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Direitos Humanos
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1
O DIREITO À PROPRIEDADE DAS TRIBOS INDÍGENAS À LUZ DA CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS: ANÁLISE DO
CASO DA COMUNIDADE DOS MOIWANA VS SURINAME.1
Caroline Laura da Costa Ferreira Matos2
Resumo: Em 2002, foi submetido à Corte Interamericana de Direitos Humanos o caso da tribo indígena N’djuka de Moiwana vs o Estado do Suriname. Desde o século XVII, esta tribo vive no país e nunca teve problemas concernentes ao seu território até a chegada dos militares em 1986. Com o súbito ataque das forças armadas, seus membros perderam suas terras e tudo o que esta representava. O presente artigo científico tem como objetivo demonstrar a relação que as tribos indígenas, em especial a N’djuka, possuem com a sua terra e como a Corte Interamericana correlaciona esta relação com o direito à propriedade. Em um primeiro momento, será explanada a relação das tribos indígenas com a terra. Ao final, será abordado o entendimento da Corte sobre o direito à propriedade das tribos indígenas. Palavras-chave: N’djuka Maroon. Moiwana. Suriname. Corte Interamericana de Direitos Humanos. Direito à propriedade. Tribos Indígenas.
THE RIGHT TO OWN INDIGENOUS TRIBES OF THE LIGHT OF
INTER-AMERICAN COURT OF HUMAN RIGHTS: THE CASE ANALYSIS OF THE COMMUNITY FROM MOIWANA VS SURINAME
Abstract: In 2002, it was submitted to the Inter-American Court of Human Rights the case of the N'djuka Indigenous Community from Moiwana vs. the State of Suriname. Since the XIX century this community lives in the country and never had problems concerning their territory until the arrival of the military in 1986. With the armed forces sudden attack, its members lost their land and all it represented. This article aims to demonstrate the relationship that the indigenous communities, especially N'djuka, have with their land and how the Inter-American Court correlates this relationship with the property right. At first, it will be explained the indigenous communities’ relationship with the land. At the end, it will be discussed the Court's view on the Indigenous property right. Key words: N’djuka Maroon. Moiwana. Suriname. Inter-American Court of Human Rights. Property Rights. Indigenous Communities.
1 Artigo científico apresentado ao Curso de Direito do Centro Universitário do Estado do Pará
(CESUPA) como requisito para obtenção do grau de Bacharel em Direito, orientado pelo Prof. Paulo de Tarso Dias Klautau Filho. Belém, 2011 2 Graduanda do Curso de Direito do Centro Universitário do Pará e Membro do Núcleo de Prática
Jurídica de Direitos Humanos do CESUPA.
2
1 INTRODUÇÃO
O caso fichado (ver Apêndice A) relata o acontecido no ano de 1986 e
envolve duas partes: o Estado de Suriname e a Comunidade de Moiwana. Antes de
adentrar no caso propriamente dito, é de suma importância que se faça um breve
contexto do momento histórico daquela época.
O Suriname foi colonizado pela Holanda, tendo se tornado independente em
1975. Em 25 de fevereiro de 1980, o General Desire Bouterse declarou que o País
deixaria de ter como forma de governo a democracia, passando a adotar o regime
da República Socialista. Entre 1982 e 1988 o Suriname foi governado pelos militares
e, neste período, ocorreram diversas violações de direitos humanos, a exemplo de
assassinatos de líderes da oposição e o aprisionamento de nativos da região, por
serem considerados opositores ao governo.
Dentre esses opositores existia um grupo armado chamado “Jungle
Commando”, liderado por um membro de uma comunidade indígena, que durante o
ano de 1986 atacou as bases militares que se localizavam na parte oriental do
Suriname. Em resposta a esses ataques, as forças armadas militares realizaram
diversas ações e, entre 1986 e 1987, aproximadamente duzentas pessoas morreram
em razão disto.
O regime militar terminou quando o General Bouterse foi obrigado, por um
grupo de resistência, a realizar eleições diretas em Janeiro de 1988, o que
transformou o regime de governo do Suriname em democracia.
Durante os ataques militares de 1986, a comunidade indígena de N’djuka
Maroon de Moiwana foi invadida pelas forças armadas do Estado do Suriname. No
dia 29 de Novembro daquele ano, soldados do Exército massacraram e
assassinaram mais de 39 membros da comunidade, sendo eles homens, mulheres e
crianças, e ainda destruíram o local onde eles viviam. A destruição fez com que os
sobreviventes do massacre fugissem e buscassem abrigo nas florestas próximas e
muitos conseguiram fugir para a Guiana Francesa, Estado vizinho ao leste do
Suriname. Porém, outros sobreviventes permaneceram dentro do Suriname, onde
alguns se alojaram em cidades do interior, e outros escaparam para a capital do
país, Paramaribo.
3
Nunca houve uma apropriada investigação deste massacre, bem como um
julgamento condenando os culpados, pois, mesmo após o término do regime, os
militares ainda exerciam uma influência muito grande no Estado. Os sobreviventes
continuaram deslocados da sua terra - forçosamente - o que acarretou na
impossibilidade de retomarem o seu estilo de vida tradicional em comunidade.
Assim é que, em virtude da falta de uma jurisdição competente que julgasse
o caso, da permanente impossibilidade dos membros sobreviventes de retornarem
para a sua terra, e de uma legislação própria interna capaz de fornecer meios de
defesa apropriados para a resolução do conflito sobre a terra, o caso foi levado a
conhecimento na Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Contudo,
ao tentar entabular um acordo impondo obrigações de fazer ao Estado, a CIDH
fracassou, motivo pelo qual este caso foi remetido para a Corte Interamericana de
Direitos Humanos.
2 A COMUNIDADE N’DJUKA MAROON DE MOIWANA E SUA RELAÇÃO COM A
TERRA
A tribo N’djuka nasceu no século XVII, período este da colonização europeia
no território do Suriname. Nesta época, navios vindos da África desembarcaram no
Estado trazendo milhares de pessoas para trabalharem como escravos para os
senhores de terra. Muitos desses escravos conseguiram fugir para florestas na parte
oriental do país, onde estabeleceram a comunidade dos Maroons, que mais tarde se
dividiu em seis diferentes tribos, sendo a N’djuka uma delas.
No ano de 1760, a tribo N’djuka assinou um tratado de paz com as
autoridades coloniais, ocasião em que foi negociada a sua liberdade da condição de
escravos e foi concedida autorização para que a tribo permanecesse nas terras
onde se estabeleceram, realizando-se a demarcação de tais terras. Para os N’djuka,
esse tratado continua sendo válido, mesmo após o Suriname ter declarado sua
independência da Holanda.
Os N’djuka possuem um sistema matriarcal, base de organização de sua
comunidade. Este povo oferecia às mulheres o direito ao uso da terra. Elas tinham a
capacidade de realizar os serviços na terra, como o cultivo e a colheita de alimentos.
No final do século XIX, a aldeia de Moiwana foi fundada pela tribo, e esta se tornou o
4
seu território para a caça, pesca e o cultivo, mas, como se verá a seguir, a terra
possuía um significado religioso para a tribo, já que, de acordo com a sua crença, os
seus ritos religiosos deveriam ser realizados na sua aldeia de origem, caso contrário,
acreditavam que não surtiriam efeito.
De acordo com a sua cultura, o direito à terra é adquirido desde o
nascimento de um membro da comunidade. Segundo a comunidade, existem dois
níveis deste direito, que seria o direito à propriedade comunitária, alegam que a terra
pertencia a todos; e o direito à propriedade em âmbito individual. Para os membros
da comunidade N’djuka, esses direitos são considerados perpétuos e inalienáveis.
Quando do massacre de 1986, que destruiu a aldeia de Moiwana e deslocou
os sobreviventes para outros lugares, a tribo N’djuka perdeu a sua identidade
cultural e sua integridade como comunidade. Desde o massacre, as terras
pertencentes aos N’djuka encontram-se vazias, sem moradia. Alguns membros da
tribo que retornaram ao Suriname não conseguiram ficar na terra por muito tempo.
Com a perda da sua terra de origem, os membros da comunidade sofreram
de maneira psicológica e econômica, já que a terra representava para a comunidade
a sua sobrevivência e o seu modo de vida. De acordo com a sua crença, eles só
poderão se re-estabelecer na terra após a realização de ritos religiosos e culturais
para purificar a terra, e enterrar os seus membros; e se eles não tiverem um local
para onde voltar, a sua sociedade será destruída, pois, sem a sua terra, seria difícil
manter a sua identidade cultural e suas obrigações sociais para com o povo.
3 DIREITO À PROPRIEDADE DAS TRIBOS INDÍGENAS
O direito à propriedade é um dos mais antigos, sendo constituído no
jusnaturalismo e positivado com o passar dos séculos. Este direito, de um ponto de
vista patrimonialista, infere que o homem torna-se proprietário quando possui o
domínio natural da propriedade o que lhe permite usá-la em proveito próprio,
vedando a possibilidade de outra pessoa usufruí-la. Registre-se a positivação deste
direito no âmbito interamericano:
5
Artigo 21 - Direito à propriedade privada 1. Toda pessoa tem direito ao uso e gozo de seus bens. A lei pode subordinar esse uso e gozo ao interesse social. 2. Nenhuma pessoa pode ser privada de seus bens, salvo mediante o pagamento de indenização justa, por motivo de utilidade pública ou de interesse social e nos casos e na forma estabelecidos pela lei.
3
A interpretação positiva deste artigo sugere esta visão patrimonialista,
porém, deve-se levar em consideração que a terra, para as tribos indígenas, vai
muito além desta visão individual; eles compreendiam que a terra onde viviam
pertencia a toda comunidade, não tão somente a um membro da tribo. Para as tribos
indígenas, a propriedade é vista como algo coletivo: todos usufruem da terra, seja
para retirar-lhe somente o necessário para a subsistência, seja para a prática de
rituais religiosos.
O artigo 13 (2) da Convenção nº 169 da Organização Internacional do
Trabalho (OIT) positiva que o conceito do “termo ‘terras’ [...] deverá incluir o conceito
de territórios, o que abrange a totalidade do habitat das regiões que os povos
interessados ocupam ou utilizam de alguma outra forma.”4
Com base nesse entendimento, o artigo 14 da Convenção nº 169 assegura
que o direito à propriedade das tribos indígenas deverá ser reconhecido:
sobre as terras que [estas tribos] tradicionalmente ocupam. Além disso, nos casos apropriados, deverão ser adotadas medidas para salvaguardar o direito dos povos interessados de utilizar terras que não estejam exclusivamente ocupadas por eles, mas às quais, tradicionalmente, tenham tido acesso para suas atividades tradicionais e de subsistência.
5
O direito à propriedade, ao assegurar a posse e o acesso à terra, está
protegendo o uso do território ocupado pelos povos indígenas que, além de
abranger o local onde eles estabeleceram sua moradia, inclui as terras utilizadas
para o plantio, bem como os recursos que da natureza provêm, tais como, a caça, a
pesca, frutos, os locais de lazer e os espaços por onde se locomovem. Portanto,
percebe-se que o seu direito à propriedade garante a proteção do território dos
3 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana de Direitos Humanos:
assinada na Conferência especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, San José, Costa Rica, em 22 de novembro de 1969. [Washington], 1969. 4 BRASIL. Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004. Promulga a Convenção n. 169 da Organização
Internacional do Trabalho – OIT sobre povos indígenas e tribais. Brasília, 2004. 5 Id. Ibid.
6
povos indígenas como um todo,6 não podendo ser limitado ao espaço usado para a
moradia e cultivo.
Além da importância que tem o território para a subsistência da comunidade
indígena, ele torna-se parte da sua história, sua cultura, sua espiritualidade e da
integridade do povo. Portanto, para as comunidades indígenas, a sua relação com o
território vai muito além do conceito de posse, já que a terra representa para eles
elementos materiais e espirituais que deverão ser passados para as gerações
futuras.
A Corte Interamericana e a Corte Europeia de Direitos Humanos entendem
que os tratados de direitos humanos devem ser interpretados de modo que se
adequem às condições de vida atuais7 e, seguindo esse entendimento, a Corte
Interamericana reconhece que deve ser garantido às tribos o direito à propriedade
comunitária, como nas seguintes decisões que envolvem o direito à propriedade de
tribos indígenas:
Caso Mayagna (Sumo) Comunidade Awas Tingni vs. Nicaragua, sentença de 31 de Agosto de 2001; Caso da Comunidade Indígena Yakye Axa vs. Paraguai, sentença de 17 de junho de 2005; Caso da Comunidade Indígena Sawhoyamaxa vs. Paraguai, sentença de 29 de março de 2006; Caso do Povo Saramaka vs. Suriname, sentença de 28 de novembro de 2007; Caso da Comunidade Indígena Xákmok Kásek vs. Paraguai, sentença de 24 de agosto de 2010.
8
Percebe-se, pela leitura do artigo 21 da Convenção Americana, que não há
uma referência expressa sobre o direito à propriedade de comunidades indígenas,
nem mesmo qualquer aspecto que demonstre haver um conceito de propriedade
comunitária. Acontece que a Corte IDH não pode interpretar tal artigo, ou qualquer
artigo da Convenção, de maneira a restringir o direito de outrem e, para isso, se
utiliza do artigo 31 da Convenção de Viena sobre Direito dos Tratados, o qual
estabelece que: “Um tratado deve ser interpretado de boa fé segundo o sentido
comum atribuível aos termos do tratado em seu contexto e à luz de seu objetivo e
6 INTER-AMERICAN COMMISSION ON HUMAN RIGHTS. Indigenous and tribal people’s rights
over their ancestral lands and natural resources: norms and jurisprudence of the Inter-American Human Rights Syste. OEA/Ser.L/V/II. Doc. 56/09. 30 de dezembro de 2009. p. 13. 7 CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso comunidade indígena Yakye Axa
vs Paraguai. Mérito, Reparação e Custas. Sentença de 17 de junho de 2005. (Série C, n. 125). par. 125. 8 Id. Ibid.
7
finalidade.”9 Também assim explana o artigo 29 (2) da Convenção Americana, que
determina o que segue:
Normas de interpretação. Nenhuma disposição da presente Convenção pode ser interpretada no sentido de: Limitar o gozo e exercício de qualquer direito ou liberdade que possam ser reconhecidos em virtude de leis de qualquer dos Estados Membros ou em virtude de Convenções em que seja parte um dos referidos Estados.
10
Por conta desta limitação, a Corte, baseando-se no princípio pro homine, o
qual declara que será sempre aplicável a norma que mais amplia o gozo de um
direito,11 passa a interpretar o artigo 21 da Convenção Americana de maneira
holística, abrigando tanto a propriedade privada quanto a propriedade comunitária,12
fundamentando-se na Convenção nº 169 da OIT sobre povos indígenas e tribais, a
qual dispõe sobre o direito à propriedade comunitária das tribos indígenas. A Corte
assim afirma:
Al analizar el contenido y alcance del artículo 21 de la Convención, en relación con la propiedad comunitaria de los miembros de comunidades indígenas, la Corte ha tomado en cuenta el Convenio No. 169 de la OIT, a la luz de las reglas generales de interpretación establecidas en el artículo 29 de la Convención, para interpretar las disposiciones del citado artículo 21 de acuerdo con la evolución del sistema interamericano, habida consideración del desarrollo experimentado en esta materia en el Derecho Internacional de los Derechos Humanos.
13
Ademais, o artigo 21 (2) prevê que ninguém poderá ser privado de usufruir
seus bens. A Corte já assinalou que “bens” podem ser compreendidos como
“elementos corpóreos e incorpóreos, como também qualquer outro objeto imaterial
suscetível de ter um valor”. 14 Os bens corpóreos podem ser identificados no
território indígena como sendo a própria terra usufruída e os recursos naturais
providos por esta, localizados tanto na superfície como no subsolo.15
9 CONVENÇÃO de Viena sobre Direito dos Tratados. [S.l.], 1969.
10 ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana de Direitos Humanos,
op. cit. 11
GOMES, Luiz Flávio. Direito dos direitos humanos e a regra interpretativa do pro homine. Disponível em: <http://www.blogdolfg.com.br>. Acesso em: 13 out. 2011. 12
MELO, Mario. Últimos avanços na justiciabilidade dos direitos indígenas no sistema interamericano de direitos Humanos. Revista Internacional de Direitos Humanos, São Paulo, v. 3. n. 4, jun./ 2002. p. 34. 13
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso comunidade indígena Sawhoyamaxa Vs. Paraguai. Mérito, Reparação e Custas. Sentença de 29 de março de 2006. (Série C, n. 146). par. 117. 14
Id. Caso da comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs. Nicarágua. Mérito, Reparação e Custas. Sentença de 31 de agosto de 2001. (Série C, n. 79). par. 144. 15
INTER INTER-AMERICAN COMMISSION ON HUMAN RIGHTS. Indigenous and tribal people’s rights over their ancestral lands and natural resources, op.cit. p. 13.
8
Com relação aos bens incorpóreos, ou objetos imateriais, pode-se identificá-
los como sendo a religião, a cultura das tribos indígenas e sua estreita relação com
a terra, pois estes elementos possuem valores morais e de extrema importância para
os indígenas, já que é por meio destes que eles se identificam como uma
comunidade indígena, portanto, também devem ser protegidos.
Este entendimento é amparado pelo artigo 21 da Convenção Americana, em
concordância com o pronunciamento da Corte Interamericana, que afirma que tal
regra também assegura o direito ao acesso à terra tradicional e aos seus recursos
naturais vinculados à cultura indígena, bem como protege os bens incorpóreos
advindos desta cultura.16 Ou seja, a Corte já consolidou a ideia de que tanto a
cultura como a religião dos povos indígenas encontram-se abrangidas no artigo 21
da Convenção.
O direito à propriedade comunitária das tribos indígenas também pode ser
encontrado no artigo 23 da Declaração Americana dos Direitos e Deveres do
Homem e seu texto assim positiva: “Toda pessoa tem direito à propriedade particular
correspondente às necessidades essenciais de uma vida decente, e que contribua a
manter a dignidade da pessoa e do lar.” 17 Este, como o artigo 21 da Convenção,
não trata expressamente do direito à propriedade comunitária dos indígenas, mas
sim da propriedade privada.
Já foi consolidada pela Corte a noção de abrangência do artigo 21 sobre a
propriedade comunitária, e o mesmo acontece com a interpretação do artigo 23 da
Declaração Americana. Para esta interpretação abrangente, deve-se levar em
consideração outro princípio, o da não-discriminação, encontrado na Convenção
Americana de Direitos Humanos, na Declaração Americana dos Direitos e Deveres
do Homem, bem como na Convenção nº169 da OIT. Baseando-se neste princípio, o
direto à propriedade comunitária deverá obter uma proteção igual ao direito à
propriedade privada, logo, os Estados membros deverão implantar mecanismos na
16
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso Saramaka Vs. Suriname. Exceções Preliminares, Mérito, Reparação e Custas. Sentença de 28 de novembro de 2007. (Série C, n. 172). par. 88. 17
DECLARAÇÃO Americana dos Direitos e Deveres do Homem. Aprovada na IX Conferência Internacional Americana, em Bogotá, em abril de 1948. Disponível em: <http://www.cedin.com.br/site/pdf/legislacao/tratados/declaracao_americana_dos_direitos_e_deveres_do_homem.pdf>. Acesso em: 23 ago. 2011.
9
sua legislação interna que permitam esta proteção igualitária para os direitos à
propriedade comunitária das tribos indígenas.
O direito à propriedade comunitária possui um conceito coletivo, mas não é
muito diferente da propriedade particular tratada no artigo 23. A Corte interpreta este
artigo de modo a não haver qualquer diferença entre os dois tipos de propriedade. A
base de tal direito é a mesma, todos os homens têm direito à propriedade para viver
em condições dignas. A única diferença encontra-se no modo como os indígenas
lidam com a sua propriedade. Como supracitado, os membros das comunidades
indígenas veem a terra como um bem que pertence a toda a comunidade e não a
um membro da tribo, porém, cada um tem o direito subsidiário de usufruí-la e ocupá-
la.18
Além dos princípios do pro homine e da não-discriminação¸ a Corte utiliza o
princípio da efetividade como parte fundamental de interpretação dos tratados.
Sugere que, quando da interpretação de um artigo a favor de tribos indígenas,
devem ser levados em consideração tratados que diferenciam os membros de
comunidades indígenas das outras pessoas, somente para assegurar uma “efetiva
proteção que dê importância para as suas especificidades, suas características
socioeconômicas, bem como sua situação de vulnerabilidade, suas leis, valores e
costumes”.19
Como instrumento de interpretação da Convenção Americana encontra-se a
Convenção nº 169 do OIT sobre Povos Indígenas e Tribais, aprovada em 1989,
possuindo a assinatura de 22 países.20 A Convenção fundamenta-se no princípio da
não-discriminação, e apresenta em seus artigos: critérios para a identificação dos
povos indígenas e tribais; a adoção de medidas especiais para a proteção destes
povos; o reconhecimento da sua cultura, sua religiosidade e do seu modo de vida; e
a importância da participação dos indígenas em questões a que se encontram
relacionados. É considerada pela própria Corte Interamericana como “um dos mais
18
INTER-AMERICAN COMMISSION ON HUMAN RIGHTS. Indigenous and tribal people’s rights over their ancestral lands and natural resources, op.cit., p. 25. 19
Id. Ibid., p. 5. 20
Argentina (2000); Bolívia (1991); Brasil (2002); África Central (2010); Chile (2008); Colômbia (1991); Costa Rica (1993); Dinamarca (1996); Dominica (2002); Equador (1998); Espanha (2007); Ilhas Fiji (1998); Guatemala (1996); Honduras (1995); México (1990); Nepal (2007); Holanda (1998); Nicarágua (2010); Noruega (1990); Paraguai (1993); Peru (1994); Venezuela (2002). Disponível em: <http://www.ilo.org/ilolex/cgi-lex/ratifce.pl?C169>. Acesso em: 21 out. 2011.
10
relevantes instrumentos de direitos humanos internacional para a proteção de
direitos dos indígenas”.21
Outro instrumento muito importante é a Declaração de Direitos dos Povos
Indígenas das Nações Unidas, aprovada em 13 de Setembro de 2007 por 144
países.22 Em seu contexto, encontram-se medidas que devem ser adotadas pelos
Estados-membros para a implementação dos direitos dos povos indígenas,
prezando pela não-discriminação destes. Entre os direitos positivados na Declaração
estão o direito à participação política, o acesso à terra e seus recursos naturais, o
direito de auto-determinação dos indígenas, bem como o direito destes povos de
decidir sobre o seu desenvolvimento socioeconômico e político. Esta Declaração,
juntamente com a Convenção nº 169 são de enorme relevância para a interpretação
de artigos da Convenção Americana.
O conteúdo destes tratados, juntamente com a própria Convenção,
estabelece um forte componente para a proteção dos direitos dos povos indígenas,
mais especificamente da proteção e do reconhecimento do direito à propriedade
comunitária.23
Para que essa proteção internacional tenha uma verdadeira efetividade, é
necessário que os Estados membros da OEA se comprometam a promover uma
proteção mais hábil aos direitos das tribos indígenas na sua legislação interna. A
Comissão Interamericana de Direitos Humanos já se manifestou a respeito de que
os Estados membros da OEA, uma vez que assinaram e ratificaram a Convenção,
devem adotar atos especiais que garantam às tribos indígenas o seu efetivo direito
fundamental de viver livremente, sem limitações, seguindo os seus costumes, sua
cultura, de ter respeitado os seus direitos de religião, seus direitos de tradição.
Corroborando tal entendimento está o artigo 2º da Convenção Americana
que, em seu texto, assegura que os seus Estados membros devem adotar medidas
legislativas em concordância com a Convenção para tornarem efetivos os direitos e
liberdades previstos nesta:
21
Id. Ibid. 22
DECLARAÇÃO das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Rio de Janeiro, 2008. Disponível em: <http://www.un.org/esa/socdev/unpfii/documents/DRIPS_pt.pdf>. Acesso em: 27 out. 2011. 23
Id. Ibid., p. 7.
11
Artigo 2. Dever de adotar disposições de direito interno. Se o exercício dos direitos e liberdades mencionados no "artigo 1º" ainda não estiver garantido por disposições legislativas ou de outra natureza, os Estados Membros comprometem-se a adotar, de acordo com as suas normas constitucionais e com as disposições desta Convenção, as medidas legislativas ou de outra natureza que forem necessárias para tornar efetivos tais direitos e liberdades.
24
Diz-se que tais atos devem ser “especiais” por conta das grandes violações
de direitos humanos que os membros de comunidade sofrem. Como os indígenas
são considerados minorias, a sua vulnerabilidade torna-se maior, fazendo com que
medidas de proteções especiais sejam necessárias, já que situações emergenciais,
como esta do caso da comunidade N’djuka, exigem medidas emergenciais.
Como já relatado anteriormente, a legislação do Estado do Suriname não
possui instrumentos legais ou administrativos eficazes para que os membros da
comunidade N’djuka demandem sobre o seu direito à propriedade comunitária, de
acordo com os seus costumes, valores e no seu uso da terra.
Esta ausência de medidas apropriadas gerou um sentimento de abandono
nos membros da comunidade N’djuka, que já se encontram no conceito de grupos
vulneráveis por serem minoria no país. Por não poderem retornar a sua terra
tradicional e nem ter acesso aos seus recursos naturais, os membros sobreviventes
da comunidade vivem hoje em condições de pobreza, tanto no Suriname quanto na
Guiana Francesa.
Contudo, a impossibilidade de retornar à terra tem um peso muito maior para
os membros da tribo, pois além de não serem capazes de utilizar mais os recursos
naturais que a sua terra tradicional proporcionava, não podem mais caçar, pescar e
nem cultivar seus alimentos, não podem mais se reunir no seu lugar sagrado, e tudo
isto, além de ser uma enorme violação ao seu direito ao acesso à terra, viola os
seus direitos à vida digna, a integridade da comunidade como um todo.
Para tanto, os Estados membros, para garantir uma proteção especial dos
direitos dos indígenas, devem revisar sua legislação para que estes se destaquem
de acordo com as normas estabelecidas nos instrumentos internacionais de
proteção de Direitos Humanos, especialmente o direito à propriedade dos indígenas.
Porém, inobstante a criação de instrumentos que regulem sobre o direito dos
24
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana de Direitos Humanos, op. cit.
12
indígenas, principalmente os relacionados ao direito à propriedade, é imperioso que
estes instrumentos sejam eficientes (mais uma vez percebe-se a influência do
princípio da efetividade) e para tal, os Estados devem instituir ações que assegurem
a eficácia dos instrumentos e a proteção destes direitos.25
Logo, para que a comunidade N’djuka possa ter seu direito assegurado, é
necessário que o Suriname estabeleça um mecanismo eficaz de defesa de direitos
dos indígenas, seja ele legal ou administrativo, e adote medidas que permitam que
os mecanismos se tornem realmente eficientes, tudo de acordo com os artigos da
Convenção Americana em conjunto com os instrumentos de Direitos Humanos
supracitados.
A Corte segue o entendimento de que os direitos das tribos indígenas
merecem uma proteção diferenciada, mais específica, principalmente no que
concerne ao direito à propriedade comunitária, e afirma que a leitura do artigo 21 da
Convenção, em conjunto com os artigos 1(1) e 2 deste instrumento normativo,
obriga os Estados membros a adotarem as medidas especiais necessárias para
garantir que os indígenas exerçam os seus direitos sobre o seu território
tradicional.26
As tribos indígenas têm o direito de ver a lei implementada e aplicada na
prática, especialmente em relação aos seus direitos ao território,27 pois somente a
letra da lei afirmando que os indígenas têm o direito à propriedade não significa
muita coisa se esta lei não for aplicada, ou seja, deve-se demarcar o território
indígena para que haja a verdadeira proteção especial deste direito. A demarcação,
o reconhecimento e o registro do território tradicional indígena são medidas
essenciais para que haja a sobrevivência da sua cultura e para manter a integridade
da comunidade indígena.28
Estas medidas são realizadas para garantir que a propriedade destas terras
esteja vinculada aos indígenas. Os organismos do Sistema Interamericano vêm
adotando a opinião de que os direitos da Convenção Americana são violados
25
INTER-AMERICAN COMMISSION ON HUMAN RIGHTS. Indigenous and tribal people’s rights over their ancestral lands and natural resources, op.cit., p. 14. 26
Id. Ibid., p. 19. 27
Id. Ibid., p. 15. 28
Id. Ibid, p. 21.
13
quando as comunidades indígenas são impossibilitadas de conseguir o título de
registro da propriedade, e são impedidas de retornar a sua terra.
Todavia, deve-se levar em consideração que não são os títulos de registro
que garantem o direito à propriedade comunitária das comunidades, mas sim a
posse permanente do território ocupado tradicionalmente por estas comunidades. A
jurisprudência da Corte é muito clara ao afirmar que o direito à propriedade não
nasce do reconhecimento desta, mas sim do uso e da posse tradicional do território
e de seus recursos naturais, já que os territórios tradicionais pertencem às
comunidades pelo seu uso e pela sua ocupação antiga.29
Aqui, percebe-se que o conceito patrimonialista do direito à propriedade é
superado, passando a ser utilizado o seu conceito holístico, no qual não é
necessário o animus domini para se conseguir o título de propriedade, mas apenas a
posse para fins de moradia, de sobrevivência e cultural das comunidades
indígenas.30
A Corte já afirmou, em sua jurisprudência, que a posse tradicional das
comunidades indígenas sobre suas terras outorga o seu direito de exigir um título de
propriedade dado pelo Estado, sendo este título equivalente à posse tradicional.
Ademais, como no caso da comunidade N’djuka, membros de comunidades
indígenas que foram forçosamente deslocados e destituídos da posse de suas terras
mantêm o seu direito à propriedade, mesmo que eles não possuam um título legal
de propriedade. Logo, a Corte entende que a posse direta não é um requisito
condicionante para que a comunidade recupere suas terras tradicionais.31
4 CONCLUSÃO
O caso da comunidade N’djuka foi apenas um dos muitos em que a Corte
Interamericana de Direitos Humanos se pronunciou sobre a violação do artigo 21 da
Convenção Americana de Direitos Humanos. A Corte sentenciou o Estado do
Suriname a indenizar por danos morais e materiais os membros sobreviventes da
29
Id. Ibid., p. 26. 30
ROCHA, Ibraim et al. Manual de direito agrário constitucional: lições de direito agroambiental. Belo Horizonte: Fórum, 2010. p. 90. 31
CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso comunidade indígena Sawhoyamaxa Vs. Paraguai, op. cit., par. 128.
14
comunidade, que fosse dado à comunidade os títulos de propriedade do seu
território, garantias de segurança para os membros que retornarem a viver na aldeia
de Moiwana, mas isso não vai retirar desta comunidade a ferida que foi aberta
quando houve o massacre.
A perda da sua identidade, da sua cultura, da sua religiosidade quando os
membros sobreviventes do massacre de 1986 foram deslocados para outra parte do
país e até mesmo para outro país, foi um golpe muito forte na vida dessas pessoas.
Mas, principalmente, o fato de eles não poderem retornar para a sua terra, tornou-se
algo desgastante para os membros da comunidade N’djuka, já que o seu território
tradicional significa muito mais do que apenas um lugar para morar e sobreviver.
O caso da aldeia de Moiwana e outros sentenciados na Corte, apresentam
um novo modo de se observar o direito à propriedade, que é a propriedade
comunitária das comunidades indígenas. Apesar de ser comunitária, não difere do
direito à propriedade privada, pois ambos se fundamentam na mesma tese de que
todos têm o direito de usufruir seus bens sem limitações. Mas, apesar deste
entendimento encontrar-se solidificado nas jurisprudências da Corte, ainda existem
lacunas na própria Convenção, impedindo que tal direito seja realmente consolidado.
Para resolver este problema, a Comissão Interamericana de Direitos
Humanos, em 1997, durante sua nonagésima quinta sessão, aprovou o projeto para
a realização da Declaração Americana Sobre os Direitos dos Povos Indígenas. No
ano de 1999, houve uma reunião dos membros da OEA com profissionais
especializados no assunto, e decidiram convidar diversas comunidades indígenas
para participar da confecção da nova Declaração. As revisões textuais se iniciaram
em 2006, juntamente com as negociações sobre o conteúdo, que estão ocorrendo
até os dias de hoje.32
Espera-se que esta Declaração traga uma proteção mais eficaz para os
direitos das comunidades indígenas, em especial o seu direito à propriedade
comunitária.
32
INTER-AMERICAN COMMISSION ON HUMAN RIGHTS. Indigenous and tribal people’s rights over their ancestral lands and natural resources, op.cit., p. 8.
15
REFERÊNCIAS
BRASIL. Decreto nº 5.051, de 19 de abril de 2004. Promulga a Convenção n. 169 da Organização Internacional do Trabalho – OIT sobre povos indígenas e tribais. Brasília, 2004. Disponível em: <http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2004-2006/2004/decreto/d5051.htm>. Acesso em: 2 ago. 2011. CONVENÇÃO de Viena sobre Direito dos Tratados. [S.l.], 1969. Disponível em: <http://www2.mre.gov.br/dai/dtrat.htm>. Acesso em: 28 set. 2011. CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso comunidade indígena Yakye Axa vs Paraguai. Mérito, Reparação e Custas. Sentença de 17 de Junho de 2005. (Série C, n. 125). ______. Caso comunidade indígena Sawhoyamaxa Vs. Paraguai. Mérito, Reparação e Custas. Sentença de 29 de março de 2006. (Série C, n. 146). ______. Caso da comunidade Mayagna (Sumo) Awas Tingni Vs. Nicarágua. Mérito, Reparação e Custas. Sentença de 31 de agosto de 2001. (Série C, n. 79). ______. Caso Saramaka Vs. Suriname. Exceções Preliminares, Mérito, Reparação
e Custas. Sentença de 28 de novembro de 2007. (Série C, n. 172).
______. Caso comunidade indígena Sawhoyamaxa Vs. Paraguai. Mérito, Reparação e Custas. Sentença de 29 de março de 2006. (Série C, n. 146). DECLARAÇÃO Americana dos Direitos e Deveres do Homem. Aprovada na IX
Conferência Internacional Americana, em Bogotá, em abril de 1948. Disponível em:
<http://www.cedin.com.br/site/pdf/legislacao/tratados/declaracao_americana_dos_dir
eitos_e_deveres_do_homem.pdf>. Acesso em: 23 ago. 2011.
DECLARAÇÃO das Nações Unidas sobre os Direitos dos Povos Indígenas. Rio de Janeiro, 2008. Disponível em: <http://www.un.org/esa/socdev/unpfii/documents/DRIPS_pt.pdf>. Acesso em: 27 out. 2011. GOMES, Luiz Flávio. Direito dos direitos humanos e a regra interpretativa do pro homine. Disponível em: <http://www.blogdolfg.com.br>. Acesso em: 13 out. 2011.
INTER-AMERICAN COMMISSION ON HUMAN RIGHTS. Indigenous and tribal
people’s rights over their ancestral lands and natural resources: norms and
jurisprudence of the Inter-American Human Rights Syste. OEA/Ser.L/V/II. Doc. 56/09.
30 de dezembro de 2009. Disponível em: <http://cidh.org/countryrep/Indigenous-
Lands09/TOC.htm>. Acesso em: 27 ago. 2011.
16
MELO, Mario. Últimos avanços na justiciabilidade dos direitos indígenas no sistema
interamericano de direitos Humanos. Revista Internacional de Direitos Humanos,
São Paulo, v. 3. n. 4, jun./ 2002. Disponível em:
<http://www.scielo.br/scielo.php?pid=S1806-
64452006000100003&script=sci_arttext>. Acesso em: 23 set. 2011.
ORGANIZAÇÃO DOS ESTADOS AMERICANOS. Convenção Americana de Direitos Humanos: assinada na Conferência especializada Interamericana sobre Direitos Humanos, San José, Costa Rica, em 22 de novembro de 1969. [Washington], 1969. Disponível em: <http://www.cidh.org/Basicos/Portugues/c.Convencao_Americana.htm>. Acesso em: 28 set. 2011. ROCHA, Ibraim et al. Manual de direito agrário constitucional: lições de direito
agroambiental. Belo Horizonte: Fórum, 2010.
17
APÊNDICE A – FICHAMENTO
CASO DA COMUNIDADE MOIWANA VS. SURINAME DA CORTE
INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS ⃰
1 ATORES ENVOLVIDOS
1.1 RÉU - ESTADO DO SURINAME
O Suriname é uma ex-colônia da Holanda e conseguiu sua independência
em 1975. Foi governado por um regime militar nos anos 1980 até que a democracia
foi restabelecida em 1988. No ano de 1987, no dia 12 de novembro, o Estado do
Suriname tornou-se signatário da Convenção Americana de Direitos Humanos,
reconhecendo de imediato à competência da Corte Interamericana de Direitos
Humanos.
1.2 PETICIONÁRIOS - COMUNIDADE MOIWANA (ORGANIZAÇÃO DE DIREITOS
HUMANOS MOIWANA ’86)
Durante a colonização européia no século XVII uma grande quantidade de
africanos foi levada para o território hoje pertencente ao Suriname, onde foram
forçados a trabalhar como escravos nas plantações. Porém, muitas dessas pessoas
fugiram para as florestas da parte oriental do Suriname onde estabeleceram
comunidades autônomas. Por conta da sua tonalidade de pele mais escura, eles se
autodenominaram Maroons. Ao longo dos anos, os Maroons se dividiram em seis
grupos diferentes: os N’djuka, os Matawai, os Saramaka, os Kwinti, os Paamaka, e
os Boni ou Aluku.
Em 1760 foi firmado um tratado com a comunidade N’djuka no qual o
Estado os liberava da condição de escravos. Esse tratado foi renovado em 1837,
com um adendo que permitia aos N’djuka continuar residindo no território onde
haviam estabelecido moradia, além de demarcar os limites desta área.
A comunidade N’djuka possui diversos clãs que se encontram dispersos em
várias aldeias dentro do próprio território da comunidade. No final do século XIX, os
N’djuka fundaram a aldeia de Moiwana, que se tornou território tradicional para as
práticas da caça, agricultura e pesca.
2 ARTIGOS VIOLADOS ⃰ CORTE INTERAMERICANA DE DIREITOS HUMANOS. Caso da Comunidade indígena de Moiwana vs.
Suriname. Exceções Preliminares, Mérito, Reparações e Custas. Sentença de 15 de junho de 2005. Serie C Nº
124.
18
O Estado do Suriname violou os seguintes artigos da Convenção Americana
de Direitos Humanos: Artigo 5.1(Direito à integridade pessoal); artigo 22 (Direito de
circulação e de residência); artigo 21 (Direito à propriedade privada); 8.1 (Garantias
judiciais.) e artigo 25 (Proteção judicial). Todos esses artigos foram violados em
relação ao artigo 1.1 (Obrigação de respeitar os direitos) também da Convenção
Americana.
3 NARRATIVA DOS FATOS
O caso relata o massacre da comunidade N’djuka Maroon de Moiwana em
29 de novembro de 1986 por membros das forças armadas do Suriname. Os
soldados invadiram e destruíram a aldeia de Moiwana, além de massacrarem mais
de 40 homens, mulheres e crianças. Os membros da comunidade que conseguiram
escapar fugiram para as florestas ao redor da aldeia, onde alguns membros
sobreviventes se refugiaram na Guiana Francesa e outros foram deslocados
forçosamente para a capital do Suriname.
Até a data da apresentação da demanda, supostamente não havia sido feita
uma investigação adequada sobre o massacre. Não houve julgamento dos culpados
e estes não sofreram qualquer penalidade. Os membros sobreviventes
permaneceram deslocados de suas terras e tornaram-se incapazes de retornar à
sua aldeia e ao seu estilo de vida tradicional.
O presente caso foi apresentado perante a Corte no dia 20 de dezembro de
2002.
4 ALEGAÇÕES PRELIMINARES
Em sua defesa, o Estado do Suriname fez as seguintes alegações
preliminares:
4.1 PRIMEIRA ALEGAÇÃO: A Corte não possui a competência ratione temporis,
pois a Convenção Americana não se aplica a República de Suriname no presente
caso;
4.1.1 Alegações da Comissão: a Corte possui plena competência sobre todos os
atos e omissões de Suriname ocorridos depois do dia 12 de novembro de 1987.
4.1.2 Alegações dos representantes: as violações alegadas perante a Corte são
de natureza continuada, e que o objeto da demanda foram ações e omissões do
Estado após o fato ter se consumado.
19
4.1.3 Considerações da Corte: a Corte não deu provimento a esta alegação
preliminar por entender que no caso concreto, apesar do ataque ter ocorrido em
1986, as violações contra os direitos dos membros da comunidade possuíam
natureza continuada. Com a omissão do Estado, ele tornou-se responsável pela
violação dos direitos, e a Corte tem plena competência para julgar as suas ações e
omissões, que ocorreram depois de 12 de dezembro de 1987.
4.2 SEGUNDA ALEGAÇÃO: Os peticionários não esgotaram os recursos internos de
acordo com o Regulamento da Comissão Americana e a Convenção Americana;
4.2.1 Alegações da Comissão: o Estado não respondeu aos argumentos
apresentados pelos peticionários durante a oportunidade processual adequada.
Logo, o Suriname de forma tácita renunciou ao seu direito de objetar a falta de
cumprimento de requisitos tais como o esgotamento de recursos internos, em
conformidade com o artigo 46 da Convenção, em virtude do princípio de estoppel.
4.2.2 Alegações dos representantes: os representantes alegaram que buscaram
auxilio no judiciário do Suriname, mas não obtiveram nenhum resultado.
4.2.3 Considerações da Corte: a Corte não deu provimento a esta preliminar
alegando que a exceção dos esgotamentos dos recursos internos tem de ser
apresentada nas primeiras etapas do processo, caso o contrário, presume-se a sua
renúncia tácita. O Estado ao afirmar que não foram esgotados todos os recursos
internos tem a obrigação de demonstrar quais recursos eram cabíveis ao caso e sua
eficácia, o que não ocorreu.
4.3 TERCEIRA ALEGAÇÃO: Devido ao atraso da Comissão em apresentar a
demanda, a Corte carece de competência, em conformidade com o artigo 51.1 da
Convenção,
4.3.1 Alegações da Comissão: afirmou que o caso foi apresentado em
concordância com as disposições e práticas aplicáveis. Alegou que o Estado
solicitou prorrogação do prazo e que caso não fosse possível alcançar uma solução
amistosa, a Comissão poderia levar o caso para a Corte.
4.3.2 Alegações dos representantes: os representantes não se manifestaram.
4.3.3 Considerações da Corte: a Corte sustentou que a Comissão cumpriu o prazo
para a apresentação do caso dentro dos conformes do acordo que realizou com o
Estado, já que o prazo da segunda prorrogação terminava exatamente no dia 20 de
20
dezembro de 2002. Por essas razões a Corte rechaçou a presente exceção
preliminar.
4.4 QUARTA ALEGAÇÃO: Em seu informe de fundo N° 35/02 a Comissão concluiu
outras violações diferentes daquelas pelas quais foi admitido o caso;
4.4.1 Alegações da Comissão: alegou que o fato de o peticionário não ter alegado
uma violação em particular, não significa que a Comissão e a Corte não podem
considerar uma violação por si mesmas, em conformidade com o princípio iura novit
cúria.
4.4.2 Alegações dos representantes: os representantes não se manifestaram.
4.4.3 Considerações da Corte: a Corte sustentou que faz parte da sua função
interpretar a Convenção Americana, e que as considerações da Comissão sobre as
supostas violações da Convenção Americana não são vinculadas a decisão da
Corte. Dessa forma, essa preliminar também não foi acatada.
4.5 QUINTA ALEGAÇÃO: A Comissão não apresentou todas as partes pertinentes
da denúncia ao Estado, tal como está estabelecido no artigo 42 de seu regimento.
4.5.1 Alegações da Comissão: afirmou não saber quais foram as partes
pertinentes que deixaram de ser enviadas ao Estado e que, como não houve
respostas às solicitações da Comissão, essa não sabia como o direito de defesa do
Estado tinha se comprometido.
4.5.2 Alegações dos representantes: os representantes não se manifestaram.
4.5.3 Considerações da Corte: entendeu que quando o Estado do Suriname
decidiu não exercer seu direito de defesa perante a Comissão no momento das
oportunidades processuais apropriadas, Estado não tem o direito de interpor tal
exceção perante a Corte.
5 FUNDAMENTAÇÃO DAS ALEGAÇÕES JUNTO À CORTE INTERAMERICANA
DE DIREITOS HUMANOS DAS QUESTÕES DE MÉRITO PRÓ-ESTADO E PRÓ-
VÍTIMAS.
5.1 VIOLAÇÃO DO ARTIGO 5 DA CONVENÇÃO AMERICANA (DIREITO A
INTEGRIDADE PESSOAL) EM RELAÇÃO AO ARTIGO 1.1 DA MESMA
(OBRIGAÇÃO DE RESPEITAR OS DIREITOS)
As seguintes alegações foram apresentadas:
5.1.1 Alegações dos representantes: alegaram que o Estado violou o direito à
integridade pessoal, pelo fato das vítimas terem passado por um sofrimento físico e
21
psicológico de maneira contínua, sem que o Estado tomasse providencias para
resolver o caso, deixando-o impune. Sustentaram ainda que as vítimas sofriam por
não poderem sepultar os seus mortos de forma digna, de acordo com a sua cultura,
e pelo fato de estarem, forçadamente, separados de suas terras que significam a
base de sua cultura e de seu bem-estar espiritual.
5.1.2 A comissão e o estado não se manifestaram quanto a essa alegação.
5.2 VIOLAÇÃO DO ARTIGO 22 (DIREITO DE CIRCULAÇÃO E RESIDÊNCIA)
As seguintes alegações foram apresentadas:
5.2.1 Alegações dos representantes: apesar destes não terem alegado
expressamente a violação deste artigo, eles afirmam que as vítimas foram privadas
de seus meios de subsistência devido à saída forçada de suas terras ancestrais e a
continuada impossibilidade de regressar a elas. Por conta deste obstáculo, os
membros sobreviventes vivem em condições de extrema pobreza.
5.2.2 A Comissão não se manifestou expressamente sobre esse ponto.
5.2.3 Alegações do Estado: não se manifestou expressamente sobre a violação
deste direito, porém, o Estado afirma que os sobreviventes do ataque à aldeia de
Moiwana tinham o direito de se movimentar livremente por todo o país e que o
governo de Suriname não recebeu nenhuma informação que diga respeito às
possíveis intimidações sofridas por eles e às violações de seus direitos.
5.3 VIOLAÇÃO DO ARTIGO 21 (DIREITO À PROPRIEDADE)
As seguintes alegações foram apresentadas:
5.3.1 Alegações dos representantes: alegaram que a violação ao direito de
propriedade possui natureza continuada. Os representantes afirmam, ainda, que as
vítimas continuam sendo privadas de seus direitos à propriedade em conseqüência
da sua legislação não reconhecer o direito à propriedade comunitária, além do fato
de que o Estado do Suriname não possui mecanismos legais e administrativos
eficazes para que as vítimas assegurem seus direitos a terra em conformidade com
as suas normas baseadas nos costumes, valores e usos da comunidade N’djuka.
5.3.2 Alegações da Comissão: a Comissão não se manifestou expressamente
sobre a questão.
5.3.3 Alegações do Estado: o Estado não apresentou considerações.
5.4 VIOLAÇÃO DOS ARTIGOS 8 E 25 DA CONVENÇÃO AMERICANA
(GARANTIAS JUDICIAIS E PROTEÇÃO JUDICIAL)
22
As seguintes alegações foram apresentadas:
5.4.1 Alegações da Comissão: as vítimas não tiveram oportunidade de invocar e
exercitar seus direitos a um recurso judicial simples, rápido e efetivo para a proteção
de seus direitos, devido à falta de um recurso eficiente. Também não houve uma
investigação efetiva e adequada sobre o massacre e os responsáveis não foram
punidos. A Comissão afirmou que a obrigação do Estado de proporcionar proteção
judicial não é simplesmente de ter em sua legislação recursos legais, mas sim,
garantir que tais recursos assegurem uma proteção judicial efetiva.
5.4.2 Alegações dos representantes: afirmam que as provas apresentadas perante
a Corte demonstram a vontade das vitimas de buscarem justiça, para tanto se
utilizaram diversas vezes de recursos jurídicos, mas suas intenções de obter justiça
foram ignoradas. Disseram ainda, que o Estado do Suriname obstou a justiça
também através da Lei da Anistia de 1989.
5.4.3 Alegações do estado: alega que deu iniciou a uma investigação penal que
ainda em trâmite. Ademais, afirma que houve falta de vontade e nem de capacidade
do Estado para investigar, julgar e sancionar aqueles que supostamente violaram os
direitos dos habitantes da aldeia de Moiwana. De acordo com o Estado, apesar das
vítimas terem requerido do governo uma investigação penal independente, elas não
iniciaram um procedimento civil.
O Estado também alega que em 2002 foi aberta uma investigação penal,
sobre o acontecido no dia 29 de novembro de 1986, e está procedimento está em
conformidade com as normas legais nacionais para julgar e condenar os culpados.
Argumentou ainda que a Lei de Anistia não viola os direitos das vítimas.
6 PARECER EMITIDO PELA CORTE E SUAS ALEGAÇÕES
A Corte emitiu considerações para cada um dos artigos considerados
violados.
Com relação ao artigo 5, a Corte concluiu que houve a sua violação por
parte do Estado do Suriname, uma vez que, de acordo com os fatos provados, o
povo da aldeia de Moiwana não teve a oportunidade de realizar os devidos rituais
fúnebres em honra de seus entes mortos durante o massacre, e que esses rituais,
quando não realizados, geram uma transgressão moral profunda, provocando a
inquietação do espírito da pessoa que morreu, além de ofender a outros ancestrais.
A Corte considerou também que as pessoas da comunidade N’djuka ao serem
23
impedidas de retornar a sua terra tradicional, sofreram privações e vivem em
condições de pobrezas haja vista a impossibilidade de desenvolver suas formas
tradicionais de subsistência e cultural. Salientou ainda que a terra tem para eles um
valor espiritual, cultural e material, muito além de um sentimento de posse. Pelo fato
das vítimas terem sofrido de maneira psicológica e econômica, a Corte decide que o
Estado violou o artigo 5 da Convenção.
Sobre o artigo 22, a Corte entendeu que o Estado não estabeleceu
condições, nem os meios que permitiriam aos membros da comunidade regressar
voluntariamente às suas terras tradicionais, de forma segura e com dignidade, haja
vista que não havia nenhuma garantia de que os seus direitos humanos seriam
respeitados, principalmente os seus direitos à vida e à integridade pessoal. Ao não
estabelecer tais condições, o Suriname não garantiu aos membros da comunidade
seus direitos de circulação e residência. A Corte alega, ainda, que Estado impediu
que os membros da comunidade que se encontravam na Guiana Francesa
regressassem e permanecessem no país. Por todo o exposto, a Corte estabelece
que o Estado violou o artigo 22 da Convenção.
No que concerne ao artigo 21, a Corte emitiu as suas considerações
definindo, primeiramente, que a aldeia de Moiwana, de fato, pertencia aos membros
da comunidade, nos conformes do conceito amplo de propriedade desenvolvido pela
jurisprudência da Corte. Nesse sentido, a Corte entende que em casos de
comunidades indígenas que carecem de um título formal de propriedade, a
possessão da terra é o suficiente para que elas obtenham o reconhecimento oficial
sobre a terra.
Sustentou, também, que mesmo que os habitantes da aldeia de Moiwana
não sejam originários daquela região, o tratamento jurídico dado aos povos
nômades deve ser estendido a eles haja vista a relação que eles possuem para com
terra na qual habitam.
Por impedir que os membros da comunidade utilizassem a sua terra
tradicional, a Corte considera que o Estado do Suriname violou o artigo 21 da
Convenção.
Em se tratando dos artigos 8 e 25, a Corte afirma que apenas certos atos
investigativos foram realizados pelo Estado desde o massacre de 29 de novembro
de 1986 e apresentou uma posição de indiferença, mesmo com os constantes
24
pedidos de investigações referentes às violações de direitos durante o regime militar.
Entendeu que fatos provados mostraram que as vítimas, em sua busca por justiça,
foram hostilizadas.
Em resposta ao massacre ocorrido em novembro de 1986, o Estado deveria
ter aberto uma investigação e um processo judicial efetivo, que pudesse apurar os
fatos e responsabilizar os culpados de maneira eficaz.
Sobre a questão da lei da Anistia, a Corte afirmou nenhuma lei interna do
país pode impedir o cumprimento das decisões da Corte Interamericana sobre a
investigação e a sanção dos responsáveis pelas violações de direitos humanos.
Pelo fato do Estado ter realizado uma investigação penal insuficiente e sem
resultado sobre o ataque à aldeia de Moiwana, por ter impedido que as vítimas
alcançassem justiça, por todo o procedimento ter durado anos sem uma solução e
sem que os responsáveis fossem penalizados, a Corte considera que houve a
violação dos artigos 8 e 25 da Convenção.
7 SENTENÇA PROFERIDA
1- Condenação do Estado do Suriname a pagar indenização por danos materiais, na
quantia de US$ 3.000,00, para cada uma das vítimas (indicadas nos parágrafos 180
e 181 da sentença);
2- Condenação do Estado do Suriname a pagar indenização por danos imateriais,
na quantia de US$10.000,00 a cada uma das vítimas (indicadas nos parágrafos 180
e 181 da sentença);
3- Estado do Suriname tem obrigação de investigar os fatos do caso, identificar,
julgar e sancionar os responsáveis, assim como recuperar os restos mortais dos
membros da comunidade que faleceram em 1986;
4- Estado do Suriname tem obrigação de assegurar o direito de propriedade dos
membros da comunidade;
5- Criação de um fundo estatal de desenvolvimento no montante de
US$1.200.000,00 destinados a programas de educação e saúde dos membros da
comunidade;
6- O Estado do Suriname foi condenado a pedir desculpas de forma pública pelos
seus atos, responsabilizado internacionalmente e obrigado a construir um
monumento em homenagem aos habitantes da aldeia de Moiwana.