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José Carlos Vilhena Mesquita O ORGÃO DA SÉ DE FARO do pouco que se sabe ao muito que se presume. Publicado na obra A Música Uma Tradição Algarvia, edição da Delegação Regional do Sul da Secretaria de Estado da Cultura, Faro, 1989, pp. 103-110

Orgão Sé Catedral de Faro

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José Carlos Vilhena Mesquita

O ORGÃO DA SÉ DE FARO

– do pouco que se sabe ao muito que se presume.

Publicado na obra A Música Uma Tradição Algarvia,

edição da Delegação Regional do Sul da Secretaria de Estado da Cultura, Faro, 1989, pp. 103-110

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O ORGÃO DA SÉ DE FARO

– do pouco que se sabe ao muito que se presume.

À entrada da Sé de Faro, junto ao coro alto na nave esquerda, constitui surpreendente presença um belo e majestoso móvel, de proporções agigantadas, encimado por três anjos de perceptível traço joanino, dos quais se desprendem filigranas de talha dourada que emolduram um resplandecente conjunto artístico, de tonalidade acharoada, ornamentado por cenas bucólicas de inspiração chinesa.

Trata-se do Órgão Grande da Sé Catedral de Faro, peça invejável e de reconhecível ancestralidade, cuja inserção no contexto do património musical algarvio assume lugar cimeiro e até de particular relevo no acervo artístico português. Não foi, pois, com imerecida exaltação que publicamente salientamos a sua magnífica factura e rara beleza, considerando-o como uma das mais atractivas e apreciadas jóias artísticas da Sé de Faro.1

Atraídas pelo seu valor artístico prenderam-se as atenções de alguns estudiosos e investigadores. Não muitos, porém os suficientes para deixarem em aberto algumas dúvidas para ulteriores e mais aturadas investigações.

Com efeito, em torno deste notável exemplar da nossa arte musical gerou-se uma questão de capital importância, que consiste, tão simplesmente, na sua origem cronológica e na consequente aquisição do mesmo por parte do cabido farense. O desconhecimento deste pormenor é, por si, suficiente para fazer desmoronar algumas das opiniões formuladas sobre o assunto e, com isso, obrigar a reformular as investigações precedentes.

Não dispondo de elementos seguros que possam contrariar, ou refutar, os actuais conhecimentos, limitar-me-ei apenas a equacionar as teses perfilhadas pelos investigadores que com maior probidade analisaram o tema.

Numa ordem de pertinente sequência destacamos três autores: Luís Artur Esteves Pereira, José António Pinheiro e Rosa e o Prof. Doutor Marcello Martiniano Pereira.

1 Vide J. C. Vilhena Mesquita, "Um órgão joanino na Sé de Faro. Persistem algumas dúvidas acerca do seu construtor", in

«Diário de Notícias», de 24-4-1984.

Sé Catedral de Faro (gravura antiga), construída no séc. XIII

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I. Um órgão de "interesse europeu", supostamente construído pelo mestre alemão Arp Schnitger.

O primeiro dos citados estudiosos publicou no semanário farense «Correio do Sul» um artigo, de que se ditou separata2, onde sustenta que a autoria do órgão da Sé de Faro deveria atribuir-se ao famoso organista hamburguês Arp Schnitger (1648-1719). Fundamenta a sua teoria nas semelhanças existentes com um outro órgão situado em Cappel, uma pequena cidade alemã a sul da foz do Elba, que teria sido, com toda a certeza, construído por Arp Schnitger. A concepção funcional deste órgão é quase idêntica ao de Faro, com a torreta central de cinco faces e sete tubos flautados, torretas laterais triangulares de sete tubos cada, apresentando nos espaços intermédios pequenos tubos, alguns deles apenas ornamentais, como é o caso dos "cónegos".3

O método comparativo, quer do traço artístico quer da composição técnica, parece constituir o único meio utilizado por Esteves Pereira para instruir a sua teoria. Faltou-lhe, porém, a hombridade de revelar que a 10 de Outubro de 1964, ou seja 5 anos antes de escrever este artigo, havia escrito uma carta ao Dr. Gustav Fock, musicólogo e especialista na arte do órgão na Alemanha do Norte, na qual lhe pedia informações acerca de Arp Schnitger. Respondeu-lhe este erudito alemão em 26 de Outubro, afirmando que um organista de Groninga, chamado

Siwert Meijer4 publicara em 1853 uma série de artigos biográficos sobre Arp Schnitger, alicerçados nos manuscritos deixados por aquele célebre organeiro. Receava, porém, que esses documentos já não existissem. De qualquer modo, afirmava que Neijer transcrevera uma nota onde Schnitger registara a seguinte mensagem: «1701... dois órgãos construídos, cada um com 12 registos, dois teclados e um fole. Ambos enviados a Portugal».5

Ainda na mesma missiva o Dr. Gustav Fock informava o seu correspondente de que o Dr. Rudolph Reuter da Universidade de Muenster lhe revelara, por ter observado in loco, «que na Catedral de Faro existia um órgão de estilo nórdico, mas parecera-lhe

2 L. A. Esteves Pereira, O Órgão da Sé de Faro, Faro, separata do «Correio do Sul», 1969.3 Cf. Idem, op. cit., p. 5.

4 Siwert Meijer foi um organista de merecimento que exerceu a sua profissão na cidade de Groninga, pelo menos desde 1850. De apreciável cultura intelectual a ele se deve um desenvolvido trabalho sobre a vida e obra de Arp Schnitger, subordinado ao título "Contribuição para a história da construção do órgão", publicado em 1853-1854 no jornal «Caecilia, Allgemeen muzikaal tijdschrift van Nederland» que se editava em Utreque. Para a elaboração deste trabalho, serviu-se de vários manuscritos alemães do próprio Schnitger, pertencentes a uma família de organeiros de apelido Freytag. Os artigos de Siwert Meijer revelam-se de grande interesse, mas infelizmente receia-se que a documentação por ele consultada se tenha perdido.

5 Vide Marcello Martiniano Ferreira, Arp Schnitger, dois órgãos congéneres de 1701. Suas destinações atuais e características técnicas 2 vols., dissertação de Doutoramento, dactilografado, Roma, Instituto Pontifício de Musica Sacra, 1984-1985, vol. I, pp. 37-38, onde se publica, em francês, a carta do Dr. Gustav Fock.

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Sebastian Bach, emérito organista, preferia os órgãos fabricados por Arp Snitger

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que este possuía mais de 12 registos. Contudo, disseram-lhe em Faro que o órgão teria vindo da Holanda».6

Acontece que nenhum destes esclarecimentos prestados pelo Dr.Fock se encontram citados no artigo de L.A.Esteves Pereira, atitude essa que sendo deselegante é também incompreensível para um investigador da sua envergadura.

Por outro lado, o Dr. Ayres de Carvalho, mercê das investigações a que procedia e mais tarde materializaria em livro7, revelou-lhe a descoberta dos contratos notariais de Ioanes Henriques Ulemcamp8, para a construção de dois órgãos; o primeiro dos quais,

datado de 27-8-1711, dizia respeito à Igreja de S. Francisco em Lisboa9 e o segundo, datado de 25-11-1721, ao convento do Carmo na mesma cidade.10

Muito embora estas datas não fossem concludentes, entendeu Esteves Pereira que os dois órgãos, de S. Francisco (1711) e da Sé de Faro (1716), correspondiam àqueles que Arp Schnitger teria enviado para Portugal. Apesar de incorrecta, esta dedução parece lógica, porque Esteves Pereira, no intuito de lhe dar maior credibilidade, omitiu no seu trabalho a data de 1701 que, como vimos atrás, constitui o ano da construção de dois órgãos enviados por Arp Schnitger. Mais inexacto ainda é o facto de Esteves Pereira remeter para nota de rodapé as informações prestadas pelo Dr. Gustav Fock, como presumível suporte da "concordância" de datas – o que pela carta acima transcrita se comprova precisamente o contrário. Além

disso, nos contratos referidos ficava explícito que a construção dos mesmos seria, unicamente, da responsabilidade de Ulemcamp, para além de que o de S. Francisco possui 20 registos e não 12 como os que Schnitger mandou para o nosso país em 1701.

A principal razão que levou Esteves Pereira a admitir a autoria de Arp Schnitger prende-se com o facto de ter lido uma mensagem assinada por C. David11 – que se

6 Idem, op. cit., vol. I, p. 38.

7 A. Ayres de Carvalho, Documentário artístico do primeiro quartel de setecentos exarado nas notas dos Tabeliães de Lisboa, Braga, 1973, separata da revista «Bracara Augusta», vol. XXVIII, nºs 63 a 75.

8 Sobre João Henriques Ulemcamp podem-se obter alguns informes biográficos na obra de Ernesto Vieira, Diccionario biographico de musicos portugueses, 2 vols., Lisboa, 1900, p. 489.

9 ANTT, Cartório Notarial, nº 11, Livro 18, 1711, fls. 94-95.

10 ANTT, Cartório Notarial, nº 9-A, Livro 381, 1721, fls. 68vº-69vº.

11 Trata-se do cónego António Fernandes da Cruz David, que nasceu em Faro a 22-7-1834 e era filho de Manuel Fernandes David, natural de Pedrógão, da diocese de Coimbra, e de Maria Theodora da Cruz, natural de Faro.

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Órgão da Sé de Faro, construído por Arp Schnitger

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encontrava colada junto à ombreira da porta que dá acesso ao interior da caixa do órgão – na qual se afirma o seguinte:

"Este órgão foi encomendado pelo Revmº Cabido desta Cate- dral no anno de 1715 ao orga- neiro João Henriques, residente em Lisboa o qual veio colo- cal-o em 1716. No anno de 1767 foi aumen- tado com jogos novos e (novos) re- gistos entre os quaes foi [pos-] to o d'echo e contra echo pe- lo organeiro Pascoal. Foi limpo e afinado nos annos de 1722, 1775,1814 e ultimo no mez de Agosto de 1874 pelo organeiro hespanhol D. Fran- cisco Alcaide. No compartimento inferior deixo [???].............................. C. David"12 (12)

Como se constata, as informações aí contidas são bastante preciosas para o esclarecimento da (presumível) origem, data de aquisição e autoria do órgão. O ano de 1716, que também se encontra gravado na caixa do mesmo, parece confirmar uma "encomenda" feita pelo Cabido de Faro a um organeiro de nome João Henriques. Bastou essa referência para que Esteves Pereira supusesse tratar-se do organeiro alemão Johannes Heinhrich Hulemkamph, cuja adaptação para português redundara em João Henriques Ulemcampo. Acontece que Arp Schnitger tivera entre os seus colaboradores precisamente este Hulemkamph, resultando daqui a hipótese deste organeiro ter vindo para Portugal no princípio do século XVIII acompanhado dos tais órgãos enviados pelo seu mestre. No entanto, voltamos a lembrar que nos contratos relativos aos órgãos de S. Francisco e do Carmo é o nome de João Henriques que unicamente aparece citado. De qualquer modo, ainda que todas estas hipóteses possam corresponder à verdade e mesmo que na concepção estrutural dos órgãos existam fortes semelhanças com os seus congéneres alemães, parece-me algo forçada a atribuição da autoria a Arp Schnitger.

Em suma, a tese de Esteves Pereira poderá esquematizar-se da seguinte forma:

Curiosamente, o pai viera para esta cidade aprender o ofício de Farmacêutico no Colégio dos Carmelitas Descalços. No Arquivo da Câmara Eclesiástica de Faro, Livro dos Empregados Eclesiásticos, consta que se ordenou presbítero em 19-9-1857; foi Ajudador da Sé de Faro desde 1858 até 2-4-1865, ano em que foi promovido a Encomendado na Reitoria, voltando a Ajudador na Sé desde 8-1 até 24-10-1866, altura em que foi Encomendado para a Igreja de S. Pedro. Todavia, em 1866, já era Cónego. Faleceu a 12-12-1889.

12 Transcrito por L. A. Esteves Pereira, op. cit., p. 3.

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a) O escrito colado no órgão de Faro e assinado por C. David comprova a data de 1716.

b) O nome de João Henriques deveria corresponder ao do organeiro hamburguês Hulemkamph, construtor dos órgãos de S. Francisco e do Convento do Carmo em Lisboa.

c) Sabendo-se que, nos princípios do século XVIII, Arp Schnitger enviou para Portugal dois órgãos e que Hulemkamph era seu colaborador directo, fácil se torna admitir que a construção do mesmo tenha pertencido àquele mestre alemão.

d) A semelhança existente com o órgão de Cappel, da comprovada autoria de Arp Schnitger, indicia um construtor comum. A análise técnica do órgão de Faro parece indicar uma origem alemã.

Não obstante tudo quanto ficou dito, permanece em aberto a questão por inteiro, visto não terem sido aduzidas provas concludentes.

E o certo é que tanto Esteves Pereira como os investigadores que a seguir iremos referir ainda não descobriram o contrato, o recibo ou a nota de encomenda do órgão pelo cabido farense, documentos que poderiam revelar definitivamente as suas origens.

II. A dúvida criteriosa impregna o espírito hermenêutico da História.

– A tese de Pinheiro e Rosa.

O conhecido investigador e académico José António Pinheiro e Rosa, após ter lido o estudo de Esteves Pereira, escreveu no semanário farense «Folha do Domingo» uma série de artigos subordinados ao título "E o mudo falou... O órgão da Sé de Faro" 13. Com base nos livros capitulares (Acórdãos do Cabido e Contas da Fábrica da Santa Sé

Catedral) o autor concluiu que nenhuma destas fontes documentais comprova a encomenda de um órgão efectuada pelo Revmº Cabido de Faro a João Henriques, que o teria vindo colocar nesta Sé Catedral em 1716. Bem pelo contrário, nos livros capitulares transparece a existência do(s) órgão(s) desde 1628 e com referência a certos detalhes que inibem quaisquer hipóteses de substituição do mesmo nos séculos seguintes. Ficariam, deste modo, refutadas as informações apensas pelo cónego Cruz David no interior da caixa daquele instrumento.

Relativamente à inscrição de "1716" – gravada a ouro no próprio órgão – admite que teria sido ali incrustada pelo pintor Francisco Correia em 1751 durante a vacância da Sé, «por saber que, nesse ano, o órgão tinha sido colocado no seu coreto, transferido do coro, onde a princípio estivera, tendo os foles no coreto por

13 Ver «Folha do Domingo» de 18 de Outubro a 15 de Novembro de 1969.

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cima do baptistério, que só após o terramoto [de 1722] passaram para o fundo do coro, onde agora estão».14

Referindo-se à tese de Esteves Pereira contesta-lhe, ainda, a comparação estabelecida com o órgão de Cappel, por esta se fundamentar em razões de semelhança que lhe parecem algo forçadas e até inexistentes. Com efeito, Pinheiro e Rosa sustenta que as diferenças entre ambos são notórias e até acentuadamente distintas:

1º A caixa do órgão de Faro é nitidamente uma peça artística que deverá remontar ao reinado de D. João V, sendo quase certa a intervenção de pintores e entalhadores portugueses.

2º Do meio da fachada até à base, as duas caixas são diferentes do órgão de Cappel.

3º A pintura e a douradura datam de 1751, conforme se atesta nos livros capitulares.

4º A divisão dos registos do positivo de peito, embora de fabrico alemão, deveria ser originária do século XVII. De qualquer modo, as reformas nele operadas pelo organeiro italiano D. Pascoal Caetano Oldovini, pouco depois do terramoto até 1779, alteraram substancialmente o processo dos registos, embora sem conseguir modificar a qualidade «aveludada do próprio som».15

De qualquer modo, a tão criteriosa quanto inquietante incerteza em que Pinheiro e Rosa se tem mantido inamovível prende-se, única e exclusivamente, com a falta de provas documentais que asseverem a compra do órgão de Faro. Estranha sobremaneira aquele investigador que a aquisição de tão preciosa quanto avultada peça da nossa arte musical não tenha ficado registada nos livros capitulares. Por outro lado, interroga-se sobre o destino que teria tido o órgão (ou órgãos) que os documentos referenciam desde 1628.

Apesar de tudo, Pinheiro e Rosa não parecia interessado em alimentar polémicas, frisando até que não pretendia contestar a possibilidade do órgão da Sé de

Faro ter sido construído por Arp Schnitger e de João Henriques Ulemcamp ter servido de intermediário no negócio da compra do mesmo. Não vale a pena desmanchar prazeres enquanto não aparecer o tal recibo ou uma prova fidedigna da sua aquisição – diríamos nós pelo autor!

14 J. A. Pinheiro e Rosa, A Catedral do Algarve e o seu Cabido. Sé em Faro, 2 vols., Faro, separata dos «Anais do Município de Faro», 1983-1984, vol. I, p. 81.

15 J.A. Pinheiro e Rosa, Órgãos, organistas e organeiros no Algarve dos séculos XVII a XX, Lisboa, Instituto Português do Património Cultural, 1987, pp. 9-10.

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O Prof. Pinheiro e Rosa tocando órgão na Igreja de São Lourenço de Almancil

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III. A reformulação da hipótese inicial origina uma dissertação de doutoramento.

O mais recente investigador que a este assunto dedicou a sua atenção foi o Prof. Doutor Marcello Martiniano Ferreira16, que na sua dissertação de doutoramento, defendida em Roma, desenvolve uma perspicaz cadeia de raciocínios e argumentos lógicos, fundamentados na investigação histórica e, sobretudo, na constituição técnico-estrutural do órgão, a ponto de concluir que existem fortes semelhanças (quase uma duplicação) com um seu congénere na Sé de Mariana, no estado de Minas Gerais, no Brasil.

Trata-se, com efeito, de um estudo sério e cientificamente conduzido, que tivemos a oportunidade de apreciar atentamente na edição dactilografada apresentada ao Instituto de Musica Sacra de Roma. A opinião com que ficamos é a de que constitui um esforço imenso para provar que o órgão da Sé de Mariana – que o autor conhece ao pormenor – era uma espécie de "irmão gémeo" do de Faro. A expressão é do próprio autor. Mas, para que assim pudesse ser considerado, impunha-se saber quem teria sido o "pai", o que o autor não conseguiu apurar com toda a certeza, senão através de aproximações de semelhança técnica que o induziram a atribuir a mesma identidade, autoria ou "paternidade".

Mas vejamos as razões que levaram o Prof. M. M. Ferreira a interessar-se pelo órgão de Faro.

Em primeiro lugar, este organista brasileiro e especialista em música sacra estudou em pormenor o órgão da Sé de Mariana, sobre cujo passado histórico decidiu elaborar um trabalho de carácter académico. Surgiu, assim, a ideia de realizar a sua dissertação de doutoramento. Contudo, o seu orientador de tese sugeriu-lhe que encetasse uma estratégia de investigação com base no método comparativo, na medida em que sendo o órgão de Mariana da (suposta) autoria de Arp Schnitger outros encontraria, certamente, da mesma origem na Alemanha. Aquela sugestão ficaria ainda mais reforçada quando o organista e musicólogo Helmut Winter – que em 11-5-1974 viera inaugurar o órgão de Faro depois do seu restauro na empresa holandesa D. A. Flentrop de Zaandam, efectuado entre 1972 e 1974 a expensas da Fundação Caloustre Gulbenkian – o informou que na capital do Algarve existia um órgão muito semelhante ao de Cappel. Sabendo-se que este último era da autoria de Arp Schnitger e que o de Mariana se atribuía ao mesmo construtor, fácil se tornou deduzir que o de Faro, pelas semelhanças artísticas existentes com os anteriores, seria da mesma origem.

16 Marcello Martiniano Ferreira nasceu em Ponte Nova, no estado de Minas Gerais, Brasil, a 27-11-1932. Estudou no colégio Salesiano, onde fez o seu noviciado, e frequentou a classe de piano da Prof.ª Helena Lodi em Belo Horizonte. Exerceu o múnus religioso no Rio de Janeiro em cuja Universidade se diplomou em piano, seguindo depois para Roma onde se especializaria em órgão no Instituto Pontifício Superior de Música Sacra. Obteria ainda o curso de cravo no Conservatório de St.ª Cecília. Especializou-se em órgão e cravo na "Schola Cantorum" de Paris, na Escola Superior de Música em Munique, em Haarlem na Holanda e em Perusa na Itália. No Instituto Pontifício de Musica Sacra, em Roma, defendeu, a 18-4-1985, a sua Tese Doutoral que foi aprovada com distinção e louvor.

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E, de facto, o Prof. M. M. Ferreira após ter procedido a minuciosas análises comparativas entre os dois órgãos, do Brasil e do Algarve, concluiu que pertenciam ambos ao mesmo construtor. Mas, se umas vezes essas semelhanças eram quase evidentes, noutras, porém, diferiam substancialmente, o que o autor procurou tornear, justificando-as através dos restauros e acrescentamentos introduzidos em 1767 por D. Pascoal Caetano Oldovini, cujas alterações técnicas não seriam conhecidas ou utilizadas na Alemanha.

Muito embora a obra do Prof. M. M. Ferreira se possa considerar de grande mérito, especialmente pelo facto de se estribar em numerosos documentos (a maioria dos quais já haviam sido compulsados por Pinheiro e Rosa), o certo é que lhe faltam provas concludentes acerca da data original do órgão, o que, no caso, contraria bastante os pressupostos e objectivos primaciais da própria tese.

Deixamos, acima, explícito, e de forma resumida, que pertencem a Pinheiro e Rosa alguns dos argumentos que a posteriori viriam a constituir fundamentais objecções à tese do investigador brasileiro. Por consequência, a refutação desses argumentos deveria transformar-se nos pilares de sustentação da obra do Prof. M. M. Ferreira.

Vejamos, então, como o doutorando procurou contrariar o seu involuntário opositor:

1. Apesar de nos livros capitulares –

dos «Acórdãos» e da «Fábrica» – se constatar a existência do(s) órgão(s) desde o séc. XVII, nada obsta a que no princípio da centúria seguinte se tivesse adquirido um novo, para substituir outro velho.

2. Muito embora as fontes documentais não refiram a encomenda do órgão novo – tanto em 1715 como nos anos anteriores ou posteriores a essa data – não significa isso que a aquisição não se tivesse efectuado, devido às seguintes razões:

a) Os livros capitulares registam os movimentos económicos de forma muito sintetizada, incompleta e até truncada em vários lugares. Como prova disso refere que em 1747 o cónego Bartolomeu Gárfias apresentou ao Cabido um requerimento a pedir justificação testemunhal de acórdãos tomados no livro que compreende o período de

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Órgão da Igreja de Mariana da autoria de Arp Schnitger

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1701 a 1718, cujas páginas foram arrancadas, mais concretamente as folhas 63-64 e 87-88.17

b) Confirma-se esta situação em 1715 através da falta de registo dos acórdãos de 13-3 a 17-4, de 26-4 a 12-6 e de 22-6 a 16-12-1715. Também não se transcreveram nos livros competentes os acórdãos de 29-12-1715 a 20-2-1716, de 4-3 a 23-5, de 20-6 a 8-8, de 6-10 a 27-10, e, igualmente, nada consta entre Novembro e 12-12-1716.

c) Estes lapsos cronológicos são deveras estranhos quando se sabe que o Cabido farense se reunia todas as 5ª feiras, não sendo de admitir tão longos hiatos como os que aconteceram no último semestre de 1715. Além disso, nesse ano a falta de assentos no livro dos acórdãos totaliza cerca de oito meses e meio. E no ano de 1716 a soma das lacunas ou interrupções totaliza cerca de sete meses. Apesar de entre 1710 e 1715 se verificar uma situação de Sé vaga, nada poderá desculpar tão grandes falhas.

d) Muitas das portarias que obrigavam o Tesoureiro a pagamentos de certo vulto não foram transcritas nos livros dos Acórdãos ou da Fábrica, por constituírem em si mesmos aquilo a que se chama “papéis avulsos”, sendo previsível que com o decorrer dos tempos se tivessem perdido. Por isso, a compra do órgão poderia constar numa dessas portarias.

e) Nos livros da Fábrica não se deveria inscrever a compra do órgão, visto tratar-se de uma despesa que estaria fora da administração ordinária da Sé. Importa esclarecer que nesses livros apenas se deveriam citar as despesas relacionadas com as obras de restauro ou de instalação dos bens patrimoniais. Por isso, as obras do coro alto neles registadas em 1716 parecem indiciar a instalação do novo órgão: «as verbas registadas com obras no coro alto nesta época (1716) só se explicam cabalmente como consequência das modificações que o novo órgão impôs na distribuição do espaço do coro: nova varanda (coreto), alargamento do espaço para os cónegos e para os cantores, etc».18

Os documentos que confirmam estas obras revelam que as mesmas se prolongaram por mais de dois anos.19

f) Nas referidas fontes documentais, a partir de 1716, apenas constam dois assentos de despesa relacionados com o órgão, o que contrasta com os frequentes gastos efectuados em anos anteriores. Esta situação parece sugerir que a partir daí o órgão seria outro, provavelmente novo. Saliente-se que o primeiro caso ocorreu em 172220, por

17 Arquivo da Sé de Faro, Livros dos Acórdãos, 1747, doc. avulso. Neste requerimento o cónego Bartolomeu Gárfias queixa-se não só do arranque de folhas como também de não terem sido escritos vários acórdãos tomados nessa época.

18 Marcello Martiniano Ferreira, op. cit., vol. I, p. 48.

19 Arquivo da Sé de Faro, Livro da Contadoria, 1716, fl. 86vº, onde se regista a verba de 354$420 réis para pagar aos oficiais que trabalharam nas obras do coro. Idem, Livro da Fábrica, 1717-1718, fls. 34-35, nas quais se refere o dispêndio de 114$750 réis para acabar de fazer a obra do coro.

20 Arquivo da Sé de Faro, Livro dos Acórdãos, 1718-1730, fls. 62-62vº, acórdão de 18-6-1722, onde se refere o pagamento de 15 moedas de 4$800 réis cada a um afinador, por causa da chuva que se infiltrou pelas fendas provocadas pelo terramoto e caiu sobre o órgão.

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causa do terramoto21, que obrigou à sua afinação, e em 1743 por precisar de um conserto de que resultaria um melhoramento.22

Apesar de todas estas justificações, que pretendem substanciar a confirmação lógica da data de 1716 como originária do órgão (corroborando, assim, o letreiro do cónego David e a inscrição dourada colocada acima da tampa do someiro do órgão positivo de peito), nada se acrescenta de concreto e indubitável acerca desta tão simples quanto imprescindível interrogação: Quem pagou o órgão? E quem lhe descobrir a resposta poderá confirmar ou aniquilar a tese do Prof. M. M. Ferreira!

Na impossibilidade de poder resolver esta questão, o autor adianta algumas hipóteses que, por enquanto, aguardam ratificação ou refutação documental. Vejamos quais são essas hipóteses:

1. Tal como D. João V ofereceu à Sé de Mariana um órgão, também o poderia ter feito à Catedral de Faro, até pelo facto de ambos serem tão parecidos que se poderiam considerar "gémeos". Mas se não foi o rei o ofertante, podia tê-lo sido a Rainha, a cuja Casa pertencia, como se sabe, a cidade de Faro. Talvez, ainda no âmbito destas hipóteses, se possa acrescentar a intercepção favorável do Secretário de Estado,

Cardeal D. João da Mota e Silva, que tinha um irmão, Pedro da Mota e Silva, como cónego da Sé de Faro. Aliás em 1715-1716 andava este Pedro da Mota em Lisboa a proceder a diligências encomendadas pelo Cabido, podendo-se atribuir a este cónego (que também haveria de ser Secretário de Estado) um provável pedido de oferta dum órgão para a Sé de Faro.

[Mas o Prof. M.M. Ferreira não descobriu nem conhece quaisquer documentos que comprovem ou indiciem a veracidade destas hipóteses. Se alguma delas tivesse ocorrido certamente o Cabido agradeceria, por escrito, tão avultada dádiva.]

2. Outra hipótese seria a doação do órgão por parte de um benemérito, eclesiástico ou leigo.

[Mas quem? A troco de quê? Porque razão?]

3. Podia admitir-se a compra do órgão com os remanescentes dos "foros dos órgãos", pois que, na verdade, estes existiam como receita do Cabido para a sustentação

21 Em 1716 tudo parece indicar que o órgão grande foi instalado no coreto da nave lateral norte, o que se confirma em 1722, visto que na altura do sismo então ocorrido fez-se sentir um forte vendaval que inundou de água os foles do órgão, precisando, por isso, de ser afinado. Já agora, refira-se que o terramoto de 1722 fez ruir o arco do coro alto da Sé e provocou vários outros estragos, sobretudo na torre-fortaleza.

22 Arquivo da Sé de Faro, Livro dos Acórdãos, 1743-1746, fls. 10-10vº, acórdão de 10-5-1743, no qual se afirma que o órgão necessitava de 24 cléricos e de trombetas na fachada, importando isso na quantia de 14 moedas de ouro.

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Igreja de Mariana, construída no séc. XVIII em estilo Barroco

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dos organistas, reparações, etc. E se assim fosse não teria o Cabido que agradecer a ninguém.

[Esta hipótese tem lógica; porém, o rendimento desses foros não parece ter sido muito substancial, para além de que sempre se despendia uma boa parte nos vencimentos dos organistas e até nas reparações ocorridas antes de 1716, o que põe de parte a hipótese de poupanças desde longa data.]

4. O Cabido podia ter comprado o órgão com verbas que não fossem da «Fábrica», no que podia contar com a ajuda da «Mesa Episcopal» [se esta não estivesse exaurida. Também neste caso a hipótese parece improvável].

*

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Provas documentais? Não há, ou pelo menos ainda ninguém as encontrou. Só uma aturada investigação nos livros do Corpo Cronológico e da Chancelaria de D. João V, guardados na Torre do Tombo, ou no Arquivo de Mafra (rico em documentação que se prende com a história da música no séc. XVIII), poderia concorrer para aclarar estas questões.

Pessoalmente, creio que as minuciosas pesquisas efectuadas por Pinheiro e Rosa e pelo Prof. M. M. Ferreira no Arquivo Eclesiástico de Faro, fazem supor que a prova documental, relativa à aquisição do órgão da Sé, deverá ser procurada noutros locais e noutras fontes, pois é de presumir uma colaboração financeira externa ao

Cabido para este efeito. Enquanto não se descobrir o recibo de pagamento, ou um documento que comprove a doação do órgão, ninguém poderá afirmar, de forma incontestável, que a sua autoria pertence a Arp Schnitger, ou que nesta Sé Catedral foi o mesmo instalado em 1716.

De qualquer modo, e depois de termos lido com certo cuidado a tese do Prof. M. M. Ferreira, não podemos deixar de concordar que os órgãos de Mariana e de Faro são muito parecidos. Como o órgão de Cappel, na Alemanha, é da autoria de Arp Schnitger e possui algumas semelhanças com estes dois, parece lógico admitir que também eles pertenceriam ao talento do mestre germânico. Todavia, uma coisa é o parecer e outra o ser. As razões aduzidas pelos investigadores aqui citados, apesar do respeito que nos

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Órgão da Sé de Faro, igualmente da autoria de Arp Schnitger

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merecem, carecem, no entanto, de um alicerçamento documental, capaz de sustentar, sem quaisquer tibiezas, as suas teorias.

Muito particularmente, estou em crer que o órgão é de facto do século XVIII e poderá ser até de 1716; mas tenho dúvidas que pertença a Arp Schnitger. Só a descoberta de melhores provas poderá, repito, desvendar este imbróglio.

Para terminar, não posso deixar de remeter os estudiosos interessados na técnica musical dos órgãos setecentistas para a dissertação de doutoramento do Prof. M. M. Ferreira, que, neste aspecto particular, reputo de brilhante. A apreciação dos elementos constitutivos dos dois instrumentos e a qualidade do som por eles obtidos é, nesta obra, analisada até ao mais ínfimo pormenor, seguindo os trâmites duma metodologia bastante rigorosa. O facto de se tratar de uma obra de índole académica, que se reveste de particular interesse para o estudo do património musical algarvio, merece da nossa parte o maior apreço e satisfação.

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