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O Feiticeiro e o Pássaro da Morte Frank Pires

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Em meados do século XVII, índios Munduruku e Maués travam uma batalha sangrenta, tendo como cenário o caudaloso e belo Rio Tapajós, região do oeste paraense. Em meio a guerras constantes, o guerreiro munduruku, Jurupari se apaixona pela bela Janaína, filha do grande tuchaua Piatã, da tribo dos Maués. Conheça essa história de um amor impossível que vai te levar a um mundo de aventuras, lendas e magia.

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O FEITICEIRO

E O

PÁSSARO DA MORTE

Frank Pires

2012

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DEDICATÓRIA

Dedico este livro a minha esposa Elziane Pires

Teixeira, companheira e amiga de todas as horas. Aos meus

filhos, Wesley, Palloma, Matheus, Marcela e Vitória. Amo

vocês! A meus pais Francisco e Sirley, meu amor e meu

respeito eterno a vocês. E meus irmãos, Marcelo e Cristiane

que são parte de mim para todo o sempre.

Frank Pires.

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DEDICATÓRIA ESPECIAL

À memória de meu irmão, o grande guerreiro

André Pires Teixeira.

(1974-1993)

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AGRADECIMENTOS

Ao Senhor Deus Todo Poderoso, por sua infinita

bondade e compaixão em minha vida. Agradeço também a

todos, parentes e amigos, que acreditaram e apoiaram a

realização desse sonho. E por fim, agradeço de todo o coração

ao amigo e Jornalista Walrimar Santos, Assessor de

Comunicação da Polícia Civil do Estado do Pará. Muito

obrigado.

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SUMÁRIO

1. Dedicatória ...........................................................6

2. Nota do autor........................................................12

3. O ritual das cabeças..............................................17

4. A grande festa......................................................29

5. Os Maués..............................................................40

6. As sete provas.......................................................47

7. O Ataque..............................................................64

8. O Santuário...........................................................74

9. A vingança............................................................83

10. A morte.................................................................96

11. A transformação...................................................103

12. A redenção...........................................................113

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“Então com passo tranqüilo metia-me eu por algum recanto da

floresta, algum lugar deserto, onde nada me indicasse a mão do

homem, me denunciasse a servidão e o domínio; asilo em que

pudesse crer ter primeiro entrado, aonde nenhum importuno viesse

interpor-se entre mim e a natureza.” (J.J. Rousseau – O Encanto

da Solidão)

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“Só depois que a última árvore for derrubada, o último peixe for

morto, o último rio envenenado, vocês irão perceber que dinheiro

não se come” (provérbio indígena)

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NOTA DO AUTOR

“Viva sua vida de forma que o medo da morte nunca possa

entrar em seu coração.” (Provérbio indígena)

É sempre um imenso prazer escrever sobre a rica e

bela cultura amazônica, poder mostrar suas riquezas através

das palavras, sentindo a responsabilidade de alertar para a

preservação do nosso meio ambiente.

“O conjunto de condições, leis, influências, interações

de ordem física, química e biológica, que permita, obriga e

rege a vida em todas as suas formas”. Assim a lei brasileira

define o meio ambiente.

A Constituição o chama de “um bem de uso do povo”.

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A Amazônia é um imenso e complexo ecossistema,

provavelmente o mais variado e rico do nosso planeta.

Nenhuma outra vegetação do mundo possui tanta

variedade de espécies como a floresta amazônica; nenhuma

outra bacia hidrográfica possui tantos tipos diferentes de

peixes. Podemos assim, dizer o mesmo, em relação aos

pássaros, insetos e outros seres da nossa fauna.

Lenda, ficção, aventura, realidade, romance, mistério,

terror, ação: a Amazônia é assim.

O livro “O Feiticeiro e o Pássaro da morte”, mostra

uma porção mágica de encantamento da Amazônia, com uma

abordagem na vida e costumes dos nossos índios, mexendo

com o imaginário do leitor, conduzindo-o a uma viagem

através dos séculos, a vasta região banhada pelo belíssimo rio

Tapajós, revelando ao leitor a saga de um índio solitário e

obcecado pela missão de proteger a natureza e perseguir os

destruidores da floresta, desvendando como nunca antes a

origem do mito, revelando a face de um herói originalmente

do folclore brasileiro.

No atual território brasileiro, já existiram mais de cinco

milhões de indígenas antes da colonização, hoje subsistem

pouco mais de 340 mil, de aproximadamente 220 etnias,

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concentrados principalmente na Amazônia. Esses povos lutam

todos os dias corajosamente para sobreviver e conservar suas

terras, seus costumes e suas crenças, pois na história do nosso

querido País, os mais prejudicados foram justamente eles que

chegaram aqui primeiro.

Nessa batalha desleal, os povos indígenas ainda são

vítimas da escravidão, mortalidade infantil e doenças, como

malária, gripe, febre amarela, hepatite e também a AIDS. Se

não bastasse, também são vítimas da desagregação social e da

perda da identidade cultural, responsáveis pelo seu decréscimo

histórico, além de sofrerem nas mãos de traficantes de drogas,

madeira e biodiversidade.

A natureza sempre encontrará formas de lutar e reagir

aos ataques cometidos contra suas riquezas. E o Grande

Espírito da Floresta continuará sua luta contra aqueles que

insistem em destruir, degradar, desmatar e matar em nome da

ambição desenfreada e da ganância cega.

Seja você leitor, um aliado nessa guerra, seja um

guerreiro do Grande Espírito em defesa do nosso meio

ambiente. Que esta obra possa ser a voz de todos os “povos da

floresta”, não somente do Pará e da Amazônia, mas sim de

todo esse imenso Brasil, além daqueles que lutam

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incansavelmente para que todos os homens possam ser um dia

ecologicamente corretos.

Frank Pires

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Selva amazônica, Estado do Pará, meados do século XVII.

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O RITUAL DAS CABEÇAS

"As leis dos homens mudam de acordo com o seu

conhecimento e compreensão. Apenas as leis do Espírito

permanecem sempre as mesmas." (Provérbio indígena)

No curso superior do rio Tapajós, homens e mulheres

andavam completamente nus; com as cabeças raspadas e

pintadas, tendo no alto apenas um tufo de cabelos.

Os Munduruku já estavam prontos para celebrar a

grande festa, aguardando apenas a chegada dos seus

destemidos guerreiros, que há dias partiram para enfrentar os

índios inimigos, os Maués.

Tribo valente e destemida, que habitava a outra

margem do rio Tapajós, os Maués eram inimigos mortais dos

Page 16: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

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Munduruku há muito tempo, por isso a peleja entre eles era

constante e habitual.

Os Munduruku, descendentes mesclados dos Tupi,

eram os mais temidos índios da região. Chamados de “os

cortadores de cabeça”, após matá-los, decapitavam os rivais.

Eram os mais hábeis no ornato de penas;

extremamente vaidosos, durante as festas enfeitavam a cabeça

com o cocar de penas, com borlas de palha que caíam ao

longo das faces.

Seus vestiários eram pomposos, com enfeites, pulseiras

e na cintura um saiote com quatro caldas de araras, pássaros

muito importantes para eles; criavam araras na aldeia, para

obterem a plumagem de seus enfeites.

Com todo o cerimonial preparado, o tuxaua Jarí, estava

ansioso para receber aqueles que seriam homenageados.

__ Os guerreiros já estão chegando, pude ver alguns subindo o

curso do rio, logo eles estarão aqui, grande tuxaua. __ avisou

o mensageiro ao grande chefe que já estava impaciente.

Jarí apressou-se então para avisar ao povo. Queria uma

festa inesquecível, afinal homenagearia também seu

primogênito Jurupari, líder dos guerreiros Munduruku.

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__ Preparem-se para os cânticos e as danças! Vamos receber

nossos guerreiros com festa! __ ordenou o tuxaua, causando

grande alvoroço na aldeia.

O grande combate com os Maués finalmente

terminara, os guerreiros Munduruku subiam lentamente o

curso do caudaloso rio Tapajós. Sete deles foram à frente e

apresentaram-se ao tuxaua, entoando cânticos de vitória. Nas

mãos de cada um, cabeças cortadas de guerreiros Maués,

seguras por varas que entravam pela boca, passando pelo

pescoço, As cabeças eram empunhadas para o povo ver e se

alegrar.

À frente do grupo Jurupari, “o filho do sol”, como era

chamado pelos outros guerreiros se pôs diante de seu pai Jarí e

apresentou os louros da batalha.

__ Meu pai e grande tuxaua. Aqui estamos de volta da grande

batalha contra os nossos inimigos.

__ O que tu me trazes, Jurupari? O que tens para ofertar ao teu

povo que está diante de ti? __ perguntou o chefe, orgulhoso de

ver o grande guerreiro que o filho se tornara.

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__ Trago muitas alegrias. __ referindo-se a quantidade de

Maués mortos no combate. __ E trago também tristezas, meu

pai. Perdoe-me e que meu povo não me despreze.

Visivelmente abatido ao falar das mortes dos amigos,

Jurupari se ajoelhou em reverência aos guerreiros que

tombaram durante a peleja, profundamente comovidos pelas

famílias que chorariam seus mortos, um gesto de respeito

seguido por todos os outros guerreiros. No entanto, ele já era

um guerreiro experiente e sabia que mortes eram inevitáveis

em guerras, não seria a primeira nem a última vez que

encararia a morte no campo de batalha.

__ Levantem-se guerreiros! Maiores são as alegrias que as

tristezas. Agora é hora da grande festa, depois choraremos os

mortos e as viúvas serão consoladas. __ ordenou o chefe.

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Quando Jarí anunciou o início dos festejos, Jurupari

recebeu um forte abraço de Jacamim, seu irmão mais novo.

Apesar de sua baixa estatura, motivo pelo qual recebera o

nome “Jacamim”, “aquele que tem a cabeça pequena”, o

filho caçula do tuxaua, tinha pensamentos grandes e uma

imensa vontade de um dia ser respeitado como o irmão.

__ Meu irmão! Que saudade! Que bom que voltou, eu estava

tão preocupado. __ falou Jacamim ao ver seu herói de volta

são e salvo.

__ O que foi? Achou que eu não voltaria? __ brincou Jurupari.

__ É que eu fico com medo dessas guerras.__ respondeu o

jovem Munduruku.

__ Medo? Pois te digo que não há Maués suficientes nesta

terra para nos derrotar. Não confia em mim?

__ É claro que confio.

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__ Do que tens medo então?

__ Tenho medo de te perder, perder nosso pai, nossa mãe...

__ Você não vai perder ninguém e ainda será o maior

guerreiro que este rio já viu.

__ Não entendo porque temos que nos matar uns aos outros.

Por que precisamos enfrentar os Maués, o que eles fizeram a

nós? Gostaria que parassem todas as lutas e vivêssemos todos

em paz. Assim, eu não teria mais medo. __ as palavras de

Jacamim penetraram como uma flecha o coração de Jurupari.

Mas o guerreiro dizia a si mesmo que o irmão não sabia o que

o que estava falando. É claro que tinham que lutar.

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O guerreiro olhou nos olhos do irmão e disse-lhe:

__ Você tem um grande espírito irmão. Mas é muito jovem

para entender a importância de ser um guerreiro, então não

diga o que não entende.

__ Por que não tenta me explicar então? Caiuá disse que não

precisamos nos matar; que nossos verdadeiros inimigos não

são os Maués. Ele me disse que o “olho que tudo vê”, o

Pássaro Sagrado vai nos mostrar o novo inimigo__ insistiu

Jacamim.

__ Caiuá não sabe nada de guerras. É apenas um Pajé, um

feiticeiro muito velho. Quer que eu explique porque lutamos?

Pois então vou te explicar: Lutamos para proteger nosso povo,

nossas terras, nossa caça, nosso rio, nossa comida e para

proteger inclusive Caiuá, que fala muita bobagem. Por isso

lutamos. Não temos e não precisamos ter medo de nada, de

ninguém e muito menos da morte. Eu lutarei até com a morte

se preciso for para te proteger.

__ Se é assim fico mais aliviado. __ disse-lhe Jacamim.

__ E quando é que você vai ter coragem de participar do ritual

dos guerreiros com a gente? __ perguntou Jurupari.

__ Quando eu for um guerreiro.

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__ Não vai ser preciso esperar tanto, você vai hoje comigo.

__ Posso participar então?

__ Não. Mas pode olhar. __ respondeu Jurupari ao irmão em

meio a risadas.

O jovem Jacamim tinha apenas dezessete anos e apesar

de admirar os atos heróicos do pai de do irmão, tinha uma

natureza pacífica, não gostava nem um pouco de guerras e

sabia quanta tristeza e sofrimento uma guerra podia trazer a

todos, tanto Munduruku como Maués.

Foram então para o local do ritual e enquanto Jacamim

ascendia o fogo, Jurupari e os outros arrancavam os dentes dos

vencidos.

Extraíram os olhos e finalmente os ossos, tudo sob o

olhar atento e curioso do jovem aprendiz.

No ritual da mumificação das cabeças, os Munduruku

eram excelentes cirurgiões. Reviraram as cabeças pelo

avesso, usando facas de taquara para cortar e retirar toda a

musculatura mergulhando então o resto em óleo de andiroba.

Recomporam então as cabeças, empalhando-as e

incrivelmente as feições dos Maués permaneceram fiéis.

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Enquanto Jurupari colocava cabeça por cabeça numa

espécie de grelha para secar, os outros retiravam o

enchimento, fazendo com que a contração fosse total.

__ Jacamim, traga as agulhas. __ pediu Jurupari, ao que

imediatamente o jovem obedeceu.

Com as agulhas de taquara e tecido de algodão,

costuraram os beiços, deixando longos fios pendurados,

matizando-os com o urucum.

Devido a fumaça, as cabeças tomaram a cor negra e

ficaram reduzidas ao tamanho da cabeça de um macaco

comum.

Uma a uma as cabeças foram atravessadas por um

longo cordão de baixo para cima e foram finalmente

penduradas às costas dos vencedores.

Estavam prontos os pariuá-á.

Jurupari e os guerreiros se puseram a dançar e cantar

diante do olhar encantado de Jacamim.

Quando terminaram, Jurupari levou os pariuá-á a

maloca de Caiuá, o tão temido pajé, que já aguardava sua

chegada.

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Diante do grande feiticeiro, que nunca em hipótese

alguma tirava sua máscara, o guerreiro cortador de cabeças

prestou reverência.

Caiuá olhou fixamente o rosto do filho do sol.

__ Entre, jovem Jurupari. Eu o aguardava ansioso. __ disse o

feiticeiro sem tirar os olhos dos pariuá-á.

__ Eu trouxe as cabeças dos nossos inimigos.

__ O que o aflige, guerreiro? Sinto que tua alma está

angustiada. __ ao ouvir isto Jurupari mostrou-se agressivo.

__ Nada! Não há nada me afligindo. Porque você está dizendo

isso? Porque vive inventando essas coisas, enchendo a cabeça

de meu irmão com bobagens?

__ Acha mesmo que eu sou louco, velho e que falo bobagens?

Você não pode mentir pra mim Jurupari, eu vejo a alma dos

homens e vejo que a sua está manchada. E essa mancha está te

matando guerreiro.

__ Já disse que não há nada comigo. Quero apenas festejar

com meu povo a vitória sobre os malditos Maués. __

desabafou Jurupari.

__ Hum. Malditos Maués? Odeia tanto assim os Maués,

jovem guerreiro?

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__ É claro que sim! Os Maués são nossos maiores inimigos.

__ E você não gostaria de ter nascido um deles?__ Caiuá

estava conseguindo deixar o guerreiro nervoso.

__ Que pergunta absurda! __ gritou Jurupari.

__ Responda a pergunta, filho do sol.

__ Espero que isso responda essa maldita pergunta. __ então

jogou as cabeças aos pés do feiticeiro.

__ Jurupari. Você precisa entender que o nosso maior inimigo

não está nas aldeias dos Maués.

__ Como assim? Que outro inimigo nós temos?

__ Existe um povo desconhecido. Uma tribo de demônios que

cospem fogo. Inimigos dos Munduruku, inimigos dos Maués,

e de todos os povos da grande selva. Um dia eles virão para

destruir nossos sonhos, nossa casa, nosso povo.__ Jurupari

ouvia atento.__ E você meu jovem, você não desistirá e unirá

sua alma ao Pássaro Sagrado e cumprirá o seu destino.

__ E nós? Nós venceremos esses demônios? __ perguntou o

guerreiro, ainda descrente daquilo tudo que ouvira.

__ Nossa guerra com eles nunca terá fim, e você ainda sofrerá

muito por aqueles que você fez sofrer.

__ E o que acontecerá com nosso povo?

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__ Eu vi você nascer, vi seu pai nascer e vi o pai de seu pai

nascer. Olhe pra mim Jurupari. Ainda verei muitos

Munduruku nascerem e Tupã triunfar sobre os maus, pois eu

sempre existirei. Sabe quem me mostrou? O olho que tudo vê.

Isso mesmo guerreiro incrédulo: o Pássaro Sagrado. Agora vá

e cumpra seu destino, me deixe em paz. __ as palavras do pajé

deixaram o guerreiro em silêncio por alguns segundos e antes

de sair ainda fez um pedido a Caiuá.

__ Mostre-me o teu rosto! Tire a máscara. __ o feiticeiro

então, diante do pedido de Jurupari, soltou gargalhadas,

zombando do pedido do jovem, que mais uma vez aborreceu-

se e foi embora.

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A GRANDE FESTA

"Que os meus inimigos sejam fortes e corajosos, para que ao

ser vencido não me sinta envergonhado." (Provérbio

indígena)

A aldeia então se dividiu em três famílias: a preta

(iasum paguarte), a vermelha (ipacacate) e a branca (arichá).

Nos enfeites da primeira família predominava o azul; nos da

segunda o vermelho; na terceira o amarelo.

Durante a festa todos se confraternizavam com os

guerreiros, que orgulhosos exibiam seus pariuá-á, as cabeças

penduradas às costas. Os feridos e as viúvas foram aclamados

pelo povo e agraciados pelo tuxaua com uma cinta de algodão

preparada pelo próprio chefe e enfeitada com os dentes

extraídos dos inimigos.

Page 28: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

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Toda a tribo assistiu atentamente quando Jarí sentou-se

para preparar as cintas.

Num certo momento, Jurupari tomou a frente e

mandou os guerreiros formarem-se em alas, para a

condecoração. Ele era respeitado por toda a aldeia, não só por

ser o sucessor de Jarí, mas porque sabiam o grande guerreiro

que ele era, que estava pronto para morrer por eles.

Enquanto os bravos guerreiros eram homenageados, o

povo aclamava ao Pássaro Sagrado, o Urutau, uma espécie de

ave de canto sombrio, que assustava a qualquer um dentro da

selva. Seu canto mais parece um lamento e os Munduruku o

tinham como um deus.

Durante o ritual sagrado, formou-se então uma grande

passeata, indo à frente as viúvas agraciadas, que choravam de

porta em porta a perda dos maridos, enquanto toda a aldeia

cantava canções tristes e de lamentações, batendo forte com os

pés no chão, produzindo um ruído que ao longe se ouvia.

No dia seguinte, ainda como parte do ritual, o tuxaua

cortou os cabelos de todos os feridos e a festa continuou por

seis dias, ou seja, tantos dias quanto foram os feridos a

recompensar.

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Quando os festejos terminaram, Jarí chamou o filho

mais velho para uma conversa em particular.

Ele queria saber se Jurupari já havia escolhido uma

esposa e tentou lhe falar sobre a importância do casamento,

assunto que Jurupari mantinha bem longe de sua realidade.

__ Estou velho, meu filho. Logo morrerei. Teu irmão ainda é

muito jovem e...

__ Pai. Não quero falar nisso agora. __interrompeu o

guerreiro.

__ Precisamos falar sobre isso sim. __ respondeu o tuxaua ao

filho relutante.

__ Não me casarei para agradar ninguém, pai.

__ Sei por que não quer falar sobre isso. Maldição! É isso que

você vai trazer sobre ti e sobre nosso povo.

__ Do que o senhor está falando? Que maldição é essa que eu

vou trazer? Não sei de nenhuma maldição.

__ Estou falando da maldita filha dos Maués que você insiste

em sonhar todas as noites. Por que meu filho? Com tantas

moças aqui pra você escolher. Mas você tinha que amaldiçoar

nosso povo. Tenho vergonha e medo que alguém descubra e

você perca a confiança e o respeito de nossa gente.

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__ Como você sabe disso? Alguém mais sabe disso? __

perguntou Jurupari preocupado.

__ Eu sei de tudo o que se passa com meu povo. Você não

precisa roubar essa moça para provar que é um grande

guerreiro meu filho. Nosso povo respeita você, seguem você e

não fazem isso por que és meu filho e sim por que te admiram.

Não estrague isso meu filho.

__ Eu não quero provar nada pra ninguém. O que eu faço, faço

por mim e por mais ninguém.

__ Mesmo contra minha vontade?__ perguntou Jarí, como que

testando a lealdade do filho.

__ Pai, eu não quero decepcioná-lo. Mas eu já desci o rio

várias vezes só para olhá-la. Eu sei que ela já me viu e à noite

o seu olhar me procura na escuridão da mata. Eu a quero e a

terei, pode acreditar nisso, ela será minha, nem que...__

Jurupari parou de falar e ficou pensativo.

__ Nem que o quê, Jurupari? __ perguntou Jarí, como que

desfiando o filho.

__ Nem que eu tenha que entrar lá e roubá-la de Piatã. E...

Vamos mudar de assunto. Isso é assunto meu e eu vou

resolver

Page 31: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

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__ Meu filho, Caiuá me falou que um novo inimigo virá.

Estou preocupado com isso. __Jarí Pôs as mãos nos ombros

do filho, entristecendo o semblante do rosto, enquanto falava

da nova profecia do pajé.

__ Pai... Quantas vezes eu preciso dizer que Caiuá está velho e

tem delírios. Não acredito num homem que se esconde atrás

de uma máscara.

__ Não fale assim meu filho. Caiuá é um grande feiticeiro. O

pai do meu pai nasceu e Caiuá já existia, meu pai nasceu e

Caiuá já existia, eu nasci e hoje estou velho e Caiuá não. Ele

sempre existirá e Tupã está com ele, o que ele fala, eu

acredito.

__ Pai, nossos guerreiros estão preparados para enfrentar

qualquer inimigo que a imaginação de Caiuá possa criar. Não

se preocupe. __ contestou Jurupari, demonstrando descrença

ao que acreditava serem delírios do Pajé.

__ Você zomba de nossas crenças Jurupari. Um dia o Grande

Espírito irá te mostrar que o que eu digo é a verdade. Cuidado

com o seu orgulho, ele pode envenenar seu espírito.

Naquela noite, Jarí não conseguiria dormir preocupado

com a profecia do pajé. Sem o tuxaua imaginar, atrás da

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maloca o jovem Jacamim ouvira toda a conversa que teve com

Jurupari.

Page 33: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

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Jurupari caminhou na mata durante horas, depois se

sentou a beira de um igarapé e se pôs a pensar no que fazer. A

moça que roubara seu coração era Janaína, filha de Piatã, o

temido chefe dos Maués. Ela seria disputada pelos maiores

guerreiros da aldeia inimiga, juntamente com outras moças

solteiras, na famosa festa das “veaperiás”, a festa das

tucandeiras, uma espécie de formiga negra avermelhada, do

tamanho de um marimbondo, as tucandeiras eram festejadas

todo ano pelos Maués, por ocasião da grande colheita do

guaraná.

Seria a oportunidade ideal para Jurupari roubar

Janaína, embora ele ainda não soubesse que ela seria uma das

moças disputadas.

Não havia ato de bravura e valentia maior, do que

invadir a aldeia inimiga e raptar uma jovem para se casar com

ela. Imagine a filha do próprio tuxaua.

Page 34: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

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O homem que cometia tal feito era aclamado pelos

guerreiros de sua tribo e conseqüentemente jurado de morte

pelos inimigos, o que para Jurupari não seria novidade, já

estava jurado de morte mesmo. A cabeça do “cortador de

cabeças” já estava a prêmio há tempos, ele era sem dúvida o

inimigo mais perseguido por aldeias dos Maués espalhadas

por toda aquela região.

“Os festejos dos Maués começam amanhã, preciso

aproveitar que todos estarão ocupados e raptar Janaína.

Depois que ela for minha, nenhum homem se atreverá a tentar

pegá-la de volta.”

Pensou o líder Munduruku, convicto da idéia de raptar

a moça, tentando bolar um jeito de entrar lá e ainda continuar

vivo.

O calor da noite o levou pra dentro da água fria do

igarapé, onde o guerreiro pôde relaxar um pouco sem desviar

seus pensamentos da loucura que estava para fazer. De repente

ele levantou-se decidido: Precisava vê-la, mesmo que de

longe.

Jurupari conhecia a floresta como ninguém, todos os

caminhos, todos os atalhos, e quando o dia estava para

amanhecer ele já estava observando de dentro da mata a aldeia

Page 35: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

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dos Maués. Com todo o cuidado para não ser percebido ele

procurou, mas não a encontrou.

Não conseguiu ver a moça e o céu ainda estava escuro.

Ele imitou uma coruja, ela entendia o sinal e se ela estivesse

por perto apareceria com toda a certeza e ele a veria mesmo

que de longe. Mas dessa vez a jovem índia não apareceu.

Jurupari ficou nitidamente desapontado, repetia o som

da coruja e nada. Quando de repente ecoou na mata o canto de

um pássaro, era um canto lindo. O cantar mais belo de todos

os pássaros. O canto do uirapuru. Jurupari ouviu em silêncio e

esperou. Então ouviu um barulho vindo de trás e virou-se. De

dentro da escuridão ela surgiu linda, com um sorriso radiante,

fazendo o guerreiro “cortador de cabeças”, parecer um

menino.

__ Pensa que só você sabe imitar pássaros? __ falou-lhe

baixinho, quase que sussurrando. __ mas Jurupari não tinha

palavras, sua garganta estava seca, não conseguia nem sequer

piscar os olhos, estava literalmente enfeitiçado e pela primeira

vez, os dois estavam tão próximos, ele tentou falar, mas não

conseguiu. Não sabia o que dizer.

__ Eu...

Page 36: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

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__ Não precisa dizer nada.__ interrompeu Janaína. __ Vim lhe

pedir que não se arrisque mais para me ver. O meu povo quer

matar você.

__ Eu farei qualquer coisa por você. Venha comigo. __ disse

Jurupari.

__ Não! Não posso fazer isso com meus pais, com meu povo.

Não desonre o nosso amor. __ implorou Janaína.

__ É por esse amor que farei isso. É pelo nosso amor que

sempre vou lutar por você.

__ Nosso amor é impossível guerreiro. Somos inimigos.

__ Eu não sou teu inimigo. Eu... Eu te amo. __ disse o

guerreiro vencido.

__ Mas não ama o meu povo.__ e continuou.__ Assim como

meu povo não ama o teu povo. Nunca haverá paz, então nunca

ficaremos juntos. Desista, antes que seja tarde.

__ Já disse que farei qualquer... __ enquanto tentava explicar

seu amor, Jurupari foi interrompido por Janaína em tom de

despedida:

__ Não fará nada. Meu pai nunca aceitará uma traição assim,

por isso, vá embora.

Page 37: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

39

Jurupari se aproximou, tocou seus cabelos e alisou seu

rosto, sem conseguir parar de olhar para seus lábios que

brilhavam refletindo a luz da lua no molhado de seu salivar.

Lábios tão convidativos e irresistíveis que num ímpeto

ele a puxou e a beijou, deixando Janaína sem condições de

esboçar qualquer reação. Parecia um sonho. Era um sonho que

ele queria que nunca tivesse fim.

__ Preciso ir.__ ela falou, afastando-o e deixando-o aflito.

__ Fuja comigo, por favor. __ implorou o guerreiro. __ Vamos

embora daqui, procurar um novo caminho, uma nova terra.

Seremos só você e eu: o sol e a lua.

__ Não posso. Não seria correto. Devo honrar meus pais e o

meu povo. Siga seu destino, eu seguirei o meu.

__ Não desistirei de você Janaína. Lutarei por você até o fim.

__ Não consegue ver que mais guerras só me magoariam

mais, só nos afastaria mais um do outro. Não quero mais ver

meu povo morrendo em suas mãos. Não quero ver você

morrer também e nem os que você ama, pois são importantes

pra você. __ Depois de dizer essas palavras em meio às

lágrimas, a jovem correu, o deixando lá, paralisado,

embriagado de paixão, vendo-a sumir na mata.

Page 38: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

40

OS MAUÉS

“Os pensamentos são como flechas, uma vez lançadas

alcançam o seu alvo. Seja cauteloso ou poderá um dia ser sua

própria vítima.” (Provérbio indígena)

Cultivar o guaraná. Essa era a principal atividade dos

vizinhos hostis dos Munduruku.

Os povos Maués desfrutavam das águas tanto do rio

Tapajós como do rio Madeira.

Na aldeia tudo estava pronto para a tão esperada festa

das veaperiás. Apesar da grande quantidade de mortos e

feridos, em conseqüência da última peleja contra o inimigo

vizinho, comemorariam a colheita do guaraná normalmente.

Para os Maués, o guaraná tinha uma grande

importância e um significado muito especial. Acreditavam

Page 39: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

41

que prolongava a vida e com muito carinho produziam uma

espécie de elixir da longevidade que era saboreado por todos.

Tinham a crença na lenda de que o guaraná havia brotado dos

olhos de um indiozinho morto pelo deus do mal que se

transformou em serpente para matar a criança. Os Maués

então enterraram os olhos do menino e meses depois brotou

um pé de guaraná, um presente de Tupã.

Page 40: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

42

Enquanto a aldeia se preparava para o início dos

festejos, Jurupari não fora embora e aguardava escondido na

mata, observando de longe os passos dos Maués, ao mesmo

tempo em que pedia proteção ao Pássaro Sagrado.

“Pássaro Sagrado, tu que conheces o passado, o presente e o

futuro de todos, ajude-me a triunfar e conseguir minha

Janaína.”

Seus pensamentos foram interrompidos pelo som

alguém que caminhava na mata e estava bem próximo. O

guerreiro então, como uma onça, se preparou para atacar o

suposto inimigo empunhando sua faca e esperou.

O vulto estava cada vez mais próximo fazendo com

Jurupari segurasse mais firme a faca afiadíssima, respirou

fundo e segurou o ar nos pulmões.

Jurupari sabia que qualquer barulho chamaria a

atenção dos Maués e isso significaria sua sentença.

O guerreiro procurou manter-se em silêncio e aguardar

o desconhecido que se aproximava. De repente o intruso

passou pela árvore e Jurupari o atacou.

Page 41: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

43

O guerreiro rapidamente tapou sua boca e quando ia

desferir o primeiro golpe certeiro, olhou em seu rosto e se

espantou. Era Jacamim.

O irmão o seguira o tempo todo desde que ouvira a

conversa dele com o pai. Estava pálido e tremendo sem parar.

Dava pra ver a expressão da morte em seus olhos.

__ Jacamim, o que está fazendo aqui? Você perdeu o juízo?

Quase mato meu próprio irmão. Volte já pra casa!__

desabafou Jurupari.

__ Não. Vou ficar aqui e te proteger. __ rebateu Jacamim, sem

se importar com as ordens do irmão.

__ Não diga bobagens. Volte agora! Aqui não é lugar para

crianças. __ ordenou mais uma vez o guerreiro, sem sucesso.

__ Eu não sou criança e sei muito bem o que você veio fazer

aqui.

__ Sabe o quê? __ perguntou surpreso Jurupari.

__ Isso mesmo. Eu ouvi toda a conversa que você teve com

nosso pai. Por isso vim te ajudar. __ insistiu Jacamim.

__ Quer ajudar? Então fique quietinho aqui e não se mova.

Page 42: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

44

Movido por uma força estranha, Jurupari aproximou-se

da aldeia, escondendo-se por trás da vasta plantação dos

Maués. Mil pensamentos o atormentavam, pensou em desistir,

retroceder, mas já era tarde.

Precisava daquele beijo mais do que tudo. Não havia

guerra, honra ou medo, não havia mais nada, apenas a

lembrança viva dos lábios de Janaína encostados nos seus num

beijo inocente e cheio de descobertas. O guerreiro estava

rendido.

“E se eu fosse lá e pedisse ao..., não, não posso fazer isso.

Jamais me deixariam sair vivo.” __ pensou por um instante.

Jacamim observava do alto de uma grande árvore os

passos do irmão, ao mesmo tempo em que no fundo de seu

coração admirava a coragem de Jurupari, o achava um louco

por tentar ficar com Janaína dessa forma.

De onde vinha tanta bravura, arriscar a vida por uma

mulher, um amor proibido, impossível. Correr um risco

desses, com a possibilidade de perder a posição de guerreiro, o

prestígio, os amigos, o respeito da tribo, perder os pais. Por

um instante o jovem se perguntou: “será que vale a pena?”.

Page 43: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

45

Com tantas moças lindas em sua aldeia, pra quê um

desafio tão grande?

Desafiar os Maués, sozinho, parecia uma grande

burrice. Mas ele estava lá e morreria por Jurupari, se fosse

preciso, lutaria, enfrentaria qualquer um que tentasse ferir seu

herói.

Page 44: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

46

Enquanto Jacamim viajava em seus pensamentos

tentando decifrar a mente do irmão guerreiro, Jurupari foi em

busca do seu sonho suicida. O guerreiro rastejava entre a

vegetação, espreitava, buscando uma forma de se aproximar

cada vez mais sem ser notado, precisava ser um fantasma. E

de onde estava conseguiu ver quando o povo começou se

reunir no centro da aldeia: A festa estava para começar.

Não podia se aproximar muito naquele momento.

Resolveu esperar o início da festa, onde todos estariam

distraídos, envolvidos nas comemorações, para se aproximar e

contemplar sua amada. Por enquanto, sua tentativa de vê-la

era vã.

Page 45: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

47

AS SETE PROVAS

“Quanto mais esperto o homem se julga, mais precisa de

proteção divina para defender-se de si mesmo.” (Provérbio

indígena)

Dores intensas, náuseas, inflamações, calafrios, febre e

até a morte. Estas eram algumas das conseqüências das

picadas da tucandeira, mas os Maués pareciam ignorar e a

tratavam como uma divindade.

Admiravam seu estilo de vida e sua sabedoria, diziam

que as tucandeiras compreendem o mundo melhor do que os

homens, pois se reuniam para construir no mundo subterrâneo

enormes palácios, onde acumulavam em depósitos alimentos

necessários para todas durante o inverno.

Page 46: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

48

E por essa admiração os Maués faziam a festa anual

de veaperiás, juntamente com a festa da colheita do guaraná

que também já era tradição, com cantos de exaltação lírica

para o trabalho e o amor, e cantos épicos ligados às guerras.

Da maloca de Piatã partiu o primeiro sinal. A este

aviso começou a caçada às formigas venenosas, onde

mulheres e crianças se empenhavam em caçar o maior número

de formigas possíveis. Era uma verdadeira corrida onde o

objetivo era conseguir mais e mais tucandeiras para as provas.

Após a caçada, as formigas foram jogadas num

recipiente com água para ficarem meio que entorpecidas e

somente depois seriam colocadas numa espécie de luva feita

de palha urdida, de modo que incrivelmente, só os ferrões

ficassem para o lado interno da luva.

Então, durante os festejos se realizariam as sete provas

de valentia, onde os grandes guerreiros e os aspirantes a

guerreiro da aldeia participariam.

O teste consistia simplesmente em por uma das mãos

na luva cheia de tucandeiras e agüentar as conseqüências

firmemente. Os casados participavam para mostrar coragem às

esposas, já os solteiros para impressionar uma pretendente,

que o escolheria para marido pela sua bravura.

Page 47: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

49

Nas três primeiras provas as formigas, ainda

adormecidas, ficavam em contato com as palmas e as costas

da mão, nas três seguintes, braços e antebraços.

A última prova era a mais impressionante e cruel, pois

as tucandeiras ficavam soltas dentro da luva, que ficava

amarrada na mão do candidato a valente, o tuxaua então

puxava de seu cigarro uma baforada e soprava dentro da luva,

desesperando as formigas e daí por diante só os mais fortes e

valentes suportavam tamanha dor, o que causava grande

euforia na aldeia.

Page 48: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

50

A noite chegou e uma grande fogueira iluminava a bela

aldeia dos Maués. Jurupari observava o movimento festivo de

longe. De repente viu quando Janaína passou em direção à

maloca de seu pai. Lá estava a belíssima jovem, toda

enfeitada, com adornos e grandes penas. Estava mais linda

ainda.

A festa estava começando: era chegada a grande hora.

O guerreiro Munduruku sabia por que estava ali, mas

ainda não sabia o que fazer para sair dali levando a moça.

Piatã deu o segundo sinal e os cânticos começaram,

com tambores e apitos de taquara anunciando a apresentação

dos candidatos a valente.

Os homens, cada um com seus enfeites de guerreiro,

com adornos, penas e pinturas, formaram uma grande

circunferência em volta da maloca do tuxaua; no círculo

ficaram as mulheres e no centro o chefe com as luvas.

Page 49: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

51

Os candidatos se apresentaram para dançar no interior

do círculo, enquanto Jurupari se aproximava mais e se

escondia por trás duma maloca. Foi quando se deu conta do

que estava pra acontecer.

Piatã chamou as moças solteiras que seriam disputadas

pelos candidatos, e no meio delas estava sua amada.

Jurupari tomou um grande susto. Não estava

acreditando no que via: sua amada estava para ser disputada

juntamente com as outras moças e poderia vir a ser de

qualquer um daqueles homens que estavam ali. O que ele

faria?

Então, naquele momento, o maior de todos os

guerreiros Munduruku se desesperou, não podia deixar passar

aquela oportunidade. Seus pensamentos foram interrompidos

pelos gritos da multidão.

O ritual prosseguia e um guerreiro mais afoito se

apresentou ao tuxaua e estendeu o braço, começavam então as

sete provas. Janaína mostrava-se triste e preocupada e Piatã

queria encontrar logo um genro valente para dar continuidade

a sua geração.

Page 50: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

52

Um a um os guerreiros se apresentaram para pôr a

coragem à prova. Desistir nem pensar. Além de vergonhoso,

era ultrajante e humilhante um homem desistir antes do

término das provas. Mas as tucandeiras também cumpriam seu

papel muito bem e começaram a se ouvir os gritos.

A sétima prova era a mais cruel. O candidato colocou a

luva, as formigas estavam soltas quando o chefe deu uma

baforada no cigarro e soprou dentro, foi quando o homem

começou uma dança diabólica dando urros e saltos.

O povo gritava e vibrava. Jurupari estava pasmo,

impressionado com aquilo, pois já havia sido picado por uma

tucandeira e sabia o quanto doía, imaginou então dezenas

delas.

O candidato desmaiou e só então Piatã mandou tirar a

luva e levá-lo para a maloca. O povo ria e se divertia, a

colheita do guaraná tinha sido farta e todos estavam

satisfeitos.

__ O próximo! __ gritou o chefe.

Fez-se um silêncio por alguns minutos na aldeia, o

povo todo quieto aguardava ansioso para ver o próximo

candidato a valente. Eles sabiam que a luva só poderia ser

Page 51: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

53

tirada por uma das jovens que gostando do candidato, se

oferecesse para livrá-lo do sofrimento, escolhendo-o para

esposo. Caso contrário, a agonia só terminava com a ordem do

chefe, que era impiedoso.

Os Maués maravilhavam-se com a festa, adoravam

tudo aquilo e divertiam-se com as provas.

Piatã não pretendia casar a filha com qualquer um,

afinal de contas, seu outro filho só tinha doze anos e o chefe

temia pelo futuro dos Maués, caso a morte o levasse.

__ O próximo! __ insistiu o chefe. __Será que não temos mais

valentes?

__ Eu! __ alguém gritou. Todos procuravam ver quem era o

tal candidato, já que o grito não saíra do círculo.

__ Quem falou? Apresente-se! __Ordenou o tuxaua.

__ Eu. Jurupari. O filho do sol.__ gritou o guerreiro, fazendo

com que todos se espantassem e Jacamim quase cair da

árvore.

__ O que o louco do meu irmão está fazendo? __ perguntou a

si mesmo o jovem Jacamim enquanto descia desesperado para

conseguir ajuda.

Page 52: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

54

Jurupari então saiu do esconderijo e aproximou-se da

multidão. De repente alguém gritou:

__ É o “cortador de cabeças”! Segurem-no! Pegue esse

maldito cortador de cabeças.

__ Estou desarmado Piatã. Eu venho em paz. __ Disse

Jurupari enquanto levantava as mãos.

__ Parem! __ gritou o tuxaua. O que veio fazer aqui

desarmado, maldito guerreiro Munduruku? __ enquanto isso

os Maués procuravam ao redor por mais inimigos, temendo

estar havendo uma invasão.

__ Eu estou só e desarmado. Já disse que vim em paz.

__ O que você quer? Veio se entregar para morrer? __ a essa

altura Jurupari já estava sendo rodeado pelos guerreiros que

estavam ávidos por matá-lo.

__ Quero apenas participar da prova. __ respondeu Jurupari ao

tuxaua.

__ Não pode participar, pois não és um dos nossos. Não és um

guerreiro Maués e sim um maldito inimigo, um maldito

Munduruku. O mais procurado cortador de cabeças,

estávamos ansiosos por esse dia. __ disse a Jurupari que

estava cercado por guerreiros prontos para acabar com ele ao

primeiro sinal de Piatã. Mas o chefe precisava ser justo.

Page 53: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

55

__ Vamos acabar logo com isso Piatã. Deixe-me cortar a

cabeça desse infeliz. __ disse o líder dos guerreiros Maués.

__ Calma! Não matamos homens desarmados. Os Maués não

são covardes. __ respondeu o chefe. Janaína não sabia o que

fazer, estava atônita.

__ O que quer provar, Jurupari? __Piatã lhe perguntou.

__Quero apenas participar da prova. Eu amo sua filha e quero

ser o escolhido dela.

__ Mate-o Piatã. Ele veio aqui afrontar nosso povo, afrontar

nossa honra. __ gritou um guerreiro.

Os Maués estavam indignados, mas jamais

contestariam a decisão do tuxaua.

__ E por que não tentou roubá-la de mim Jurupari?

__ Porque não seria correto. Eu estaria desonrando a sua casa.

Somos inimigos, mas o respeito como guerreiro e como

grande tuxaua dos Maués. __ o chefe precisava tomar uma

difícil decisão, não podia simplesmente matar Jurupari de

forma covarde.

__ Porque acredita que não irei matá-lo? Está vendo esses

homens, todos eles, sem exceção, todos eles adorariam ter a

honra de cortar sua cabeça.

Page 54: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

56

__ Ainda que me mate, grande chefe dos Maués, eu morrerei

por algo em que acredito e não carregarei o arrependimento de

não ter tentado. Deixemos a guerra de lado neste momento e

tudo que eu peço é a chance de uma disputa justa por sua filha.

Se ela não me quiser, eu desistirei. Você me tem nas mãos,

você julgará se eu mereço ou não.

__ O deixem passar. Muito bem, façamos o seguinte: se você

agüentar a sétima prova, sem gritar ou desmaiar, será então o

guerreiro das veaperiás e sairá daqui vivo, porém se fracassar,

nós cortaremos a sua cabeça e com certeza saberemos muito

bem o que fazer com ela.

__ E quanto a Janaína? __ perguntou Jurupari.

__ Preocupe-se primeiro com sua vida. Primeiro você tem que

continuar vivo. Você está aqui lutando para continuar

vivendo. __ Jurupari calou-se.

Os olhos da moça brilhavam em direção ao guerreiro.

Piatã parecia ter a certeza que o Munduruku não venceria as

provas.

Jurupari então começou uma dança estranha, sobre o

olhar atento de toda a aldeia, fazendo com que o círculo se

abrisse cada vez mais ao seu redor.

Page 55: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

57

Enquanto o “novo candidato” a valente batia forte com

os pés no chão, o jovem Jacamim remava a favor da maré com

todas as suas forças para buscar ajuda.

Page 56: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

58

O guerreiro Munduruku mais uma vez surpreendeu a

todos os presentes, dançando e cantando. Sua dança parecia

coreografar um pássaro alçando vôo, batendo suas asas num

vôo ora rasante, ora entre as nuvens mais altas:

“Eu vou cantar como o urutau,

ele é o Pássaro Sagrado

todos temem ao seu canto,

um dia eu aprenderei a língua da selva,

um dia eu aprenderei a língua dos animais,

eu aprenderei a língua dos pássaros,

eu aprenderei a língua dos peixes,

um dia eu voarei,

um dia eu verei a alma dos homens,

como o olho que tudo vê,

um dia eu voarei e cantarei como o urutau.”

Page 57: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

59

Jurupari parou de dançar, virou-se para Janaína e

gritou com todas as suas forças para que os Maués ouvissem:

“Teu olhar é fogo

Que ilumina meu ser

Teu olhar me guarda

Então o mal posso ver

Teu olhar me fortalece

“Então eu sei que posso vencer.”

Janaína sorriu para o rapaz, sentindo-se a mulher mais

amada do mundo. Mas ao mesmo tempo em que estava feliz

por sentir tanto amor, estava insegura e com medo do que

poderia acontecer.

A coragem de Jurupari não impressionava só ao

tuxaua, mas principalmente a Janaína que jamais poderia

imaginar que aquela troca de olhares, um dia fosse tomar

tamanhas proporções.

Jurupari se aproximou de Piatã. Aquele dia entraria pra

história dos Maués para sempre e muitos não acreditariam que

isso realmente aconteceu.

Page 58: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

60

__ Está pronto, cortador de cabeças? __ perguntou o tuxaua.

__ Estou pronto. E se eu fracassar, não cortem só a minha

cabeça, cortem todo meu corpo e joguem os pedaços às onças.

__ falou enquanto estendia a mão direita.

__ As duas mãos, Jurupari. Serão duas luvas. Se o tal “pássaro

sagrado”, a quem você vive rezando, pode ajudar você com

uma, poderá então com as duas luvas também.

O chefe arrancou risos da platéia. Jurupari estendeu as

duas mãos e sentiu as formigas andando lentamente dentro das

luvas, ainda tontas por causa da água.

Ele olhou mais uma vez para Janaína, que estava

abraçada à sua mãe que tentava acalmar a jovem que se

encontrava aflita.

__ Quanto tempo eu ficarei com as luvas? __ perguntou

Jurupari ao tuxaua.

__ O tempo que eu julgar necessário. Por acaso quer desistir?

__ ironizou Piatã.

__ Não tenho medo de onças, por que teria de formiguinhas?

__ rebateu Jurupari.

Page 59: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

61

Mas as tais “formiguinhas” começaram a acordar.

Piatã acendeu o cigarro enquanto Jurupari olhava ao redor e

percebia que os guerreiros já estavam se preparando para

massacrá-lo caso ele falhasse. As formigas acordavam aos

poucos, a medida que os efeitos anestesiantes da água ia

passando, fazendo com que uma sensação estranha deixasse

Jurupari preocupado.

“Vou até o fim.” Pensou o guerreiro Munduruku,

enquanto sentia as mãos fervilhando. “Eu não sentirei a dor.”

Page 60: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

62

Jurupari tentava se concentrar, enquanto o chefe dava a

primeira baforada. Piatã soprou a fumaça primeiramente na

mão direita, fazendo com que as tucandeiras ficassem

enlouquecidas.

Então começou: Uma picada, duas, três... O guerreiro

segurou o grito, fechou os olhos, instintivamente contorcendo

o corpo como se fosse abaixar e nessa hora se lembrou das

palavras do feiticeiro: “sofrerá pelos que fez sofrer.”

As dores eram mais intensas, mas Jurupari resistia

firme.

Piatã soprou a fumaça na mão esquerda e as picadas

aumentaram nas duas mãos.

“A dor é para os fracos, eu sou o filho do sol, ela não

existe pra mim.”

O guerreiro ficou tonto e sentiu quando as malditas

tentavam sair por causa da fumaça e subiam pelo antebraço.

Sua cabeça rodou, seu corpo amoleceu; outra picada e

mais outra. Jurupari rangia os dentes, deixando transparecer a

intensidade das dores que sentia.

Page 61: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

63

Era, sem dúvida, o maior desafio de sua vida e não

sabia quanto tempo mais agüentaria. Por um instante ele se

arrependeu de ter menosprezado o ritual dos Maués. Agora

sabia que pra agüentar as sete provas, tem que ser realmente

um bravo.

Eram muitas picadas, nas duas mãos e antebraços,

fazendo com que os efeitos da picada da tucandeira ficassem

visíveis no corpo de Jurupari. Ele começou a sentir calafrios,

suava sem parar e parecia sentir quando cada ferrão era

introduzido em sua carne causando uma reação imediata em

todo o corpo. O pretendente a valente precisava manter-se

consciente, lúcido e principalmente vivo, ainda não era hora

de morrer, não assim, sem ao menos lutar.

Page 62: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

64

O ATAQUE

"Quando compreendermos profundamente a verdade dos

nossos corações, saberemos louvar, amar e agradecer ao

Grande Espírito." (Provérbio indígena)

Jurupari caiu de joelhos com os olhos fechados. A essa

altura, as incontáveis lágrimas já molhavam sua face. Nenhum

guerreiro até aquele dia agüentara tanto tempo e com duas

luvas. Piatã era impiedoso. Janaína, abraçada a mãe chorava

por ele.

O guerreiro Munduruku pôs o rosto no solo e esfregou

com força, mas de sua boca não saiu uma só palavra, nenhum

gemido.

Page 63: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

65

Eram muitas formigas e ele começou a rolar pelo chão,

estava quase para sucumbir sob os olhares famintos dos

guerreiros Maués que sonhavam com aquela vingança.

__ Pare! __ o grito de Janaína se ouviu na aldeia. __ Pare

papai. Eu vou soltá-lo agora. __ disse Janaína, desafiando o

tuxaua diante de todo o povo.

__ Ainda não! Só quando eu mandar. __ retrucou Piatã.

__ São as regras papai. Nem você, nem ninguém podem

quebrá-las. Se eu quiser me casar com o valente, posso livrá-lo

da dor. E eu quero!

__ Não minha filha, fique aqui. __ disse-lhe Jací, sua mãe.

__ Não posso mais deixá-lo sofrer mamãe. Ele já agüentou

mais que qualquer um. Quero que isso pare agora. Eu posso

fazer parar as provas, posso parar o sofrimento do valente se

eu o escolher. Eu o escolho.

Piatã silenciou-se perante o argumento da filha, não

podia quebrar as regras e mudar a tradição e Jurupari tinha

provado que merecia viver. Janaína começou a desamarrar as

luvas sob os olhares revoltosos do povo e dos guerreiros.

Page 64: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

66

O guerreiro a olhou nos olhos com o rosto molhado de

lágrimas e suor, já não sentia mais as mãos, ela alisou sua

fronte tentando confortá-lo. Jurupari sentiu que ia desmaiar,

mas tentou com todas forças manter-se lúcido.

__ Eu serei tua, guerreiro dos guerreiros. Meu coração

pertence a ti. __ disse-lhe, enquanto ele tentava se levantar.

Piatã se aproximou.

__ Você pode viver. E é só! Para ficar com minha filha, você

teria que ser um dos Maués e você não é. Você é e sempre

será um maldito Munduruku e não vai levar minha filha.

Jurupari ainda estava tonto e desnorteado, mas ouvia

atentamente o que o chefe dizia, não poderia se casar com

Janaína, tanto sacrifício por nada, tanta dor, tanta coragem e

agora não tinha forças para lutar com eles e levar a moça.

__ Papai. Deixe-me ir com ele. Será que teremos que viver

sempre nessa guerra maldita?

__ Chega Janaína! __ gritou o tuxaua. __ Eu já decidi, se ele

quer minha filha, se realmente quer você, não irá embora, terá

de se tornar um dos nossos. Aceitará ser mais um de nós, um

Page 65: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

67

Maués e passará a morar aqui em nossa aldeia, cortando

relações com o povo dele. E se o fizer, será um maldito

traidor. Não se pode mudar o destino minha filha.

Janaína ficou quieta e abraçou Jací. Sabia que Jurupari

não trairia seu povo, que não aceitaria tal proposta.

Numa última tentativa, ele rastejou pelo chão em

direção ao tuxaua, esforçou-se um pouco mais e levantou-se,

olhou para Piatã com um olhar decidido.

__ Eu aceito! __ disse sem pensar. __ Eu fico aqui. Aceito

qualquer coisa para ficar com ela.__ Piatã não acreditou no

que ouvira. Janaína correu em sua direção e o abraçou.

De repente, Jurupari ouviu uma forte e extensa risada

ecoar pela aldeia. Era a risada de Caiuá, martelando forte em

sua cabeça. Jurupari lembrou-se mais uma vez das palavras do

pajé: “gostaria de ser um deles?”.

O feiticeiro parecia atormentá-lo, sua consciência

pesou, sentiu medo e sentiu-se envergonhado por renegar a

seu próprio povo. Sentiu-se um traidor e jamais receberia o

perdão de seu pai, seus amigos, seus guerreiros. Mas já estava

feito e o pajé continuava a atormentá-lo em seus pensamentos:

Page 66: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

68

“odeia tanto assim os Maués?”

“gostaria de ser um deles?”

Por um instante isso o torturou tanto que sentiu seu

coração espremer dentro do peito, fazendo-o esquecer da dor

que sentia nas mãos.

O cortador de cabeças, o mais temido de todos os

guerreiros Munduruku, estava ali, humilhado e implorando

para ser um dos Maués.

Sem conseguir se levantar e tentando se livrar da voz

do feiticeiro que continuava a persegui-lo sem parar sentiu-se

o maior dos traidores e o mais fraco dos homens.

Por um instante chegou a conclusão que melhor seria

ter matado Piatã e ter levado Janaína na marra, assim pelo

menos ainda teria o respeito do seu povo.

Mas já era tarde para se arrepender e precisava encarar

os fatos: Estava nas mãos dos Maués.

Page 67: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

69

Enquanto o povo se agitava na aldeia para saber o que

o tuxaua faria com Jurupari, o irmão do guerreiro continuava

sua corrida em direção ao território Munduruku. Era uma

caminhada longa e ele não conhecia todos os atalhos que o

irmão dominava.

Jacamim só conseguia pensar no que estava

acontecendo naquele exato momento com seu irmão no meio

de tantos índios inimigos. Se tomara a decisão correta em ir

atrás de ajuda para resgatá-lo, se é que ele ainda estava vivo,

ou se devia ter ficado lá e lutado para morrerem juntos.

Enquanto isso na aldeia dos Maués, um barulho

enorme se ouviu por todos, como uma explosão de um trovão.

Ninguém tinha ideia do que estava acontecendo, e a

aldeia estava completamente desprotegida.

Page 68: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

70

__ O que está acontecendo aqui? __ perguntou o chefe.

__ Estamos sendo atacados. Corram, protejam-se todos. __ os

guerreiros Maués gritavam alertando o povo, enquanto

tentavam coordenar uma resistência, mas não sabiam sequer

de onde vinha o ataque.

Janaína continuou tentando desamarrar as luvas, mas

não conseguiu. Jací a puxou pelo braço, para que pudessem

fugir.

Jurupari caiu ao chão ainda tonto. Foi quanto abriu os

olhos e viu que os homens que atacavam a aldeia eram

diferentes. Eram guerreiros brancos.

Os inimigos brancos eram muitos e os guerreiros

Maués tentavam resistir. Tudo em vão.

Os homens brancos puseram fogo nas malocas,

mataram os animais, os guerreiros, velhos e crianças. Os

Maués lutaram bravamente, com flechas e facas, mas nada se

comparava com a força daqueles invasores.

Os novos inimigos eram cruéis e impiedosos, tinham

armas que cuspiam fogo e matavam a todos que estivessem no

caminho.

Page 69: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

71

__ Janaína, Janaína. __ Jurupari procurava por sua amada no

meio do caos, mas não conseguia ver muita coisa.

Também sabia que se ficasse ali morreria e procurou

correr até a margem do rio. Correr era praticamente

impossível, os efeitos das inúmeras picadas das tucandeiras

estavam apenas começando.

Durante o trajeto, Jurupari tropeçou e caiu mais uma

vez, foi quando viu ao seu lado Piatã, o tuxaua tinha sido

atingido e tinha dificuldades pra respirar. Piatã estendeu-lhe a

mão e o guerreiro segurou-a forte.

O tuxaua estava muito ferido e com dificuldade tentou

proferir algumas palavras antes de morrer.

Page 70: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

72

Olhou Jurupari nos olhos e falou:

__ Quem são eles?

__ É uma tribo de demônios. São demônios que vieram de

longe para destruir os povos da floresta. __ respondeu Jurupari

lembrando-se da profecia do pajé.

__ Guerreiro, você agora é um dos nossos, salve minha filha e

proteja nossa terr...__ Piatã não conseguiu terminar a frase e

morreu, segurando o braço de Jurupari.

O guerreiro, caído ao chão pensava no que fazer,

porém não podia fazer nada, a aldeia estava sendo destruída,

queimada, havia muita fumaça e a única esperança era

conseguir chegar ao rio.

Num último raio de força ele correu, correu muito, sem

olhar para trás, e numa força sobre-humana, pisou em uma

pedra e saltou para se jogar nas águas. As luvas ainda estavam

em suas mãos, frouxas, pois Janaína havia tentado soltá-las,

num ultimo ato consciente, enquanto pulava, num lapso de

segundo, ainda no ar, o guerreiro olhou para a aldeia e viu

quando Jací, Janaína e Guaraci eram amarradas, era como se

aquele momento parasse no tempo.

Page 71: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

73

Uma fila de homens, mulheres e crianças foi feita.

Todos amarrados pelo pescoço e mãos uns aos outros, como

animais.

Os que se renderam foram separados, os que lutaram

foram mortos. Poucos se rendiam. Só os mais jovens, os

bravos guerreiros das tribos eram logo mortos.

Os guerreiros brancos eram comandados por um

homem alto, de barbas longas, mas Jurupari olhou bem para

ele, jamais esqueceria aquele rosto. Porém um detalhe chamou

a sua atenção, um detalhe muito estranho: o homem branco

carregava às costas um pariuá-á, uma cabeça mumificada e

essa cabeça ele só podia ter conseguido em um lugar.

Enquanto fitava o inimigo, sua cabeça rodou e ele se

deixou cair no rio, ao mesmo tempo em que pensou: “como

ele conseguiu esse pariuá-á?”. Depois desmaiou e as águas

do rio o levaram, fazendo com que as luvas se soltassem de

suas mãos.

Page 72: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

74

O SANTUÁRIO

“Tudo está ligado, como o sangue que une uma família.

Todas as coisas estão ligadas. O que acontece a Terra recai

sobre os filhos da Terra. Não foi o homem que teceu a trama

da vida. Ele é só um fio dentro dela. Tudo o que ele fizer à

teia estará fazendo a si mesmo." (Provérbio indígena).

Quando Jacamim chegou próximo à aldeia, ele já

quase não tinha forças, seu coração estava acelerado, e sua

respiração ofegante. Remara e correra horas sem parar um

minuto sequer. O jovem nem imaginava o que havia

acontecido no território dos Maués.

Ele abria caminho dentro da mata quando, de repente,

avistou fumaça vinda da aldeia. Correu um pouco e parou

estarrecido sem acreditar no que via. Tudo estava

Page 73: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

75

completamente destruído, as malocas queimadas, animais

mortos e corpos por toda parte.

Ele ainda ouvia gemidos, mas não era possível

identificar de onde vinham. O choro era inevitável enquanto

corria até a maloca de seus pais e logo na entrada da casa

queimada contemplou o corpo do pai.

Jarí estava estendido com os braços abertos e um

ferimento mortal no peito.

Imaginou a cena em sua mente: o pai tentou proteger o

lar. Então um pavor tomou conta dele, entrou em prantos ao

pensar que os corpos da mãe e dos irmãos mais novos estavam

carbonizados no interior da maloca quase que totalmente

destruída.

Ele agarrou-se ao corpo do pai e chorou, tentando

imaginar quem poderia ter feito tamanha atrocidade; sabia

apenas que tal tragédia não era obra dos Maués e sim de

algum inimigo maior e mais forte.

Tudo estava destruído e Jacamim se viu diante de seu

maior medo: perder tudo.

Jacamim se lembrou de Caiuá o feiticeiro e se dirigiu

até sua maloca. Ele caminhou aterrorizado por entre corpos

Page 74: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

76

lentamente até a maloca do pajé; olhou dentro dela e

encontrou apenas uma das máscaras de Caiuá.

Mas ainda lhe restara o irmão, que ele nem sequer

sabia se estava vivo ou não.

“Preciso ser forte. Preciso encontrar Jurupari e lhe

contar o que aconteceu com nosso povo.” __ pensava o jovem

Jacamim desconsolado.

Sem perder tempo Jacamim rapidamente preparou a

canoa para voltar sozinho ao território dos Maués em busca do

irmão.

Enquanto o menino Munduruku remava, uma chuva

fina começou a cair, fazendo com que a água que molhava seu

rosto se misturasse com as lágrimas que brotavam de seus

olhos.

“Pássaro Sagrado, maior é a minha dor que este rio,

maior é a minha dor que esta selva. Porque não salvastes meu

povo? Onde está o olho que tudo vê?”.

Seus pensamentos eram de ódio, indignação e revolta.

A chuva ficou mais forte e por diversas vezes a canoa quase

virou por causa da força das águas.

Page 75: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

77

Seguindo os poucos atalhos que conhecia o jovem se

apressava em percorrer o trajeto de volta. De repente,

Jacamim tomado pela revolta de seu coração, parou de remar e

olhou para o céu.

__ Maldito seja o urutau! Eu te odeio pássaro maldito. Onde

está tua força? __ bradou o jovem com toda a força de sua

alma.

Quando a canoa se aproximou do seu destino, Jacamim

diminuiu o ritmo das remadas e começou a parar.

Ele procurou se aproximar com cuidado de um ponto

da mata onde pudesse ter uma visão privilegiada da aldeia dos

Maués. Mas a visão que o jovem teve, além de aterrorizante,

lhe parecia bem familiar.

A aldeia dos Maués, tomada pela fumaça das malocas

incendiadas, também estava completamente destruída, com

corpos espalhados por toda parte.

Desesperado e desnorteado com a visão do caos,

Jacamim achou que Jurupari também estava morto e não teve

coragem de procurar o corpo do irmão.

Page 76: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

78

A chuva ficava cada vez mais forte e parecia que o

céu queria desabar em sua cabeça.

Caminhou por entre mortos mais uma vez, já cansado e

perdido no caos de tanta desgraça caiu de joelhos diante

daquele terrível pesadelo.

Estava só. E a solidão era um inimigo cruel e

invencível para alguém tão inseguro como ele. Seu espírito já

não agüentava tanta desgraça.

O irmão de Jurupari levantou-se e tomou o rumo de

volta. Corpos queimados, animais mortos, gemidos e gritos

atormentavam sua mente, mas ele continuou dessa vez por um

caminho diferente por dentro da selva.

Jacamim tinha um destino certo e já não tinha mais

medo, era como se estivesse anestesiado pelos sentimentos

que o assolavam e não conseguia pensar com coerência. Não

tinha mais nada, apenas a certeza de que estava só. Perdera a

esperança e também a fé, a ponto de amaldiçoar a figura do

urutau, tão sagrado e especial para o seu povo.

Para Jacamim era o fim de tudo, da honra e da história

do seu povo, tudo estava perdido. Mesmo assim ele ainda

caminhava, abrindo caminho por entre árvores, igarapés,

trilhas, ele seguia firme.

Page 77: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

79

Movido pelo ódio, o jovem Jacamim seguia em direção

ao grande santuário dos Munduruku: a Pedra do Pássaro

Sagrado.

Page 78: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

80

O local sagrado era usado pelos índios das aldeias

Munduruku há séculos, um lugar que só eles sabiam chegar,

com trilhas escondidas e até armadilhas secretas para proteger

o lugar de adoração e culto a Tupã e ao urutau.

O menino Jacamim conhecia o caminho muito bem,

todos os atalhos que o levariam para cumprir o seu destino;

desde muito jovens, os índios aprendiam tudo a respeito do

santuário e se reuniam para ouvir as palavras do pajé.

Caiuá adorava falar às crianças e aos jovens sobre os

costumes dos ancestrais, dos grandes guerreiros do passado,

das lendas, das crenças nas palavras do Grande Espírito e de

como Tupã criou todas as coisas; depois os via crescer,

envelhecer e morrer.

No dia seguinte quando Jacamim chegou ao local

sagrado, seus olhos se voltaram para a grande pedra de quase

Page 79: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

81

vinte metros de altura. Lá no topo estava uma imagem

esculpida em pedra, o urutau.

A chuva insistia em castigar a floresta, e Jacamim

resolveu fazer o que nenhum índio Munduruku tinha feito até

aquele fatídico dia: desafiar o urutau.

Tomado de uma ira incontrolável, ele subiu devagar

até o cume e pôs-se de pé ao lado da estátua que tinha quase

sua altura. Jacamim começou a insultar o urutau, o culpando

por toda a desgraça que havia acontecido com todos de sua

aldeia. Até que tomado pelo ímpeto do desespero, o jovem se

apoiou na pedra e empurrou a imagem lá de cima.

__ Que morra o urutau! __ gritou, empurrando a imagem com

toda sua força, fazendo com que ela despencasse até o chão

sob seu olhar de ódio, sem, no entanto, que a imagem do

urutau se quebrasse.

A chuva caia intensamente, tomando o aspecto de

tempestade. O rapaz olhou mais uma vez para baixo, tentando

ver o fim que a imagem teve ao despencar daquela altura,

puxou o ar para os pulmões, abriu os braços e deu outro grito

dessa vez mais alto, que ecoou por todo o santuário.

Page 80: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

82

__ E que morra Jacamim! __ e sem titubear soltou o corpo do

alto da pedra. E com os olhos bem abertos, mergulhou em

direção a morte.

Page 81: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

83

A VINGANÇA

“Jamais chore por algo que não pode chorar por você.”

(Provérbio indígena).

Jurupari acordou com o sol já batendo forte em seu

rosto, pendurado em galhos de uma árvore caída na entrada de

um igarapé.

Suas mãos estavam muito inchadas e ele mal podia

mexer os dedos resultado da prova do guerreiro das

tucandeiras.

Tentou se localizar e viu o quanto estava longe da

aldeia. Entrou na mata e apanhou algumas plantas e esfregou

nas mãos que estavam inflamadas. Tomando em seguida o

Page 82: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

84

rumo de sua aldeia em busca de ajuda para vencer o guerreiro

branco e salvar Janaína.

Seria difícil convencer os Munduruku que deviam lutar

para salvar os Maués. Mas isso não o preocupava, pois sabia

que tinha amigos fiéis que não lhe negariam ajuda. Ele só não

imaginava que todos estavam mortos.

O grande guerreiro branco, o homem com cabelos no

rosto, era Fernando Souza de Alcântara Ferreira, o capitão

Ferreira, conhecido mercador de índios que já havia dizimado

tribos no Maranhão e agora buscava novos escravos, ou seja,

fortuna.

Os prisioneiros foram enjaulados não muito longe dali,

num acampamento que fora montado para uma verdadeira

caçada aos índios. Depois de aprisionados, eles eram enviados

para trabalhos em minas, onde morriam mais pela saudade e

tristeza, que pela dureza dos trabalhos.

O capitão Ferreira não levava os índios que lutavam,

ele os matava. Preferia as mulheres para os serviços

domésticos, crianças e jovens que eram mais fáceis de

domesticar para o trabalho escravo.

Um homem frio, extremamente sem coração, que

usava o chicote para impor respeito e sua arma contra os que

Page 83: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

85

ousavam desobedecê-lo ou enfrentá-lo. Matava os pais na

frente dos filhos e os filhos diante dos pais. Assim era o

“capitão”.

Muitos já tinham tentado liquidá-lo, inclusive alguns

de seus homens, que não viveram para tentar novamente.

Entre eles haviam boatos e a lenda de que Ferreira

tinha pacto com diabo, o que lhes causava grande temor,

imaginando que se alguém planejasse sua morte, o próprio

diabo o avisaria.

Para justificar sua atitude covarde, Ferreira alegava

que os indígenas eram assassinos cruéis e comiam a carne de

suas vítimas, por isso levara consigo a cabeça mumificada da

aldeia Munduruku, para que todos tivessem medo dos índios.

Page 84: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

86

Jurupari finalmente chegou a sua aldeia e a visão que

teve foi chocante, o guerreiro sentiu-se totalmente destruído.

Lembrou-se do “pariuá-á” que o guerreiro branco

levava às costas: “foram eles”. Pensou, enquanto um desejo

de vingança envenenava sua alma.

Seu único objetivo seria destruir o responsável por

tudo aquilo, iria farejar o rastro dos inimigos pela selva até

encontrá-los, e na selva, ninguém podia com ele.

Mas Jurupari precisava de forças para seu espírito e

seguiu para o único lugar onde encontraria o poder que

precisava: o santuário.

Quando chegou ao local, mais tristeza o aguardava. A

imagem do irmão morto entre as pedras perfurou-lhe o

coração como uma flecha envenenada e reduziu sua alma ao

pó.

Page 85: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

87

Ainda teve forças para enterrar o irmão antes de pintar-

se para a guerra.

O urucum avermelhava sua pele e as penas enormes de

araras presas aos braços o faziam parecer um deus voador.

Pegou arco e as flechas, faca e seu afiadíssimo machado que

os Maués já conheciam bem e começou a dançar e emitir sons

estranhos e indecifráveis.

__ Grande urutau. Hoje quero cortar muitas cabeças para

vingar meu povo. __ e continuou com a dança, dando pulos e

urros, gritos e gargalhadas assustadoras ecoavam pela selva

sombria, numa mistura de ódio, lamento e dor.

Enquanto o guerreiro dançava e pedia forças ao

Grande Espírito ouviu uma voz lhe chamando, uma voz que

lhe era familiar e vinha de dentro de uma pequena caverna.

__ Filho do sol! __ Jurupari abaixou um pouco até o buraco e

assustou-se.

__ Quem está aí?

__Sou eu! __ uma luz forte saiu de dentro da caverna cegando

o guerreio. __ Sou eu, Caiuá, o feiticeiro.

__ Não pode ser! Você está morto!

Page 86: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

88

__ Não estou não. Guerreiro tolo! Estou vivo, como sempre

estive e sempre estarei. O lugar sagrado foi manchado com o

sangue do teu irmão e do teu povo. __ Jurupari tentava ver

Caiuá, porém uma luz forte o impedia.

__ Eu vou me vingar! Destruirei toda a tribo dos brancos e

salvarei o que sobrou do nosso povo.

__ Ninguém pode destruir os demônios brancos, eles virão de

toda a parte. Quer vingança? Você a terá, mas outros virão e

continuarão a destruição de nossa casa. O que você vai poder

fazer contra eles?

__ Combaterei a todos, enquanto houver vida em mim. Ajude-

me feiticeiro!

__ Vá guerreiro. Voe filho do sol, voe e cumpra o teu destino.

__ E quanto a você?

__Eu sempre estarei aqui. Para sempre! __ e desapareceu

diante do “cortador de cabeças”.

Page 87: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

89

O guerreiro se misturava com a mata, era parte dela

numa caçada sinistra, rastejava como uma sucuri atrás de suas

vítimas, Jurupari farejava como uma onça em busca do

alimento, como se sentisse o cheiro dos malditos ele

continuava no rastro de sua vingança.

Aos arredores do acampamento homens montavam

guarda.

Um a um eles começaram a tombar, a faca do guerreiro

os encontrava sem que ao menos percebessem de onde vinham

os golpes.

Jurupari rastejava até os inimigos com uma destreza

que só ele possuía e só aquietava sua alma quando sentia o

sangue escorrer em sua mão. Eram presas fáceis para o

Munduruku.

Em frente a uma das cabanas montadas no

acampamento, três homens bebiam e conversavam e o

guerreiro, como uma sombra, pulou diante deles que não

tiveram tempo de reagir, tamanha a surpresa e o espanto;

numa piscar de olhos, Jurupari passou a faca no pescoço de

dois deles que caíram ensangüentados. O terceiro ainda tentou

correr, mas o índio enrolou um cipó em seu pescoço e o

enforcou.

Page 88: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

90

Ainda abaixado olhando os corpos, ele avistou no fim

do acampamento, as jaulas improvisadas.

Aproximou-se do local e ficou estarrecido ao ver

mulheres, jovens e crianças, de várias aldeias, várias tribos,

alguns conhecidos que se alegraram ao vê-lo, outros

desconhecidos que apenas choravam sem parar.

Jurupari chorou.

Chorou por ver os povos da Grande Floresta, tratados

como animais, e percebeu que não havia mais diferenças entre

os Munduruku e os Maués, eram todos um só povo, uma só

tribo, uma só gente. Todos precisavam dele.

Ele cortou as cordas que os prendiam e viu um por um

correr em direção a escuridão da mata.

Finalmente viu Jací e Guaraci, mas Janaína não estava

lá. Eles a haviam levado para uma das cabanas, juntamente

com outras jovens índias tão belas quanto ela. A mãe de sua

amada implorou para que ele a salvasse.

__ Não descansarei. __ disse ele. __ Não descansarei enquanto

não a encontrar, atravessem o rio e sigam sempre em frente,

não parem até chegarem num local seguro. Reúna aqueles que

sobreviveram e busquem um lugar seguro pro seu povo. O

Page 89: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

91

meu povo fará o mesmo, não desistam, busquem forças dentro

de cada um. Vou atrás do maldito que fez tudo isso. __

prometeu a mãe de sua amada.

Após a fuga de todos, Jurupari foi à procura de sua

Janaína. Armado com sua faca e machado, ele avançava pelo

acampamento fazendo novas vítimas, de forma que o suor de

seu corpo se misturava com o vermelho do sangue inimigo.

Page 90: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

92

Jurupari parou atrás de uma cabana maior e ouviu

gritos, eram gritos e choro de meninas. Olhou por uma fresta

na cabana e pode ver o capitão com seus capangas violentando

as meninas índias. Janaína estava caída ao chão, estava pálida.

Jurupari não se conteve e acabou por involuntariamente fazer

barulho do lado de fora, chamando a atenção dos homens de

Ferreira.

__ Tem alguém lá fora. __ um dos homens alertou.

Ferreira se vestiu e pegou a arma sem imaginar que era

observado o tempo todo pelo bravo guerreiro Munduruku, que

não iria embora sem cumprir sua saga.

“É agora!“. Pensou jurupari.

Page 91: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

93

Jurupari invadiu a cabana numa rapidez

impressionante, desferindo golpes em todos os que apareciam

em sua frente.

Um luta corporal intensa se travou no interior da

cabana, algumas meninas tentavam correr, outras

simplesmente gritavam, encolhidas no chão. Um verdadeiro

banho de sangue acontecia naquele local,

Jurupari era impiedoso com os brancos assassinos, sua

faca era infalível e seus golpes eram certeiros e mortais.

De repente, o capitão disparou sua arma. Um único tiro

acertou o guerreiro nas costas, próximo ao ombro direito. Ele

caiu.

__ Alguém pode me dizer quem é esse maldito? __ disse o

capitão.

__ Ele deve ter fugido durante o ataque capitão. __ um dos

capangas respondeu, enquanto outro entrou na cabana

desesperado.

__ Capitão, os índios fugiram. Todos eles. Foram todos soltos

por esse aí. __ apontando Jurupari.

__ Você vai pagar caro por isso desgraçado. Vou fazer você

desejar nunca ter nascido, e nunca ter me conhecido.

Page 92: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

94

Enquanto Ferreira falava, Jurupari rastejava em direção

a Janaína, queria tocá-la, senti-la, ouvir sua voz doce. Pegou

sua mão fria e então percebeu que sua amada estava imóvel.

Tudo sob o olhar atento do Capitão Ferreira.

__ Então é ela que você quer? Por isso você veio aqui e fez

esse estrago todo. Tarde demais, seu índio burro. Ela está

morta! Consegue entender o que eu digo? Está morta! Ela até

que resistiu muito e tentou me morder.

Jurupari não entendia a língua dos brancos e não fazia

idéia dos planos do capitão, mas entendia de morte e ao ver

aquela moça que tanto amava morta, tentou levantar-se para

continuar sua vingança, porém um chute forte na barriga o fez

se contorcer de dor no chão.

__ Não se preocupe! Você logo vai estar com ela. Mas

primeiro vou fazer você sofrer. Você vai conhecer o que é dor

de verdade e vai entender porque eu sou o maior caçador de

índios que já existiu. __ disse Ferreira ao guerreiro, enquanto

pisava seu rosto.

Page 93: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

95

Jurupari já não se importava com mais nada e em sua

mente, apenas implorava aos deuses a oportunidade de vingar

o seu povo e Janaína.

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96

A MORTE

“Para conheceres o centro do coração onde reside o Grande

Espírito terás de ser bom e puro e viver da forma que o

Grande Espírito nos ensinou. O homem que for assim puro

contém o Universo no espaço do seu coração.” (Provérbio

indígena)

O guerreiro foi surrado até a fronteira da morte,

ninguém podia salvá-lo do capitão Ferreira. Não havia mais

forças no corpo e na alma de Jurupari.

A dor da morte de Janaína era maior que qualquer dor

física que a tortura praticada pelo capitão pudesse causar. Seu

coração espremido pela dor do desencanto e desespero o fazia

querer o mais rápido possível encontrar a morte, pois ao

menos assim, no mundo dos mortos, poderia continuar a sua

Page 95: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

97

procura por Janaína. Um busca que, se dependesse dele, não

acabaria nunca.

Depois de dezenas de açoites, o capitão mandou que

os homens o deitassem de bruços e pisassem em suas costas.

Ferreira se aproximou do índio indefeso e

inesperadamente pegou sua perna direita, segurou firme em

seu tornozelo e o torceu para trás até quebrar-lhe os ossos,

fazendo com que Jurupari usasse o que lhe restava de fôlego

para gritar.

Logo depois, Ferreira repetiu o ato, dessa vez no pé

esquerdo e o grito do guerreiro não foi mais tão alto.

Jurupari caído ao chão quase inconsciente pedia a Tupã que

acelerasse sua morte e lhe poupasse de mais sofrimento.

Seus pés estavam virados para trás, suas costas

estavam ensangüentadas e marcadas pela fúria do chicote de

Ferreira.

__ Quero ver você fugir de mim agora. Se tentar correr, vai vir

direto pra mim. __ Ironizava o homem branco, sob o som das

risadas de seus comparsas.

Page 96: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

98

Jurupari sentia seu corpo adormecido, já não mais

sentia dor. Queria morrer logo, mas uma faísca de vida insistia

em permanecer acesa dentro do coração do Munduruku.

Foi quando que já quase inconsciente, ouviu um som

martelando seus ouvidos. Um som bastante familiar aos seus

ouvidos. No meio de tantos sons, risadas, gritos, pranto, ele

ouviu nitidamente o canto de um pássaro. Um som sombrio,

aterrorizante, como um lamento agonizante.

Era o canto do urutau.

Aquele som que a tantos amedrontava o tranquilizou.

Parecia lhe renovar o espírito guerreiro e acalmava sua alma

cansada e aflita.

Os homens do capitão estavam assustados e

procuravam por toda parte, de onde vinha o canto da ave

fantasma. Era sinal de mau agouro, e eles sabiam que alguma

coisa muito ruim estava para acontecer naquele lugar.

__ Capitão, mata logo ele. Esse canto do pássaro fantasma não

é nada bom. __ disse um dos homens. __ Mata logo esse índio

desgraçado e vamos embora daqui, esse lugar está

amaldiçoado.

Page 97: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

99

__ Estão com medo de quê? De um pássaro? Vocês têm que

temer a mim. Eu sou o diabo! Sou o mal em pessoa e ninguém

vai embora daqui. Vamos acabar com isso e vamos atrás do

meu dinheiro. Quero aqueles índios de volta.

__ E ele? O que vamos fazer com ele? __ perguntou um dos

capangas preocupado.

__ E quanto a você, índio valentão, você nasceu na selva e vai

morrer na selva. Amarrem-no pelos pés e pendurem naquela

árvore. __ ordenou impiedoso o capitão Ferreira, apontando

para a maior árvore que havia nas proximidades do

acampamento, uma sumaúma que embelezava as

proximidades do acampamento.

__ Sim senhor, capitão. __ responderam os homens.

Page 98: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

100

Eles amarraram os pés de Jurupari e jogaram a corda

por cima de um dos galhos gigantes da árvore com certa

dificuldade por causa da altura. Puxaram e puxaram até o

guerreiro ficar pendurado de cabeça para baixo.

__ Pronto capitão! __ apresentou-se um capanga.

__ Tragam fogo! __ ordenou Ferreira, obrigando a todos a

assistirem ao martírio de Jurupari, pois assim seria mais

temido ainda.

Nesse momento, Jurupari entregou seu espírito a Tupã

e pediu ao Pássaro Sagrado que seu sacrifício não fosse em

vão e que os homens maus pagassem por seus crimes.

Quase que imediatamente o som do canto sombrio do

urutau ecoou pela floresta escura novamente. O pavor tomou

conta do bando. As aves mágicas começaram a sobrevoar o

local e cantavam sem parar. Os sons eram como de gritos de

pavor.

Um dos homens trouxe uma tocha acesa e entregou ao

capitão Ferreira. Jurupari permanecia imóvel e ainda

respirava.

Page 99: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

101

__ O que foi? Estão com medo de um pássaro? Vocês são

mesmo uns covardes. __ disse o capitão.

O malfeitor não temia nada e ainda zombava do medo

dos bandidos que o serviam, desafiando qualquer tipo de

crença ou superstição da cultura regional.

Como prova de seu poder, Ferreira aproximou a tocha

de foto do tufo de cabelos de Jurupari.

O urutau gritou mais alto. Havia pássaros por todos os

lados, cantando sem parar, um canto de lamento, de dor, de

quem agonizava.

__ Queime índio maldito! __ gritou o capitão.

E o fogo tomou os cabelos, os enfeites, as penas

fazendo com que o guerreiro Jurupari se contorcesse e soltasse

um gemido entre os dentes. Não tinha mais forças para gritar.

Jurupari parou.

__ Deixe-o queimar para que toda essa floresta sinta o cheiro

de sua carne e saibam quem sou eu. Vamos enterrar os corpos

e recuperar os índios fujões, o trabalho não pode parar. __

disse o capitão.

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102

Os capangas de Fernando Ferreira correram em direção

ao acampamento e quando lá chegaram foram tomados de

surpresa e espanto: Não havia mais corpos.

Procuraram por toda parte, dentro das cabanas e

nenhum dos corpos dos mortos estavam mais ali. Apenas

rastros de sangue.

__ Capitão, os corpos sumiram! É melhor fugirmos daqui

enquanto é tempo. Este lugar capitão. Este lugar está

amaldiçoado. Vamos todos morrer. __ implorou um dos

homens ao capitão.

__ Ninguém vai à parte alguma. Vamos ficar aqui mesmo e

amanhã logo cedo vamos atrás dos que fugiram. Os animais

devem ter levado os corpos, poupando-nos o trabalho.

Page 101: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

103

A TRANSFORMAÇÃO

"Dentro de mim há dois cachorros: - Um deles é cruel e mau.

O outro é muito bom. Os dois estão sempre em guerra. O que

sempre ganha é aquele que eu alimento mais vezes."

(Provérbio indígena)

Quando a chuva caiu, o corpo do guerreiro parou de

queimar, uma brisa suave agitava lentamente as folhas da

árvore e o silêncio foi quebrado mais uma vez pelo canto da

ave maior, que alçou um vôo rasante e pousou sobre o galho

da arvore onde o corpo jazia.

O pássaro mágico cantou novamente, dessa vez, mais

alto, mais forte e mais mágico. O urutau abriu suas asas e

começou a brilhar, irradiando uma intensa luz azul que

iluminou toda a floresta.

Page 102: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

104

O pássaro então tomou a forma de um índio com asas

que flutuou em direção ao corpo de Jurupari e parou em sua

frente. Era o Grande Espírito.

__ Grande guerreiro Jurupari, eis que te devolvo a vida. Tu

habitarás as árvores, os rios, os animais, as florestas. Tua

missão será protegê-los, preservá-los e defender aqueles que

amam a grande floresta. Perseguirás os destruidores e

inimigos da mata. Serás temido por todos e te dou o poder da

ilusão. Os homens não te verão senão pela tua vontade. Teus

olhos verão a alma dos homens. Teus cabelos serão fogo

consumidor e teus pés guiarão os maus para a morte. Filho

do sol, tu serás um deus na grande selva, protetor e vingador.

Veloz e dono da força, quem te buscar não te achará, pois a

partir de agora, tu és o Curupira.

O corpo de Jurupari explodiu e seu espírito foi sugado

para dentro da grande árvore fazendo com que os galhos se

tremessem, o tronco enorme estufou-se ainda mais tomando

várias formas, como se estivesse derretendo e transformando-

se aos pouco em forma humana. E de dentro da grande árvore,

o Curupira saltou para a vida.

Page 103: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

105

O Grande Espírito se transformou novamente em

pássaro e voou em direção aos céus. Enquanto isso o Curupira

se preparava para o acerto de contas com os inimigos da

grande selva.

Seus olhos se direcionaram ao acampamento onde

alguns homens do capitão já tinham adormecido.

A cada passo do Curupira, suas pernas giravam ao

redor do seu corpo como um redemoinho fazendo com que

flutuasse e à medida que seus pés tocavam o chão ficavam

completamente virados para trás.

Era alto e forte, seus cabelos eram fogo de um colorido

esplendoroso, nos braços enormes, penas azuis, vermelhas e

alaranjadas, como se estivesse vestido para a guerra. E estava.

Ele tinha a velocidade do vento e seus olhos eram

como os olhos do urutau, como brasas flamejantes, uma

espécie de chama encantada o fazia reluzir como um ser

divino. O Curupira virou-se em direção ao acampamento e

uniu suas mãos como num gesto de oração, aproximando-as

da boca, soprou.

Eram centenas, milhares, centenas de milhares de

insetos voando em direção ao acampamento. Por todos os

Page 104: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

106

lados animais rastejantes surgiam e direcionavam-se as

cabanas, era como se toda a selva estivesse viva.

A magia do Grande Espírito tomou conta do lugar e

enquanto os homens do capitão dormiam, subitamente eram

atacados por todo tipo de praga.

A ordem do Curupira era que fossem impiedosos,

atacassem e exterminassem a todos os malfeitores, numa

vingança avassaladora, porém com uma observação: que

deixassem o capitão Ferreira para que o próprio rei da grande

floresta o punisse por seus crimes contra os povos indígenas.

O urutau cantou forte: um canto sombrio, de morte,

amedrontando os homens de Ferreira. Seu canto foi

acompanhado de outros, por todos os lados, por toda a densa

floresta ecoavam os gemidos aterrorizantes das aves

fantasmas, com os olhos enormes e brilhantes.

Page 105: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

107

O capitão não dormira e preparava seu armamento para

voltar à expedição de recaptura dos fugitivos, não podia ter

prejuízos e sua fama de caçador de índios dependia do

resultado dessa expedição, não podia voltar de mãos vazias.

Enquanto estava concentrado em sua cabana, ele ouviu

gritos desesperadores ecoando pelo acampamento; Ferreira

pegou sua arma e correu para ver o que significava aquilo.

A visão que teve foi assustadora, até para ele que não

costumava ter medo de nada.

As cabanas estavam cercadas por cobras de todos os

tipos, os homens corriam com os corpos cobertos por vespas

enormes, um a um iam caindo mortos por toda a extensão do

lugarejo.

Os gritos eram ensurdecedores e Ferreira não sabia o

que fazer. Correu em direção à mata e empunhou sua espada

para abrir caminho. Visivelmente tomado pelo pavor e

Page 106: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

108

desespero, Ferreira corria o mais depressa que podia

impulsionado pela certeza de que nada e nem ninguém o

impediria de completar sua missão.

Era experiente nas expedições e já havia desbravado

terras hostis em diversas regiões do imenso Brasil. Já havia

passado fome nas muitas vezes em que o alimento acabara

antes do fim das expedições e precisou se alimentar de caça e

pesca, ou frutos desconhecidos que encontrava nas florestas,

além de escapar de sucessivos ataques de animais que por

vezes precisou espantar usando fogo, pedras ou a própria

espada.

O capitão correu pra fora do acampamento o mais

rápido que conseguia com suas roupas pesadas e armas, ele

usava um colete de pele de anta que servia de proteção e o

cansaço era visível pelos dias e noites acordado na caçada aos

novos escravos. De repente ele parou.

Page 107: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

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Olhou em sua frente e lá estava a árvore onde deixara

pendurado o corpo do índio que o desafiou, olhou de novo e o

corpo não estava mais lá. “Algum animal o levou”. Pensou

enquanto procurava a direção a seguir.

Ferreira continuou correndo, não sabia o quê ou quem

havia atacado o acampamento e não pretendia esperar para

descobrir. Buscava fôlego e forças de onde não tinha, quando

outra vez parou. E simplesmente não acreditava naquilo.

Estava novamente diante da mesma árvore. “Não pode ser!

Isso é impossível!”

Tentou outra direção e tinha a certeza absoluta de que

estava correndo em linha reta, mas novamente não pode

prosseguir, pois bem a sua frente, diante de seus olhos

incrédulos, a árvore o aguardava. Era loucura, inacreditável.

Faltou-lhe o ar. Sua vista ficou turva e ele caiu de joelhos e

esfregou os olhos.

Olhou a sua volta e era como se a vegetação estivesse

se derretendo diante de seus olhos.

__ Estou enlouquecendo. Isso deve ser algum tipo de

bruxaria.__ falou para si mesmo naquele momento de terror.

Levantou-se sem saber o que fazer, pois percebera que

qualquer direção que tomasse, pra onde corresse, o fim seria

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110

sempre o mesmo: aquela árvore. O mesmo local onde horas

antes ele havia incendiado o corpo de Jurupari.

Ferreira estava completamente desnorteado e andava

de costas, olhando pra toda a direção, o medo de um ataque

surpresa, seja lá de quem fosse, tomava conta dele. Foi quando

inesperadamente ele teve a visão mais assustadora de sua vida.

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111

O Curupira lhe apareceu com sua face mais

monstruosa e emitiu um som aterrorizante.

O capitão se tremia todo e ao tentar fugir caiu em

buraco coberto pela vegetação.

Tentou levantar-se com muito esforço, mas quando

olhou suas mãos, estavam cobertas de tucandeiras, começou a

tirá-las, mas eram muitas, tomaram os braços, pernas,

entrando pelas roupas e subindo pelo pescoço.

Ferreira se debatia, gritava, mas elas não paravam de

se multiplicar. No auge do desespero, o capitão se agarrou a

uma raiz e saiu do buraco. Eram centenas de mordidas das

formigas assassinas por todo o seu corpo, fazendo com que ele

rolasse pelo chão.

Quase desfalecendo e anestesiado, pode ver os pés do

curupira diante do seu rosto, ergueu o olhar e viu um índio de

costas, contradizendo os pés virados em direção ao seu rosto.

O índio então se posicionou de frente para Ferreira e

seus pés ficaram virados para trás.

A lembrança nítida de quando quebrou as pernas de

Jurupari estava viva em sua memória.

O Curupira olhou nos olhos do capitão e ele não pode

encará-lo, mas ainda viu quando o rei da grande floresta se

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afastou num redemoinho enquanto emitia um assobio

ensurdecedor que se espalhou por toda a mata.

Enquanto era devorado pelas incontroláveis e famintas

tucandeiras, o capitão ainda ouviu outro som, mas dessa vez,

era um som bem familiar. Era rugido de onça, ou melhor, de

onças.

E ali, na escuridão daquele pedaço de selva, o tão

temido capitão Ferreira, considerado o próprio filho do diabo,

virara comida de onças e tucandeiras. O que sobrou de seu

mutilado corpo foi devorado pela grande selva e nunca foi

encontrado. Uma morte horrível para um homem horrível.

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A REDENÇÃO

"Lembre-se de que seus filhos não são sua propriedade!... eles

foram apenas confiados à sua guarda pelo Grande Espírito"

(Provérbio indígena)

O Curupira cuidadosamente pegou o corpo de Janaina

e ao pé da sumaúma. Fitou-o por um instante e seguida saltou

pra dentro da grande árvore desaparecendo, minutos depois, o

guerreiro Munduruku Jurupari sai lentamente de dentro do

tronco como um ser iluminado, visivelmente acometido por

uma profunda tristeza ele se aproxima do corpo de Janaina.

Ele se ajoelhou, estendeu suas mãos em direção a sua

amada e pediu ao Grande Espírito que fizesse cumprir o

destino de Janaína.

Page 112: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

114

O corpo da jovem se iluminou e foi sugado pra dentro

da sumaúma.

Jurupari logo retornaria ao tronco da árvore, mas não

para ficar ao lado de Janaína, mas para cumprir seu destino

como um ser iluminado de inúmeros poderes mágicos para

proteger o seu povo, muito maior que a nação Munduruku: os

povos da floresta.

O guerreiro direcionou seu olhar à grande árvore e

novamente se transformou no Curupira. E enquanto se

preparava para assumir definitivamente sua nova missão,

como um ser divino e iluminado, ouviu uma gargalhada

familiar.

Olhou para trás imediatamente e para sua alegria,

alguém que ele conhecia muito bem estava lá, rodeado por

uma áurea de magia, o observando. Era o grande feiticeiro

Caiuá.

__ Caiuá, é você mesmo? Que surpresa boa.

__ Sim, jovem guerreiro. Sou eu mesmo. __ disse o Pajé ao

guerreiro Munduruku. ___Vejo que você finalmente cumpriu

seu destino. Agora está em suas mãos o poder de proteger a

todos os povos da grande floresta.

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__ Você tinha razão sobre o novo inimigo. Eu fui um tolo,

Caiuá.

__ Hum. Não, não, Jurupari. Tudo está apenas começando.

Veja como você está diferente agora. __ disse Caiuá.

__ Como assim?

__Isso mesmo que você ouviu guerreiro. Tudo começou!

Sempre haverá um novo começo. Tudo se transforma. Lembra

quando você era criança e não entendia o mistério das

borboletas? Assim é a vida em toda a grande floresta. Tudo

muda. Você cumpriu o seu destino e todos nós cumprimos o

nosso ciclo.

__ Os demônios brancos estão mortos e não mais farão mal

aos povos da grande floresta. __ disse Jurupari ao feiticeiro.

__ Engana-se, espírito guerreiro! Eles virão novamente. Em

maior número, com mais força e serão vencidos de novo. E

novamente virão mais e mais vezes. E nunca desistirão, assim

como nós sempre resistiremos. __ respondeu-lhe o sábio Pajé.

__ E quanto a nós? __ perguntou o guerreiro.

__ Nós estaremos sempre aqui. E ele nos mostrará qual o

caminho a seguir. __ respondeu o grande feiticeiro. __

Estaremos sempre cumprindo o nosso destino.

Page 114: O Feiticeiro e o Pássaro da Morte   Frank Pires

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__ Caiuá. Eu fui muito injusto com você muitas vezes. Não

acreditei em suas palavras sábias, não enxerguei a verdade

diante dos meus olhos. O Grande Espírito é contigo!

Desculpe-me a ignorância. Você é um grande mestre.

__ Lembre-se, você tem uma missão. Cumpra-a e quando

precisar de mim basta me chamar.

__ Caiuá! Por favor, deixe-me ver o seu rosto. Tire a máscara.

__pediu, aproximando-se do feiticeiro.

Caiuá pôs as mãos no rosto para tirar a máscara, sob o

olhar atento de Jurupari. Ele sabia que desde criança o

guerreiro ansiava por desvendar esse mistério e não lhe

negaria a realização desse desejo.

__ Tem certeza que quer ver meu rosto?

__ Tenho sim. Mostre-me agora. Sei que ninguém o

contemplou até hoje. Sempre ouvi de meu pai histórias sobre

você.

__ Então veja! __ o Pajé então tirou a máscara e mostrou o

rosto ao guerreiro que o fitava incrédulo:

Era o rosto de uma criança. O guerreiro levou um

susto com a visão que tivera. Ficou perplexo ao ver um rosto

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infantil, não conseguia esboçar nenhuma reação, era como se a

face do Pajé representasse a continuidade da vida na floresta.

O feiticeiro ao ver a reação do guerreiro,

completamente estarrecido e atônito, soltou mais uma de suas

gargalhadas e desapareceu, deixando ecoar sua voz pela

floresta:

__ Eu estarei sempre lá guerreiro, vendo tudo o que se passa

com meu povo. E quando ouvir o canto mágico do urutau, esta

será minha voz, alertando a todos que estou de olho. Quando

quiser me achar eu estarei lá. Na pedra do pássaro sagrado.

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F I M