1. OS ENSAIOS MICHEL EYQUEM, SEIGNEUR DE MONTAIGNE, nasceu em
1533, filho e herdeiro de Pierre, Seigneur de Montaigne (dois
filhos anteriores morreram aps o nascimento). Foi educado falando
latim como primeira lngua, e sempre conservou uma disposio de
esprito latina; embora conhecesse o grego, preferia usar tradues.
Depois de estudar direito, finalmente tornou-se conselheiro do
Parlamento de Bordeaux. Casou-se em 1565. Em 1569, publicou a sua
verso francesa de Theologia naturalis, de Raymond Sebond; o seu
Apologie apenas em parte uma defesa de Sebond, em que estabelece
limites cticos para o raciocnio humano sobre Deus, o homem e a
natureza. Em 1571, mudou-se para sua terras em Montaigne,
dedicando-se leitura, reflexo e composio de seus Ensaios (primeira
verso, 1580). Montaigne tinha averso ao fanatismo e s crueldades do
perodo das guerras religiosas, mas apoiava a ortodoxia catlica e a
instituio monrquica. Duas vezes foi eleito prefeito de Bordeaux
(1581 e 1583), cargo que ocupou por quatro anos. Morreu em
Montaigne, em 1592, enquanto preparava a edio final, e a mais rica,
de seus Ensaios. ROSA FREIRE DAGUIAR nasceu no Rio de Janeiro. Nos
anos 1970 e 1980 foi correspondente em Paris das revistas Manchete
e Isto. Retornou ao Brasil em 1986 e no ano seguinte traduziu seu
primeiro livro, para a editora Paz e Terra: O conde de Gobineau no
Brasil, de Georges Raeders. Em mais de vinte anos de atividade,
verteu mais de sessenta ttulos nas reas de literatura e cincias
humanas. Alm do francs, idioma do qual transps para o portugus,
entre outros, Cline, Orsenna, Lvi-Strauss, Debret e Balzac, traduz
do espanhol e do italiano, lnguas que tambm aperfeioou durante os
anos de jornalista na Europa. Sua lngua de preferncia, no entanto,
mesmo o idioma de Montaigne, autor que ela pretendia traduzir desde
os anos 1990, no s pelo contedo humanista dos Ensaios mas pelo
desafio de traduzir um texto de quatro sculos de modo a conquistar
o leitor de hoje. Acredita que o tradutor um ser obcecado e
duvidante e que uma boa traduo depende, tambm, da empatia entre
tradutor e autor. Entre os prmios que recebeu esto o da Unio Latina
de Traduo Cientfica e Tcnica (2001) por O
2. universo, os deuses, os homens (Companhia das Letras), de
Jean-Pierre Vernant, e o Jabuti (2009) pela traduo de A elegncia do
ourio (Companhia das Letras), de Muriel Barbery. MICHAEL ANDREW
SCREECH nasceu em 1926. membro honorrio do Wolfson College e
professor emrito do All Souls College, de Oxford (fellow e capelo
em 2001-3), membro da British Academy, da Royal Society of
Literature, da University College, Londres, e membro correspondente
do Institut de France. Trabalhou muito tempo no comit do Warburg
Institute como professor de lngua e literatura francesa na
University College, Londres, at sua eleio para o All Souls, em
1984. especialista em Renascimento, de renome internacional. Editou
e traduziu os Ensaios completos de Montaigne para a Penguin
Classics e, num volume separado, o ensaio Apologie de Raymond
Sebond. Seus outros livros incluem Erasmus: ecstasy and the praise
of folly (Penguin, 1988), Rabelais, e Montaigne and melancholy
(Penguin, 1991) e, mais recentemente, Laughter at the foot of the
cross (Allen Lane, 1998); todos so reconhecidamente estudos
clssicos. Trabalhou com Anne Screech em Erasmus annotations on the
new testament. Michael Screech Cavaleiro da Ordre du Mrite (1982) e
Cavaleiro da Lgion dHonneur (1992). Em Oxford, ordenou-se dicono em
1993 e padre em 1994. ERICH SAMUEL AUERBACH nasceu em 1892 na
Alemanha, em uma famlia burguesa de origem judia. Estudou direito
em Heidelberg e, em 1914, ingressou no curso de filologia romnica
em Berlim. Em 1921, defendeu sua tese de doutorado sobre a tcnica
da novela no Renascimento francs e italiano. Em 1923, comeou a
trabalhar na Biblioteca Estatal Prussiana, em Berlim, e seis anos
depois tornou-se professor de filologia romnica na Universidade de
Marburg. desse perodo um de seus estudos mais importantes, Dante,
poeta do mundo secular. Em 1935, durante o regime nazista na
Alemanha, foi demitido do cargo em Marburg. Exilado, passou a
lecionar na Universidade de Istambul. Foi na Turquia, durante a
Segunda Guerra Mundial, que escreveu a coletnea de ensaios Mimesis:
a representao da realidade na literatura ocidental (1946),
considerada uma das mais importantes obras de crtica literria do
sculo XX. Ao final da Segunda Guerra, emigrou para a Amrica. Nos
Estados Unidos, foi
3. professor da Universidade da Pensilvnia, pesquisador em
Princeton e professor de teoria literria e literatura comparada na
Universidade Yale. Faleceu, em New Haven, Connecticut, em outubro
de 1957.
4. MICHEL DE MONTAIGNE Os ensaios Uma seleo Organizao de M. A.
SCREECH Traduo e notas de ROSA FREIRE DAGUIAR
5. Sumrio Introduo Erich Auerbach Nota da tradutora OS ENSAIOS
Ao Leitor LIVRO PRIMEIRO I Por meios diversos se chega ao mesmo fim
VIII Sobre a ociosidade XV Sobre a punio da covardia XVII Sobre o
medo XIX Que filosofar aprender a morrer XXV Sobre a educao das
crianas XXVI loucura atribuir o verdadeiro e o falso nossa
competncia XXX Sobre os canibais XXXI Que preciso prudncia para se
meter a julgar os decretos divinos XXXVIII Sobre a solido LVI Sobre
as oraes LVII Sobre a idade LIVRO SEGUNDO I Sobre a inconstncia de
nossas aes II Sobre a embriaguez V Sobre a conscincia
6. VIII Sobre a afeio dos pais pelos filhos XI Sobre a
crueldade XXXII Defesa de Sneca e de Plutarco XXXV Sobre trs boas
esposas XXXVII Sobre a semelhana dos filhos com os pais LIVRO
TERCEIRO II Sobre o arrependimento III Sobre trs relaes V Sobre
versos de Virglio VI Sobre os coches XI Sobre os coxos XIII Sobre a
experincia Cronologia Outras leituras ndice remissivo
7. O escritor Montaigne1 ERICH AUERBACH Montaigne era filho de
pai gasco e me judia espanhola. A famlia era rica e estimada: o av
Eyquem, comerciante de peixes em Bordeaux, comprara o feudo
nobilirio de Montaigne, na Guyenne; o pai, soldado e nobre, alcanou
o cargo de prefeito de Bordeaux. Michel seu sucessor em todos os
aspectos exteriores: herdeiro do patrimnio, soldado, administrador,
viajante, bom pai de famlia e finalmente maire de Bordeaux. Tambm
quanto ao fsico filho de seu pai, de quem herdou a constituio
robusta, o temperamento sanguneo e a predisposio litase. Mas os
tempos haviam se tornado mais difceis. O pai viveu na poca dourada
das campanhas militares na Itlia; o filho, em meio terrvel
turbulncia causada pela crise huguenote, a ltima a ameaar a
estabilidade nacional da Frana. A questo religiosa teve incio na
dcada de 1550, poca em que Montaigne mal atingira a idade adulta, e
terminou por volta de 1600, com a vitria de Henrique IV, poucos
anos aps a morte do escritor. Na segunda metade do sculo XVI, a era
de Filipe da Espanha e Elizabeth da Inglaterra, a Frana palco de um
sangrento turbilho de acontecimentos e de uma inquietante anarquia
dos nimos. Sobre uma base to instvel como essa, Montaigne levou uma
vida cujo equilbrio jamais foi abalado. Em sua juventude, talvez
tenha conhecido a ambio e a ansiedade, talvez a paixo e certamente
a amizade em sua expresso mais autntica. Mas na poca em que o
conhecemos, isso h muito j passado. Com 38 anos, ele se recolhe
vida privada, e da em diante sua atividade externa restringe-se
defesa de seu patrimnio. Administra-o com prudncia, sem medo nem
rigidez, por vezes cedendo um pouco, com esprito e sem uso da fora,
mas de modo firme e resoluto. Qual era o patrimnio que devia
resguardar? Primeiro, suas posses, sua famlia e sua segurana. Mas
isso o de menos: defendia-os de modo sereno e cordial, com alguns
gestos hbeis. divertido ler como consegue desarmar
8. os bandos de saqueadores com sua postura digna e segura, com
seu simples modo de agir. Mas se o fardo se fizesse pesado demais,
se tais obrigaes viessem a lhe exigir muito, estaria disposto a
abandon-las. O verdadeiro objeto de sua defesa seu cerne interior,
o esconderijo de seu esprito, a arrire-boutique que soube conservar
para si. Il faut faire comme les animaux, qui effacent la trace la
porte de leur tanire.2 preciso fazer como os animais, que apagam
seu rastro na porta da toca. E isso no vale apenas para sua vida
exterior. Montaigne era um homem de corao aberto, expansivo e
hospitaleiro; no recusava a aventura; no se abandonava, mas
prestava-se de bom grado. Estava atento s novidades e chegava mesmo
a ser um pouco esnobe; passava-se por mais nobre do que era de fato
e sabia fazer notar da maneira mais discreta possvel sua elevada
posio social. Sua autocrtica e autoironia esto cheias de um orgulho
simptico. No de forma alguma um eremita; apenas um homem reservado,
que por vezes gosta de estar em boa companhia. Mas a arrire-
boutique de seu ser interior inacessvel: a est sua verdadeira
morada, ali se sente em casa; em prol da segurana e do conforto
desse refgio concentra-se toda a atividade do homem mais sagaz de
seu tempo. Montaigne possua um sentido pronunciado de decoro e
lealdade. Tivera um pai bom e inteligente, uma infncia feliz e uma
juventude livre; no era prprio de seu temperamento ter pensamentos
malevolentes ou agir de modo baixo, no esperava que os outros o
fizessem e acabava por se enganar, como vira acontecer a seu pai.
Fazia parte dessa lealdade servir ao rei, ser agradvel aos amigos e
proteger a prpria famlia; era preciso ser humano e espontneo com os
inferiores e franco e respeitoso com os superiores. Fazia parte da
lealdade respeitar as regras e os costumes, e seria insensatez
acreditar que com uma conduta oposta se pudesse causar algo alm de
desordem. No era conveniente, e seria mesmo intil, incmodo e
inoportuno, diferenciar-se de modo notvel dos outros homens da
mesma classe, faltar com os deveres ou mesmo assumir
voluntariamente encargos descabidos. Talvez tambm lhe fosse
agradvel comprovar como se pode exercer um cargo ou administrar um
negcio a que no se pode fugir de forma to boa ou melhor do que os
outros sem para isso ter que se esforar ou dedicar-se em excesso. A
condio era essa. Si quelquefois on ma pouss au maniement daffaires
estrangres, jay promis de les prendre en main, non pas au poulmon
et au foye.3 Se por vezes me compeliram administrao de negcios
alheios, prometi manej-los com cuidado, mas sem lev-los a peito.]
Montaigne agiu desse modo mesmo quando, numa poca difcil, foi quase
coagido a se tornar maire de Bordeaux. Foi um bom pai para sua
famlia, um
9. francs leal e um homem versado nas grandes questes de seu
tempo; se no veio a ser um personagem de destaque na corte, isso
deveu-se to somente a ele. No o foi porque no quis. Defendia-se
contra tudo que lhe impunha deveres alm do necessrio: frente ao
rei, aos amigos, aos burgueses de Bordeaux, sua famlia. Defendia-se
contra vnculos coercivos com a mesma obstinao e gentileza com que
se defendia contra os inimigos externos. Montaigne defende sua
solido interior. Mas o que significa isso para ele? O que a torna
to valiosa? A solido interior sua prpria vida, seu existir em si e
consigo mesmo, sua casa, seu jardim e sua cmara de tesouros. Para l
carrega tudo o que conquistou de precioso em suas andanas pelo
mundo; l elabora e impregna tudo com o tempero de seu ser. O que e
a que serve essa solido? No se trata de uma fuga do mundo no
sentido cristo, e tampouco de cincia ou filosofia. algo que ainda
no tem nome. Montaigne abandona-se a si mesmo. D livre curso a suas
foras interiores mas no somente ao esprito: o corpo tambm deve ter
voz, pode interferir em seus pensamentos e at nas palavras que ele
se pe a escrever. Comparados a ele, os grandes espritos do sculo
XVI os promotores do Renascimento, do Humanismo, da Reforma e da
cincia que criaram a Europa moderna so todos, sem exceo,
especialistas. Telogos ou fillogos, astrnomos ou matemticos,
artistas ou poetas, diplomatas ou generais, historiadores ou
mdicos: em sentido lato, so todos especialistas. Alguns se
especializaram em vrias reas; Montaigne, em nenhuma. No
absolutamente um poeta. Estudou cincias jurdicas, mas era um
jurista indiferente, e suas declaraes sobre os fundamentos do
direito, embora significativas de outro ponto de vista, no possuem
nenhum valor especfico para a matria. Toda a sua atividade prtica
no tem nenhuma relao profissional com sua produo intelectual.
Muitas vezes aquela fornece o material para seus pensamentos. Mas
tais pensamentos no so de grande importncia para nenhuma disciplina
especfica; no tm carter jurdico, nem militar, nem diplomtico, nem
filolgico, embora retirem de todos esses campos e outros mais sua
encantadora concretude. E tambm no so propriamente filosficos:
falta-lhes todo sistema ou mtodo. Montaigne permanece leigo mesmo
onde parece compreender algo do assunto em pedagogia, por exemplo.
difcil acreditar que ele quisesse aprofundar-se seriamente numa das
matrias de que trata casualmente. E, seja como for, suas realizaes
no dizem respeito a nenhuma delas. Ainda hoje difcil definir em que
consistem, e quase incompreensvel que tenham alcanado repercusso em
sua poca. Pois toda realizao necessita de um destinatrio
10. que lhe d algum valor, todo sucesso necessita de um pblico.
O pblico dos Ensaios de Montaigne no existia, e ele no podia supor
que existisse. No escrevia nem para a corte nem para o povo, nem
para os catlicos nem para os protestantes, nem para os humanistas
nem para alguma outra coletividade j existente. Escrevia para uma
coletividade que parecia no existir, para os homens vivos em geral
que, como leigos, possuam uma certa cultura e queriam compreender
sua prpria existncia, isto , para o grupo que mais tarde veio a se
chamar de pblico culto. At esse momento, a nica coletividade
existente sem considerar as guildas, os estamentos e o Estado era a
comunidade crist. Montaigne dirige-se a uma nova coletividade e, ao
faz-lo, ele tambm a cria: a partir de seu livro que ela cobra
existncia. Mas Montaigne no tinha conscincia disso; dizia escrever
para si mesmo, com a inteno de investigar e conhecer a si mesmo, e
para seus amigos, a fim de que dele conservassem uma imagem clara
aps sua morte. Por vezes foi mais alm, e afirmou que num nico
indivduo pode-se encontrar a constituio de todo o gnero humano.
Seja como for, ele mesmo seu nico objeto, e seu nico fito aprender
a viver e a morrer isso o mais importante, pois para ele quem
aprendeu a morrer sabe tambm como viver. A ideia soa algo
filosfica, e em alguma instncia de fato o . Mas falar de uma
filosofia de Montaigne um equvoco. No h sistema algum; ele mesmo
afirma, por exemplo, que intil aprender a morrer, pois a natureza
encarrega-se disso nossa revelia; e falta-lhe tambm uma verdadeira
vontade de ensinar como a de Scrates (que de resto bem se pode
comparar a ele) e, portanto, uma vontade de alcanar uma validade
objetiva. Aquilo que escreve dirige-se a ele e vale apenas para
ele; se outros descobrirem a alguma utilidade e prazer, tanto
melhor. A utilidade e o prazer que se podem auferir dos Ensaios tm
um aspecto peculiar, antes desconhecido. No so de um gnero
propriamente artstico, pois no se trata de poesia, e o objeto muito
prximo e concreto para que o efeito possa permanecer puramente
esttico. Mas seu carter tambm no apenas didtico, uma vez que
conservam sua validade ainda que se tenha uma opinio diversa melhor
dizendo, difcil encontrar uma doutrina da qual se possa discordar.
Na maioria das vezes, seu efeito semelhante ao de algumas obras da
Antiguidade tardia, de carter histrico-moral, maneira de Plutarco
um dos autores prediletos de Montaigne. Mas falta-lhe uma orientao
racional unitria, at mesmo dentro de cada um dos captulos. Trata-se
de exemplos que so constantemente ponderados, verificados e
apreciados. Poucos so os resultados, e estes de qualquer modo no
exigem a concordncia do leitor. Mas a prpria forma como o assunto
vem exposto
11. suficiente para enred-lo. Montaigne narra como vive, como
ter de morrer e como comea a conformar-se com isso; narra tambm o
que viu e ouviu de outros a esse respeito. preciso escut-lo, pois
ele narra bem. No se sabe mais o que acabou de dizer, e ele j passa
a um assunto totalmente diverso, dando a impresso de que em breve
dir algo absolutamente novo, a propsito de uma palavra qualquer.
Sem o perceber, o leitor envolvido por sua ndole mutvel e fluida,
cheia de nuanas e contudo sempre plcida. Cham-la de ctica seria
impor-lhe uma sistematizao demasiado ampla. No entanto, ela forte e
nos faz prisioneiros, como faz o mar ao nadador ou o vinho ao
bebedor. Muito antes de aprisionar o leitor, cativara o prprio
Montaigne e o obrigara a escrever. Pois, a bem da verdade, ele no o
desejara, sendo por demais modesto e orgulhoso para reconhecer uma
tal ocupao como profisso. Si jtais faiseur de livres4 Se eu fosse
fazedor de livros] assim ele comea uma frase, igualmente notvel sob
outros aspectos. E, no entanto, ele foi o primeiro faiseur de
livres na acepo atual nem poeta, nem erudito, mas autor de livros:
escritor. Num nvel inferior, essa figura j havia despontado:
autores de literatura popular e narradores na tradio das fbulas,
lendas, exempla, fabliaux, tendo como limites um tanto imprecisos o
poeta, de um lado, e o moralista doutrinador, de outro. Mas
enquanto no veio a ser uma coisa nem outra, permanecendo a meio
caminho entre ambos, esse tipo de homem no conquistou posio social
definida nem reconhecimento intelectual. Rabelais j fora um
caso-limite e, enquanto tal, um precursor de Montaigne. Esse homem
independente e sem profisso determinada criou assim uma nova
profisso e uma nova categoria social: o homme de lettres ou
crivain, o leigo na condio de escritor. Conhecemos o caminho
percorrido por essa profisso, primeiro na Frana e depois tambm em
outros pases de cultura: tais leigos tornaram-se os verdadeiros
intelectuais, os representantes e guias da vida intelectual, e
gozam hoje em dia de um tal reconhecimento que Julien Benda os
chamou de clercs, o mesmo nome, portanto, daqueles a quem
originalmente se opunham, os clerici ou religiosos. Isso equivale
ao reconhecimento de que os escritores herdaram destes ltimos o
legado e o posto, isto , a hegemonia intelectual na Europa moderna.
De Montaigne a Voltaire h uma ascenso contnua; no sculo XIX, eles
ampliam sua posio e alcanam repercusso sobre uma base mais larga, o
jornalismo, e apesar de alguns sinais de decadncia observados h
tempos, bastante provvel que tambm no sculo XX eles venham a manter
sua funo de voz do mundo. Quais so os traos caractersticos do
escritor, encarnados pela primeira vez por Montaigne?5 Duas
caractersticas negativas j foram assinaladas: falta
12. de especializao e de mtodo cientfico. Ambas so percebidas
apenas pelo fato de que as obras do escritor tratam de objetos do
conhecimento que antes costumavam ser analisados de forma metdica
exclusivamente por especialistas. A quebra da especializao nos
principais campos do saber fora preparada pela Reforma; nesses
aspectos, as obras reformistas na Frana, em especial a verso
francesa da Institution de la religion chrtienne, so precursoras de
Montaigne. Os reformadores dirigiam-se aos leigos, pois viam- se
obrigados a tanto os leigos esperavam um esclarecimento que lhes
fosse compreensvel. Mas os prprios escritores reformistas eram em
sua maioria telogos, portanto especialistas, e seus leitores no
eram leigos em geral, mas leigos cristos. O leigo Montaigne foi o
primeiro a escrever de modo leigo sobre temas importantes; muito
embora na verdade no escrevesse para ningum a no ser para si mesmo,
formou uma comunidade de leigos, e seu livro tornou-se um livro
para leigos. Ele escreveu o primeiro livro da autoconscincia leiga.
Mas apenas gradualmente que sua obra alcana tal posio. No incio,
era uma espcie de comentrio a suas leituras. Lia muitssimo: os
escritores antigos, os italianos, seus contemporneos sobretudo
historiadores e moralistas. Seu pai, da mesma gerao dos defensores
do ideal humanista, fizera com que aprendesse o latim antes do
francs; era culto, possua a tcnica da leitura e lia com critrio e
sensibilidade. Veio-lhe a ideia de anotar suas prprias experincias
relativas ao que andava lendo, compar-las com o que havia lido,
resgatar outras passagens de leituras precedentes. Desse modo
surgiu uma espcie de raciocnio multifacetado sobre o objeto, que no
teria ido alm disso, no fosse o impulso de seu entusiasmo pessoal,
que o segredo e a marca do grande talento. Seu talento algo parte.
Creio que sua modstia a respeito totalmente sincera, e que apenas o
sucesso e o prprio prazer com o que escrevia tornaram-no
verdadeiramente consciente de seu talento.6 Este era, de fato,
muito diferente do que at ento se tinha como perfeio estilstica. No
so apenas o carter leigo e a ausncia de ordem explcita em sua criao
que espantam, mas tambm e sobretudo seus aspectos positivos. Ele
viveu na poca de Tasso (que considerava louco), da Pliade e do
esplendor literrio espanhol; reinavam nesse tempo o Humanismo e uma
espcie de petrarquismo maneirista, uma forte tendncia deliberada
artificialidade formal. O talento de Montaigne consiste em sua
capacidade de desmascaramento. Ele diz as coisas mais concretas de
modo extremamente subjetivo, mas sempre telles quelles. No h
eufemismos, raras metforas desviam a fantasia, os perodos so pouco
trabalhados. Na construo de suas frases, o sentido causal, final,
consecutivo ou concessivo das partes
13. manifestado muitas vezes no pelas conjunes, mas pela
entonao; com toda razo ele se compara a Tcito. O sentido cria as
conexes muito mais que os conectivos sintticos criam o sentido.
certo que h frases longas, mas no um burilamento consciente dos
perodos. E as palavras so correntes e despojadas, ou pelo menos
prescindem de qualquer seleo com base em critrios estticos. Se o
francs no basta diz ele , recorra-se ao gasco. No resulta, porm,
uma abundncia catica como em Rabelais, pois Montaigne no possui
tendncias antiestticas ou esttico- revolucionrias,7 no se gaba de
sua riqueza lxica e, nessa ausncia de preconceitos lingusticos, no
busca nada seno a expresso que faz justia ao objeto: o resultado a
mais perfeita nudez das coisas. E como ele mesmo seu objeto, ele
prprio aparece perfeitamente nu; no houvesse observado algumas
regras de decncia e o fez apenas a contragosto, como confessa no
prefcio , haveria antecipado muito daquilo que ensinaram alguns
escritores de nosso sculo. Sem pthos, sem artifcios, com calma e
uma certa satisfao, somos apresentados ao que Montaigne foi, sentiu
e pensou. Sua transparncia radiante. Mas isso se deu somente aos
poucos. Apenas quando se torna consciente de suas foras o escritor
desprende-se do texto lido, faz-se mais ousado e rico na expresso,
fala de si mesmo com mais mincia e menos resguardo. Compraz-se em
seus prprios pensamentos, estes tornam-se ainda mais variados e, em
meio multiplicidade e confuso, at mais coerentes. Diz tudo que lhe
vem cabea, certo de que a coeso de sua personalidade ser forte o
bastante para manter a unidade do todo. D- nos um diagrama de seu
eu interior de que faz parte tambm sua aparncia exterior, tal como
vista de dentro. O contedo de sua conscincia a existncia de Michel
de Montaigne com seu fim inevitvel, a morte que aguarda o termo
dessa existncia. Montaigne foi um cristo catlico; junto a seu leito
de morte achava-se um padre catlico. Nutria antipatia pelos
huguenotes, pois era inimigo de distrbios e no acreditava que as
revolues pudessem dar bons frutos. Suas ideias quanto incerteza de
todo conhecimento posio que seria por demais taxativo e dogmtico
caracterizar como ceticismo terminam quase sempre com o apelo
revelao e f. Mas temos motivos para supor que no fosse crente. To
somente para supor, pois no cabe a ns afirm-lo. Mas possumos seu
livro, e sobre o livro podemos muito bem formar um juzo, como
lembrou corretamente Sainte-Beuve. No obra de um crente. Nele, a f
tem seu lugar assegurado, mas no restante discute-se a vida e a
morte como se a f no existisse. Montaigne diz coisas profundas e
pertinentes sobre o catolicismo, entre as quais certas questes que
depois dele foram
14. logo esquecidas ou passaram para segundo plano, a exemplo
da relao entre corpo e alma.8 Mas dificilmente se encontra nos
Ensaios um vestgio da esperana ou da redeno. Montaigne escreveu
sobre as religies em geral como se no fossem mais do que usos e
costumes, e salientou com veemncia suas alteraes, sua
instabilidade, seu carter de obra humana. Viu-se nisso uma crtica
dissimulada ao cristianismo, e sem dvida essas passagens clebres
contriburam para tal viso. Mas no podemos ter certeza de que o
prprio Montaigne tenha extrado tais consequncias; talvez ns,
injustamente, infiramos do efeito posterior, que nos conhecido, o
propsito deliberado daquele que o ensejou. Considero perfeitamente
possvel que Montaigne tenha omitido uma concluso anloga para a
religio crist no tanto por diplomacia e conservadorismo poltico, e
sim porque jamais o teria feito, porque obedecendo s formalidades e
no tentando nem presumindo- se capaz de negar a revelao considerava
a si mesmo um cristo catlico. Chegou mesmo a submeter seu livro
censura romana, que inicialmente o julgou inofensivo, embora com
algumas reservas. Seja como for, o esprito dos Ensaios
absolutamente no cristo, pois tratam da morte como se no houvesse
redeno nem imortalidade.9 O autor de um tal livro no conhece o
Redentor, e praticamente impossvel imagin-lo rezando. O que escreve
so as observaes de um homem honesto e sensvel, no de um crente. Sua
atitude em relao morte comparvel de Scrates e da Antiguidade
tardia; distingue-se desta ltima pela completa falta de nfase, e de
ambas pela tangibilidade com que a morte representada. Montaigne ,
mais do que ningum, um homem desprovido de retrica e implacvel
contra o palavreado dissimulador. Seu livro trata com espantosa
concretude da morte de Montaigne, da prpria morte, que ele
pressente e aguarda. Sente-a dentro de si, e ela o inimigo contra o
qual, enfim, toda defesa ser intil. Ela o arrancar de seu astucioso
esconderijo, da arrire-boutique, e o lanar ao Nada como fez a todos
antes dele. Mas ao menos no ir assombr-lo inutilmente enquanto no
chegar a hora. Montaigne inteligente e corajoso, sabe que de nada
serve desviar o olhar e fugir. Tenta fazer o contrrio: pensa
continuamente na morte, da forma mais concreta possvel, e tenta
habituar-se a ela do mesmo modo como se conduz um cavalo ao
obstculo diante do qual ele refuga. Montaigne chama isso de flatter
la mort, lisonjear a morte. E o consegue. Habitua-se tanto a ela
que a morte torna-se um pedao de sua vida; com ela se familiariza,
fazendo com que no lhe inspire mais medo; ou melhor, o medo da
morte apoderou-se dele de tal forma que j no o sente mais. E ento
lhe vm as ideias mais grandiosas, duplamente sinistras em sua
rispidez fria e antirromntica: a vida como uma
15. cavalgada; a despedida das pessoas prximas, cerimnia
tediosa e irritante; a morte numa hospedaria, entre estranhos a
quem se pode pagar pelos ltimos servios em dinheiro, sem outras
obrigaes, de modo a no perturbar a tranquilidade da morte. Tais
coisas povoam sua fantasia, e ele as expe com a mesma desenvoltura
com que fala do efeito da doena em sua urina. Estar em viagem, a
caminho esse o sentimento que jamais deve t-lo abandonado, e desse
terreno nascem as palavras que resumem toda a sua obra: Je ne
peinds pas lestre, je peinds le passage.10 No pinto o ser, pinto a
passagem. Mas a familiaridade com a morte no extingue a vida, no
diminui a capacidade de instalar-se na arrire-boutique de modo
aconchegante e confortvel. Montaigne pode ser comparado a um homem
que desfruta os prazeres da vida, consciente de que lhe resta pouco
tempo para goz-los; com fervor redobrado, com o talento
organizativo que s a necessidade capaz de criar, ele desfruta e
saboreia o tempo de sua existncia. Seu desfrute da vida um desfrute
de si mesmo, e no sentido mais imediato, mais animal. o prazer de
respirar, comer, beber e digerir, de morar e viajar, de ser
proprietrio e ter uma posio social. Tudo o que sinal de sua prpria
vida deixa-o satisfeito, e tudo o que lhe pertence deve servir para
tornar mais cmoda sua morada interior. At mesmo sua doena.
Montaigne sofre de clculos renais que lhe causam clicas terrveis.
Mas sabe como adaptar-se situao: firma um pacto com a doena e a
lisonjeia com palavras e pensamentos, a exemplo do que faz com a
morte. No final, sente- se vontade em sua presena; ela passa a ser
uma amiga ntima. A doena uma propriedade, uma parte de si mesmo, e
talvez no a pior. Ensina-o a desfrutar a sade. Que sensao
maravilhosa quando a crise termina! Por algum tempo est livre e
pode comer, beber e mover-se a seu bel-prazer. Com efeito, no segue
as prescries mdicas, no confia na medicina e se recusa a obter a
sade custa dos prazeres, o nico motivo pelo qual vale a pena
possu-la. Outras pessoas de sua idade encontram-se em pior estado.
Talvez as dores que sofrem sejam menores, mas em compensao esto
continuamente oprimidas pela doena, ao passo que ele, Montaigne,
sente-se perfeitamente saudvel enquanto a crise no chega. Antes de
adoecer, tinha medo da doena; conhecia sua predisposio hereditria e
a temia. Agora que a doena se manifestou, descobre que ela no to
ruim. Talvez o mesmo acontea com a morte. Mas o aspecto fsico
apenas uma parte e um estmulo ao desfrute de si mesmo. Montaigne
sente-se viver, percebe-se, embebe-se de sua prpria existncia. O
perigo sempre iminente de deparar com a morte d-lhe uma
16. magnfica coeso, solda-o internamente, e faz com que se
sinta vontade em si mesmo. Impede, alm disso, que suas foras se
dissipem, e atualiza constantemente suas caractersticas mais
pessoais. Aquilo que Montaigne , ele o em vista da morte. Se deseja
possuir a si mesmo a cada instante, porque este pode ser o ltimo. A
calma e a coragem de seu temperamento impedem que o prazer se torne
espasmdico. Encontra-se, porm, sempre concentrado e aguerrido, no
para fazer ou obter alguma coisa, mas para existir. Os Ensaios so
apenas um dos sintomas de sua existncia. A existncia de Montaigne
consiste naquilo que lhe foi dado viver. No tenta melhor-la ou
modific-la, apenas aceita-a, suporta-a como ela . Os costumes, as
instituies, os ordenamentos dos homens so todos igualmente tolos e
extravagantes. Mudam conforme suas opinies e no so estveis nem
verdadeiramente legtimos. No possuem outro fundamento seno o prprio
fato de sua vigncia naquele dado momento, ou seja, o hbito. Quem
tem conscincia disso no se torna revolucionrio, assim como no so
revolucionrias as pessoas obtusas e sem discernimento, que aceitam
os dados da realidade por pura contumcia, e s quais Montaigne
deseja por vezes assemelhar-se. Os revolucionrios e os agitadores
esto no meio: so os medocres, que percebem a tolice e a injustia do
presente, mas no se do conta de que toda situao nova seria
igualmente injusta e tola, e de que os distrbios do processo de
transformao, com suas lutas e desordens, no provocam, num primeiro
momento, nada alm de uma perda incontestvel. Ele, Montaigne,
mantm-se calmo e amolda-se ao presente, por fora de seu bom-senso e
de seu sentimento de lealdade; admira Scrates, que se submeteu a
seus juzes e s leis de Atenas, embora estas lhe fossem injustas.
Para Montaigne isso fcil; sua posio cmoda, se pensarmos como so
desfavorveis os tempos. Ele no busca o martrio, e tentaria
esquivar-se com todos os seus meios de um mal evitvel. Mas no temos
motivos para duvidar de que teria permanecido fiel a sua opinio
mesmo se esta se voltasse contra ele. Assim como se encontra, sua
existncia parece-lhe bastante aceitvel. Quando no est em seu
aposento na Torre de Montaigne, viaja pela Frana, Itlia e Alemanha,
sempre a cavalo, sem se preocupar com as clicas. Grandes senhores e
reis desejam seus servios; ele os recusa de modo corts ou consente
com reservas. Tem uma mulher honrada e uma filha, que no lhe do
trabalho. Tem alguns vizinhos agradveis e outros tantos amigos. As
pessoas gostam de ler o que lhe d vontade de escrever, e desde
quando se decidiu a imprimir suas ideias, foram sempre necessrias
novas edies. Si jtais faiseur de livres Em Paris, encontra por fim
uma amiga, uma jovem mulher, a senhorita de Gournay, que o ama e o
admira; ela se torna sa fille
17. dalliance e, depois da morte de tienne de la Botie, passa a
ser a pessoa que lhe mais prxima. Ela por ordem nos papis e nos
textos que um dia ele deixar como seu legado. O escritor sente-se
satisfeito. Tudo dever permanecer como est, o mximo que for
possvel. Cada hora vivida uma hora conquistada. Montaigne no
escreve muito, cerca de mil pginas em vinte anos. Rev o que
escreve, acrescenta, risca e corrige. Diz jamais ter corrigido
nada, embora o manuscrito conservado em Bordeaux na verdade, no um
manuscrito, mas um exemplar da edio de 1588 anotado e revisado por
ele prprio deixe claro que faz tambm correes de natureza
estilstica. Examina-se, deixa que as diferentes partes de seu
esprito atuem livremente, apresenta-se a si mesmo. Sobre todos os
temas formula suas prprias ideias, e estas so muitas vezes
dubitativas e hesitantes. Mas o caminho que o leva dubiedade e
hesitao foi aberto por ele mesmo; foi ele que formulou pela
primeira vez o problema ou a combinao de problemas de tal ou qual
modo. Sua independncia despida de preconceitos quase assustadora, e
to mais eficaz na medida em que no objeto de sua vanglria. Diz o
que lhe vem cabea, e ento o pe de lado. Mas o estmulo alcana o
leitor e pode ento facilmente condensar-se num complexo de ideias
muito mais tosco, sistemtico e ativo do que a substncia sutil,
quase inefvel de Montaigne. Em seus discursos moderados, por vezes
um pouco prolixos, esconde-se um estimulante, um elixir da vida ou
da morte, como se preferir. o veneno da liberdade, do afastamento
de toda realidade concreta, da autonomia humana. Em sociedade,
junto aos outros, Montaigne comedido e observa os costumes; sozinho
consigo mesmo, ele diferente. Usos, costumes, leis e religies
desaparecem. Estou sozinho, a morte certa. No estou em casa, estou
em viagem no sei de onde venho nem para onde vou. O que possuo, o
que me resta? Eu mesmo. Comea ento a destacar-se uma palavra
singular, motivo de vrias interpretaes equivocadas e superficiais:
virtus, la vertu, a virilidade ou virtude. Naturalmente, ele retoma
a palavra e a ideia da Antiguidade tardia, de Sneca e Plutarco, da
tradio, estoica com tudo que lhe prprio: o elogio comparativo das
mortes de Scrates e Cato, a massa de exemplos patticos dos encmios
antigos, que ele expe e avalia com uma seriedade bastante ingnua.
Montaigne, pelo menos num primeiro momento, faz o culto humanista
da virtude, e alguns crticos nada criteriosos, incapazes de
harmonizar a rigidez estoica com a nudez indiscreta e quase
indecente de seu autorretrato, inventaram uma evoluo das ideias do
escritor, que o levaria do estoicismo ao ceticismo. bem verdade que
o desdobramento de sua personalidade
18. deu-se apenas gradualmente, mas ambos os termos adaptam-se
mal a Montaigne: ctico insuficiente e estoico errneo.11 Ele um
soldado e um homem dotado de fora fsica, apesar da doena; quando
necessrio, corajoso e indiferente s privaes. Mas no h nele o menor
vestgio do rigor estoico, da autonomia da razo, da identidade entre
natureza e razo ou da ascese moral. Ele lembra com saudade de sua
juventude e recusa-se a apreciar a sabedoria da velhice.
Rebaixar-se to miseravelmente a ponto de preferir a lamurienta
sabedoria e virtude dos ancios, nascidas da impotncia, fora viva e
impetuosa da juventude isso ele espera que jamais lhe acontea. Sem
dvida ele renova, num certo aspecto, o antigo ideal do sbio
solitrio; mas o faz sem um programa definido pelo contrrio,
hospitaleiro, interessa-se por tudo, e tem paixo por viagens. Sua
solido apenas interior, e mesmo a no o por princpio. Ela seu
elemento vital. Montaigne sente-se to feliz em sua solido e isso
sem qualquer ferida romntica ou sentimental que ela mais se
assemelha a um vcio do que a uma virtude. No , porm, nem uma coisa
nem outra. Ela como a gua para o peixe. Vejamos de que consta essa
clebre virtude. Quoy quils dient, en la vertu mesme, le dernier but
de nostre vise, cest la volupt. Il me plaist de battre leurs
oreilles de ce mot, qui leur est si fort contrecoeur: et sil
signifie quelque supresme plaisir, et excessif contentement, il est
mieux deu lassistance de la vertu qu nulle autre assistance. Cette
volupt, pour estre plus gaillarde, nerveuse, robuste, virile, nen
est que plus srieusement voluptueuse. Et luy deuions donner le nom
du plaisir, plus fauorable, plus doux et naturel; et non celuy de
la vigueur, duquel nous lauons dnomme. Cette autre volupt plus
basse, si elle mritoit ce beau nom: ce deuoit estre en concurrence,
non par priuilge. Je la trouve moins pure dincommoditez de
trauerses que nest la vertu. Outre que son got est plus momentan,
fluide et caduque, elle a ses veilles, ses jeusnes et ses travaux
et la sueur et le sang et son cost une satit si lourde ].12 Digam o
que disserem, na prpria virtude o objetivo ltimo que visamos a
volpia. Agrada-me martelar os ouvidos das pessoas com essa palavra
que as contraria to fortemente: e se ela significa um deleite
supremo e extremo contentamento, um melhor acompanhante para a
virtude do que qualquer outra coisa. Por ser mais viva, nervosa,
robusta, viril, essa volpia mais seriamente voluptuosa. E devamos
lhe dar o nome de prazer, mais favorvel, mais suave e natural, e no
o de vigor, a partir do qual o
19. denominamos. Aquela outra volpia, mais baixa, se merecesse
esse belo nome, no seria o resultado de um privilgio, mas de uma
concorrncia. Acho-a menos isenta de inconvenientes e dificuldades
do que a virtude. Alm de ter um gosto mais momentneo, fluido e
frgil, tem suas viglias, seus jejuns e seus trabalhos, e o suor e o
sangue [] e ao mesmo tempo uma saciedade to pesada que equivale
penitncia []. A virtude como volpia: isso no consta nem do
estoicismo, nem do epicurismo, nem do ceticismo. Trata-se de algo
mais vivo do que as formas da tica individual da Antiguidade tardia
e em geral do que qualquer atitude fundada apenas no pensamento.
Talvez a pgina de que tiramos essa citao possa ainda deixar alguma
dvida; muito nela tem colorao antiga. Somente aqueles que conhecem
bem Montaigne percebero que ele no confere virtude um valor maior
que ao amor, antes confronta esses dois segundo a medida de prazer
que proporcionam; numa tal comparao, os parmetros no podem ser seno
sensveis ou vinculados existncia. Desse modo, essa pgina
harmoniza-se com a totalidade de seu temperamento. A vida, o dado
histrico ou natural no so rejeitados nem menosprezados; pelo
contrrio, Montaigne, para quem a virtude volpia, mergulha a fundo
na sensualidade da vida, pois somente na sensualidade vital do
mundo ele pode cingir e desfrutar a si mesmo. Isso, por estranho
que parea, um legado cristo; trata-se do aristotelismo prtico
amoldado ao cristianismo, com seu fundamento na histria de Cristo e
suas razes, to pouco clssicas ou tericas, nos sofrimentos do mundo
sensvel; uma representao fiel realidade que o Renascimento herdou
do outono da Idade Mdia, da concepo do homem vivo como prisioneiro
da natureza terrestre, noo indissoluvelmente ligada esperana na
eternidade. Uma herana, em suma, do realismo cristo da Idade Mdia.
Em Montaigne, porm, esta no mais uma priso forada, nem propriamente
uma coero, mas antes a plenitude da liberdade. Pois de fato, o
mundo em que nasceu e que abandonar a contragosto, mas sem medo,
d-lhe, com a plenitude da vida, a plenitude da liberdade. A vida
oferece-lhe inmeras possibilidades de examinar a si mesmo, mas no
lhe impe leis. A virtude de que desfruta no uma lei, no de modo
algum a lei moral em mim. Ela no serve nem a Deus nem aos homens,
mas prpria pessoa que a detm. No obriga a nada e a ningum. Deixa o
homem livre, mas s.13 Esse, portanto, o eu que constitui o objeto
dos Ensaios, livro que encontrou ao final do sculo XVI um pblico
composto necessariamente de leigos. Talvez isso se deva em parte ao
cansao geral com as disputas
20. religiosas. Os Ensaios pareciam imparciais, superiores; o
consenso no se forma em torno desta ou daquela ideia de Montaigne,
mas abrange a totalidade da sua pessoa. A pessoa de Montaigne
prestava-se a criar um novo tipo de homem: em lugar do cristo
crente, ctico ou rebelde, o honnte homme que observa todos os
preceitos e abandona as coisas a si mesmas. O honnte homme dos
sculos XVII e XVIII foi logo impelido por outras influncias em
outras direes, e tornou-se por fim mais ativo, mais burgus e mais
mesquinho. Em Montaigne, todavia, estamos longe da burguesia e do
Iluminismo. Nele tambm h algo de diverso da astuciosa reserva do
honnte homme que, em meio ao palavrrio mundano e ao fluxo de seus
afazeres, esquece rapidamente a nudez de sua prpria existncia; que
num timo inventa para a morte formas e palavras capazes de
retrat-la como uma funo social, e com isso no mais a encara de
frente. Com Montaigne o leigo, o primeiro escritor isso no ocorre.
Ainda cristo o bastante para lembrar sempre da condition de lhomme.
Mergulha a fundo, cheio de volpia, na ideia da morte. Mas no treme
e espera no faz-lo. Conduz seu cavalo beira do abismo, at que ele
no sinta mais medo no violentamente, com esporas e chicote, mas,
suave e persistente, com a presso de suas coxas. Assim, seduz a
liberdade com lisonjas, sem se esquecer de sua condio de escravo;
mantendo sempre presente essa lembrana, desfruta com mais gosto da
liberdade. Nisso ele est s, em si e consigo mesmo, no meio do mundo
e em perfeita solido.
21. Os ensaios, de Montaigne ROSA FREIRE DAGUIAR O texto de Os
ensaios aqui traduzido o da edio pstuma de 1595, a mesma que serviu
de base para a edio publicada em 2007 pela editora Gallimard na
coleo Pliade. No existe uma edio definitiva da obra de Montaigne. A
importncia e o carter dos acrscimos que ele foi incorporando ao
texto, desde que escreveu o primeiro ensaio, por volta de 1571, at
morrer, em 1592, mostram que seu projeto no parou de evoluir e se
adensar ao fio das edies. A primeira, de 1580, traz apenas os
livros I e II. Dela j consta um dos mais famosos ensaios da obra,
Sobre os canibais, que reconstitui o encontro de Montaigne com trs
ndios brasileiros tupinambs, em Rouen, em outubro de 1562. Em 1588
sai a quinta edio, trazendo o Livro III, cerca de quinhentas novas
citaes e outras tantas adies e modificaes. a ltima edio publicada
com o autor em vida. Um dos exemplares dessa edio de 1588,
copiosamente anotado por Montaigne, est conservado na Biblioteca
Municipal de Bordeaux: o Exemplar de Bordeaux. Outro, com as ltimas
intervenes de Montaigne e guardado pela famlia, serviu de base edio
de 1595, organizada por Marie de Gournay, a jovem literata e
admiradora de Montaigne, que a considerava uma filha adotiva. O
trabalho minucioso de Gournay consistiu em fazer alteraes de grafia
e incorporar centenas de correes e acrscimos feitos nas margens e
entrelinhas pelo autor. A edio de 1595 conheceu sucesso imediato e
serviu para vrias outras edies, algumas clandestinas, outras
expurgadas, durante pelo menos dois sculos, pois s no incio do
sculo XIX publicou-se o texto conforme o Exemplar de Bordeaux. Foi
a edio pstuma que leram os contemporneos de Montaigne, assim como
Pascal, Voltaire, Rousseau, e tantos outros intelectuais que
contriburam para difundir o monumento literrio de Montaigne. Marie
de Gournay tambm fez inmeras anotaes ao texto, tendo rastreado e
traduzido as fontes das citaes. Desde ento, os especialistas
sucessivos
22. acrescentaram notas prprias s das edies anteriores. As
notas introdutrias de cada ensaio e as notas de rodap desta edio
foram feitas pela tradutora a partir da edio da Pliade de 2007,
organizada por Jean Balsamo, Michel Magnien e Catherine
Magnien-Simonin, da Seleo dos Ensaios publicada em 2004 pela
Penguin Classics, com organizao e traduo de M. A. Screech, e da
edio virtual feita por Guy de Pernon em 2008, apresentando a obra
de Montaigne em francs contemporneo. A numerao seguida no sumrio
corresponde aos nmeros de cada ensaio dos trs livros que formam o
conjunto da obra. Quando no comprometido o entendimento do texto,
manteve-se a pontuao adotada por Montaigne, que se reconhecia pouco
especialista na matria e recorria abundantemente aos dois-pontos e
pontos e vrgulas como forma de cadenciar o texto. Tambm foi
respeitada a disposio original do texto, sem pargrafos, ou melhor,
com um s pargrafo por ensaio. Montaigne aprendeu a falar em latim,
a lngua da elite culta, e s aos seis anos iniciou-se no francs. A
influncia do latim se faz presente tanto na profuso de citaes de
autores da Antiguidade como na prpria estrutura da frase, muito
prxima da sintaxe latina. Os ensaios so escritos em linguagem
recheada de incisos, digresses, arcasmos, trocadilhos, s vezes em
detrimento da clareza. Acrescente-se que muitas anotaes marginais
feitas pelo autor de modo elptico tinham um significado que
provavelmente s era claro para ele. Esta traduo procura conciliar o
respeito ao original com a legibilidade para um leitor de hoje,
apresentando-lhe uma verso cuja fluncia, longe de banalizar a obra,
o leve ao prazer da leitura de Os ensaios.
23. Os ensaios DE MICHEL SENHOR DE MONTAIGNE Edio nova,
encontrada depois da morte do Autor, revista e ampliada por ele em
um tero em relao s precedentes impresses Em Paris, Abel LAngelier,
no primeiro pilar da grande sala do Palcio MDXVCV Com
privilgio
24. Ao Leitor Aqui est um livro de boa-f, Leitor. Ele te
adverte, desde o incio, que no me propus outro fim alm do domstico
e privado. Nele no tive nenhuma considerao por servir-te nem por
minha glria: minhas foras no so capazes de tal desgnio. Dediquei-o
ao uso particular de meus parentes e amigos, a fim de que, tendo-me
perdido (o que breve tero de fazer), possam aqui encontrar alguns
traos de minhas atitudes e humores, e que por esse meio nutram,
mais completo e mais vivo, o conhecimento que tm de mim. Se fosse
para buscar os favores do mundo, teria me enfeitado de belezas
emprestadas. Quero que me vejam aqui em meu modo simples, natural e
corrente, sem pose nem artifcio: pois a mim que retrato. Meus
defeitos, minhas imperfeies e minha forma natural de ser ho de se
ler ao vivo, tanto quanto a decncia pblica me permitiu. Pois se eu
estivesse entre essas naes que se diz ainda viverem sob a doce
liberdade das leis primitivas da natureza, asseguro-te que teria
com muito gosto me pintado por inteiro e totalmente nu. Assim,
Leitor, sou eu mesmo a matria de meu livro: no razo para que
empregues teu vagar em assunto to frvolo e vo. Portanto, adeus. De
Montaigne, neste primeiro de maro de mil quinhentos e oitenta.
25. LIVRO PRIMEIRO
26. Por meios diversos se chega ao mesmo fim Captulo I O
primeiro captulo trata da guerra e da histria, assuntos apropriados
para um nobre. Montaigne introduz em suas reflexes o irracional (a
surpresa, o xtase e a fria da batalha) e mostra como so
imprevisveis as reaes perante esses sentimentos, at mesmo em homens
virtuosos, grandes e corajosos. As explicaes dos motivos so mera
conjectura. Cita o exemplo de Conrado III, a partir da introduo do
livro Methodus, de Jean Bodin, que estava lendo por volta de 1578.
Provavelmente este primeiro captulo no foi o primeiro a ser
escrito, mas sua composio histrias de diversas fontes em torno de
um mesmo tema e seguidas de curtos comentrios d um dos tons da
obra. Dedicado compaixo e ao perdo, o captulo terminava, na edio de
1580, com uma oposio entre a clemncia de Pompeu e a dureza de Sila.
Os dois acrscimos seguintes, que exploram a lenda negra de
Alexandre, acentuam o carter insondvel do comportamento
humano.
27. O modo mais comum de amolecer os coraes daqueles a quem
ofendemos, quando, tendo em mos a vingana, eles nos mantm sua merc,
por nossa submisso mov-los comiserao e piedade. Contudo, a bravura,
a constncia e a resoluo, meios totalmente contrrios, s vezes
tiveram esse mesmo efeito. Eduardo, prncipe de Gales, aquele que
por tanto tempo reinou sobre nossa Guyenne,14 personagem cujas
condies e fortuna tm feitos muitos notveis de grandeza, tendo sido
fortemente ofendido pelos limusinos, tomou-lhes a cidade fora. Os
gritos do povo, e das mulheres e crianas abandonadas carnificina,
suplicando-lhe misericrdia e prostrando-se a seus ps, no
conseguiram det-lo; at que, prosseguindo a investida pela cidade,
avistou trs fidalgos franceses que com inacreditvel intrepidez
resistiam, sozinhos, ao esforo de seu exrcito vitorioso. A
considerao e o respeito por virtude to notvel embotaram,
primeiramente, a ponta de sua clera: e ele comeou por esses trs a
conceder misericrdia a todos os outros habitantes da cidade.
Scanderberch, prncipe do piro, perseguiu um de seus soldados para
mat-lo, e esse soldado, depois de tentar acalm-lo por toda espcie
de humildade e splicas, decidiu-se pelo recurso extremo de esper-
lo de espada em punho; essa sua resoluo sustou de chofre a fria de
seu senhor que, por t-lo visto tomar to honroso partido, lhe
concedeu seu perdo. O exemplo poder prestar-se a outra interpretao
por parte daqueles que no tiverem lido sobre a prodigiosa fora e
valentia desse prncipe. O imperador Conrado III sitiou Guelfo,
duque da Baviera, e no quis aceitar condies mais suaves, por mais
vis e covardes fossem as reparaes que lhe ofereciam, a no ser
permitir que as senhoras que estavam sitiadas junto com o duque
sassem com sua honra salva, a p, levando consigo o que pudessem.
Com corao magnnimo, elas tiveram a ideia de carregar nos ombros
seus maridos, filhos, e at o duque. O imperador teve tanto prazer
em ver a gentileza dessa nobreza de corao que chorou de
contentamento e abrandou todo aquele azedume da inimizade mortal e
capital que votara contra o duque; e da em diante tratou
humanamente a ele e aos seus. Um ou outro
28. desses dois meios me arrebataria facilmente, pois tenho um
fraco espantoso pela misericrdia e pela clemncia. Tanto assim que,
a meu ver, eu tenderia a me render mais naturalmente compaixo do
que estima. No entanto, para os estoicos a piedade paixo viciosa:
querem que socorramos os aflitos, mas no que nos enterneamos e
compadeamos deles. Ora, esses exemplos parecem-me mais a propsito
por vermos essas almas acometidas e postas prova pelos dois mtodos
resistirem a um, inabalveis, e se curvarem ao outro. Pode-se dizer
que partir o corao com a compaixo efeito da afabilidade, da
complacncia e da frouxido, donde resulta que esto mais sujeitas a
isso as naturezas mais fracas, como as das mulheres, das crianas e
do vulgo. Mas (tendo demonstrado desprezo pelas lgrimas e pelos
prantos) render-se somente reverncia da imagem santa da virtude ato
de uma alma forte e inquebrantvel, que aprecia e honra o vigor
msculo e obstinado. Todavia, em almas menos generosas o espanto e a
admirao podem produzir efeito parecido. Prova disso o povo tebano,
que, tendo chamado a juzo seus comandantes sob a acusao capital de
terem prosseguido o mandato alm do tempo que lhes fora prescrito e
preordenado, a muito custo absolveu Pelpidas, que vergava sob o
fardo de tais objees e para defender-se s recorria a peties e
splicas; e, ao contrrio, quando Epaminondas veio a contar
magnificamente os atos por ele realizados e com eles exprobou o
povo orgulhosa e arrogantemente, o povo tebano no teve nimo de
pegar em mos as fichas de votao e a assembleia se dissolveu,
louvando grandemente o nvel de coragem daquele personagem. Dionsio,
o Velho, que depois de delongas e dificuldades extremas tomara a
cidade de Rege, e nesta o comandante Fton, grande homem de bem que
a defendera com tanta obstinao, quis disso tirar um trgico exemplo
de vingana. Primeiramente disse-lhe que, na vspera, mandara afogar
seu filho e todos os de sua parentela. Ao que Fton respondeu apenas
que eram, por um dia, mais felizes que ele. Depois mandou que o
despissem e entregou-o aos carrascos para que fosse arrastado pela
cidade, aoitando-o muito ignominiosa e cruelmente; e, ademais,
acusando-o com palavras prfidas, malvadas e injuriosas. Mas ele
manteve a coragem sempre constante, sem desistir. E, com rosto
firme, ia, ao contrrio, rememorando em voz alta a honrosa e
gloriosa causa de sua morte, por no ter desejado entregar seu pas
nas mos de um tirano; e ameaando-o com uma pronta punio dos deuses.
Lendo isso nos olhos de sua soldadesca, que, em vez de se irritar
com as bravatas desse inimigo vencido e com o desprezo que mostrava
pelo chefe e seu triunfo, se enternecia de espanto diante de uma
virtude to rara e deliberava em vista de se amotinar, e at de
arrancar Fton das mos de seus
29. guardas, Dionsio mandou parar esse martrio e s escondidas
ordenou que o afogassem no mar. Na verdade, o homem um sujeito
maravilhosamente vo, diverso e ondulante: rduo estabelecer sobre
ele um julgamento constante e uniforme. Eis Pompeu, que perdoou a
toda a cidade dos mamertinos, contra a qual andava muito irritado,
em considerao virtude e magnanimidade de Zeno, um cidado que
assumiu sozinho o erro pblico e no requereu outra graa alm de
suportar sozinho a punio por este. E o anfitrio de Sila, tendo
demonstrado na cidade de Pergia bravura semelhante, nada ganhou,
nem para si nem para os outros. E diretamente contra meus primeiros
exemplos, Alexandre, o mais intrpido dos homens e to bondoso com os
vencidos, ao tomar pela fora a cidade de Gaza, depois de grandes
dificuldades, encontrou Btis, que ali comandava e de cujo valor
tivera, durante esse cerco, provas maravilhosas; agora Btis estava
s, abandonado pelos seus, com as armas estraalhadas, todo coberto
de sangue e chagas, ainda combatendo no meio de vrios macednios que
o atormentavam de todos os lados; e Alexandre, muito irritado com
uma vitria to cara (pois, entre outros danos, recebera duas feridas
recentes em seu corpo), disse-lhe: No morrers como quiseste, Btis;
sabe que tens de sofrer todos os tipos de tormentos que podero ser
inventados contra um cativo. O outro, com semblante no s firme mas
desdenhoso e altivo, ficou sem dizer uma palavra diante dessas
ameaas. Ento, vendo sua obstinao e mutismo, disse: Ele dobrou um
joelho? Escapou-lhe alguma palavra suplicante? Realmente, vencerei
esse silncio, e se dele no puder arrancar uma palavra, arrancarei
no mnimo um gemido. E, sua clera transformando-se em furor, mandou
que lhe perfurassem os calcanhares, e assim vivo o fez dilacerar e
desmembrar, e se arrastar preso a uma carroa. Seria porque a fora
da coragem lhe fosse to natural e comum que, por no mais admir-la,
a respeitava menos? Ou porque a considerasse to propriamente sua
que, em tal grau, no conseguiu suportar v-la em outro sem o
despeito de uma paixo invejosa? Ou porque a impetuosidade natural
de sua clera fosse incapaz de aceitar uma oposio? Na verdade, se
sua clera tivesse sido freada, de crer que teria feito o mesmo
durante o saque e a devastao da cidade de Tebas, ao ver cruelmente
passar pelo fio da espada tantos homens valentes, perdidos e sem
mais nenhum meio de defesa pblica. Pois ali foram mortos bem 6 mil,
dos quais nenhum foi visto fugindo nem pedindo misericrdia. Ao
contrrio, procurando, uns aqui outros ali, pelas ruas enfrentar os
inimigos vitoriosos, provocando-os para faz-los morrer de morte
honrosa. Nenhum foi visto que no tentasse se vingar ainda em seu
ltimo suspiro, e com as armas do desespero consolar-se de sua morte
com a morte de algum inimigo. A coragem aflita de todos eles no
suscitou a menor
30. piedade, e a durao de um dia no bastou a Alexandre para
saciar sua vingana. Essa carnificina durou at a ltima gota de
sangue a derramar e s se deteve nas pessoas desarmadas, os velhos,
mulheres e crianas, para transform-los em 30 mil escravos.
31. Sobre a ociosidade Captulo VIII O projeto de Os ensaios foi
pensado por Montaigne para que controlasse as desiluses melanclicas
provocadas por sua recluso, quando seus pensamentos galoparam para
longe, levando-o de roldo. o que Milton descrever mais tarde, em Il
Penseroso, em que diz que isso era algo tpico do melanclico em sua
torre solitria. O captulo sofreu poucas modificaes pois talvez
tenha sido o incio do prefcio de um projeto literrio ainda vago.
Fazia pouco tempo que Montaigne se retirara da vida pblica. Ali,
recluso na torre de seu castelo, ele pensa, como outrora Ccero, em
praticar o otium (o lazer letrado). Neste texto se encontra o esboo
de um de seus objetivos iniciais: fazer um registro do fruto de
suas imaginaes, o que, com o tempo, se transformar em ensaios, e,
depois, em Os ensaios.
32. Assim como em terras de alqueive, se so ricas e frteis,
vemos proliferar 100 mil espcies de ervas silvestres e inteis, e
que para mant-las preciso trabalh-las e empreg-las com certas
sementes, para nosso servio; e assim como vemos que as mulheres
produzem sozinhas massas e pedaos de carne disformes,15 mas que
para produzir uma gerao boa e natural preciso ench-las com outro
smen, assim tambm ocorre com os espritos. Se no os ocupamos em
certo assunto que os refreie e contenha, atiram-se desregrados,
para c e para l, no vago campo das imaginaes. Sicut aquae tremulum
labris ubi lumen ahenis Sole repercussum, aut radiantis imagine
Lunae, Omnia pervolitat late loca, iamque sub auras Erigitur
summique ferit laquearia tecti.16 Assim, quando em um vaso de
bronze a superfcie trmula da gua reverbera a luz do sol ou os raios
da lua, esse reflexo volteia de todos os lados, eleva-se nos ares e
vai atingir os pains do teto. E no h loucura nem devaneio que no se
produzam nessa agitao, velut aegri somnia, vanae Finguntur
species.17 parecidos com os sonhos de um doente, forjam-se imagens
inconsistentes. A alma que no tem objetivo estabelecido se perde,
pois, como se diz, estar em toda parte no estar em lugar nenhum.
Quisquis ubique habitat, Maxime, nusquam habitat.18 Quem mora por
todo lado, Mximo, no mora em lugar nenhum. Ultimamente, que me
recolhi em casa decidido tanto quanto puder a no me
33. meter em outra coisa e passar em repouso, e parte, este
pouco de vida que me resta, pareceu-me no poder fazer maior favor a
meu esprito do que deix-lo em plena ociosidade, a entreter-se
consigo mesmo, parar e sossegar: o que esperava que ele pudesse
doravante fazer mais facilmente, tendo se tornado com o tempo mais
ponderado e mais maduro. Mas descubro que, variam semper dant otia
mentem,19 a ociosidade sempre torna o esprito inconstante, ao
contrrio, agindo como um cavalo fugido, ele d cem vezes mais livre
curso a si mesmo do que daria a outros, e engendra-me tantas
quimeras e monstros fantsticos, uns sobre os outros, sem ordem e
sem propsito, que para contemplar vontade sua inpcia e sua
estranheza comecei a assent-los num rol, esperando, com o tempo,
que ele se envergonhe de si mesmo.
34. Sobre a punio da covardia Captulo XV20 Jurisconsultos do
Renascimento, como Tiraquelo, estavam preocupados em temperar a
severidade da lei, partindo do exame dos motivos e das limitaes
humanas. o que Montaigne faz aqui, sendo esse um assunto que muito
preocupava os fidalgos em tempos de guerra como aqueles em que ele
vivia. O captulo mostra um paradoxo em que a extrema bravura punida
com a morte, enquanto a covardia apenas amaldioada. O texto termina
com uma reviravolta: a extrema covardia no seria indcio de uma
malcia, afinal, nociva?
35. Ouvi outrora um prncipe e muito grande comandante afirmar
que um soldado no podia ser condenado morte por covardia; estando
ele mesa, fez o relato do processo do senhor de Vervins, que foi
condenado morte por ter entregado Boulogne. Na verdade, justo que
se faa grande diferena entre os erros que vm de nossa fraqueza e os
que vm de nossa maldade. Pois nestes inclinamo-nos cientemente
contra as regras da razo que a natureza imprimiu em ns; e naqueles
parece que podemos invocar como desculpa essa mesma natureza por
nos ter deixado de tal modo imperfeitos e falhos. De maneira que
muitas pessoas pensaram que s podamos ser criticados pelo que
fazemos contra nossa conscincia; e sobre essa regra que se assentam
em parte a opinio dos que condenam as punies capitais para os
hereges e descrentes, e a que estabelece que um advogado e um juiz
no podem ser incriminados se, por ignorncia, falharem em sua
tarefa. Mas quanto covardia, certo que o modo mais comum castig-la
pela vergonha e pela ignomnia. E pensa-se que essa regra foi
primeiramente posta em prtica pelo legislador Carondas, e que antes
dele as leis da Grcia castigavam com a morte os que tinham fugido
de uma batalha, ao passo que ele ordenou apenas que ficassem
sentados no meio da praa pblica, vestidos com roupa de mulher,
esperando que, tendo-os feito recuperar a coragem por essa
vergonha, ainda pudesse se servir deles. Suffundere malis hominis
sanguinem quam effundere.21 Fazer antes subir o sangue s faces do
acusado do que derram-lo.] Parece tambm que antigamente as leis
romanas puniam com a morte os que tinham desertado. Pois Amiano
Marcelino conta que o imperador Juliano condenou dez de seus
soldados, que viraram as costas a um ataque contra os partos, a ser
degradados e depois a sofrerem morte, seguindo, diz ele, as leis
antigas. Todavia, em outro lugar, por falta semelhante ele somente
condenou outros a permanecer entre os prisioneiros sob a insgnia
dos carregadores de bagagem. O severo castigo do povo romano contra
os soldados que escaparam de Canas, e, nessa mesma guerra, contra
os que acompanharam Cneu Flvio em sua derrota, no chegou
36. morte. Assim, de temer que a vergonha os desespere e os
torne no s frios amigos mas inimigos. No tempo de nossos pais, o
senhor de Franget, outrora lugar-tenente da companhia do senhor
marechal de Chtillon, tendo sido nomeado pelo senhor marechal de
Chabannes governador de Fuenterrabia no lugar do senhor du Lude, e
tendo-a entregado aos espanhis, foi condenado a ser degradado da
nobreza, e tanto ele como sua posteridade, declarados plebeus,
sujeitos ao imposto da talha e incapacitados para portar armas: e
foi essa dura sentena executada em Lyon. Desde ento sofreram punio
similar todos os fidalgos que estavam em Guise quando o conde de
Nassau l entrou, e mais outros depois. Entretanto, quando houvesse
um caso de ignorncia ou covardia to grosseiro e aparente que
superasse todas as normas, seria justo consider-lo prova suficiente
de maldade e malcia, e castig-lo como tal.
37. Sobre o medo Captulo XVII22 Montaigne discute o medo, em
parte luz de sua prpria experincia na guerra, em parte estudando os
exempla. Ele o encara como um sentimento que costuma levar a um
comportamento alucinado e exttico: de fato, poderia ser
classificado como um caso de xtase ou de loucura o homem apavorado
que se encontrava, em certas circunstncias, fora de seu estado
normal. Individual ou coletivo, o medo alucina, paralisa ou
dinamiza, ou seja, produz os mesmos efeitos da valentia. Esboa-se,
assim, uma crtica aos valores heroicos, qual ser parcialmente
dedicado o Livro II. Aqui encontramos a continuao do discurso
blico: todos os exemplos de horror, acumulados de edio em edio,
referem-se aos soldados ou guerra, com exceo do ltimo, acrescentado
depois de 1588, e que fecha o captulo com a inquietante etiologia
do terror pnico.
38. Obstupui, steteruntque comae, et vox faucibus haesit.23
Fiquei estupefato, meus cabelos se arrepiaram e minha voz parou em
minha garganta. No sou bom especialista na natureza (como se diz) e
no sei por quais mecanismos o medo age em ns, mas seja como for uma
estranha emoo, e dizem os mdicos que no h nenhuma que deixe mais
depressa nosso julgamento fora de seu estado normal. Na verdade, vi
muitas pessoas que ficaram enlouquecidas de medo, e at no mais
sensato ele engendra terrveis miragens enquanto dura seu acesso.
Deixo parte o vulgo, para quem o medo representa ora os bisavs
sados do tmulo, envoltos em seu sudrio, ora os lobisomens, os
duendes e as quimeras. Mas entre os prprios soldados, em quem
deveria encontrar menos espao, quantas vezes transformou um rebanho
de ovelhas em esquadro de couraceiros? Juncos e canios em homens de
armas e lanceiros? Nossos amigos em nossos inimigos? E a cruz
branca na vermelha? Quando o senhor de Bourbon tomou Roma, um
porta-estandarte que estava de guarda no burgo So Pedro foi
invadido por tamanho pavor ao primeiro alarme que, pelo buraco de
uma runa, de estandarte em punho, se lanou para fora da cidade,
direto sobre os inimigos, pensando dirigir-se para dentro da
cidade; e foi s quando viu a tropa do senhor de Bourbon
enfileirar-se para det-lo, considerando que era uma investida que
os da cidade estivessem fazendo, a muito custo reconheceu o erro e,
dando meia-volta, entrou por aquele mesmo buraco do qual havia se
afastado mais de trezentos passos no campo. Mas o estandarte do
capito Julles no foi to feliz quando Saint-Pol foi tomada de ns
pelo conde de Bures e o senhor du Reu. Pois, estando to desvairado
de pavor a ponto de lanar-se com o estandarte para fora da cidade,
por uma seteira, ele foi estraalhado pelos atacantes. E no mesmo
cerco foi memorvel o medo que apertou, invadiu e paralisou com
tanta fora o corao de um fidalgo que ele caiu duro, morto, no cho,
numa brecha, sem nenhum ferimento. Fria semelhante por vezes impele
toda uma multido. Num dos combates de Germnico contra os alemes,
duas grandes tropas tomaram, de tanto pavor, dois caminhos opostos,
uma fugindo de onde a outra partia. Ora ele nos d asas aos ps, como
aos dois primeiros; ora nos prega os ps e os entrava, como se l a
respeito do imperador Tefilo, que, numa batalha que perdeu contra
os agarenos, ficou to perturbado e to transido que no conseguiu
decidir-se a fugir: adeo pauor etiam auxilia formidat,24 de tal
modo receia o pavor, mesmo nos socorros,] at que Manuel, um dos
principais chefes de seu exrcito, tendo o agarrado e sacudido como
para despert-lo de um sono
39. profundo, lhe disse: Se no me seguirdes hei de matar-vos,
pois mais vale perderdes a vida do que, estando prisioneiro, virdes
a perder o Imprio. E ento ele exprime sua ltima fora quando, para
seu prprio servio, nos devolve a valentia que subtraiu de nosso
dever e de nossa honra. Na primeira batalha campal que os romanos
perderam contra Anbal, na poca do cnsul Semprnio, uma tropa de bem
10 mil homens de p tomados de pavor, no vendo outro lugar por onde
dar passagem covardia, foi jogar-se no meio do grosso dos inimigos,
atravessando entre eles num esforo maravilhoso e provocando grande
matana dos cartagineses, pagando por sua vergonhosa fuga o mesmo
preo que pagaria por uma gloriosa vitria. disso que tenho mais medo
que do medo. que ele supera em violncia todos os outros infortnios.
Que emoo pode ser mais dura e mais justa que a dos amigos de Pompeu
que estavam em seu navio, espectadores daquele horrvel massacre? E
no entanto, o medo das velas egpcias que comeavam a se aproximar a
sufocou, de maneira que se observou que eles s se preocuparam em
exortar os marinheiros a se apressarem e se salvarem com a fora dos
remos; at que, chegando a Tiro, livres do medo, conseguiram voltar
o pensamento para a perda que acabavam de sofrer e dar rdea solta s
lamentaes e s lgrimas que aquela outra emoo mais forte suspendera.
Tum pavor sapientiam omnem mihi ex animo expectorat.25 Ento o medo
arranca toda a razo de meu corao. Os que foram bem maltratados em
alguma batalha de guerra so levados no dia seguinte ao ataque,
todos ainda feridos e ensanguentados. Mas os que sentiram um grande
medo dos inimigos, no os fareis nem sequer olh-los de frente. Os
que esto com o opressivo medo de perder seus bens, de ser exilados,
de ser subjugados, vivem em contnua angstia, perdendo a vontade de
beber, comer, descansar, enquanto os pobres, os banidos, os servos
vivem amide to alegremente como qualquer outro. E tantas pessoas,
no conseguindo suportar as estocadas do medo, se enforcaram, se
afogaram, se precipitaram, nos ensinaram que o medo ainda mais
importuno e mais insuportvel que a morte! Os gregos reconhecem uma
outra espcie de medo, que no se explica nem mesmo por um
extravagante raciocnio nosso: vindo, dizem eles, de um impulso
celeste, e sem causa aparente. Volta e meia povos inteiros e
exrcitos inteiros veem-se atingidos por ele. Assim foi o que levou
a Cartago uma terrvel desolao. Ali s se ouviam gritos e vozes
apavoradas; viam-se os habitantes sarem de suas casas, como se
tivesse soado o alarme; atacarem-se, ferirem e matarem uns aos
outros, como se fossem
40. inimigos que tivessem vindo ocupar sua cidade. Tudo ficou
em desordem e tumulto, at que, por oraes e sacrifcios, aplacaram a
ira dos deuses. A isso chamam de terrores pnicos.
41. Que filosofar aprender a morrer Captulo XIX26 Este um dos
captulos mais conhecidos da obra, e desenvolve uma das preocupaes
maiores de Montaigne, que morrer bem. Trata-se de um mosaico de
exemplos e argumentos que lembram o carter inevitvel e imprevisvel
da morte e justificam, assim, o fato de que ela seja premeditada,
isto , meditada com antecedncia. Montaigne parece chegar a um
acordo com sua melancolia, agora, de certa forma, minimizada.
Continua preocupado com o medo da morte medo do lancinante ato de
morrer. O tratamento que d ao tema retrico mas no impessoal. Os
pressupostos filosficos deste captulo so amplamente derrubados no
final de Os ensaios (em Livro III, XIII, Sobre a experincia).
Montaigne est no caminho de descobrir qualidades admirveis nos
homens e mulheres comuns. Os acrscimos da edio pstuma provam, pelo
exemplo pessoal de Montaigne, o sucesso do exerccio espiritual das
meditaes sobre a morte, que sobretudo um aprendizado do viver
bem.
42. Diz Ccero que filosofar no outra coisa seno preparar-se
para a morte. assim porque, de certo modo, o estudo e a contemplao
retiram nossa alma de ns e a ocupam separada do corpo, o que
constitui certo aprendizado da morte e tem semelhana com ela; ou
ento, porque toda a sabedoria e a razo do mundo se concentram,
afinal, nesse ponto de nos ensinar a no ter medo de morrer. Na
verdade, ou a razo est escarnecendo de ns ou seu objetivo deve ser
apenas o nosso contentamento, e todo o seu trabalho deve tender, em
suma, a fazer-nos viver bem e a nosso gosto, como dizem as Sagradas
Escrituras. Todas as opinies do mundo chegam concluso de que o
prazer nosso objetivo, conquanto adotem meios diversos, do contrrio
as rejeitaramos de incio. Pois quem escutaria aquele que
estabelecesse como objetivo nosso pesar e sofrimento? As dissenses
das escolas filosficas, nesse caso, so verbais. Transcurramus
solertissimas nugas.27 Passemos sobre essas bagatelas to solertes.]
H a mais teimosia e pirraa do que convm a uma nobre profisso. Mas,
seja qual for o personagem que o homem adote, ele sempre
representa, de permeio, o seu. Digam o que disserem, na prpria
virtude o objetivo ltimo que visamos a volpia. Agrada-me martelar
os ouvidos das pessoas com essa palavra que as contraria to
fortemente: e se ela significa um deleite supremo e extremo
contentamento, um melhor acompanhante para a virtude do que
qualquer outra coisa. Por ser mais viva, nervosa, robusta, viril,
essa volpia mais seriamente voluptuosa. E devamos lhe dar o nome de
prazer, mais favorvel, mais suave e natural, e no o de vigor, a
partir do qual o denominamos.28 Aquela outra volpia, mais baixa, se
merecesse esse belo nome, no seria o resultado de um privilgio, mas
de uma concorrncia. Acho-a menos isenta de inconvenientes e
dificuldades do que a virtude. Alm de ter um gosto mais momentneo,
fluido e frgil, tem suas viglias, seus jejuns e seus trabalhos, e o
suor e o sangue. E ademais, especialmente, seus sofrimentos
pungentes de tantas espcies, e ao mesmo tempo uma saciedade to
pesada que equivale penitncia. Cometemos grande erro ao pensar que
seus obstculos servem
43. de incentivo e condimento doura desse prazer, assim como na
natureza os contrrios se vivificam por seus contrrios; e ao dizer,
quando falamos da virtude, que as mesmas consequncias e
dificuldades a oprimem, tornando-a austera e inacessvel. Pois no
caso da virtude, bem mais propriamente que na volpia, elas
enobrecem, aguam e realam o prazer divino e perfeito que ela nos
propicia. Quem ope o custo ao fruto da virtude, este , decerto, bem
indigno de sua companhia e no conhece suas graas nem seu bom uso.
Esses que vo nos ensinando que sua busca laboriosa e penosa, e que
sua fruio agradvel, o que nos dizem com isso a no ser que ela
sempre desagradvel? Pois por qual meio humano j se chegou sua
fruio? Os mais perfeitos contentaram-se em aspirar a ela e dela se
aproximar sem possu-la. Mas enganam-se, visto que a prpria busca de
todos os prazeres que conhecemos aprazvel. A tarefa impregna-se da
qualidade do objeto a que visa, pois isso uma boa parcela dele e da
mesma natureza. A felicidade e a beatitude que reluzem na virtude
preenchem todas as suas dependncias e avenidas, da primeira entrada
at sua ltima barreira. Ora, um dos principais benefcios da virtude
o desprezo pela morte, o que fornece nossa vida a mansa
tranquilidade, d-nos seu gosto puro e benfazejo sem o qual todo
outro prazer est extinto. Eis por que todas as regras se encontram
e convm a esse item. E embora todas tambm nos levem, de comum
acordo, a desprezar a dor, a pobreza e outros infortnios a que a
vida humana est sujeita, no uma preocupao do mesmo tipo, tanto
porque esses infortnios no so necessrios (a maioria dos homens
passa a vida sem experimentar a pobreza, e ainda outros sem
sentimento de dor e de doena, como Xenfilo, o Msico, que viveu 106
anos em perfeita sade) como tambm, no pior dos casos, a morte pode
pr fim e atalhar, quando nos aprouver, todos os outros infortnios.
Mas, quanto morte, inevitvel. Omnes eodem cogimur, omnium Versatur
urna, serius ocius Sors exitura, et nos in aeter- Num exitium
impositura cymbae.29 Todos ns somos empurrados para um mesmo ponto,
a urna de todos ns agitada, cedo ou tarde dali sair a sorte que nos
far subir na barca para nosso fim eterno. E, por conseguinte, se
ela nos amedronta, um contnuo motivo de tormento que nada consegue
aliviar. No h lugar de onde ela no nos venha. Podemos virar
incessantemente a cabea para c e para l, como em terra
suspeita:
44. quae quase saxum Tantalo Semper impendet.30 ela como o
rochedo sempre suspenso sobre Tntalo.] Frequentemente nossos
tribunais mandam executar os criminosos no local onde o crime foi
cometido: ao longo do caminho, passeai-os por belas casas, dai-lhes
tantos banquetes quanto vos aprouver, Non Siculae dapes Dulcem
elaborabunt saporem, Non avium, cytharaeque cantus Somnum
reducent.31 Os festins da Siclia no mais oferecero seu doce sabor,
o canto dos pssaros ou da ctara no mais lhe devolvero o sono.
Pensais que podem se regozijar com isso? E que a inteno final de
sua viagem, estando constantemente diante de seus olhos, no lhes
tenha alterado e tornado inspido o gosto por todos esses confortos?
Audit iter, numeratque dies, spatioque viarum Metitur vitam,
torquetur peste futura.32 Ele indaga o trajeto, conta os dias e
mede sua vida pelo comprimento da estrada, est atormentado diante
do mal que o espera. A morte o fim de nossa caminhada, o objeto
necessrio de nossa mira; se nos apavora, como possvel dar um passo
frente sem ser tomado pela ansiedade? O remdio do vulgo no pensar
nela. Mas de que estupidez brutal pode vir cegueira to grosseira?
pr a brida na cauda do burro, Qui capite ipse suo instituit
vestigia retro.33 Ele, que decidiu andar com a cabea virada para
trs. No espanta que to amide as pessoas caiam na armadilha.
Amedrontamos nossa gente s em mencionar a morte, e a maioria se
persigna, como diante do nome do diabo. E porque a ela feita meno
nos testamentos no espereis que a ponham a mo antes que o mdico
tenha comunicado a sentena final. E, ento, Deus sabe com que bom
julgamento, entre a dor e o pavor, as pessoas ho de prepar-lo.
Porque essas slabas atingiam muito rudemente seus ouvidos, e porque
essa palavra lhes parecia de mau agouro, os romanos aprenderam a
suaviz-la ou dilu-la em perfrases. Em vez de dizer ele morreu,
dizem ele parou de viver, ou ele viveu. Consolam-se,
45. contanto que seja vida, ainda que passada. Da tiramos nosso
finado fulano de tal. Talvez seja, como se diz, que pagar com
atraso significa dinheiro na mo. Nasci entre onze horas e meio-dia
do ltimo dia de fevereiro de 1533, como contamos agora, comeando o
ano em janeiro.34 Justamente, faz apenas quinze dias que passei dos
39 anos. E faltam-me pelo menos outros tantos. E enquanto isso
seria loucura pensar em coisa to distante. Mas qual! Jovens e
velhos abandonam a vida da mesma maneira. Dela ningum sai de outro
jeito seno como se tivesse entrado naquele instante,
acrescentando-se a isso que no h homem to decrpito que no pense
ainda ter vinte anos no corpo enquanto enxergar Matusalm diante de
si. E ademais, pobre louco que s, quem te fixou os prazos de tua
vida? Tu te baseias nas histrias dos mdicos. Observa, antes, a
realidade e a experincia. Pelo andar comum das coisas, vives h
muito tempo por favor extraordinrio. Ultrapassaste os prazos
costumeiros de viver: e a prova que, faz a conta entre teus
conhecidos, quantos morreram antes de tua idade, mais numerosos que
os que a alcanaram? E mesmo entre aqueles que enobreceram suas
vidas pela fama, faz o registro e apostarei que encontrars mais que
morreram antes do que depois dos 35 anos. plenamente razovel e
piedoso tomar como exemplo a prpria vida humana de Jesus Cristo.
Ora, ele terminou sua vida aos 33 anos. O maior homem, simplesmente
homem, Alexandre, tambm morreu nessa idade. Quantos modos de
surpreender tem a morte? Quid quisque vitet, nunquam homini satis
Cautum est in horas.35 Jamais o homem se protege o suficiente, de
hora em hora, do perigo a evitar. Deixo parte as febres e as
pleurisias. Quem jamais pensou que um duque de Bretanha devesse ser
sufocado pela multido, como foi aquele na entrada do papa Clemente,
meu vizinho, em Lyon?36 No viste um de nossos reis morto em um
jogo? E um de seus ancestrais no morreu derrubado por um
porquinho?37 De nada adiantou squilo, ameaado pela queda de uma
casa, ficar em alerta, pois ei-lo abatido por uma carapaa de
tartaruga, que escapou das patas de uma guia no ar; o outro morreu
com um caroo de uva; um imperador, do arranho de um pente ao
pentear-se; Emlio Lpido, por ter batido o p na soleira de sua
porta; e Aufdio, por ter se chocado, ao entrar, contra a porta da
Cmara do Conselho. E entre as coxas das mulheres, Cornlio Galo,
pretor; Tigelino, comandante da Guarda de Roma; Ludovico, filho de
Guy de Gonzaga, marqus de Mntua. E, exemplo ainda
46. pior, Espusipo, filsofo platnico, e um de nossos papas.38 O
pobre Bbio, juiz, enquanto d prazo de oito dias a um dos
litigantes, ei-lo agarrado e seu prazo de vida expirado. E com Caio
Jlio, mdico que passava unguento nos olhos de um paciente, eis que
a morte fecha os seus. E se devo me intrometer, um irmo meu, o
capito Saint-Martin, que j dera excelentes provas de seu valor, ao
jogar pela recebeu, na idade de 23 anos, uma bolada que o acertou
um pouco acima da orelha direita, sem nenhuma aparncia de contuso
ou ferimento; nem se sentou nem repousou, mas cinco ou seis horas
depois morreu de uma apoplexia causada por esse golpe. Com esses
exemplos to frequentes e to triviais nos passando diante dos olhos,
como possvel conseguirmos nos desfazer do pensamento da morte, e
que a cada instante no nos parea que ela nos agarra pela gola? Que
importa como ela , me direis, contanto que no nos preocupemos com
isso. Sou dessa opinio, e, seja qual for a maneira de nos
protegermos dos golpes, ainda que sob a pele de um bezerro, no sou
homem de recuar, pois basta-me passar meus dias como me apraz, e
adoto o melhor jogo que posso, por menos glorioso e pouco exemplar
que vos parea: Praetulerim delirus inersque videri, Dum mea
delectent mala me, vel denique fallant, Quam sapere et ringi.39 Eu
preferiria passar por louco ou por insensato, contanto que meus
males me agradem ou ao menos que eu no os veja, a ser sensato e
enraivecer- me. Mas loucura pensar em ser bem-sucedido dessa forma.
Uns vo, outros vm, trotam, danam, e sobre a morte nenhuma palavra.
Tudo isso muito bonito, mas quando ela chega, para eles ou para
suas mulheres, filhos e amigos, surpreendendo-os de improviso e sem
defesa, que tormentos, que gritos, que fria e que desespero os
dominam? J vistes um dia algum to cabisbaixo, to mudado, to
confuso? preciso preparar-se para ela mais cedo. E mesmo se essa
despreocupao digna dos animais pudesse se instalar na cabea de um
homem inteligente (o que acho totalmente impossvel), ela nos
venderia muito caras suas mercadorias. Se a morte fosse um inimigo
que se pode evitar, eu aconselharia empregar as armas da covardia:
mas j que no se pode, j que ela vos agarra, tanto ao fugitivo e ao
poltro como ao homem de honra, Nempe et fugacem persequitur
virum
47. Nec parcit imbellis juventae Poplitibus, timidoque tergo;40
E, decerto, ela tambm persegue o fujo e no poupa os jarretes nem o
dorso medroso de uma juventude sem valentia; e que nenhuma couraa
de ao temperado vos cobre, Ille licet ferro cautus se condat in
aere, Mors tamen inclusum protrablet inde caput;41 Nada adianta a
este proteger-se do ferro cobrindo-se de ao, pois a morte, porm,
descobrir sua cabea com capacete; aprendamos a arrost-la de p firme
e a combat-la. E para comear a tirar- lhe sua grande vantagem sobre
ns, tomemos um caminho totalmente oposto ao comum. Tiremos-lhe a
estranheza, frequentemo-la, acostumemo-nos com ela, no tenhamos
nada de to presente na cabea como a morte: a todo instante a
representemos em nossa imaginao e em todos os aspectos. No tropeo
do cavalo, na queda de uma telha, na menor picada de alfinete,
repisemos subitamente: pois bem, e se fosse a prpria morte? E
diante disso nos enrijeamos e nos fortaleamos. Entre as festas e a
alegria, tenhamos sempre esse refro da lembrana de nossa condio, e
no nos deixemos arrastar to fortemente pelo prazer que por vezes no
nos volte memria de quantos modos essa nossa alegria est na mira da
morte, e por quantos golpes ela nos ameaa. Assim faziam os egpcios,
que no meio de seus festins e entre seus melhores banquetes
mandavam vir a anatomia seca42 de um homem para servir de
advertncia aos convivas. Omnem crede diem tibi diluxisse supremum,
Grata superveniet, quae non sperabitur hora.43 Considera como teu
ltimo dia aquele que brilha para ti; a hora que no esperas mais vir
para ti como uma graa. incerto onde a morte nos espera,
aguardemo-la em toda parte. Meditar previamente sobre a morte
meditar previamente sobre a liberdade. Quem aprendeu a morrer
desaprendeu a se subjugar. No h nenhum mal na vida para aquele que
bem compreendeu que a privao da vida no um mal. Saber morrer
liberta-nos de toda sujeio e imposio. Ao mensageiro que o miservel
rei da Macednia, seu prisioneiro, lhe enviou para pedir que no
o
48. levasse em seu triunfo,44 Paulo Emlio respondeu: Que ele
faa o pedido a si mesmo. Na verdade, em qualquer coisa, se a
natureza no ajuda um pouco difcil que a arte e o engenho avancem
muito. Por mim mesmo, no sou melanclico mas sonhador: no h nada de
que me haja ocupado desde sempre como dos pensamentos sobre a
morte, e at na poca mais licenciosa de minha vida, Jucundum cum
aetas florida ver ageret.45 Quando minha idade em flor vivia sua
doce primavera. Entre as damas e os jogos, julgavam-me ocupado em
digerir comigo mesmo algum cime ou a incerteza de uma esperana,
enquanto eu pensava em no sei quem que fora surpreendido dias antes
por uma febre alta, e em seu fim ao sair de uma festa parecida, com
a cabea cheia de cio, amor e bons momentos, como eu: e eu mesmo
martelava em meus ouvidos: Jam fuerit, nec post unquam revocare
licebit.46 O presente j ter passado e nunca mais poderemos cham-lo
de volta. No franzia mais a fronte com esse pensamento do que com
outro. impossvel no sentirmos desde o incio as ferroadas dessas
imaginaes, mas manejando-as e repassando-as, pelo longo caminho,
sem dvida as domesticamos. Do contrrio, de minha parte estaria em
contnuo pavor e frenesi, pois nunca um homem desconfiou tanto de
sua vida, nunca um homem se iludiu menos com sua durao. Nem a sade,
da qual gozei at o presente muito vigorosa e raramente
interrompida, me prolonga sua esperana, nem as doenas a encurtam. A
cada minuto parece-me que escapo de mim. E repito sem cessar: tudo
o que pode ser feito um outro dia pode ser feito hoje. Na verdade,
os acasos e perigos nos aproximam pouco ou nada de nosso fim; e se
pensarmos, afora esse infortnio que mais parece nos ameaar, em
quantos milhes de outros permanecem sobre nossas cabeas,
descobriremos que o fim est igualmente perto de ns quando estamos
vigorosos ou febris, no mar e em nossas casas, na batalha e em
repouso. Nemo altero fragilior est: nemo in crastinum sui
certior.47 Nenhum mais frgil que outro: nenhum tem o amanh mais
garantido.] Para acabar o que tenho a fazer antes de morrer, todo o
tempo vago me parece curto, ainda que seja trabalho de uma hora.
Outro dia, algum folheava meus apontamentos e encontrou uma nota
sobre alguma coisa que eu queria que fosse feita depois de minha
morte: eu lhe disse, como era verdade, que, estando a apenas
uma
49. lgua de casa, e saudvel e vigoroso, me apressara em
escrever aquilo ali por no ter certeza de chegar minha casa. Como
sou homem que continuamente est incubando seus pensamentos e
guardando-os dentro de si, a qualquer momento estou preparado,
tanto quanto possa estar, e nada de novo me anunciar a chegada
inesperada da morte. Devemos estar sempre com as botas caladas e
prontos para partir, tanto quanto de ns dependa, e sobretudo nos
precavermos para que ento s tenhamos de tratar conosco mesmos. Quid
brevi fortes jaculamur aevoMulta?48 Por que bravamente visar tantos
objetivos quando a vida to curta? Pois teremos bastante trabalho
sem outra sobrecarga. Um se queixa, mais que da morte, de que ela
lhe interrompe o curso de uma bela vitria; outro, que deve partir
antes de ter casado a filha, ou controlado a educao dos filhos; um
sente falta da companhia da mulher, outro, do filho, que eram os
principais confortos de sua existncia. Por ora estou em tal situao,
graas a Deus, que posso me ir quando Lhe aprouver, sem me lamentar
de coisa nenhuma. Desligo-me de tudo: minhas despedidas de cada um
esto quase feitas, exceto de mim. Nunca um homem se preparou para
deixar o mundo mais pura e plenamente, e desapegou-se mais
completamente do que eu tento fazer. As mortes mais mortas so as
mais saudveis. Miser o miser (aiunt) omnia ademit Uma dies infesta
mihi tot praemia vitae.49 Infeliz que sou, infeliz, dizem eles, um
s dia funesto me tira todos os bens da vida. E o construtor diz:
Manent opera interrupta, minaeque Murorum ingentes.50 Restam
trabalhos interrompidos e imensas muralhas que ameaam. Nada se deve
prever de to longo flego, ou pelo menos com a inteno de se empolgar
pensando em ver seu fim. Nascemos para agir: Cum moriar, medium
soluar et inter opus.51
50. Quando eu morrer, que parta no meio de meu trabalho. Quero
que se aja, que se prolonguem as atividades da vida, tanto quanto
possvel; e que a morte me encontre plantando minhas couves, mas
despreocupado com ela e ainda mais com minha horta inacabada. Vi
morrer um que, estando nas ltimas, queixava-se incessantemente de
que seu destino cortava o fio da histria que ele tinha em mos sobre
o 15o ou 16o de nossos reis. Illud in his rebus non addunt, nec
tibi earum Jam desiderium rerum super insidet una.52 Mas nesse
ponto, eles no acrescentam isto: E o pesar por esses bens no
permanecer junto com teus restos. preciso se livrar dessas crenas
vulgares e nocivas. Assim como fincaram nossos cemitrios ao lado
das igrejas e dos lugares mais frequentados da cidade, para
acostumar, dizia Licurgo, o baixo povo, as mulheres e as crianas a
no se assustarem ao ver um homem morto, e a fim de que esse
espetculo contnuo de ossurios, tmulos e funerais nos advirta sobre
nossa condio, Quin etiam exhilarare viris convivia caede Mos olim,
et miscere epulis spectacula dira Certatum ferro, saepe et super
ipsa cadentum Pocula, respersis non parco sanguine mensis;53 E
mais: outrora era costume alegrar os festins com uma morte e
misturar os banquetes com os espetculos cruis de combatentes, que,
frequentemente atingidos pelo gldio, tombavam sobre as prprias
taas, espalhando copiosamente seu sangue sobre as mesas; e assim
como os egpcios, depois de seus festins, apresentavam aos convivas
uma grande imagem da morte, segura por algum que lhes gritava: Bebe
e alegra-te, pois morto sers como este, assim peguei o costume de
ter a morte no apenas na imaginao mas continuamente na boca. E no h
nada de que me informe com tanto gosto como da morte dos homens:
que palavra, que rosto, que atitude tiveram; nem trecho de histrias
que observe com tanta ateno. Pela quantidade de meus exemplos,
parece que tenho afeio particular por essa matria. Fosse eu um
fazedor de livros e faria um registro
51. comentando as mortes diversas. Quem ensinasse os homens a
morrer os ensinaria a viver. Diciarcos54 fez um com ttulo parecido,
mas com outro e menos til alcance. Ho de me dizer que a realidade
da morte ultrapassa de to longe o pensamento que no h esgrima, por
mais bela, que no se perca quando l se chega: deixai-os falar; a
meditao prvia proporciona, sem dvida, grande vantagem. E depois, j
no significa bastante chegar l sem vacilao e sem inquietao? H mais:
a