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1 O TRÂNSITO DE SABERES: OLHAR SOBRE A PRODUÇÃO BRASILEIRA Angela Arruda – UFRJ, Brasil A escolha deste tema foi facilitada pelo convite dos Prof. Jorge Correia Jesuino e Paula Castro para discutir com alunos da pós graduação de Psicologia do ISCTE. Agradeço aos colegas a oportunidade, que contribuiu para a sistematização de algumas das questões que vou abordar. Meu propósito aqui é jogar um olhar, limitado, sobre uma parte da produção brasileira, que trabalha com representações sociais elaboradas a partir de algum saber que se dissemina fora da sua esfera de origem. Para iniciar, vou tentar esclarecer o que é isto e o que nós, profissionais da saúde e da educação, temos a ver com isto. Em seguida, farei uma breve contextualização da produção brasileira para poder finalmente expor e discutir o recorte que escolhi para trazer aqui. Quando os saberes se encontram Os encontros de saberes podem ser considerados como um objeto de estudo da Teoria das Representações Sociais desde o princípio, já que a teoria se inicia com a curiosidade de Moscovici quanto ao encontro entre o saber especializado que é a psicanálise e o saber leigo da população que ele pesquisou. O que resultou desta investigação, todos sabem, é uma teoria sobre o trânsito de um saber originado em um tipo de universo, presidido por regras de produção e difusão do conhecimento, por determinado script da comunicação estabelecido no âmbito deste saber - que funcionam como salvaguarda do próprio saber e garantia da sua qualidade e legitimidade - para um outro tipo de universo,cujas trocas são bem

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O TRÂNSITO DE SABERES: OLHAR SOBRE A PRODUÇÃO BRASILEIRA

Angela Arruda – UFRJ, Brasil

A escolha deste tema foi facilitada pelo convite dos Prof. Jorge Correia Jesuino e Paula Castro para

discutir com alunos da pós graduação de Psicologia do ISCTE. Agradeço aos colegas a

oportunidade, que contribuiu para a sistematização de algumas das questões que vou abordar.

Meu propósito aqui é jogar um olhar, limitado, sobre uma parte da produção brasileira, que

trabalha com representações sociais elaboradas a partir de algum saber que se dissemina fora da

sua esfera de origem. Para iniciar, vou tentar esclarecer o que é isto e o que nós, profissionais da

saúde e da educação, temos a ver com isto. Em seguida, farei uma breve contextualização da

produção brasileira para poder finalmente expor e discutir o recorte que escolhi para trazer aqui.

Quando os saberes se encontram

Os encontros de saberes podem ser considerados como um objeto de estudo da Teoria das

Representações Sociais desde o princípio, já que a teoria se inicia com a curiosidade de Moscovici

quanto ao encontro entre o saber especializado que é a psicanálise e o saber leigo da população

que ele pesquisou. O que resultou desta investigação, todos sabem, é uma teoria sobre o trânsito

de um saber originado em um tipo de universo, presidido por regras de produção e difusão do

conhecimento, por determinado script da comunicação estabelecido no âmbito deste saber - que

funcionam como salvaguarda do próprio saber e garantia da sua qualidade e legitimidade - para

um outro tipo de universo,cujas trocas são bem mais livres e cuja produção de saber não foi

sempre vista com muitos bons olhos – o senso comum.

Este desenvolvimento teórico inaugurado por Moscovici (1961) tinha alguns grandes

pressupostos, dos quais destaco dois. Um, que o saber dos leigos, profano, e o saber

especializado, canônico, são dois estilos que se diferenciam, mas não se hierarquizam, porque

cada um tem sua própria finalidade, que lhe é peculiar, e ambos são perfeitamente adequados

aos seus objetivos. Tanto a ciência, por exemplo, funciona para desenvolver conhecimentos

generalizados e generalizantes sobre a realidade quanto o senso comum funciona para lidar com

o dia a dia. O que está embutido nesse pressuposto é a idéia de que o senso comum possui uma

lógica própria, e como dizia Geertz (1989), é uma forma de conhecimento complexa e

compreensiva, um sistema cultural, dotado de razoável eficácia no trato dos problemas do

cotidiano. Nisto reside o seu interesse: colocar-se como mais um sistema e uma fonte de saber

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entre outras possíveis, racional em sua própria cosmologia, como dizem Wagner e Hayes (2005,

p.9) e portanto, dono de uma reflexão que merece ser compreendida e aceita.

Outro pressuposto é o de que nas sociedades contemporâneas, a profusão de funções,

especialidades e novidades que circulam estabelece um fluxo de informações que está em

constante movimento, atravessando os diferentes grupos e segmentos, que se aproximam e se

apropriam de algumas delas a partir das próprias características de grupo, de suas crenças e

afetos, social e historicamente instituídos, e assim constroem representações sociais.

Tudo isso é bem conhecido de todos nós. Contudo, embora estes pressupostos continuem

vigentes de forma geral, a teoria avançou, a sociedade prosseguiu o seu caminho vertiginoso e

fragmentário, e hoje, quando as novidades chovem sobre nós não só a partir da ciência, mas de

muitos outros universos, observamos que vários deles também são profundamente reificados, ao

apresentarem características ditadas por uma regulamentação da produção e difusão do saber,

das condutas dos interlocutores e do estilo de comunicação. É o caso, por exemplo, do mundo do

Direito, ou da Teologia, por exemplo. O que leva a crer que todo universo normativo tende a

constituir um saber especializado cuja comunicação interna é bastante regulamentada e cuja

difusão – em particular, o trânsito para o leigo - dispara o engendramento de representações

sociais. Fica, então, evidente que as formas de comunicação são peça-chave na natureza dos

estilos de saber, e portanto, da diferenciação entre eles, e que muitas representações sociais são

fruto do encontro de saberes de estilos diferentes, fruto, portanto, da comunicação entre eles.

Base e desdobramento destes dois pressupostos é que vivemos numa sociedade pensante, em

que o pensar é uma forma do ser e do viver, incessante, fazendo conviverem pertenças e

perspectivas diversas. O pensar social acontece na comunicação. Quando e onde a sociedade

pensa? A toda hora e em todo lugar. Nas filas de banco ou de ônibus, nas conversas de bar ou de

corredor, nos grupos de encontro de todo tipo, nos debates de toda ordem. Os cartazes dos

corredores dos espaços públicos, os grafitti da cidade, bem como os quadros de avisos, dão

notícia de parte da circulação dessa produção pensante. Os meios de comunicação integram o

processo, bem entendido. Mas ele também acontece nas salas de aula, nos congressos, nos

próprios espaços balizados pelas regras reificantes da comunicação especializada.

Esses universos, apesar de marcados por estilos peculiares, portanto, não são perfeitamente

estanques. Alguns são mais normativos que outros, mas dificilmente, ainda que formatados por

uma rígida regulamentação, estão imunes ao pensamento leigo. Da mesma forma, o universo

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consensual se veste cada vez mais de retalhos do pensamento reificado, fruto do trânsito

incessante dos outros tipos de pensamento nas nossas sociedades.

Wagner e Hayes (2005) afirmam que o conhecimento especial está ligado a pré-requisitos sociais,

como o desempenho de certos papéis, de natureza especializada. Mesmo se hoje é fácil o acesso

à informação produzida por este universo, por meio das bibliotecas universitárias, o

conhecimento especializado permanece privilégio de alguns, porque depende menos da

informação do que do domínio de padrões de pensamento e capacidades necessárias para

adquirir tal conhecimento, obtidas na freqüentação de instituições especiais. Contudo, mesmo os

representantes destes conhecimentos também tem um pé em cada esfera da vida: a exclusiva e a

cotidiana, no convívio com a família, em seu ambiente privado. Como conseqüência, o

pensamento e o conhecimento que eles possuem sobre a “realidade” pode provir desses dois

espaços. Assim, para Tardif e Raymond (apud Lima, 2008), ao lado do que aprenderam em sua

formação, o que a maior parte dos professores sabe sobre ensino, como ensinar e sobre os seus

papéis, vem de sua própria história de vida, principalmente de sua socialização enquanto alunos.

Trata-se de uma sabedoria que complementa e reveste o saber formal, oriunda da experiência.

Ao mesmo tempo, com o desenvolvimento da comunicação eletrônica, a apropriação de fatias do

conhecimento especializado ficou tão facilitada que certos grupos e indivíduos tornam-se quase-

especialistas de temas que lhes dizem respeito. É o caso das vítimas de alguns tipos de afecção,

que estudam o que os atinge para melhor lidar com a situação, passando a dominar uma parte

dos conhecimentos especializados relativos ao problema. Às vezes eles também se organizam

para obter melhores condições de tratamento e respeito à sua enfermidade. São os chamados

“novos pacientes”, ou impacientes, como se vê entre os portadores de certas doenças crônicas ou

fatais. Herzlich (1969), no seu clássico estudo sobre representações da saúde e da doença já

prognosticava este novo personagem no cenário da saúde ao identificar a representação social

que ela denominou de “a doença como ofício”. Trata-se de doença geralmente crônica ou fatal,

durante a qual o paciente se transforma em aprendiz do próprio organismo e do que o acomete, e

termina por estabelecer novas formas de conviver com a sua situação a partir da disposição de

buscar o conhecimento, no esforço por melhorar. Esta luta cotidiana por dominar a doença a

partir do conhecimento transforma-a em ofício, no qual o paciente adquire um novo saber,

ingressa em novos diálogos e espaços, transformando a própria identidade. O caso dos

movimentos gay e sua luta com relação ao SIDA é exemplar de como um grupo pode tornar a

doença uma bandeira e incorporar esta bandeira à sua identidade.

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Neste torvelinho de pensares, o encontro, a troca, funcionam como estímulo ao debate,

provocação para criar e fermento do pensamento social, ao recolocarem em pauta a elaboração

das informações, perfazendo ou não uma comunicação bem sucedida. A comunicação instiga,

exercita e veicula a produção de representações sociais e o encontro de saberes.

Este é o nosso cenário profissional. Nós, profissionais de saúde e da educação - professores,

médicos, enfermeiros, dentistas, assistentes sociais, psicólogos e tantos outros - somos

mediadores culturais, habitamos o entre-lugar pelo qual transitam, com a nossa ajuda, saberes de

um universo para outro. Ou de um plano a outro. Somos profissionais do trânsito de saberes.

Nele, também nós temos um pé em cada lado, também precisamos adquirir conhecimentos

especializados, estar em dia com o que se fala, elaborar este conhecimento. E passá-lo adiante de

forma eficaz, em alguma medida: na sala de aula, no consultório, no atendimento.

Fazer transitar conhecimentos de um plano a outro é operação instigante e delicada. O entre-

lugar como espaço da difusão do saber, é também o da sua transformação, que atinge ao mesmo

tempo os saberes pré-existentes. Nós, profissionais do trânsito de saberes, vivemos às voltas com

a necessidade de fazer circular esses saberes, torná-los efetivos, e para isso também precisamos

apropriar-nos deles. O entre-lugar é um espaço de circulação e criação por excelência, porque é o

espaço dos problemas, da mobilização resolutiva, da urgência colocada pelo real. Para responder

ao apelo da necessidade, nem sempre o trânsito é de mão única, nem sempre a origem é uma só.

O trânsito é o movimento durante o qual ocorre alguma mudança, que se configura no encontro

de saberes, quando o saber que acolhe se modifica tanto quanto o saber que aporta. Ele é o

processo pelo qual o conhecimento se transfere de um plano a outro.

Os sentidos do trânsito

A passagem de um plano a outro pode ocorrer em mais de um sentido. Pode ir da ciência, da

técnica, da especialização à conversação informal, como no caso clássico da psicanálise, estudado

por Moscovici(1961); dos princípios, da teoria, à aplicação, como no uso das normas de

biossegurança pelos dentistas em contato com pacientes possivelmente ‘de risco’. Pode ser a

passagem de uma visão generalizada, amplamente compartilhada, a uma mais restrita, de menor

extensão, como a transformação de representações hegemônicas em outras. Pode ser ainda da

visão particular de um grupo para a sua ampliação a audiências maiores, com a passagem de

representações polêmicas, típicas de minorias ativas, a outras, que expandem a adesão a tal

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visão, podendo até converter-se em representações hegemônicas – aquelas que atravessam todo

um conjunto mais amplo, que pode ser uma nação (Moscovici, 1988) . A importância da questão

ambiental no mundo atual, por exemplo, de início pregada apenas por uns poucos ‘iluminados’,

hoje se tornou uma preocupação global. Voltarei a esses aspectos mais adiante.

Abaixo apresento estes sentidos do trânsito que acabo de enunciar, e na sequência vou

desenvolver a proposta com exemplos da produção brasileira.

Tipos de

representação

Ciência-técnica à senso

comum = Represent soc.

Repres. hegemônica

à outras

Represent. polêmica

à outras à

repres.hegemônica

ELIMINAR

CASAS VAZIAS

ELIMINAR CASAS VAZIAS ELIMINAR CASAS

VAZIAS

ELIMINAR CASAS

VAZIAS

ELIMINAR

CASAS VAZIAS

ELIMINAR CASAS VAZIAS ELIMINAR CASAS

VAZIAS

ELIMINAR CASAS

VAZIAS

ELIMINAR

CASAS VAZIAS

ELIMINAR CASAS VAZIAS ELIMINAR CASAS

VAZIAS

ELIMINAR CASAS

VAZIAS

Antes de iniciar a apresentação do material, convém contextualizar resumidamente essa

produção brasileira e suas características, o que facilitará, espero, o entendimento deste tipo de

produção. Peço desculpas aos colegas brasileiros que já conhecem esta contextualização, que se

dirige em especial a nossos amigos de fora do Brasil.

Contexto da produção brasileira

A Psicologia, em particular a Psicologia Social, no Brasil, como na maior parte da América Latina, e

na Europa, passa por um período de dificuldades e efervescência a partir dos anos 60. Na década

seguinte, quando parte do continente se encontrava sob regimes autoritários, insatisfações e

novos olhares começaram a se manifestar. No fim dos anos 70, eles eram minoritários e se

expressavam sob formas propositivas, chegando a gerar algumas novas institucionalidades para a

disciplina, numericamente reduzidas na época: cursos de pós graduação com orientação para o

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trabalho com a comunidade, teorização influenciada pela perspectiva marxista. Este conjunto de

novidades redundava em uma focalização nos problemas locais, na questão social em nossos

países, e na busca de ferramentas mais adequadas para lidar com eles do que aquelas que a

psicologia social clássica fornecera até então. Esta fase de questionamento das formas de

produção do conhecimento da área e procura de novos caminhos ficou conhecida como a crise da

psicologia social.

A etapa que se segue, para uma parte da área, é marcada pelo interesse no simbólico e na

consciência, pela abertura para novas referências teóricas, renovação dos objetos de estudo, das

populações estudadas, que passam a incluir grupos e segmentos geralmente marginalizados ou

desfavorecidos de alguma forma. Há também uma maior incorporação das questões contextuais e

macroestruturais nos trabalhos da disciplina, facilitando o diálogo interdisciplinar. A situação

política no continente, na década de 80, começava a se distender, facilitando as trocas abertas

entre perspectivas críticas, o que repercutia na produção do conhecimento.

O início dos anos 80 apresentava, desta forma, um panorama que, embora ainda formatado pelo

paradigma dominante, oferecia um espaço propício à discussão de novas alternativas conceituais

e metodológicas, e é em 1982 que a Teoria das Representações Sociais desembarca oficialmente

na América Latina, pela Venezuela, a convite de Maria Auxiliadora Banchs, chegando ao Brasil em

seguida, numa visita de Denise Jodelet.

A vinda de Denise se pautou pela interdisciplinaridade. Convidada para trabalhar na montagem

de um projeto da UFPb1 sobre representações sociais da Saúde, em Campina Grande (Paraiba), ela

discutiu com profissionais da saúde mental, antropólogos e sociólogos. Em João Pessoa, trabalhou

com a Pós Graduação em Educação da UFPb. Em São Paulo, com a Pós Graduação em Psicologia

Social da PUC2 de São Paulo, com Silvia Lane, pioneira da psicologia social crítica brasileira dos

anos 70 e 80. A chegada da Teoria se fazia, portanto, atravessando os campos disciplinares.

Apesar da relativa abertura existente, contudo, o campo ainda era dominado pelo paradigma

experimentalista na área; como na Europa, os obstáculos epistemológicos se fizeram sentir. Por

sua vez, a imensidão do país, a dispersão dos pesquisadores familiarizados com a teoria,

concorreram para a demora da sua identificação como referente teórico importante para os

objetivos que a vertente crítica da psicologia social perseguia. Assim, não é de estranhar que ela

ganhasse espaço na saúde e na educação ao mesmo tempo e talvez com mais presença que na

1 Universidade Federal da Paraiba

2 Pontifícia Universidade Católica

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própria psicologia social. Com efeito, nos países latinoamericanos, a tradição do acúmulo de

problemas que atingem a maior parte da população está sempre cobrando soluções, e a teoria

das representações sociais apareceria como uma contribuição na busca delas nos anos 90.

No terceiro milênio, já se pode falar em um campo consolidado. Alguns marcos balizam esta

condição. A II Conferência Internacional sobre Representações Sociais ocorrida no Rio de Janeiro

em 1994 e a primeira Jornada Internacional sobre Representações Sociais em Natal, em 1998, que

recebeu as lideranças européias e latinoamericanas do campo foram dois deles. Daí em diante as

Jornadas, que também passaram a ser denominadas de Conferências Brasileiras sobre

representações sociais, se sucedem de dois em dois anos, a cada vez em um estado de uma região

diferente da federação. A última ocorreu em Brasília, em 2007, com cerca de mil inscritos.

A consolidação deste campo passa também por uma profusão de publicações, pela introdução do

tópico no programa de disciplinas de Psicologia Social na formação em Psicologia, pela presença

de disciplinas e linhas de pesquisa sobre representações sociais em programas de pós graduação,

pela existência de grupos de trabalho sobre elas na Associação Nacional de Pós Graduação em

Psicologia (ANPEPP). O Brasil abriga hoje também dois centros internacionais de pesquisa em

representações sociais, o primeiro em Educação, na Fundação Carlos Chagas, em São Paulo, e o

segundo na Psicologia Social, na Universidade de Brasília.

Outras áreas se aproximam também da Teoria, como Arquitetura, Direito e Odontologia, por

exemplo. Os encontros do campo contam com a participação de profissionais de múltiplas

disciplinas – historiadores, antropólogos, jornalistas, lingüistas, juristas, músicos, comprovando

sua tradição de passar fronteiras e de ferramenta heurística. Isto explica as características do que

vou apresentar em seguida, e o interesse pelo trânsito de saberes.

Debate e encontro de saberes na produção brasileira

O que passo a apresentar não pretende refletir de forma exaustiva nem sistemática a produção

brasileira, hoje já com proporções consideráveis. Trata-se de um recorte, inicialmente apoiado no

Scielo, ou seja, recorrendo a textos publicados em revistas bem qualificadas. Ao pedido de

localizar trabalhos publicados (em periódicos) sobre representações sociais responderam 276

produções. Foram selecionadas aquelas que trabalhassem com o trânsito e encontro de saberes

na perspectiva da teoria das representações sociais, e vou mostrar aqui as que melhor ilustram as

linhas que identifiquei para aquele trânsito. Também foram incluídos alguns artigos aceitos para

publicação oriundos de dissertações de mestrado de pós graduações aprovadas na área da Saúde

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que respondiam aos mesmos critérios, e outros, que não constavam destas fontes, como

capítulos de livros, que ilustrassem rubricas não atendidas pelo resto do material. Este conjunto

de materiais contém apenas trabalhos de a partir do ano 2000.

Os grandes focos deste material foram questões relativas a crianças e adolescentes, à AIDS, à

saúde mental e à saúde bucal, sugerindo que são temas a respeito dos quais ocorrem trânsitos de

saberes intensos. Estes temas às vezes se sobrepõem, como quando se estudam SIDA e

adolescência, ou observância terapêutica com crianças, o que significa dirigir-se às mães. A Saúde,

portanto, foi a área que mais apareceu para ilustrar o trânsito de saberes, com autores que são

médicos, dentistas, psicólogos e advogados. A seguir, a proposta anterior, agora desdobrada em

um quadro com exemplos de cada alternativa que ele oferece.

Neste quadro, as linhas apresentam os planos de saberes que se encontram e as colunas, os tipos

ou sistemas de representações que se transformam. Este conjunto de elementos tenta combinar

o trânsito dos saberes entre planos diferentes de conhecimento com a criação ou a mudança das

representações que ele provoca. A proposta assume, portanto, que o trânsito pode ocorrer em

sentidos diversos, e que também o sistema ou tipo de representação social que é acionado por

este trânsito, além de dinâmico, pode ser cumulativo com outro, não se encerrando

obrigatoriamente apenas em uma das colunas do quadro. A pesquisa de Li (2004 ) sobre a entrada

da China na era do mercado, que colocou lado a lado o interesse por viver bem, ligado ao

consumo e ao individualismo, e a filosofia do despojamento e primazia do coletivo características

da cultura milenar chinesa, dá exemplo da sobreposição de representações hegemônicas e

polêmicas, ambas em trânsito para a mudança.

Ciência-técnica à senso

comum

Repr. Hegemônica

à outras

Repr. polêmica à hegemônica

Especializado +

leigo

• Desnutrição.

infantil para

mães

• Loucura, depres.

• Campanha

contra o câncer

• Vacina infantil para mães

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Especializado +

especializado

• Saúde do

adolesc

• SIDA,

soropositividade

para dentistas

• Meio ambiente

para gestores

• Brasil para

jovens

• Meio ambiente para movim.

ambientalistas

Leigo + leigo • Meio ambiente para movim.

ambientalistas

Os dois primeiros exemplos (1ª linha do quadro) conjugam a questão da observância e do público

infantil, e foram estudos a partir do depoimento das mães. Um, sobre a RS da desnutrição por

mães de crianças de baixo peso, se refere ao trânsito da ciência para o senso comum, com a

passagem do conhecimento especializado para o leigo. Tem um desfecho original, como será

mostrado. Outro, sobre a RS da vacina pelas mães, embora possa ser considerado do mesmo

sentido, acrescenta a ele a confirmação da passagem de uma representação polêmica a

hegemônica.

A pesquisa sobre representações sociais da desnutrição infantil para mães de crianças com baixo

peso (Hein, 2005; 1ª linha, 1ª coluna do quadro) teve como contexto o serviço público de saúde

num bairro do Rio de Janeiro que tentava aumentar captação e observância no tratamento da

desnutrição infantil (DI). Uma discussão inicial com os profissionais, a observação participante e

entrevistas com as mães, que se negavam a aceitar a denominação de desnutridos para seus

filhos, revelou a necessidade de aproximar-se destas. Elas constituíram dois grupos pesquisados, o

das que já haviam recebido alta clínica para seus filhos, tendo sido acompanhadas pelos serviços

de saúde durante vários anos, e o das que haviam chegado lá há menos de um ano. Os resultados

da pesquisa mostraram que para elas, a DI era associada ao descuido da mãe, falta de recursos,

morte; e objetivada em imagens esquálidas que aparecem nos media, necessidade de

acompanhamento médico. Já o baixo peso era visto como menos grave, razão subjacente à

decisão do grupo de intitular-se como grupo de mães de crianças com baixo peso. Ficou evidente

a divergência de visão das mães e dos profissionais e a diferença entre maior e menor vivência do

problema por parte delas. Um dos resultados positivos foi a mudança de representações sociais:

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as mães, no decorrer do processo de investigação (sobre o qual foram consultadas e discutiram

passo a passo), sentiram-se valorizadas e tornaram-se multiplicadoras, aumentando a captação; a

psicóloga autora estimulou e participou do aprendizado das mulheres, que resgataram e

transmitiram ao grupo velhos conhecimentos de nutrição herdados de suas mães, coroando assim

um encontro de saberes com trânsito de mão dupla.

Uma pesquisa sobre a representação social da vacinação infantil para as mães (Pugliesi 2007, 1ª

linha, 3ª coluna do quadro), após mais de 30 anos do Programa Nacional de Vacinação infantil,

que obtem há vários anos significativa observância das mães ao calendário vacinal, procedeu à

observação sistemática numa sala de vacinação dos serviços públicos de saúde do Rio de Janeiro,

aplicou questionário e evocação livre sobre VACINA a mães nulíparas e multíparas frequentadoras

daqueles serviços. O núcleo central encontrado foi composto pelos termos prevenção e proteção;

a periferia: bom, cuidado, responsabilidade. O questionário afirmou a força da prevenção – num

contexto histórico diverso do de 1904 (a Revolta da Vacina, em que a população reagiu à

imposição da mesma pelos serviços sanitários da cidade), as mães já falam do hábito de vacinar

que passa de geração a geração, como uma tradição, confirmando a mudança da representação

hegemônica: verificou-se a sintonia com o discurso da Epidemiologia, uma visão ativa e

consciente dos benefícios da imunização, que substituiu possíveis desconhecimentos ou

resistências

Estas duas pesquisas mostram processos bem sucedidos de trânsito de saberes. Numa, ele ocorre

praticamente durante o período de duração do trabalho, pouco mais de dois anos, e constituiu

uma verdadeira mão dupla, em que o olhar da teoria das representações operou uma

modificação na pesquisadora, facilitado pela sua sensibilidade, o tipo de pesquisa adotado (grupo

de discussão, participação das mulheres em decisões), o fato de que as mães tiveram que passar a

ser entrevistadas em suas casas. A pesquisa em si constituiu um laboratório que provocou

mudanças. A outra, mostra o processo exitoso da passagem de uma representação polêmica a

hegemônica num período mais longo, em torno de meio século, mostrando também o sucesso da

difusão de noções da epidemiologia, em sintonia com a disposição das mães para a prevenção e a

promoção da saúde de seus filhos.

Outras duas pesquisas (2ª linha do quadro, 1ª. coluna), ambas de médicas do Programa de Saúde

do Adolescente do Rio de Janeiro, funcionaram como diagnóstico para trabalhar problemas na

implementação do Programa, mostrando a dificuldade no trânsito do saber especializado para a

aplicação junto à população, e entre os dois universos.

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Conhecer a representação social da saúde do adolescente para ele e para os profissionais de

saúde, foi o objetivo da coordenadora do Programa de Saúde do Adolescente no Rio de Janeiro,

com o interesse de torná-lo mais efetivo, mais procurado pelos adolescentes (Branco, 2003). A

primeira parte se dirigiu aos profissionais de saúde. Saúde para os profissionais de unidades

envolvidas com o programa se expressava por meio de uma única palavra que compunha o núcleo

central: informação. A segunda parte do projeto se dirigiu aos adolescentes (Cromack, no prelo).

Saúde para os adolescentes de escolas das mesmas regiões se manifesta em um núcleo central

que reúne alimentação, hospital, importante, médico. Houve diferenças entre os adolescentes: o

núcleo central dos mais jovens:doença, felicidade, vida, e dos mais velhos: sistema de saúde

deficiente. A discrepância entre as representações dos dois grupos permitia problematizar o

atendimento que o programa oferecia. O retorno dos resultados aos profissionais, numa rodada

de oficinas em todo o Programa foi uma contribuição interessante, ao abrir espaço para o debate

sobre o descompasso entre as expectativas dos adolescentes e a visão dos profissionais, e a

melhor forma de os profissionais desempenharem seu papel no Programa, funcionando

efetivamente como agentes do debate de saberes.

As pesquisas envolvendo as representações sociais de SIDA são muito numerosas. As que vou

resumir são de dois tipos. A primeira, relativa a adolescentes, trata do trânsito do saber

especializado para o público adolescente. As duas outras descortinam uma nova preocupação de

um setor da saúde. Referem-se a dentistas e a sua relação com a prevenção e o cuidado a

pacientes HIV positivos. Aqui, se trata da aplicação por especialistas de um saber especializado,

ou seja, do trânsito da teoria à prática.

A primeira delas (Camargo et al. 2007; 2ª linha, 1ª coluna do quadro) investiga a representação

social de adolescentes de Florianópolis (Santa Catarina), sobre SIDA e a relação desta

representação com o conhecimento científico de estudantes de uma escola pública de

Florianópolis sobre o tema. O núcleo central, repetindo elementos já encontrados em estudos

anteriores - doença,morte, medo, sofrimento e preconceito – acrescenta mais dois novos itens:

prevenção e responsabilidade. Um questionário e um teste sobre conhecimento científico

mostraram que mais da metade dos estudantes (55%) não foi considerada bem informada

cientificamente quanto ao HIV/SIDA. A força da prevenção da SIDA, com características

pragmáticas, pode ser verificada, com maior ênfase na dimensão afetiva da RS do que no

conhecimento biomédico e científico sobre a doença

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As duas pesquisas de dentistas sobre problemas dos profissionais para atenderem soropositivos

para SIDA focalizaram o atendimento odontológico e as RS em torno de SIDA (Ragon, 2005;

Rodrigues, 2005, 2ª. linha, 1ª. coluna do quadro). Em ambas verificou-se a existência de

informação sobre a prevenção, dificuldade de incorporar conhecimentos sobre biossegurança e

SIDA, bem como práticas diferentes do discurso. Crenças e valores, temor, preconceito frente ao

paciente soropositivo apareceram, apesar de pouco contato dos dentistas com ele. A ênfase na

complexidade dos fatores envolvidos no conhecimento da questão e a necessidade de ir além da

dimensão racional mostrou-se importante para entendê-la e provocar mudança

Estas três pesquisas, portanto, colocam em pauta a questão dos afetos que SIDA desperta,

sublinhando a necessidade de levar em conta esta dimensão quando se lida com um problema

que mobiliza fantasmas, o medo do contágio e da morte. A informação, portanto, pode não ser

suficiente para lidar com questões que afetam as pessoas, e o saber especializado sofre um curto

circuito quando chega o momento da sua aplicação.

Mais duas pesquisas sobre o trânsito de um saber especializado para o público focalizam a saúde

mental. Uma, sobre a loucura, outra sobre a depressão, ambas com pessoas diagnosticadas com

transtornos psíquicos. A primeira (Brito, 2004, 1ª linha e 1ª coluna do quadro), realizada no Ceará

junto a familiares destas pessoas, verifica a produção das RS com fragmentos conceituais do

conhecimento científico veiculados pelo meio social; a presença de explicações míticas, espirituais

ou cósmicas revela dificuldade de dar sentido e o apelo a elementos do arcabouço cultural para

isso (por exemplo, a loucura devida à força da lua). A pesquisa, que adotou procedimentos

etnográficos, reconhece convergências com o trabalho de Jodelet.

A segunda pesquisa (Barros, 2006, 1ª linha e 1ª coluna do quadro) trabalha com a RS da

sintomatologia da depressão entre adolescentes de escolas particular e pública de João Pessoa

(Paraiba), portadores de depressão. Detecta que as RS não estão baseadas apenas no

conhecimento científico, nas comunicações informais, mas também no conjunto de problemas

práticos que estes jovens encontram no âmbito sociocultural, como o preconceito, as dificuldades

para lidar com suas condições de vida precárias, e o quanto isto os desconcerta em relação à sua

pertença e à identidade grupal. Estes aspectos se repartem diferentemente entre os dois tipos de

escola estudados: na escola particular aparecem elementos da Psicologia (causas afetivas,

psicológicas) e na escola pública, da Psicologia Social (inibições sociais, econômicas)

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Ainda no mesmo sentido – do especializado para o leigo -, uma outra pesquisa analisa campanhas

de saúde, destinadas a atingir o grande público (Ramos, 2007). Frente a um contexto de alta

mortalidade por câncer no Brasil, pouco avanço na prevenção, e da força da RS vinculada à morte,

foram feitas entrevistas com universitários sobre 7 slogans de campanhas. Detectou-se, a partir

delas, que os slogans são definidos com base no impacto (a morte), não na mobilização para a

prevenção; são eficazes para chocar, e em conseqüência, mobilizam defesas e resistência ao

impacto. Trata-se, portanto de uma mobilização defensiva. As campanhas apelam para a

autoestima, colocam o problema no plano individual. A ligação à fatalidade e a visão do câncer

como problema individual tornam a prevenção mais sujeita a obstáculos individuais, defesas

psíquicas. Em conclusão, RS do câncer, autoestima, relações indivíduo-coletividade, discursos de

gênero e caráter ideológico dos slogans são elementos psicossociais importantes a serem levados

em conta na elaboração de campanhas.

Repete-se aqui a forte presença dos afetos e de uma antiga representação hegemônica do câncer,

confirmando a necessidade de considerar outras dimensões para além do estritamente racional, e

ao mesmo tempo a visão crítica do modelo individualizante de saúde (cf. texto de Luisa Lima

sobre a presença do grupo como facilitador para a dissolução do estresse, neste volume)

Voltando ao trânsito do saber especializado entre especialistas, trago agora uma outra pesquisa,

que ilustra a retomada e a modificação de uma representação hegemônica.

Trata-se de um recorte e uma comparação entre duas pesquisas de uma série histórica (1992 e

1997) sobre meio ambiente por lideranças ambientalistas de seis segmentos sociais. Enfocou-se

os fatores culturais que facilitariam ou dificultariam consciência ambiental na sociedade brasileira

(Arruda, 2000). Os gestores ambientalistas retomam e retrabalham representações hegemônicas

da natureza, numa dupla elaboração: a exuberância e a abundância tanto podem sensibilizar, pelo

sentimento estético e o bem estar que provoca, quanto levar ao descaso, pela sensação de que

não importa o mau uso, uma vez que é inesgotável. As características do ‘brasileiro’ em relação ao

meio ambiente também são vistas por ângulos diferentes: a positivação das tradições indígenas e

africanas, respeitosas do meio ambiente, e a negatividade da herança colonial portuguesa,

predadora dos recursos naturais. Desta forma, a velha representação do Brasil como país de

natureza inesgotável está em processo de mudança, apresentando novas cores mas guardando

ainda algo do seu peso e caráter anterior. Este grupo constitui uma minoria ativa que dissemina a

semente para a modificação da representação hegemônica .

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Refletindo sobre o processo

Passo agora ao próprio trânsito que redunda no encontro de saberes, tentando pensá-lo como

processo psicossocial que se constitui de outros processos psicossociais. Um deles já foi

mencionado, é a comunicação. A comunicação é veículo e resultado deste trânsito, e para nossos

objetivos profissionais, ela importa para que esse trânsito se faça de forma a produzir um diálogo

criativo e construtivo. A TRS apresenta elementos que podem ser úteis.

Para que a comunicação aconteça como uma negociação produtiva, podemos pensar em mais de

um ângulo da questão. Um, o do próprio saber em trânsito. É preciso que aquilo que transita

encontre seu ancoradouro – ou seja, que ele ache um nicho no pensamento do grupo que ele está

a visitar, o que significa dizer que o grupo consiga acomodá-lo em algum lugar do seu repertório

de idéias e imagens. É preciso que este objeto ofereça figurabilidade para ser objetivado pelo

grupo. A substituição do termo ‘lepra’ por ‘hanseníase’, por exemplo, devido a uma

recomendação internacional de 1976 e à ação de minorias ativas, acabou vingando e modificando

todo um imaginário. As conseqüências positivas para a população atingida e para os serviços de

saúde hoje já são tangíveis (Oliveira, 2003). Um trabalho sobre representações sociais dos dois

termos para uma população que tem contato com o fenômeno indica a mudança de sentidos num

caso e noutro: a lepra guardando a marca fantasmática da morte e uma dissociação com relação

ao humano, que constrói o outro, portador da enfermidade, como alteridade radical, da qual se

quer distância,como mostrou Jodelet (1998 e 2005) enquanto a hanseníase aparece como mais

um item do repertório médico, uma doença passível de tratamento e cura.

O grupo é outro ângulo da questão. A ancoragem e a figurabilidade têm a ver com formas de

compatibilidade ou a possibilidade de interseção de repertórios, daí a importância de conhecer as

condições de produção das representações sociais, como tão bem explicou Jodelet (2001):

explorar as múltiplas inserções do interlocutor, os variados contextos, segundo Jesuino (2000) de

vai brotar a representação social que elabora o novo, promovendo seu movimento de um

universo para outro. O trabalho de Gervais e Jovchelovitch (1998) sobre a representação da saúde

para a comunidade chinesa que vive na Inglaterra trouxe uma interessante contribuição para o

entendimento da pouca freqüentação dos serviços de saúde por aquela comunidade. O olhar

antropológico, a aproximação à cultura daquele grupo e as formas como ela se modificava de uma

geração para outra em contato com o novo país de morada confirmam a vocação da TRS para

figurar como uma antropologia do mundo contemporâneo.

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O levantamento de representações sociais, neste sentido, pode fazer parte de um trabalho

diagnóstico (no sentido psicossociológico, não psicopatológico, claro) para intervenções em

planejamento.

Ainda quanto à construção da representação que será a via de passagem do novo a um outro

espaço que não o da sua criação, a entrada em cena da dimensão afetiva tem definitiva

incidência. Não só porque sempre está em pauta a avaliação da novidade, a atitude dos sujeitos,

mas porque os afetos perseguem todos os processos elaborativos, influenciam todos eles,

infletindo-os, trazendo interferências imprevistas, agrado ou medos, prazer ou angústias,

imaginários que desenharão o contorno do objeto (Arruda, 2007). Se pensarmos em outros

processos psicossociais que importam nessas circunstâncias, como a influência social - do grupo

ou de alguns personagens -, o peso das minorias ativas ao insistirem sobre seu ponto de vista,

logo ressalta a presença do afetivo.

Também não se pode esquecer que a produção de representações sociais implica também uma

negociação, ou várias negociações. Negociação de significados, de sentidos, de influências e

afetos, negociação entre medos e desejos, entre possibilidades de representar. Negociação entre

grupos e suas maneiras de ver, suas lutas por espaço igualmente. Negociações do indivíduo com o

grupo e seu acervo afetivo-nocional. As circunstâncias em que os saberes circulam e se ancoram

no universo de pensamento pré-existente, bem como a configuração política que envolve a

incorporação da novidade e a memória de experiências assemelháveis não podem, portanto, ser

esquecidas. Tudo isto faz parte do que nós, profissionais do trânsito de saberes, podemos

pesquisar para levar a bom termo nossa função de mediadores culturais.

Derivadas e conseqüências ...

Por fim, algumas derivadas e consequências do debate de saberes são conhecidas por nós. Os

problemas de comunicação, muitas vezes originados na incompreensão do universo de sentidos

que o interlocutor traz consigo, produzem o descompasso na comunicação. Este seria a

defasagem que gera a incomunicação. Um bom exemplo se encontra em Knauth (1997) que

discute como o atendimento médico a mulheres de baixa renda visando a prevenção do SIDA.,

pode se tornar contraproducente. A anamnese realizada pelo médico contém perguntas

consideradas por elas como ofensivas (se mantinham relações extra-conjugais, se usavam

camisinha etc.). As mulheres se sentiam humilhadas pelo profissional, ao serem associadas a

um(a) Outro(a) do(a) qual querem se demarcar, e a partir daí, tudo que ele lhes recomendasse

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perdia o valor. A comunicação entre planos diferentes pode então redundar em processos de

diferenciação e alterização que afastam os interlocutores em lugar de aproximá-los, esterilizando

o processo de trocas e seu objetivo.

Outra possibilidade é que o trânsito não se complete, e não aconteça a elaboração da

representação, caso já discutido por Celso Sá (1998), e que pode indicar que aquele objeto ainda

não está estruturado como uma representação para aquele grupo, seja porque que não tem a

relevância que se pensava para ele, seja porque não lhe foi apresentado sob a melhor forma para

o objetivo que se busca, seja porque o processo de elaboração ainda está em seu início. No

extremo oposto temos os processos de conversão, como o que apareceu na pesquisa sobre a RS

da desnutrição pelas mães de crianças de baixo peso, em que a psicóloga consegue convergir para

o olhar da sua clientela, e passa a compreender e compartilhar dos seus saberes.

Também pode ocorrer a mudança da representação, portanto, e convém lembrar que, quando se

trata de representações hegemônicas, que têm um enraizamento antigo e amplo, geralmente de

várias gerações, ela tende a ocorrer seja por uma mudança radical da situação ou das práticas,

seja no longo prazo. Por último, também acontece a aproximação de saberes e o diálogo

construtivo, bem negociado, como vimos em alguns exemplos.

À guisa de síntese

O debate ocorre, portanto, entre saberes diversificados e em sentidos diferentes. No caso do

encontro de saberes especializados com os leigos, podem acontecer a resistência, o confronto de

lógicas diferentes; a modificação do saber difundido, do outro saber, a hibridação de saberes,a

mudança das RS. Processos psicossociais intervêm neste encontro e a importância das dimensões

presentes na elaboração do saber, inclusive a afetiva, é inegável. Entender o

encontro/debate/elaboração deste saber implica a compreensão das diferenças, a facilitação do

diálogo e é a base para mudança das RS

Espero que este curto panorama de pesquisas e reflexões sobre este aspecto da produção

brasileira tenha mostrado algumas características desta e possa contribuir de alguma forma para

os colegas vislumbrarem o interesse da Teoria das Representações Sociais para nós, que além de

profissionais do trânsito de saberes somos também profissionais envolvidos com os problemas

locais e com as transformações globais e suas conseqüências.

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