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Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE) Campus de Marechal Cândido Rondon Centro de Ciências Humanas Educação e Letras (CCHEL) Colegiado do Curso de História O CAIPIRA CHICO BENTO: Representações do caipira nas Histórias em Quadrinhos do Chico Bento de Mauricio de Sousa (1962-2012). DOUGLAS LUIS WRASSE MARECHAL CÂNDIDO RONDON 2013

O caipira chico bento

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Page 1: O caipira chico bento

Universidade Estadual do Oeste do Paraná (UNIOESTE)

Campus de Marechal Cândido Rondon

Centro de Ciências Humanas Educação e Letras (CCHEL)

Colegiado do Curso de História

O CAIPIRA CHICO BENTO:

Representações do caipira nas Histórias em Quadrinhos do Chico Bento de Mauricio de Sousa

(1962-2012).

DOUGLAS LUIS WRASSE

MARECHAL CÂNDIDO RONDON

2013

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DOUGLAS LUIS WRASSE

O CAIPIRA CHICO BENTO:

Representações do caipira nas Histórias em Quadrinhos do Chico Bento de Mauricio de Sousa

(1962-2012).

Monografia apresentada na Universidade Estadual

do Oeste do Paraná (UNIOESTE), Centro de

Ciências Humanas Educação e Letras (CCHEL),

para obtenção da graduação em história, sob

orientação da professora Geni Rosa Duarte.

MARECHAL CÂNDIDO RONDON

2013

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Dedicado ao tempo

Que insiste em mudar minha vida.

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Resumo

A presente monografia visa analisar a revista em quadrinhos “Chico Bento”, do autor Mauricio de Sousa, problematizando as relações sociais do caipira que estão inseridos dentro da revistinha no período de 1961 a 2012. Para essa análise buscamos entender a origem dessa população, indo além do recorte estabelecido, buscando entender como foram constituídos alguns estereótipos caipiras, para isso buscando relacionar o personagem Jeca Tatu de Monteiro Lobato e o trabalho de Cornélio Pires, que disseminaram a representação social do caipira no Brasil. Na revistinha do Chico Bento buscou-se analisar como esses estereótipos estão sendo apresentados, buscando analisar conceitos entre eles: religião, folclore, cidade x campo, desigualdade social, linguagem caipira, educação, assim como as vestimentas, os cenários, as falas, as relações e as contradições sociais que estão presentes nessas histórias em quadrinhos. Palavras Chaves: Quadrinhos, Chico Bento, Caipira.

Abstract

This monograph analyzes the comic book "Chico Bento", the author Mauricio de Sousa, questioning the social relations of the peasant that are inserted into the comic in the period1961-2012. For this analysis we seek to understand the origin of this population, going beyond the established crop, trying to understand how some hillbilly stereotypes were formed, seeking to relate to this character Jéca Tatu Lobato and work of Cornélio Pires, who spread the social representation of the peasant in Brazil. In the comic Chico Bento we sought to examine how these stereotypes are presented, trying to analyze concepts including: religion, folklore, city x field, social inequality, hillbilly language, education, and the costumes, the sets, the lines, the relations and social contradictions that are presenting these comics.

Key Words: Comics, Chico Bento, Grit.

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Agradecimentos:

Este é o momento de agradecer a todos que me apoiaram e me ajudaram

durante toda a graduação, e da minha formação social. Por isso agradeço:

Primeiramente á minha família que me apoiou em cada fase da minha e das

minhas decisões de vida. Agradeço pelo apoio financeiro e psicológico que meu pai,

Enio Wrasse, e minha mãe, Marisa Wrasse, me deram. Ao meu irmão pela

cumplicidade e pelos momentos de alegria. Ao meu Tio, Egon Wrasse, por me ceder

vários exemplares da revistinha do Chico Bento, que foram fundamentais para

terminar a monografia. Agradeço também a minha avó Iolanda pelos anos de

companhia e ao meu avô Valdevino, que faleceu antes de eu terminar a faculdade,

foi uma grande perda para mim.

Foram seis anos de graduação, muitos amigos partiram e novos chegaram.

Nesse processo tenho de agradecer a todos que de alguma maneira me deram

forças para continuar, mesmo não estando mais presentes. Agradeço também os

professores que me ajudaram a crescer intelectualmente. Não vou elencar nomes,

pois são muitos, agradeço a todos da mesma maneira, cada um foi especial dentro

desse processo.

A todos os meus colegas que me ajudaram e me alegraram durante a

constituição da monografia. Agradeço em especial aos colegas Miriam, Mara,

Camila, Deivid, Jhonny, Leonita, Jonas, e vários outros que fizeram parte da minha

graduação. Agradeço em especial a Talita Santana e Ana Paula Lenhardt pela

indicação do acervo de gibis da biblioteca pública de Toledo que foi fundamental

para entender o universo do caipira Chico Bento.

Por fim agradeço ao professor Davi Félix que me ajudou a montar o projeto e

a minha orientadora que me auxiliou, apesar dos muitos desencontros e muitas

discussões, e possibilitou transformar o projeto nesta presente monografia.

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Sumário

Introdução: ....................................................................................................................................... 9

Capítulo 1: A construção do caipira..............................................................................................13

1.1 O caipira e suas origens.................................................................................................13

1.2 O estereotipo criado: Monteiro Lobato e Cornélio Pires. .................................................17

1.3 A reconstrução do caipira....................................................................................................25

Capítulo 2: O caipira Chico Bento. ...............................................................................................31

2.1 Mauricio de Sousa: Autor e obra. .......................................................................................31

2.2 – Chico Bento e sua turma..................................................................................................32

2.2.1 – O processo de transformação dos personagens. .......................................................37

2.2.2 – O caipira como sujeito ingênuo, literal, preguiçoso e humilde. .................................41

2.2.3 – A educação brasileira no campo representado nas histórias do Chico Bento. ........45

2.2.4 – A linguagem caipira. ......................................................................................................47

2.2.5 – A religiosidade no universo caipira. .............................................................................49

2.2.6 – A relação campo x cidade e a desigualdade social....................................................52

2.2.7 – As relações familiares. ..................................................................................................57

2.2.8 – O Folclore brasileiro representado nos quadrinhos....................................................59

2.2.9 – “O caipira não pode mudar”. .........................................................................................62

Considerações finais:.....................................................................................................................64

Referencias Bibliográficas: ............................................................................................................66

Sites consultados. .........................................................................................................................67

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Índice de imagens

Figura 1 Chico Bento e suas diferentes versões .............................................. 34

Figura 2 Chico Bento em sua primeira aparição .............................................. 35

Figura 3 Evolução da Tina................................................................................ 39

Figura 4 primeiras representações do personagem Chico Bento nas histórias de

Hiroshi e Zezinho ............................................................................................. 39

Figura 5 Chico Bento na cidade ....................................................................... 40

Figura 6 Representação da preguiça ............................................................... 43

Figura 7 Chico Bento na escola ....................................................................... 46

Figura 8 Padre Lino nota-se sua vestimenta e a cabeça raspada típica dos monges

franciscanos. .................................................................................................... 51

Figura 9 Chico Bento e seu Primo Zeca representação dos problemas entre a cidade

e o campo. ........................................................................................................ 53

Figura 10 Montagem de quadrinhos com lendas nacionais e internacionais.....61

Figura 11 Chico busca dinheiro para comprar um presente para Rosinha....... 63

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Introdução:

Este presente trabalho de conclusão de curso é o resultado de uma

análise da revista em quadrinhos “Chico Bento”, do autor Mauricio de Sousa,

que problematiza as representações sociais do caipira, inseridas dentro das

histórias da revistinha.

A primeira publicação das histórias em quadrinhos do Chico Bento

ocorreu em 1962, no formato de tiras, no jornal Diário de São Paulo, e, desde

então, vem mexendo com o imaginário de muitas crianças, adolescentes e

alguns adultos. Desde minha infância fui cercado por esse universo mágico que

são as histórias em quadrinhos. Essa questão pessoal de aproximação com

esse universo e com as leituras acadêmicas me despertou o interesse de

discutir as relações em torno da formação do caipira Chico Bento.

O trabalho se propôs a analisar a representação do caipira desde a sua

primeira publicação, de 1962, até o ano de 2012. Não tive acesso a todos os

exemplares já publicados da revistinha do Chico Bento, e não teria tempo hábil

para a leitura de todos também, pois seriam em torno de 720 exemplares ao

longo desses 50 anos de história, mas dentro deste número foram lidas 80

exemplares que abarcaram todo o período de publicação da revistinha, além da

observação de várias capas disponíveis na internet. Dentro deste processo foi

possível notar várias mudanças na estética e nas ações dos personagens.

Para compreende quais representações analisar nas histórias busquei

observar alguns aspectos. Primeiramente me detive na análise das

representações em torno das relações: Cidade x Campo, e de aspectos como a

ingenuidade, literalidade, humildade, os laços familiares, a religiosidade, o

papel do folclore, a questão da linguagem, a educação e principalmente as

mudanças que foram surgindo no decorrer dos anos. Esses pontos foram

selecionados, pois fazem parte do universo caipira. O segundo ponto analisado

nas histórias foram as peculiaridades. Nesse momento busquei observar

algumas histórias que possuíam aspectos interessantes ligadas ao universo

caipira e que não se repetiam facilmente. Dentro desse processo se notou a

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história da personagem Marina e toda sua peculiaridade dentro do universo

caipira.

As mudanças chamaram bastante minha atenção, ligadas a

acontecimentos históricos brasileiros e também outras internas à produção da

revistinha, e essas razões não poderiam deixar de ser problematizadas. Outra

questão que chamou bastante atenção foi que as representações do caipira da

revistinha do Chico Bento apresentam características bem distintas da

realidade de muitos dos leitores. Na maioria são leitores que moram no meio

urbano, mas a revista apresenta situações da vida no campo de um modo de

vida bem diferente das agitadas cidades.

A análise abordou desde exemplares das primeiras publicações da

revistinha até as algumas publicações atuais.

Mas o tema do caipira não tem sua origem nos quadrinhos do Chico

Bento. O modo de vida caipira já era abordado por escritores, pintores,

cineastas e outros quadrinistas desde o final do século XIX até boa parte do

século XX. Por essas razões foi precisoufazer um grande recuo histórico para

apresentar tanto o caipira como sujeito social quanto as representações

construídas por esses autores que retrataram essa figura. Entre eles temos o

trabalho de Monteiro Lobato que é de 1918. Esta incursão à obra de Monteiro

Lobato se fez necessária, pois é nela que se elaborou a representação social

do caipira que se disseminou mais fortemente pela teia social no Brasil, sendo

recriada, em outros tempos e espaços sociais, posteriormente.

Nas produções icnográficas o caipira também foi bem enfatizado antes

dos quadrinhos do Chico Bento. No inicio do século XIX surge o trabalho de

Ângelo Agostini, considerado um dos primeiros quadrinistas do mundo, cujos

personagens principais são os homens do campo. Apesar de seu trabalho ser

diferente das produções feitas por Mauricio de Sousa quase um século depois,

a representação de um personagem ingênuo e literal é muito similar.

Os personagens das histórias em quadrinhos acabam se constituindo de

forma distorcida da realidade. As representações do caipira, dentro das

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histórias constituídas nos quadrinhos e na literatura, vão mexer com o

imaginário dos leitores, hoje em sua maioria provenientes das cidades.

Para entender a representação de um quadrinho como um todo se deve

ter em mente que tudo que está exposto no quadrinho tem uma característica

representativa que o autor está querendo repassar para o seu público leitor,

pois esse todo é uma relação constante de disputa em que o dominador do

conhecimento “impõem ou tenta impor a sua concepção do mundo social, os

valores que são os seus e o seu domínio”1. Por tanto, não podemos analisar

tão somente os personagens, mas também o que está se passando ao redor

do personagem.

Por essa razão foi analisado a construção dos cenários em que ocorrem

nos quadrinhos. Analisando dentro do contexto histórico as representações que

estes cenários propõem a representar, incluindo as concepções religiosas, a

construção do debate campo verso cidade, o mundo folclórico, e também

discussões em torno de temas como as vestimentas, linguagem, o modo de

vida, de pensar e agir em sociedade torna possível pensar as representações

do caipira de Maurício de Sousa. Para que essas representações sejam

analisadas esse trabalho foi dividido em dois capítulos.

O primeiro capítulo busca apresentar algumas discussões sobre o

surgimento dessa população chamada de “caipira”, apresentaremos a origem

da expressão “caipira”, bem como as visões, em torno de maneira sintetizada,

principalmente de Monteiro Lobato, Darcy Ribeiro, e Antônio Cândido. A origem

de muitos dos estereótipos criados pelas representações sociais do caipira

construídas por Lobato permanecem até hoje no imaginário da sociedade.

Vários intelectuais (literatos, folcloristas, sociólogos, etc.) se preocuparam em

definir essa população, suas características e seu lugar dentro da população

brasileira.

O segundo capítulo busca analisar historicamente as representações

sociais em que o caipira está sendo inserido, dentro de uma perspectiva de

1 CHARTIER, Roger. A História cultural Entre práticas e representações. Rio de Janeiro, Ed. Bertrand

Brasil, 1990.

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imagens estereotipadas que vão construir diversas visões para dentro do

universo de leitores e apreciadores de arte, sendo eles crianças ou adultos.

Fizemos então uma análise do caipira Chico Bento e como sua turma e

construída para recriar uma visão do universo caipira. A discussão se centrou

em torno de algumas questões como a religiosidade, a educação, a fala e a

cultura popular, entre outras.

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Capítulo 1: A construção do caipira.

1.1 O caipira e suas origens.

Caipira é um termo de origem tupi, de ka'apir ou kaa - pira, que significa

"cortador de mato". É o nome que os indígenas guaianás do interior do Estado

de São Paulo, deram aos colonizadores brancos, caboclos, mulatos e negros

que habitavam a região desde os tempos coloniais brasileiros no século XVIII.

A designação do termo caipira alcançou, sobretudo, populações da antiga

Capitania de São Vicente, depois capitania de São Paulo, que abrangia a

extensa região que ia de Minas Gerais, Paraná até à região de Lajes, no

estado de Santa Catarina, abrangendo ainda Mato Grosso e Goiás.2

O termo "caipira", no entanto, costuma ser utilizado com mais frequência

no Estado de São Paulo. Corresponde, em Minas Gerais, ao capiau (palavra

que também significa "cortador de mato") e, na região Nordeste, matuto. O

caipira tem, segundo o dicionário Aurélio, a identidade de “habitante do campo

ou da roça, particularmente os de pouca instrução e de convívio e modos

rústicos e canhestros”3 uma identificação bem simples e que não representa a

totalidade dessa população. O dicionário ainda segue apresentando as

seguintes denominações pelo Brasil: araruana; babaquera; babeco; baiano;

baiquara; beira-corgo; beiradeiro; biriba ou biriva; botocudo; brocoió;

bruaqueiro; caapora; caboclo; caburé; cafumango; caiçara; cambembe;

camisão; canguaí; canguçu; capa-bode; capicongo; capuava; capurreiro;

cariazal; casaca; casacudo; casca-grossa; catatuá; catimbó; catrumano;

chapadeiro; curau; curumba; groteiro; guasca; jeca; jacu; macaqueiro;

mambira; mandi ou mandim; mandioqueiro; mano-juca; maratimba; mateiro;

matuto; mixanga; mixuango ou muxuango; mocorongo; moqueta; mucofo; pé-

2 Dados disponíveis em: http://www.ecobrasil.org.br/publique/cgi/cgilua.exe/sys/start.htm?infoid=338&sid=59. Site consultado no dia: 05/09/2013. 3 FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa. Positivo,

Curitiba; 2009.

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duro; pé no chão; pioca; piraguara; queijeiro; restingueiro; roceiro; saquarema;

sertanejo; sitiano; tabaréu; tapiocano; urumbeba ou urumbeva.

A quantidade de termos para a designação desses sujeitos ocorre por

sua grande expansão dentro do território brasileiro, sendo que em sua maioria

derivada de línguas indígenas e com significado muito similar ao termo

“habitante do campo”. Ou então derivam da literatura, como no caso de

Monteiro Lobato com o personagem Jeca Tatu, no interior de uma região

voltada para a produção latifundiária e monocultora de café que irá construir

um estereotipo do caipira. Pensando nessa questão temos a seguinte reflexão

de Silvio Romero:

Caipira, matuto, tabaréu, mandioca, capixaba e outros congêneres são expressões de menosprezo, de debique, atiradas pela gente das povoações, cidades, vilas, aldeias e até arraiais contra o habitante do campo, do mato, da roça. São expressões de um antagonismo secular. São chufas de desfrutadores de empregos, profissões e outros variados meios de vida, que a habilidade de certas populações faz nascer nas grandes aglomerações de gente, especialmente contra os que mourejam nas rudes tarefas do amanho das terras, do cultivo dos capôs.4

Por sua grande quantidade de designações e por sua maioria ser termos

indígenas, pode-se afirmar que está população surgiu juntamente com a

colonização brasileira, sendo uma população formada da mistura do branco

com o índio, e mais tarde com o negro.

Assim como seus modos de vida, essa população caipira do interior

paulista é vista pelo senso comum de forma preconceituosa como sendo o

habitante de nosso interior atrasado, de instrução precária e costumes

ultrapassados. Contudo, segundo alguns estudos, o caipira constitui a parcela

da população paulista, e possui uma cultura rústica5 e diferenciada,

permanecendo como parte integrante da cultura nacional. O caipira segue

sendo definido como um sujeito social delimitado geograficamente, situando-se

4 ROMERO, Sílvio. apud YATSUDA, Enid. O caipira e os outros. In BOSI, Alfredo. Cultura Brasileira: Temas

e situações. São Paulo, Ed. Ática, 1992. 5 Entende-se no conceito de cultura rústica a concepção apresentada por Antonio Candido, não sendo um termo que designa somente a vida rural e grotesca, mas num conceito mais abrangente que abrange o universo do homem do campo e seu ajustamento na vivencia dentro das mudanças no Brasil. Para uma melhor explicação ver: CÂNDIDO, Antonio. Os parceiros do rio bonito. São Paulo, Livraria duas cidades, 1987. P. 21

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principalmente em São Paulo, e em algumas regiões do Rio de Janeiro, Minas

Gerais e Mato Grosso.

A população caipira é constituída a partir de dois momentos históricos

distintos. Darcy Ribeiro aponta que essa população surge devido a um

processo denominado por ele de regressão social6, que teria ocorrido no

término das bandeiras e no fim do ciclo do ouro em Minas Gerais e região.

As bandeiras eram organizadas em São Paulo com a finalidade de

explorar o interior do Brasil e caçar e escravizar populações indígenas. Esse

processo surgiu pela necessidade de enriquecimento de parte da população

paulista. As bandeiras vão gerar nessa população uma vida seminômade com

espírito aventureiro. Suas habitações vão ser constituídas de casas feitas de

taipas ou adobe, de forma precária, e temporária, o que demonstra que esses

paulistas estavam sempre prontos para seguir viagem.

No entanto, com o fim da escravidão dos indígenas e, posteriormente,

da escravidão negra, esse processo se encerra e ocorre então aquilo que

Ribeiro nomeou de regressão social. O caboclo retorna para suas terras,

constituindo uma produção de subsistência onde será produzido o suficiente

para manter o sustento de sua família e de sua vila ou cidade.

No segundo processo ocorre a mesma situação. O ciclo do ouro gera

uma grande mobilidade populacional em direção às minas, ocorrendo em

algumas regiões um grande esvaziamento populacional. Com o esgotamento

das jazidas mineiras, na segunda metade do século XVIII, a situação

econômica dessas populações se agrava, ocorrendo então o mesmo processo

que ocorreu com o fim das bandeiras e caças aos indígenas e escravos

fugidos. Parte dessa população se empobrece e retorna para um modo de vida

sobrevivência, se fixando novamente em regiões remotas do interior, paulista,

do sul de Minas Gerais, do oeste de Mato Grosso, e algumas regiões do Rio de

Janeiro e Paraná.

Com esses processos de exploração na região vai correr um grande

processo de miscigenação tanto cultural quanto física, entre os índios e os

6 RIBEIRO, Darcy. O povo brasileiro. Companhia das Letras, São Paulo, 1997.

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brancos, e posteriormente com os negros. No século XVIII quando chega ao

fim os processos de exploração de ouro e a caça ao indígena, teria ocorrido em

São Paulo e regiões um processo de estabilização, mas com caráter provisório.

Ou seja, uma parcela dessa população que busca sobreviver e produzir para

seu sustento com excedente formando a chamada a cultura caipira.7 A

população paulista, formada inicialmente por europeus, precisava aprender a

sobreviver e explorar o meio ambiente, porém não possuíam conhecimento

suficiente, dessa maneira tornou-se necessário a absorção da cultura indígena.

Essa população caipira produz basicamente para sua sobrevivência,

com um pequeno espaço para lavoura e criação de animais. A caça e a pesca

vão ser à base de sua produção, o excedente da colheita da lavoura é vendido

ou trocado nas feiras das cidades, com objetivo de obter o que não era

possível produzir em suas terras, como o sal, o tecido e o querosene.

Um dos maiores problemas que está população, constituída então por

posseiros, sitiantes e agregados têm é com a própria posse da terra. Uma

população pobre e isolada, e, na maioria das vezes, não possuírem o título das

terras e o e uma inexistente força política.

[...] onde quer que o jogo e os valores de mercado agrícola gerassem negócios com a terra de negócios, o lavrador “dono”, posseiro, ou agregado era expulso, empurrado em direção a um oeste8.

Os problemas que atingem a população e a cultura caipira, levando a

uma possível extinção, vão surgir a partir de dois momentos de transformação

que se iniciam no final do século XIX e boa parte do XX. Na primeira etapa,

com o aumento da exploração das terras produtivas, as populações caipiras

constituída de posseiros agregados e sitiantes, que não possuíam o registro da

terra, mesmo nela vivendo a vida toda, vão passar a ser perseguidos e

expulsos cada vez mais para o interior. Ou então inseridos dentro da lógica do

mercado agrícola, subordinados ao proprietário da terra ou pior acabam

7 RIBEIRO, op.cit. 8 BRANDÂO, in HERCULIANI, Sueli. A população tradicional caipira e sua reprodução sociocultura frente

às políticas de conservação e os processos de educação – Parque Estadual do Jurupará, Ibiúna – SP. Tese de mestrado. USP, São Paulo, 2009.

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parando nas cidades, servindo de mão de obra para as primeiras indústrias e

comércio brasileiro.

Com esse processo de aumento de exploração da terra ocorre um

grande processo de deslocamento populacional, primeiramente em direção as

zonas de fronteiras. Mas, para as populações, que continuaram a viver nessas

regiões nas quais ocorreu o aumento de exploração, da terra tiveram que

alterar seu modo de vida. Para a população caipira a fonte alimentar derivada

de caçadas e pescas passou a ser um problema.

O segundo problema sobre a permanência dessa cultura ocorre com o

avanço tecnológico, melhorias de implantação no campo, expansão das

indústrias e do desenvolvimento das cidades no Brasil a partir do século XX.

Com esses processos ocorre uma maior exploração econômica da terra. A

população que vivia da agricultura familiar foi gradativamente perdendo espaço

para as novas formas de exploração da terra.

Será então dentro desse processo, onde a população caipira não tinha

mais espaço para os novos formatos de exploração da terra que os principais

estereótipos em torno do caipira vão surgir.

1.2 O estereótipo criado: Monteiro Lobato e Cornélio Pires.

É um fato bem curioso que os principais escritores e artistas que falam

sobre o caipira vão surgir no amplo Vale do Paraíba. Temos entre eles o

escritor Monteiro Lobato, o cineasta Amácio Mazzaropi9, que vai dar uma

imagem visual em filmes para o personagem Jeca Tatu, e posteriormente

Maurício de Sousa.

9 Amácio Mazzaropi nasceu em 1912 em São Paulo. Foi um importante cineasta brasileiro da década de 1950, produziu em sua carreira 32 filmes, com modelo independente de fazer filmes, seu principal sucesso foi encarnando o personagem Jeca Tatu de Monteiro Lobato. Seu principal público foi a população pobre. O que ajudou a disseminar ainda mais o estereotipo criado por Monteiro Lobato. Dados disponíveis no site: http://educacao.uol.com.br/biografias/amacio-mazzaropi.jhtm. Consultado em: 25/11/2013.

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O vale do Paraíba era uma região de concentração caipira, mas com os

avanços econômicos essa área voltou-se para a produção de café. Nessa

região de grandes latifundiários é que vai ser construído o estereótipo do

caipira. Será então no século XX que a imagem do caipira vai ser debatida,

entre o romantismo de Cornélio Pires e o pré-modernismo de Monteiro Lobato.

Lobato juntamente com o imaginário da elite paulista, vai se pautar pelas

ideias de progresso e modernidade, com repudio ao passado colonial e

imperial, considerados como formas atrasadas de vida. Com isso o que era

nacional passou a ser visto com péssimos olhares, e uma política de

europeização começou a ser imposta mais enfaticamente. Os, “excluídos,

rebeldes, negros, imigrantes, ou trabalhadores que resistissem ou se

opusessem eram classificados como ignorantes”10.

Monteiro Lobato (1882-1948) nasceu em Taubaté, São Paulo, no dia 18

de abril de 1882. Seu avô era o Visconde de Tremembé, o que já demonstra

seu lado voltado para exploração agrícola e o latifúndio. Vai ter sua vida

voltada para escrever livros, principalmente contos, ganhando fama com o

personagem Jeca Tatu (1918), segundo ele símbolo do homem do interior,

preguiçoso, pobre e doente, um problema para o desenvolvimento.

Posteriormente já com outro olhar sobre o homem do campo, cria os

personagens infantis do Sitio do Pica-Pau Amarelo (1931). Lobato vai herdar a

fazenda de seu avô, e vai ser no período de sua moradia nessa região que ele

vai entrar em contato com o “estilo caipira” de viver, e vai então construir o

estereótipo do caipira.

“Nada o esperta. Nenhuma ferrotoado o põe de pé. Social, como

individualmente, em todos os atos da vida, Jéca, antes de agir, acocora-se”.11 E

prossegue: “para comer, negociar uma barganha, ingerir um café, tostar um

cabo de foice, faze-lo noutra posição será desastre infalível. Ha de ser de

cocoras”.12 Sobre a falta de iniciativa do caipira com as grandes plantações

Lobato conclui, “Ha mil razões para isso; por que não é sua terra; por que se

10 SETUBAL, Maria Alice. Vivencia caipiras: Pluralidade cultural e diferente temporalidades na terra paulista. São Paulo. Ed. CENPEC/ Imprensa Oficial de São Paulo, 2005. p. 41. 11

LOBATO, Monteiro. Urupês. Brasiliense, São Paulo, 25 edição p. 147. 12 Idem. p.147.

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‘tocarem’ não ficará nada que outrem aproveita; por que para fruta ha o mato;

por que a ‘criação’ come; por que ...”13. Para Lobato o caipira não sabia lidar

com a terra, como os grandes produtores, sem considerar que ele tinha sua

forma de produção, retirando da natureza os materiais fundamentais para sua

vida. Para tal teria que adquirir conhecimentos e desenvolver técnicas, mesmo

que simples/rústicas, que pudessem auxilia-lo com o trabalho na terra.

Lobato vai construir essas representações estereotipadas por ter uma

visão de fazendeiro de café, como Setubal define sobre a visão que os

fazendeiros de café possuíam em relação ao caipira:

O modo de vida caipira e seu ritmo diferenciado do trabalho da terra, seguindo os ciclos da natureza, eram de impossível compreensão para os fazendeiros de café, o que gerou inúmeras críticas e principalmente uma visão estereotipada sobre o lavrador nacional, visto quase sempre como vadio e inepto para o trabalho, justificando, assim, a política de imigração para a criação de uma mão-de-obra disciplinada, sistemática e estável.14

O autor construiu o personagem Jeca Tatu num período em que o ser

nacional era objeto do debate social. Durante o período da Primeira República

brasileira, o autor vivenciou um contexto de confronto entre a herança do

mundo colonial e a cidade. Lobato conviveu com as disputas pelo controle do

Estado entre as oligarquias cafeeiras e as novas forças políticas, econômicas e

culturais originárias do meio urbano-industrial.

Será no período de vivência do autor que as ideias de modernização

brasileira vão ter maior ênfase. Da Primeira República até 1964, o Brasil vai

passar por um processo de estruturação agrária e urbana. Claro que as

mudanças vão ocorrer de formas distintas nos diversos tempos e espaços, mas

o que fica em comum é a expansão e modernização da estrutura produtiva do

meio rural. As estruturas econômicas e políticas no Brasil estavam fortemente

ligadas ao mundo rural, transformando assim num forte confronto de forças

entre as oligarquias agrárias e de uma burguesia emergente. No meio desse

confronto a literatura não ficava livre dessas disputas, nem tampouco os

sujeitos sociais marginalizados como o caipira.

13

LOBATO, op.cit. p. 149. 14 SETUBAL, op.cit. p. 36.

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Jeca Tatu vai representar o passado colonial que precisava ser

superado e esquecido, simbolizando o que os modernistas chamavam de

“idade das trevas brasileira” que precisava ser expurgada. Crítico do

romantismo, Lobato busca, ao construir a imagem do caipira como um sujeito

marginalizado e débil que precisava ser erradicado da sociedade, criar o Jeca

Tatu, para desconstruir a visão de outros autores. Cita especificamente,

Cornélio Pires, que construiu outra visão sobre o caipira, bem como critica o

movimento do romantismo que estava em transição:

Morreu Peri, incomparável idealização dum homem natural como sonhava Rosseau, protótipo de tantas perfeições humanas que no romance, ombro a ombro com altos tipos civilizados, a todos sobreleva em beleza d’alma e corpo.15

Lobato em sua primeira frase “Morreu Peri”, faz a alusão ao personagem

criado por José de Alencar na obra “O Guarani”, representante do romantismo

e do indianismo brasileiro. Seguindo na citação, Lobato aponta a figura de

Rosseau, utilizado como fonte de ideologia pelos romancistas.

“o homem nasce bom e virtuoso, sendo corrompido no momento em que se insere no sistema social. Sob esse aspecto, a tentativa de retorno à condição humana primitiva, feita por meio da revalorização do amor e da amizade, representa também a re-tomada da natureza, visto como oposto da infelicidade e da injustiça, sentimentos inerentes à engrenagem que impulsiona a máquina social”16

Seguindo essa posição, que valoriza o natural, o primitivo, onde homem

puro deve ser valorizado. Lobato vai ser crítico a esta forma de ver a

sociedade. Sobre Peri, Lobato prossegue “Não morreu, todavia. Evoluiu”17.

Para o autor Peri ressurgiu sob a forma de outro sujeito, com outro nome; o

“indianismo” foi substituído por:

“caboclismo” “o cocar de penas de arára passou a chapeu de palha rebatido á testa; a ocára virou rancho de sapé: o tacape afilou, criou gatilho, deitou ouvido e é hoje espingarda troxada; o boré descaiu lamentavelmente para pio de inambu; a tanga ascendeu a camisa aberta ao peito” 18.

15 LOBATO, op.cit. p. 145. 16 Retirado do site : http://www.unicamp.br/~jmarques/cursos/2000rousseau/js.htm. Site consultado na data :03/09/2013. 17

LOBATO, op.cit. p. 146 18 Idem. P. 146

Page 21: O caipira chico bento

21

Jeca Tatu se tornou um marco divisório entre dois mundos e vai

representar o mundo rural arcaico, injusto e atrasado; enquanto o seu oposto

vai ser o mundo moderno, urbano e industrial, que precisava ser implantado na

sociedade brasileira para superar as injustiças sociais.

Lobato vai construir o Jeca Tatu em duas fases distintas, mas de

maneira geral buscava com elas criticar o modo de vida atrasado da sociedade

brasileira e a falta de política de incentivo para a modernização do campo,

apontando os remédios para a resolução desse problema.

Na primeira fase em 1915 Monteiro Lobato publica o artigo “Urupês”19,

onde cria a personagem do Jeca Tatu. O artigo define e caracteriza o Jeca

como uma criatura ignorante, preguiçosa, inútil, sem nenhuma ambição, “o

caboclo é o sombrio urupê de pau podre a modorrar silencioso no recesso das

grota”20, como já apontamos Ao contrário da busca de um primitivismo como

base de uma cultura iminentemente nacional dos modernistas quatro anos

mais tarde, Monteiro vê no caipira como algo constitutivo de nossa fraqueza,

um urupê da sociedade que precisava ser erradicado. O artigo decorre da

publicação, já em 1914, do artigo Velha Praga, no jornal O Estado de São

Paulo.

Em seu segundo momento, Monteiro Lobato publica Jeca Tatu: a

Ressurreição, em 1918, onde traça uma segunda identidade do caipira.

Embora o estereótipo ainda permaneça o mesmo, o Jeca, a ser visto não mais

como o principal problema da sociedade, mas como vítima de políticas públicas

de um Estado que o deixa à margem do desenvolvimento. Se antes o caboclo

era um parasita, agora é um “parasitado por verminoses”, passando de praga a

vítima, "Jeca Tatu não é assim, ele está assim". Lobato busca com o conto “a

ressureição” para além da questão da saúde, a ideologia do trabalho agrícola.

Jeca, cheio de coragem, botou abaixo um capoeirão para fazer uma roça de três alqueires. E plantou eucaliptos nas terras que não se prestavam para cultura. E consertou todos os buracos da casa. E fez um chiqueiro para os

19 Urupês é uma palavra derivada do tupi que representa um tipo de cogumelo chamado “orelha de pau”, fica bem clara a utilização desse termo para representar o caipira brasileiro. Lobato assim demonstra o caipira como sendo um parasita que nasce e sobrevive a custa do Brasil. 20 LOBATO, op.cit.

Page 22: O caipira chico bento

22

porcos. E um galinheiro para as aves. O homem não parava, vivia a trabalhar com fúria que espantou até o seu vizinho italiano.

21

Para além da mudança de hábito do Jeca, ele se transformou em um

homem sem medo e que tudo poderia fazer para melhorar sua vida. Até

mesmo transformar a fazenda, pois “tudo ali era por meio do rádio e da

eletricidade. Jeca, de dentro do seu escritório, tocava num botão e o cocho do

chiqueiro se enchia automaticamente de rações muito bem dosadas”.22 Assim

Lobato faz uma construção do conceito de trabalho e do que ele espera para o

Brasil, como um país moderno para o campo. Em outro trecho e possível

perceber a influencia que Lobato recebia dos Estados Unidos da América:

“Quero falar a língua dos bifes para ir aos Estados Unidos ver como é lá a

coisa. O seu professor dizia: O Jeca só fala inglês agora. Não diz porco; é pig.

Não diz galinha! É hen...”23.

Em 1924 com a aproximação de Lobato das ideais dos sanitaristas e

por estar bastante em foco o seu personagem na mídia e na política, o Jeca

Tatu é usado numa campanha pública de saúde, com o nome de Jeca

Tatuzinho. E, em 1927, passa a protagonizar a campanha do Biotônico

Fontoura, quando se torna nacionalmente conhecido. 24

Desde o início do século XX até a década 1970, o personagem Jeca

Tatu foi usado para justificar a necessidade se produzir um processo

modernizador e civilizador do meio rural brasileiro. O personagem foi muito

utilizado pelos discursos de políticos, de autoridades governamentais, de

21 Retira do conto “Jeca Tatu: A ressurreição” disponível em: http://www.projetomemoria.art.br/MonteiroLobato/bibliografialobatiana/contos1.html, site consultado no dia 05/09/2013. 22 Retira do conto “Jeca Tatu: A ressurreição” disponível em: http://www.projetomemoria.art.br/MonteiroLobato/bibliografialobatiana/contos1.html, site consultado no dia 05/09/2013. 23 Idem. 24 “Em uma terceira fase Monteiro Lobato cria a personagem Zé Brasil em 1947. O Jeca Tatu de caráter

nacional, uma busca de se retificar perante a sociedade e principalmente para esses sujeitos sociais que ele

tanto marginalizou, essa mudança se dá principalmente pelos ideais comunistas que ele vai agregando em

sua vida. A mudança de perspectiva passa a enfocar as perversões do capitalismo e da modernidade

nacionais, além dos problemas do latifúndio. Se para o escritor de 1914 o caipira era tido como uma

praga, alheio à própria terra, e em 1918 como um oprimido pelo abandono e pelas doenças decorrentes

deste, agora é a expropriação de suas terras, causadas pelo latifúndio, a principal desgraça do caipira”. Dados disponíveis em: <http://www2.metodista.br/unesco/1_Folkcom%202009/arquivos/Trabalhos/20-

Folkcom%202009%20-%20Do%20Jeca%20Tatu%20ao%20Z%C3%A9%20Brasil%20-

%20Eliana_%20Jade_.pdf>. Site consultado do dia: 20 de outubro de 2013.

Page 23: O caipira chico bento

23

intelectuais, em jornais, obras literárias, cinema, inclusive por propagandas da

saúde, e medicamentos. Como vimos anteriormente, o personagem ao longo

do século sofreu algumas modificações, e mesmo assim manteve a essência

de sua personalidade, ou seja, um sujeito qualificado como “ignorante”, sem

conhecimento com o trato da terra, um urupê, segundo o próprio Lobato, que

está no caminho da modernidade.

A população caipira, em meio de vida aventureira e provisória de

existência, vive em habitações em condições precárias e usufrui da terra até

seu esgotamento ou sua expulsão dela. Então, com o avanço tecnológico,

capitalista e o aumento populacional, essa população que Monteiro Lobato

denomina em a “Velha Praga” de “caboclo”, vai sendo obrigada a afastar-se

cada vez mais para o interior brasileiro. Devido ao avanço do “progresso”, das

linhas férreas, e a valorização da propriedade, “o caboclo” vai indo se fixar nas

fronteiras agrícolas, levando com ele sua “sarcopta fêmea, esta com um filhote

no útero, outro ao peito, outro de sete anos à ourela da saia – este já de pitinho

na boca e faca à cinta”25 e ainda o “cachorro sarnento, a foice, a enxada, a

pica-pau, o pilãozinho de sal, a panela de barro, um santo encardido, três

galinhas pevas e um galo índio”26, utilizando do espírito bandeirante, abrindo

novos caminhos para o interior de Minas Gerais, Mato Grosso do Sul, e oeste

paulista. Em a “Velha Praga”, Monteiro Lobato descreve a figura do caipira

como sendo “um parasita, um piolho da terra”27, que praticava a cultura das

queimadas, espécie de homem seminômade, das zonas fronteiriças. Quando a

terra se exauria, esse agregado mudava de sítio, deixando os vestígios de sua

presença pela tapera e o sapezeiro.

Para Darcy Ribeiro, as páginas escritas por Lobato “revelaram às

camadas cultas do país a figura do Jeca Tatu, apesar de sua riqueza de

observações, divulgam uma imagem verdadeira do caipira dentro de uma

interpretação falsa”28

25 LOBATO, Urupês. Brasiliense, São Paulo, 25 edição. p. 141. 26

Idem. p. 141. 27

Ibidem. p. 141. 28 RIBEIRO, op.cit. P. 390.

Page 24: O caipira chico bento

24

Outros literatos construíram, todavia, uma imagem diferenciada do

caipira. Cornélio Pires escritor, jornalista, poeta, conferencista, do inicio do

século XX, procurou nas suas obras reproduzir o vocabulário, as músicas, os

termos e expressões usadas pelos caipiras. Numa busca para recuperar a

figura do caipira que estava sendo utilizada dentro de embates políticos e

ideológicos no Brasil, Pires procurava demonstrar a riqueza cultural da cultura

caipira do interior paulista. Ele escrevia no dialeto caipira para divulgar de

forma positiva e valorizar a cultura caipira, enfatizando a sua parte na formação

da identidade nacional. Mas, ele cria uma visão muito idealizada e romântica, o

que gerou diversas críticas, inclusive por Lobato.

Pires busca tratar o seu personagem caipira especificamente sobre o

fato de ser paulista, e como tal parte da identidade cultural de São Paulo.

Busca se posicionar contrário a visão de “Urupês” de Lobato, que como vimos

acima, é descrito no conto como um sujeito pobre, tanto material, quanto

cultural. Pires busca demonstrar a riqueza de costumes, cantos, danças e

tradições que a população caipira paulista possuía, e como ela vai influenciar a

sociedade em seu entorno, inclusive os imigrantes.

Cornélio Pires classifica o caipira dentro de grupos distintos, dentro de

um mesmo universo cultural cita o “caipira branco”; o “caipira caboclo” que vai

ser o Jeca Tatu de Lobato; o “caipira negro” e o “caipira mulato”29. Utilizando

esses termos pode englobar dentro de uma discussão diversos tipos étnicos no

universo da cultura caipira, preservando as diferenças entre os diversos grupos

sociais.

Mas, apesar desse autor ter apresentado o caipira a partir de

diversidades raciais, físicas e de ascendência, ele construiu seus personagens

sem problematizar a existência de diversidades dentro de sua divisão e de

outros grupos caipiras em outras regiões do Brasil. Pires, diferente de Lobato,

mas também carregado de estereótipos, transforma o caipira e sua sabedoria

em anedotas, algumas com críticas à sociedade, mas que geram no seu

29

Para mais informações sobre os tipos descritos ver a obra PIRES, Cornélio. Conversa ao Pé de Fogo. São Paulo, Ottoni. 2002.

Page 25: O caipira chico bento

25

público alvo, os moradores de São Paulo, e em geral os moradores das

cidades, uma imagem negativa e cristalizada. Cornélio Pires criou:

Estereótipos para identificação, homogeneizando aqueles tipos étnicos com os quais convivia para designar e generalizar comportamentos, posturas e atitudes, enfim, a cultura do homem do interior paulista; não considerou que haveria diversidade em outros lugares ou mesmo dentro da classificação que propôs. Salvaguardou a língua, o dialeto caipira ao menos. Rememorou-o em sua literatura, aproximando seu leitor da terminologia própria que caracteriza a variação linguística do paulista, mesmo que em forma de humor e curiosidade.30

Ao contrário de Lobato, o caipira para Cornélio Pires tinha senso político,

e principalmente medo dos recrutamentos forçados e da dominação patriarcal.

Por isso, essas populações rurais buscavam o isolamento. O autor vai usar

disto para criticar em seus versos os costumes políticos, o coronelismo que

dominavam o sistema eleitoral vigente.

Cornélio Pires produz vários escritos, entre poesias, livros de contos,

revistas todos voltados para o universo caipira. Mas será com a organização e

divulgação da música caipira é que ele ganhará mais ênfase no cenário

nacional, tendo a cidade de São Paulo como difusora dela. A música caipira

será muito divulgada pelo rádio e posteriormente, num processo cada vez mais

rápido, será divulgada pela televisão, criando um processo de diluição das

diversas culturas brasileiras. Por interesse não somente mercadológico, mas

também político e ideológico, as mídias passam a reproduzir a música e a

cultura popular, para com isso atrair um maior público. Desse modo também

acaba gerando no público diversos tipos de estereótipos sobre os sujeitos

sociais de diferentes culturas ou um diferente modo de vida dentro das cidades.

1.3 A reconstrução do caipira

Buscando reconstruir a visão do caipira, que é utilizada pela literatura de

maneira estereotipada, temos as discussões dos escritores Antônio Cândido e

Darcy Ribeiro. Eles vão criar uma visão pessimista, onde a cultura caipira vai

30 SETUBAL, op.cit. P. 45.

Page 26: O caipira chico bento

26

se esfacelando devidos os avanços da tecnologia e da exploração capitalista

da terra.

Antônio Cândido, escritor, crítico literário, sociólogo e professor da USP,

produz em 1954 o livro Parceiros do Rio Bonito, abordando a vida do caipira,

especificamente em regiões do interior de São Paulo. Portanto, o termo caipira

vai ser uma designação para um tipo cultural especifico de influência da

constituição histórica do interior paulista, enquanto para ele o termo caboclo é a

concepção mais abrangente que qualifica vários indivíduos sociais de diversas

regiões do Brasil, derivados da miscigenação entre o branco e o índio:

(...) o termo caboclo é utilizado apenas no primeiro sentido,

designando o mestiço próximo ou remoto de branco e índio, que em São Paulo forma talvez a maioria da população tradicional. Para designar os aspectos culturais, usa-se aqui caipira, que tem a

vantagem de não ser ambíguo (exprimindo desde sempre um-modo-de-ser, um tipo de vida, nunca um tipo racial), e a desvantagem de restringir-se quase apenas, pelo uso inveterado, à área de influência histórica paulista.31

Antônio Cândido traz uma análise do modo de vida, cultural, econômico,

e religioso dos grupos caipiras por ele analisados. O caipira e sua razão de ser

estão em seu modo de ligação com o equilíbrio ecológico e social por ele

elaborado, e todo fator externo pode mudar sua estrutura cultural, inclusive

destruí-la. O caipira está ligado a determinados limites físicos (dentro dos

bairros rurais) e sociais, em certas esferas (a familiar, a religiosa, a vicinal e a

lúdica). Dentro de determinados limites se daria também à produção dos

recursos que propiciavam a sua sobrevivência, por isso as mudanças advindas

do progresso com as novas formas de exploração da terra geram mudanças

bruscas em seu modo de vida, Cândido chega afirmar que:

Mudança é o seu fim porque está baseada em tipos tão precários de ajustamento ecológico e social, que a alteração destes provoca a derrocada das formas de cultura por eles condicionadas. Daí o fato de encontrarmos nela uma continuidade impressionante, uma sobrevivência de formas essenciais, sob transformações de superfície, que não atinge o cerne se não quando a árvore já foi derrubada e o caipira deixou de o ser.32

31

CÂNDIDO, Antônio. Os parceiros do rio bonito. São Paulo, Livraria duas cidades, 1987. P. 22 32 CÂNDIDO, op.cit. P. 82-83.

Page 27: O caipira chico bento

27

Para Cândido, o processo de industrialização e de urbanização do

Estado de São Paulo intensificou as relações do campo com a cidade,

ocorrendo assim a desarticulação da economia de subsistência baseada na

vida do bairro, e na produção de multiculturas na terra, rompendo-se os laços

sociais estabelecidos. Esse processo vai gerar uma desestabilização da

ocupação da terra, gerando um movimento de mudança em direção à capital

ou às cidades mais próximas.

Com o processo de modernização e industrialização nas décadas de

1930/40/50, centenas de milhares de trabalhadores do campo migram para as

novas zonas pioneiras ou para as cidades em busca de novas terras e

trabalhos. Isso faz com que aumente o número de pessoas que morram nas

cidades. Esse processo foi continuo passando a existir mais moradores na

cidade que no campo finalmente na década de 1960.

Darcy Ribeiro antropólogo, lança em 1995, o livro “O Povo Brasileiro”,

onde buscou retomar as discussões sobre a cultura popular. O livro, segundo o

autor, levou 30 anos para ser escrito, mas a ideia de produzi-lo surgiu na

década de 1950, procurando discutir quem é o povo brasileiro e como ele se

formou a partir de uma mistura cultural e racial. Para o autor, o Brasil vai ser

marcado por uma vasta diversidade cultural que resultou, basicamente, de

fatores ecológicos, econômicos e migratórios. Tendo em vista essa grande

diversidade, ele divide o Brasil em cinco áreas culturais bastante específicas,

as quais ele denomina de brasis crioulo, caboclo, sertanejo, caipira e sulino.

Darcy Ribeiro trata o caipira como sendo um sujeito social marginalizado

e desarticulado, surgindo a partir das entradas dos bandeirantes paulistas em

busca de ouro e escravos indígenas e negros. Foi, segundo ele, no processo

de locomoção que partes dos bandeirantes se fixam criando fazendas de gado

ou de lavradores. Com a descoberta das jazidas de ouro e diamante apesar de

propiciar uma riqueza aparente, elas geraram muita pobreza, onde parte da

população morria de fome com as mãos cheias de ouro. Com o fim das jazidas

toda população das regiões Centro-Oeste, Sudeste e até mesmo do Sul entra

em um processo de “deculturação”. Nessas áreas, o sujeito social se

Page 28: O caipira chico bento

28

“submerge numa economia de pobreza, com a regressão cultural”33. Nessas

áreas de mineração vão ser edificadas “arraiais e cidades” que com o fim das

reservas minerais acabam estagnados e em decadências onde o comércio e as

populações sumiam com os anos entrando em desequilíbrio. Para se chegar ao

equilíbrio dessas regiões vai surgir segundo Darcy Ribeiro:

O equilíbrio é alcançado numa variante da cultura brasileira e rústica, que se cristaliza como área cultural caipira. É um novo modo de vida

que se difunde paulatinamente a partir das antigas áreas de mineração e dos núcleos ancilares de produção artesanal e de mantimentos que a supriam de manufaturas, de animais e serviço e outros bens. Acaba por esparramar-se, falando afinal a língua portuguesa, por toda a área florestal e campos naturais do centro-sul, desde São Paulo, Espirito Santo e estado do Rio de Janeiro, na costa, até Minas Gerais e Mato Grosso, estendendo-se ainda sobre áreas vizinhas do Paraná. Desse modo, a antiga área de correrias dos paulistas velhos na preia de índios e na busca de ouro se transforma numa vasta região de cultura caipira, ocupada por uma população extremamente dispersa e desarticulada. Em essência, exaurido o surto minerador e rompida a trama mercantil que ele dinamizava, a Paulistânia se “feudalizava”, abandonada ao desleixo da existência caipira.34

Ribeiro em oposição a Lobato descreve o caipira como um sujeito

independente que dentro de sua rede de relações (os bairros)35, consegue

sobreviver e produzir o suficiente para manter os “enfermos, débeis, insanos e

dependentes produtivos”36. Apesar de a sua base cultural estar sendo

desintegrado com os avanços de novas formas de exploração agrícola, o

caipira ainda constitui uma grande camada populacional brasileira

marginalizada servindo de reserva de mão de obra para as grandes lavouras

de café.

Darcy Ribeiro não vai descrever a cultura caipira com muitos detalhes.

Para ele a questão em torno da cultura caipira foi bem trabalhada por Antônio

Cândido. Ribeiro classifica a importância da especificidade que o caipira tem

dentro da formação cultural brasileira, deixando bem claro que o caipira é um

33 RIBEIRO, op.cit. p. 366 34 RIBEIRO, op.cit. P. 383. 35 Os bairros são a forma de organização de grupos caipiras, onde a solidariedade com o seu companheiro de bairro e bem presente, para uma melhor discussão ver: CÂNDIDO, Antônio. Os parceiros do rio bonito. São Paulo, Livraria duas cidades, 1987. 36 RIBEIRO, op.cit. P. 385.

Page 29: O caipira chico bento

29

homem do campo especifico de uma região brasileira e que não deve ser

confundido com o sertanejo. O caipira para o autor vive na economia de

subsistência completada por algumas criações domésticas, como galinha,

porco e vaca leiteira, o que surgiu devido a vários fatores econômicos,

ecológicos, migratórios e históricos, que se desenvolveu nas regiões Sudeste e

Centro-Oeste, atingindo também algumas regiões do Paraná. Ao contrário do

sertanejo, que tinha uma economia voltada a atividades de pastoril e criação de

gado para o mercado interno, original do sertão nordestino, apesar de,

posteriormente, tivesse migrado para a região Centro-Oeste.

Com a difusão desse sistema novo, os caipiras vêm desaparecendo, por

se tornarem inviáveis as formas de solidariedade que a comunidade possuía,

passando a ser substituídas por relações comerciais. Tudo passou a ser

comprado, as suas artes artesanais, os tecidos, os utensílios que antes eram

produzidos em casa, passaram a ser parte da lógica capitalista do campo e da

cidade. O golpe final na vida do caipira tradicional que acaba por marginalizá-

los e levá-los a migrar para as cidades definitivamente se dão com a ampliação

do mercado urbano de carne, e como consequência a necessidade de explorar

as áreas mais remotas e de terras pobres ou ricas para a criação de gado. A

partir de então, os roçados que ainda lhes pertenciam, por não ter valor para a

produção do café ou posterior do milho e da soja passam a servir para o plantio

de capim para o gado. Como consequência tira o caipira de seu modo de vida,

incorporando os que insistiram em ficar na terra ao sistema de pastoreio.

Esse pessimismo dos dois autores em relação à sobrevivência da

cultura caipira não é somente do resultado apenas da constatação real dos

fatos, mas também de uma relação de imposições arbitrarias, advindas do

processo de modernização das cidades e do campo e das políticas

governamentais que excluíram esses sujeitos do cenário sociopolítico

brasileiro. Com essas imposições que a cultura caipira sofreu leva o indivíduo a

mudar seus hábitos, mas sem que isso signifique a perda da sua identidade

cultural.

A cultura caipira vai ser absorvida no século XX pela mídia e alguns

escritores para perpetuar tanto a tradição cultural do interior do Brasil, quanto

Page 30: O caipira chico bento

30

lucrar com visões estereotipadas e muitas vezes fora do contexto real da

cultura popular. Além da literatura, já abordada nesse capítulo, as mídias

icnográficas como a música, a pintura, o cinema e os quadrinhos vão trabalhar

com a imagem do caipira. Dentro deste contexto vão surgir várias figuras de

renome nacional. Primeiramente temos as pinturas de Almeida Júnior que

retratam a população do interior brasileiro no final do século XIX, temos

também Nhô Quim, primeiro personagem das histórias em quadrinhos do Brasil

produzido por Ângelo Agostini. No século XX temos o inesquecível Amacio

Mazzaropi, figura histórica do cinema nacional, e na década de 60 a grande

figura que vai encantar crianças e adultos o Chico Bento de Mauricio de Sousa.

Page 31: O caipira chico bento

31

Capítulo 2: O caipira Chico Bento.

2.1 Mauricio de Sousa: Autor e obra.

Na década de 60, as histórias em quadrinhos americanas chegavam ao

Brasil por um preço muito abaixo daquele do mercado nacional. Nesse

processo muitas revistas nacionais não encontravam parâmetros para uma

competição mercadológica. Vão ocorrer no Brasil nesse período profundas

transformações políticas e sociais.

O período vai ser de uma fase de transição. No campo ocorre uma

grande imigração populacional rumo às cidades fazendo com que o número da

população urbana fosse maior que a rural. Também ocorre na década de 60

uma grande mobilização social com os movimentos das ligas camponesas com

pautas como a reforma agrária, o movimento estudantil com caráter de

reivindicações educacionais entre outros grupos organizados como sindicatos e

outras organizações sociais. No meio dessa efervescência ocorre o golpe civil-

militar de 1964 que transforma o cenário político e social no Brasil, com a

implantação de um regime civil-militar autoritário. Será nesse cénario de

efervecencia cultural e politica que surgirá uma nova representação do caipira

será agora sobre os traços do quadrinista Mauricio de Sousa.

Mauricio de Sousa nasceu em Santa Isabel, São Paulo, no dia 27 de

outubro de 1935. Ele vai produzir em sua carreira mais de 500 personagens, e

dentro deles 50 são bem expressivos representativos de diferentes setores

sociais brasileiros e alguns internacionais. Diferente de outros autores inova o

mercado de produções, trazendo para o Brasil o modo de distribuição no

formato dos Syndicates americano. Nesse modelo as histórias em quadrinhos

sairiam publicadas em vários jornais.

Em 1959, aos 24 anos, trabalhando ainda como reporter policial,

Mauricio de Sousa vai publicar seu primeiro personagem, O Cãozinho Bidu no

jornal Folha da Manhã. Durante 10 anos suas tiras vão passar a ganhar novos

personagens passou a atingir vários outros jornais. Vão surgir as histórias, no

Page 32: O caipira chico bento

32

formato de tiras, do Cebolinha, Piteco, Chico Bento, Penadinho, Horácio,

Raposão, Astronauta, cheio de humor e voltado para diferentes públicos e

questões sociais.

Com a fama e uma maior necessidade do mercado, ele buscou ainda

na década de 60 montar uma equipe que lhe ajudasse a produzir, sob sua

supervisão, as histórias em quadrinhos. Na década de 70, o projeto só vem a

ampliar com as histórias em quadrinhos, que passam a ser publicadas em

revistas pela parceria entre Mauricio de Sousa e Editora Abril. Essa parceria

perdurou até 1986. O sucesso foi tão grande que logo chegaram ao mercado

diversos produtos como lápis, canetas, roupas, roupas de cama, xampus,

brinquedos que trazem estampados os personagens de Mauricio de Sousa. Na

década de 80, outro problema atingem as produções das revistas em

quadrinhos: a invasão dos desenhos animados, principalmente os japoneses,

que retiram uma grande fatia do público leitor. Juntamente com a crise

financeira ocorrida nessa época, os quadrinhos do Mauricio somente entram

para o universo da animação na década de 90.37

2.2 – Chico Bento e sua turma.

Para entender o universo do Chico Bento é preciso analisar como cada

personagem vai ser inserido na história e quais são os seus papéis sociais, o

que gera o caráter social e estereotipado do Chico Bento, para tal serão

discutidos os seguintes personagens: Zé da Roça; Hiro; Rosinha; Zé Lelé;

Padre Lino; Mariana, Dona Marrocas, avó Dita; Bento e Cotinha; Primo Zeca;

Genesinho. Há outros personagens secundários, mas serão esses citados que

vão ter maior ênfase na construção de uma representação histórica dentro da

sociedade e de relevância para a discussão em torno do caipira Chico Bento.

Francisco Bento foi criado por Maurício de Sousa em 1961. Seu

aniversário é comemorado em 1° de julho. Ele tem 7 anos de idade assim

como a maioria dos principais personagens desse autor, Chico Bento surgiu

37

Dados disponíveis em: <http://www.tvsinopse.kinghost.net/art/m/mauricio-de-sousa.htm> Site consultado na data: 02/10/2013.

Page 33: O caipira chico bento

33

como coadjuvante dentro das histórias “Hiroshi e Zezinho”, no jornal Diário de

S. Paulo. Ele sempre está vestido com uma calça azul quadriculada, camiseta

amarela, chapéu e costuma andar descalço, exceção quando vai visitar

familiares na cidade, nos dias chuvosos, quando vai à missa aos domingos,

quando vai namorar Rosinha ou a festas. Sobre a vestimenta fica bem clara a

utilização das cores para simbolizar a brasilidade do Chico Bento, o azul e

amarelo da bandeira do Brasil. Chico Bento possui como sua maior

característica a linguagem caipira, de que voltaremos a falar mais a frente.

Na figura 1 se têm alguns exemplos das diferentes representações do

personagem Chico Bento, das mudanças que o personagem sofreu durante os

diferentes períodos em que ele foi produzido. Inicialmente ele era representado

como um garoto bem magro, onde os pés descalços são bem enfatizados.

Notam-se os traços bem delineados dos pés do Chico Bento e uma falta de

preocupação com outros detalhes. Fechando o conjunto o personagem usa

uma roupa esfarrapada e com remendos, um chapéu de palha bem gasto, o

galho de arruda na cabeça para espantar o mau olhado e o penduricalho no

pescoço. Chico Bento foi construído assim para simbolizar a pobreza da vida

do caipira, com alguns traços que representam a vida social do sujeito como a

religiosidade, tão presentes no universo caipira. A mudança para um

personagem mais infantil ocorreu, pois o personagem era inicialmente

destinado para um público adulto, voltado para discutir problemáticas da terra

de maneira cômica nas tiras do jornal Diário de São Paulo, ao lado dos

personagens Zé da Roça e Hiroshi.

Page 34: O caipira chico bento

34

Figura 1 Chico Bento e suas diferentes versões38

O personagem Zé da Roça é um dos primeiros criados por Maurício de

Sousa. Surge em 1961 em tirinhas no Diário de São Paulo com nome de

“Hiroshi e Zezinho”. Acaba perdendo espaço para o personagem secundário

Chico Bento, segundo o relato do Mauricio de Sousa, que considerava o Chico

Bento “mais interessante do que os dois primeiros muito certinhos”39, Zezinho

com o tempo tem seu nome modificado para Zé da Roça. Recentemente o

38 Imagem retirado do site: http://www.getback.com.br/Monica/Evolucao%20dos%20personagens/evolucao%20personagens.htm. Site consultado no dia 02/10/13 39

SOUSA, Mauricio de. In http://www.guiadosquadrinhos.com/personbio.aspx?cod_per=469. Site consultado no dia 05/10/13.

Page 35: O caipira chico bento

35

autor para dar nome aos personagens revela o seu nome oficial, que é José

Augusto Oliveira. O personagem também vai ter sete anos de idade, usa um

chapéu de palha e botas o que distingue dos personagens caipiras que andam

descalços. O personagem não fala o “caipirês”, pois ele não representa o

caipira nas histórias, apesar de ter uma vestimenta típica do campo, isso fica

bem visível comparando-se com a primeira tira em que o Chico Bento aparece.

Figura 2 Chico Bento em sua primeira aparição40

A caracterização do personagem Chico Bento é bem diferente do

personagem Zé da Roça. Isso fica visível na própria vestimenta dos

personagens: Zé da Roça se apresenta utilizando sapatos, e roupas em bom

estado a o contrario do personagem Chico Bento, que está de pés descalços,

com roupas remendadas e rudimentares, usando um chapéu de palha bem

velho.

Nas histórias apresentadas nos balões também não vão ser diferentes

as falas e a mentalidade de ambos. As tirinhas do Zé da Roça também vão ser

publicadas na revista chamada “Coopercotia”41, voltada para o público do

campo e principalmente ao agricultor associado a essa cooperativa, o que

também vai enfatizar a representação de um agricultor, não a de um caipira.

Nesse mesma tira a história apresentada diz respeito a um dos problemas

sociais em discussão na época, a questão da reforma agrária. Por ser voltada

40 Imagem retirada do site: http://www.mundohq.com.br/site/detalhes.php?tipo=5&id=297. Site consultado no dia 02/10/13. 41 Essa cooperativa surge em São Paulo na década de 1920 dentro dos grupos de imigração Japonesa atuando até 1994 quando entra em falência. Dados disponíveis em: <http://nikkeypedia.org.br/index.php/CAC-Cooperativa_Agr%C3%ADcola_de_Cotia> Site consultado na data: 24/11/2013.

Page 36: O caipira chico bento

36

para um público adulto a questão pode ser bem problematizada no quadrinho,

e Chico Bento, por representar o lado pobre da sociedade, fez com que a

questão se tornasse bem enfatizada: primeiro sua ignorância sobre o assunto,

e depois pela sua ação em buscar de maneira “cômica” de fazer doações de

porções de terra dos seus amigos, uma vez que ele próprio não possuía terra.

Essa discussão da reforma agrária foi muito debatida na década de 60.

Nesse período ocorreu um processo de discussão intelectual como Caio Prado

Júnior, Darcy Ribeiro, Alberto Passos Guimarães em torno das questões

agrárias. Essas discussões buscavam soluções para o problema agrário

brasileiro.

“Para Caio Prado Júnior, a solução da questão agrária deveria significar a realização de uma reforma agrária que modificasse as condições existentes no campo brasileiro e possibilitasse a elevação do padrão de vida humano da população trabalhadora do campo”42

Além das discussões intelectuais ocorre a criação do estatuto da terra

em 1964, composto de 128 artigos que regulamenta os fins de execução da

reforma agrária, delimita as taxas de impostos sobre a terra, os investimentos,

a regulamentação da posse e quem fiscaliza as terras43.

Na figura 1 e 2 também e possível notar a representação de outro

personagem o “Hiroshi”. Esse personagem surge conjuntamente com o Zé da

Roça nos quadrinhos “Hiroshi e Zezinho”. Ele é um nissei, descendente de

japonês. Mauricio de Sousa possivelmente deve ter criado o personagem

inspirado na grande quantidade de imigrantes orientais que São Paulo possuía

devido à grande imigração que ocorreu no início do século XX, principalmente

as que se dirigiram para o campo, e por sua própria família possuir alguns

representantes dessa população. Seja como for, o personagem não tem

nenhuma característica do campo, apesar de sua família viver na Vila

Abobrinha e sobreviver do campo, mantendo as tradições orientais veio da

cidade grande, provavelmente de São Paulo, para o campo. Não é um

personagem de humor como os demais, mas tem sua importância por estar

42 SILVA, Ricardo Oliveira da; WASSERMAN, Claudia. A questão agrária brasileira (1950 -1960): A análise histórica de Alberto Passos Guimarães e Caio Prado Júnior. Disponível em: <www.anpuh.org/arquivo/download?ID_ARQUIVO=102 >. Site consultado na data: 24/11/2013. 43

Dados disponíveis em: <http://www2.camara.gov.br/legin/fed/lei/1960-1969/lei-4504-30-novembro-1964-377628-normaatualizada-pl.html> Site consultado na data: 24/11/2013.

Page 37: O caipira chico bento

37

representando essa população descendente dos imigrantes japoneses. Outra

característica importante do personagem é seu bom português, talvez como

consequência de imposições dos governos em se estudar somente o português

nas escolas. Sua vestimenta é uma das características que comprovam sua

vida na cidade, Hiro veste uma camiseta pólo branca e um boné, tendência do

estilo urbano. Mauricio de Sousa vai produzir outros personagens orientais,

mas aparecem em poucas histórias da turma da Mônica. O seu nome também

sofreu alteração recebendo uma simplificação, passando de Hiroshi para Hiro,

e recentemente tem seu nome completo divulgado Hiroshi Yoshida Takahashi.

Esses dois personagens que surgem antes mesmo do Chico Bento, não

possuem uma relação cômica com a história, muitas vezes é eles que vão dar

uma resolução para os problemas que a turma cria ou nas quais se envolve. Zé

da Roça e Hiro se tornam a consciência da turma do Chico Bento, e também

representam outro lado do universo do campo, Zé da Roça um caipira em

transformação que possui uma grande inteligência e não fala mais o “caipirês”,

um sujeito que deixou de lado suas características caipiras, pelo contato com a

modernidade cada vez mais presente no interior brasileiro. Enquanto isto o Hiro

está representando a imigração de estrangeiro para o campo em especial a

imigração japonesa que foi bem comum no Brasil.

2.2.1 – O processo de transformação dos personagens.

São cinquenta anos de criação dos principais personagens de Mauricio

de Sousa e durante processo alguns dos personagens vão sofrer diversas

transformações, ou por necessidade de atingir diferentes públicos, ou por

causa das relações sociais e políticas envolvidas durante o processo de

publicação. Os personagens vão sofrer transformações visuais com o

melhoramento das técnicas de criação, “Os cinco grandes: Mônica, Magali,

Cascão Cebolinha e Chico Bento” de Mauricio de Sousa desde seus primeiros

traços vão ganhar diferentes formas e roupagem até atingir os modelos que

hoje são publicados. Mas são dois personagens que vão sofrer grandes

transformações: a Tina e o Chico Bento.

Page 38: O caipira chico bento

38

Tina foi a personagem de Mauricio de Sousa que mais sofreu alterações

durante os anos. Ela surgiu em 1964 e vai ser publicada dentro das histórias da

Turma da Mônica, baseado também em suas filhas adolescentes, na onda

hippie que ganhou grande força nos Estados Unidos com o slogan “paz e

amor” a filosofia de contracultura, que se espalhou pelo globo chegando a

influenciar movimentos culturais no Brasil. Ela surgiu como personagem

secundária nas histórias do seu irmão Toneco, mas aos poucos acaba se

tornando a personagem principal e seu irmão acaba desaparecendo das

histórias. Tina, representando inicialmente uma criança hippie, ligada aos

problemas familiares, passando depois para uma adolescente. Nos anos 70

com a decadência do movimento hippie Tina sofre mais uma alteração,

deixando de lado seu lado hippie passando a se preocupar com os problemas

que um jovem adolescente enfrenta. Os personagens familiares desaparecem

e surgem novos que vão estar ligados aos problemas adolescentes.

Outra curiosidade da personagem é sua relação com o trabalho. Tina já

foi uma vendedora de badulaques em sua fase hippe nos anos 70, uma

vocalista de banda de rock em 1972, uma joqueta em 1976, uma entrevistadora

em 1977, uma modelo em 1981, uma cozinheira em 1984, uma cabelereira em

1990 e até o momento já teve pouco mais de 65 profissões44. Atualmente Tina

é representada como jornalista, num estereotipo de modelo feminino atual:

magra, cabelos lisos, bonita.

44

Dados disponíveis em: http://turmadamonica.uol.com.br/mauricio/cronicas/cron171.htm. Site consultado no dia 07/10/2013

Page 39: O caipira chico bento

39

Figura 3 Evolução da Tina45

Chico Bento que inicialmente era um personagem secundário nas

histórias de “Hiroshi e Zezinho”, tem as características que podemos ver na

imagem abaixo:

Figura 4 primeiras representações do personagem Chico Bento nas histórias de Hiroshi e Zezinho46

Na imagem e possível notar a diferença de construção entre o

personagem Zezinho e o personagem Chico Bento que apresenta várias

características estereotipadas em torno do caipira. Primeiro, seu grau de

pobreza, demonstrado pelos seus pés descalços bem desenhados, sua calça

remendada e um chapéu de palha bem gasto, em segundo lugar Chico

45 Imagem disponível em: http://pt.wikipedia.org/wiki/Tina_(Mauricio_de_Sousa). Site consultado no dia 07/10/2013. 46

Imagem disponível em: http://filmesemquadrinhos.blogspot.com.br/2013/06/especial-chico-bento.html. Site consultado no dia: 01/11/2013.

Page 40: O caipira chico bento

40

também representa as crendices populares da população do campo, na

imagem ele apresenta o galho de arruda atrás da orelha, que segundo a

crendice popular serve para espantar o mal olhado, e também a presença do

penduricalho religioso que simboliza a sua ligação com o catolicismo. Podemos

ver sua mudança a partir da imagem abaixo:

Figura 5 Chico Bento na cidade47

O quadrinho acima demonstra outro Chico Bento se comparado com a

figura 4. Suas características físicas são totalmente diferentes: o personagem,

encolheu, ganhou uma aparência mais infantil, e bem menos pobre como

aparenta a primeira representação do Chico, suas roupas também mudaram,

ganhando uma calça quadriculada azul, e uma camiseta amarela, simbolizando

duas cores da bandeira brasileira, demonstrando assim um tom de

nacionalidade ao personagem. No caso do quadrinho acima, Chico Bento está

usando um casaco quadriculado azul combinando com a calça e botas. Essas

duas partes da vestimenta não são comum ao personagem, pois ele só

47 SOUSA, Mauricio de. Chico Bento. São Paulo: Ed. Abril, 1986. Pg. 4.

Page 41: O caipira chico bento

41

apresenta esse tipo de roupagem em eventos especiais que ocorrem no campo

ou, como no caso desse quadrinho, quando ele vai a cidade visitar seu primo.

Ainda sobre este quadrinho outro ponto importante que ele apresenta é

a utilização de armas de fogo. A utilização da arma de fogo nos quadrinhos do

Chico Bento é bem enfatizada nas histórias que ocorrem no campo,

principalmente ligadas a personagens que buscam caçar animais, ou então em

vigiar sua plantação contra os “furtos” que as crianças fazem em suas

plantações. Nesse período, a criança era vista de forma diferente do que nos

dias atuais, não se via nada estranho no fato de uma criança de 7 anos como o

Chico Bento segurando uma arma de fogo. Estas concepções claro vão se

alterar durante os anos, vão ocorrer mudanças de incentivo ao desarmamento

e de não incitação a violência, principalmente para as crianças.

Essas concepções vão alterar essas representações de violência e de

exposições de armas nos quadrinhos do Chico Bento, desaparecendo a

utilização de qualquer tipo de arma. Mas, vão ter ainda algumas exceções em

casos específicos onde demonstram o lado ruim da utilização ou contra algum

tipo de caçador, já que as revistas do Chico Bento buscam o lado de defensor

da natureza. O uso de armas de fogo é das tradições e uma necessidade para

o povo do campo, e se falar na população caipira que muitas vezes precisavam

caçar para poder ter o que comer. Está é uma representação que as histórias

do Chico Bento deixam de representar. Na década de 1990 com as políticas de

censura de conteúdo violento ou que ínsita a violência para as crianças e

adolescentes o personagem passa de deixar de interagir com mais frequência

com armas de fogo.

2.2.2 – O caipira como sujeito ingênuo, literal, preguiçoso e humilde.

Com a análise das revistas pode se perceber que o personagem Chico

tem várias características humanas, mas sempre ligados a figura do “bom

moço”. Ele foi representado como um menino carinhoso, prestativo,

conservador, apegado à família, com humor instável e sentimental. Ele é

Page 42: O caipira chico bento

42

apresentado com certa ingenuidade e literalidade, ou seja, na maioria das

histórias ele foi caracterizado como menino sem malícias, que compreende

tudo ao pé da letra. Essa característica é bem enfatizada em suas primeiras

aparições, mas esse conceito de literalidade no Chico Bento foi aos poucos e

com o passar dos anos mudando. Ele não vai deixar de ser um sujeito literal,

mas para contrapor essa característica existente no Chico Bento vai ser criado

um novo personagem o seu primo o Zé Lele.

O personagem Zé Lelé tem por nome José Leucádio da Cunha Bento

Filho, tem 7 anos de idade, é primo do Chico Bento. Maurício de Sousa se

inspirou para criar o Zé Lelé no irmão gêmeo de seu tio avó. Foi criado em

1974 como personagem secundário nas histórias, mas por sua personalidade

acaba se tornando, usando os termos dos quadrinhos, o “Robin para o

Batman”, o seu escudeiro nas suas aventuras. Zé Lelé também fala o caipirês e

usa chapéu de palha, mas ganhou maior fama pela sua falta de inteligência,

por isso o apelido “Lelé”. De certo modo, a aparição do personagem acaba

tirando o foco que antes pertencia ao Chico Bento em relação à inteligência.

O Zé Lelé também representa o caipira, mas é apresentado muito mais

caracterizado na questão da ignorância, como sendo um sujeito que não possui

condições de resolver problemas considerados simples, um sujeito literal em

excelência tomando tudo ao “pé da letra” e isto acaba causando aos outros

personagens um grau de irritação tornando cômicas as histórias do Chico

Bento. Assim como seu alto grau de ingenuidade, caindo sempre nas

conversas e piadas dos colegas, esse problema será muito comum na

caracterização criada por Monteiro Lobato no Jeca Tatu, o que demonstra uma

grande carga de preconceitos definidos da visão que o Mauricio de Sousa

possui em relação ao caipira.

Outro ponto apresentado pelo Maurício de Sousa é a preguiça, como

visto no quadrinho abaixo. Essa característica é a que mais se aproxima da

construção feita por Monteiro Lobato. Nos quadrinhos do Chico Bento têm-se

algumas representações características. A primeira, ao ser representado no

personagem está ligada à sua vontade de não trabalhar, de não ir a escola.

Assim, o pesquisador Waldomiro Vergueiro afirma que Chico Bento é um

Page 43: O caipira chico bento

43

“menino caipira baseado no Jeca Tatu de Monteiro Lobato”48. Apesar de muitas

características serem similares, principalmente no Chico Bento representado

nas suas primeiras publicações, esse argumento foi desmentido pelo próprio

Mauricio de Sousa que relata que seu personagem foi inspirado em seu tio avô,

e sua aproximação com Lobato foi uma coincidência, pois ambos são

produzidos no vale do Paraíba49.

Figura 6 Representação da preguiça50

A segunda representação da preguiça está mais vinculada a questão da

vida no campo, por ser considerada uma vida diferente da cidade, um modo

vida calmo e pacato, onde tudo é realizado sem pressa. Uma representação

possível é como ocorre na imagem acima onde o pescar, o trabalhar, o estudar

48 VERGUEIRO, Waldomiro. In CORIO, Maria de Lourdes Del Fáveri. O personagem “Chico Bento”, suas ações e seu contexto: Um elo entre a tradição e a modernidade. Marília-SP. 2006. Pg. 125 49 CORIO, Maria de Lourdes Del Fáveri. O personagem “Chico Bento”, suas ações e seu contexto: Um elo entre a tradição e a modernidade. Marília-SP. 2006. Pg. 127 50

SOUSA. Mauricio de. Chico Bento. São Paulo, Ed. Globo: 2003. N° 423.

Page 44: O caipira chico bento

44

e até desenhar os quadrinhos é preguiçoso. É um modo de vida totalmente

oposto as cidades que sempre são representadas nos quadrinhos do Chico

Bento muito movimentadas cheias de pressa. Isto é possível notar na figura 5,

onde os personagens urbanos são representados correndo em busca do

transporte público.

Além dessa identificação, foi possível notar alguns aspectos de sua vida

e sua relação com o campo para representar algumas concepções de modo

pejorativo como: um genuíno representante da vida rural; não se preocupa com

a “moda”; sua escola é a tradicional; seus maiores amigos são seus animais de

estimação; ele dança nas festas juninas; não é consumista; trabalha na roça;

preserva a simplicidade; canta moda de viola; está sempre pronto a ajudar as

pessoas que dele necessitem; gosta de pescar, isso é bem enfatizado, pois foi

possível ver uma grande quantidade de capas que ilustram uma pescaria.

Apesar de todas essas formas fazerem parte do meio de viver na roça, não é

representação de todos os modos de viver, da cultura do caipira, pois não são

todos que cantam moda de viola ou que não gostam de consumir ou se vestir

bem. A maioria dessa população tem esse estilo de vida, pois não possuem

outro meio de sobrevivência.

Dentro das características apresentadas pelo personagem Chico Bento

destaca-se a concepção de humildade, e a falta de ambição que são dois

fatores recorrentes do personagem. Maurício de Sousa poderia ter pensado

nessa representação por dois motivos. O primeiro para representar a forma de

vida difícil e sem mudança que a população caipira sofre e com isso não

buscam os bens materiais. O segundo motivo talvez se coloque na oposição à

vida urbana e ao consumismo. Sobrevivem mais voltados para o dia-a-dia,

encontrando felicidade e paz com o básico para a sobrevivência. De certo

modo os dois motivos fazem sentido dentro do universo caipira. Porém a

população caipira não é estagnada ela sofre mudanças e constantemente se

interage com o universo capitalista. Essa representações apesar de fazer parte

de uma parcela dessa população é uma visão estereotipada e generalizada,

pois não fazem parte de todos.

Page 45: O caipira chico bento

45

2.2.3 – A educação brasileira no campo representado nas histórias do

Chico Bento.

O tema escola e bem recorrente nas histórias do Chico Bento, ao

contrário das histórias da Turma da Mônica que raramente apresentam algo

ligado a educação. A partir da análise das revistas pode se chegar a algumas

considerações sobre o porquê da necessidade de representar a escola no

campo.

Primeiramente podemos pensar sobre a questão da linguagem caipira, e

como ela é vista como problema que precisa ser resolvido. Isso fica bem visível

na representação da figura 7 abaixo. Nessa história temos a representação do

nervosismo da professora com o modo de falar “errado”. Dentro das normas

cultas brasileiras, e durante o desenrolar da história ocorre a busca do Chico

em tentar melhorar seu português com auxílio dos colegas e dos pais, mas ele

acaba notando que todos falam igual a ele e que não serão eles que poderão

ajuda-los. Chico Bento, por fim, passa a estudar nos livros e durante a aula

demonstra a mudança falando um português culto dentro das normas dando

alegria para a professora.

Page 46: O caipira chico bento

46

Figura 7 Chico Bento na escola51

Um segundo ponto sobre o porquê das escolas aparecerem nas

histórias do Chico Bento, diz respeito à questão da própria realidade de ensino

no campo, principalmente durante as primeiras décadas de publicação das

histórias do Chico Bento. Isso também ocorre ainda hoje, um fator comum

principalmente nas cidades do interior. A educação no campo é bem precária, a

uma grande falta de professores, os mesmos tem a de ensinar mais de uma

matéria, a também uma grande falta de estrutura, faltando desde livros

didáticos, funcionários, cadeiras para os alunos até mesmos os prédios

escolares. Pensando nesse cenário social e bem presente dentro das relações

sociais da população caipira é possível pensar que foram esses os motivos das

representações do universo escolar nas histórias do Chico Bento.

Sobre a educação não podemos deixar de falar da personagem Dona

Marocas. Este personagem é imprescindível para nossa leitura da realidade

escolar das histórias. Ela protagoniza, praticamente, todas as histórias que

envolvem situações escolares. A personagem é a professora da Vila

51 SOUSA. Mauricio de. Chico Bento. São Paulo, Ed. Abril, 1985. Pg. 3-7.

Page 47: O caipira chico bento

47

Abobrinha. Quando Dona Marocas surgiu, era uma professora velha, que

distribuía broncas, bem no estilo de ensino tradicional, com regras e punições

para os alunos.

Isso podemos ver no exemplo da figura 6, onde a professora busca

castigar o aluno por não falar um português correto. Maurício de Sousa talvez

representa neste personagem a sua visão sobre o processo educacional no

Brasil, mas enfatizado com as características da educação no interior do Brasil,

por isso a personagem sofre mudanças físicas durante o processo, ganhando

um par de óculos tradicionais e um coque no cabelo, com uma metodologia de

ensino diferente.

Um dos problemas enfrentados pela professora e muito comum no

ensino brasileiro é a negação do aluno em estudar. Isso fica visível na falta de

“pressa” dos alunos, assim como também a falta de interesse pela

aprendizagem. Contudo, não será em todas as histórias que isto vai acontecer.

Vai haver momentos em que a relação do personagem Chico Bento com a

educação busca um sentido diferente como no caso das datas comemorativas,

das questões religiosas e da família. O personagem acaba deixando de lado

sua realidade de um aluno que não liga para o ensino tirando sempre notas

baixas, para um aluno completamente conhecedor do conteúdo digno de uma

nota dez.

2.2.4 – A linguagem caipira.

A língua utilizada pelo personagem Chico Bento e pela maioria dos

personagens que representam a o modo de vida caipira é o “caipirês” uma das

principais marcas das histórias em quadrinhos do Chico Bento. Todas as falas

de Chico Bento são escritas de maneira a ferir propositalmente a ortografia.

Maurício de Sousa utiliza desse recurso para transportar o leitor ao contexto

rural, mas mais especificamente para o mundo caipira.

O “caipirês” apresentado pelo personagem Chico Bento possui em mais

de 50 anos de sua existência algumas transformações. Durante as suas

Page 48: O caipira chico bento

48

primeiras publicações o personagem possui uma fala muito mais complexa.

Para um público leitor e leigo, o modo de falar do caipira chega a ser

incompreensível, exigindo um esforço do leitor para entender o que o

personagem está falando. Com a mudança de público leitor, e por diversas

críticas recebida por outros intelectuais, que ocorreram principalmente durante

a ditadura civil-militar “O Chico Bento era para ser proibido de ser publicado, ou

ele tinha de falar o português correto”52. Sousa adapta a língua caipira para

uma forma mais simplificada, assim as crianças poderiam entender facilmente

as falas do Chico Bento.

Vários escritores, escrevendo sobre o caipira vão se utilizar da fala do

caipira para satirizar esse morador do campo. Nos quadrinhos do Chico Bento

isso também e percebido, principalmente quando o personagem entra em

contato com pessoas da cidade onde as relações socioculturais são diferentes.

Mauricio de Sousa traz a fala do caipira para o personagem, e demonstra-o da

mesma forma que o português de norma culta, ou seja, as falas em “caipirês”

não são sublinhadas ou grifadas para distinguir da norma culta brasileira, o que

demonstra que ele entende que a fala do personagem é uma realidade social

de grupos específicos que vivem nas regiões de São Paulo. Apesar disso,

como podemos ver na figura 6, a uma busca de demonstrar que a língua

caipira precisa ser eliminada por estar fora dos padrões da norma culta.

Segundo Darcy Ribeiro, a língua caipira vai ser uma miscigenação da

língua e modo de falar dos indígenas com o português; assim o caipira vai

adquirir dos indígenas suas dificuldades com a fala, por exemplo, “em articular

o ‘lh’ o que fazia a pronúncia não soar como deveria. Por isso, colher se

transformou em ‘cuié’ e mulher em ‘muié’”53. Esse tipo variação da linguagem

vai se adaptar e existir dentro de uma determinada cultura a partir do momento

em que ocorre um isolamento de grupos sociais que estavam integrados dentro

de uma lógica social mais abrangente.

52 Entrevista concedida ao programa “Agora e Tarde” do apresentador Danilo Gentili na data de 19/04/2013. Disponível: <http://www.youtube.com/watch?v=BAKEYURkxiY> Site consultado na data. 25/11/2013. 53 RIBEIRO, op.cit.

Page 49: O caipira chico bento

49

Com esse isolamento esse grupo social vai produzir e adaptar o meio

para suas formas de sobrevivência, isto vai incluir a língua dessa população.

Quando esse fenômeno ocorre em larga escala e durante um longo período de

tempo essas populações vão acabar adquirindo tantas características próprias

que será difícil que grupos sociais antes unidos possam se compreender. Nos

casos em menor escala e de menor duração esse fenômeno não chega a se

completar. As características dos grupos apesar de apresentarem

diferenciações ambos conseguiram entrar em comunicação, passando assim a

romper o processo de diferenciação sociocultural54. Com essas considerações

é possível afirmar que a fala do personagem Chico Bento é a representação da

língua caipira uma variação linguística da língua portuguesa e que está possui

uma construção sociocultural dentro da história brasileira.

2.2.5 – A religiosidade no universo caipira.

As histórias do Chico Bento trazem uma importante discussão sobre o

mundo religioso que raramente vai aparecer nas histórias em quadrinhos

voltadas para o universo infantil. As representações religiosas são voltadas

para o universo do catolicismo. As questões religiosas vão aparecer em dois

aspectos importantes dentro da história. A primeira na formação do próprio

nome do Chico Bento. A segunda na representação do personagem padre

Lino.

O nome de um personagem já é uma parte importante para identificar as

características do personagem, será o nome que indicará os conteúdos

ideológicos e estéticos do personagem. Mauricio de Sousa é um grande

exemplo desse tipo de construção, podemos citar alguns exemplos de seus

personagens, entre eles temos, o “Teveluisão” um personagem fanático por

televisão, temos também o “Cebolinha” um personagem com cara de cebola,

ou então o “Louco” personagem maluco que comete todo tipo de loucuras. O

Chico Bento também é um personagem muito ligado ao seu nome, e o nome

dele podemos dividir em duas representações.

54

Adaptado do site: <http://www.aldobizzocchi.com.br/artigo52.asp> Site analisado na data: 24/11/2013

Page 50: O caipira chico bento

50

A primeira parte do nome “Chico” é o apelido do nome real dele que é

Francisco, esse nome é derivado de São Francisco de Assis. Em uma das

histórias do Chico Bento se apresenta a história de seu nascimento e como a

representação do próprio Francisco de Assis vai auxiliar a família Bento a

chegar ao cartório para dar nome ao seu filho, e por essa ajuda inesperada a

família Bento coloca o nome de Francisco Bento. São Francisco de Assis foi

santificado pela igreja católica como o maior exemplo de humildade humana

que já viveu na terra. É a partir desta representação de humildade que São

Francisco possui que vai ser construída a representação do personagem Chico

Bento. Sobre o seu sobrenome “Bento”, que significa algo ou alguma coisa

consagrada pela proteção concedida por Deus55, demonstra toda sua ligação

com as tradições religiosas católicas.

Mauricio de Sousa traz o mundo religioso para os quadrinhos, pois está

é uma relação fundamental no universo caipira. Vai ser a relação organizada

pelas comunidades caipiras em torno das igrejas, que vai constituir grande

parte das tradições culturais desta população, ficando ligado ás relações de

festividades em torno de dias santos.

A segunda representação importante em torno das questões religiosas é

o personagem padre Lino. Ele é uma figura emblemática nas histórias do Chico

Bento. É conhecido como padre Lino ou frei Lino ou também vigário Lino, é o

pároco da igreja da Vila Abobrinha. Ele é católico, veste trajes típicos de

monges franciscanos visível na figura 8. O personagem utiliza túnicas, com

capuz e tem na cintura uma correia ou o cordão, o topo da cabeça raspada e

sandálias de couro, mas por não ser um personagem principal seu tipo de

vestimenta pode sofrer alterações de uma revistinha para outra, mas não deixa

de representar um padre da igreja católica.

55

FERREIRA, Aurélio Buarque de Holanda. Novo Dicionário Aurélio de Língua Portuguesa. Positivo, Curitiba; 2009.

Page 51: O caipira chico bento

51

Figura 8 Padre Lino nota-se sua vestimenta e a cabeça raspada típica dos monges franciscanos.56

Vai ser o padre Lino que irá perdoar os “pecados” que os personagens

vêm cometendo nas histórias e também mediar os conflitos como demonstrado

no quadrinho acima. Também a partir dessa representação é possível afirmar

que se trata de um padre franciscano que vai simbolizar os votos de pobreza e

auxilio à população pobre. Busca demonstrar o quanto essa população do

interior brasileiro, entre elas a população caipira do interior paulista, que sofre

com a miséria e o abandono produzido na história brasileira. Será nesses

locais de abandono social que a ordem franciscana vai agir, buscando trazer

conforto espiritual para essa população. Apesar dessa problemática não ser

bem enfatizada nas histórias do personagem ela fica subentendida dentro da

história do Chico Bento. Elas representarem as relações sociais ligadas às

questões religiosas da população do interior paulista.

O autor traz o fator religioso para a revistinha por ser uma das

características que ele aponta ser do mundo caipira. Isso também e bem visível

na figura 1 e 2, onde o personagem Chico Bento carrega em seu pescoço um

escapulário para trazer proteção divina, o mesmo se apresenta no cenário com

56

SOUSA. Mauricio de. Chico Bento: histórias da vó dita. Coleção um tema só. São Paulo, Ed. Globo, 2005. N° 48, p.19

Page 52: O caipira chico bento

52

a representação de uma igreja. Segundo Darci Ribeiro, a igreja no meio rural

“pode ser o orgulho local pela frequência com que se promovem missas,

festas, leilões, e casamentos, sempre seguidos de bailes”57.

2.2.6 – A relação campo x cidade e a desigualdade social.

Um dos conceitos apresentados nas histórias do Chico Bento é a

diferença entre a cidade e o campo. Mauricio de Sousa produz suas histórias a

partir das histórias ouvidas de sua avó. Tendo pouco contato direto com essa

população, será a partir desse imaginário que ele vai produzir sua

representação do caipira.

Quando ele trata da relação entre o campo e a cidade os problemas

socioeconômicos que a população do campo possui entram em conflito com os

problemas encontrados nas cidades. Apesar das histórias do Chico Bento

apresentarem várias discussões em torno das relações sociais, suas histórias

são voltadas para o universo infantil. Por essa razão, algumas discussões não

são aprofundadas, apresentando discussões de maneira superficial. Uma delas

vai ser a desigualdade social, característica marcante no campesinato

brasileiro.

57 RIBEIRO, op.cit. Pg. 384

Page 53: O caipira chico bento

53

Figura 9 Chico Bento e seu Primo Zeca representação dos problemas entre a cidade e o campo.58

Na figura acima temos um exemplo da relação campo x cidade, e

algumas questões podem ser destacados. Primeiramente a construção do

personagem o “Primo Zeca”, que inicialmente era só conhecido como “Primo”,

esse personagem surge na década de 70, com essa característica de sempre

entrar em contradição com o universo do campo. Sua aparência vai se alterar

durante os vários anos de publicação até se fixar com a aparência

representada no quadrinho acima. O mesmo vai acontecer com seus pais. Isso

ocorre por dois motivos, primeiro pela despreocupação em representar o

personagem considerado secundário ou por mudarem de desenhista, e

segundo, pela necessidade de uma estética diferente, pois o personagem pode

ter ganhado um grau de importância nas histórias ou não está mais dentro do

58

SOUSA. Mauricio de. Chico Bento. São Paulo, Ed. Globo, 2001. N° 387. P. 3 e 14.

Page 54: O caipira chico bento

54

contexto histórico. Como exemplos desses processos, temos também a própria

Mônica que Sousa relata:

Eu tinha criado mais histórias, mais desenhos, eu fui tirando cabelo dela, eu fui eliminando cabelo, até ficar os cinco fios, por que dava muito trabalho fazer esse negocio toda a hora.59

Na figura 9 temos nas primeiras falas do personagem: “Nossa, Chico!

Que vidinha chata que você tem aqui, hein?” é uma representação do

descontentamento do personagem Primo Zeca ao modo de vida que o

personagem Chico Bento tem. Logo dá a se entender que o modo de vida do

personagem na cidade é o oposto, uma vida agitada como a representação da

figura 5 onde está representado a pressa que a população urbana possui em

sua vida cotidiana. No segundo quadro do quadrinho acima Zeca fala “sem

eletricidade, gás, água encanada!” e segue “Sem falar em tevê, cinema,

parques de diversão!” Zeca apresenta um dos problemas comuns no campo,

principalmente problemas comuns nas décadas de 70/80/90, onde há uma

grande falta de saneamento básico, água encanada, gás e até mesmo

eletricidade. Essa questão hoje já chega a ser incoerente, pois houve um

grande avanço da distribuição desses meios básicos de vida e da

modernização do campo. Apesar do grande avanço tecnológico do século XXI,

uma parcela da população do campo não possui ainda esses produtos tão

essenciais para a grande maioria da população, mas, como foi visto no capitulo

1, que a modernidade é um dos fatores que levam a extinção da cultura caipira,

é possível concluir que as histórias do Chico Bento não vão perder estes traços

marcantes, mesmo que a realidade social se altere.

O segundo ponto e o descontentamento do personagem ao saber que o

campo não possui equipamentos eletrônicos como a televisão e locais de

diversão como o cinema e parques de diversão. Apesar da questão dos

equipamentos eletrônicos ser uma questão bastante ultrapassada, já que na

maioria da população do campo no sul e no sudeste no século XXI possui pelo

menos acesso a informação global por algum equipamento eletrônico seja ele

59

Entrevista concedida ao programa “JB Fora do ar” na data de 29/10/2012. Disponível no site: <http://www.youtube.com/watch?v=o7lGj3c1GNQ> Consultado na data: 25/11/2013.

Page 55: O caipira chico bento

55

radio, televisão, internet ou telefone, em muitas regiões do interior brasileiro o

acesso a cinemas, parques de diversão é muito precária, só ocorrendo com o

aparecimento de cinemas ou parques móveis.

Sobre a questão nesse quadrinho é importante salientar que o

personagem Primo Zeca ao perceber que não existe essas formas de interação

e de divertimento não consegue encontrar alguma forma de se divertir, gerando

nele uma monotonia e tedio, pois para ele não tinha nada para ser feito. Vai ser

a ação do Chico Bento que o leva para nadar no lago, pegar goiabas, brincar

com os animais da floresta, pescar, entre outras atividades.

O quadrinho acima traz uma história onde entram em choque as

concepções do Primo com Chico Bento numa disputa de sobrevivência ao se

perder no meio do mato, Chico age como conhecedor do assunto e passa a

preparar os meios corretos de sobrevivência, enquanto isto o Primo passa a

confiar na tecnológica. Primeiramente Chico trata que só vai precisar de um

graveto para sua sobrevivência e o Primo vai utilizar do seu computador.

Enquanto Chico vai demonstrando como sobreviver, marcando o caminho

procurando agua, fazendo fogo e até pescando com o graveto o Primo vai

afirmando que o computador poderia lhe informar onde ele poderia arranjar

tudo isso. Quando o Primo resolve provar que o computador poderia fazer tudo

isso, o mesmo ficou sem bateria. Essa história demonstra a relação de

conhecimento que os dois diferentes grupos sociais possuem. Primeiro o

sujeito do campo que vai ser o conhecedor de tudo relacionado ao modo de

viver no campo, mas que pouco conhece do modo de viver na cidade,

enquanto isso temos a representação do sujeito social que vive na cidade,

totalmente ligado a tecnologia e que não conseguiria sobreviver sem ela. Como

melhor exemplo a isso temos a última página do quadrinho representado na

figura 9, onde o personagem Primo ao conseguir energia para seu computador

retorna ao seu ponto de origem um sujeito social urbano, que não vive sem

tecnologia.

Seguindo esse mesmo processo o mesmo vai ocorrer quando o

personagem Chico Bento vai visitar seu Primo na cidade. Chico não consegue

se adaptar ao modo de viver na cidade, pois para ele lá é um local muito

Page 56: O caipira chico bento

56

poluído e as pessoas estão sempre cheias de pressa. A própria representação

do Primo demonstra isso, pois em sua maioria ele é representado como um

personagem apressado e nervoso com qualquer acontecimento anormal. Outro

ponto que os diferenciam é a própria fala, o Primo Zeca fala o português

correto nas normas cultas enquanto o Chico Bento fala o português caipira do

interior paulista. As histórias do Chico na cidade além de trazerem a relação

desigualdade e as diferenças entre a cidade e o campo, mostram o campo

como lugar de calma, de naturalidade, a ligação do homem com a terra e os

animais, a falta de tecnologia e principalmente onde tudo é mais bonito e isso

fica bem enfatizado na construção dos cenários. Enquanto isso na cidade as

representações vão trazer a violência, a poluição, a pressa, a tecnologia como

uma ferramenta indispensável para a sobrevivência. Mauricio de Sousa nessa

relação buscou problematizar a metrópole e a modernidade como espaço

dicotômico em relação ao campo.

Chico Bento vai ser representado como um personagem com extrema

devoção à natureza e de cuidado com ela, sempre tratando com carinho os

animais do sitio não deixando que os mesmos virem almoço da família.

Mauricio de Sousa busca representar, dessa forma, o homem do campo como

um personagem preocupado com a preservação ambiental, ao contrário da

representação dos personagens urbanos representados nas histórias do Chico

Bento.

Chico quando está na cidade é sempre representado esteticamente de

maneira diferente como podemos ver na figura 5. Essa é uma questão cultural

que Mauricio de Sousa buscou trazer para o personagem. O uso de boas

roupas para essa população do interior está ligado a acontecimentos

importantes, pois no seu modo de vida geral eles usam vestimentas comuns

devido a sempre estarem trabalhando com a terra. Por isso as melhores roupas

são guardadas nos principais eventos como as missas, festas, e nesse caso a

ida para a cidade.

A questão da desigualdade social nas histórias do Chico Bento aparece

nas histórias que ocorrem as discussões do campo x cidade, como vistos

acima. Nas histórias ocorridas no campo a desigualdade também aparece. Nas

Page 57: O caipira chico bento

57

histórias do Chico Bento e quando a histórias estão relacionadas com o

personagem Genesinho, ou com o pai dele o coronel Agripino. Esse

personagem foi criado para representar o oposto do Chico Bento, ou seja, ele

vai ser rico, mimado, filho de um grande fazendeiro, rival no seu romance com

a Rosinha. Mas, no fim, será sempre o Chico que a Rosinha irá preferir.

Também por se considerar rico usa disso para humilhar os outros personagens

por não possuírem o que ele possui. As histórias são cômicas e infantis, mas

representam a divisão entre o grande produtor rural e o pequeno produtor que

é bastante representativo no universo do campesinato brasileiro. Genesinho vai

possuir tudo de mais moderno, celular, empregados, carros de luxo, melhores

cavalos, melhores plantações, suas próprias roupas demonstram a diferença

com o Chico Bento, e fica bem visível ao contrapor com o Chico Bento, nas

histórias que são representadas nas terras do pai do Genesinho, um “coronel”

da região. A produção lá e sempre representada de maneira aumentada, tudo

lá e maior e melhor, e sempre vai causar inveja na família Bento, tanto é que o

próprio Chico sempre promete em seu futuro ser igual a ele.

2.2.7 – As relações familiares.

Os laços familiares nas histórias do Chico Bento são muito importantes

para a compreensão de algumas visões sobre a família do campo. O núcleo

familiar vai ser dividido em mãe pai e filho. A mãe chama-se Carlota Bento da

Cunha, mas nos quadrinhos conhecida apenas como dona Cotinha. Seu pai

Antônio Felício Bento, nas histórias é chamado de Nhõ Bento. Os dois

personagens aparecem em muitos dos quadrinhos, principalmente para

demonstrar a relação familiar que eles possuem com o personagem Chico

Bento. A mãe representa uma legitima dona de casa nos moldes tradicionais,

aparecendo na maioria dos quadrinhos trabalhando na cozinha, cuidando da

casa ou do Chico Bento. Já o pai, ele se apresenta como um homem

trabalhador e que busca ensinar o seu filho o trabalho com a terra. É uma visão

bem estereotipada de família nuclear, os dois personagens falam o “caipirês”

como o próprio Chico Bento, o que lhe causa em algumas histórias

constrangimento. Os pais não possuem ensino escolar, como é comum na

Page 58: O caipira chico bento

58

maioria das famílias do interior brasileiro, isso ainda no século XXI, mas os dois

estão sempre apoiando e cobrando o ensino do Chico Bento.

A moradia da família Bento (sítio) fica próxima a um vilarejo chamado

Vila Abobrinha, composta por uma venda e uma capela. Sua casa é bem

simples, mas feita de taipa igual a muitas representações feitas sobre as casas

dos caipiras. De acordo com estudos de Ribeiro, essa maneira de “morar” perto

de vilas se configura como a forma que “a população caipira preenche suas

condições mínimas de sobrevivências”60. Essa relação de proximidade vai criar

grandes laços de solidariedade. Nas histórias do Chico esses laços estão muito

presentes, e sempre entram em contradição quando algum personagem

externo tenta quebrar essa situação, mesmo que o personagem seja um

animal.

Foi possível perceber a partir da análise das revistinhas que as relações

geram solidariedade. A família caipira vai ser mostrada possuindo o controle

sobre os meios de produção e sobre o processo de trabalho, com um grau de

independência, mas também com grau de necessidade de ajuda em algumas

fases da produção como a colheita, ou algum problema meteorológico.

Maurício de Sousa representa a família caipira tradicional, nuclear, contendo

país e os parentes mais próximos, tios, avós, primos, mas também ele traz os

animais da fazenda praticamente como parte integrante da família. Chico vai

tratar em alguns casos os animais da melhor maneira que muitas das pessoas

representadas nas histórias, tanto é que a maioria dos animais vão possuir

nomes próprios, e um grau de humanidade.

Apesar das histórias do Chico Bento se passarem dentro de uma família

de três pessoas houve em duas histórias o aparecimento de uma irmã do Chico

Bento chamada Marina. Pouca gente a conhece, mas ela tem uma grande

importância tanto pela sua representação social quanto pela audácia de colocar

a morte de um personagem que representa uma criança num quadrinho

voltado para o publico infantil. Mariana é uma estrela que resolve viver entre os

humanos se tornando a irmã do Chico Bento, só que ela ainda vai morrer

enquanto criança isso ainda na primeira aparição dela. Em uma parcela da

60 RIBEIRO, Darcy. Op.cit. p.

Page 59: O caipira chico bento

59

população do campo, principalmente em regiões remotas este problema vai ser

muito comum, devido aos grandes problemas da saúde brasileira, pela falta de

incentivo e investimento e a falta de informação.

Chico Bento é filho único da família Bento, fato este contraditório, pois

geralmente as famílias com um alto grau de pobreza e falta de informação tem

um número elevado de filhos. Isto também ocorre pela necessidade de mão de

obra para trabalhar nas suas terras. Mariana, que morre na primeira história

volta na segunda novamente como uma estrela para dar um presente para o

Chico Bento, que vai ser a esperança no futuro, mostrando no final a

reencarnação dela como filha do Chico Bento.

2.2.8 – O Folclore brasileiro representado nos quadrinhos.

O folclore é uma das maneiras do ser humano recriar as remotas

histórias de sua civilização, e o ser humano tem por hábito os atos de

comemorar e relembrar as datas festivas sagradas e de agradecimentos.

Essas ações acabam fazendo parte dos nossos calendários, como forma de

tradição religiosa e festiva. Vão ser esses hábitos que vão agir dentro dos

processos das transformações culturais, religiosas, sociais da sociedade

humana e das relações simbólicas entre o mundo real e o imaginário. O folclore

com a interpretação do ser humano da origem aos diversos protagonistas e

suas performances nos festejos populares. Vão ser essas práticas do passado

que a partir de uma tradição de oralidade vão chegar à contemporaneidade,

trazendo as diversidades regionais e locais de significados para as diferentes

concepções criadas em torno de uma lenda ou mito, e de referências e

desdobramentos culturais e de apropriação de valores simbólicos que vão

construindo novas identidades ou perpetuar as mesmas. Dentro desse

processo cultural, as manifestações populares, já não pertencem apenas aos

seus protagonistas da cultura popular. O caipira vai ser um forte representante

de criação e de absorção de diversos mitos e lendas, tem uma forte crença no

folclore popular, respeitando até de sobremaneira as datas de santos, criando

Page 60: O caipira chico bento

60

mais feriados que o habitual da igreja, e com isso gerar mais festejos

populares61.

Nas histórias do Chico Bento haverá um personagem que terá a função

de ser a contadora de histórias. Arbelinda Benedita Gertrudes da Cunha Felício

Bento, ou simplesmente avó Dita. É a avó do Chico Bento, ela foi inspirada na

própria avó do Mauricio de Sousa que também se chamava avó Dita. Surgiu

em 1969 como contadora de histórias igual a sua avó fazia para ele em sua

infância62. Será essa personagem que dará vida a muitos contos e

personagens do folclore brasileiro. O interessante nas histórias do Chico Bento

é que mesmo sendo histórias folclóricas da avó Dita elas acabam no final da

história sendo colocados como verdadeiras para o Chico Bento. Os

personagens folclóricos vão aparecer contracenando com o Chico Bento, ou

com algum outro personagem, e geralmente quando são representados

sozinhos não são demonstrados de maneira agressiva.

O uso das histórias folclóricas na literatura brasileira ocorrerá a partir da

década de 1970 quando a indústria cultural está em franco crescimento,

impulsionada pelos meios de comunicação de massa, buscando novos

mercados. Com isso o folclore brasileiro acabou sendo inserido dentro de uma

área de mercado, ficando conhecidos como produtos folkmidiáticos, só que em

muitas das representações as histórias antes narradas a partir da oralidade,

passaram a ser manipuladas para agradar ao público leitor. Apesar dessa

manipulação foi um fator importante para a divulgação do folclore brasileiro e

principalmente para a criação de uma produção cultural de massa. Com a

absorção do folclore brasileiro pela indústria cultural vai ocorrer um conflito

ideológico e mercadológico com as lendas introduzidas pelo mercado mundial,

nas revistinhas do Chico Bento. Esse conflito e bem visível, principalmente,

com relação à discussão entre o Primo Zeca da cidade, que acredita e possui

muito mais medo das lendas produzidas por esse mercado mundial do que

com as lendas tradicionais brasileiras. O oposto também vai ocorrer com o

personagem Chico Bento que com o convívio das lendas do folclore brasileiro,

61 Adaptado de AGUIAR, Lilian. Folclore. Disponível no site: <http://www.brasilescola.com/historiab/folclore-brasileiro.htm> Site consultado na data: 25/10/2013 62

Dados disponíveis no site: http://pt-br.monica.wikia.com/wiki/V%C3%B3_Dita. Site consultado na data: 25/10/2013.

Page 61: O caipira chico bento

61

teme e acredita, mas não considera importantes as lendas estrangeiras, nota-

se nos quadrinhos abaixo os seguintes pontos: No primeiro é visível a

representação de espanto do Chico Bento ao reconhecer a Mula Sem cabeça,

mas nos dois quadrinhos seguintes Chico Bento não entende quem é o

corcunda e vampiro são lendas estrangeiras e por tanto ele não as conhece

fica visível na fala “er... eu num fiz nada, moço! Quando cheguei o home já tava

aí no caixão!”. No terceiro quadrinho temos então o inverso se Primo Zeca, não

reconhece o Lobisomem achando que ele é um simples cachorro.

Figura 10 Montagem de quadrinhos com lendas nacionais e internacionais63

Em algumas histórias a avó Dita também é representada como parteira

da vila, outra característica comum no interior do Brasil, onde a locomoção para

os hospitais é muito precária devido a grande falta de estradas no interior do

Brasil, e também da pouca existência de médicos no interior brasileiro. A

grande maioria das cidades do interior não possuem recursos e estrutura para

manter um hospital. Vai ser então nessas regiões que as parteiras vão realizar

os partos da população, na sua maioria feitos na própria casa do morador.

63

SOUSA, Mauricio. Chico Bento. São Paulo, Abril, n° 85. 1985. P. 30; SOUSA, Mauricio. Chico Bento. Rio de Janeiro, Ed. Globo. N° 87,1989. P. 28; SOUSA, Mauricio. Chico Bento. São Paulo, Ed. Panini, n°75. 2013. P. 7.

Page 62: O caipira chico bento

62

2.2.9 – “O caipira não pode mudar”.

Uma das características das histórias do Chico Bento é de serem

histórias cíclicas, ou seja, elas começam, possuem um desenvolvimento, mas

retornam de novo para o começo. Com essas características cíclicas tudo que

foi desenvolvido na história se perde. Esse processo ocorre nos quadrinhos do

Chico Bento para que o personagem se mantenha dentro de suas

características primordiais. Com isso o personagem vai sempre possuir 7 anos

de idade, ser péssimo aluno na escola, falar o caipirês, estar sempre ligado ao

campo, não possuir os avanços tecnológicos.

Dentre dessa relação vai surgir a personagem Rosinha que foi criada em

1964 para ser par romântico do personagem Chico Bento, tem por nome Rosa

Maria Rodrigues Pontes da Silva Filha, tem sete anos idade também, mas

assim como os outros personagens possui uma mentalidade maior do que

representa. Também fala o “caipirês”, mas é boa aluna no colégio,

representada usando um vestido vermelho e com tranças no cabelo.

Inicialmente usava um chapéu de palha como na figura 1, mas foi retirado só

aparecendo em ocasiões especiais. É o tipo de garota sonhadora, romântica e

teimosa.

Rosinha tem como função na história, além de ser o par romântico do

Chico Bento, vivendo um amor platônico e proibido pelos pais da Rosinha, os

quais são de uma família mais rica e não veem futuro no relacionamento entre

os dois. Representa também a busca pela mudança, pois vai ser ela que vai

incentivar o Chico Bento a mudar seu estilo de vida, ficando bem visível

quando Chico Bento e incentivado no quadrinho a baixo.

Page 63: O caipira chico bento

63

Figura 264 Chico busca dinheiro para comprar um presente para Rosinha.

Neste quadrinho Chico Bento busca a todo custo dinheiro para comprar

um melhor presente para o aniversario de Rosinha. No final, não bastou todo o

esforço. Ele perdeu todo dinheiro que consegui, só possuindo no final uma

goiaba a qual ele considerava “um presente mais fajuto”. Esse tipo de

quadrinho demonstra essa relação cíclica que o personagem possui. Ele

começa a história sem dinheiro, mas no desenrolar ele consegue a partir do

esforço arrumar o dinheiro para comprar o presente da Rosinha. Chico Bento

não pode mudar para que suas histórias tenham continuação, então no final ele

teve de perder o dinheiro, para poder retornar ao inicio da história, pobre e sem

condições de dar um bem material para a Rosinha. O jeito caipira de ser é uma

forma única que não pode sofrer alterações, pois com a mudança ele deixa de

ser caipira, pois segundo Antonio Candido “A cultura caipira, como a do

primitivo, não foi feita para o progresso”65 por isso “a sua mudança é seu fim,

por que está baseada em tipos tão precários de ajustamento ecológico e social,

64 SOUSA. Mauricio de. Mônica: festas. Coleção um tema só. São Paulo, Ed. Globo, 2005. 65 CÂNDIDO, op.cit.p.

Page 64: O caipira chico bento

64

que a alteração destes provoca a derrocada das formas de cultura por eles

condicionada”66.

Vai ser no ano de 2013 que a real mudança do personagem vai ocorrer.

Suas histórias normais para o mundo infantil vão continuar a ser publicada

nesses moldes, mas será nesse ano que uma nova revista do Chico Bento vai

ser lançada, trazendo uma nova visão estereotipada do sujeito social. Chico

agora jovem deixa de falar o “caipirês”, se muda para São Paulo, buscando

estudar agronomia, e um futuro diferente que muito dos leitores esperava, mas

traz uma visão da mudança do personagem, e o esperado para a sociedade

que vive dentro dos moldes caipira.

66CÂNDIDO, op.cit. p.

Page 65: O caipira chico bento

64

Considerações finais:

Os quadrinhos são uma grande ferramenta tanto educacional quanto

meio de comunicação de massas, criando uma série de representações da

sociedade humana.

Nos quadrinhos do Mauricio de Sousa, por meios das representações do

caipira Chico Bento, busca apresentar uma população excluída socialmente,

servindo de ponte para as diferentes realidades entre a cidade e o campo e,

principalmente, a relação entre o mundo atrasado e o moderno e de focar em

uma cultura diferenciada que faz parte do Brasil. As histórias do Chico Bento

estão carregadas de representações sociais, não somente do caipira, mas todo

um universo social brasileiro.

Sousa busca sempre representar o caipira ligado a terra, e nessa

relação busca demostrar as diferenças entre a cidade e o campo, onde o

campo é o atrasado e a cidade o moderno. É no campo que as relações sociais

de coletividade vão ser representadas mais fortemente, ao contrário do que é

representado na cidade com uma população individual. Sousa busca com essa

representação demonstrar como os dois universos são diferentes. Na cidade

temos a tecnologia, a agitação, os veículos automotores, enquanto no campo

temos o atraso tecnológico, a paciência, a natureza, o refúgio para os

problemas das cidades. O autor traz várias representações culturais que são

construídas no interior do Brasil como sendo parte integrante da cultura caipira.

Essas representações apresentam a forte religiosidade (catolicismo) à crendice

popular no folclore brasileiro, e principalmente os laços de amizade e

familiares.

São várias as representações do modo de vida caipira dentro da revista

do Chico Bento. Ela foi construída para um público infantil, mas que está

carregada de informações e debates complexos sobre as relações sociais entre

o campo e a cidade, e principalmente sobre essa população que continua a

existir. Chico Bento é representado como uma figura preguiçosa, que fala

errado, tem vários problemas, essa analogia aproxima a representação

Page 66: O caipira chico bento

65

construída por Monteiro Lobato. Em contrapartida Chico Bento também é

representado como um caipira esperto, curioso, conhecedor da natureza e

portador da cultura do interior brasileiro, essas características o aproximam da

visão no trabalho de Cornélio Pires. Chico Bento é uma mistura das

características representadas no passado. Mas, para além disso, Chico é um

representante da cultura caipira.

Muitos escritores como o Darcy Ribeiro e Antônio Cândido afirmaram

que esta forma cultural de viver está em processo de extinção. Na própria

revista do Chico Bento o processo de extinção da cultura caipira fica

subentendido. Pois, nas histórias os personagens não podem sofrer alterações

bruscas em seu modo de ser, como é o caso apresentado na figura 7, se ele

sofrer essa alteração ele deixa de ser o caipira. Para evitar isso Sousa constrói

sua história de maneira cíclica.

Em 2013 Mauricio de Sousa vai além, ele traz uma nova representação

do caipira, uma possível evolução dessa população. Ele lança o Chico Bento

Jovem, uma revista voltada para o publico adolescente, mas que traz um novo

tipo de caipira: Chico nessa representação deixa de falar o “caipirês”, ele é um

caipira ligado ao campo e a modernidade, que busca estudar para melhor a

sua vida.

Page 67: O caipira chico bento

66

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