29
MOOC LISBOA E O MAR – TEMA 1 | LISBOA NO SÉC. XVI: ESPAÇO DE ENCONTRO DE CULTURAS NA HISTÓRIA GLOBAL 1 Lisboa no séc. XVI: espaço de encontro de culturas na história global Ana Paula Avelar MOOC - LISBOA E O MAR TEMA 1

Mooc Lisboa e o Mar - Lisboa no séc. XVI

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Mooc Lisboa e o Mar - Lisboa no séc. XVI

MOOC LISBOA E O MAR – TEMA 1 | LISBOA NO SÉC. XVI: ESPAÇO DE ENCONTRO DE CULTURAS NA HISTÓRIA GLOBAL

1

MOOC - LISBOA E O MARTEMA 1

Page 2: Mooc Lisboa e o Mar - Lisboa no séc. XVI

MOOC LISBOA E O MAR – TEMA 1 | LISBOA NO SÉC. XVI: ESPAÇO DE ENCONTRO DE CULTURAS NA HISTÓRIA GLOBAL

“Duas são as cidades que, nos nossos tempos, poderíamos designar por senhoras do Oceano e como que suas rainhas. Às suas ordens e sob sua dominação, nos nossos dias, Oriente e Ocidente em conjunto estão abertos à navegação.”

Damião de Góis1

Lisboa é, no século XVI, como escreve então um cronista português, uma das

rainhas dos oceanos, a par de Sevilha, nela se cruzando uma multidão de novas e

desvairadas gentes, vindas de vários continentes. Importa, no entanto, ter em atenção,

quando historiografamos um tempo, que, como sistematiza A. G. Hopkins no seu livro,

Global History- Interactions between the Universal and the local:“(…) the study of history

develops in two ways. One impulse derives from revisions proposed by scholarly body

itself as a result of dissatisfaction with dominant approaches and interpretations; the

other reflects the influence of events in the wider world, which help to give each

generation of historians its priorities and distinctive character. When the two influences

are brought together, conditions are set for fundamental change.”2 Assim, compreender a

cidade como um privilegiado lugar de encontro é a nossa proposta.

Desvendemos, ainda que em breves traços, o espaço de onde os portugueses saíam.

Esbocemos o quadro do reino de Portugal, considerando que, na Europa de então, o

espaço terrestre é ainda intuído de um modo descontínuo.

Será gradualmente que os europeus se vão apercebendo das continuidades

espaciais.

1Damião de Góis, Elogio da Cidade de Lisboa- Urbis Olisiponis Descriptio,Lisboa, Guimarães Ed., 2002, p.83.2 A. G. Hopkins, Global History – Interactions between the Universal and the local, New York , Palgrave –Macmillan, 2006, p. 3.

2

Page 3: Mooc Lisboa e o Mar - Lisboa no séc. XVI

MOOC LISBOA E O MAR – TEMA 1 | LISBOA NO SÉC. XVI: ESPAÇO DE ENCONTRO DE CULTURAS NA HISTÓRIA GLOBAL

A descrição dos lapões, como nervosos, de estatutura medíocre, mas possuidores

de admirável destreza, na Lappiae Descriptio,3 feita por Damião de Góis, ou as expedições

deste autor por terras dos tártaros, constituem, a este nível, discursos relevantes para a

compreensão da forma como se elogia os que, ainda por terras da Europa, se aventuram

no desconhecido. É um contemporâneo de Góis, André de Resende, que o enaltece por

este ter vivido entre uma tribo de tártaros a qual: “ (...) não temia a Deus e estava sempre

pronta para a carnificina num acesso de paixão (...) ”4.

A densidade populacional apresentava, ao longo do século XVI, diferenças

acentuadas. A população era predominantemente rural e as cidades eram de pequena

dimensão, destacando-se, no início deste século, sem contar com Constantinopla, só Paris

e Nápoles que teriam mais de 100 000 habitantes, estando Veneza e Milão próximas deste

número.

As capitais dos reinos, centros administrativos, ou importantes portos sofrem um

crescimento privilegiado. Neste contexto o comércio oceânico permite que, às

importantes cidades italianas, empórios comerciais mediterrânicos, se juntem, ainda no

século XVI, as cidades de Lisboa, Sevilha e Antuérpia.

Note-se, igualmente, que nos núcleos urbanos persiste uma ambiência rural

através da manutenção das hortas, da criação de aves e de porcos… . Assiste-se, todavia, a

uma certa estratificação na estruturação social urbana. A tipologia da organização do

espaço urbano esboça-se, encontrando-se intervenções para a sua melhoria. Por vezes

estas acontecem na sequência de surtos epidémicos. Na sua Da FABRICA que falece ha

cidade de Lisboa Francisco d’Holanda assinala a forma como a cidade evoluiu,

referenciando, entre outros

3 Tradução de Dias de Carvalho. Damião de Góis, Opúsculos Históricos, Porto, Livraria Civilização, 1945,p. 205.4Citado por Elisabeth Feist Hirsch, Damião de Góis, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1987, p. 32.

3

Page 4: Mooc Lisboa e o Mar - Lisboa no séc. XVI

MOOC LISBOA E O MAR – TEMA 1 | LISBOA NO SÉC. XVI: ESPAÇO DE ENCONTRO DE CULTURAS NA HISTÓRIA GLOBAL

aspectos, a edificação do Hospital por D. João II, a renovação manuelina da muralha da

parte do mar com o cais e novos paços, ou ainda a construção do sumptuoso mosteiro de

Belém, da torre de Belém, e da Misericórdia.

Ao abordar o desenvolvimento de cidades e núcleos urbanos, em Portugal, ao longo

deste século, deve-se assinalar aquilo que podemos designar como a capitalidade de

Lisboa em Quinhentos, a sua dimensão metropolitana e internacional. Naquele que é o

retrato do reino de Portugal neste espaço de tempo tem-se como primeiro elemento

caracterizador o numeramento de 1527-315. António Borges Coelho traçou um quadro

vivo onde: “O desenho dos dados populacionais, compassados no mapa de Portugal

Continental, fez surpreender a uma luz objectiva a face do País.”6 Anotam-se três focos

atlânticos de concentração populacional, os quais não devem ser considerados como

marca de um atlantismo, pois as comarcas do interior, apesar do gigantismo de Lisboa,

dominam o traçado (53% contra 47%)7. Por seu turno, a fronteira terrestre não desertifica,

desenvolve. No âmbito desta nossa análise dos discursos que, então, se constroem, não

podemos ficar condicionados por estes dados, por muito importante que eles o sejam para

o processo hermenêutico. Devemos, portanto, percepcionar as diferentes modalidades

discursivas, sejam estas textuais, sejam visuais.

Portugal e a sua particularidade participam, nas palavras de Duarte Nunes de Leão,

do facto de a Hispânia ser: “ (...) a última parte de Europa assentada entre Africa e França,

rodeada de mar de tal maneira, que é quasi uma ilha cuja figura os greographos comparão

a um couro de boi volto o pescoço para a parte onde confina com França pelos montes

Pyreneos (...)” 8. Será esta, Europa, a filha de Agenor, rei de Tiro objecto do amor de Zeus?

5 António Borges de Coelho, Quadros para uma Viagem a Portugal no séc. XVI, Lisboa, Editorial Caminho, 1986, pp. 137-145. 6 Ibidem, p. 142.7 Ibidem.8 Duarte Nunes do Leão, Descrição do Reino de Portugal, Lisboa, Centro de História da Universidade de Lisboa, 2002, p. 129.

4

Page 5: Mooc Lisboa e o Mar - Lisboa no séc. XVI

MOOC LISBOA E O MAR – TEMA 1 | LISBOA NO SÉC. XVI: ESPAÇO DE ENCONTRO DE CULTURAS NA HISTÓRIA GLOBAL

Flui, decerto neste signo da Hispânia de Duarte Nunes de Leão o mito fundador da

Europa, aquele que iconicamente se prefigura no rapto desta corporizada na figuração de

uma jovem assustada que no dorso de um touro abre caminho por entre as águas,

observada ao longe pelas suas companheiras. O texto que se serve de matriz evocadora

deste mito é o epidíctico poema Metamoforses de Ovídio. No momento em que o poeta

descreve a tapeçaria tecida por Minerva (Metamorfoses, Liv.VI:104) parece que, o touro

era real e real, o mar. Europa parecia que olhava a terra que havia deixado para trás,

parecia que gritava às suas companheiras e que temia o contacto da água que saltava junto

dela.

Este jogo de espelhos repercute-se no modo como em Quinhentos se acede, ancora

e transmuta o pathos clássico, na representação. Mas regressemos à Hispânia. Se esta se

projecta na figuração de um touro, Lisboa na voz de Damião de Góis figura-se na bexiga de

um peixe: “Não considero, porém, que seja fácil delinear-lhe a configuração e descrevê-la, já

que assenta em solo acidentado e desigual. Contudo, se alguém, com olhar firme e

desanuviado, quiser atentar na sua implantação e forma, a partir da povoação de Almada,

(...) verificará com certeza que, sobretudo na parte que se desenrola pela cidade, ela

apresenta uma verdadeira configuração de bexiga de peixe.”9

Este é o trabalho da imagem, o da representação como nódulo temático do

processo de descrição. Pincelar esta capital significa considerar a palavra sobre a urbe e o

desenho da mesma, estabelecendo as gradações do olhar. Como Louis Marin claramente

sintetizou a representação na pintura consubstanciar-se-ia na transposição das coisas do

mundo: “ (…) into painted images: it would only inscribe the return of things that would

thus come to be caught in the trap of the canvas and the painted surface, a surface that is

itself already a trap of language, a net or network of names: a dream of or a double

exchange, a translation, a transfer, a transposition in which the logic and the economy of

9 Damião de Góis, Elogio da Cidade de Lisboa- Urbis Olisiponis Descriptio, p. 147.

5

Page 6: Mooc Lisboa e o Mar - Lisboa no séc. XVI

MOOC LISBOA E O MAR – TEMA 1 | LISBOA NO SÉC. XVI: ESPAÇO DE ENCONTRO DE CULTURAS NA HISTÓRIA GLOBAL

artistic mimesis would follow the same rules as the logic and the economy of the description

of images, and the inverse would end up, under the circumstances, being the same- a logic

and economy of sameness for both language and image, thanks to the correspondence of the

mimetic figure in painting and the descriptive name that functions only to designate.” 10

Atingir a visibilidade do real é o propósito primeiro e final do discurso narrativo que,

neste século XVI e em Portugal se debruça sobre a sua capital.

É certo que a descrição da Lisboa de Cristóvão Rodrigues de Oliveira é distinta das

de João Brandão de Buarcos, de Damião de Góis, ou de Francisco d’Holanda, ainda que

estes partilhem um tempo e um objecto comuns. A Vrbis Olisiponis Descriptio (1554), de

Damião de Góis, subscreve as laudes urbium, como assinala Aires A. do Nascimento. Segue,

aliás, uma modalidade discursiva que este mesmo humanista já tinha experimentado com

a sua Urbis Lovaniensis obsidio, dedicada a Carlos V, na qual se debruça sobre a defesa da

cidade. É no quadro de um tempo concreto que esse texto deve ser lido. André Resende

tinha em publicado, em 1553, a sua História da Antiguidade da cidade de Évora, onde

confrontava o seu público com a vulgar importância atribuída ao antigo: “E certo lá tem a

antiguidade ũa sua graça e magestade, per que todos se faz ter em reverência.”11

A justa medida na valoração do antigo e do moderno que emerge das palavras de

Resende é subscrita por Góis. Os caminhos destes autores cruzam-se. Em 1530 também

André de Resende tinha dado à estampa o seu Encomium urbis et Academiae Louaniensis,

evocado por Góis no seu elogio a Lisboa. Neste texto a viagem marítima para a Índia,

outrora tão temida, transmutara-se: “A verdade é que esta rota de tão larga peregrinação

se tornou agora tão frequente para as gentes das nossas terras, seja por instigação de

génio infatigável, seja por força da fome implacável do ouro, que não atribuem maior

importância a uma navegação dessa natureza que ao percurso que tenham que fazer por

10 Louis Marin, On representation, Stanford, Stanford University, 2001, p. 254. 11 Excerto referente ao texto que abre a referida História. André de Resende, Obras Portuguesas, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1963, p.8.

6

Page 7: Mooc Lisboa e o Mar - Lisboa no séc. XVI

MOOC LISBOA E O MAR – TEMA 1 | LISBOA NO SÉC. XVI: ESPAÇO DE ENCONTRO DE CULTURAS NA HISTÓRIA GLOBAL

mar de Portugal à Inglaterra ou à Bélgica.”12 Na sua dedicatória, Góis refere como tinha

sido instado por homens doutos a trazer a público uma História dos feitos da Índia. Ainda

que esta não tenha sido elaborada, vários textos parcelares sobre a presença portuguesa

no espaço do Índico foram sendo publicados pelo autor. Lisboa é para Góis, a cidade que:

“Desde a embocadura do Tejo chama ela a si o domínio da parte do Oceano que, em amplexo

imenso de mar, abarca a África e a Ásia”.13

Mas outros são os autores que também se debruçam sobre esta cidade. Em 1551

Cristóvão Rodrigues de Oliveira tinha descrito a cidade, no seu Summario em que

brevemente se contem algumas cousas, assim eclesiásticas como seculares que há na cidade

de Lisboa14, para que noutras terras se soubesse: “(..) das muitas e grandes esmolas e

outras obras pias que se nesta cidade fazem e como é celebrado nela o culto divino em

tantos e tão sumptuosos templos e casas de oração, como também para se saber da

grandeza e povo doutras muitas cidades do Mundo a errada opinião que se tem, vendo a

certeza desta (...)”15. No ano seguinte João Brandão, dito de Buarcos, no Tratado da

Magestade e grandeza e abastança da cidade de Lisboa16, evidencia a sua capitalidade. À

semelhança de Cristóvão Rodrigues de Oliveira, regista os ofícios e mede os espaços. A

comparação possível entre os dados transmitidos, denota o império da quantidade que,

nestas modalidades discursivas, acompanha a qualidade.

12Damião de Góis, Elogio da Cidade de Lisboa- Urbis Olisiponis Descriptio, p.97. 13Damião de Góis, Elogio da Cidade de Lisboa- Urbis Olisiponis Descriptio, p.83. 14 Cf. Cristóvão Rodrigues de Oliveira, Lisboa em 1551. Sumário em que brevemente se contêm algumas coisas assim eclesiásticas como seculares que há na cidade de Lisboa, Lisboa, Livros Horizonte, 1987.15 Citado o texto de Cristóvão Rodrigues de Oliveira, Lisboa em 1551... in Rodrigo Banha da Silva,Paulo Guinote, O Quotidiano na Lisboa dos Descobrimentos- Roteiro arqueológico e Documental dos espaços e objectos, Lisboa, GTMECDP, 1998, p. 198.16 Sobre esta relação manuscrita indicar-se-á a sua publicação pela mão de Anselmo Braamcamp Freire com anotações e comentários de Gomes de Brito, utilizando-se a edição de José da Felicidade Alves. Cf. João Brandão, Grandeza e Abastança de Lisboa em 1552, Lisboa, Livros Horizonte, 1990.

7

Page 8: Mooc Lisboa e o Mar - Lisboa no séc. XVI

MOOC LISBOA E O MAR – TEMA 1 | LISBOA NO SÉC. XVI: ESPAÇO DE ENCONTRO DE CULTURAS NA HISTÓRIA GLOBAL

Esta leitura de Lisboa no século XVI visualiza-se na exploração do traçado

topográfico da cidade elaborado por G. Braun e F. Hogenberg na obra Urbium

proecipuarum mundi theatrum quintum (1593). Na edição crítica do texto de Góis realizada

por Aires A. Do Nascimento, coteja-se a urbe goisiana e o mapa da capital portuguesa

traçado por Bráunio,

8

Gravura de Lisboa (séc. XVI) in G. Braun e F. Hogenberg

(http://commons.wikimedia.org/wiki/File:Lisbon_in_1598.jpg)

Page 9: Mooc Lisboa e o Mar - Lisboa no séc. XVI

MOOC LISBOA E O MAR – TEMA 1 | LISBOA NO SÉC. XVI: ESPAÇO DE ENCONTRO DE CULTURAS NA HISTÓRIA GLOBAL

como correntemente é nomeado.17.

Evidencia-se aqui a urbe e a sinalização dos vários edifícios, destacados na sua

malha retalhada e descontínua. As analogias descritivas entre este traçado de Bráunio e o

texto de Góis são por demais evidentes. Com efeito, a visualização do escorço flui na prosa

do nosso humanista. Tomemos como exemplo a este nível o excerto referente à passagem

de S. Roque a Nossa Senhora do Monte: “ (...) passando a Praça Nova do Rei, que

transborda de entalhadores, joalheiros, ourives, cinzeladores, fabricantes de vasos, artistas

de prata, de bronze e de ouro, bem como de banqueiros, cortando à esquerda, chegaremos a

uma outra artéria que tem o nome de Rua Nova dos Mercadores, muito mais vasta que todas

as outras ruas da cidade, ornada, de um lado e de outro, com belíssimos edificios. Para aqui

confluem, todos os dias, à compita, comerciantes de quase todas as partes do mundo e suas

gentes, em concurso extremo de pessoas, por causa das vantagens oferecidas pelo comércio e

pelo porto.”18

Contrapondo-se à voz laudatória de Damião de Góis, ou aos versos de Garcia de

Resende que cantam a cidade que “ (...) vimos crescer / em povos, e em grandeza,/ e muito

se enobrecer/ em edifícios, riqueza, / em armas, e em poder (...)” 19, surge a crítica do

“retrato e reverso de Portugal”, a qual marca igualmente a capital do império. Neste texto o

viajante, provavelmente italiano, como referencia A. H. de Oliveira Marques, a quem se

deve a descoberta e a publicação desta relação20, descreve as sombras desta urbe, onde as

imundícies são lançadas para a rua, e onde não se poderia viver senão fossem os aromas

do âmbar, musgo e benjoim.

17 Cf. Damião de Góis, Elogio da Cidade de Lisboa- Urbis Olisiponis Descriptio, p.11-40. A gravura de Lisboa do século XVI está incorporado na obra de G. Braun e F. Hogenberg Urbium proecipuarum mundi theatrum quintum de Quinhentos e é utilizada na referida edição. 18 Ibidem, p. 161. 19 Garcia de Resende, Crónica de D. João II e Miscelânea, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1973, p.393.20 Cf. A. H. Oliveira Marques, “Retrato e Reverso de Portugal”, in Nova História, 1-Século XVI, Lisboa, Editorial Estampa, 1984, pp. 83-143.

9

Page 10: Mooc Lisboa e o Mar - Lisboa no séc. XVI

MOOC LISBOA E O MAR – TEMA 1 | LISBOA NO SÉC. XVI: ESPAÇO DE ENCONTRO DE CULTURAS NA HISTÓRIA GLOBAL

Não são todavia apenas os estrangeiros em visita à cidade quem referenciam aquilo

que deve ser corrigido. É a própria face da capital do Reino, o que se procura melhorar,

nas palavras, por vezes avaras, de João Brandão, quando se dirige ao monarca: “(...) a mais

nobre coisa que há no Reino é a dita Casa da Suplicação. Pelo que devia V. Alteza mandar

tirar-lhe aquela frontaria do pescado, donde procede tanta sujidade e maus cheiros, que é

muito feia coisa para quando V. Alteza vai aos despachos. E esta só razão basta para se

tirar, quanto mais havendo tantas outras, e mudar-se para a Porta do Mar o peixe, pois tem

o mesmo aparelho do mar para se descarregar e praça tão pertencente a ele como a que

em que ora está.”21

Apresenta-se a organicidade da cidade, procurando-se oferecer a salubridade,

constatando-se ou programando-se uma nova roupagem arquitectónica22. Emblemático é,

a este nível, o já citado texto de Francisco d’Holanda, Da FABRICA que falece ha cidade de

Lisboa, e não menos emblemáticas são as suas propostas de dar à “cabeça” do Reino de

Portugal, Lisboa, fortificação e ornamento.

O bulício da urbe, os barulhos dos ofícios, o fumo dos cozinhados, a multidão de

gentes que invade as suas íngremes ruas, e a opulência de alguns dos seus edifícios, são

evocados pela voz dos que descreveram a cidade da partida. Assinalam-se os armazéns

lisboetas, nomeadamente, o arsenal com os seus:“ (…) quarenta mil corpos de armas para

quarenta mil infantes, e três mil armaduras inteiras de homens a cavalo (...) ”23, ou a Casa

da Índia, um “ (...) empório opulentíssimo de aromas, pérolas, rubis, esmeraldas e de outros

tipos de pedras preciosas que ano após ano nos é trazido da Índia; com maior verdade se lhe

poderia chamar armazém de prata e de oiro, já trabalhado ou por trabalhar, pois salta à

21 Citado in Rodrigo Banha da Silva e Paulo Guinote, O Quotidiano na Lisboa dos Descobrimentos- Roteiro arqueológico e Documental dos espaços e objectos, Lisboa, GTMECDP,1998, p. 210.22 Cf. Helder Carita, Lisboa Manuelina e a formação de modelos urbanísticos da época moderna ( 1495-1521), Lisboa, Livros Horizonte, 1999. 23 Cristovão Rodrigues de Oliveira, Lisboa em 1551. Sumário em que brevemente se contém algumas coisas assim eclesiásticas como seculares que há na cidade de Lisboa, editado por José da Felicidade Alves, Lisboa, Livros Horizonte, 1987, p. 104.

10

Page 11: Mooc Lisboa e o Mar - Lisboa no séc. XVI

MOOC LISBOA E O MAR – TEMA 1 | LISBOA NO SÉC. XVI: ESPAÇO DE ENCONTRO DE CULTURAS NA HISTÓRIA GLOBAL

vista a toda a gente que ali há inúmeras dependências, dispostas com arte admirável e na

devida hierarquia (...) ”24.

Várias são as modalidades discursivas que, então, se manipulam, em Portugal, para

descrever a cidade e a sua capital. Foram convocadas neste texto para além das Histórias,

tratados, Sumários... as diversas descrições da urbe. Evocaram-se as “Laudes Urbium”, nas

vozes de Góis ou Resende, as poetizações de um Garcia de Resende na sua Miscelânea, ou

de um Duarte da Gama nas suas trovas que “fez às desordens que agora se costumam em

Portugal”, ou ainda de um Álvaro de Brito Pestana inclusas no Cancioneiro Geral. Adverte-

se o viajante da cidade de que: “Pera os ares corrutos/ dessa cydade [leia-se Lisboa] sayrem,

/ os devassos/ torpes feytos desolutos, / compre que logo se tyrem/ sem trespassos. / Ante

que o el rrey sayba, / que os mande sualteza/lançar fora/ cada hũu faça, que cayba/ bom

estylo de limpeza/onde mora.”25

Contudo, o nosso olhar permanece na Ribeira das Naus, no espaço onde se

constroem as caravelas, as naus, os galeões que cruzam os oceanos, e se guardam os

morteiros, escorpiões, brasílicos, leões, colubrinas, camelos, pedreiros, dispersores,

bombardas de variada grandeza e peso, falcões, berços, escopetas … enfim as peças de

artilharia que dominam os mares.

A expressão de um império e do seu domínio materializar-se-ia neste arsenal que

D. Manuel construiu junto ao seu Paço Real. Num sem número de salas, adornadas e

trabalhadas com arte encontrava-se o arsenal de guerra, em tudo superior aos melhores

da Europa e da Ásia. O monarca aí guardava com toda a diligência, tudo o que é necessário

para as expedições navais ordinárias, na Ásia, na África e na Europa, encontrando-se, o

necessário para aparelhar, segundo os cronistas, mais de duzentos navios de todo o tipo.

Em três das suas dependências resguardavam-se: “ (…) quarenta mil corpos de armas de

24 Damião de Góis, Elogio da cidade de Lisboa e Vrbis Olisiponis Descriptio, p. 171.25 Garcia de Resende, Cancioneiro Geral, Lisboa, Centro do Livro Brasileiro, 1973, I, p. 214.

11

Page 12: Mooc Lisboa e o Mar - Lisboa no séc. XVI

MOOC LISBOA E O MAR – TEMA 1 | LISBOA NO SÉC. XVI: ESPAÇO DE ENCONTRO DE CULTURAS NA HISTÓRIA GLOBAL

infantaria e mais de três mil armaduras de homens de cavalo, completas e inteiras, fora as

que são tomadas para exercícios diários e extraordinários.”26

Neste mundo da Ribeira fervilha toda a azáfama duma capital da partida. Labutam,

na preparação das armadas, todo um sem número de gentes: ao lado dos calafates e

outros mesteirais que reparam as embarcações, estão os que preparam as peças de carne

decepadas necessárias para a viagem, esfola-se, corta-se salga-se. Descobrem-se os

pescadores e as suas mulheres que abrem e salgam um sem número de peixes, e

pressente-se os tanoeiros a reparar as vasilhas para os vinhos, carnes e outros

mantimentos; os alfaiates, a costurar todo o tipo de roupas em algodão ou lã grosseiros; os

carpinteiros, a encaixar bombardas e outra artilharia; e os cordoeiros, a preparar toda a

cordoalha necessária à equipagem das embarcações... convocam-se os ritmos agitados de

uma urbe, rainha dos mares.

É no quotidiano da cidade da partida que se desenham os quadros impressivos de

uma urbanidade, lembrando os cheiros do âmbar e benjoim, dos cozinhados feitos entre

portas, dos fumos dos fogareiros de barro, dos sons constantes do martelar dos artesãos a

trabalhar nas estreitas ruas, dos pregões das varinas e dos aguadeiros que preparavam a

cidade e as armadas portuguesas para outras paragens.

26 Damião de Góis, Elogio da cidade de Lisboa e Vrbis Olisiponis Descriptio, p. 175.

12

Page 13: Mooc Lisboa e o Mar - Lisboa no séc. XVI

MOOC LISBOA E O MAR – TEMA 1 | LISBOA NO SÉC. XVI: ESPAÇO DE ENCONTRO DE CULTURAS NA HISTÓRIA GLOBAL

O número dos que partiam é referenciado pelos que estudam a História da Carreira

da Índia. De acordo com os elementos recolhidos por Paulo Guinote, Eduardo Frutuoso e

António Lopes, podemos afirmar que, entre 1497e 1505, teriam partido 93 embarcações,

77 das quais durante o primeiro vice-reinado. Nos anos seguintes os dados estabilizam,

assistindo-se entre 1511 e 1515 a 46 partidas, entre 1516 e 1520 a 48, e entre 1521 e

13

Chafariz d’el-rei em Alfama (c.1570-80) Lisboa, Colecção Berardo

(http://lecoolisboa.blogspot.pt/2013/06/lisboa-pelos-seus-pintores.html)

Page 14: Mooc Lisboa e o Mar - Lisboa no séc. XVI

MOOC LISBOA E O MAR – TEMA 1 | LISBOA NO SÉC. XVI: ESPAÇO DE ENCONTRO DE CULTURAS NA HISTÓRIA GLOBAL

1525 a 46. Até 1580 observa-se que os números não mais atingem os níveis verificados

até 1510. Observemo-los27:

Anos Partidas Anos Partidas Anos Partidas

1526-1530 37 1546-1550 41 1566-1570 25

1531-1535 42 1551-1555 30 1571-1575 23

1536-1540 38 1556-1560 26 1575-1580 27

1541-1545 26 1561-1565 23

As equipagens que serviram as diferentes embarcações variam. Luiz de Figueiredo

Falcão no seu livro em que se contém toda a Fazenda... lista os 130 tripulantes que

usualmente seriam necessários para servirem uma nau. A variação dos dados recolhidos

sobre o número de pessoas que teriam embarcado em cada armada é, todavia,

considerável; por exemplo, na armada de 1500, comandada por Pedro Álvares Cabral, e

composta por 13 velas, teriam embarcado entre 1200 a 1500 pessoas, entre tripulação e

soldados. Já na de 1501, chefiada por João da Nova, e composta por 4 navios, teriam

seguido entre 350 a 400 homens28. Contudo, é possível considerar que, em média, entre

tripulantes, passageiros e militares, as velas da Carreira da Índia transportariam entre

400 a 500 pessoas, ainda que nalguns casos pudessem ultrapassar o milhar de pessoas29.

Como Francisco Contente Domingues e Inácio Guerreiro concluem ao se

debruçarem

27 Tabela construída neste trabalho a partir dos dados anteriormente referidos. 28 Cf. Paulo Guinote, Eduardo Frutuoso,António Lopes, Naufrágios e outras perdas da “ Carreira da Índia”- séculos XVI e XVII, Lisboa, GTMECDP, 1998, p. 50. 29 Ibidem, p.55.

14

Page 15: Mooc Lisboa e o Mar - Lisboa no séc. XVI

MOOC LISBOA E O MAR – TEMA 1 | LISBOA NO SÉC. XVI: ESPAÇO DE ENCONTRO DE CULTURAS NA HISTÓRIA GLOBAL

sobre a vida a bordo na carreira da Índia no séc. XVI e baseando no testemunho de

Pyrard de Laval: “ (…) podiam ir embarcados largas centenas de homens, amiúde acima do

meio milhar, e por vezes próximo do dobro. Estes números são naturalmente variáveis em

extremo, e nem sequer valerá a pena entrar em linha de conta com a possibilidade de uma

maior precisão, quer porque os dados conhecidos são muito imprecisos e não raro

exagerados ( “ a gente que vai em cada uma delas naus passa de mil ou mil e duzentos

homens, ou pelo menos anda de oitocentos a novecentos”), escreve ilustrativamente Pyrard

de Laval, quer porque os únicos valores seguros que poderemos aceitar são os relativos às

tripulações.”30

Grande é a quantidade das gentes que afluem à capital da partida a um ritmo mais

ou menos constante. Busca-se melhor vida. Será, porém, a impressão da partida, que

marca os que partem e os que ficam. Gil Vicente, no seu Auto da Índia, e naquela que é uma

modalidade discursiva distinta das que nos têm ocupado, expõe os sentires arquetípicos

dos que buscam a fortuna. Tomemos, só a título de exemplo, o diálogo que se estabelece

entre o marido recém-chegado a Lisboa e a esposa que permaneceu na capital:

30 Francisco Contente Domingues, Navios e viagens –A experiência portuguesa nos séculos XV a XVIII ,Lisboa, Tribuna, 2007, p. 170.

15

“ (...) MARIDO- Muita fortuna passei.

AMA- E eu, oh, quanto chorei,

Quando a armada foi de cá!

E quando vi desferir,

Que começastes de partir,

Jesu, eu fiquei finada!

Três dias não comi nada,

A alma se me queria sair.

MARIDO- E nós, cem léguas daqui,

Saltou tanto sudoeste,

Sudoeste e oeste-sudoeste,

Que nunca tal tormenta vi.” .

Page 16: Mooc Lisboa e o Mar - Lisboa no séc. XVI

MOOC LISBOA E O MAR – TEMA 1 | LISBOA NO SÉC. XVI: ESPAÇO DE ENCONTRO DE CULTURAS NA HISTÓRIA GLOBAL

A saída da barra é o momento, para os que partem, de enfrentar a novidade:

abandona-se o conhecido e enfrenta-se o desconhecido. A cronística da expansão explana

esse sentir, nomeadamente no momento em que é descrita a primeira viagem de Vasco da

Gama. Observemos os discursos de Gaspar Correia, Fernão Lopes de Castanheda e João de

Barros, e confrontemo-los com o registo épico em Luís de Camões.

Gaspar Correia, revela o seu dar à vela, e sair do rio, indo el-rei no seu batel os

acompanhando, e falando a todos com benções e boas horas se despediu deles, ficando sobre

o remo até desaparecerem...31; Fernão Lopes de Castanheda, descreve a gente de Lisboa, a

mais dela chorava de piedade dos que se iam embarcar crendo que haviam todos de

morrer32; João de Barros, evoca a sua praia das lágrimas para os que vão, e terra de prazer

aos que vem33. Exemplar é a ecfráctica evocação na epopeia camoniana da saída da barra

do porto:

31 Cf. Gaspar Correia, Lendas da Índia, Porto, Lello & Irmão-Editores, 1975, I, p. 15.32 Cf. Fernão Lopes de Castanheda, História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos portugueses, Porto, Lello e Irmão –Editores, 1979, I,p.11.33Cf. João de Barros, Ásia...Dos feitos que os portugueses fizeram no descobrimento e conquista dos mares e terras do Oriente-Primeira Década, Lisboa, Imprensa Nacional- Casa da Moeda, 1988, p. 125.

16

“ Já a vista, pouco e pouco, se desterra

Daqueles pátrios montes, que ficavam;

Ficava o caro Tejo e a fresca serra

De Sintra, e nela os olhos se alongavam.

Ficava-nos também na amada terra

O coração, que as mágoas lá deixavam.

E já despois que toda se escondeu,

Não vimos mais, enfim, que mar e céu.”

Canto V, estrofes 17-24

Page 17: Mooc Lisboa e o Mar - Lisboa no séc. XVI

MOOC LISBOA E O MAR – TEMA 1 | LISBOA NO SÉC. XVI: ESPAÇO DE ENCONTRO DE CULTURAS NA HISTÓRIA GLOBAL

Através destes textos serão as equipagens das armadas -: os grumetes, homens de

armas, bombardeiros, marinheiros, meirinhos, criados, barbeiros, calafates,

contramestres, condestáveis, feitores, boticários, pilotos, e todos aqueles que iam servir

no Oriente - que se evocam. Posteriormente, durante a viagem procuram-se distracções,

travam-se brigas, celebram-se festividades religiosas, acontecem acidentes e doenças – as

quais muitas vezes ditavam a permanência no hospital aos que chegavam ao seu porto de

destino34.

Rapidamente se domina o percurso da viagem e se estabelece o ciclo anual da

partida das armadas de Lisboa, destinadas ao Índico. Fixam-se igualmente os momentos

favoráveis à navegação: a saída das embarcações da barra de Lisboa em finais do Inverno,

inícios da Primavera, entre Março e Abril, para deste modo aproveitar o regime favorável

de ventos no Atlântico, e alcançar o Índico quando seria possível tomar a monção de

Sudoeste, para atingir com sucesso, e sem grande dispêndio, a costa ocidental do Indostão.

Se, por um lado, se procura cumprir o ciclo da partida Lisboa, por outro lado, a

viagem de retorno, a saída dos mares do Índico, obedece a um regime mais ou menos fixo.

Com efeito, a partida das armadas ocorre nos últimos dias de Dezembro, primeiros dias de

Janeiro, para assim beneficiar da monção do Norte. Poderiam, então, atingir o Cabo em

Fevereiro, aproveitando os ventos que levariam a bom porto as embarcações, através do

Atlântico Sul, até à capital do reino de Portugal.

Dever-se-á ainda ter presente que, no início do século XVI, a Europa controlava

mares, não continentes. Embora a presença europeia no mundo fosse já uma realidade, os

domínios terrestres só seriam conseguidos séculos mais tarde. Apesar desta presença

costeira, os conflitos que deflagraram nas costas africanas, americanas e no Índico, entre

34 É de assinalar os estudos pioneiros do padre António da Silva Rego citado na bibliografia ou a sistematização feita no trabalho de Paulo Guinote, Eduardo Frutuoso, António Lopes Naufrágios e outras perdas da “Carreira da Índia” séculos XVI e XVII, Lisboa, GTMEPCDP, 1998 ou ainda os trabalhos de Francisco Contente Domingues e Inácio Guerreiro. Veja-se aliás de Francisco Contente Domingues, op.cit., pp. 159-207.

17

Page 18: Mooc Lisboa e o Mar - Lisboa no séc. XVI

MOOC LISBOA E O MAR – TEMA 1 | LISBOA NO SÉC. XVI: ESPAÇO DE ENCONTRO DE CULTURAS NA HISTÓRIA GLOBAL

portugueses, ingleses, holandeses nunca representaram um significativo aumento de

europeus naqueles espaços.

A presença europeia na Ásia, desde a primeira viagem de Vasco da Gama e nos

cento e vinte anos que se seguiram, apenas significou a concentração de comunidades

com uma densidade populacional de cerca de 30000 pessoas, espalhadas por 230000

Km2 de linhas costeiras. Além disso, no âmbito do continente americano, a presença

europeia permaneceu nos índices populacionais do século anterior durante o período de

1600. Num cômputo geral, de 57000 habitantes, 25000 eram de origem europeia e

aproximadamente ¼ destes, i.e., 120000, habitariam o espaço americano ocupado por

Espanha.

Domina, assim, uma perspectiva eurocêntrica na representação dos outros espaços

continentais. Ainda estamos muito longe de 1788 quando a Academia Francesa desafiou a

sociedade do seu tempo a responder sobre a influência que a América teria sobre a

política, o comércio, e os costumes na Europa. Será neste contexto que se deve propor

uma reflexão sobre o próprio conceito de mundo no século XVI. Com efeito, o mundo

conhecido da Europa de então era unicamente uma parte, e o desejo de conhecer e

dominar os novos espaços comandava os desígnios nesses tempos. Ora, nos primórdios do

século XVI, Portugal desempenhou um papel significativo na revelação e descrição deste

mundo novo, onde novas e variadas gentes se cruzam não só na Lisboa de Quinhentos, mas

também nos espaços extra-europeus.

A emblemática assunção da esfera armilar, como signo do reinado de D. Manuel,

anuncia um domínio e uma cosmovisão corporizada num mundo que se espelha na sua

perfeição geometrizada. A descrição dos espaços está, até aqui, intimamente relacionada

com os propósitos qualitativos. A nova mentalidade mercantil, ancorada nas emergentes

técnicas comerciais, providenciaria uma nova forma de aproximação ao objecto, onde a

quantidade tomaria o seu lugar. Enfim, esta nova forma de descrever o mundo poderá ser

18

Page 19: Mooc Lisboa e o Mar - Lisboa no séc. XVI

MOOC LISBOA E O MAR – TEMA 1 | LISBOA NO SÉC. XVI: ESPAÇO DE ENCONTRO DE CULTURAS NA HISTÓRIA GLOBAL

entendida como a primeira manifestação de uma economia global35, a qual estaria

profundamente enraizada no modelo económico europeu que então se vai desenhando e

consolidando.

Do encontro com o Outro se reconstrói o Eu onde: “ L’idée d’une «globalisation

avant l’heure» pose en effet la difficile question de l’inégale distribution sociale et

politique de la «conscience de la globalité » en un temps et un lieu donnés(…). À la

question de R. Chartier, «Penser le monde? Mais qui le pense: les hommes du passé ou les

historiens du présent?», l’on peut ainsi ajouter: «les rois et les lettrés, ou les matelots et

les esclaves?». La fréquente absence de témoignages en nom propre d’acteurs subalternes

des situations de rencontre impériale semble tracer ici la limite en forme de ligne rouge

de l’interprétation historiennes.”36 Respeitando-a, desvendamos o nosso passado,

cumprimos o nosso presente.

BIBLIOGRAFIA CITADA

Barros, João de, Ásia...Dos feitos que os portugueses fizeram no descobrimento e conquista dos mares e terras do Oriente-Primeira Década, Lisboa, Imprensa Nacional- Casa da Moeda, 1988.

Brandão, João, Grandeza e Abastança de Lisboa em 1552, Lisboa, Livros Horizonte, 1990.

Camões, Luís de, Os Lusíadas, Lisboa, Imprensa Nacional, 1972.

Castanheda, Fernão Lopes de, História do Descobrimento e Conquista da Índia pelos portugueses, I-II, Porto, Lello e Irmão –Editores, 1979.

Coelho, António Borges de, Quadros para uma Viagem a Portugal no séc. XVI, Lisboa, Editorial Caminho, 1986.

35 Cf. Vitorino Magalhães Godinho, Les Découvertes XVe-XVIe: une révolution des mentalités, Paris, Edition Autrement, 1992, pp. 61-72.36 C. Delacroix, F. Dosse, P. Garcia, N. Offenstadt, Historiographies, I- concepts et débats, Paris, Editions Gallimard, 2010, p. 377-376.

19

Page 20: Mooc Lisboa e o Mar - Lisboa no séc. XVI

MOOC LISBOA E O MAR – TEMA 1 | LISBOA NO SÉC. XVI: ESPAÇO DE ENCONTRO DE CULTURAS NA HISTÓRIA GLOBAL

Correia, Gaspar, Lendas da Índia, I-IV, Porto, Lello & Irmão-Editores, 1975.

Delacroix, C. , F. Dosse, P. Garcia, N. Offenstadt, Historiographies, I- concepts et débats, Paris, Editions Gallimard, 2010.

Domingues, Francisco Contente, Navios e viagens – A experiência Portuguesa nos séculos XV a XVIII ,Lisboa, Tribuna, 2007.

Godinho, Vitorino Magalhães, Les Découvertes XVe-XVIe: une révolution des mentalités, Paris, Edition Autrement, 1992.

Góis, Damião de, Elogio da Cidade de Lisboa- Urbis Olisiponis Descriptio, Lisboa, Guimarães Editores, 2002.

Góis, Damião de, Opúsculos Históricos, Porto, Livraria Civilização, 1945.

Guinote, Paulo, Eduardo Frutuoso, António Lopes, Naufrágios e outras perdas da “ Carreira da Índia”- séculos XVI e XVII, Lisboa, GTMECDP, 1998.

Hirsch, Elisabeth Feist, Damião de Góis, Lisboa, Fundação Calouste Gulbenkian, 1987.

Hopkins, A. G., Global History – Interactions between the Universal and the local, New York , Palgrave –Macmillan, 2006.

Leão, Duarte Nunes de, Descrição do Reino de Portugal, Lisboa, Centro de História da Universidade de Lisboa, 2002.

Marin, Louis, On representation, Stanford, Stanford University, 2001.

Marques, A. H. Oliveira, “Retrato e Reverso de Portugal”, in Nova História, 1-Século XVI, Lisboa, Editorial Estampa, 1984.

Oliveira, Cristóvão Rodrigues de, Lisboa em 1551. Sumário em que brevemente se contêm algumas coisas assim eclesiásticas como seculares que há na cidade de Lisboa, Lisboa, Livros Horizonte, 1987

Resende, André de, Obras Portuguesas, Lisboa, Livraria Sá da Costa, 1963

Resende, Garcia de, Cancioneiro Geral, I-V,Lisboa, Centro do Livro Brasileiro, 1973.

Resende, Garcia de, Crónica de D. João II e Miscelânea, Lisboa, Imprensa Nacional - Casa da Moeda, 1973

Silva, Rodrigo Banha da, Paulo Guinote, O Quotidiano na Lisboa dos Descobrimentos- Roteiro arqueológico e Documental dos espaços e objectos, Lisboa, GTMECDP,1998.

Vicente, Gil, Compilaçam de todalas obras de Gil Vicente,I-II, Lisboa, Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 1983.

20