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Michel montaigne os ensaios

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  1. 1. OS ENSAIOS MICHEL EYQUEM, SEIGNEUR DE MONTAIGNE, nasceu em 1533, filho e herdeiro de Pierre, Seigneur de Montaigne (dois filhos anteriores morreram aps o nascimento). Foi educado falando latim como primeira lngua, e sempre conservou uma disposio de esprito latina; embora conhecesse o grego, preferia usar tradues. Depois de estudar direito, finalmente tornou-se conselheiro do Parlamento de Bordeaux. Casou-se em 1565. Em 1569, publicou a sua verso francesa de Theologia naturalis, de Raymond Sebond; o seu Apologie apenas em parte uma defesa de Sebond, em que estabelece limites cticos para o raciocnio humano sobre Deus, o homem e a natureza. Em 1571, mudou-se para sua terras em Montaigne, dedicando-se leitura, reflexo e composio de seus Ensaios (primeira verso, 1580). Montaigne tinha averso ao fanatismo e s crueldades do perodo das guerras religiosas, mas apoiava a ortodoxia catlica e a instituio monrquica. Duas vezes foi eleito prefeito de Bordeaux (1581 e 1583), cargo que ocupou por quatro anos. Morreu em Montaigne, em 1592, enquanto preparava a edio final, e a mais rica, de seus Ensaios. ROSA FREIRE DAGUIAR nasceu no Rio de Janeiro. Nos anos 1970 e 1980 foi correspondente em Paris das revistas Manchete e Isto. Retornou ao Brasil em 1986 e no ano seguinte traduziu seu primeiro livro, para a editora Paz e Terra: O conde de Gobineau no Brasil, de Georges Raeders. Em mais de vinte anos de atividade, verteu mais de sessenta ttulos nas reas de literatura e cincias humanas. Alm do francs, idioma do qual transps para o portugus, entre outros, Cline, Orsenna, Lvi-Strauss, Debret e Balzac, traduz do espanhol e do italiano, lnguas que tambm aperfeioou durante os anos de jornalista na Europa. Sua lngua de preferncia, no entanto, mesmo o idioma de Montaigne, autor que ela pretendia traduzir desde os anos 1990, no s pelo contedo humanista dos Ensaios mas pelo desafio de traduzir um texto de quatro sculos de modo a conquistar o leitor de hoje. Acredita que o tradutor um ser obcecado e duvidante e que uma boa traduo depende, tambm, da empatia entre tradutor e autor. Entre os prmios que recebeu esto o da Unio Latina de Traduo Cientfica e Tcnica (2001) por O
  2. 2. universo, os deuses, os homens (Companhia das Letras), de Jean-Pierre Vernant, e o Jabuti (2009) pela traduo de A elegncia do ourio (Companhia das Letras), de Muriel Barbery. MICHAEL ANDREW SCREECH nasceu em 1926. membro honorrio do Wolfson College e professor emrito do All Souls College, de Oxford (fellow e capelo em 2001-3), membro da British Academy, da Royal Society of Literature, da University College, Londres, e membro correspondente do Institut de France. Trabalhou muito tempo no comit do Warburg Institute como professor de lngua e literatura francesa na University College, Londres, at sua eleio para o All Souls, em 1984. especialista em Renascimento, de renome internacional. Editou e traduziu os Ensaios completos de Montaigne para a Penguin Classics e, num volume separado, o ensaio Apologie de Raymond Sebond. Seus outros livros incluem Erasmus: ecstasy and the praise of folly (Penguin, 1988), Rabelais, e Montaigne and melancholy (Penguin, 1991) e, mais recentemente, Laughter at the foot of the cross (Allen Lane, 1998); todos so reconhecidamente estudos clssicos. Trabalhou com Anne Screech em Erasmus annotations on the new testament. Michael Screech Cavaleiro da Ordre du Mrite (1982) e Cavaleiro da Lgion dHonneur (1992). Em Oxford, ordenou-se dicono em 1993 e padre em 1994. ERICH SAMUEL AUERBACH nasceu em 1892 na Alemanha, em uma famlia burguesa de origem judia. Estudou direito em Heidelberg e, em 1914, ingressou no curso de filologia romnica em Berlim. Em 1921, defendeu sua tese de doutorado sobre a tcnica da novela no Renascimento francs e italiano. Em 1923, comeou a trabalhar na Biblioteca Estatal Prussiana, em Berlim, e seis anos depois tornou-se professor de filologia romnica na Universidade de Marburg. desse perodo um de seus estudos mais importantes, Dante, poeta do mundo secular. Em 1935, durante o regime nazista na Alemanha, foi demitido do cargo em Marburg. Exilado, passou a lecionar na Universidade de Istambul. Foi na Turquia, durante a Segunda Guerra Mundial, que escreveu a coletnea de ensaios Mimesis: a representao da realidade na literatura ocidental (1946), considerada uma das mais importantes obras de crtica literria do sculo XX. Ao final da Segunda Guerra, emigrou para a Amrica. Nos Estados Unidos, foi
  3. 3. professor da Universidade da Pensilvnia, pesquisador em Princeton e professor de teoria literria e literatura comparada na Universidade Yale. Faleceu, em New Haven, Connecticut, em outubro de 1957.
  4. 4. MICHEL DE MONTAIGNE Os ensaios Uma seleo Organizao de M. A. SCREECH Traduo e notas de ROSA FREIRE DAGUIAR
  5. 5. Sumrio Introduo Erich Auerbach Nota da tradutora OS ENSAIOS Ao Leitor LIVRO PRIMEIRO I Por meios diversos se chega ao mesmo fim VIII Sobre a ociosidade XV Sobre a punio da covardia XVII Sobre o medo XIX Que filosofar aprender a morrer XXV Sobre a educao das crianas XXVI loucura atribuir o verdadeiro e o falso nossa competncia XXX Sobre os canibais XXXI Que preciso prudncia para se meter a julgar os decretos divinos XXXVIII Sobre a solido LVI Sobre as oraes LVII Sobre a idade LIVRO SEGUNDO I Sobre a inconstncia de nossas aes II Sobre a embriaguez V Sobre a conscincia
  6. 6. VIII Sobre a afeio dos pais pelos filhos XI Sobre a crueldade XXXII Defesa de Sneca e de Plutarco XXXV Sobre trs boas esposas XXXVII Sobre a semelhana dos filhos com os pais LIVRO TERCEIRO II Sobre o arrependimento III Sobre trs relaes V Sobre versos de Virglio VI Sobre os coches XI Sobre os coxos XIII Sobre a experincia Cronologia Outras leituras ndice remissivo
  7. 7. O escritor Montaigne1 ERICH AUERBACH Montaigne era filho de pai gasco e me judia espanhola. A famlia era rica e estimada: o av Eyquem, comerciante de peixes em Bordeaux, comprara o feudo nobilirio de Montaigne, na Guyenne; o pai, soldado e nobre, alcanou o cargo de prefeito de Bordeaux. Michel seu sucessor em todos os aspectos exteriores: herdeiro do patrimnio, soldado, administrador, viajante, bom pai de famlia e finalmente maire de Bordeaux. Tambm quanto ao fsico filho de seu pai, de quem herdou a constituio robusta, o temperamento sanguneo e a predisposio litase. Mas os tempos haviam se tornado mais difceis. O pai viveu na poca dourada das campanhas militares na Itlia; o filho, em meio terrvel turbulncia causada pela crise huguenote, a ltima a ameaar a estabilidade nacional da Frana. A questo religiosa teve incio na dcada de 1550, poca em que Montaigne mal atingira a idade adulta, e terminou por volta de 1600, com a vitria de Henrique IV, poucos anos aps a morte do escritor. Na segunda metade do sculo XVI, a era de Filipe da Espanha e Elizabeth da Inglaterra, a Frana palco de um sangrento turbilho de acontecimentos e de uma inquietante anarquia dos nimos. Sobre uma base to instvel como essa, Montaigne levou uma vida cujo equilbrio jamais foi abalado. Em sua juventude, talvez tenha conhecido a ambio e a ansiedade, talvez a paixo e certamente a amizade em sua expresso mais autntica. Mas na poca em que o conhecemos, isso h muito j passado. Com 38 anos, ele se recolhe vida privada, e da em diante sua atividade externa restringe-se defesa de seu patrimnio. Administra-o com prudncia, sem medo nem rigidez, por vezes cedendo um pouco, com esprito e sem uso da fora, mas de modo firme e resoluto. Qual era o patrimnio que devia resguardar? Primeiro, suas posses, sua famlia e sua segurana. Mas isso o de menos: defendia-os de modo sereno e cordial, com alguns gestos hbeis. divertido ler como consegue desarmar
  8. 8. os bandos de saqueadores com sua postura digna e segura, com seu simples modo de agir. Mas se o fardo se fizesse pesado demais, se tais obrigaes viessem a lhe exigir muito, estaria disposto a abandon-las. O verdadeiro objeto de sua defesa seu cerne interior, o esconderijo de seu esprito, a arrire-boutique que soube conservar para si. Il faut faire comme les animaux, qui effacent la trace la porte de leur tanire.2 preciso fazer como os animais, que apagam seu rastro na porta da toca. E isso no vale apenas para sua vida exterior. Montaigne era um homem de corao aberto, expansivo e hospitaleiro; no recusava a aventura; no se abandonava, mas prestava-se de bom grado. Estava atento s novidades e chegava mesmo a ser um pouco esnobe; passava-se por mais nobre do que era de fato e sabia fazer notar da maneira mais discreta possvel sua elevada posio social. Sua autocrtica e autoironia esto cheias de um orgulho simptico. No de forma alguma um eremita; apenas um homem reservado, que por vezes gosta de estar em boa companhia. Mas a arrire- boutique de seu ser interior inacessvel: a est sua verdadeira morada, ali se sente em casa; em prol da segurana e do conforto desse refgio concentra-se toda a atividade do homem mais sagaz de seu tempo. Montaigne possua um sentido pronunciado de decoro e lealdade. Tivera um pai bom e inteligente, uma infncia feliz e uma juventude livre; no era prprio de seu temperamento ter pensamentos malevolentes ou agir de modo baixo, no esperava que os outros o fizessem e acabava por se enganar, como vira acontecer a seu pai. Fazia parte dessa lealdade servir ao rei, ser agradvel aos amigos e proteger a prpria famlia; era preciso ser humano e espontneo com os inferiores e franco e respeitoso com os superiores. Fazia parte da lealdade respeitar as regras e os costumes, e seria insensatez acreditar que com uma conduta oposta se pudesse causar algo alm de desordem. No era conveniente, e seria mesmo intil, incmodo e inoportuno, diferenciar-se de modo notvel dos outros homens da mesma classe, faltar com os deveres ou mesmo assumir voluntariamente encargos descabidos. Talvez tambm lhe fosse agradvel comprovar como se pode exercer um cargo ou administrar um negcio a que no se pode fugir de forma to boa ou melhor do que os outros sem para isso ter que se esforar ou dedicar-se em excesso. A condio era essa. Si quelquefois on ma pouss au maniement daffaires estrangres, jay promis de les prendre en main, non pas au poulmon et au foye.3 Se por vezes me compeliram administrao de negcios alheios, prometi manej-los com cuidado, mas sem lev-los a peito.] Montaigne agiu desse modo mesmo quando, numa poca difcil, foi quase coagido a se tornar maire de Bordeaux. Foi um bom pai para sua famlia, um
  9. 9. francs leal e um homem versado nas grandes questes de seu tempo; se no veio a ser um personagem de destaque na corte, isso deveu-se to somente a ele. No o foi porque no quis. Defendia-se contra tudo que lhe impunha deveres alm do necessrio: frente ao rei, aos amigos, aos burgueses de Bordeaux, sua famlia. Defendia-se contra vnculos coercivos com a mesma obstinao e gentileza com que se defendia contra os inimigos externos. Montaigne defende sua solido interior. Mas o que significa isso para ele? O que a torna to valiosa? A solido interior sua prpria vida, seu existir em si e consigo mesmo, sua casa, seu jardim e sua cmara de tesouros. Para l carrega tudo o que conquistou de precioso em suas andanas pelo mundo; l elabora e impregna tudo com o tempero de seu ser. O que e a que serve essa solido? No se trata de uma fuga do mundo no sentido cristo, e tampouco de cincia ou filosofia. algo que ainda no tem nome. Montaigne abandona-se a si mesmo. D livre curso a suas foras interiores mas no somente ao esprito: o corpo tambm deve ter voz, pode interferir em seus pensamentos e at nas palavras que ele se pe a escrever. Comparados a ele, os grandes espritos do sculo XVI os promotores do Renascimento, do Humanismo, da Reforma e da cincia que criaram a Europa moderna so todos, sem exceo, especialistas. Telogos ou fillogos, astrnomos ou matemticos, artistas ou poetas, diplomatas ou generais, historiadores ou mdicos: em sentido lato, so todos especialistas. Alguns se especializaram em vrias reas; Montaigne, em nenhuma. No absolutamente um poeta. Estudou cincias jurdicas, mas era um jurista indiferente, e suas declaraes sobre os fundamentos do direito, embora significativas de outro ponto de vista, no possuem nenhum valor especfico para a matria. Toda a sua atividade prtica no tem nenhuma relao profissional com sua produo intelectual. Muitas vezes aquela fornece o material para seus pensamentos. Mas tais pensamentos no so de grande importncia para nenhuma disciplina especfica; no tm carter jurdico, nem militar, nem diplomtico, nem filolgico, embora retirem de todos esses campos e outros mais sua encantadora concretude. E tambm no so propriamente filosficos: falta-lhes todo sistema ou mtodo. Montaigne permanece leigo mesmo onde parece compreender algo do assunto em pedagogia, por exemplo. difcil acreditar que ele quisesse aprofundar-se seriamente numa das matrias de que trata casualmente. E, seja como for, suas realizaes no dizem respeito a nenhuma delas. Ainda hoje difcil definir em que consistem, e quase incompreensvel que tenham alcanado repercusso em sua poca. Pois toda realizao necessita de um destinatrio
  10. 10. que lhe d algum valor, todo sucesso necessita de um pblico. O pblico dos Ensaios de Montaigne no existia, e ele no podia supor que existisse. No escrevia nem para a corte nem para o povo, nem para os catlicos nem para os protestantes, nem para os humanistas nem para alguma outra coletividade j existente. Escrevia para uma coletividade que parecia no existir, para os homens vivos em geral que, como leigos, possuam uma certa cultura e queriam compreender sua prpria existncia, isto , para o grupo que mais tarde veio a se chamar de pblico culto. At esse momento, a nica coletividade existente sem considerar as guildas, os estamentos e o Estado era a comunidade crist. Montaigne dirige-se a uma nova coletividade e, ao faz-lo, ele tambm a cria: a partir de seu livro que ela cobra existncia. Mas Montaigne no tinha conscincia disso; dizia escrever para si mesmo, com a inteno de investigar e conhecer a si mesmo, e para seus amigos, a fim de que dele conservassem uma imagem clara aps sua morte. Por vezes foi mais alm, e afirmou que num nico indivduo pode-se encontrar a constituio de todo o gnero humano. Seja como for, ele mesmo seu nico objeto, e seu nico fito aprender a viver e a morrer isso o mais importante, pois para ele quem aprendeu a morrer sabe tambm como viver. A ideia soa algo filosfica, e em alguma instncia de fato o . Mas falar de uma filosofia de Montaigne um equvoco. No h sistema algum; ele mesmo afirma, por exemplo, que intil aprender a morrer, pois a natureza encarrega-se disso nossa revelia; e falta-lhe tambm uma verdadeira vontade de ensinar como a de Scrates (que de resto bem se pode comparar a ele) e, portanto, uma vontade de alcanar uma validade objetiva. Aquilo que escreve dirige-se a ele e vale apenas para ele; se outros descobrirem a alguma utilidade e prazer, tanto melhor. A utilidade e o prazer que se podem auferir dos Ensaios tm um aspecto peculiar, antes desconhecido. No so de um gnero propriamente artstico, pois no se trata de poesia, e o objeto muito prximo e concreto para que o efeito possa permanecer puramente esttico. Mas seu carter tambm no apenas didtico, uma vez que conservam sua validade ainda que se tenha uma opinio diversa melhor dizendo, difcil encontrar uma doutrina da qual se possa discordar. Na maioria das vezes, seu efeito semelhante ao de algumas obras da Antiguidade tardia, de carter histrico-moral, maneira de Plutarco um dos autores prediletos de Montaigne. Mas falta-lhe uma orientao racional unitria, at mesmo dentro de cada um dos captulos. Trata-se de exemplos que so constantemente ponderados, verificados e apreciados. Poucos so os resultados, e estes de qualquer modo no exigem a concordncia do leitor. Mas a prpria forma como o assunto vem exposto
  11. 11. suficiente para enred-lo. Montaigne narra como vive, como ter de morrer e como comea a conformar-se com isso; narra tambm o que viu e ouviu de outros a esse respeito. preciso escut-lo, pois ele narra bem. No se sabe mais o que acabou de dizer, e ele j passa a um assunto totalmente diverso, dando a impresso de que em breve dir algo absolutamente novo, a propsito de uma palavra qualquer. Sem o perceber, o leitor envolvido por sua ndole mutvel e fluida, cheia de nuanas e contudo sempre plcida. Cham-la de ctica seria impor-lhe uma sistematizao demasiado ampla. No entanto, ela forte e nos faz prisioneiros, como faz o mar ao nadador ou o vinho ao bebedor. Muito antes de aprisionar o leitor, cativara o prprio Montaigne e o obrigara a escrever. Pois, a bem da verdade, ele no o desejara, sendo por demais modesto e orgulhoso para reconhecer uma tal ocupao como profisso. Si jtais faiseur de livres4 Se eu fosse fazedor de livros] assim ele comea uma frase, igualmente notvel sob outros aspectos. E, no entanto, ele foi o primeiro faiseur de livres na acepo atual nem poeta, nem erudito, mas autor de livros: escritor. Num nvel inferior, essa figura j havia despontado: autores de literatura popular e narradores na tradio das fbulas, lendas, exempla, fabliaux, tendo como limites um tanto imprecisos o poeta, de um lado, e o moralista doutrinador, de outro. Mas enquanto no veio a ser uma coisa nem outra, permanecendo a meio caminho entre ambos, esse tipo de homem no conquistou posio social definida nem reconhecimento intelectual. Rabelais j fora um caso-limite e, enquanto tal, um precursor de Montaigne. Esse homem independente e sem profisso determinada criou assim uma nova profisso e uma nova categoria social: o homme de lettres ou crivain, o leigo na condio de escritor. Conhecemos o caminho percorrido por essa profisso, primeiro na Frana e depois tambm em outros pases de cultura: tais leigos tornaram-se os verdadeiros intelectuais, os representantes e guias da vida intelectual, e gozam hoje em dia de um tal reconhecimento que Julien Benda os chamou de clercs, o mesmo nome, portanto, daqueles a quem originalmente se opunham, os clerici ou religiosos. Isso equivale ao reconhecimento de que os escritores herdaram destes ltimos o legado e o posto, isto , a hegemonia intelectual na Europa moderna. De Montaigne a Voltaire h uma ascenso contnua; no sculo XIX, eles ampliam sua posio e alcanam repercusso sobre uma base mais larga, o jornalismo, e apesar de alguns sinais de decadncia observados h tempos, bastante provvel que tambm no sculo XX eles venham a manter sua funo de voz do mundo. Quais so os traos caractersticos do escritor, encarnados pela primeira vez por Montaigne?5 Duas caractersticas negativas j foram assinaladas: falta
  12. 12. de especializao e de mtodo cientfico. Ambas so percebidas apenas pelo fato de que as obras do escritor tratam de objetos do conhecimento que antes costumavam ser analisados de forma metdica exclusivamente por especialistas. A quebra da especializao nos principais campos do saber fora preparada pela Reforma; nesses aspectos, as obras reformistas na Frana, em especial a verso francesa da Institution de la religion chrtienne, so precursoras de Montaigne. Os reformadores dirigiam-se aos leigos, pois viam- se obrigados a tanto os leigos esperavam um esclarecimento que lhes fosse compreensvel. Mas os prprios escritores reformistas eram em sua maioria telogos, portanto especialistas, e seus leitores no eram leigos em geral, mas leigos cristos. O leigo Montaigne foi o primeiro a escrever de modo leigo sobre temas importantes; muito embora na verdade no escrevesse para ningum a no ser para si mesmo, formou uma comunidade de leigos, e seu livro tornou-se um livro para leigos. Ele escreveu o primeiro livro da autoconscincia leiga. Mas apenas gradualmente que sua obra alcana tal posio. No incio, era uma espcie de comentrio a suas leituras. Lia muitssimo: os escritores antigos, os italianos, seus contemporneos sobretudo historiadores e moralistas. Seu pai, da mesma gerao dos defensores do ideal humanista, fizera com que aprendesse o latim antes do francs; era culto, possua a tcnica da leitura e lia com critrio e sensibilidade. Veio-lhe a ideia de anotar suas prprias experincias relativas ao que andava lendo, compar-las com o que havia lido, resgatar outras passagens de leituras precedentes. Desse modo surgiu uma espcie de raciocnio multifacetado sobre o objeto, que no teria ido alm disso, no fosse o impulso de seu entusiasmo pessoal, que o segredo e a marca do grande talento. Seu talento algo parte. Creio que sua modstia a respeito totalmente sincera, e que apenas o sucesso e o prprio prazer com o que escrevia tornaram-no verdadeiramente consciente de seu talento.6 Este era, de fato, muito diferente do que at ento se tinha como perfeio estilstica. No so apenas o carter leigo e a ausncia de ordem explcita em sua criao que espantam, mas tambm e sobretudo seus aspectos positivos. Ele viveu na poca de Tasso (que considerava louco), da Pliade e do esplendor literrio espanhol; reinavam nesse tempo o Humanismo e uma espcie de petrarquismo maneirista, uma forte tendncia deliberada artificialidade formal. O talento de Montaigne consiste em sua capacidade de desmascaramento. Ele diz as coisas mais concretas de modo extremamente subjetivo, mas sempre telles quelles. No h eufemismos, raras metforas desviam a fantasia, os perodos so pouco trabalhados. Na construo de suas frases, o sentido causal, final, consecutivo ou concessivo das partes
  13. 13. manifestado muitas vezes no pelas conjunes, mas pela entonao; com toda razo ele se compara a Tcito. O sentido cria as conexes muito mais que os conectivos sintticos criam o sentido. certo que h frases longas, mas no um burilamento consciente dos perodos. E as palavras so correntes e despojadas, ou pelo menos prescindem de qualquer seleo com base em critrios estticos. Se o francs no basta diz ele , recorra-se ao gasco. No resulta, porm, uma abundncia catica como em Rabelais, pois Montaigne no possui tendncias antiestticas ou esttico- revolucionrias,7 no se gaba de sua riqueza lxica e, nessa ausncia de preconceitos lingusticos, no busca nada seno a expresso que faz justia ao objeto: o resultado a mais perfeita nudez das coisas. E como ele mesmo seu objeto, ele prprio aparece perfeitamente nu; no houvesse observado algumas regras de decncia e o fez apenas a contragosto, como confessa no prefcio , haveria antecipado muito daquilo que ensinaram alguns escritores de nosso sculo. Sem pthos, sem artifcios, com calma e uma certa satisfao, somos apresentados ao que Montaigne foi, sentiu e pensou. Sua transparncia radiante. Mas isso se deu somente aos poucos. Apenas quando se torna consciente de suas foras o escritor desprende-se do texto lido, faz-se mais ousado e rico na expresso, fala de si mesmo com mais mincia e menos resguardo. Compraz-se em seus prprios pensamentos, estes tornam-se ainda mais variados e, em meio multiplicidade e confuso, at mais coerentes. Diz tudo que lhe vem cabea, certo de que a coeso de sua personalidade ser forte o bastante para manter a unidade do todo. D- nos um diagrama de seu eu interior de que faz parte tambm sua aparncia exterior, tal como vista de dentro. O contedo de sua conscincia a existncia de Michel de Montaigne com seu fim inevitvel, a morte que aguarda o termo dessa existncia. Montaigne foi um cristo catlico; junto a seu leito de morte achava-se um padre catlico. Nutria antipatia pelos huguenotes, pois era inimigo de distrbios e no acreditava que as revolues pudessem dar bons frutos. Suas ideias quanto incerteza de todo conhecimento posio que seria por demais taxativo e dogmtico caracterizar como ceticismo terminam quase sempre com o apelo revelao e f. Mas temos motivos para supor que no fosse crente. To somente para supor, pois no cabe a ns afirm-lo. Mas possumos seu livro, e sobre o livro podemos muito bem formar um juzo, como lembrou corretamente Sainte-Beuve. No obra de um crente. Nele, a f tem seu lugar assegurado, mas no restante discute-se a vida e a morte como se a f no existisse. Montaigne diz coisas profundas e pertinentes sobre o catolicismo, entre as quais certas questes que depois dele foram
  14. 14. logo esquecidas ou passaram para segundo plano, a exemplo da relao entre corpo e alma.8 Mas dificilmente se encontra nos Ensaios um vestgio da esperana ou da redeno. Montaigne escreveu sobre as religies em geral como se no fossem mais do que usos e costumes, e salientou com veemncia suas alteraes, sua instabilidade, seu carter de obra humana. Viu-se nisso uma crtica dissimulada ao cristianismo, e sem dvida essas passagens clebres contriburam para tal viso. Mas no podemos ter certeza de que o prprio Montaigne tenha extrado tais consequncias; talvez ns, injustamente, infiramos do efeito posterior, que nos conhecido, o propsito deliberado daquele que o ensejou. Considero perfeitamente possvel que Montaigne tenha omitido uma concluso anloga para a religio crist no tanto por diplomacia e conservadorismo poltico, e sim porque jamais o teria feito, porque obedecendo s formalidades e no tentando nem presumindo- se capaz de negar a revelao considerava a si mesmo um cristo catlico. Chegou mesmo a submeter seu livro censura romana, que inicialmente o julgou inofensivo, embora com algumas reservas. Seja como for, o esprito dos Ensaios absolutamente no cristo, pois tratam da morte como se no houvesse redeno nem imortalidade.9 O autor de um tal livro no conhece o Redentor, e praticamente impossvel imagin-lo rezando. O que escreve so as observaes de um homem honesto e sensvel, no de um crente. Sua atitude em relao morte comparvel de Scrates e da Antiguidade tardia; distingue-se desta ltima pela completa falta de nfase, e de ambas pela tangibilidade com que a morte representada. Montaigne , mais do que ningum, um homem desprovido de retrica e implacvel contra o palavreado dissimulador. Seu livro trata com espantosa concretude da morte de Montaigne, da prpria morte, que ele pressente e aguarda. Sente-a dentro de si, e ela o inimigo contra o qual, enfim, toda defesa ser intil. Ela o arrancar de seu astucioso esconderijo, da arrire-boutique, e o lanar ao Nada como fez a todos antes dele. Mas ao menos no ir assombr-lo inutilmente enquanto no chegar a hora. Montaigne inteligente e corajoso, sabe que de nada serve desviar o olhar e fugir. Tenta fazer o contrrio: pensa continuamente na morte, da forma mais concreta possvel, e tenta habituar-se a ela do mesmo modo como se conduz um cavalo ao obstculo diante do qual ele refuga. Montaigne chama isso de flatter la mort, lisonjear a morte. E o consegue. Habitua-se tanto a ela que a morte torna-se um pedao de sua vida; com ela se familiariza, fazendo com que no lhe inspire mais medo; ou melhor, o medo da morte apoderou-se dele de tal forma que j no o sente mais. E ento lhe vm as ideias mais grandiosas, duplamente sinistras em sua rispidez fria e antirromntica: a vida como uma
  15. 15. cavalgada; a despedida das pessoas prximas, cerimnia tediosa e irritante; a morte numa hospedaria, entre estranhos a quem se pode pagar pelos ltimos servios em dinheiro, sem outras obrigaes, de modo a no perturbar a tranquilidade da morte. Tais coisas povoam sua fantasia, e ele as expe com a mesma desenvoltura com que fala do efeito da doena em sua urina. Estar em viagem, a caminho esse o sentimento que jamais deve t-lo abandonado, e desse terreno nascem as palavras que resumem toda a sua obra: Je ne peinds pas lestre, je peinds le passage.10 No pinto o ser, pinto a passagem. Mas a familiaridade com a morte no extingue a vida, no diminui a capacidade de instalar-se na arrire-boutique de modo aconchegante e confortvel. Montaigne pode ser comparado a um homem que desfruta os prazeres da vida, consciente de que lhe resta pouco tempo para goz-los; com fervor redobrado, com o talento organizativo que s a necessidade capaz de criar, ele desfruta e saboreia o tempo de sua existncia. Seu desfrute da vida um desfrute de si mesmo, e no sentido mais imediato, mais animal. o prazer de respirar, comer, beber e digerir, de morar e viajar, de ser proprietrio e ter uma posio social. Tudo o que sinal de sua prpria vida deixa-o satisfeito, e tudo o que lhe pertence deve servir para tornar mais cmoda sua morada interior. At mesmo sua doena. Montaigne sofre de clculos renais que lhe causam clicas terrveis. Mas sabe como adaptar-se situao: firma um pacto com a doena e a lisonjeia com palavras e pensamentos, a exemplo do que faz com a morte. No final, sente- se vontade em sua presena; ela passa a ser uma amiga ntima. A doena uma propriedade, uma parte de si mesmo, e talvez no a pior. Ensina-o a desfrutar a sade. Que sensao maravilhosa quando a crise termina! Por algum tempo est livre e pode comer, beber e mover-se a seu bel-prazer. Com efeito, no segue as prescries mdicas, no confia na medicina e se recusa a obter a sade custa dos prazeres, o nico motivo pelo qual vale a pena possu-la. Outras pessoas de sua idade encontram-se em pior estado. Talvez as dores que sofrem sejam menores, mas em compensao esto continuamente oprimidas pela doena, ao passo que ele, Montaigne, sente-se perfeitamente saudvel enquanto a crise no chega. Antes de adoecer, tinha medo da doena; conhecia sua predisposio hereditria e a temia. Agora que a doena se manifestou, descobre que ela no to ruim. Talvez o mesmo acontea com a morte. Mas o aspecto fsico apenas uma parte e um estmulo ao desfrute de si mesmo. Montaigne sente-se viver, percebe-se, embebe-se de sua prpria existncia. O perigo sempre iminente de deparar com a morte d-lhe uma
  16. 16. magnfica coeso, solda-o internamente, e faz com que se sinta vontade em si mesmo. Impede, alm disso, que suas foras se dissipem, e atualiza constantemente suas caractersticas mais pessoais. Aquilo que Montaigne , ele o em vista da morte. Se deseja possuir a si mesmo a cada instante, porque este pode ser o ltimo. A calma e a coragem de seu temperamento impedem que o prazer se torne espasmdico. Encontra-se, porm, sempre concentrado e aguerrido, no para fazer ou obter alguma coisa, mas para existir. Os Ensaios so apenas um dos sintomas de sua existncia. A existncia de Montaigne consiste naquilo que lhe foi dado viver. No tenta melhor-la ou modific-la, apenas aceita-a, suporta-a como ela . Os costumes, as instituies, os ordenamentos dos homens so todos igualmente tolos e extravagantes. Mudam conforme suas opinies e no so estveis nem verdadeiramente legtimos. No possuem outro fundamento seno o prprio fato de sua vigncia naquele dado momento, ou seja, o hbito. Quem tem conscincia disso no se torna revolucionrio, assim como no so revolucionrias as pessoas obtusas e sem discernimento, que aceitam os dados da realidade por pura contumcia, e s quais Montaigne deseja por vezes assemelhar-se. Os revolucionrios e os agitadores esto no meio: so os medocres, que percebem a tolice e a injustia do presente, mas no se do conta de que toda situao nova seria igualmente injusta e tola, e de que os distrbios do processo de transformao, com suas lutas e desordens, no provocam, num primeiro momento, nada alm de uma perda incontestvel. Ele, Montaigne, mantm-se calmo e amolda-se ao presente, por fora de seu bom-senso e de seu sentimento de lealdade; admira Scrates, que se submeteu a seus juzes e s leis de Atenas, embora estas lhe fossem injustas. Para Montaigne isso fcil; sua posio cmoda, se pensarmos como so desfavorveis os tempos. Ele no busca o martrio, e tentaria esquivar-se com todos os seus meios de um mal evitvel. Mas no temos motivos para duvidar de que teria permanecido fiel a sua opinio mesmo se esta se voltasse contra ele. Assim como se encontra, sua existncia parece-lhe bastante aceitvel. Quando no est em seu aposento na Torre de Montaigne, viaja pela Frana, Itlia e Alemanha, sempre a cavalo, sem se preocupar com as clicas. Grandes senhores e reis desejam seus servios; ele os recusa de modo corts ou consente com reservas. Tem uma mulher honrada e uma filha, que no lhe do trabalho. Tem alguns vizinhos agradveis e outros tantos amigos. As pessoas gostam de ler o que lhe d vontade de escrever, e desde quando se decidiu a imprimir suas ideias, foram sempre necessrias novas edies. Si jtais faiseur de livres Em Paris, encontra por fim uma amiga, uma jovem mulher, a senhorita de Gournay, que o ama e o admira; ela se torna sa fille
  17. 17. dalliance e, depois da morte de tienne de la Botie, passa a ser a pessoa que lhe mais prxima. Ela por ordem nos papis e nos textos que um dia ele deixar como seu legado. O escritor sente-se satisfeito. Tudo dever permanecer como est, o mximo que for possvel. Cada hora vivida uma hora conquistada. Montaigne no escreve muito, cerca de mil pginas em vinte anos. Rev o que escreve, acrescenta, risca e corrige. Diz jamais ter corrigido nada, embora o manuscrito conservado em Bordeaux na verdade, no um manuscrito, mas um exemplar da edio de 1588 anotado e revisado por ele prprio deixe claro que faz tambm correes de natureza estilstica. Examina-se, deixa que as diferentes partes de seu esprito atuem livremente, apresenta-se a si mesmo. Sobre todos os temas formula suas prprias ideias, e estas so muitas vezes dubitativas e hesitantes. Mas o caminho que o leva dubiedade e hesitao foi aberto por ele mesmo; foi ele que formulou pela primeira vez o problema ou a combinao de problemas de tal ou qual modo. Sua independncia despida de preconceitos quase assustadora, e to mais eficaz na medida em que no objeto de sua vanglria. Diz o que lhe vem cabea, e ento o pe de lado. Mas o estmulo alcana o leitor e pode ento facilmente condensar-se num complexo de ideias muito mais tosco, sistemtico e ativo do que a substncia sutil, quase inefvel de Montaigne. Em seus discursos moderados, por vezes um pouco prolixos, esconde-se um estimulante, um elixir da vida ou da morte, como se preferir. o veneno da liberdade, do afastamento de toda realidade concreta, da autonomia humana. Em sociedade, junto aos outros, Montaigne comedido e observa os costumes; sozinho consigo mesmo, ele diferente. Usos, costumes, leis e religies desaparecem. Estou sozinho, a morte certa. No estou em casa, estou em viagem no sei de onde venho nem para onde vou. O que possuo, o que me resta? Eu mesmo. Comea ento a destacar-se uma palavra singular, motivo de vrias interpretaes equivocadas e superficiais: virtus, la vertu, a virilidade ou virtude. Naturalmente, ele retoma a palavra e a ideia da Antiguidade tardia, de Sneca e Plutarco, da tradio, estoica com tudo que lhe prprio: o elogio comparativo das mortes de Scrates e Cato, a massa de exemplos patticos dos encmios antigos, que ele expe e avalia com uma seriedade bastante ingnua. Montaigne, pelo menos num primeiro momento, faz o culto humanista da virtude, e alguns crticos nada criteriosos, incapazes de harmonizar a rigidez estoica com a nudez indiscreta e quase indecente de seu autorretrato, inventaram uma evoluo das ideias do escritor, que o levaria do estoicismo ao ceticismo. bem verdade que o desdobramento de sua personalidade
  18. 18. deu-se apenas gradualmente, mas ambos os termos adaptam-se mal a Montaigne: ctico insuficiente e estoico errneo.11 Ele um soldado e um homem dotado de fora fsica, apesar da doena; quando necessrio, corajoso e indiferente s privaes. Mas no h nele o menor vestgio do rigor estoico, da autonomia da razo, da identidade entre natureza e razo ou da ascese moral. Ele lembra com saudade de sua juventude e recusa-se a apreciar a sabedoria da velhice. Rebaixar-se to miseravelmente a ponto de preferir a lamurienta sabedoria e virtude dos ancios, nascidas da impotncia, fora viva e impetuosa da juventude isso ele espera que jamais lhe acontea. Sem dvida ele renova, num certo aspecto, o antigo ideal do sbio solitrio; mas o faz sem um programa definido pelo contrrio, hospitaleiro, interessa-se por tudo, e tem paixo por viagens. Sua solido apenas interior, e mesmo a no o por princpio. Ela seu elemento vital. Montaigne sente-se to feliz em sua solido e isso sem qualquer ferida romntica ou sentimental que ela mais se assemelha a um vcio do que a uma virtude. No , porm, nem uma coisa nem outra. Ela como a gua para o peixe. Vejamos de que consta essa clebre virtude. Quoy quils dient, en la vertu mesme, le dernier but de nostre vise, cest la volupt. Il me plaist de battre leurs oreilles de ce mot, qui leur est si fort contrecoeur: et sil signifie quelque supresme plaisir, et excessif contentement, il est mieux deu lassistance de la vertu qu nulle autre assistance. Cette volupt, pour estre plus gaillarde, nerveuse, robuste, virile, nen est que plus srieusement voluptueuse. Et luy deuions donner le nom du plaisir, plus fauorable, plus doux et naturel; et non celuy de la vigueur, duquel nous lauons dnomme. Cette autre volupt plus basse, si elle mritoit ce beau nom: ce deuoit estre en concurrence, non par priuilge. Je la trouve moins pure dincommoditez de trauerses que nest la vertu. Outre que son got est plus momentan, fluide et caduque, elle a ses veilles, ses jeusnes et ses travaux et la sueur et le sang et son cost une satit si lourde ].12 Digam o que disserem, na prpria virtude o objetivo ltimo que visamos a volpia. Agrada-me martelar os ouvidos das pessoas com essa palavra que as contraria to fortemente: e se ela significa um deleite supremo e extremo contentamento, um melhor acompanhante para a virtude do que qualquer outra coisa. Por ser mais viva, nervosa, robusta, viril, essa volpia mais seriamente voluptuosa. E devamos lhe dar o nome de prazer, mais favorvel, mais suave e natural, e no o de vigor, a partir do qual o
  19. 19. denominamos. Aquela outra volpia, mais baixa, se merecesse esse belo nome, no seria o resultado de um privilgio, mas de uma concorrncia. Acho-a menos isenta de inconvenientes e dificuldades do que a virtude. Alm de ter um gosto mais momentneo, fluido e frgil, tem suas viglias, seus jejuns e seus trabalhos, e o suor e o sangue [] e ao mesmo tempo uma saciedade to pesada que equivale penitncia []. A virtude como volpia: isso no consta nem do estoicismo, nem do epicurismo, nem do ceticismo. Trata-se de algo mais vivo do que as formas da tica individual da Antiguidade tardia e em geral do que qualquer atitude fundada apenas no pensamento. Talvez a pgina de que tiramos essa citao possa ainda deixar alguma dvida; muito nela tem colorao antiga. Somente aqueles que conhecem bem Montaigne percebero que ele no confere virtude um valor maior que ao amor, antes confronta esses dois segundo a medida de prazer que proporcionam; numa tal comparao, os parmetros no podem ser seno sensveis ou vinculados existncia. Desse modo, essa pgina harmoniza-se com a totalidade de seu temperamento. A vida, o dado histrico ou natural no so rejeitados nem menosprezados; pelo contrrio, Montaigne, para quem a virtude volpia, mergulha a fundo na sensualidade da vida, pois somente na sensualidade vital do mundo ele pode cingir e desfrutar a si mesmo. Isso, por estranho que parea, um legado cristo; trata-se do aristotelismo prtico amoldado ao cristianismo, com seu fundamento na histria de Cristo e suas razes, to pouco clssicas ou tericas, nos sofrimentos do mundo sensvel; uma representao fiel realidade que o Renascimento herdou do outono da Idade Mdia, da concepo do homem vivo como prisioneiro da natureza terrestre, noo indissoluvelmente ligada esperana na eternidade. Uma herana, em suma, do realismo cristo da Idade Mdia. Em Montaigne, porm, esta no mais uma priso forada, nem propriamente uma coero, mas antes a plenitude da liberdade. Pois de fato, o mundo em que nasceu e que abandonar a contragosto, mas sem medo, d-lhe, com a plenitude da vida, a plenitude da liberdade. A vida oferece-lhe inmeras possibilidades de examinar a si mesmo, mas no lhe impe leis. A virtude de que desfruta no uma lei, no de modo algum a lei moral em mim. Ela no serve nem a Deus nem aos homens, mas prpria pessoa que a detm. No obriga a nada e a ningum. Deixa o homem livre, mas s.13 Esse, portanto, o eu que constitui o objeto dos Ensaios, livro que encontrou ao final do sculo XVI um pblico composto necessariamente de leigos. Talvez isso se deva em parte ao cansao geral com as disputas
  20. 20. religiosas. Os Ensaios pareciam imparciais, superiores; o consenso no se forma em torno desta ou daquela ideia de Montaigne, mas abrange a totalidade da sua pessoa. A pessoa de Montaigne prestava-se a criar um novo tipo de homem: em lugar do cristo crente, ctico ou rebelde, o honnte homme que observa todos os preceitos e abandona as coisas a si mesmas. O honnte homme dos sculos XVII e XVIII foi logo impelido por outras influncias em outras direes, e tornou-se por fim mais ativo, mais burgus e mais mesquinho. Em Montaigne, todavia, estamos longe da burguesia e do Iluminismo. Nele tambm h algo de diverso da astuciosa reserva do honnte homme que, em meio ao palavrrio mundano e ao fluxo de seus afazeres, esquece rapidamente a nudez de sua prpria existncia; que num timo inventa para a morte formas e palavras capazes de retrat-la como uma funo social, e com isso no mais a encara de frente. Com Montaigne o leigo, o primeiro escritor isso no ocorre. Ainda cristo o bastante para lembrar sempre da condition de lhomme. Mergulha a fundo, cheio de volpia, na ideia da morte. Mas no treme e espera no faz-lo. Conduz seu cavalo beira do abismo, at que ele no sinta mais medo no violentamente, com esporas e chicote, mas, suave e persistente, com a presso de suas coxas. Assim, seduz a liberdade com lisonjas, sem se esquecer de sua condio de escravo; mantendo sempre presente essa lembrana, desfruta com mais gosto da liberdade. Nisso ele est s, em si e consigo mesmo, no meio do mundo e em perfeita solido.
  21. 21. Os ensaios, de Montaigne ROSA FREIRE DAGUIAR O texto de Os ensaios aqui traduzido o da edio pstuma de 1595, a mesma que serviu de base para a edio publicada em 2007 pela editora Gallimard na coleo Pliade. No existe uma edio definitiva da obra de Montaigne. A importncia e o carter dos acrscimos que ele foi incorporando ao texto, desde que escreveu o primeiro ensaio, por volta de 1571, at morrer, em 1592, mostram que seu projeto no parou de evoluir e se adensar ao fio das edies. A primeira, de 1580, traz apenas os livros I e II. Dela j consta um dos mais famosos ensaios da obra, Sobre os canibais, que reconstitui o encontro de Montaigne com trs ndios brasileiros tupinambs, em Rouen, em outubro de 1562. Em 1588 sai a quinta edio, trazendo o Livro III, cerca de quinhentas novas citaes e outras tantas adies e modificaes. a ltima edio publicada com o autor em vida. Um dos exemplares dessa edio de 1588, copiosamente anotado por Montaigne, est conservado na Biblioteca Municipal de Bordeaux: o Exemplar de Bordeaux. Outro, com as ltimas intervenes de Montaigne e guardado pela famlia, serviu de base edio de 1595, organizada por Marie de Gournay, a jovem literata e admiradora de Montaigne, que a considerava uma filha adotiva. O trabalho minucioso de Gournay consistiu em fazer alteraes de grafia e incorporar centenas de correes e acrscimos feitos nas margens e entrelinhas pelo autor. A edio de 1595 conheceu sucesso imediato e serviu para vrias outras edies, algumas clandestinas, outras expurgadas, durante pelo menos dois sculos, pois s no incio do sculo XIX publicou-se o texto conforme o Exemplar de Bordeaux. Foi a edio pstuma que leram os contemporneos de Montaigne, assim como Pascal, Voltaire, Rousseau, e tantos outros intelectuais que contriburam para difundir o monumento literrio de Montaigne. Marie de Gournay tambm fez inmeras anotaes ao texto, tendo rastreado e traduzido as fontes das citaes. Desde ento, os especialistas sucessivos
  22. 22. acrescentaram notas prprias s das edies anteriores. As notas introdutrias de cada ensaio e as notas de rodap desta edio foram feitas pela tradutora a partir da edio da Pliade de 2007, organizada por Jean Balsamo, Michel Magnien e Catherine Magnien-Simonin, da Seleo dos Ensaios publicada em 2004 pela Penguin Classics, com organizao e traduo de M. A. Screech, e da edio virtual feita por Guy de Pernon em 2008, apresentando a obra de Montaigne em francs contemporneo. A numerao seguida no sumrio corresponde aos nmeros de cada ensaio dos trs livros que formam o conjunto da obra. Quando no comprometido o entendimento do texto, manteve-se a pontuao adotada por Montaigne, que se reconhecia pouco especialista na matria e recorria abundantemente aos dois-pontos e pontos e vrgulas como forma de cadenciar o texto. Tambm foi respeitada a disposio original do texto, sem pargrafos, ou melhor, com um s pargrafo por ensaio. Montaigne aprendeu a falar em latim, a lngua da elite culta, e s aos seis anos iniciou-se no francs. A influncia do latim se faz presente tanto na profuso de citaes de autores da Antiguidade como na prpria estrutura da frase, muito prxima da sintaxe latina. Os ensaios so escritos em linguagem recheada de incisos, digresses, arcasmos, trocadilhos, s vezes em detrimento da clareza. Acrescente-se que muitas anotaes marginais feitas pelo autor de modo elptico tinham um significado que provavelmente s era claro para ele. Esta traduo procura conciliar o respeito ao original com a legibilidade para um leitor de hoje, apresentando-lhe uma verso cuja fluncia, longe de banalizar a obra, o leve ao prazer da leitura de Os ensaios.
  23. 23. Os ensaios DE MICHEL SENHOR DE MONTAIGNE Edio nova, encontrada depois da morte do Autor, revista e ampliada por ele em um tero em relao s precedentes impresses Em Paris, Abel LAngelier, no primeiro pilar da grande sala do Palcio MDXVCV Com privilgio
  24. 24. Ao Leitor Aqui est um livro de boa-f, Leitor. Ele te adverte, desde o incio, que no me propus outro fim alm do domstico e privado. Nele no tive nenhuma considerao por servir-te nem por minha glria: minhas foras no so capazes de tal desgnio. Dediquei-o ao uso particular de meus parentes e amigos, a fim de que, tendo-me perdido (o que breve tero de fazer), possam aqui encontrar alguns traos de minhas atitudes e humores, e que por esse meio nutram, mais completo e mais vivo, o conhecimento que tm de mim. Se fosse para buscar os favores do mundo, teria me enfeitado de belezas emprestadas. Quero que me vejam aqui em meu modo simples, natural e corrente, sem pose nem artifcio: pois a mim que retrato. Meus defeitos, minhas imperfeies e minha forma natural de ser ho de se ler ao vivo, tanto quanto a decncia pblica me permitiu. Pois se eu estivesse entre essas naes que se diz ainda viverem sob a doce liberdade das leis primitivas da natureza, asseguro-te que teria com muito gosto me pintado por inteiro e totalmente nu. Assim, Leitor, sou eu mesmo a matria de meu livro: no razo para que empregues teu vagar em assunto to frvolo e vo. Portanto, adeus. De Montaigne, neste primeiro de maro de mil quinhentos e oitenta.
  25. 25. LIVRO PRIMEIRO
  26. 26. Por meios diversos se chega ao mesmo fim Captulo I O primeiro captulo trata da guerra e da histria, assuntos apropriados para um nobre. Montaigne introduz em suas reflexes o irracional (a surpresa, o xtase e a fria da batalha) e mostra como so imprevisveis as reaes perante esses sentimentos, at mesmo em homens virtuosos, grandes e corajosos. As explicaes dos motivos so mera conjectura. Cita o exemplo de Conrado III, a partir da introduo do livro Methodus, de Jean Bodin, que estava lendo por volta de 1578. Provavelmente este primeiro captulo no foi o primeiro a ser escrito, mas sua composio histrias de diversas fontes em torno de um mesmo tema e seguidas de curtos comentrios d um dos tons da obra. Dedicado compaixo e ao perdo, o captulo terminava, na edio de 1580, com uma oposio entre a clemncia de Pompeu e a dureza de Sila. Os dois acrscimos seguintes, que exploram a lenda negra de Alexandre, acentuam o carter insondvel do comportamento humano.
  27. 27. O modo mais comum de amolecer os coraes daqueles a quem ofendemos, quando, tendo em mos a vingana, eles nos mantm sua merc, por nossa submisso mov-los comiserao e piedade. Contudo, a bravura, a constncia e a resoluo, meios totalmente contrrios, s vezes tiveram esse mesmo efeito. Eduardo, prncipe de Gales, aquele que por tanto tempo reinou sobre nossa Guyenne,14 personagem cujas condies e fortuna tm feitos muitos notveis de grandeza, tendo sido fortemente ofendido pelos limusinos, tomou-lhes a cidade fora. Os gritos do povo, e das mulheres e crianas abandonadas carnificina, suplicando-lhe misericrdia e prostrando-se a seus ps, no conseguiram det-lo; at que, prosseguindo a investida pela cidade, avistou trs fidalgos franceses que com inacreditvel intrepidez resistiam, sozinhos, ao esforo de seu exrcito vitorioso. A considerao e o respeito por virtude to notvel embotaram, primeiramente, a ponta de sua clera: e ele comeou por esses trs a conceder misericrdia a todos os outros habitantes da cidade. Scanderberch, prncipe do piro, perseguiu um de seus soldados para mat-lo, e esse soldado, depois de tentar acalm-lo por toda espcie de humildade e splicas, decidiu-se pelo recurso extremo de esper- lo de espada em punho; essa sua resoluo sustou de chofre a fria de seu senhor que, por t-lo visto tomar to honroso partido, lhe concedeu seu perdo. O exemplo poder prestar-se a outra interpretao por parte daqueles que no tiverem lido sobre a prodigiosa fora e valentia desse prncipe. O imperador Conrado III sitiou Guelfo, duque da Baviera, e no quis aceitar condies mais suaves, por mais vis e covardes fossem as reparaes que lhe ofereciam, a no ser permitir que as senhoras que estavam sitiadas junto com o duque sassem com sua honra salva, a p, levando consigo o que pudessem. Com corao magnnimo, elas tiveram a ideia de carregar nos ombros seus maridos, filhos, e at o duque. O imperador teve tanto prazer em ver a gentileza dessa nobreza de corao que chorou de contentamento e abrandou todo aquele azedume da inimizade mortal e capital que votara contra o duque; e da em diante tratou humanamente a ele e aos seus. Um ou outro
  28. 28. desses dois meios me arrebataria facilmente, pois tenho um fraco espantoso pela misericrdia e pela clemncia. Tanto assim que, a meu ver, eu tenderia a me render mais naturalmente compaixo do que estima. No entanto, para os estoicos a piedade paixo viciosa: querem que socorramos os aflitos, mas no que nos enterneamos e compadeamos deles. Ora, esses exemplos parecem-me mais a propsito por vermos essas almas acometidas e postas prova pelos dois mtodos resistirem a um, inabalveis, e se curvarem ao outro. Pode-se dizer que partir o corao com a compaixo efeito da afabilidade, da complacncia e da frouxido, donde resulta que esto mais sujeitas a isso as naturezas mais fracas, como as das mulheres, das crianas e do vulgo. Mas (tendo demonstrado desprezo pelas lgrimas e pelos prantos) render-se somente reverncia da imagem santa da virtude ato de uma alma forte e inquebrantvel, que aprecia e honra o vigor msculo e obstinado. Todavia, em almas menos generosas o espanto e a admirao podem produzir efeito parecido. Prova disso o povo tebano, que, tendo chamado a juzo seus comandantes sob a acusao capital de terem prosseguido o mandato alm do tempo que lhes fora prescrito e preordenado, a muito custo absolveu Pelpidas, que vergava sob o fardo de tais objees e para defender-se s recorria a peties e splicas; e, ao contrrio, quando Epaminondas veio a contar magnificamente os atos por ele realizados e com eles exprobou o povo orgulhosa e arrogantemente, o povo tebano no teve nimo de pegar em mos as fichas de votao e a assembleia se dissolveu, louvando grandemente o nvel de coragem daquele personagem. Dionsio, o Velho, que depois de delongas e dificuldades extremas tomara a cidade de Rege, e nesta o comandante Fton, grande homem de bem que a defendera com tanta obstinao, quis disso tirar um trgico exemplo de vingana. Primeiramente disse-lhe que, na vspera, mandara afogar seu filho e todos os de sua parentela. Ao que Fton respondeu apenas que eram, por um dia, mais felizes que ele. Depois mandou que o despissem e entregou-o aos carrascos para que fosse arrastado pela cidade, aoitando-o muito ignominiosa e cruelmente; e, ademais, acusando-o com palavras prfidas, malvadas e injuriosas. Mas ele manteve a coragem sempre constante, sem desistir. E, com rosto firme, ia, ao contrrio, rememorando em voz alta a honrosa e gloriosa causa de sua morte, por no ter desejado entregar seu pas nas mos de um tirano; e ameaando-o com uma pronta punio dos deuses. Lendo isso nos olhos de sua soldadesca, que, em vez de se irritar com as bravatas desse inimigo vencido e com o desprezo que mostrava pelo chefe e seu triunfo, se enternecia de espanto diante de uma virtude to rara e deliberava em vista de se amotinar, e at de arrancar Fton das mos de seus
  29. 29. guardas, Dionsio mandou parar esse martrio e s escondidas ordenou que o afogassem no mar. Na verdade, o homem um sujeito maravilhosamente vo, diverso e ondulante: rduo estabelecer sobre ele um julgamento constante e uniforme. Eis Pompeu, que perdoou a toda a cidade dos mamertinos, contra a qual andava muito irritado, em considerao virtude e magnanimidade de Zeno, um cidado que assumiu sozinho o erro pblico e no requereu outra graa alm de suportar sozinho a punio por este. E o anfitrio de Sila, tendo demonstrado na cidade de Pergia bravura semelhante, nada ganhou, nem para si nem para os outros. E diretamente contra meus primeiros exemplos, Alexandre, o mais intrpido dos homens e to bondoso com os vencidos, ao tomar pela fora a cidade de Gaza, depois de grandes dificuldades, encontrou Btis, que ali comandava e de cujo valor tivera, durante esse cerco, provas maravilhosas; agora Btis estava s, abandonado pelos seus, com as armas estraalhadas, todo coberto de sangue e chagas, ainda combatendo no meio de vrios macednios que o atormentavam de todos os lados; e Alexandre, muito irritado com uma vitria to cara (pois, entre outros danos, recebera duas feridas recentes em seu corpo), disse-lhe: No morrers como quiseste, Btis; sabe que tens de sofrer todos os tipos de tormentos que podero ser inventados contra um cativo. O outro, com semblante no s firme mas desdenhoso e altivo, ficou sem dizer uma palavra diante dessas ameaas. Ento, vendo sua obstinao e mutismo, disse: Ele dobrou um joelho? Escapou-lhe alguma palavra suplicante? Realmente, vencerei esse silncio, e se dele no puder arrancar uma palavra, arrancarei no mnimo um gemido. E, sua clera transformando-se em furor, mandou que lhe perfurassem os calcanhares, e assim vivo o fez dilacerar e desmembrar, e se arrastar preso a uma carroa. Seria porque a fora da coragem lhe fosse to natural e comum que, por no mais admir-la, a respeitava menos? Ou porque a considerasse to propriamente sua que, em tal grau, no conseguiu suportar v-la em outro sem o despeito de uma paixo invejosa? Ou porque a impetuosidade natural de sua clera fosse incapaz de aceitar uma oposio? Na verdade, se sua clera tivesse sido freada, de crer que teria feito o mesmo durante o saque e a devastao da cidade de Tebas, ao ver cruelmente passar pelo fio da espada tantos homens valentes, perdidos e sem mais nenhum meio de defesa pblica. Pois ali foram mortos bem 6 mil, dos quais nenhum foi visto fugindo nem pedindo misericrdia. Ao contrrio, procurando, uns aqui outros ali, pelas ruas enfrentar os inimigos vitoriosos, provocando-os para faz-los morrer de morte honrosa. Nenhum foi visto que no tentasse se vingar ainda em seu ltimo suspiro, e com as armas do desespero consolar-se de sua morte com a morte de algum inimigo. A coragem aflita de todos eles no suscitou a menor
  30. 30. piedade, e a durao de um dia no bastou a Alexandre para saciar sua vingana. Essa carnificina durou at a ltima gota de sangue a derramar e s se deteve nas pessoas desarmadas, os velhos, mulheres e crianas, para transform-los em 30 mil escravos.
  31. 31. Sobre a ociosidade Captulo VIII O projeto de Os ensaios foi pensado por Montaigne para que controlasse as desiluses melanclicas provocadas por sua recluso, quando seus pensamentos galoparam para longe, levando-o de roldo. o que Milton descrever mais tarde, em Il Penseroso, em que diz que isso era algo tpico do melanclico em sua torre solitria. O captulo sofreu poucas modificaes pois talvez tenha sido o incio do prefcio de um projeto literrio ainda vago. Fazia pouco tempo que Montaigne se retirara da vida pblica. Ali, recluso na torre de seu castelo, ele pensa, como outrora Ccero, em praticar o otium (o lazer letrado). Neste texto se encontra o esboo de um de seus objetivos iniciais: fazer um registro do fruto de suas imaginaes, o que, com o tempo, se transformar em ensaios, e, depois, em Os ensaios.
  32. 32. Assim como em terras de alqueive, se so ricas e frteis, vemos proliferar 100 mil espcies de ervas silvestres e inteis, e que para mant-las preciso trabalh-las e empreg-las com certas sementes, para nosso servio; e assim como vemos que as mulheres produzem sozinhas massas e pedaos de carne disformes,15 mas que para produzir uma gerao boa e natural preciso ench-las com outro smen, assim tambm ocorre com os espritos. Se no os ocupamos em certo assunto que os refreie e contenha, atiram-se desregrados, para c e para l, no vago campo das imaginaes. Sicut aquae tremulum labris ubi lumen ahenis Sole repercussum, aut radiantis imagine Lunae, Omnia pervolitat late loca, iamque sub auras Erigitur summique ferit laquearia tecti.16 Assim, quando em um vaso de bronze a superfcie trmula da gua reverbera a luz do sol ou os raios da lua, esse reflexo volteia de todos os lados, eleva-se nos ares e vai atingir os pains do teto. E no h loucura nem devaneio que no se produzam nessa agitao, velut aegri somnia, vanae Finguntur species.17 parecidos com os sonhos de um doente, forjam-se imagens inconsistentes. A alma que no tem objetivo estabelecido se perde, pois, como se diz, estar em toda parte no estar em lugar nenhum. Quisquis ubique habitat, Maxime, nusquam habitat.18 Quem mora por todo lado, Mximo, no mora em lugar nenhum. Ultimamente, que me recolhi em casa decidido tanto quanto puder a no me
  33. 33. meter em outra coisa e passar em repouso, e parte, este pouco de vida que me resta, pareceu-me no poder fazer maior favor a meu esprito do que deix-lo em plena ociosidade, a entreter-se consigo mesmo, parar e sossegar: o que esperava que ele pudesse doravante fazer mais facilmente, tendo se tornado com o tempo mais ponderado e mais maduro. Mas descubro que, variam semper dant otia mentem,19 a ociosidade sempre torna o esprito inconstante, ao contrrio, agindo como um cavalo fugido, ele d cem vezes mais livre curso a si mesmo do que daria a outros, e engendra-me tantas quimeras e monstros fantsticos, uns sobre os outros, sem ordem e sem propsito, que para contemplar vontade sua inpcia e sua estranheza comecei a assent-los num rol, esperando, com o tempo, que ele se envergonhe de si mesmo.
  34. 34. Sobre a punio da covardia Captulo XV20 Jurisconsultos do Renascimento, como Tiraquelo, estavam preocupados em temperar a severidade da lei, partindo do exame dos motivos e das limitaes humanas. o que Montaigne faz aqui, sendo esse um assunto que muito preocupava os fidalgos em tempos de guerra como aqueles em que ele vivia. O captulo mostra um paradoxo em que a extrema bravura punida com a morte, enquanto a covardia apenas amaldioada. O texto termina com uma reviravolta: a extrema covardia no seria indcio de uma malcia, afinal, nociva?
  35. 35. Ouvi outrora um prncipe e muito grande comandante afirmar que um soldado no podia ser condenado morte por covardia; estando ele mesa, fez o relato do processo do senhor de Vervins, que foi condenado morte por ter entregado Boulogne. Na verdade, justo que se faa grande diferena entre os erros que vm de nossa fraqueza e os que vm de nossa maldade. Pois nestes inclinamo-nos cientemente contra as regras da razo que a natureza imprimiu em ns; e naqueles parece que podemos invocar como desculpa essa mesma natureza por nos ter deixado de tal modo imperfeitos e falhos. De maneira que muitas pessoas pensaram que s podamos ser criticados pelo que fazemos contra nossa conscincia; e sobre essa regra que se assentam em parte a opinio dos que condenam as punies capitais para os hereges e descrentes, e a que estabelece que um advogado e um juiz no podem ser incriminados se, por ignorncia, falharem em sua tarefa. Mas quanto covardia, certo que o modo mais comum castig-la pela vergonha e pela ignomnia. E pensa-se que essa regra foi primeiramente posta em prtica pelo legislador Carondas, e que antes dele as leis da Grcia castigavam com a morte os que tinham fugido de uma batalha, ao passo que ele ordenou apenas que ficassem sentados no meio da praa pblica, vestidos com roupa de mulher, esperando que, tendo-os feito recuperar a coragem por essa vergonha, ainda pudesse se servir deles. Suffundere malis hominis sanguinem quam effundere.21 Fazer antes subir o sangue s faces do acusado do que derram-lo.] Parece tambm que antigamente as leis romanas puniam com a morte os que tinham desertado. Pois Amiano Marcelino conta que o imperador Juliano condenou dez de seus soldados, que viraram as costas a um ataque contra os partos, a ser degradados e depois a sofrerem morte, seguindo, diz ele, as leis antigas. Todavia, em outro lugar, por falta semelhante ele somente condenou outros a permanecer entre os prisioneiros sob a insgnia dos carregadores de bagagem. O severo castigo do povo romano contra os soldados que escaparam de Canas, e, nessa mesma guerra, contra os que acompanharam Cneu Flvio em sua derrota, no chegou
  36. 36. morte. Assim, de temer que a vergonha os desespere e os torne no s frios amigos mas inimigos. No tempo de nossos pais, o senhor de Franget, outrora lugar-tenente da companhia do senhor marechal de Chtillon, tendo sido nomeado pelo senhor marechal de Chabannes governador de Fuenterrabia no lugar do senhor du Lude, e tendo-a entregado aos espanhis, foi condenado a ser degradado da nobreza, e tanto ele como sua posteridade, declarados plebeus, sujeitos ao imposto da talha e incapacitados para portar armas: e foi essa dura sentena executada em Lyon. Desde ento sofreram punio similar todos os fidalgos que estavam em Guise quando o conde de Nassau l entrou, e mais outros depois. Entretanto, quando houvesse um caso de ignorncia ou covardia to grosseiro e aparente que superasse todas as normas, seria justo consider-lo prova suficiente de maldade e malcia, e castig-lo como tal.
  37. 37. Sobre o medo Captulo XVII22 Montaigne discute o medo, em parte luz de sua prpria experincia na guerra, em parte estudando os exempla. Ele o encara como um sentimento que costuma levar a um comportamento alucinado e exttico: de fato, poderia ser classificado como um caso de xtase ou de loucura o homem apavorado que se encontrava, em certas circunstncias, fora de seu estado normal. Individual ou coletivo, o medo alucina, paralisa ou dinamiza, ou seja, produz os mesmos efeitos da valentia. Esboa-se, assim, uma crtica aos valores heroicos, qual ser parcialmente dedicado o Livro II. Aqui encontramos a continuao do discurso blico: todos os exemplos de horror, acumulados de edio em edio, referem-se aos soldados ou guerra, com exceo do ltimo, acrescentado depois de 1588, e que fecha o captulo com a inquietante etiologia do terror pnico.
  38. 38. Obstupui, steteruntque comae, et vox faucibus haesit.23 Fiquei estupefato, meus cabelos se arrepiaram e minha voz parou em minha garganta. No sou bom especialista na natureza (como se diz) e no sei por quais mecanismos o medo age em ns, mas seja como for uma estranha emoo, e dizem os mdicos que no h nenhuma que deixe mais depressa nosso julgamento fora de seu estado normal. Na verdade, vi muitas pessoas que ficaram enlouquecidas de medo, e at no mais sensato ele engendra terrveis miragens enquanto dura seu acesso. Deixo parte o vulgo, para quem o medo representa ora os bisavs sados do tmulo, envoltos em seu sudrio, ora os lobisomens, os duendes e as quimeras. Mas entre os prprios soldados, em quem deveria encontrar menos espao, quantas vezes transformou um rebanho de ovelhas em esquadro de couraceiros? Juncos e canios em homens de armas e lanceiros? Nossos amigos em nossos inimigos? E a cruz branca na vermelha? Quando o senhor de Bourbon tomou Roma, um porta-estandarte que estava de guarda no burgo So Pedro foi invadido por tamanho pavor ao primeiro alarme que, pelo buraco de uma runa, de estandarte em punho, se lanou para fora da cidade, direto sobre os inimigos, pensando dirigir-se para dentro da cidade; e foi s quando viu a tropa do senhor de Bourbon enfileirar-se para det-lo, considerando que era uma investida que os da cidade estivessem fazendo, a muito custo reconheceu o erro e, dando meia-volta, entrou por aquele mesmo buraco do qual havia se afastado mais de trezentos passos no campo. Mas o estandarte do capito Julles no foi to feliz quando Saint-Pol foi tomada de ns pelo conde de Bures e o senhor du Reu. Pois, estando to desvairado de pavor a ponto de lanar-se com o estandarte para fora da cidade, por uma seteira, ele foi estraalhado pelos atacantes. E no mesmo cerco foi memorvel o medo que apertou, invadiu e paralisou com tanta fora o corao de um fidalgo que ele caiu duro, morto, no cho, numa brecha, sem nenhum ferimento. Fria semelhante por vezes impele toda uma multido. Num dos combates de Germnico contra os alemes, duas grandes tropas tomaram, de tanto pavor, dois caminhos opostos, uma fugindo de onde a outra partia. Ora ele nos d asas aos ps, como aos dois primeiros; ora nos prega os ps e os entrava, como se l a respeito do imperador Tefilo, que, numa batalha que perdeu contra os agarenos, ficou to perturbado e to transido que no conseguiu decidir-se a fugir: adeo pauor etiam auxilia formidat,24 de tal modo receia o pavor, mesmo nos socorros,] at que Manuel, um dos principais chefes de seu exrcito, tendo o agarrado e sacudido como para despert-lo de um sono
  39. 39. profundo, lhe disse: Se no me seguirdes hei de matar-vos, pois mais vale perderdes a vida do que, estando prisioneiro, virdes a perder o Imprio. E ento ele exprime sua ltima fora quando, para seu prprio servio, nos devolve a valentia que subtraiu de nosso dever e de nossa honra. Na primeira batalha campal que os romanos perderam contra Anbal, na poca do cnsul Semprnio, uma tropa de bem 10 mil homens de p tomados de pavor, no vendo outro lugar por onde dar passagem covardia, foi jogar-se no meio do grosso dos inimigos, atravessando entre eles num esforo maravilhoso e provocando grande matana dos cartagineses, pagando por sua vergonhosa fuga o mesmo preo que pagaria por uma gloriosa vitria. disso que tenho mais medo que do medo. que ele supera em violncia todos os outros infortnios. Que emoo pode ser mais dura e mais justa que a dos amigos de Pompeu que estavam em seu navio, espectadores daquele horrvel massacre? E no entanto, o medo das velas egpcias que comeavam a se aproximar a sufocou, de maneira que se observou que eles s se preocuparam em exortar os marinheiros a se apressarem e se salvarem com a fora dos remos; at que, chegando a Tiro, livres do medo, conseguiram voltar o pensamento para a perda que acabavam de sofrer e dar rdea solta s lamentaes e s lgrimas que aquela outra emoo mais forte suspendera. Tum pavor sapientiam omnem mihi ex animo expectorat.25 Ento o medo arranca toda a razo de meu corao. Os que foram bem maltratados em alguma batalha de guerra so levados no dia seguinte ao ataque, todos ainda feridos e ensanguentados. Mas os que sentiram um grande medo dos inimigos, no os fareis nem sequer olh-los de frente. Os que esto com o opressivo medo de perder seus bens, de ser exilados, de ser subjugados, vivem em contnua angstia, perdendo a vontade de beber, comer, descansar, enquanto os pobres, os banidos, os servos vivem amide to alegremente como qualquer outro. E tantas pessoas, no conseguindo suportar as estocadas do medo, se enforcaram, se afogaram, se precipitaram, nos ensinaram que o medo ainda mais importuno e mais insuportvel que a morte! Os gregos reconhecem uma outra espcie de medo, que no se explica nem mesmo por um extravagante raciocnio nosso: vindo, dizem eles, de um impulso celeste, e sem causa aparente. Volta e meia povos inteiros e exrcitos inteiros veem-se atingidos por ele. Assim foi o que levou a Cartago uma terrvel desolao. Ali s se ouviam gritos e vozes apavoradas; viam-se os habitantes sarem de suas casas, como se tivesse soado o alarme; atacarem-se, ferirem e matarem uns aos outros, como se fossem
  40. 40. inimigos que tivessem vindo ocupar sua cidade. Tudo ficou em desordem e tumulto, at que, por oraes e sacrifcios, aplacaram a ira dos deuses. A isso chamam de terrores pnicos.
  41. 41. Que filosofar aprender a morrer Captulo XIX26 Este um dos captulos mais conhecidos da obra, e desenvolve uma das preocupaes maiores de Montaigne, que morrer bem. Trata-se de um mosaico de exemplos e argumentos que lembram o carter inevitvel e imprevisvel da morte e justificam, assim, o fato de que ela seja premeditada, isto , meditada com antecedncia. Montaigne parece chegar a um acordo com sua melancolia, agora, de certa forma, minimizada. Continua preocupado com o medo da morte medo do lancinante ato de morrer. O tratamento que d ao tema retrico mas no impessoal. Os pressupostos filosficos deste captulo so amplamente derrubados no final de Os ensaios (em Livro III, XIII, Sobre a experincia). Montaigne est no caminho de descobrir qualidades admirveis nos homens e mulheres comuns. Os acrscimos da edio pstuma provam, pelo exemplo pessoal de Montaigne, o sucesso do exerccio espiritual das meditaes sobre a morte, que sobretudo um aprendizado do viver bem.
  42. 42. Diz Ccero que filosofar no outra coisa seno preparar-se para a morte. assim porque, de certo modo, o estudo e a contemplao retiram nossa alma de ns e a ocupam separada do corpo, o que constitui certo aprendizado da morte e tem semelhana com ela; ou ento, porque toda a sabedoria e a razo do mundo se concentram, afinal, nesse ponto de nos ensinar a no ter medo de morrer. Na verdade, ou a razo est escarnecendo de ns ou seu objetivo deve ser apenas o nosso contentamento, e todo o seu trabalho deve tender, em suma, a fazer-nos viver bem e a nosso gosto, como dizem as Sagradas Escrituras. Todas as opinies do mundo chegam concluso de que o prazer nosso objetivo, conquanto adotem meios diversos, do contrrio as rejeitaramos de incio. Pois quem escutaria aquele que estabelecesse como objetivo nosso pesar e sofrimento? As dissenses das escolas filosficas, nesse caso, so verbais. Transcurramus solertissimas nugas.27 Passemos sobre essas bagatelas to solertes.] H a mais teimosia e pirraa do que convm a uma nobre profisso. Mas, seja qual for o personagem que o homem adote, ele sempre representa, de permeio, o seu. Digam o que disserem, na prpria virtude o objetivo ltimo que visamos a volpia. Agrada-me martelar os ouvidos das pessoas com essa palavra que as contraria to fortemente: e se ela significa um deleite supremo e extremo contentamento, um melhor acompanhante para a virtude do que qualquer outra coisa. Por ser mais viva, nervosa, robusta, viril, essa volpia mais seriamente voluptuosa. E devamos lhe dar o nome de prazer, mais favorvel, mais suave e natural, e no o de vigor, a partir do qual o denominamos.28 Aquela outra volpia, mais baixa, se merecesse esse belo nome, no seria o resultado de um privilgio, mas de uma concorrncia. Acho-a menos isenta de inconvenientes e dificuldades do que a virtude. Alm de ter um gosto mais momentneo, fluido e frgil, tem suas viglias, seus jejuns e seus trabalhos, e o suor e o sangue. E ademais, especialmente, seus sofrimentos pungentes de tantas espcies, e ao mesmo tempo uma saciedade to pesada que equivale penitncia. Cometemos grande erro ao pensar que seus obstculos servem
  43. 43. de incentivo e condimento doura desse prazer, assim como na natureza os contrrios se vivificam por seus contrrios; e ao dizer, quando falamos da virtude, que as mesmas consequncias e dificuldades a oprimem, tornando-a austera e inacessvel. Pois no caso da virtude, bem mais propriamente que na volpia, elas enobrecem, aguam e realam o prazer divino e perfeito que ela nos propicia. Quem ope o custo ao fruto da virtude, este , decerto, bem indigno de sua companhia e no conhece suas graas nem seu bom uso. Esses que vo nos ensinando que sua busca laboriosa e penosa, e que sua fruio agradvel, o que nos dizem com isso a no ser que ela sempre desagradvel? Pois por qual meio humano j se chegou sua fruio? Os mais perfeitos contentaram-se em aspirar a ela e dela se aproximar sem possu-la. Mas enganam-se, visto que a prpria busca de todos os prazeres que conhecemos aprazvel. A tarefa impregna-se da qualidade do objeto a que visa, pois isso uma boa parcela dele e da mesma natureza. A felicidade e a beatitude que reluzem na virtude preenchem todas as suas dependncias e avenidas, da primeira entrada at sua ltima barreira. Ora, um dos principais benefcios da virtude o desprezo pela morte, o que fornece nossa vida a mansa tranquilidade, d-nos seu gosto puro e benfazejo sem o qual todo outro prazer est extinto. Eis por que todas as regras se encontram e convm a esse item. E embora todas tambm nos levem, de comum acordo, a desprezar a dor, a pobreza e outros infortnios a que a vida humana est sujeita, no uma preocupao do mesmo tipo, tanto porque esses infortnios no so necessrios (a maioria dos homens passa a vida sem experimentar a pobreza, e ainda outros sem sentimento de dor e de doena, como Xenfilo, o Msico, que viveu 106 anos em perfeita sade) como tambm, no pior dos casos, a morte pode pr fim e atalhar, quando nos aprouver, todos os outros infortnios. Mas, quanto morte, inevitvel. Omnes eodem cogimur, omnium Versatur urna, serius ocius Sors exitura, et nos in aeter- Num exitium impositura cymbae.29 Todos ns somos empurrados para um mesmo ponto, a urna de todos ns agitada, cedo ou tarde dali sair a sorte que nos far subir na barca para nosso fim eterno. E, por conseguinte, se ela nos amedronta, um contnuo motivo de tormento que nada consegue aliviar. No h lugar de onde ela no nos venha. Podemos virar incessantemente a cabea para c e para l, como em terra suspeita:
  44. 44. quae quase saxum Tantalo Semper impendet.30 ela como o rochedo sempre suspenso sobre Tntalo.] Frequentemente nossos tribunais mandam executar os criminosos no local onde o crime foi cometido: ao longo do caminho, passeai-os por belas casas, dai-lhes tantos banquetes quanto vos aprouver, Non Siculae dapes Dulcem elaborabunt saporem, Non avium, cytharaeque cantus Somnum reducent.31 Os festins da Siclia no mais oferecero seu doce sabor, o canto dos pssaros ou da ctara no mais lhe devolvero o sono. Pensais que podem se regozijar com isso? E que a inteno final de sua viagem, estando constantemente diante de seus olhos, no lhes tenha alterado e tornado inspido o gosto por todos esses confortos? Audit iter, numeratque dies, spatioque viarum Metitur vitam, torquetur peste futura.32 Ele indaga o trajeto, conta os dias e mede sua vida pelo comprimento da estrada, est atormentado diante do mal que o espera. A morte o fim de nossa caminhada, o objeto necessrio de nossa mira; se nos apavora, como possvel dar um passo frente sem ser tomado pela ansiedade? O remdio do vulgo no pensar nela. Mas de que estupidez brutal pode vir cegueira to grosseira? pr a brida na cauda do burro, Qui capite ipse suo instituit vestigia retro.33 Ele, que decidiu andar com a cabea virada para trs. No espanta que to amide as pessoas caiam na armadilha. Amedrontamos nossa gente s em mencionar a morte, e a maioria se persigna, como diante do nome do diabo. E porque a ela feita meno nos testamentos no espereis que a ponham a mo antes que o mdico tenha comunicado a sentena final. E, ento, Deus sabe com que bom julgamento, entre a dor e o pavor, as pessoas ho de prepar-lo. Porque essas slabas atingiam muito rudemente seus ouvidos, e porque essa palavra lhes parecia de mau agouro, os romanos aprenderam a suaviz-la ou dilu-la em perfrases. Em vez de dizer ele morreu, dizem ele parou de viver, ou ele viveu. Consolam-se,
  45. 45. contanto que seja vida, ainda que passada. Da tiramos nosso finado fulano de tal. Talvez seja, como se diz, que pagar com atraso significa dinheiro na mo. Nasci entre onze horas e meio-dia do ltimo dia de fevereiro de 1533, como contamos agora, comeando o ano em janeiro.34 Justamente, faz apenas quinze dias que passei dos 39 anos. E faltam-me pelo menos outros tantos. E enquanto isso seria loucura pensar em coisa to distante. Mas qual! Jovens e velhos abandonam a vida da mesma maneira. Dela ningum sai de outro jeito seno como se tivesse entrado naquele instante, acrescentando-se a isso que no h homem to decrpito que no pense ainda ter vinte anos no corpo enquanto enxergar Matusalm diante de si. E ademais, pobre louco que s, quem te fixou os prazos de tua vida? Tu te baseias nas histrias dos mdicos. Observa, antes, a realidade e a experincia. Pelo andar comum das coisas, vives h muito tempo por favor extraordinrio. Ultrapassaste os prazos costumeiros de viver: e a prova que, faz a conta entre teus conhecidos, quantos morreram antes de tua idade, mais numerosos que os que a alcanaram? E mesmo entre aqueles que enobreceram suas vidas pela fama, faz o registro e apostarei que encontrars mais que morreram antes do que depois dos 35 anos. plenamente razovel e piedoso tomar como exemplo a prpria vida humana de Jesus Cristo. Ora, ele terminou sua vida aos 33 anos. O maior homem, simplesmente homem, Alexandre, tambm morreu nessa idade. Quantos modos de surpreender tem a morte? Quid quisque vitet, nunquam homini satis Cautum est in horas.35 Jamais o homem se protege o suficiente, de hora em hora, do perigo a evitar. Deixo parte as febres e as pleurisias. Quem jamais pensou que um duque de Bretanha devesse ser sufocado pela multido, como foi aquele na entrada do papa Clemente, meu vizinho, em Lyon?36 No viste um de nossos reis morto em um jogo? E um de seus ancestrais no morreu derrubado por um porquinho?37 De nada adiantou squilo, ameaado pela queda de uma casa, ficar em alerta, pois ei-lo abatido por uma carapaa de tartaruga, que escapou das patas de uma guia no ar; o outro morreu com um caroo de uva; um imperador, do arranho de um pente ao pentear-se; Emlio Lpido, por ter batido o p na soleira de sua porta; e Aufdio, por ter se chocado, ao entrar, contra a porta da Cmara do Conselho. E entre as coxas das mulheres, Cornlio Galo, pretor; Tigelino, comandante da Guarda de Roma; Ludovico, filho de Guy de Gonzaga, marqus de Mntua. E, exemplo ainda
  46. 46. pior, Espusipo, filsofo platnico, e um de nossos papas.38 O pobre Bbio, juiz, enquanto d prazo de oito dias a um dos litigantes, ei-lo agarrado e seu prazo de vida expirado. E com Caio Jlio, mdico que passava unguento nos olhos de um paciente, eis que a morte fecha os seus. E se devo me intrometer, um irmo meu, o capito Saint-Martin, que j dera excelentes provas de seu valor, ao jogar pela recebeu, na idade de 23 anos, uma bolada que o acertou um pouco acima da orelha direita, sem nenhuma aparncia de contuso ou ferimento; nem se sentou nem repousou, mas cinco ou seis horas depois morreu de uma apoplexia causada por esse golpe. Com esses exemplos to frequentes e to triviais nos passando diante dos olhos, como possvel conseguirmos nos desfazer do pensamento da morte, e que a cada instante no nos parea que ela nos agarra pela gola? Que importa como ela , me direis, contanto que no nos preocupemos com isso. Sou dessa opinio, e, seja qual for a maneira de nos protegermos dos golpes, ainda que sob a pele de um bezerro, no sou homem de recuar, pois basta-me passar meus dias como me apraz, e adoto o melhor jogo que posso, por menos glorioso e pouco exemplar que vos parea: Praetulerim delirus inersque videri, Dum mea delectent mala me, vel denique fallant, Quam sapere et ringi.39 Eu preferiria passar por louco ou por insensato, contanto que meus males me agradem ou ao menos que eu no os veja, a ser sensato e enraivecer- me. Mas loucura pensar em ser bem-sucedido dessa forma. Uns vo, outros vm, trotam, danam, e sobre a morte nenhuma palavra. Tudo isso muito bonito, mas quando ela chega, para eles ou para suas mulheres, filhos e amigos, surpreendendo-os de improviso e sem defesa, que tormentos, que gritos, que fria e que desespero os dominam? J vistes um dia algum to cabisbaixo, to mudado, to confuso? preciso preparar-se para ela mais cedo. E mesmo se essa despreocupao digna dos animais pudesse se instalar na cabea de um homem inteligente (o que acho totalmente impossvel), ela nos venderia muito caras suas mercadorias. Se a morte fosse um inimigo que se pode evitar, eu aconselharia empregar as armas da covardia: mas j que no se pode, j que ela vos agarra, tanto ao fugitivo e ao poltro como ao homem de honra, Nempe et fugacem persequitur virum
  47. 47. Nec parcit imbellis juventae Poplitibus, timidoque tergo;40 E, decerto, ela tambm persegue o fujo e no poupa os jarretes nem o dorso medroso de uma juventude sem valentia; e que nenhuma couraa de ao temperado vos cobre, Ille licet ferro cautus se condat in aere, Mors tamen inclusum protrablet inde caput;41 Nada adianta a este proteger-se do ferro cobrindo-se de ao, pois a morte, porm, descobrir sua cabea com capacete; aprendamos a arrost-la de p firme e a combat-la. E para comear a tirar- lhe sua grande vantagem sobre ns, tomemos um caminho totalmente oposto ao comum. Tiremos-lhe a estranheza, frequentemo-la, acostumemo-nos com ela, no tenhamos nada de to presente na cabea como a morte: a todo instante a representemos em nossa imaginao e em todos os aspectos. No tropeo do cavalo, na queda de uma telha, na menor picada de alfinete, repisemos subitamente: pois bem, e se fosse a prpria morte? E diante disso nos enrijeamos e nos fortaleamos. Entre as festas e a alegria, tenhamos sempre esse refro da lembrana de nossa condio, e no nos deixemos arrastar to fortemente pelo prazer que por vezes no nos volte memria de quantos modos essa nossa alegria est na mira da morte, e por quantos golpes ela nos ameaa. Assim faziam os egpcios, que no meio de seus festins e entre seus melhores banquetes mandavam vir a anatomia seca42 de um homem para servir de advertncia aos convivas. Omnem crede diem tibi diluxisse supremum, Grata superveniet, quae non sperabitur hora.43 Considera como teu ltimo dia aquele que brilha para ti; a hora que no esperas mais vir para ti como uma graa. incerto onde a morte nos espera, aguardemo-la em toda parte. Meditar previamente sobre a morte meditar previamente sobre a liberdade. Quem aprendeu a morrer desaprendeu a se subjugar. No h nenhum mal na vida para aquele que bem compreendeu que a privao da vida no um mal. Saber morrer liberta-nos de toda sujeio e imposio. Ao mensageiro que o miservel rei da Macednia, seu prisioneiro, lhe enviou para pedir que no o
  48. 48. levasse em seu triunfo,44 Paulo Emlio respondeu: Que ele faa o pedido a si mesmo. Na verdade, em qualquer coisa, se a natureza no ajuda um pouco difcil que a arte e o engenho avancem muito. Por mim mesmo, no sou melanclico mas sonhador: no h nada de que me haja ocupado desde sempre como dos pensamentos sobre a morte, e at na poca mais licenciosa de minha vida, Jucundum cum aetas florida ver ageret.45 Quando minha idade em flor vivia sua doce primavera. Entre as damas e os jogos, julgavam-me ocupado em digerir comigo mesmo algum cime ou a incerteza de uma esperana, enquanto eu pensava em no sei quem que fora surpreendido dias antes por uma febre alta, e em seu fim ao sair de uma festa parecida, com a cabea cheia de cio, amor e bons momentos, como eu: e eu mesmo martelava em meus ouvidos: Jam fuerit, nec post unquam revocare licebit.46 O presente j ter passado e nunca mais poderemos cham-lo de volta. No franzia mais a fronte com esse pensamento do que com outro. impossvel no sentirmos desde o incio as ferroadas dessas imaginaes, mas manejando-as e repassando-as, pelo longo caminho, sem dvida as domesticamos. Do contrrio, de minha parte estaria em contnuo pavor e frenesi, pois nunca um homem desconfiou tanto de sua vida, nunca um homem se iludiu menos com sua durao. Nem a sade, da qual gozei at o presente muito vigorosa e raramente interrompida, me prolonga sua esperana, nem as doenas a encurtam. A cada minuto parece-me que escapo de mim. E repito sem cessar: tudo o que pode ser feito um outro dia pode ser feito hoje. Na verdade, os acasos e perigos nos aproximam pouco ou nada de nosso fim; e se pensarmos, afora esse infortnio que mais parece nos ameaar, em quantos milhes de outros permanecem sobre nossas cabeas, descobriremos que o fim est igualmente perto de ns quando estamos vigorosos ou febris, no mar e em nossas casas, na batalha e em repouso. Nemo altero fragilior est: nemo in crastinum sui certior.47 Nenhum mais frgil que outro: nenhum tem o amanh mais garantido.] Para acabar o que tenho a fazer antes de morrer, todo o tempo vago me parece curto, ainda que seja trabalho de uma hora. Outro dia, algum folheava meus apontamentos e encontrou uma nota sobre alguma coisa que eu queria que fosse feita depois de minha morte: eu lhe disse, como era verdade, que, estando a apenas uma
  49. 49. lgua de casa, e saudvel e vigoroso, me apressara em escrever aquilo ali por no ter certeza de chegar minha casa. Como sou homem que continuamente est incubando seus pensamentos e guardando-os dentro de si, a qualquer momento estou preparado, tanto quanto possa estar, e nada de novo me anunciar a chegada inesperada da morte. Devemos estar sempre com as botas caladas e prontos para partir, tanto quanto de ns dependa, e sobretudo nos precavermos para que ento s tenhamos de tratar conosco mesmos. Quid brevi fortes jaculamur aevoMulta?48 Por que bravamente visar tantos objetivos quando a vida to curta? Pois teremos bastante trabalho sem outra sobrecarga. Um se queixa, mais que da morte, de que ela lhe interrompe o curso de uma bela vitria; outro, que deve partir antes de ter casado a filha, ou controlado a educao dos filhos; um sente falta da companhia da mulher, outro, do filho, que eram os principais confortos de sua existncia. Por ora estou em tal situao, graas a Deus, que posso me ir quando Lhe aprouver, sem me lamentar de coisa nenhuma. Desligo-me de tudo: minhas despedidas de cada um esto quase feitas, exceto de mim. Nunca um homem se preparou para deixar o mundo mais pura e plenamente, e desapegou-se mais completamente do que eu tento fazer. As mortes mais mortas so as mais saudveis. Miser o miser (aiunt) omnia ademit Uma dies infesta mihi tot praemia vitae.49 Infeliz que sou, infeliz, dizem eles, um s dia funesto me tira todos os bens da vida. E o construtor diz: Manent opera interrupta, minaeque Murorum ingentes.50 Restam trabalhos interrompidos e imensas muralhas que ameaam. Nada se deve prever de to longo flego, ou pelo menos com a inteno de se empolgar pensando em ver seu fim. Nascemos para agir: Cum moriar, medium soluar et inter opus.51
  50. 50. Quando eu morrer, que parta no meio de meu trabalho. Quero que se aja, que se prolonguem as atividades da vida, tanto quanto possvel; e que a morte me encontre plantando minhas couves, mas despreocupado com ela e ainda mais com minha horta inacabada. Vi morrer um que, estando nas ltimas, queixava-se incessantemente de que seu destino cortava o fio da histria que ele tinha em mos sobre o 15o ou 16o de nossos reis. Illud in his rebus non addunt, nec tibi earum Jam desiderium rerum super insidet una.52 Mas nesse ponto, eles no acrescentam isto: E o pesar por esses bens no permanecer junto com teus restos. preciso se livrar dessas crenas vulgares e nocivas. Assim como fincaram nossos cemitrios ao lado das igrejas e dos lugares mais frequentados da cidade, para acostumar, dizia Licurgo, o baixo povo, as mulheres e as crianas a no se assustarem ao ver um homem morto, e a fim de que esse espetculo contnuo de ossurios, tmulos e funerais nos advirta sobre nossa condio, Quin etiam exhilarare viris convivia caede Mos olim, et miscere epulis spectacula dira Certatum ferro, saepe et super ipsa cadentum Pocula, respersis non parco sanguine mensis;53 E mais: outrora era costume alegrar os festins com uma morte e misturar os banquetes com os espetculos cruis de combatentes, que, frequentemente atingidos pelo gldio, tombavam sobre as prprias taas, espalhando copiosamente seu sangue sobre as mesas; e assim como os egpcios, depois de seus festins, apresentavam aos convivas uma grande imagem da morte, segura por algum que lhes gritava: Bebe e alegra-te, pois morto sers como este, assim peguei o costume de ter a morte no apenas na imaginao mas continuamente na boca. E no h nada de que me informe com tanto gosto como da morte dos homens: que palavra, que rosto, que atitude tiveram; nem trecho de histrias que observe com tanta ateno. Pela quantidade de meus exemplos, parece que tenho afeio particular por essa matria. Fosse eu um fazedor de livros e faria um registro
  51. 51. comentando as mortes diversas. Quem ensinasse os homens a morrer os ensinaria a viver. Diciarcos54 fez um com ttulo parecido, mas com outro e menos til alcance. Ho de me dizer que a realidade da morte ultrapassa de to longe o pensamento que no h esgrima, por mais bela, que no se perca quando l se chega: deixai-os falar; a meditao prvia proporciona, sem dvida, grande vantagem. E depois, j no significa bastante chegar l sem vacilao e sem inquietao? H mais: a