora Nossa ........................................ 261

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§ I

O seráfico padre S. Francisco teve a seguinte visão miste-riosa: eram duas escadas lançadas da Terra ao Céu1; uma delas, vermelha, em que estava arrimado Cristo S. N.; ou-

tra, branca, em que estava a Sacratíssima Virgem sua Mãe. Muitos religiosos, ao exemplo e instância de seu Santo Padre, pretendiam subir animosamente pela escada vermelha; porém, não poucos deles, havendo já começado a subir, resvalavam e descaíam para trás: des-graça de que se lastimava e chorava muito o Santo. E o Senhor lhe disse então: Faz que os teus corram para minha Mãe, subindo pela escada branca. E o Santo, com clamor e espírito, começou a bradar-lhes: Irmãos, correi à escada branca e subi por ela. E os religiosos, obedecendo a essa voz, assim o faziam; e a soberana Virgem os re-cebia alegre e os introduzia no Céu.

Sobre esse caso, por ser de doutrina clara, verdadeira e proveitosa, fundarei eu agora a presente exortação aos meus leitores. Por ne-nhuma melhor via (digo com S. Fulgêncio) podem os homens subir a Deus, que por onde Deus se dignou baixar aos homens: Facta est Maria scala coelestis: quia per ipsam Deus descendit ad terras, ut per ipsam homines ascendere mereamur ad Coelos2. Bem sabemos e fielmente cremos e confessamos todos os filhos da Igreja Católica que essa escada foi Maria Santíssima S. N. Ela é aquela admirável Virgem de quem tinha profetizado Isaías que pariria um filho, e ela mesma lhe chamaria Emanuel: Ecce Virgo concipiet, et pariet filium, et vocabit ipsa nomen eius Emmanuel 3. Assim lê do rigor hebraico Galatino, e não sem misté-rio; porque Emmanuel quer dizer Deus conosco; e veio Deus, que infi-1 Bernardinus de Rustis., part. 9, séc. II, Assimil. 2.2 Apud Novarin, in Umbr. Virg., n. 992.3 Isai., VII, 14.

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nitamente estava longe de nós por sua natureza, a estar intimamente conosco pela Encarnação; e a Senhora, de quem realmente tomou o Verbo carne humana, efetivamente lhe deu o nome de Deus conosco. Ela é a que vestiu com sua substância corporal ao Filho de Deus, e o alimentou e nutriu por nove meses em seu virginal ventre. Por essa porta Oriental saiu, sem abri-la, a tratar no mundo com os filhos de Adão. De seu leite e sangue, mudada a forma materna (que imediata-mente antes tinha) na de menino, unida já hipostaticamente à forma Divina, se fez Carne e Sangue de Cristo, que nos remiu na Cruz e nos sustenta no Sacramento do Altar. Enfim, assim como para Deus não temos outro mediador (como diz o Apóstolo) senão a Cristo – Unus mediator Dei, et hominum, homo Christus Jesus4 –, assim para Cristo não temos outra mais próxima e eficaz mediadora, como lhe chamam os Santos Padres, senão a Maria Santíssima S. N. e Mãe sua5. Esta, pois, é a escada branca; escada, porque serviu de descer Deus aos homens, e serve de subirem os homens a Deus; e escada branca, por sua ino-cência puríssima e candidez virginal.

Aos religiosos, pois, (debaixo do qual nome entendo agora todos os que aspiram a viver vida pia e reformada, fugindo do pecado e procurando as virtudes) sucede muitas vezes que põem unicamente o sentido na mortificação e penitência, na abstração das criaturas e no silêncio; e na verdade bom é esse caminho, porque pretendem imitar a Cristo, o qual é a escada vermelha, pelo sangue de sua Paixão Sagrada, e os está convidando e sendo-lhes causa não só efetiva, mas exemplar de seus santos exercícios, que são os degraus por onde so-bem ao Céu. Porém, é tanta a fragilidade humana que necessitamos não só de sangue para nos alentar, mas também de leite para nos criar; não só de Pai para nos levar à sua imitação, mas também de Mãe para nos conduzir; não só de Mediador para Deus, que é Cristo seu Filho, mas também de Mediadora para Cristo, que é Maria sua Mãe

4 I Timot., II, 5.5 S. Joan Crisost., S. Epiphan., S. Ephrem, S. Basil. De Seleuc., et alii plures apud Marraccium in Polyanthea Marian. V. Mediatrix.

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Santíssima. E como nos esquecemos da devoção com essa Senhora, ou não a cultivamos amiúde, como filhinhos pequenos, e queremos subir por nosso pé, como já maiores, sucede não poucas vezes que, tropeçando, descaímos; e então se conhece, por experiência, como, para perseverar no caminho da virtude, é necessária mais assistência da graça divina do que nos parecia, e um espírito mais desarrimado de si próprio e mais dependente da proteção de pessoa fácil em dar entrada a miseráveis e em achá-la para com Deus, e que, não tendo ofício de julgar, o tenha próprio de interceder e compadecer-se. E qual é essa pessoa senão a Mãe de Deus, que é um quase-Deus di-minuído e mitigado, em que as atividades e ardores do Sol se acham temperados com a frescura da Lua?

Importa logo que os fiéis nos passemos da escada vermelha para a branca: não porque hajamos de desamparar a meditação grave da Pai-xão do Senhor, senão porque a devemos acompanhar com a devoção suave de Maria Santíssima S. N., e de tal sorte apascentar-nos com o Sangue das chagas do Salvador que não nos descuidemos de criar-nos com o leite desta Mãe piedosa, como fazia seu grande devoto S. Ber-nardo: Hinc pascor a vulnere, hinc lactor ab ubere. E desse modo criaremos um espírito juntamente animoso e mais humilde, discreto e mais since-ro, vigoroso e mais brando.

E como seja indubitável que, para ser qualquer objeto mais ama-do, primeiro deve ser mais conhecido – Nihil volitum, quin praecognitum –, segue-se que, para crescermos no amor à Virgem S. N., é neces-sário para considerarmos mais devagar nas suas perfeições, em seus dotes e prerrogativas, e nas obrigações grandíssimas em que todos lhe estamos, pelos benefícios que comumente nos está fazendo; por-que ai do mundo, se Deus não tivera Mãe! Para assim o fazermos, há tantas razões que, ainda que dessa só matéria se compusessem grandes volumes, nunca poderíamos dar-lhe a avaliação condigna. Porém, tocaremos algumas das que respeitam particularmente a su-jeitos que frequentam os santos exercícios que nessa Congregação se praticam.

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§ II

E seja a primeira. Porque, quando usamos de algum benefício em utilidade nossa, nos corre obrigação de ser lembrados e agradeci-dos ao Autor dele, e a Virgem Sacratíssima foi autora dos santos

exercícios de oração mental, por meio de seus servos Sto. Inácio de Loiola e S. Filipe Néri, aquele fundador da Companhia de Jesus, este da Congre-gação do Oratório, amigos ambos e contemporâneos em Roma. Que a Senhora foi autora daquele livrinho dos exercícios de Sto. Inácio, que tanto fruto têm feito na Igreja, consta de uma revelação feita pelo Arcanjo S. Ga-briel à Vulnerável Virgem D. Marina de Escobar. E esses mesmos, quanto à substância, são os com que lucrou a Deus inumeráveis almas o glorioso S. Felipe, a quem a Mãe de Deus se dignou falar pessoalmente, e por cujo meio lhe foi influído esse espírito de oração, porta por onde entra o desen-gano das verdades sólidas e necessárias para a vida reformada; logo, é razão que, recebendo nós o dom da oração por mão da Sacratíssima Virgem, adoremos e beijemos essa mão com especial obséquio. Antes, desse modo, aproveitaremos mais na mesma oração, pois costumam as coisas ter o seu aumento por onde tiveram o seu princípio.

§ III

S egunda. Porque, para o caminho da vida espiritual, é mais conducente o andarmos em alegria: Servile Domino in laetitia6. Esse espírito dilata o coração, para se aturar melhor a carreira

dos divinos mandamentos – Viam mandatorum tuorum cucurri cum dilatasti cor meum7 –, como, pelo contrário, o espírito triste até os ossos seca – Spiritus tristis exiccal ossa8 – e é mais sujeito à desconfiança, a escrúpulos 6 Ps., XCIX, 2.7 Ps., CXVIII, 32. 8 Prov., XVII, 22.

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e tentações, e mais próprio de hipócritas: Nolite fieri, sicut hypocritae tris-tes9. E essa particularidade tem a devoção com a Virgem, e a medita-ção de seus sagrados mistérios, que infunde alegria nos espíritos: Sicut laetantium omnium habitatio est in te10. Em aparecendo a memória dessa soberana Senhora na região do nosso interior, logo parece traz consigo novas de bom sucesso, ares de confiança, luz de serenidade. Nem pare-cerá bem, falando-se da Virgem, ficar alguém ainda triste: porque o seu nome somente basta para afugentar pesares: Tristatur aliquis? Continuo ad nomen Mariae cadit nubilum, serenum redit, disse Ricardo a S. Laurêntio.

No tempo em que o heresiarca Nestório, com sacrílega e blasfema lín-gua, impugnava a glória da Virgem, negando-lhe o nome Theotocos, dizendo que não se havia de chamar Mãe de Deus, estava todo o povo da cidade de Éfeso esperando com grande suspensão às portas do sagrado Concílio11, para saber o que tinham os padres dele determinado nesse ponto (os quais, quando, já à boca da noite, saíram do conclave e se publicou que o infeliz Nestório fora condenado, e anatematizado, e deposto do seu lugar, e que ficava definido com certeza de fé que a Virgem Maria era na verdade e se devia chamar Mãe de Deus: tal foi o alvoroço de todos que choravam de alegria e não faziam mais que entoar louvores a Deus e aclamar felicidades aos padres do Concílio e abraçar-se uns aos outros com exuberância de caridade cristã, e logo preveniram tochas para acompanhar a casa os conci-liares, e até as mulheres saíram pelas ruas com caçoilas aromáticas; e toda a noite houve na cidade luminárias e sinais festivos de geral contentamento). Se alguém, neste passo, perguntar a si mesmo a causa dessa geral e intrínse-ca alegria, advertirá não ser outra senão porque aquela definição acreditava a honra e dignidade de Maria Santíssima, cujo amor está tão entranhado nos corações dos fiéis que o mesmo é lembrar-nos que Deus tem Mãe do que apreendermos a causa de nossa alegria, a fonte de todos os nossos bens, e uma criatura sempre fácil e benigna para acudir a nossas misérias. Logo, a alma acostumada a contemplar em seus mistérios e perfeições an-dará devotamente alegre e humildemente confiada.9 Math., VI, 16.10 Ps., LXXXVI, 7.11 S. Cyrill. Alexand., Epist. 34, tom. IV, o qual se achou no mesmo Concílio.

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12 Salazar in cap. 9, Prov., n. 144. Sherlogus, tom. III, in Cant., ver. 37, c. 7, n. 19. Celada de Esth. Figurata, § 387. Silveir.. tom. III, in Evang., lib. 5. cap. 35, q. 19, n. 139. Flores in cap. 24 Eccles., p. 4, n. 1 232.

§ IV

Terceira. Porque, ordinariamente, todos os fiéis têm sua particular inclinação a algum Santo ou alguma Santa, fundada em motivos particulares, v. g., da pátria, ou do nome, ou dos milagres famosos

que obrou, ou dos benefícios que recebeu; e a esse tal Santo costumam invocar em suas necessidades, oferecer os seus dons e frequentar as suas Igrejas. Tudo isso é louvável e meritório. Porém, muito mais razão é que toda essa devoção se una e reforce em dar honra e culto à Santa de todos os Santos, que é a Mãe de Deus, d’Ele mais amada e melhor ouvida que toda a Corte Celestial junta. Por essa sua admirável singularidade merece a Senhora esse singular afeto nosso e contínua memória, e suas excelências para com Deus não têm exemplo, seus benefícios para conosco não têm número. E assim como o Santíssimo Sacramento do Altar é relíquia viva da presença visível de Cristo neste mundo, que excede incomparavelmente a todas as relíquias dos Santos, e tem por autêntica o mesmo Evangelho e o testemu-nho de toda a Igreja Católica, assim a devoção com a Virgem Mãe excede as devoções de quaisquer Santos e Santas, não só pela dignidade do objeto, mas também pela prontidão e facilidade no despacho de nossas petições.

Logo, se havemos de rezar, rezemos a Nossa Senhora; se havemos de visitar alguma Igreja, seja dedicada em honra da Senhora, ou em qualquer outra busquemos e veneremos a sua imagem; se damos esmola, de melhor vontade a demos quando nos é pedida em louvor da Senhora; e o seu nome seja para nós um quase-conjuro ou adjuração, que nos obriga a deferir-lhe; se oramos, seja por mão da Senhora, e busquemos a sua presença no Em-píreo à mão direita do Rei da Glória, onde assiste, apresentando-lhe nossos desejos pios e petições humildes; se comungamos, tenhamos particular e enternecida memória de que, também debaixo das espécies sacramentais, recebemos12 alguma parte daquela primeira substância da Virgem, que de

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suas puríssimas entranhas ministrou para encarar o Verbo Divino, e a subs-tância com que o alimentou nove meses em seu ventre e todo o tempo que lhe deu leite a seus peitos, nutrindo aquele mesmo Corpo Divino que o Senhor sacramentou e que, já ressuscitado, sacramenta qualquer sacerdote. Se celebramos missa, seja quanto permitirem as rubricas ou as obrigações particulares em louvor da Senhora. E a esse propósito referirei aqui o que sucedeu a um sacerdote, que, por devoção da Senhora, sempre d’Ela dizia missa: do qual uso, acusado como ignorante ao bispo (que era S. Tomás de Cantuária), ele o suspendeu. Mas a Santíssima Virgem, invocada pelo sacerdote, pobre e aflito, lhe apareceu e disse: Vai, e da minha parte diz ao bispo que te restitua no grau. Senhora (replicou ele), eu sou desprezível, não hei de ter entrada. Tornou a Senhora: Eu te abrirei caminho: e para o bispo te crer, dir-lhe-ás por final que eu, tal dia, hora e lugar, remendando ele o cilício, eu lhe tinha mão nele de uma banda. Recebido o recado, ad-mirou-se o Santo e disse ao sacerdote estas palavras, conforme as traz Ce-sário13: Eu te concedo digas missas só de Nossa Senhora, e roga por mim. Bem poderia lembrar-lhe no caso aquilo de Sto. Ambrósio a outro intento: Et si error, pietatis tamen error est 14: Ainda que errava, era erro pio, porque é piedade honrar os pais: Matrem considerate, matrem cogitate. E voltando ao nos-so intento, tudo quanto obramos seja quanto nos for possível por mãos de Maria: Omnia per manus Mariae15, logo abaixo das mãos de nosso Mediador Jesus Cristo: porque desse modo atalhamos mais e cansamos menos.

§ V

Q uarta. Porque aos exercitantes da oração mental sucede às vezes padecerem de tentações e desconfianças acerca da sua predestinação: e na mesma devoção com a Virgem, acha-

rão o antídoto desse veneno; porque é um dos sinais que há melhor

13 Caesarius, lib. 7, Miracul., cap. 4.14 S. Ambros., lib. 5, de Fde ad Gratian, c. 2.15 D. Bernard.

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assombrados da nossa salvação. Assim o afirmam os Santos Padres, fundando-se naquela Escritura dos Provérbios: Qui me invenerit, inveniet vitam, et hauriet salutem a Domino: Quem me achar, achará a vida e be-berá do Senhor a salvação. E que coisa é ser devoto da Virgem, senão salvar-se? Sto. Anselmo diz: Sicut impossibile est, quod illi a quibus Virgo Maria oculos suae misericordiae avertit, salventur: ita necessarium est, quod hi, ad quos convertirit oculos suos, pro eis advocans, justificentur, el glorificentur 16: Assim como é impossível que se salvem aqueles de quem desviou os olhos de sua misericórdia a Virgem Maria, assim é necessário que consigam a graça e a glória aqueles para quem esta Senhora voltou seus olhos misericordiosos. E confirma essa sentença com o que diz Sto. Epifânio da ave chamada charádrio, cuja oculta propriedade é que, se aparta os olhos do doente, é sinal que morre; mas se lhe põe os olhos, e o doente também os pode pôr na ave, é sinal que escapa. De S. Inácio Mártir, grande devoto da Senhora, se alega esta sentença: Numquam male peribit, qui genitrici Virgini devotus, sedulusque extiterit: Nunca acabará mal quem foi devoto da Virgem Mãe. S. Germão, patriarca de Constantinopla, diz absolutamente: Nullus est, qui salvus fiat, nisi per te o Virgo Sanctissima. Ninguém há que se salve senão por vós, ó Virgem Santíssima.

E concorda com aquele texto do Eclesiástico, que comumente se in-terpreta dessa Senhora: In plenitudine Sanctorum detentio mea17: Na plenitude dos Santos é a minha detença; isto é, encher o número dos Santos e aca-bar a perfeição da graça e glória de cada um é a minha detença, o meu emprego, a minha ocupação. Às quais palavras acrescenta S. Boaventura que a Virgem não somente se detém na plenitude dos Santos, senão que detém os Santos na plenitude, para que não se diminua: porque detém as virtudes deles, que não fujam; detém os seus merecimentos, que não se percam; detém os demônios, que não acometam e vençam; detém a seu Filho, que não mate os pecadores. Antes de Maria, não houve quem assim ousasse fazer detenças ao Senhor, conforme ao que disse Isaías18: Não há

16 S. Anselm., apud S. Antonin., p. 4, tit. 15, c. 14, § 7.17 Eccles., XXIV, 16.18 Isai., LXIV, 7.

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quem invoque o vosso nome e vos reporte. Mas ponho aqui as palavras do Santo, porque são dignas: B. Virgo non solum in plenitudine Sanctorum de-tinetur, sed etiam in plenitudine sanctos detinet, ne eorum plenitudo minuatur. Detinet nimirum virtutes, ne fugiant: detinet merita, ne pereant: detinet daemones, ne noceant: detinet Filium, ne peccatores percutiat. Ante Mariam non fuit, qui sic detinere Domu-nim auderet, teste Isaia, qui dixit: Non est qui invocet nomen tuum, et teneat te19.

Considere agora quem lê, se deixará de ser certo o salvar-se a alma, em cujo bem a Virgem soberana detém as virtudes, para que nelas persevere; as tentações, para que nelas não caia; detém a seu Filho, para que não entre em contas com ela, quando não lhas pode dar boas; e em fazer essas deten-ças é toda a sua detença, enquanto o mundo dura e há tempo de salvar al-mas; e considerando isso, veja se é proveitoso e bem remunerado fazermos nós agora detença em honrar, servir, louvar e invocar a essa Senhora.

§ VI

Quinta. Porque o trabalho principal dos que frequentam os exercícios mentais é a perseverança neles. Para isso de conti-nuar a santa oração, todos temos como Moisés as mãos pesa-

das e descaídas, e raros temos irmãos e companheiros que nos ajudem a sustentá-las como este teve a Aarão e Ur; antes nosso irmão, que é o corpo, e nosso companheiro, que é o mundo e o inimigo, são os que as derrubam e procuram decepar. Se todos os que principiaram esse exercício nele perseverassem até a morte, outra reforma se vira nas religiosas, outra paz nas famílias, outro exemplo nos sacerdotes, outra consciência nas almas, outra confiança e quietação nos moribundos.

Grande dom é esse da perseverança, e grandes os frutos dele; e assim necessita de muita graça e, por conseguinte, de valia também grande e poderosa para alcançá-la, qual é a Mãe da divina graça. Ela é a que nos cria aos peitos da sua devoção, e os seus peitos são torre 19 S. Bonavent., in Speculo.

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para defender-nos dos inimigos: Ubera mea sicut turris 20. Ela permaneceu imóvel, direta e segura, como coluna ao pé da Cruz: Stabat juxta Cru-cem21; quem dela se não desarrima, não mudará pé nas tribulações. Se vivêssemos no Paraíso terreal antes de interdito, quem jamais morreria, pois tinha à mão a árvore da vida com que sustentar-se? Pois graças a Deus que, estando nós na Igreja Católica, no Paraíso vivemos, onde Maria Santíssima é a árvore da vida, de que pende a Divina Graça, pois é seu fruto; colhamos sempre, e sempre viveremos.

Finalmente, quantos testemunhos há na Sagrada Escritura e nos San-tos Padres que a Beatíssima Virgem foi de todas as criaturas a mais hu-milde; tantas provas há de que a devoção particular com essa Senhora é arte breve de preservar no bem; porque da sua conversação e trato se pega um tal modo de espírito de humildade que não põe a mira em edifi-car alto, senão ao comprido, rasteiro e bem assentado, como a Arca que salvou o mundo do dilúvio, que, tendo cinquenta côvados de largura e trezentos de comprimento, tinha só trinta de altura22. Essa obra é demais dura, e essa a que nos ensina a escrava humilde do Senhor, escolhida por Ele para sua Mãe: Melior est largus spiritu, quam altus spiritu23: Que tenha-mos perseverança na oração, ainda que não tenhamos oração alta; que sejamos contínuos no obrar bem, ainda que as obras não sejam admi-ráveis; que seja o procedimento igual, ainda que não seja seleto.

§ VII

S exta. Porque uma das principais causas de desampararmos os exercícios da oração e vida espiritual é o vício da carne, inimigo tão doméstico, tão contínuo e tão geral, que, ou des-

vela e sobressalta a todos, ou a ninguém perdoa: Ego certe (testifica Sto.

20 Cant., VIII, 10.21 Joan., XIX, 25.22 Gen., VI, 15.23 Eccl., VII, 9, juxta Hebr.

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Meditações sobre os principais mistérios da Virgem Santíssima Senhora Nossa

Anastácio Sinaíta) vidi viros centum annos natos, imbecilles, et toto fere trementes corpore, qui tamen non potuerunt abstinere a peccato carnali 24.Eu vi homens de cem anos, enfermiços e trêmulos em quase todo o corpo, que não se puderam abster dessa miséria. O remédio mais certo, ou por via de preservação, ou de cura, é uma sujeição leal e contínua à Mãe da Divina Graça; porque só a graça pode triunfar da natureza: mas com ser graça, é tão poderosa essa Senhora que parece a tem ao seu aceno. O mesmo é (assim o mostra a experiência) vermos um bem devoto da Virgem, um fiel pagador do seu Rosário, um observante do jejum nos seus sá-bados, que vermos logo um moço casto e honesto, a quem a Senhora vai ensinando a desviar-se de perigos, a temer-se de si próprio e a fugir para a sua sombra nas calmas ardentes da tentação. Como a Virgem é mística torre de marfim – Turris eburnea –, com o candor, e solidez e frieza, e limpeza da sua castidade excelentíssima, recolhe, ampara e defende como torre a todos os que para ela fogem; e o corpo que antes era barro frágil, e imundo, e inconstante, com a segurança dessa torre já parece ser também uma casa de marfim: Eburnea domus (disse Arnóbio) est corpus castum, in quo tinea non facit ullam libidinem peccati25.

No capítulo 24 do Eclesiástico (que os sagrados intérpretes expõem todos da Virgem Santíssima Senhora Nossa), compara-se a mesma Se-nhora ao terebinto, árvore de grande copa e frescura: Ego quasi terebinthus extendi ramos meos, et rami mei honoris, et gratiae26: Eu, como o terebinto, estendi os meus ramos, que são de honra e graça. E para que saibamos a propriedade com que o Espírito Santo fala de sua Esposa Sacratíssima e o grande bem que nos deixou na sombra de seu amparo, é de advertir que essa árvore comunica refrigério contra os incentivos da concupis-cência: Expandi ramos meus (diz o B. Alberto Magno) id est exempla operum ad umbrandum peccatoribus et refrigerandum contra incentiva vitiorum, et maxime contra aestum libidinis27. No caminho de Belém a Jerusalém, havia uma ár-

24 Tom. 9, Bibliot. Patr., in lib. quaestion., q. 8.25 Arnob. in illud. Ps., XLIV. A domibus eburneis.26 Eccl., XXIV, 22.27 Alb. Mag. de laud. Virg., lib. 12, c. 6, § 16.

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vore dessas, a qual é fama que, passando por ali a Virgem com seu dulcís-simo Menino, a apresentá-lo no Templo, se lhe inclinou, fazendo como reverência. Os passageiros encalmados sempre ali sentiam fresco28. Pode ser que o Senhor, por memorial da Virgem, abençoasse essa planta e lhe comunicasse essa virtude. Porém, seja como for, sempre é certo que os que se valem da sombra da Virgem acham frescura da castidade, porque ramos tem para cobrir a todos, árvore tão feliz e bendita, que em seus ramos teve por fruto o Autor da natureza e da graça.

§ VIII

S étima (e seja aqui a última). Porque por esse caminho da es-pecial devoção com a soberana e amabilíssima Virgem foram todos os Santos e quantos até agora fizeram algum progresso

na virtude; todos subiram pela escada branca, para que, não caindo da vermelha, lograssem a virtude do Sangue de Cristo. Esse argumen-to prova-se por indução de vários exemplos; tocaremos os que nos ocorrerem, que todos têm a impossibilidade que dizia Deus a Abraão: Numera stellas, si potes29.

O cardeal S. Pedro Damião30 escreve de seu irmão Marino, que, prostrando-se diante do altar da Virgem Santíssima, se lhe ofereceu de todo coração por escravo, tendo posto ao pescoço o seu cinto em lugar de argola: e ali se fez açoitar, para protestar a sua escravidão; e pagou certa soma de dinheiro por tributo, prometendo continuá-la todos os anos. A Senhora o veio consolar à hora da sua morte e assegurar que o seu nome estava escrito no livro da Vida.

O mesmo escreve Cesário de Valtério de Birbach31, o qual também diante do altar da Senhora se lhe entregou por escravo, com corda ao 28 Castil., no Devoto Peregrin., lib. 3, c. 10.29 Gen., XV, 5.30 Lib. 2, Epistolar., epist. 14.31 Lib. 7, Miracul., cap. 39.

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pescoço e censo anual pago para maior decoro e riqueza do seu culto. E também em vida e morte recebeu da Senhora grandes favores.

Sto. Estevão, rei da Hungria32, muito mais que desse real título se prezava do de escravo da Senhora; e ordenou que dali por diante a casa real se chamasse: A família da Virgem; e tanta reverência pegou a seus vassalos que não se atreviam a tomar na boca o augustíssimo nome de Maria, e só diziam absolutamente: A Grã-Senhora.

Carlos, filho de Sta. Brígida33 (como nas suas revelações se refere), di-zia no seu coração: Tanta consolação me causa que Deus ame a sua Mãe Santíssima mais que a todas as criaturas, que nenhum deleite há no mun-do que eu de boamente não largasse, por não largar esse gozo; e quisera eternamente padecer as penas do Inferno, só porque Maria Santíssima não carecesse nem por um instante da sua dignidade, ou ficasse mais remota de Deus. Valeu-lhe essa devoção, porque, à hora da sua morte, a Senhora tomou essa alma debaixo do seu amparo e, tanto que arrancou, a levou a presentar em juízo, apesar dos demônios, que bramavam queixando-se como de injustiça de a não presentarem eles; e assim aquele réu, defendido por tão poderosa Advogada, saiu bem sentenciado pelo Supremo Juiz.

Sta. Margarida, infanta da Hungria34, religiosa domínica, cada dia fes-tivo de Nossa Senhora e de seus Oitavários, rezava devotamente mil ve-zes a Ave-Maria, com genuflexão a cada uma: outros tantos escudos teria para se cobrir das setas do comum inimigo: Mille clypei pendent ex ea35.

O padre João de Trexo, as Companhia de Jesus, foi singular nesta matéria36. Ia a pé a uma ermida da Senhora; e havendo regado o chão com lágrimas, a varria com a boca e o rosto, e lhe dava muitos ósculos de consolação. Sendo-lhe encomendado pelos superiores um seminá-rio de estudantes congregantes da Senhora, ardia em tanto zelo de que nenhum a desgostasse com pecados, que quase não dormia e ia pelas 32 Surius in eius vit. die 20. Augustic., XI.33 Lib. 7, c. 13.34 Sirius ad diem, 28. Januar. 35 Cant., IV, 4. 36 Rho in histor. Virt., lib. 3. c. 3.

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suas camas de noite, fazendo de joelhos oração fervente por cada um, na qual pedia não caísse em pecado, especialmente contra a pureza, por ser tão amada da Virgem.

Sto. Albérico, monge de Cister37, foi mui sinalado na devoção da Se-nhora; e Ela aparecendo-lhe, lhe ordenou que mudasse a cor do hábito, de negra que era, em branca. E Crisóstomo Henriques diz que mila-grosamente se lhe tornaram os hábitos brancos. Este servo do Senhor, ao expirar, disse: Sancta Maria ora pro me; e ao nomear esse dulcíssimo nome, olhos e rosto se lhe tornaram resplandecentes.

O padre Vincêncio Carafa, geral da Companhia38, administrou em Nápoles a Confraria da Senhora com singular zelo e ardor de devoção, e a meteu especialmente nos corações dos nobres. Desde pequeno di-zia cada dia, sete vezes, de joelhos, a oração: O Domina mea, etc. Trazia no pé uma argola de ferro em sinal de escravidão. Muitas vezes lhe apareceu a Senhora visivelmente.

O cardeal Alexandre de Ursinis39 (família das mais ilustres de Roma e aparentada com sumos pontífices, e reis, e duques, e varões insig-nes na glória militar) assistia pontualmente a todas as obrigações dos confrades de Nossa Senhora, e, em companhia da gente plebeia, to-mava disciplina. E em Branchiano, lugar vizinho a Roma, dos duques de Ursino, tinha dos seus vassalos levantado uma Confraria de Nossa Senhora, da qual ele era o prefeito e o pregador e o primeiro em todos os santos exercícios. Véspera da Assunção sempre tomava disciplina de sangue, para oferecê-lo à Virgem. Todos os dias se confessava e celebrava. Visitava os hospitais, lavava os pés aos pobres e lhes dava de comer por sua mão. Em dia da Assunção, que naquele ano (que foi o de 1626) caiu ao sábado, caiu ele na cama, e, no sábado seguinte, Oitava da Senhora, passou para o Senhor, com sinais de predestinado.

O padre Frei Domingos de Jesus Maria, carmelita descalço, foi tão de-votamente apaixonado do amor e agrado da Beatíssima Virgem, que outros 37 Yepes, na Crónica de S. Bento Centur., 7. 38 Nadasi in Anno dierum Societatis die 8. Junii.39 Balinguem in Kalend. Virg. die 22 Aug.

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dois religiosos o viram, estático, estar em disputa com S. Bernardo sobre qual era mais seu devoto. E dizendo S. Bernardo que ele a amava mais40, respondia Frei Domingos: Isso não; antes eu amo mais. E voltando-se para a Senhora, que mostrava estar presente naquela suspensão, requeria-lhe a seu favor e dizia, como menino: Pois se eu vos amo tanto, por que me não fareis vós, Senhora, o favor que fizestes a Bernardo, sabendo que necessito mais que ele? E os ditos religiosos viam que o servo de Deus Frei Domingos, ele-vado no ar, dava mostras que a Senhora enternecida o chegara a seus peitos e lhe dera leite deles, e que ele o chupava e engolia com inefável gozo.

O santo Hermano José costumava, em certos dias em que não seguia os atos de Comunidade, prostrar-se tão amiúde e com tanta detença, que um seu amigo de confiança lhe perguntou a causa41; e ele respondeu que pronunciava e adorava o Santíssimo nome de Maria, e que neste tempo sentia tal fragrância exalar da terra, como se todas as flores e rosas dela juntas se trabucassem e respirassem. E por isso folgava de pronunciar esse nome muitas vezes, e se detinha em beijar a terra.

Da devoção dos patriarcas S. Domingos e S. Filipe Néri não ajunto aqui as maravilhas, por serem tão sabidas e irmos de passagem. E concluo este parágrafo e toda a exortação dizendo aos meus leitores que, se nós temos ânimo de perseverar nos santos exercícios e fazer alguma chaça na virtude, o caminho mais certo, e mais lhano, e mais seguro, e mais frequentado, é pela devoção da Virgem. Ela é a escada branca por onde podemos esperar entrarmos no Céu, e que ali traremos por especial honra os soberanos no-mes de Jesus e de Maria escritos na testa, para nunca jamais se apagarem, conforme aquilo do Apocalipse: Qui vicerit... scribam super eum nomen civitatis Dei mei novae Jerusalem, quae descendit de Coelo a Deo, et nomen meum novum 42.

40 Fr. António da Natividade, que foi grande amigo e companheiro deste servo de Deus, no Apêndice à Sua Vida, fol. 297.41 Novarin., in Umbra Virginea, n. 1124.42 Apoc., III, 12.

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§ I

Considera, alma minha, como este privilégio da Senhora é sin-gularíssimo. Alonga os olhos da consideração por toda a inu-merável descendência dos filhos de Adão, que houve desde os

princípios do mundo e há de haver até o fim dele, e vê como a todos inficionou esta mancha, a todas as folhas deste grande livro repassou esta nódoa, a toda esta massa azedou aquele fermento do pecado co-mum: Per unum hominem peccatum in hunc mundum intravit, et per peccatum mors, et ita in omnes homines mors pertransiit, in quo omnes peccaverunt 43, disse o apóstolo S. Paulo; e podemos dizer também aquilo de Josué: Usque in praesentem diem macula hujus sceleris in nobis permanet 44. Unicamente entre todas as puras criaturas humanas, Maria Santíssima S. N. não entrou nessa conta e foi preservada dessa mácula por favor da graça divina.

Et velut in spinis mollis rosa surgit acutisNil quod laedat habens, matremq; obscurat honore:

Sic Evae de stirpe sacra veniente MariaVirginis antiquae facinus nova virgo piaret 45.

Querem dizer:

DécimaQual entre espinhos florece

Sem ter com que ofenda a rosa, E o próprio tronco, formosa,

Com sua gala enobrece:Assim Maria aparece

Na raiz de Eva manchada,Bela Flor e Imaculada,Dando a original beleza

43 Rom., V, 12.44 Josue, XXII, 17.45 Sedulius, lib. 2, Oper. Paschal.

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De seu ser, lustre à impurezaDa planta, onde foi gerada.

Pondera quanta glória resulta para a Senhora dessa singularidade: Sexaginta sunt Reginae, et octoginta concubinae, et adolescentularum non est nume-rus: una est columba mea, perfecta mea46. Se o Sol se chama assim, porque é só e único: Sol, quia solus, com razão se diz a Senhora escolhida como o Sol: Electa ut sol 47, pois é só e única nos resplendores da graça e justiça original. Não há mais que um Deus: Unus Deus; não há mais que uma Igreja Católica: Unam Sanctam Catholicam et Apostolicam Ecclesiam; e não há mais que uma pura criatura preservada do pecado original, Maria Santíssima. Na singularidade e pureza parece-se com Deus e parece-se com a Igreja: com Deus, como Mãe que havia ser do mesmo Deus; com a Igreja, como principalíssima parte da mesma Igreja, Esposa de seu Filho Jesus Cristo; com Deus, ficando só a Deus inferior; com a Igreja, ficando superior a toda ela na santidade.

A um servo de Deus que mereceu a lauréola do martírio48, e era de-votíssimo desta Senhora, se dignou a mesma Senhora aparecer acom-panhada de tantas Virgens, que pareciam inumeráveis. Estavam todas postas por sua ordem num vastíssimo e altíssimo monte, indo decres-cendo no número, conforme o monte se ia estreitando piramidalmente, até que, no supremo cume dele, estava unicamente a soberana Virgem das Virgens. E desse lugar só, único e solitário entre tanta multidão de almas puras, lhe resultava uma glória incomparável. Assim podes tu, alma minha, considerar e gozar-te da glória da Senhora, que, entre a multidão quase infinita dos filhos de Adão, Ela seja a única que ocupa o ápice da pirâmide, sendo preservada da mácula em que todos incorrem, e de que, nesse espesso bosque das gerações humanas, este só ramo de ouro brilhe tanto com os resplendores da divina graça desde o primeiro instante de sua natureza.46 Cant., VI, 7, 8.47 Cant., VI, 9.48 João Brebêucio, da Companhia de Jesus. Conforme refere Nadasi in Anno dierum societatis die 16. Martii.