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Neuropsicologia do Retardo Mental – estudo de caso. Katiúscia Kelly de Andrade* Sandra de Fátima Barboza Ferreira** Resumo: Este estudo apresentou as contribuições da avaliação neuropsicológica no estabelecimento do nível cognitivo, na qualificação de sintomas bem como no delineamento de futuras intervenções terapêuticas e educacionais ilustradas em um caso de retardo mental. Participou do estudo uma adolescente, do gênero feminino, com 13 anos de idade cursando o segundo ano fundamental em escola pública. Foram utilizados testes psicométricos, testes informais e observações naturalísticas. Os resultados apontaram para um funcionamento intelectual significativamente abaixo do seu grupo etário, marcante apraxia construtiva e quadro de disnomia. Discutiu-se a possibilidade de delineamento de programa de intervenção com ênfase em funções cognitivas e inclusão social. Palavras-chaves: neuropsicologia; avaliação; retardo mental; apraxia; desenvolvimento infantil. De acordo com American Association on Mental Retardation - AAMR (2006), abordar o retardo mental a partir de uma perspectiva multidimensional, é considerar a pessoa com deficiência dentro do contexto dos fatores ambientais e pessoais e da necessidade de apoios individualizados. O retardo mental caracteriza-se por uma incapacidade marcada por importantes limitações, no funcionamento intelectual e no comportamento relacionado aos aspectos conceituais, sociais e práticos. Decorrem deste conceito cinco dimensões: 1. Habilidades Intelectuais - a avaliação do funcionamento intelectual é essencial para se fazer um diagnóstico de retardo mental. 2. Comportamento adaptativo, habilidades conceituais, sociais e práticas – o comportamento adaptativo é a reunião de habilidades que foram aprendidas pelas pessoas para funcionarem em suas vidas diárias. 3. Participação, interações e papéis sociais – engajamento ativo do indivíduo no seu ambiente. 4. Saúde (saúde física, saúde mental e fatores etiológicos) – efeitos da saúde física e mental sobre o funcionamento variam desde amplamente facilitadores até amplamente inibidores para pessoas com retardo mental. 5. Contexto (ambientes e cultura) – perspectiva ecológica do cotidiano da pessoa (micro, meso e macrossistemas). Critérios diagnósticos, estatísticas e etiologia do retardo mental * Psicóloga, especializanda em Neuropsicologia pela UCG – [email protected] ** Psicóloga, Mestre em Psicologia e Doutoranda pela UCG – [email protected]

Neuropsicologia do retardo mental estudo de caso

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Neuropsicologia do Retardo Mental – estudo de caso.

Katiúscia Kelly de Andrade*

Sandra de Fátima Barboza Ferreira**

Resumo: Este estudo apresentou as contribuições da avaliação neuropsicológica no estabelecimento do nível cognitivo, na qualificação de sintomas bem como no delineamento de futuras intervenções terapêuticas e educacionais ilustradas em um caso de retardo mental. Participou do estudo uma adolescente, do gênero feminino, com 13 anos de idade cursando o segundo ano fundamental em escola pública. Foram utilizados testes psicométricos, testes informais e observações naturalísticas. Os resultados apontaram para um funcionamento intelectual significativamente abaixo do seu grupo etário, marcante apraxia construtiva e quadro de disnomia. Discutiu-se a possibilidade de delineamento de programa de intervenção com ênfase em funções cognitivas e inclusão social.

Palavras-chaves: neuropsicologia; avaliação; retardo mental; apraxia; desenvolvimento infantil.

De acordo com American Association on Mental Retardation - AAMR (2006),

abordar o retardo mental a partir de uma perspectiva multidimensional, é considerar a pessoa

com deficiência dentro do contexto dos fatores ambientais e pessoais e da necessidade de

apoios individualizados. O retardo mental caracteriza-se por uma incapacidade marcada por

importantes limitações, no funcionamento intelectual e no comportamento relacionado aos

aspectos conceituais, sociais e práticos.

Decorrem deste conceito cinco dimensões:

1. Habilidades Intelectuais - a avaliação do funcionamento intelectual é essencial

para se fazer um diagnóstico de retardo mental.

2. Comportamento adaptativo, habilidades conceituais, sociais e práticas – o

comportamento adaptativo é a reunião de habilidades que foram aprendidas

pelas pessoas para funcionarem em suas vidas diárias.

3. Participação, interações e papéis sociais – engajamento ativo do indivíduo no

seu ambiente.

4. Saúde (saúde física, saúde mental e fatores etiológicos) – efeitos da saúde

física e mental sobre o funcionamento variam desde amplamente facilitadores

até amplamente inibidores para pessoas com retardo mental.

5. Contexto (ambientes e cultura) – perspectiva ecológica do cotidiano da pessoa

(micro, meso e macrossistemas).

Critérios diagnósticos, estatísticas e etiologia do retardo mental

* Psicóloga, especializanda em Neuropsicologia pela UCG – [email protected]** Psicóloga, Mestre em Psicologia e Doutoranda pela UCG – [email protected]

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De acordo com o Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais- DSM-IV-

TR™, editado pela American Psychiatric Association (2002), o retardo mental é definido com

base em três critérios: início do quadro clínico antes dos dezoitos anos de idade; função

intelectual significativamente abaixo da média, demonstrada por um quociente de inteligência

(QI) menor que 70; e deficiência nas habilidades adaptativas em pelo menos duas das

seguintes áreas: comunicação, autocuidado, vida doméstica, habilidades sociais/interpessoais,

uso de recursos comunitários, auto-suficiência, habilidades acadêmicas, trabalho, lazer, saúde

e segurança.

Os sistemas de classificação do DSM-IV-TR™, editado pela American Psychiatric

Association (2002), apontam quatro níveis de retardo mental: leve, identificado por QI entre

50 ou 55 e 70. Este grupo constitui o maior segmento, cerca de 85%; moderado, na faixa de

35-40 a 50-55. Cerca de 10% da população; grave, varia de 20-25 a 35-40. Constitui 3-4%

dos indivíduos; profundo, que inclui pessoas com QI abaixo de 20-25. Aproximadamente 1-

2% dos indivíduos com retardo mental e gravidade inespecífica.

“A taxa de prevalência do retardo mental é aproximadamente de 1% a 3% da

população” (BARLOW e DURANT, 2008, p.612).

Os principais fatores predisponentes incluem: “hereditariedade, alterações precoces do

desenvolvimento embrionário, problemas da gravidez e perinatais, condições médicas gerais

adquiridas no início da infância e influências ambientais e outros transtornos mentais” (DSM-

IV-TR™, editado pela American Psychiatric Association 2002, p.77). “Fatores etiológicos

podem ser primariamente biológicos ou primariamente psicossociais, ou alguma combinação

de ambos. Em aproximadamente 30-40% dos indivíduos em contextos clínicos, não é possível

determinar qualquer etiologia para o retardo mental” (DSM-IV-TR™, editado pela American

Psyachiatric Association, 2002, p.77).

Vasconcelos (2004), em um estudo referenciado sobre a neurobiologia do retardo

mental (RM), levanta a hipótese que o retardo mental é originado por um defeito da estrutura

e função de sinapses neuronais. “Há várias décadas, sabe-se que o RM está associado a

anormalidades dos dendritos e das espinhas dendríticas” (p. S72). Segundo este estudioso, “as

espinhas dendríticas são elementos diminutos localizados em locais pós-sinápticos das

sinapses excitatórias; como locais de contato entre axônios e dendritos, medeiam a

plasticidade sináptica que fundamenta o aprendizado, a memória e a cognição”

(VASCONCELOS, 2004, p.S72).

Page 3: Neuropsicologia do retardo mental estudo de caso

3

Avaliação do funcionamento intelectual

Avaliação do funcionamento intelectual é essencial para se fazer um diagnóstico de

retardo mental. A inteligência é uma “capacidade mental geral que inclui a habilidade do

indivíduo para raciocinar, resolver problemas, pensar abstratamente, planejar e aprender pela

experiência, e reflete uma capacidade mais ampla para compreender o mundo ao seu redor”

(AARM, 2006, p. 63).

“O funcionamento abaixo da média é um critério necessário, porém insuficiente, para

estabelecer um diagnóstico de retardo mental, a avaliação deve se basear em procedimentos

sólidos e pode, às vezes, requerer informações de várias fontes” (AARM, 2006, p. 72).

A avaliação neuropsicológica oferece grande contribuição para o auxílio ao

diagnóstico do retardo mental, pois além da avaliação do funcionamento intelectual investiga

as funções mentais superiores como a atenção, memória, percepção, praxias e funções

executivas. Fatores que devem ser essencialmente analisados no sentido de planejar

intervenções e para o prognóstico terapêutico da adolescente com retardo mental.

A compreensão das bases da neuropsicologia infantil “sedimenta-se sobre o desafio do

próprio desenvolvimento: crianças crescem física, neurológica, comportamental e emocional

e, conseqüentemente, adquirem maior complexidade nas funções no ponto de vista

ontogenético” (MIRANDA E MUSZKAT, 2004, p. 211). O desenvolvimento infantil deve ser

observado em relação ao seu aspecto maturacional, ou seja, conforme as fases do crescimento

neuronal, mielinização e maturação seqüencial das várias regiões cerebrais.

Para Luria (1984) a tarefa fundamental, não é localizar processos psicológicos

superiores em áreas limitadas do córtex, mas sim determinar mediante uma análise cuidadosa

que zonas do cérebro operando em concerto são responsáveis pela efetuação da atividade

mental complexa, qual a contribuição de cada uma ao sistema funcional e como a relação

dessas partes do cérebro se modifica nos vários estágios do seu desenvolvimento.

A avaliação neuropsicológica na criança de acordo com Lefèvre (2004), “requer

instrumentos específicos e métodos de exame clínico que possam abranger a avaliação das

funções cognitivas (atenção, memória, praxias motoras e ideatórias, linguagem, percepção,

vísuo-construção e funções executivas)” (p. 249).

São vários os recursos utilizados para a avaliação neuropsicológica infantil -

anamnese, testes psicométricos e testes informais e informações provenientes da escola e da

família. “É preciso saber escolher o melhor teste, que sirva para compreendermos as fraquezas

dos pacientes e suas “forças” e que seja especial para a disfunção que consideramos mais

Page 4: Neuropsicologia do retardo mental estudo de caso

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prejudicada, e que corresponda à necessidade clínica do examinador” (LEFÈVRE, 2004,

p.258).

Em algumas situações as técnicas de neuroimagem não são adequadas para

estabelecer qual será a evolução de um caso. “O fato de a avaliação neuropsicológica se

basear em funções cognitivas mais do que em estruturas permite identificar os recursos

remanescentes e potenciais após a instauração de um quadro, e isso dá mais subsídios para a

formulação do prognóstico” (CAMARGO, BOLOGNANI & ZUCCOLO, 2008, p.107).

“Nenhum dos exames de imagem superou a eficácia da avaliação neuropsicológica - o

“padrão-ouro” de avaliação de função cerebral – pois é baseada no método clínico, nos sinais

e sintomas do paciente” (M. G. N. BRASIL, comunicação pessoal, 21 de novembro de 2008).1

Apoio às pessoas com retardo mental

“Apoios são recursos e estratégias que visam a promover o desenvolvimento, a

educação, os interesses e o bem-estar de uma pessoa, e que melhoram o funcionamento

individual” (AARM, 2006, p. 141). Aspectos como a fontes (naturais e baseados em

serviços), funções (ensino, ajuda de amigos, acesso ao uso de comunidade, etc.) e intensidade

dos apoios devem ser considerados. Quanto aos aspectos de intensidade, estes variam entre as

pessoas, situações e estágios da vida, podendo ser: intermitentes, limitados, extensivos ou

pervasivos.

Este estudo tem por objetivo apresentar as contribuições da avaliação

neuropsicológica no estabelecimento do nível cognitivo, na qualificação de sintomas bem

como no delineamento de futuras intervenções terapêuticas e educacionais ilustradas em caso

clínico apresentado. Este é um trabalho de final de curso, referente à prática de estágio

obrigatório, que foi apresentado para obtenção do grau de psicóloga pela Universidade

Católica de Goiás.

Métodos

Participante: foi avaliada uma adolescente com idade de 13 anos e 2 meses, gênero feminino,

cursando o 2º ano do ensino fundamental em escola estadual. Encaminhada ao Centro de

Estudos e Pesquisas e Práticas em Psicologia (CEPSI) com queixa de dificuldade de

aprendizagem.

Ambiente: a adolescente foi atendida em consultório do CEPSI, duas vezes por semana. Cada

sessão teve duração de uma hora. Ocorreram também em ambientes naturais (visita

1 M. G. N. Brasil é professora do Departamento de Psicologia e Pós-Graduação na Universidade Católica de Goiás. Neuropediatra do Hospital das Clínicas na Universidade Federal de Goiás.

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domiciliar, acompanhamento ao laboratório, restaurante e supermercado). Os atendimentos

ocorreram durante o segundo semestre deste ano.

Instrumentos: o quadro 1 apresenta o conjunto de instrumentos utilizados na avaliação

neuropsicológica com seus respectivos objetivos.

Quadro1 – Instrumentos utilizados na avaliação neuropsicológica

Instrumento Objetivo

Ficha de Consentimento

Autorização pelo responsável para utilização dos dados

colhidos, gravação das sessões e aplicação de testes na

adolescenteQuestionário para os pais do Centro de

Neuropsicologia Aplicada – CNA, 2008.

Ficha de anamnese

Levantar dados da história do desenvolvimento da

adolescente e informações da família

Hora de Jogo DiagnósticaObservar o comportamento da adolescente em situação

lúdicaEscala de Inteligência Wechsler (3ª Edição)

– WISC III

Produzir uma medida de inteligência geral

Teste Gestáltico Visomotor de Bender –

Sistema de pontuação gradual – [B- SPG],

(Sisto, 2006)

Avaliar a maturidade percepto-motora

Escala de Transtorno de Déficit de

Atenção/Hiperatividade – TDAH - para

professores (Benczik, 2000)

Aplicado aos professores para levantar informações

sobre o comportamento escolar da adolescente em

relação aos seus colegas de classe e sua produção

escolar

Teste de Desempenho Escolar – TDE (Stein,

1994)

Avaliar as capacidades fundamentais para o

desempenho escolar

Produção espontânea – desenho livre em

papel

Observar a projeção gráfica da adolescente

Procedimentos: Realizaram-se entrevistas com a mãe no início, durante e ao final do

atendimento. Durante as entrevistas foram realizados o contrato de atendimento; a autorização

para aplicação dos testes psicométricos e gravação de sessões a serem utilizadas em trabalhos

acadêmicos; levantamento dos dados da história da queixa da adolescente (dificuldade de

aprendizagem) através do questionário para pais e ficha de anamnese e foram utilizadas

também para informar à mãe da participante sobre o processo de avaliação. As sessões

individuais com a participante tiveram inicio logo após as entrevistas. Durante as sessões

foram utilizados testes (formais e informais). As regras de aplicações dos testes foram

Page 6: Neuropsicologia do retardo mental estudo de caso

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seguidas conforme as instruções contidas nos manuais de cada instrumento. As visitas aos

ambientes naturais (visita domiciliar, acompanhamento ao laboratório, restaurante e

supermercado) foram todas acompanhadas pela mãe. A adolescente realizou durante o

período da avaliação um exame de imagem (Tomografia Computadorizada) que auxiliou nas

investigações acerca de lesões cerebrais. Ao final da avaliação foi realizada a entrevista

devolutiva com a mãe.

Resultados

A avaliação neuropsicológica caracteriza-se pelo cruzamento de dados obtidos a partir

de várias fontes de informações: entrevista/anamnese, testes psicométricos, exames

laboratoriais, provas informais a seguir descritos:

1. Dados relevantes obtidos da entrevista/anamnese

A participante nasceu aos oito meses, não chorou e ficou internada na incubadora por

três dias. O parto foi normal, e durante a gravidez sua mãe substituiu refeições por lanches e

sofreu de um “susto” ao saber do acidente vascular cerebral do seu marido. Após o

nascimento, foi internada várias vezes por problemas de bronquite, obtendo melhoras após

transfusão sanguínea. Aos dois anos de idade sofreu um acidente (caiu na fossa séptica) e foi

levada ao hospital ‘desmaiada’ devido ao banho de álcool e vinagre efetuado pela família.

Suas primeiras palavras foram aos três anos de idade e completou frases aos sete quando

entrou para a escola. Mora com seus pais e dois irmãos, é a segunda filha, sendo a mãe não

alfabetizada. A família possui poucos recursos, recebem dois benefícios (sendo um

proveniente da invalidez do pai), freqüentam a igreja protestante e não possuem TV. Realizou

exames complementares como o eletroencefalograma e tomografia computadorizada. Foi

medicada aos sete anos com Piracetan por um período de um ano, atualmente não faz uso de

remédios.

2. Dados obtidos dos testes

Os resultados quantitativos de inteligência geral da adolescente, obtidos através da

Escala de Inteligência Weschsler (WISC III) apresentados na tabela 1 informam os seguintes

índices: QI verbal (QIV) composto pelos sub-testes: informação, semelhanças, aritmética,

vocabulário, compreensão e dígitos; QI de execução (QIE) composto pelos sub-testes:

completar figuras, códigos, arranjo de figuras, cubos, armar objetos, procurar símbolos e

labirintos; QI total (QIT); o índice de compreensão verbal (IRD), composto pelos sub-testes:

informação, semelhanças, vocabulário e compreensão; índice de organização perceptual

(IOP), formado pelos sub-testes: completar figuras, arranjo de figuras, cubos e armar objetos;

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índice de resistência à distração (IRV), formado pelos sub-testes: aritmética e dígitos e o

índice de velocidade de processamento (IVP), composto pelos sub-testes: código e labirintos

.

Tabela 1. WISC-IIII – Resultados de QI/ Índices Fatoriais

QIV QIE QIT ICV IOP IRD IVP<45 <45 <50 46 <48 47 50 ID ID ID ID ID ID ID

Observa-se que a pontuação obtida relativa à habilidades verbais e práxicas, bem

como relativas aos índices fatoriais encontram-se significativamente abaixo da média

esperada.

O WISC-III possibilita comparar os pontos brutos da participante com normas de

idade para cada sub-teste. Abaixo, na figura 1, é possível visualizar a idade cronológica (13

anos e 2 meses) em relação a idade equivalente diante da pontuação bruta da adolescente nos

sub-testes (faixa etária mínima do teste, 6 anos).

68

10121416

CronológicaEquiva lente

Figura1 – Comparação entre idade cronológica e idade mental

Observa-se que a adolescente apresenta uma defasagem idade-cronológica/ mental de cerca de

7 anos.

Em relação à avaliação da maturação percepto-motora da adolescente por meio da

análise do teste gestáltico Bender foi encontrado resultado de 21 pontos equivalentes ao

percentil 99, descritos na tabela 2.

Tabela 2. B-SPG – Teste Gestáltico Visomotor de Bender

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Pontos Percentil Classificação 21 99 Acima do quartil 90 (µ=50-75)

Esses resultados indicam que participante está muito abaixo do esperado no que se

refere à maturidade percepto-motora, pois neste teste a quantidade de pontos está relacionada

à quantidade de erros. Os escores indicam que apenas 1% dos indivíduos ‘erram’ mais que

ela, pois a média está localizada no quartil 50-75.

Esse baixo resultado no Bender foi devido à grande distorção gráfica das formas

apresentadas pela adolescente durante o teste, representados na figura 2.

Figura 2. Cópia do Teste Bender da adolescente avaliada

Na Escala de Transtorno de Déficit de Atenção e Hiperatividade, instrumento

utilizado para a interação com a escola; foi identificado, de acordo com as respostas dos

professores, problemas nas áreas de déficit de atenção (percentil 95), hiperatividade e

impulsividade (percentil 66) e problemas de aprendizagem (percentil 82). Quanto ao

comportamento anti-social avaliado na escala, a participante não apresentou problemas em

relação ao seu grupo escolar (percentil 50). Resultados que estão indicados na tabela 3.

Tabela 3. TDAH – Escala de Transtorno de Déficit de Atenção/Hiperatividade

ÁreasDéficit de Atenção

Hiperatividade/Impulsividade

Problemas de aprendizagem

Comportamento Anti-Social

Percenti

l

95

66

82

50

ClassificaçãoRegião de maior probabilidade de apresentar o

transtorno

Acima da expectativa - apresenta mais problemas

que a maioria

Apresenta mais problemas que a maioria

Abaixo da expectativa - apresenta menos problemas

que a maioria

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Quanto aos resultados da avaliação das capacidades fundamentais para o desempenho

escolar, a participante foi classificada no nível inferior (como demonstrado na tabela 4. A

previsão de seus escores brutos em relação à idade é igual ou maior a 119 pontos, porém ela

obteve pontuação zero. Tabela 4. TDE – Teste de Desempenho Escolar

Subteste Escore bruto (EB) Classificação Previsão EB - idadeEscrita 0 Inferior ≥30Aritmética 0 Inferior ≥23Leitura 0 Inferior ≥68Total EB 0 Inferior ≥119

3. Dados dos exames de imagem e neurofisiológicos

Eletroencefalograma (21/10/2005). Conclusão: ondas lentas pós hiperpnéia.

Tomografia Computadorizada (05/11/2008). Conclusão: exames dentro dos limites do

normal.

4. Dados da avaliação comportamental

As provas informais mostraram que a adolescente foi capaz de reconhecer e nomear

corretamente objetos familiares, como por exemplo, os nomes dos objetos eletroeletrônicos de

um encarte comercial, as frutas e verduras, aparelho celular entre outros produtos do

supermercado. Demonstrou incapacidade de nomear mão direita e mão esquerda, mas soube

apontar a mão que usa para escrever (direita). Foi capaz de imitar alguns gestos e apresentou

dificuldades com os movimentos finos dos dedos. Não soube responder sobre local, datas e

horários. No restaurante, seguiu as regras como: ficar na fila, escolher os alimentos, perguntar

sobre comidas desconhecidas. Foi capaz de verbalizar necessidades básicas, como sede e uso

de banheiro. Sempre colaborativa bastante afetuosa. Relatos da mãe revelaram que a

adolescente se irrita quando contrariada, porém logo se desculpa. Em visita domiciliar, foi

observado escassez ambiental que possa contribuir adequadamente para o desenvolvimento da

participante. A família dispõe de poucos recursos. Atividade mais freqüente da participante

foi correr pela vizinhança e seu grupo de amigos caracteriza-se por crianças bem mais novas.

Os seus desenhos foram desorganizados, com presença de perseveração e com significados e

formas bastante distorcidas, tanto para desenhos espontâneos como para cópia de figuras,

números e letras básicas. Apresentou muita dificuldade para a compreensão e reconhecimento

de números e letras tanto na expressão verbal como na expressão motora. Essas observações

informais possibilitaram avaliar o aspecto comportamental da participante tanto no

consultório quanto no seu cotidiano.

Page 10: Neuropsicologia do retardo mental estudo de caso

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Discussão

Conforme apresentados na revisão teórica os fatores etiológicos do retardo mental,

segundo o DSM-IV-TR™, editado pela American Psychiatric Association (2002), “podem ser

primariamente biológicos ou primariamente psicossociais, ou alguma combinação de ambos”

(p.77). No caso clínico em discussão, segundo os dados colhidos nas entrevistas com a mãe, a

participante apresentou intercorrências pré, peri e pós-natais (nutrição inadequada, hipóxia e

queda seguida de perda de consciência) sendo estes, fatores de predisposição para o retardo

mental, combinados com um ambiente marcado por escassez material e fraca estimulação

intelectual.

Existem múltiplos fatores que levam a estabelecer um nexo causal entre o baixo

rendimento intelectual e baixo funcionamento adaptativo como o nível do coeficiente

intelectual abaixo da média (QI=50) e limitações nas habilidades adaptativas:

a. Conceituais: prejuízos da linguagem expressiva, dispraxia construtiva para letras e

números o que impossibilitam a aquisição de conceitos para dinheiro e

autodirecionamento diminuído devido uma possível disfunção de áreas frontais

entre outras.

b. Sociais: baixa auto-estima, ingenuidade, vitimização, dificuldades na relação

interpessoal de grupos etários similares, probabilidade de ser enganada. Atribuir

limitações da adaptação social exclusivas à adolescente é reduzir ainda mais suas

deficiências, pois neste aspecto, a sociedade é forte reforçadora do retardo mental.

c. Práticas: não é capaz de se transportar a não ser em locais vizinhos à sua casa, não

lida com dinheiro, não utiliza telefone. Prejuízos relacionados à imaturidade

percepto-motora como dificuldade dos movimentos finos utilizados para digitar o

teclado telefônico, não reconhecimento dos números e nomes, linguagem parca,

dificuldade de memorizar combinações numéricas. Ausência de atividade laboral.

Necessidade de permanente supervisão.

As correlações anteriores, juntamente com os dados colhidos nas entrevistas com a

mãe sobre o desenvolvimento da adolescente oferecem subsídios para a identificação do nível

moderado de retardo mental para a participante avaliada. Segundo o DSM-IV-TR™, editado

pela American Psychiatric Association (2002), o retardo mental moderado é identificado com

QI na faixa de 35-40 a 50-55 e corresponde a 10% da população com retardo mental.

De acordo com a hipótese de Vasconcelos (2004), no retardo mental estruturas

participantes na mediação da plasticidade sináptica estão defeituosas, o que conseqüentemente

prejudica o aprendizado, a memória e a cognição. O que poderia justificar o rebaixamento

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obtido em todas as áreas pela adolescente, como as intelectivas, atencionais, perceptuais,

motoras, de memória, executivas e de linguagem, ou seja, um desenvolvimento maturacional

prejudicado, confirmado por Miranda e Muszkat (2004) sobre o desafio da compreensão das

bases da neuropsicologia no desenvolvimento infantil, devido à maior complexidade nas

funções do ponto de vista ontogenético.

No que diz respeito à habilidade práxica, foi observado através do Teste Gestáltico

Visuomotor Bender- SPG (2006) uma grave distorção das formas indicando uma dispraxia

construtiva em que a participante não foi capaz de construir graficamente os modelos

propostos. Complementando a avaliação desta limitação o WISC-III, avaliou a idade

cronológica da adolescente (13 anos e 2 meses) à idade equivalente nas pontuações brutas de

cada sub-teste da escala geral de inteligência e foi encontrada uma idade inferior a 6 anos.

Resultado que demonstrou o grave atraso de desenvolvimento da participante avaliada, em

sete anos aproximadamente.

É notório que o desenvolvimento da adolescente é muito inferior em relação ao seu

grupo etário, apresentando um prejuízo difuso. Regiões responsáveis por sínteses simultâneas,

das zonas corticais terciárias amadurecem apenas aos sete anos de idade. Teria então esta

participante um entrave na formação destas sínteses, devido imaturidade destas áreas? Ou

estariam as sinapses destas zonas corticais mais prejudicadas em relação ao resto do córtex?

Conforme ponderou Luria (1984), embora os pacientes compreendam o que é dito a eles em

linguagem comum, exibem dificuldades para compreender estruturas lógico-gramaticais.

Devido à incompreensão destas estruturas lógico-gramaticais a adolescente não adquire

habilidades para leitura. As alterações de funções executivas também se mostram flagrantes

na dificuldade de planejar, manter o foco na tarefa, efetivar ações e monitorar seu

comportamento. Cabe ainda destacar o pronunciado prejuízo práxico marcado pelas

dificuldades de planejamento e efetivação do gesto motor adequado para a realização de

tarefas que envolvem controle motor fino e noções de espacialidade. A natureza dos déficits

apresentados aponta para disfunção de áreas frontais, bem como parieto-occipitais,

produzindo uma desarmonia difusa no comportamento geral da participante.

Mas como inaugurou Luria (1984) o cérebro opera em concerto, e quando se fala em

déficits estes coexistem com potencialidades. Apesar do grande atraso de desenvolvimento

apresentado pela adolescente avaliada, ela pode se beneficiar de apoios na área de

desenvolvimento humano, como as habilidades motoras finas, ter acesso a locais

educacionais, ser incentivada nas atividades da vida doméstica e da vida comunitária, ter

acesso aos serviços de terapia. Contextualização dos seus interesses e de suas preferências e a

Page 12: Neuropsicologia do retardo mental estudo de caso

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intensidade devem várias para cada treino de habilidade. Durante a avaliação demonstrou

motivação para colaborar e expressão emocional.

Os exames de neuroimagem não podem fotografar o funcionamento complexo

cerebral, portanto a avaliação neuropsicológica de acordo com Brasil (21 de novembro de

2008, comunicação pessoal) se faz um instrumento de investigação de função mental bastante

eficaz. Contribuindo para o auxilio diagnóstico e para o planejamento das intervenções

terapêuticas.

Um sistema de apoio viável para a participante avaliada demanda diversas

intervenções em variados contextos. Delineamento de programas de reabilitação com ênfase

no treino de funções práxicas e verbais, bem como intervenções no ambiente escolar e

familiar e a articulação de uma rede de apoio voltada para a inclusão social.

REFERÊNCIAS

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AMERICAN ASSOCIATION ON MENTAL RETARDATION. (2006). Retardo mental: definição, classificação e sistema de apoio. Porto Alegre: Artmed.

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CAMARGO, C. H. P.; BOLOGNANI, S. A. P. & ZUCCOLO, P. F. (2008). O exame neuropsicológico e os diferentes contextos de aplicação. In D. Fuentes, L. F. Malloy-Diniz, C. H. P. Camargo, R. M. Cosenza (Org(s).), Neuropsicologia: teoria e prática (pp.103-118). Porto Alegre: Artmed.

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