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O Estado Moderno O Estado Moderno A maioria dos filmes ambientados na Idade Moderna exibe cenários exube rantes das cortes européias. Mostram palácios freqüentados por uma elite educada e fina, que exala charme e elegância, sugerindo que nessa época não havia pobreza e miséria. Nessas histórias os monarcas parecem identificados com o povo, go- vernando em harmonia e prosperidade. No filme “Os Três Mosqueteiros”, o jovem D’Artagnan junta-se a Athos, Pathos e Aramis no intuito de defender a famí- lia real, ameaçada pelas intrigas do esperto cardeal Richelieu. As cenas de aventura misturam ficção e re- alidade, levando os espectadores a uma ponta de in- veja, por não terem vivido as situações emocionantes do filme. Esse lado da Idade Moderna encanta e fascina, mas há o outro lado, marcado pela realidade das monarquias absolutas, que usaram e abusaram da imposição política como forma de garantir a ordem. O Estado Moderno ou Antigo Regime, substi- tuiu a fragmentação política da época feudal. Para que a centralização se efetivasse, foi preciso um longo pro- cesso de transformações e mudanças. A demora se deu pela reação de muitos nobres que não admitiam perder seus privilégios. Analisando o contexto geral, podemos identificar que a Guerra dos Cem Anos, a Peste Negra e as inúmeras revoltas camponesas e urbanas provocaram um clima favorável à guinada em favor das monarquias. No início da época moderna vários Esta- dos estavam consolidados e o mapa do continente já apresentava o con- torno de inúmeras fronteiras territoriais. Dentre as mu- danças mais marcan- tes, destacam-se: a França incorporando no século XVI, o du- cado de Borgonha e o ducado da Breta- nha, a Espanha con- solidada em 1492 após a derrota dos árabes, e a Inglaterra juntando-se ao País de Gales, logo após o fim da Guerra das Duas Rosas. Também nasceu do antigo Sacro Império uma constelação de vários reinos e a Holanda despontou como o grande paraíso dos banqueiros. Lembrando-se ainda de Portu- gal que efetivara a consolidação política muito antes das outras nações. “O caso é de um príncipe bem desempenhar o seu papel e de saber, oportunamente, fingir e dissimular. Os homens são tão simples e tão fracos que quem os quer enganar, facilmente os engana.” O Príncipe - Maquiavel - 1532 “Todo poder, toda autoridade residem na mão do rei e não pode haver outra autoridade no reino a não ser a que o rei aí estabelece”. Luís XIV Coroação de Luís XII. Quadro de Rubens.

O Estado Moderno

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O Estado ModernoO Estado Moderno

A maioria dos filmes ambientados naIdade Moderna exibe cenários exuberantes das cortes européias. Mostram

palácios freqüentados por uma elite educada e fina,que exala charme e elegância, sugerindo que nessaépoca não havia pobreza e miséria. Nessas históriasos monarcas parecem identificados com o povo, go-vernando em harmonia e prosperidade. No filme “OsTrês Mosqueteiros”, o jovem D’Artagnan junta-se aAthos, Pathos e Aramis no intuito de defender a famí-lia real, ameaçada pelas intrigas do esperto cardealRichelieu. As cenas de aventura misturam ficção e re-alidade, levando os espectadores a uma ponta de in-veja, por não terem vivido as situações emocionantesdo filme. Esse lado da Idade Moderna encanta efascina, mas há o outro lado, marcado pela realidadedas monarquias absolutas, que usaram e abusaram daimposição política como forma de garantir a ordem.

O Estado Moderno ou Antigo Regime, substi-tuiu a fragmentação política da época feudal. Para quea centralização se efetivasse, foi preciso um longo pro-cesso de transformações e mudanças. A demora se deupela reação de muitos nobres que não admitiam perderseus privilégios. Analisando o contexto geral, podemosidentificar que a Guerra dos Cem Anos, a Peste Negra eas inúmeras revoltas camponesas e urbanas provocaramum clima favorável à guinada em favor das monarquias.No início da época moderna vários Esta-dos estavamconsolidados e omapa do continente jáapresentava o con-torno de inúmerasfronteiras territoriais.

Dentre as mu-danças mais marcan-tes, destacam-se: aFrança incorporandono século XVI, o du-cado de Borgonha eo ducado da Breta-nha, a Espanha con-solidada em 1492após a derrota dosárabes, e a Inglaterrajuntando-se ao Paísde Gales, logo após ofim da Guerra dasDuas Rosas. Tambémnasceu do antigo Sacro Império uma constelaçãode vários reinos e a Holanda despontou como o grandeparaíso dos banqueiros. Lembrando-se ainda de Portu-gal que efetivara a consolidação política muito antesdas outras nações.

“O caso é de um príncipe bem desempenhar o seu papel e de saber, oportunamente,fingir e dissimular. Os homens são tão simples e tão fracos que quem os quer enganar,

facilmente os engana.”O Príncipe - Maquiavel - 1532

“Todo poder, todaautoridade residem namão do rei e não pode

haver outra autoridadeno reino a não ser a que

o rei aí estabelece”.Luís XIV Coroação de

Luís XII. Quadrode Rubens.

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Os novos Estados nasceram em meio a váriascontestações, porém a motivação pela união acomoda-va os conflitos, adequando a sociedade à nova realida-de política. A época admitia certos sacrifícios naciona-listas onde se agruparam alguns povos com razoáveisdiferenças culturais. O poder centralizado revelou-seeficaz na manutenção da unidade, impedindo as defec-ções e a volta ao particularismo. As monarquias uni-formizaram o sistema de pesos e medidas, implantarama moeda única e a cobrança regular de impostos. Odesdobramento dessas medidas permitiu ao continenteeuropeu assegurar um lugar preponderante na épocamoderna, através da conquista de vastas regiões doNovo Mundo.

BURGUESIA E NOBREZA

O processo de centralização contou com o apoiointegral da burguesia, que temia o regresso dadescetralização feudal. Na formação dos exércitos foimuito importante a participação do investimentoburguês, utilizado na compra da pólvora, que tinha umvalor muito alto. A burguesia teve como retorno desseapoio, a possibilidade de maior enriquecimento,beneficiada que foi pela economia centralizada. Em várias

oportunidades, os burgueses foram socorridos pelosmonarcas, que abriam os cofres reais drenando capitalpara os banqueiros e mercadores. Na concessão demonopólios sempre havia um burguês favorecido, naobtenção de permissão de venda de mercadorias.

Os reis também serviram de “guarda-chuva”,que protegia os burgueses das investidas da Igreja. Aidéia eclesiástica que o lucro através de empréstimosseria punido por Deus, era um obstáculo para a totalexpansão dos negócios. Com a proteção real osburgueses conseguiam uma blindagem contra asperseguições do clero.

Os aspectos psicológicos também devem serlevados em conta, pois os burgueses buscavam a as-censão social e o status de nobreza. Muito raramenteconseguiam, pois a nobreza togada obtida pelos bur-gueses era uma clonagem da nobreza de sangue azul.A expectativa de conseguir as vantagens econômicaslevou a burguesia a suportar as imposições políticasdo absolutismo, o controle das corporações e asrigorosas regras de mercado.

O Tempo da História

SÉCULO XVI SÉCULO XVII

1516

MAQUIAVELPUBLICA

“O PRÍNCIPE”

1534

HENRIQUE VIIIROMPE COM A

IGREJA CATÓLICA

1588

DESTRUIÇÃO DA INVENCÍVELARMADA

GUERRA DOS 30ANOS REINADO

DE LUÍS XIV

1618 1648

1661 1715

“AQUELE QUE DEU REISAOS HOMENS QUIS QUE OSRESPEITASSEM COMO SEUS

LUGARES-TENENTES, RESER-VANDO APENAS A SI PRÓPRIO O

DIREITO DE EXAMINAR A SUACONDUTA. SUA VONTADE É QUEQUALQUER UM NASCIDO SÚDITOOBEDEÇA SEM DISCERNIMENTO;

E ESTA LEI TÃO EXPRESSA ETÃO UNIVERSAL NÃO FOI FEITA

EM FAVOR DOS PRÍNCIPESAPENAS, É SALUTAR AO PRÓ-

PRIO POVO AO QUAL ÉIMPOSTA”.3

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Entretanto, o crescimento posterior dos negó-cios e o acúmulo de capital, colocaria burgueses emonarquia absoluta em posições antagônicas, deto-nando as incendiárias jornadas revolucionárias da In-glaterra e na França.

Na hierarquia política os nobres estavam emmelhor condição que os ricos burgueses. Os monarcasque despontavam no seio da nobreza, agiam em sintoniacom a classe à qual pertenciam. Na prática, era atécontraditório imaginar um monarca rejeitando a no-breza, para governar com a burguesia. A aceitação in-condicional da autoridade real permitiu aos nobres vi-verem uma lua-de-mel de interesses com a monarquiaabsoluta.

A nobreza foi premiada com isenção de impos-tos e o favorecimento nos assuntos judiciais, num cli-ma de união quase nunca abalado. Viver num palácioreal era equivalente a viver no paraíso. O luxo e riquezaofuscavam os “pobres mortais” que não tinham essasregalias. Os motivos mais banais eram comemoradosem festas que reuniam centenas de pessoas. Nessascomemorações, a elite se amontoava ao redor dasmesas, deglutindo “elegantemente” os suculentos ban-quetes.

No absolutismo a nobreza tinha o direito de co-brar impostos, que tilintava primeiro no bolso dos no-bres, para depois chegar aos cofres reais. A precarieda-de dos meios de comunicação impedia a monarquia deorganizar um sistema eficiente de arrecadação, deixan-do os monarcas à mercê da nobreza. De olho no aumen-to do prestígio, os nobres disputavam nomeações detítulos hereditários, indicados diretamente pelo rei.Duques, marqueses, condes e barões lotavam as cortes,desfrutando fantásticas regalias.

A pompa real servia para distinguir os integran-tes da corte do resto do povão. Nem a burguesia tinhaacesso ao “fechado clube real”, salvo honrosas exce-ções. Os códigos de etiqueta aprendidos com esmero,integravam a educação formal, assim como as aulas deFilosofia e Teologia. Nesse teatro o rei era o astro prin-cipal do espetáculo.

Os monarcas do Estados Modernos, em maiorou menor grau, concentraram em suas mãos poderesilimitados. Reis famosos, como Henrique VIII, FelipeII, Luís XIV e tantos outros povoaram o imaginário devárias gerações e a produção de histórias fantásticas.Inúmeros palácios e castelos foram construídos, códi-gos exigentes de etiqueta foram elaborados.

”Tudo que se encontrana extensão dos nossosestados, de qualquernatureza que seja nos

pertence”.

Luís XIV

Ao mesmotempo, cena deinterior e retratode família queilustra o novomodelo de vidaadotado pelaaristocracia epela burguesia.Willian Hogarth.Reunião deFamília. londres.

“A corte toda assiste às refeições do rei: ele come só, ou com a família real,muito raramente convida alguém à sua mesa. Luís quer beber: O nobre que oserve proclama: Bebida para el-rei. Faz uma reverência, vaiao bufê tomar de umcortesão a bandeja de ouro com o copo e as garrafas d’água e vinho, retornaentre dois domésticos. Depois de nova reverência, os servidores provam as bebi-das em taças de vidro (velho hábito, para ver se não há veneno); o fidalgo inclina-se, apresenta o copo e as garrafas. O próprio serve-se da bebida (Luís XIV nuncatomava puro o vinho). E o fidalgo, depois de curvar-se pela quarta vez, devolve abandeja ao doméstico que a repõe no bufê. Este cerimonial leva uns dez minu-tos; comer e beber, de funções banais do dia-a-dia, se elevam a gestos espetacu-lares, que seduzem e se exibem.” 2

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oder

noAs carruagens da nobreza despertavam olhares

curiosos das pessoas excluídas das grandes festas ebanquetes. Com efeito, esse conturbado período legoupara o mundo atual, vários padrões de comportamentoe códigos de etiquetas, que teimam em sobreviver ape-sar das inúmeras mudanças da história.

AS NAÇÕES E O PATRIOTISMO

A luta pela definição do espaço territorial dasnações deixou o continente em estado de guerra, pro-

vocando o despertar do sentimento na-cionalista mesclado com a obri-gação de fidelidade à autorida-de real. Os laços de suserania evassalagem transformaram-seem acordo coletivo da naçãocom o rei. O particularismo feudalfoi substituído pela crença deque o Estado era mais poderosoquanto mais forte era o rei. Asguerras de perfil nacional contri-

buí- ram para aumentar o prestígio dosreis, associando-os à imagem de estabilidade e segu-rança. O interesse comum sobrepujou a necessidade par-ticular, alçando os monarcas à condição de líderes na-cionais.

A literatura da época inspirou-se nesse contex-to político para resgatar as glórias do passado. Váriaspublicações francesas ressaltavam a vitória de CarlosMartel, na batalha de Poitiers, em 732. As batalhasvencidas por Carlos Magno serviam como exemplo debravura e coragem. A lembrança dos antepassadosgauleses honrava as tradições guerreiras do povo fran-cês. Os escritores italianos exaltavam o período deglória da Pax Romana. Em Portugal, Camões escreveuOs Lusíadas, glorificando as façanhas dos navegado-res conterrâneos que conquistaram o Novo Mundo,enquanto Shakespeare utilizaria o mito de Henrique Ve a vitória inglesa na batalha de Azincourt como temade uma grande obra.

Os juristas dos Estados Modernos recorreramao antigo Direito Romano para elaborar as leis das no-vas nações. O contato ostensivo com o Oriente per-mitiu um conhecimento mais amplo do Corpus JurisCivilis, disseminando a sua influência em todo o Oci-dente. Os antigos romanos tinham por hábito glorifi-car os imperadores, vinculando-os às grandes conquis-tas, mitificando-os como magníficos heróis. O estiloromano de exaltação da ordem e do poder se adequa-va perfeitamente ao contexto de consolidação das mo-narquias nessa fase.

A IGREJA E O ABSOLUTISMO

Depois de muita briga a autoridade real se im-pôs à Igreja Católica. Na inversão dos papéis, os bis-pos e padres tornaram-se vassalos dos reis. Ficou paratrás a época em que reis se ajoelhavam diante dospapas implorando privilégios. No final da Idade Médiatornou-se comum, a nomeação de bispos e abades sobinterferência direta dos reis, que escolhiam os clérigosde acordo com a conveniência política. A Reforma Pro-testante no século XVI acentuou o recuo da Igreja, edeu vantagens aos monarcas que se mostravam fiéisao catolicismo. Especialmente na Itália, França,Espanha e Portugal, viu-se uma atitude de submissãoprivilegiada em relação à autoridade real. O casamen-to de interesses entre monarquia e clero permitiu à Igre-ja desfrutar de invejáveis mordomias, tal qual a nobre-za.

Festa decamponeses.Quadro de1650. DavidTeniers

“O progresso da monarquia absoluta não se deve apenas ao desejo, natural nos reis, deaumentarem o seu poder. O Direito Romano já contribuíra, no século XIII, com a idéia do Príncipe

Absoluto que concentra na sua pessoa todos os poderes e cuja vontade faz lei. A voga daAntigüidade dá, no século XVI, novo surto ao Direito Romano, acrescentando-lhe a idéia antiga doherói, do semideus dominador e benfazejo. Contudo, não são apenas as representações mentaisque se impõem ao indivíduo e lhe determinam doravante os seus atos. O Direito Romano deveuseu êxito ao fato de ter apresentado fórmulas cômodas para exprimir as tendências profundas

dos contemporâneos. O herói é o modelo do ser a quem os povos tem a necessidade de seentregar. A doutrina do absolutismo corresponde às necessidades dominantes desta sociedade

e como que a um desejo do corpo social.” 4

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As mudanças políti-cas da Baixa Idade Média jáapontavam para esse cami-nho. Nunca é demais lembraras dificuldades enfrentadaspela Igreja durante o proces-so de formação da monar-quia francesa. O seqüestrodo papa Bonifácio VIII noséculo XIV, inverteu a ordem(não tão natural) das coisas.Na cidade de Avignon, portrês mandatos os papas fo-ram obrigados a governar acristandade sob influência dorei francês Felipe IV. O ve-xame eclesiástico inspirou aelaboração de obras políticasque defendiam uma novapostura da Igreja Católica.

O livro “Do poderReal e do Poder Papal”, es-crito por João de Paris, em1302, indicava que o clerodeveria se limitar ao poderespiritual. Defendia que opoder temporal tinha de serexercido pelo rei, no papel de administrador das ques-tões políticas na Terra. Dizia que o papa era superiorem dignidade, mas isso não lhe dava o direito de inter-ferir nos assuntos do Estado. Em outra obra, ODefensor da Paz, de Marsiglio de Pádua, publicada em1324, afirmava-se que o clero deveria se ocupar domundo espiritual, deixando para o governo apreocupação com o mundo natural e secular. Acredita-va Marsiglio, que o Estado não precisava da instruçãodo papa para governar os súditos.

A conduta dos integrantes da Igreja ajudava aaumentar o clima de animosidade, como provam inú-meros relatos que descrevem situações absurdas, ocor-ridas em mosteiros e conventos. A propagação da im-prensa e a efervescência do Renascimento Culturalajudaram a difundir essas obras, colocando a Igrejaem postura defensiva. Bocaccio, ao escrever Deca-meron, denunciava “a vida devassa e sórdida do cle-ro” e os pecados “naturais e sodomíticos” de mongese padres.

“Não causa surpresa, quando as altas cama-das do clero se encontravam em tal estado, que, entreas ordens regulares e o clero secular, os vícios e asirregularidades de toda espécie se tivessem tornadocada vez mais comuns. (...) Não é de se admirar, con-forme depõem tristemente os escritores contemporâ-neos, que se haja demonstrado pouco respeito paracom os sacerdotes. A imoralidade deles era tão cho-cante que já se começavam a ouvir sugestões de sepermitir que se casassem.(...) Muitos dos mosteirosencontravam-se em condições deploráveis. Os três es-senciais votos de pobreza, obediência e castidade,eram, em alguns conventos, quase inteiramente des-prezados.” 5

Tudo isso levou aIgreja a aceitar o seu pa-pel de coadjuvante na hie-rarquia do Estado, o quenão excluía as inúmerasvantagens desfrutadas,face à condição de inte-grante das cortes européi-as. Para sua sorte, em di-versas oportunidades decrise, os monarcas termi-navam recorrendo ao au-xílio da Igreja, buscandosuporte ideológico, na su-posta vontade divina dosreis governarem. A propa-ganda religiosa em defesados monarcas católicosajudou a consolidar a au-toridade real, vinculando opecado à contestação daordem pública.

A NATUREZA DOESTADO

A definição política do Estado Modernoprovocou polêmicos debates entre oshistoriadores. Uma corrente defende a

essência burguesa, alegando a presença de ministrosburgueses em funções importantes no Estado. Os de-fensores dessa idéia ressaltam o apoio incondicional dosburgueses, na época de formação das monarquias. Ou-tro grupo de historiadores defende a neutralidade doEstado Moderno, alegando uma postura que estariaacima dos grupos sociais. Uma terceira corrente defendeo caráter feudal do Estado destacando os privilégiosconcedidos à nobreza e ao clero. Analisando-se as trêsvisões encontramos falhas em todas as concepções.

Os defensores do caráter burguês esquecem queo número de ministros burgueses era irrelevante, quan-do comparado a quantidade exagerada de ministrosnobres e eclesiásticos. Além do mais, o apoio incondi-cional da burguesia foi suplantado em importância, naintegração da nobreza com os monarcas, após as su-cessivas crises que abalaram oséculo XIV. Além disso, os ri-gores do mercantilismo agi-ram como camisa de força,impedindo a livre expansãodos negócios burgueses.

Para a nobreza e oclero os reis assegurarama participação no aparelhodo Estado. A escolha dosnobres que preenchiamcargos burocráticos cobriauma lacuna importante,substituin

“O Estado sou eu”.Luís XIV

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do as rendas feudais que diminuíram com o passar dotempo. Os nobres que permaneceram em suas terrastiveram dos reis a conivência e permissão para a co-brança de extorsivos impostos, como se ainda estives-sem no auge da época feudal. Na véspera da revoluçãoem 1789, camponeses da França imploravam ao rei queabolisse a corvéia e outras terríveis imposições. Comoa nobreza não pagava impostos, vivia do sustento pro-porcionado pelas outras classes - burguesia e campo-neses, desfrutando das mordomias e regalias garanti-dos pelo Antigo Regime.

A segunda teoria, da posição neutra do Estado,

despreza a própria origem do monarca, identificado deantemão, com os interesses da classe à qual pertence.A aristocracia escolhida para compor o governo era,em sua imensa maioria, oriunda da nobreza e do cleropassando a exercer, daí em diante, o papel de classedominante.

As regalias obtidas pelos grupos detentoresdo poder invalidavam a opção de neutralidade, diantede uma realidade em que classes parasitas sugavam ariqueza produzida pelo restante da sociedade.

A defesa do caráter feudal perde sustentaçãoquando se constata que apesar de submeter a burgue-sia, os reis procuravam barganhar um mínimo de van-tagens que lhes permitissem em troca, desfrutar do ca-pital burguês. Além da já citada uniformidade de im-postos, taxas e leis, os reis desenvolveram o mundodos negócios, incentivando a abertura de bancos e ocrescimento das manufaturas. O Estado Moderno, deum lado, restringia os negócios burgueses através dasinúmeras regras burocráticas do mercantilismo mas,de outro, não sobrevivia sem a força do capital burgu-ês. O círculo vicioso na esfera do capital tornava aburguesia dependente dos reis para se estabelecer comuma certa tranqüilidade, enquanto que aos reis sosse-gava a possibilidade recorrer à burguesia nos momen-tos de dificuldade.

Mas se as três teorias não têm sustentação, quetipo de Estado é o Absolutismo? “Seria inútil, alémde errôneo, tentar definir esse tipo de Estado a partirde caracterizações mais ou menos unilaterais comofeudal, capitalista ou neutro. A rigor, ele não é exata-mente nenhuma dessas coisas. Trata-se do tipo deEstado que caracteriza a transição, impossível de serreduzido a mero epifenômeno da estrutura econômi-ca, ou seja, do modo de produção dominante.

Trata-se de uma relação essencialmente con-traditória: o apoio ao capital comercial e, pelo me-nos de início, ao capital industrial não se opõe, ne-cessariamente, à defesa e manutenção dos interessessenhoriais ou feudais da aristocracia dominante. Paracompensar o declínio da renda feudal, o Estado ab-solutista necessita cada vez mais aumentar seus pró-prios rendimentos e isso só se torna possível prote-gendo e estimulando ao máximo as atividades produ-tivas em geral. O Estado absolutista tende a expres-sar a busca de um equilíbrio precário, a longo prazoimpossível, entre classes e frações de classe cujos in-teresses são em parte complementares e em parte an-tagônicos.” 7

AS MONARQUIAS E OS REIS

Cada nação desenvolveu ao longo do AntigoRegime, uma ordem política que variava de acordocom as circunstâncias, não havendo no continenteeuropeu, um modelo único de monarquia absoluta. Arigor, pode se dizer que França e Espanha foram osexemplos mais contundentes de monarquia absoluta.As duas tiveram sua época de glória nos séculos XVIe XVII. Os dois países serviram de referência para asoutras cortes européias. Cada uma, no seu tempo,serviu de modelo de prosperidade e grandeza.

No apogeu das conquistas nas regiões ultra-marinas, a monarquia espanhola se tornou um impériointercontinental.

“Os reis são senhoresabsolutos e têm

naturalmente a disposiçãoplena e inteira de todos os

bens que são possuídostanto pelas pessoas da

igreja como pelosseculares”.

Luís XIV

Carnaval “o reibebe”, do pintorbelga DavidTeniers

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O rei Filipe II se gabava quea Espanha possuía regiões, de onde osol nascia, até onde o sol se punha”.

Exageros à parte, em 1580 a dominação espanholaconsistia no controle de várias regiões da Europa -Portugal, Holanda, Sacro Império Romano-Germânicoe alguns reinos italianos, mais as regiões colonizadasna América e pontos de comércio no continente asiáti-co.

Com o apoio da Igreja, em 1520, o rei espa-nhol Carlos V assumiu o controle do gigantesco Im-pério Romano- Germânico. A região era um vastocomplexo feudal correspondendo, nos dias de hoje, àjunção territorial da Alemanha, Áustria e uma partedo território polonês. Para azar de Carlos V, nesse exatomomento, começavam os protestos de Lutero,desencadeando a Reforma Protestante. Agindo sobpressão o monarca topou uma briga que no final lhetraria grandes dores de cabeça.

O ouro e a prata obtidos na América não basta-ram para financiar as guerras contra os rebeldes pro-testantes. Em 1555, o rei espanhol foi obrigado a assinara Paz de Augsburgo, permitindo aos príncipes alemãesoptarem pela religião protestante. Além disso, a políticanegligente da monarquia relegava a produção demanufaturas a um plano secundário.

Desenrolou-se então, uma situação completa-mente inusitada. A Espanha ostentava a condição denação mais poderosa, mas mendigava empréstimos aosbanqueiros europeus. O ouro da América foiinsuficiente para abastecer os gastos da suntuosa cor-te espanhola. Após a Guerra dos 30 Anos, a Espanhaperdeu a condição de monarquia mais importante,substituída então pela França.

A França teve seu momento de glória no reina-do de Luís XIV, legando para a história o exemplomais completo de autoridade real. O rei assumiu o tro-no com cinco anos de idade, mas só veio efetivamentea governar após a morte do cardeal Mazarino, que haviasido o seu tutor. A regência do cardeal foi marcada por

várias confusões, a começar pela revolta da nobreza - aFronda, colocando a monarquia em situação muito deli-cada. Entretanto, Mazarino saiu-se muito bem, neutrali-zando os nobres descontentes.

O sucesso deu-lhe fôlego para conduzir a mo-narquia até que Luís XIV tivesse idade para assumir otrono. Em 1661, o cardeal transmitia ao jovem monarca,um país embalado pela ascensão econômica e estávelpoliticamente. A história conspirava em favor dosfranceses, pois a Espanha tinha sido esmagada na Guerrados 30 Anos e a Inglaterra não era concorrente paradisputar a hegemonia política da Europa.

A morte de Mazarino deixou inicialmente a corteapreensiva com o futuro da nação. Mas quando o arce-bispo de Paris perguntou a Luís XIV a quem deveriamos franceses recorrer dali em diante, prontamente o reilhe respondeu que assumiria pessoalmente o trono. Noseu reinado de 54 anos, o monarca exrceu o poder comextrema autoridade. Ao final, seria lembrado como o Rei-Sol.

“Em seus graus de dignidadee poder, os nobres do século XVII

assemelhavam-se às cartas dobaralho, que era um dos

passatempos prediletos da época.Na categoria mais alta estavam os

reis, que chefiavam as grandescasas reinantes da Europa; seujogo era o poder, seu tabuleiro o

mapa da Europa.” 6

A família de Filipe V. Quadro de Louis Michel de Toulon. 1743

“O rei vê de mais longe ede mais alto; deve

acreditar-se que ele vêmelhor, e deve obedecer-

se-lhe sem murmurar,pois o múrmurio é uma

disposição para arevolta”.

Bousset

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Logo que tomou posse, Luís XIV tratou de or-ganizar um ministério e um corpo de auxiliares que lhedevotassem total lealdade. Os monarcas anteriores dis-tribuíam cargos entre a nobreza, na proporção diretada influência que eles exerciam na corte. Esse prece-dente tinha provocado sérios problemas, porque os no-bres não se sentiam ligados ao rei. Normalmente, inte-ressavam-se apenas em defender seus interesses pes-soais. Desarticulando o esquema, o rei escolheu seusprincipais assessores nas classes mais intermediárias.

“Mas mesmo contando com homens que eramexclusivamente instrumentos seus, Luís decidiu con-servar firmemente nas mãos as rédeas do governo. Em-bora não fosse um homem de inteligência extraordiná-ria, compensava essa deficiência com a dedicação aotrabalho. Todas as decisões, insistiam sempre, tinhamde ser decisões suas. Nenhum detalhe, por ínfimo quefosse, escapava à sua atenção. “Nunca, enquanto vivo

fores, despaches em nome do rei sem sua aprovaçãoexpressa”, escreveu Colbert, um dos ministros mais tra-balhadores e mais dignos da confiança de Luís, a seufilho e sucessor”. 8

Para compor a sua corte o rei convocou cercade 10 000 pessoas que viviam devotadas ao gover-

no do Estado. As províncias distantes eramfreqüentemente visitadas pelos

intendentes, que transmitiam aomonarca um relato dos proble-mas a serem resolvidos. O exér-cito foi renovado eliminando-se os vícios da época feudal.Havia inúmeros casos de no-bres que desobedeciam à au-toridade real pelos motivosmais banais. Quando não es-

tavam satisfeitos, os nobresdemonstravam uma atitude

hostil que enfraquecia as monarquias.

Após a renovação militar organizou-se naFrança, um exército absolutamente profissional, revo-lucionando os padrões militares da época.

O exército foi submetido a uma rígida hierar-quia, imitada mais tarde por outros países. Todos osoficiais eram controlados pessoalmente pelo rei, queindicava os intendentes de armas para se misturar coma tropa, na tentativa de identificar possíveis proble-mas.

Estratégias eram decididas meticulosamentepelos comandantes graduados, sempre em sintonia coma vontade real. O único (e grande) defeito do exércitode Luís XIV era a utilização excessiva de mercenáriosque, obviamente, não lutavam com o mesmo ardorpatriótico dos soldados identificados com a nação.

A economia foi conduzida com extrema habili-dade por Colbert - o incansável defensor da balançade comércio favorável. O mago da economia na cortede Luís XIV`, entrou para a história ao fazer milagresnum país que esbanjava riqueza construindo paláciossuntuosos. Antes de Colbert, a desordem econômicabeirava o caos. A maioria das regiões agia por contaprópria. Os impostos eram cobrados sem o menor cri-tério e boa parte ficava nas mãos de funcionárioscorruptos que enriqueciam as custas da omissão doEstado.

Em várias regiões os nobres, aleatoriamente,cobravam impostos embolsando uma boa parte, porconta dos serviços prestados ao rei. Até a nomeaçãodo superministro Colbert, o rei não havia controladoas finanças e os gastos da corte. Basta se observar,que as corporações de comércio e ofício agiam comose estivessem ainda na época feudal.

“Como é importante queo público seja governado

por um só, tambémimporta que quem

cumpra esta função estejade tal forma elevado que

ninguém se possaconfundir ou comparar

com ele”.Luís XIV

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A fórmula mágica aplicada por Colbert,não tinha grandes mistérios. O ministro implantou um esquema

regular de verificação das contas da corte, colocandoa nobreza na “corda curta”. Afastou os funcionárioscorruptos e criou um grupo de fiscais, responsáveispela inspeção minuciosa das finanças reais. Além dis-so, derrubou todas as barreiras que existiam para arealização do comércio entre as regiões francesas. Di-versas estradas foram construídas, permitindo um aces-so mais fácil aos locais mais distantes.

As companhias de comércio que apresentaramum perfil mais moderno tiveram o incentivo do Estadona forma de empréstimos e concessões. Colbert foiatrás dos principais mestres artesãos, levando-os paraa França, em troca de prestígio e compensação finan-ceira. Mas apesar de todas estas mudanças, Colbertnão conseguiu acabar com o “câncer” responsávelpela corrosão da economia - a moleza da nobreza e doclero. As classes parasitas eram isentas de impostos esugavam boa parte das rendas do Estado.

No auge da monarquia o Palácio de Versalhestornou-se o símbolo desse imenso poder. Para cons-truí-lo foram reunidos os melhores artesãos, jardinei-ros, arquitetos e artistas. O custo de meio bilhão dedólares é bem modesto aos padrões contemporâneos,mas para a época significava uma soma absurda. .

Em Versalhes todos os detalhes adquiriam umacaracterística especial. Os jardins impressionavam pelasimetria e pela organização racional dos elementos danatureza. Nos aposentos não faltavam objetos de ouro,candelabros de cristal, tapetes orientais e vasos demármore. Vários nobres viviam no palácio ou nos seusarredores. Para distraí-los organizavam-se festasmagníficas, além de apresentações de balé e teatro.

Tanto poder e tanta glória sumiram na fumaçadas varias guerras, que sugaram as finanças e drena-ram recursos para o exército real. Teimosamente o reicaía na armadilha e se embrenhava em conflitos inú-teis e desnecessários. Já no final do seu reinado, aderrota na Guerra de Sucessão Espanhola, frustrou apretensão de Luís XIV coroar seu neto como rei daEspanha. O conflito terminou com a vitória inglesa quese afirmaria como potência continental.

O rei Luís XIV morreu esquecido e doente, em1715. Sua última frase - “Eu amei demais a guerra; nãome imite nisso, nem nos gastos exagerados” - foi ouvi-da pelo delfim Luís XV, que parece não ter levado mui-to a sério os conselhos do pai. Seu futuro governoseria uma repetição dos mesmos erros e problemas. Osnobres vendo que o rei estava perto de morrer,deixaram-no abandonado à própria sorte (ou azar!).Ninguém na Europa tinha governado tanto tempo, afi-nal, foram 54 anos de reinado. Dizia-se em Paris que jáera hora de terminar. A suntuosidade de Versalhescontrastava com 80% da população que vivia pratica-mente na miséria.

“O ballet moderno resultouprincipalmente da paixão da corte fran-cesa do século XVII pela dança e pelasrepresentações teatrais de amadores.Várias noites da semana podiam serdedicadas a tais divertimentos, e os

aristocráticos intérpretes passavam diasensaiando seus papéis. Como parte

fundamental da educação de todos osnobres, esses espetáculos,

caracterizados por trajes requintados ecená-rios fantásticos, pouco a poucoassumiram a forma da moderna arte

coreográfica”.9

“Como ninguém era digno de comer ao lado do rei, Luís jantava só; os validos da corte olhavamfascinados - em parte porque Luís dispensava o uso do garfo, então uma invenção moderna. Seus casos de

amor e suas reais amantes eram o tópico mais importante da conversação palaciana; seus comentários maistriviais eram fielmente repetidos e interminavelmente discutidos. Viver na temerosa presença do Rei Sol,

observou um contemporâneo, era como viver na presença de Deus. Mas, como nada é perfeito! Asinstalações hidráulicas no palácio eram insuficientes e incômodas; até os nobres mais luxentos preferiam

urinar nas escadas. Como se vê, o nível de limpeza pessoal era baixíssimo, e os banhos eram quasedesconhecidos. Em vez disso, homens e mulheres, sem distinção, encharcavam-se de perfume, empoavam

as grandes cabeleiras, e procuravam dar uma falsa idéia de limpeza”. 10

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Deu-se o nome de Mercantilismo ao conjunto de práticas econômicas adotadaspelas monarquias absolutistas do An-

tigo Regime. Essas medidas variavam com o tempo,dependendo do contexto em que foram aplicadas. Ini-cialmente, no século XVI, o ouro e prata obtidos pelaEspanha nas colônias americanas motivaram osurgimento do metalismo. Essa concepção associava ariqueza das nações à quantidade de metais preciososacumulados nos cofres reais. Segundo a crença, quan-

to mais ouro e pra-ta, mais rica era umanação. Ahegemonia espa-nhola no continen-te contribuiu parareforçar a tese me-talista, servindo demodelo para outrasnações européias.Na Inglaterra ometalismo era co-nhecido como bu-lionismo, da pala-vra bullion - ouro eprata, em inglês.

Depois deevidenciado no sé-culo XVI ometalismo entrouem decadência. Oexemplo daEspanha se revelou

o pior possível, pois a abundância de metais provocoua letargia da economia espanhola, prejudicando o de-senvolvimento das atividades produtivas. Emcontrapartida, cometiam o absurdo de impor-tar palitos e cordões. A Espanha gastoumilhões para sustentar o luxo da corte, es-quecendo que um dia, o ouro e a prata pode-riam terminar. A ambição pelo ouro levoumilhares de espanhóis a uma louca aventurana América. Muitas regiões de produçãoagrícola foram abandonadas, em troca dariqueza fácil em terras americanas.

“Ao findar o século XVII, a população espa-nhola fora reduzida em 1 milhão de habitantes (to-mando-se, para comparação, os primeiros anos da-quele século); por volta de 1715, enfim, a populaçãoespanhola voltara à marca de 1514: 7,5 milhões. Essaredução populacional pode ser explicada como o re-sultado de causas naturais e de causas decorrentesda ação humana: as pragas e epidemias agiram namesma escala em que o fizeram no restante da Euro-pa, a conquista e o desenvolvimento coloniais absor-veram um número maior de vidas do que o indicadopelos registros oficias. (...) Por fim, a expulsão dosjudeus e dos árabes e a fuga dos cristãos-novos e dosúltimos árabes representaram um êxodo de importan-tes contingentes populacionais. O declínio da popu-lação, não obstante, constituiu apenas um dos aspec-tos de um fenômeno muito mais generalizado e departicular significação face ao desenvolvimento eco-nômico: a contração econômica.” 11

Ironicamente, a circulação intensa de ouro eprata por todo o continente provocou, no final do sé-culo XVI, uma queda brutal no valor dos metais preci-osos, ocasionando a primeira grande inflação da histó-ria. A “Revolução dos Preços”, como ficou conhecidoo episódio, mostrou a fraqueza das concepçõesmetalistas. A obsessão pelo acúmulo de metais gerounos países europeus um processo inflacionário de lon-ga duração. A Espanha foi a mais prejudicada pois eraa principal patrocinadora da orgia metalista.

Portugal, por razões diferentes, também teve omesmo destino. Depois de um início promissor, quan-do lucraram bastante no comércio com as Índias, osportugueses esgotaram os recursos disponíveis comos gastos excessivos da monarquia. Os portuguesescometeram o mesmo erro dos espanhóis, achando que

a riqueza nunca se acabaria. A exploraçãodo açúcar não alterou esse quadro, poisdependiam da Holanda para refinar oproduto. Tanto Espanha como Portu-gal descuidaram da produção de ma-nufaturas. O desleixo tornou-os de-pendentes dos países efetivamentericos do continente europeu.

O Mercantilismo

A auto-suficiênciaeconômica e aprodução deexcedentes para aexportaçãoconstituíamimportantesmetas da políticaeconômicamercantilista,colocada emprática peloEstado absolutistada Era Moderna.Na gravura, oporto de Toulonna França.

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noO fiasco das concepções metalistas exigiu a formulação de um meio mais consistente

e seguro de garantir a riqueza das nações. Dentre asvarias concepções, destacou-se o ministro Colbert –mago da economia na corte de Luís XIV. Sua políticaconsistia em produzir o máximo de manufaturas e im-portar o mínimo de mercadorias. Com essa fórmulaevitava a drenagem de ouro e prata para os cofres dasoutras nações. A França de sua época o país de maiorprotecionismo alfandegário, visando afastar a concor-rência estrangeira e fortalecer a produção interna. Alémdisso, a proteção das manufaturas francesas foi vin-culada à valorização da mão-de-obra especializada,como forma de aprimorar a produção. O objetivo finalde Colbert era conseguir um saldo positivo para o Es-

tado e o equilíbrio das fi-nanças, em suma, a ba-lança de comércio favo-rável.

França, Ingla-terra e Holanda, apesardos altos e baixos, foramcapazes de assegurar a

balança favorável. As ou-tras nações não conseguiram

sair do estágio agrícola e dependência do capital es-trangeiro. A Holanda sempre manteve as característi-cas de centro financeiro e bancário, realizando emprés-timos e financiando as monarquias debilitadas. A In-glaterra a partir do século XVII, desenvolveu ativa pro-dução manufatureira, abastecendo o continente intei-ro. A França desfrutou da glória no reinado de LuísXIV, onde despontaram os já citados esforços do mi-nistro Colbert.

“É preciso, com efeito, exportar o máximo e,de preferência, artigos fabricados, pois o trabalhoneles invertido aumentou-lhes o valor. É necessário,pois, dispor do maior número possível de produtorese seguir uma política de aumento da natalidade. Mas,para vencer a concorrência, vender uma qualidademaior a um preço menor. As taxas de juro devem, porconseguinte, ser baixas, de modo que o empresáriocapitalista encontre capital barato. O operário deveganhar pouco e é preciso mantê-lo num baixo nívelde vida.

De outro modo, porém, se lhes faltasse traba-

lho, num país inundado de produtos estrangeiros edepois de economia estagnada, ele estaria na miséria,e o Estado perdendo sua força, ficaria exposto aospiores males, à invasão e ao domínio estrangeiro”. 13

O INTERVENCIONISMO

As monarquias do Antigo Regime se destaca-ram pela rigorosa intervenção na economia. O Estadofoi o agente fiscalizador das companhias de comércio,adotando severa fiscalização nas manufaturas e a co-brança de inúmeras taxas e impostos. Os fiscais reaisnão deixavam a burguesia em paz, averiguando desde aquantidade das mercadorias produzidas, até o cumpri-mento das normas de qualidade.

Na França de Colbert houve um abrandamentodo controle real, permitindo-se algumas regalias à bur-guesia. Investimentos foram liberados para o incentivode novas manufaturas, com prazo elástico de carênciapara o pagamento dos empréstimos. As manufaturasmais qualificadas recebiam isenções fiscais, instalaçõesgratuitas e prêmios pela produção.

O Estado no absolutismo agia em benefício doseu próprio desenvolvimento. O crescimento da bur-guesia era sob intenso controle estatal. As razões polí-ticas preponderavam em relação aos fatores econômi-cos e o fortalecimento da autoridade real dependia dire-tamente do sucesso das medidas econômicas. A mo-narquia absoluta não abriu mão do controle da econo-mia, adotandom e d i d a sprotecionistas ebarreiras alfande-gárias.

Havia nasp r á t i c a smercant i l i s tasuma obsessãopela qualidadedas mercadorias.Controlava-se ap r o d u ç ã ovigiando aquantidade, paraque nãoexcedesse acapacidade dec o n s u m o ,principalmente dos produtos que não eram exportados.A pequena concorrência gerava preços altos,restringindoà elite o consumo das mercadoriasmanufaturadas. A França terminou sendo a maior vítimadessa realidade, pois a maior parte de sua produção erade artigos de luxo, em detrimento das mercadorias maissimples.

A existência das corporações beneficiava o Es-tado absolutista, porque a sua rigidez combinava comas intenções do rei. Com a consolidação das monarqui-as, as eleições nas corporações tornaram-se um jogo decartas marcadas. Só os artesãos e donos das manufatu-

Balança de ComércioFavorável

Quadro doséculo XVIImostra oministro Colbertreunido comoutros ministrosda corte

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noras mais ricas tinham chance de conquistar os cargosmais importantes. O Estado conseguiu criar um grupofiel a seus interesses que, sucessivamente, se revezavanas corporações. Os corpos municipais contavam coma participação das pessoas ligadas à corporação e tam-bém foram monopolizados pela burocracia real. Comisso os monarcas neutralizavam possíveis reações àsmedidas impopulares.

A situação dos operários nas manufaturas era apior possível. O Estado exigia sacrifícios enormes vin-culando o trabalho ao progresso da nação. Imprimia-seum ritmo louco de trabalho, envolvendo integralmenteos operários na maratona da produção.

A Igreja Católica estimulava a obediência aospatrões e combatia o descontentamento dos rebeldes.Nas manufaturas e artesanatos, celebrava-se a missadiariamente. As refeições eram precedidas pela leiturada Bíblia e os padres ensinavam cânticos religiosos vin-culados ao trabalho. A falta grave era punida com chi-cotadas e os salários eram irrisórios. O operário rece-bia, no máximo, o suficiente para o sustento da família.A jornada era de doze a dezesseis horas diárias, com ointervalo de 30 a 45 minutos para a refeição.

“Ao focalizar a questão da quantidade maiorou menor de homens desempregados, os mercantilistasfazem questão de distinguir entre aqueles que nãotrabalham porque não têm onde, e aqueles que sãodesempregados por sua exclusiva culpa, aliás a mai-oria. Para estes são válidos os meios coercitivos queo Estado e os empresários devem utilizar para forçá-los a uma atividade digna, honrosa e produtiva. Pordetrás desse discurso, sente-se claramente toda umaorientação voltada para a compulsão ao trabalho,

cuja contrapartida é o nível bastante baixo dossalários. Na mentalidade da época, misturam-se, porisso mesmo as preocupações assistenciais para comos necessitados e a condenação à vagabundagem e àociosidade, e isso de uma forma tal que,freqüentemente, o auxílio tem como contrapartida otrabalho obrigatório, ao mesmo tempo que a recusaa trabalhar oferece a justificativa para a repressãomais violenta e desumana.” 15

O PACTO COLONIAL

A exploração colonial estava diretamente vin-culada ao mercantilismo. As nações absolutistas im-puseram às colônias, o consumo de manufaturas e ou-tros artigos, exclusivamente fornecidos pelas metró-poles. O Estado vendia às suas colônias, produtos dealto valor e comprava mercadorias tropicais a um pre-ço irrisório. A revenda de produtos tropicais no merca-do europeu objetivava a balança de comércio favorá-vel. As colônias eram rigorosamente proibidas de pro-duzirem manufaturas, e até um simples alfinete podiaser motivo de severas punições. A produção colonial

era limitada a artigos rudimentares: sandáliasde couro, selas de transporte, roupas paraescravos e outros artigos de pequeno valor.

Apesar do controle, nem sempre ametrópole lucrava com o exclusivo colonial.As monarquias sem potencial produtivo,como Portugal e Espanha, eram obrigadas acomprar mercadorias em outras nações. Nofinal a parte do leão caía no bolso alheio, emprejuízo das nações ibéricas. A Inglaterra quese especializou em produção de manufatu-ras, deitou e rolou no comércio colonial. In-diretamente terminou sendo a maior potênciacolonial.

O Mercantilismo se apresentou deformas variadas, a depender do contexto de cada nação.As particularidades se relacionavam ao potencialeconômico de cada Estado. A França no século XVI,deu ênfase à produção agrícola, visando a exportaçãoe obtenção de moedas e metais preciosos. Odesenvolvimento e a conquistas colônias na América,mudaram essa realidade, conduzindo o Estado para oincentivo à produção manufatureira, de olho, princi-palmente, no promissor mercado colonial.

“Se o francês soubesse conservar suas riquezas e fruir de seu bem, comandariatodas as nações, estando ornado em tempo de paz, e fortificado em tempo de guerra, de

uma quantidade incrível de ouro e prata, pela abundância que para aí aflui de todas aspartes.” (Garrault)

“E desde que saibamos nos aproveitar das vantagens que a natureza nosconcedeu, tiraremos a prata daqueles que quiserem ter nossas mercadorias que lhessão necessárias e não nos sobrecarregaremos muito com seus gêneros, que nos são

tão pouco úteis.” (Richelieu) 14

A sede da Ciadas ÍndiasOcidentais, emAmsterdã.Fundada em1621, a empresaholandesaprosperou,entre outrasrazões, pormonopolizar ocomércio deaçúcar naEuropa. Asdimensões desua sede dãouma idéia doseu poderio naépoca.

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A Inglaterra teve um desenvolvimento peculi-ar, pois administrou sua economia em ritmo diferentedos outros países europeus. A necessidade de prote-ger o território gerou o incentivo da indústria naval.Com isso se desenvolveram várias manufaturas, inter-ligadas à construção de navios. Nos campos houvemudanças com inserção de práticas capitalistas. Oscercamentos, como foram chamados, transferiram paraa burguesia várias terras, antes pertencentes à nobre-za. Nessas terras a criação de carneiros e ovelhasgarantiu o fornecimento da lã – matéria prima essenci-al para as manufaturas têxteis. A produção e exporta-ção de artigos manufaturados estabilizaram a balançade comércio. No século XVII, a Inglaterra era nação,economicamente, mais poderosa do continente euro-peu.

A Holanda é o segundo exemplo bem-sucedi-do de desenvolvimento. A região desempenhava des-de a época do Renascimento Comercial, um ativo co-mércio com diversas cidades européias. Dezenas debanqueiros se estabeleceram nas cidades holandesas,onde existia um ambiente menos opressor, emcomparação com os países católicos. A prosperidadeteve um pequeno refluxo, quando foi submetida, noséculo XVI, ao domínio espanhol.

A dominação espanhola teve um ponto finalquando os holandeses enfrentaram a Espanha católi-ca. Em 1610, a Holanda conseguiu a independência,acelerando a grande arrancada para o desenvolvimen-to. A indústria naval foi o alicerce da economia, origi-nando o domínio dos oceanos, valendo-lhes o apelidode mercadores do mar. A Holanda foi ainda premiadacom a incompetência dos portugueses, que transferi-ram para os flamengos boa parte da sua riqueza.

“Na Inglaterra e na Holanda o governo defen-dia os interesses econômicos. Quando os espanhóisperderam o controle das províncias do norte daHolanda, no último quartel do século XVI, o poderpolítico foi-se transferindo, cada vez mais, para asmãos da aristocracia urbana de comerciantes e fabri-cantes sediados em Amsterdã. Esses interesses urba-nos adotaram políticas que atenderam às suas conve-niências. A partir de 1590, mandaram fechar o Scheldt(o rio que liga Antuérpia ao mar do Norte) ao tráficocomercial. Essa medida representou um golpe mortalà fortuna econômica da cidade que havia dominado ocomércio entre o norte e o sul da Europa, e entre aInglaterra e o continente europeu, em fins do séculoXV e parte do século XVI. A posição de Antuérpia foiperdida para Amsterdã e, mais tarde, para Londres eHamburgo. A criação da Companhia Holandesa dasÍndias Orientais e do Banco de Amsterdã, na primeiradécada do século XVII, também nasceu de uma alian-ça entre os setores econômicos e o governo, na defesade seus interesses mútuos”. 16

As práticas mercantilistas tiveram, portanto,grande influência no acúmulo de capital e no enriqueci-mento das nações européias. Até o século XVIII, deter-minaram a formacomo os reis,governantes eseus ministros de-veriam administrarseus Estados. Foi aíque apareceram asprimeiras contesta-ções à forma rigo-rosa de interven-ção do Estado, quebloqueava as in-tenções de cresci-mento daburguesia. Ascríticas ensejadaspelo Iluminismoapontariam o novocaminho da socie-dade burguesa eliberal.

“Os meios ordinários,portanto, para aumentar

nossa riqueza e tesouro sãopelo comércio exterior,

para o que devemosobedecer sempre a esta

regra: vende maisanualmente aos

estrangeiros em valor doque consumimos deles.”

Colbert

Neste retratoda metade doséculo XVII,pintado porPieter deHooch, umafamíliaholandesasobriamentevestida exalaumaprosperidadetranqüila dasegurança deseu pátio bem-varrido nacidade de Delft.

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Anotações