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Universidade Federal do Amazonas Instituto de Ciências Humanas e Letras Programa de Pós-Graduação “Sociedade e Cultura na Amazônia” Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus Maria Evany do Nascimento Orientação: Luiz Balkar Sá Peixoto Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 1

Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

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Dissertação de mestrado defendida em 2003, no Programa de Pós-Graduação em Sociedade e Cultura na Amazônia, UFAM - Universidade Federal do Amazonas.

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Page 1: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

Universidade Federal do Amazonas

Instituto de Ciências Humanas e Letras

Programa de Pós-Graduação “Sociedade e Cultura na Amazônia”

Patrimônio e Memória da Cidade:

Monumentos do Centro Histórico de Manaus

Maria Evany do Nascimento

Orientação: Luiz Balkar Sá Peixoto

Manaus

Agosto de 2003

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 1

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Introdução

A cidade é uma teia de significações e (re) significações de uma complexidade

tamanha que para decodifica-la é necessário um olhar multidisciplinar. Este tipo de

abordagem é muito comum hoje em debates, encontros, seminários e publicações sobre o

tema. Compreender a cidade a partir de um único ponto de vista não é mais possível, e

profissionais de vários setores são chamados a lançar seu olhar sobre a urbis para traçar-lhe

um mapa mais completo. Psicólogos, arquitetos, médicos, engenheiros, artistas, poetas,

todos têm uma contribuição para dar ao estudo sobre a cidade contemporânea. Dentro dessa

teia, este trabalho se propõe a apresentar um enfoque temático pontual e atual em se

tratando da cidade de Manaus: memória, patrimônio e monumento. Discussão que permeia

encontros e debates sobre as mudanças e adaptações da sociedade moderna em todas as

cidades.

Memória e Patrimônio da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

trata-se de um trabalho cuja trajetória se iniciou com o Programa Institucional de Bolsas de

Iniciação Científica – PIBIC, em 1997, na Universidade Federal do Amazonas. O projeto

intitulado Inventário e Catalogação de Obras de Arte em Logradouros Públicos do Centro

Histórico de Manaus, objetivava fazer um mapeamento das obras escultóricas localizadas

na área do Centro Histórico da Cidade, com o levantamento de alguns dados históricos

sobre as peças. O trabalho agradou e obteve o 1o lugar na Área de Ciências Humanas da

UFAM, em 1998, participando ainda neste ano do VI Seminário de Iniciação Científica da

Universidade Federal de Ouro Preto, em Minas Gerais. Em uma segunda etapa, a pesquisa

foi ampliada, com enfoque sobre questões como a cidade e a preservação de suas obras dos

espaços públicos. Obras de Arte em Logradouros Públicos do Centro Histórico de Manaus

foi monografia de final de curso da Especialização em História e Crítica da Arte. Parte

desta monografia encontra-se na Editora Valer aguardando publicação com o título

Monumentos Urbanos de Manaus, com previsão de lançamento para este ano de 2003.

Com nova reestruturação e enfoque mais pontual sobre memória e patrimônio o

presente trabalho se apresenta em três capítulos. No primeiro, sentiu-se a necessidade de

localizar o objeto de pesquisa, revisando as principais modificações no traçado urbano da

cidade de Manaus desde sua construção. Procurou-se registrar as ideologias que

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conferiram à cidade o traçado, as obras, a imagem e os conflitos da modernidade. Buscou-

se a partir de Argan e Munford compreender, em Manaus, as mudanças de sistema que

substituíram a cidade como obra para a cidade considerada produto e o espaço público

sofrendo essas transformações. No segundo capítulo o enfoque versou sobre questões de

memória e patrimônio, com pequeno histórico sobre cada tema e a importância destas

discussões para a cidade com a inclusão da memória e da história dos logradouros públicos

do Centro Histórico. Utilizando-se alguns dos principais teóricos sobre o assunto

pretendeu-se articular as idéias centrais destes, com a realidade da cidade de Manaus no

que se refere ao tema estudado: a memória e o patrimônio da cidade. Verificou-se a

legislação vigente sobre a proteção e conservação dos bens artísticos e culturais da cidade e

a atuação das entidades competentes. O terceiro capítulo apresenta os quatro monumentos

selecionados e estudados. Consta de histórico, condições atuais de conservação e

preservação, valor histórico e valor artístico de cada obra e a relação da sociedade com

estes bens. Aproveitando-se das idéias de Argan, Françoise Choay e Cristina Freire, traçou-

se a participação dos monumentos selecionados na vida do cidadão amazonense, de que

forma ele interage e se apropria desses bens, que significados possui estes monumentos, de

que forma a memória registrada nas obras chega à população e que importância esta lhe

confere. Nos comentários finais um olhar particular sobre como o poder público e os

setores governamentais competentes tratam o patrimônio da cidade, as políticas

desenvolvidas e a atuação conferida à proteção e conservação da memória e patrimônio, no

que se refere ao Centro Histórico. A partir deste estudo aponta-se possibilidades de se

potencializar o conhecimento e a valorização do patrimônio da cidade de Manaus para que

se resguarde a cultura, a memória e a história da cidade. Em documento anexo, encontram-

se imagens das obras escultóricas localizadas nas praças do Centro de Manaus com um

mapa do seu histórico e suas condições atuais de conservação.

Não se trata de uma pesquisa concluída, mesmo porque no que se refere à cidade,

nenhum estudo está acabado, pois a cidade está sempre em transformação. Mas externa

uma preocupação com a memória e a história da cidade de Manaus que aos poucos está se

perdendo com a descaracterização de seus registros cristalizados em monumentos

espalhados pelas praças do Centro, um bairro que abriga o centro comercial cuja política de

sobrevivência é a valorização do produto novo.

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Capítulo 1 - Manaus: concepção e organização do espaço público

Cidade de Manaus: suas origens e transformações ao longo da história

Manaus foi um povoado que nasceu ao redor de uma fortaleza, fato comum em

muitas cidades, transformou-se em vila, passou de vila à cidade. Não foi planejada

inicialmente. O forte foi construído para proteger a região de expedições invasoras.

Depois da fundação da cidade de Belém (a partir do Forte do Presépio, em 1616), as

terras do Rio Negro passaram a ser alvo de expedições que traziam soldados e missionários.

Estas expedições procuravam garantir as terras que ficavam além dos limites do Tratado de

Tordesilhas e também aprisionar índios, não só para serem usados como escravos em

Belém, mas para serem levados para os aldeamentos indígenas (agrupamentos formados

inicialmente pelos jesuítas para catequizar os índios, ensinando-lhes uma nova cultura).

Este trabalho dos jesuítas funcionava como um equilíbrio entre as prisões e o povoamento

efetivo da região, uma vez que os soldados regressariam com os índios capturados e os

jesuítas ficariam instalados em aldeamentos. Mas, por volta de 1661, os jesuítas começam a

ser expulsos da região. Neste mesmo período, os holandeses começavam a atacar pelo

Orinoco e os espanhóis pelo Solimões. O Governo do Estado do Grão-Pará, mandou então

construir uma fortaleza para defender o rio Negro e o Solimões.

Manaus: de aldeia à capital da Província (1669-1852)

Da fortaleza o primeiro nome da cidade

O forte que deu origem à cidade de Manaus, foi construído em 1669 e recebeu o

nome de: forte de São José da Barra do Rio Negro. Ao seu redor reuniram-se índios de

vários grupos; índios e militares deram início à aldeia que passou a se chamar Lugar da

Barra.

A construção do forte marca também a chegada da "civilização", de uma cultura que

se impõe e que, tempos depois determinará os costumes da cidade. O professor Otoni

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Mesquita1, citando o historiador José Ribamar Bessa Freire, fala sobre o aspecto simbólico

da construção do forte:

...o historiador José Ribamar Bessa Freire afirma que a fortaleza foi construída sobre um cemitério indígena e interpreta esse ato como "um fato sugestivo carregado de simbolismo que, como imagem, sintetiza por si todo o processo colonial". Sem dúvida, a imagem é bastante forte e pode ser interpretada como a real intenção dos portugueses em relação às manifestações nativas.

Quanto aos aspectos formais tratava-se de uma construção muito simples, em

relação às outras fortalezas construídas em outras cidades brasileiras. No entanto, como diz

o professor Otoni2:

Apesar da simplicidade da obra, essa edificação assumiu grande importância, por ser a primeira construção de vulto na região, tornando-se um marco do domínio português na área do Rio Negro e a instalação de uma arquitetura européia.

Em 1783, após a instalação da capitania de São José do Rio Negro, em 1757 e sem o

perigo das ameaças dos holandeses e espanhóis, o forte da Barra foi desativado. A artilharia

foi transferida para Mariuá por ser a capital e por estar próxima aos limites da área

disputada pelas coroas portuguesa e espanhola. O que nos resta do forte hoje, é uma placa

indicativa do lugar de sua construção, em uma área pouco visitada da cidade, pois

pertencente à administração do Porto de Manaus.

O Lugar da Barra

A partir de 1695, os padres carmelitas vieram substituir os jesuítas e construíram a

primeira capela de Nossa Senhora da Conceição. A presença dos missionários serviu para

legalizar a mestiçagem através dos casamentos entre portugueses e índios. No período

colonial, a igreja não desempenhava apenas um papel religioso: "Uma das funções urbanas

mais importantes no período colonial foi a função religiosa, sendo a Igreja não somente o

centro das práticas religiosas como da sociabilidade e da vida cultural."3

O professor Mário Ypiranga4 fala do trabalho dos jesuítas nesse período:

1 MESQUITA, Otoni. Manaus: História e Arquitetura (1852-1910). Manaus: Editora Valer, 1999, p. 24.2 Idem, p. 26.3 COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. São Paulo: Editora Grijalbo, 1977, p. 184.4 MONTEIRO, Mário Ypiranga. Fundação de Manaus. Manaus, 1948, p. 33.

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Ali estavam, diligentes, os missionários e oficiais, assistindo e disciplinando o gentio. E ao abrigo dessas duas forças díspares desenvolveu-se, no terreno adjacente ao forte, o povoado da Barra, simples arraial mal organizado a que os teupares transmitiam impressão bárbara de promiscuidade.

Ao falar das ruas, as palavras de Ypiranga5 lembram Munford, quando se refere ao

planejamento das primeiras cidades. Nada mais natural, a cidade está se organizando.

No período colonial a rua é apenas o caminho sem expressão, desvestido do tônus estético, aberto à revelia dos pés caminheiros nas manchas verdes do mato, por necessidade urgente ou por comodidade, não raro para abreviar distâncias.

O Lugar da Barra modifica-se lentamente neste período provincial. Mas alguns

melhoramentos urbanos são executados, como a abertura de ruas e praças e a construção de

pontes. De acordo com Mário Ypiranga6, a praça como logradouro público surge nesse

período. Continuando, afirma que as ruas e becos recebiam o nome do morador em

evidência ou do acontecimento mais marcante. As mudanças políticas ocorridas em 1833,

promovem o lugar à categoria de vila, que passa a se chamar então Vila de Manáos,

permanecendo como capital da nova comarca.7 Por esse período a vila já possuía casas de

estilo europeu, segundo relatos de viajantes, e onze ruas e uma praça, possivelmente a

Praça Dom Pedro II. A partir de 1848, quando a vila é elevada à categoria de cidade, com o

nome de Cidade da Barra do Rio Negro, e com a elevação do Amazonas à categoria de

Província, em 1850, a região passa a receber inúmeros estrangeiros:

... a região passou a despertar um crescente interesse internacional, atraindo grande número de viajantes: pesquisadores, cronistas, cientistas e aventureiros que eventualmente divulgavam os relatos de suas investigações e observações sobre vários aspectos da cidade.8

Percebe-se pelas falas dos visitantes que aqui desembarcaram e que vinham com

uma visão burquesa-européia, o preconceito externado em relação ao comportamento das

5 Idem, p. 51.6 Idem, p. 55.7 MESQUITA, op. cit, p. 28.8 Idem, p. 29.

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pessoas. A partir desses relatos, começa-se a se formar a imagem do homem amazônico

como de "costumes decadentes", preguiçoso. Isso porque, segundo Otoni9:

Os acidentes geográficos, a topografia e os hábitos regionais faziam do lugar um exótico aglomerado urbano, que misturava elementos ocidentais aos traços nativos e em muito pouco se assemelhava ao padrão europeu surpreendendo e impressionando os viajantes estrangeiros, cuja formação cultural e hábitos eram completamente diferentes. Manaus era uma cidade com características que em nada deveria assemelhar-se aos aglomerados europeus, que naquela época já usufruíam alguns benefícios introduzidos pela indústria e pelas modernas noções de higiene. O traçado da capital da Província do Amazonas obedecia praticamente aos ditames da natureza: era desenhada por vários igarapés, seu relevo era bastante acidentado, com morros e ladeiras; além disso, era comum nas construções residenciais o uso de materiais da região, tais como a madeira, a palha e o barro.

Em relação ao espaço urbano ocupado nesse período, sabe-se que:

À época da instalação da Província do Amazonas (1852) o sítio urbano de Manaus compreendia seis bairros (São Vicente, Campina, Costa d'África, Espírito Santos, República e Remédios) e estava restrito nos espaços compreendidos entre dois grandes igarapés, o da Cachoeira Grande e o da Cachoeirinha, segundo informações deixadas por Bento Aranha que também esboçou um croqui da cidade naquele período.10

O primeiro presidente da Província, João Baptista de Figueiredo Tenreiro Aranha,

ao chegar em 1852 e instalar definitivamente a Província, descreveu em seu relatório as

condições do lugar e a falta de melhoramentos urbanos, principalmente em relação aos

prédios públicos, que se encontravam em ruínas. A partir da autonomia da Província,

Manaus começa a receber melhoramentos e enfrenta as dificuldades da falta de material e

mão-de-obra. A cidade começa a mudar sua aparência e as pessoas, os hábitos.

As ruas vão sendo alargadas, arejadas pela própria necessidade das edificações, do trânsito de pedestres, de carroças de condução ou de transporte de água à domicílio. Praças são abertas com o feitio de uma cidade orgânica e para que em futuro remoto fossem aterradas, pois algumas delas ficavam colocadas em covões, outras em bôca-de-lobos.11

9 Idem, p. 36.10 PINHEIRO, M ª Luiza Ugarte. A cidade sobre os ombros: trabalho e conflito no porto de Manaus - 1889-1925. Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 1999, p. 28.11 MONTEIRO, Ypiranga. Op. cit., p. 62.

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O professor Ypiranga12 fala ainda sobre o "Arruador", que seria um substituto do

engenheiro ou técnico urbanista, profissional que atuava desde, pelo menos, o período da

Vila de Manaus. A ele competia marcar os limites dos bairros e alinhamentos das casas.

Manaus: as transformações urbanas na capital da Província (1852-1890)

Obras públicas no período imperial

A partir da elevação do Amazonas à categoria de Província, fato ocorrido em 1850,

mas efetivado em 1852, com a chegada do então presidente João Baptista de Figueiredo

Tenreiro Aranha, a cidade começa a sofrer transformações relevantes. As informações

sobre as obras públicas deste período foram tiradas da obra de Antônio Loureiro13, "O

Amazonas na época Imperial".

Obras Públicas: 1852-1860

No início do Período Imperial, a cidade sofreu muito com a falta de mão-de-obra

especializada, de materiais e ferramentas. Não existiam pedreiras,

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çÒX@ÂÄÊäèÞ@ÊÚ@bpjlv@o início da construção da atual Matriz; a contratação da

iluminação a gasogênio, num total de 26 lampiões.

12 Idem, p. 130/131.13 LOUREIRO, Antonio José Souto. O Amazonas na época imperial. Edição Comemorativa 45º aniversário de T. Loureiro Ltda. Manaus, 1989. Informações retiradas do capítulo "Obras Públicas".

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Obras públicas: 1860-1870

Neste período foi dado prosseguimento às obras do período anterior e iniciadas

outras novas como: a abertura da estrada Epaminondas, em 1865, e o aterro e calçamento

da praça Tamandaré e algumas ruas. Em 1867, era aberta a praça de São Sebastião e uma

rua a seu lado, a rua do Progresso, hoje 10 de Julho. Em março de 1868 foram divulgadas

algumas medidas em relação ao urbanismo, como: a proibição do corte de árvores, varas e

arbustos de mais de cinco palmos, nos riachos e igarapés, sob pena de multa. Também foi

proibido fazer escavações, revolver lama, deitar paus, lixo, material orgânico apodrecido ou

qualquer matéria que pudesse afetar a pureza das águas. Ficou proibido a lavagem de roupa

e animais nos igarapés da Cachoeira grande e Pequena. Essas determinações foram tomadas

porque toda a população usava a água dos igarapés para beber e cozinhar alimentos. Mas

também, porque queria-se imprimir práticas e comportamentos "civilizados" à população

que era constituída em sua maioria de índios e mestiços. Em relação a energia, em 1869, foi

contratada a iluminação por 60 lampiões a querosene, em postes de madeira, de 20 palmos

de altura, e a cidade voltou a ser iluminada a noite, o que não ocorria desde 1863. Os

lampiões seriam acesos meia hora após o pôr do sol e até as cinco horas da manhã, e, nas

noites de luar, meia hora após a saída da lua. Essa realidade era comum em muitas cidades

do interior do Brasil, como atesta Emília Viotti14:

Nas cidades do interior os únicos edifícios dignos de registro eram as igrejas e conventos, e mais raramente os edifícios da Câmara e da cadeia. O abastecimento de água era precário, ficando os moradores na dependência de poços e chafarizes. Dada a falta de esgotos, os dejetos eram despejados nos ribeirões ou no mar (quando a cidade era litorânea), escorregando, freqüentemente, pelo meio das ruas. A iluminação era precária, prevalecendo o óleo de peixe. Nas noites de luar a cidade ficava às escuras, iluminada apenas pela luz da lua.

Obras públicas: 1870-1879

Em 1871, foram calçadas as ruas Marcílio Dias e Flores (atual Guilherme Moreira).

No ano seguinte estava sendo feito o desaterro da Praça 28 de Setembro (hoje Praça

Heliodoro Balbi, ou Praça da Polícia), nesta obra foram empregados 35 índios.

14 COSTA, Emília Viotti da. Da Monarquia à República: momentos decisivos. São Paulo: Editora Grijalbo, 1977, p. 186.

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Em 1875 chegaram os sinos da Matriz, que em agosto de 1877 já estava concluída,

mas só foi benta e inaugurada a 15 de agosto de 1878. Neste ano, a praça da Matriz foi

desaterrada e outras praças e ruas foram melhoradas, com o trabalho dos cearenses. A

iluminação a querosene foi substituída por gás globe, pela Lei n.º 411, de 7 de abril de

1879.

A professora Luiza Ugarte15, complementa:

As intervenções iniciais do poder público no sentido do "aformoseamento" urbano ocorreram por volta da década de 1870 na praça da Imperatriz, onde também havia sido construído o primeiro cais da cidade, chamado de "Cais da Imperatriz".

Obras públicas: 1880-1889

Este foi o período mais fértil de obras públicas de todo o Império, devido ao

aumento da produção da borracha. Antônio Loureiro16 descreve bem esse crescimento:

A cidade de Manaus dobrou de tamanho e de população, crescendo, a partir da praça Pedro II, ao longo da estrada Epaminondas, até a praça da Saudade; pela atual 7 de Setembro, rumo à praça 28 de Setembro; para os Remédios, com a inauguração da nova ponte de ferro, sobre o igarapé do Aterro, e para a praça de São Sebastião; além do início do povoamento da estrada Correa de Miranda, a atual Joaquim Nabuco.

E, 1883, a iluminação pública ainda era feita com gás globe, e estava sendo

ampliada com a encomenda de 182 colunas de ferro, das quais 39 já haviam chegado. No

ano seguinte, o contrato foi rescindido para a instalação da luz elétrica.

Quanto ao serviço de águas, só foi providenciado a partir de 1880, antes, a

população apanhava a água no igarapé de Manaus, onde se lavava roupa, limpava-se

animais e tomava-se banho (sem roupa). Esses banhos foram considerados imorais e

proibidos em 1880, também por uma questão de implementação de novos comportamentos

e costumes à população local. A partir desse período começaram a ser idealizados projetos

para a construção de reservatórios. Inicialmente foram descartados o reservatório do Mocó

e da Castelhana, pela necessidade de represamento e bombas a vapor para a elevação da

água. Foi escolhido então o igarapé da Cachoeira Grande, que possuía a 3 quilômetros da

15 PINHEIRO, M ª Luiza Ugarte. A cidade sobre os ombros: trabalho e conflito no porto de Manaus - 1889-1925. Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 1999, p. 29.16 Op. cit., p. 170.

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foz, uma cachoeira, além de ter água limpa, sem matérias orgânicas ou ferrosas. A represa

ficou construída em 1884, um ano antes, todo o material para a distribuição da água já

havia sido contratado, inclusive várias fontes, para a população que não receberia a água

diretamente.

Durante os anos seguintes, as obras foram paralisadas por diversas vezes; até 1887,

nada havia sido entregue e já se chegava à conclusão de que o abastecimento não atenderia

a toda a população. O serviço começou a funcionar, após algumas experiências, em

dezembro de 1888. No ano seguinte, o abastecimento atendia diretamente a poucos prédios

públicos, tendo a população que pegar a água das fontes e bicas espalhadas pela cidade.

Agnello Bittencourt17 registra uma passagem interessante:

De certa feita, passava eu numa esquina, onde fora instalada uma bica d'água para o público, quando uns seis ou sete garotos brincavam de abrir a torneira e jogar água uns nos outros. Eis que surge a cavalo o Governador [Eduardo Ribeiro] acompanhado de um cavalariano e, rebenque em punho, põe a correr a meninada, aos gritos de - "Moleques! Esta água é para as lavadeiras!"

Além do melhoramento dos serviços básicos, começaram a ser projetados e

construídos grandes edifícios, como o Teatro Amazonas, cuja construção foi autorizada

pela Lei n.º 546, de 14 de janeiro de 1881, e iniciada em 1884, no governo de Teodoreto

Souto; seguiu-se a construção da Igreja de São Sebastião, cuja pedra fundamental foi

lançada em 1879; continuou-se as obras do Palacete provincial (hoje Quartel da Polícia, na

Praça da Polícia); o chalet de ferro da praça Dom Pedro II começou a ser colocado a 9 de

maio de 1887 e foi concluído em fevereiro de 1888.

Manaus: a borracha e a modernização do espaço urbano (1890-1920)

A fase áurea da borracha, compreendida entre os anos de 1890 e 1910, não foi a

única razão para a total mudança estrutural e cultural da cidade de Manaus, embora essa

mudança já viesse sendo efetivada. Outros fatores colaboraram para isso: a Proclamação da

República; a imigração nordestina por conta da seca no nordeste e da oferta de emprego nos

seringais; a abertura dos portos do Amazonas às nações amigas, que possibilitou a entrada

17 Op. cit. p. 39.

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de produtos e empresas estrangeiras, e com eles costumes e hábitos de outras culturas; o

desenvolvimento da indústria automobilística que exigia grande quantidade de goma

elástica; e a administração do governador Eduardo Ribeiro, responsável pela reformulação

estrutural da cidade, seguindo os padrões mais modernos ditados pela França.

Por volta da Proclamação da República (1889), Manaus possuía 10.000 habitantes,

enquanto Belém, possuía 60.000 e era uma das grandes cidades brasileiras desse tempo. O

que favoreceu, sem precedentes, as mudanças acontecidas na cidade de Manaus foi a

economia da borracha e toda a estrutura que se formou por ela e para ela. No período de

1890 a 1920, a população passou de 10.000 para 75.000 habitantes. Antes mesmo que toda

essa população chegasse à cidade, sua estrutura já estava modificada pela importante

função comercial e portuária que a cidade possuía. Seu crescimento rápido é comparado ao

crescimento da cidade de São Paulo, que no mesmo período cresceu devido a produção de

café. No entanto, enquanto São Paulo controlou a expansão ferroviária, a imigração

estrangeira e a indústria; Manaus com sua economia de coleta extensiva, dependia da

imigração interna e do comércio pelos rios, além do fato de não estar sozinha, pois Belém

também produzia borracha e era a maior cidade do norte do país, deixando Manaus em

segundo lugar.

No limiar da década de 1890, estava desenhada no cenário, uma nova cidade, com calçamento, coreto na praça, obediente ao figurino francês, percebido nos muitos chalets e palacetes com compoteiras ou subordinados ao modelo inglês de parques e jardins, com seus indefectíveis chafarizes de ferro fundido.18

Estruturalmente Manaus foi modificada seguindo os padrões modernos ditados pela

França e seguidos por todas as cidades que queriam fazer parte deste mundo moderno. No

Brasil, cidades como São Paulo, Rio de Janeiro e Porto Alegre, entre outras, tinham o

mesmo cenário urbano. Foram abertas largas avenidas; urbanizadas as praças, que

receberam monumentos e diversas obras decorativas; foram aterrados os igarapés;

construído o porto (na época, o maior porto fluvial do país), o mercado e o Teatro

Amazonas.

18 MARTINS, Ana Luiza. A invenção e/ou eleição dos símbolos urbanos: história e memória da cidade paulista. In Imagens da Cidade - Séculos XIX e XX. São Paulo: ANPUH/São Paulo - Marco Zero - FAPESP, 1993, p. 186.

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De 1892 a 1896, o Estado viveu o seu período mais próspero em receitas, pelo

imposto cobrado da saída da borracha (nesse período, a Amazônia era a única exportadora

mundial de borracha). E como a exportação só crescia, os cofres do Estado estavam fartos.

Foi o período da administração de Eduardo Ribeiro, que muito investiu no melhoramento

urbano.

Os costumes da elite manauara eram os mesmos europeus, com as devidas

adaptações. O comércio estava abarrotado de produtos importados, os mais raros, caros e

inacessíveis. Neste período, as opções de lazer não deixavam nada a desejar à qualquer

cidade européia. As inúmeras apresentações teatrais, óperas, concertos, ou mesmo

encontros nos cafés, eram boas opções para este público, pequeno mas muito exigente e

rico. Quanto aos mais pobres ou os pequenos comerciantes, chegavam a trabalhar 14 horas

por dia. Somente a partir de 1908, com a determinação do fechamento do comércio às 6 da

tarde, as pessoas podiam se dedicar ao lazer ou a cursos de artes e mesmo de primeiras

letras, antes impossível pela rotina de trabalho.

A cidade, na administração de Eduardo Ribeiro, passou por uma reformulação e

planejamento urbano; todas as praças foram arborizadas e foram construídos os mais

imponentes prédios de Manaus (alguns dos quais, passam hoje por uma restauração).

Os prédios construídos nesse período são adaptações de estilos europeus, como

português, francês, inglês e italiano. Correspondem aos estilos muito difundidos nesses

países no final do século XIX. Entre as principais construções encontram-se:

O Teatro Amazonas, inaugurado em 1896; erguido no topo de uma colina, pode ser

visto de quase todos as partes do centro. Suas características são predominantemente art

nouveau, fachadas neoclássicas; além dos detalhes venezianos com os mármores, espelhos

e candelabros importados de Veneza.

O Palácio da Justiça em estilo neoclássico. O Palácio Rio Negro (hoje Centro

Cultural), possui elementos que identificam o gosto francês do início do século, o

neoclássico e o art nouveau. Foi construído pelo comerciante alemão Ernesto Scholtz, e

vendido ao Estado em 1917. A Cervejaria Miranda Corrêa, à margem do Rio Negro é uma

reprodução da arquitetura alemã do gênero. O prédio da Alfândega veio da Inglaterra em

peças, de arquitetura eclética, é reprodução de prédio inglês comum nas ruas de Londres de

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 13

Page 14: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

1900. O mercado Adolfo Lisboa, em alguns aspectos arquitetônicos, é uma miniatura do

mercado de Paris.

O professor Otoni Mesquita19, em sua obra Manaus: História e Arquitetura,

descreve e analisa esses e outros prédios importantes do período e conclui que a arquitetura

de Manaus é uma arquitetura eclética. Além desses marcos, podemos encontrar ainda na

maioria das ruas do centro, os inúmeros palacetes (que correspondem às mansões de hoje) e

que pertencia à elite manauara que enriqueceu com a borracha. A população adquiriu

gostos europeus e se acostumou com a presença constante de empresas européias, como

menciona a professora Luiza Ugarte20:

... na Manaus do início do século, praticamente todos os serviços urbanos estavam, por concessão, nas mãos de firmas inglesas que passaram a agenciar melhoramentos ou mesmo criar serviços até então insistentes na cidade. Empresas como a Manáos Markets, Manaus Tramways and Light, Manáos Improvements, Amazon Engineering, Amazon Telegraph, Booth Line e Amazon River começaram a fazer parte do cotidiano da população manauara.

A esse conjunto de transformações Otoni Mesquita21 chama de vitrine:

Como resultado das mudanças ocorridas no final do XIX, surgia com o novo século uma outra cidade, que pode ser interpretada como a imagem da vitrine instalada, resultado de uma série de transformações. Todo processo de mudanças, com suas obras públicas, a introdução de novos costumes e a adoção de modernos serviços públicos podem ser simbolicamente compreendidos como um “rito de passagem” do processo de branqueamento através do qual a cultura local despia-se das tradições de origem indígena e vestia-se com características ocidentais.

Esse "processo de branqueamento" ao qual se refere o professor Otoni, começa com

as normas determinantes da mudança de hábitos na população, como os decretos que

proibiam os banhos nos igarapés. As primeiras construções de estilo europeu ainda no

período colonial e as impressões pré-conceituosas deixadas pelos viajantes marcam a

necessidade dessa vitrine para esconder as tradições indígenas, que eram consideradas sinal

de atraso. Mas por traz desta vitrine, a população mais pobre via este crescimento mas não

usufruía dele. A cidade não se modernizava para todos, apenas para uma parcela da

19 Op. cit.20 Op. Cit., p. 38.21 MESQUITA, Otoni. Manaus: história e arquitetura (1852-1910). Manaus: Editora Valer, 1999, p. 147.

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 14

Page 15: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

população. Sobre esta época de luxo tem-se vasta bibliografia, mas sobre os contrastes

existentes, pouco se tem registrado. De acordo com a professora Luiza Ugarte Pinheiro,

Essa memória de uma Manaus enquanto "cidade criada pela borracha” ganhou força nas palavras de Eduardo Ribeiro, que ao entregar o cargo de governador, orgulhava-se de ter recebido uma aldeia e ter deixado em seu lugar uma cidade moderna, o que acabou por cristalizar-se na produção historiográfica sobre o tema.22

No período da borracha, dois espaços se apresentavam contrastantes para a

historiografia regional: de um lado tinha-se o seringal, um lugar de morte, um verdadeiro

inferno; do outro, a cidade, um lugar de prazeres e riqueza. A professora Luiza Ugarte23

argumenta sobre a origem dessa historiografia de caráter saudosista, que vê nesse período,

apenas a cidade próspera e moderna, negligenciando suas desigualdades e conflitos

internos. Segundo ela, os escritores que ajudaram a cristalizar a imagem da cidade como

"Paris das Selvas", pertencem a gerações que presenciaram o declínio da economia

gomífera e que se voltam à "ilusão do fausto", pela sensação de perda vivenciada nos anos

40.

A professora Francisca Deusa24 também comenta sobre as duas realidades que

conviviam no mesmo espaço urbano neste período:

Parafraseando Giulio Carlo Argan, a Manaus ideal e a Manaus real, existiram concomitantemente. O trabalhador e outros segmentos populares habitavam o centro - lugar de ostentação do luxo - e os limites do perímetro urbano. Eles aí se mantiveram em maioria, segregados não do espaço físico, mas da visibilidade pública. as reformas que deram novo visual à cidade por meio de desapropriações, demolições, e a renovação do parque arquitetônico ou os bens culturais, objetivaram suplantar a imagem do atraso e do antiprogresso ligado à pobreza.

As mudanças puderam ser observadas principalmente no centro da cidade, onde os

sistemas mais modernos eram instalados, como bondes, energia elétrica, teatros, praças

22 PINHEIRO, M ª Luiza Ugarte. A cidade sobre os ombros: trabalho e conflito no Porto de Manaus - 1889-1925. Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 1999, p. 25.23 Op. cit.24 COSTA, Francisca Deusa Sena da. Quando viver ameaça a ordem urbana. In Cidades. São Paulo: Programa de História PUC-SP / Editora Olho d'Água, 1999, p. 86.

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 15

Page 16: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

arborizadas e ornamentadas com esculturas e monumentos. Deusa Sena25 explica o porquê

das mudanças nesta área:

A principal área de investimentos durante as décadas de 1890 e 1910 foi o centro da cidade. Sua valorização se deu por fatores conhecidos: transporte, arruamento e pavimentação, iluminação pública, água encanada, esgotos etc. enfim, serviços urbanos que, somados à proximidade do local de trabalho, faziam desse espaço o lugar preferencial para a população da cidade.

Em relação às praças comenta: As praças, o ajardinamento, as grandes avenidas

tinham como função social trazer para dimensão pública um setor elitizado da população.26

A função das praças era levar a público a riqueza de uma minoria. Os passeios de bondes

aos domingos era uma diversão de muitas famílias. Dos bondes se via a Manaus

glamourosa, seus prédios requintados, praças ornamentadas.27 Mas as classes mais pobres

insistiam em usar o espaço e as praças eram palco para manifestações e comemorações pós-

conquistas, até esse "privilégio" também ser negado, pois o poder público se aliava aos

interesses da elite, ou melhor, esta classe impunha determinações ao poder público. Durante

a greve geral de 1919, conta-nos a professora Luiza Ugarte28, vários setores reivindicavam o

cumprimento das 8 horas de trabalho, após uma trégua solicitada pelo governo, este aplica

uma punhalada aos trabalhadores, tirando-lhe o direito de se reunirem nas praças para se

organizarem em protesto aos empresários, a maioria ingleses. Foi construída uma cidade

para um grupo específico, para atender ao gosto reinante da época; buscando-se com isso,

apagar a imagem de povoado indígena. Desapropriou-se do uso do espaço, grande parte da

população.

Mas o ciclo ostentoso chega ao fim imprimindo drásticas mudanças, segundo

Agnello Bittencourt29 que presenciou este período:

Durante os anos da Guerra de 1914-1918 e no período seguinte, com a depressão econômica mundial, Manaus entrou em crise. Mais de um milhar de

25 Idem, p. 98.26 COSTA, Deusa. Op. cit, p. 94.27 COSTA, Selda Vale da. Eldorado das ilusões: Cinema e Sociedade: Manaus (1897-1935). Manaus: Editora da Universidade do Amazonas, 1996, p. 7.28 Op. cit.29 BITTENCOURT, Agnello. Fundação de Manaus: pródromos e seqüências. Manaus: Governo do Estado do Amazonas/Secretaria de Estado da Cultura e Turismo/Editora da Universidade do Amazonas, 1999, p. 46.

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 16

Page 17: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

prédios residenciais desalugados. Era comum pedir-se por favor que alguém ocupasse uma casa, a título gratuito, ao menos para conservá-la.

Nesse período, é claro, praticamente nada se construiu. Apenas o Governador Pedro d Alcântara Bacelar adquiriu o Palacete Scholz, hoje Palácio Rio Negro, para sede própria (a primeira!) do Governo Estadual, em 1918, por duzentos contos de réis.

Manaus depois da crise da borracha (1920-1967)

O período entre 1920 a 1967, é considerado por muitos historiadores como o

período da cidade em crise. Manaus estava vivendo o fim do ciclo da borracha, no período

anterior à instalação da Zona Franca. Mas para o professor José Aldemir30, este é na

verdade um período de festa. O professor José Vicente31, em seu trabalho Manaus: praça,

café, colégio e cinema nos anos 50 e 60, também segue esse pensamento e apresenta a vida

pública pulsante neste período.

Com a expansão da borracha, toda a cidade teve de se adaptar e modificar sua

estrutura para esse momento. As pessoas também tiveram seus modos e costumes

adaptados à riqueza do período. No entanto, nem todos participavam disso igualmente, a

grande maioria vivia das migalhas e era afastada das transformações que a cidade pudesse

lhe oferecer. Nesse período, tentou-se construir uma paisagem homogênea, rica e

glamourosa, afastando os pobres desse cenário. Isso pode ser observado nos textos que

tratam do período da borracha e principalmente nas fotografias e postais da época. Vê-se

uma cidade organizada e planejada, fruto de um urbanismo técnico e racional, que para

abrir as grandes avenidas, construir palacetes, cafés e teatros, varre para fora da cidade rica,

a parte pobre da população.

Com o declínio da borracha, essa cidade dos ricos dá lugar à cidade dos pobres, e

vieram à tona os contrastes e conflitos antes abafados. A cidade em crise para os ricos é a

festa dos pobres pelo acesso, pelo direito à cidade. Esse acesso era facilitado pelas catraias,

pelos bondes, depois os ônibus, pelas balsas e pequenas embarcações. Até os anos quarenta,

as catraias eram o único meio de transporte coletivo para os bairros de Educandos e de São

30 OLIVEIRA, José Aldemir de. Cidade de Manaus: a homogeneidade do conjunto e a fragmentação do detalhe. Texto extraído da Tese de Concurso Titular do autor apresentado no ICHL em 1999.31 AGUIAR, José Vicente de Souza. Manaus: praça, café, colégio e cinema nos anos 50 e 60. Manaus: Editora Valer/Governo do Estado do Amazonas, 2002.

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 17

Page 18: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

Raimundo. Nos anos cinqüenta, eram o transporte alternativo 50% mais barato que os

ônibus. Quanto aos bondes, mais que transporte, era estilo de vida, diversão, ponto de

encontro. Entre as diversões estava o “Morcegar”, pegar o bonde em movimento e saltar

em seguida, e fazer “cerol”, colocando vidro nos trilhos para os bondes transformarem em

pó. Depois dos bondes vieram os ônibus, e a primeira empresa privada de transporte

coletivo de Manaus foi a Ana Cássia, na avenida Waupés, no bairro da Cachoeirinha.

O porto, na escadaria dos Remédios, era o ponto de chegada de muitas pessoas do

interior para a capital. Na década de cinqüenta, os barcos ancoravam na cidade flutuante,

que para quem chegava, dava a impressão de passageiro, improvisado, feio.

Os igarapés que antes funcionavam como lazer para a elite extrativista,

consolidaram-se como locais de encontro e festa para grande parte da população. Nesse

espaço e nesse tempo todos pareciam iguais. As pessoas divertiam-se mais porque era

exigido menos tempo para o trabalho. Foi um período de proliferação de clubes por toda a

cidade, que ofereciam festas aos adultos (com recomendação de elegância para os homens e

boa conduta para as mulheres), e manhãs de sol aos jovens, das 10:00 às 12:00, aos

domingos e com entrada franca.

Na área esportiva, além do futebol (que até a década de sessenta era amador), havia,

no bairro da Cachoeirinha (no quarteirão formado pelas ruas Santa Izabel, Urucará e

Silves), o Velódromo. Era um amplo estádio com pistas de patinação e quadras para vários

esportes. Nele aconteciam corridas ciclísticas e de motocicletas, das quais participavam

corredores de todo o Brasil e do exterior. O Velódromo foi construído no final do século

XIX e funcionou até a década de cinqüenta.

A partir de 1957, começou a acontecer o Festival Folclórico do Amazonas, realizado

inicialmente na Praça General Osório (hoje campo do Colégio Militar), passando depois

para a Praça da Bola da Suframa. As festas religiosas também encontraram mais espaço.

Além das festas católicas, outras aconteciam fora da área da igreja. Um dos marcos foi o

Centro Umbandista de Joana Galante “situado na subida da estrada de São Jorge, que teve

papel importante na expansão da cidade, pois foi a partir do terreiro, que se iniciou a

ocupação da parte noroeste da cidade, culminando com a construção da ponte sobre o

igarapé da Cachoeira Grande e a abertura da estrada para a Ponta Negra”.

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 18

Page 19: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

Na área cultural o que marcou esse período foi o Clube da Madrugada, surgido a 22

de novembro de 1954. Os integrantes (intelectuais, músicos, escritores) se propunham a

compensar meio século de atraso na área da literatura e das artes na cidade. Outro evento

foi o cinema, inicialmente exibido para a elite no Teatro Amazonas e Polytheama e

posteriormente popularizando-se em locais mais acessíveis e também nas praças públicas.

Quanto às obras públicas, o professor Agnello Bittencourt32 comenta:

... o Dr. Araújo Lima, quando Prefeito (1926-1930), promoveu o embelezamento dos jardins da Capital, com a realização de algumas obras públicas, como o Relógio da Avenida Eduardo Ribeiro, próximo ao edifício dos Correios, além da demolição de muitos cortiços existentes no perímetro urbano, vários cobertos de palha.

Diante desses fatos podemos ter um outro pensamento: que a Manaus da crise é

uma cidade com espaço mais socializável; que o tempo da crise é um tempo de menos

trabalho e mais diversão; que as pessoas varridas para fora da cidade, nesse período fazem

parte dela e são usuárias de uma estrutura que antes lhes era negada.

Manaus: cidade-comércio

Manaus, antes mesmo de se constituir cidade, já despontava como entreposto

comercial, devido a sua localização, um ponto estratégico na confluência dos rios Negro e

Solimões. Otoni33 registra que:

Elizabeth Agassiz (ao passar por Manaus em 1865) ressaltou que a situação da cidade, na junção dos rios Negro e Amazonas, fora uma das mais felizes escolhas, pois apesar de "insignificante" naquela época, mais tarde seria, sem dúvida, "um grande centro de comércio e navegação".

O comércio em Manaus já havia sido desenvolvido no período da borracha, no

entanto, a criação da Zona Franca implementa um comércio mais intensivo e transforma a

estrutura urbana da cidade.

32 Op. cit., p. 46.33 MSQUITA, Otoni. Op. cit., p. 40.

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 19

Page 20: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

A Zona Franca: os progressos e problemas causados em Manaus

Criada pela Lei 3173, de 6 de junho de 1957, a partir do projeto do Deputado

Federal Francisco Pereira da Silva, a Zona Franca de Manaus só foi regulamentada em

1960 e começou a funcionar em agosto de 1967. Tinha o objetivo de promover o

desenvolvimento do interior da Amazônia, de acordo com a política desenvolvimentista do

governo militar e funcionaria por 30 anos.

A partir de seu funcionamento, a vida em Manaus foi modificada radicalmente.

Como uma avalanche foram surgindo novas casas comerciais e novamente a cidade se

encheu de gente nova em busca de enriquecimento rápido. Novamente a estrutura urbana de

Manaus teve de se adaptar às necessidades do comércio livre: houve um desenvolvimento

dos meios de transporte (navios de longo curso e aviões), começam a ser realizados vôos

diários; também há um crescimento dos meios de comunicação, como a TV (havia quatro

estações, uma educativa montada pelo Governo do Estado e três particulares e em cores);

canais de telefonia (com a instalação de uma delegacia da EMBRATEL). Também

expandiram o turismo (pelas belezas naturais e pela facilidade da compra de produtos

estrangeiros) e o setor imobiliário, inclusive com edifícios. A receita tributária do

município aumentou e o poder aquisitivo das pessoas também. Com isso, era alto o

consumo de gêneros alimentícios importados. Como uma segunda fase desse projeto de

desenvolvimento, foi construído um distrito industrial com infra-estrutura própria

(urbanização, serviços de água e iluminação). Como esse pólo necessitava também de mão-

de-obra qualificada, instituiu-se como apoio a Universidade Tecnológica do Amazonas

(UTAM).

Sendo a cidade um produto artístico, Argan34 declara que é natural que a mudança

do sistema de produção tenha transformado o que era um produto artístico, em produto

industrial. E que essa mudança acarretou grandes infortúnios à ordem urbana, como os

acontecidos em Manaus. Em meio ao desenvolvimento vieram os problemas causados pela

implantação da Zona Franca como: o deslocamento em massa da população do interior,

causando um esvaziamento nesses municípios e vilarejos e um inchaço em Manaus,

resultando na formação de muitas favelas; o comércio ilegal de mercadorias; o

aparecimento de falsas indústrias, que se estabeleciam e algum tempo depois desapareciam

34 ARGAN, G. C. op. cit.

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 20

Page 21: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

deixando o prejuízo ao Estado; o aumento da prostituição feminina e masculina,

principalmente na área central; o prejuízo ecológico causado pelos desmatamentos para a

construção de conjuntos habitacionais e a poluição dos igarapés e balneários; também uma

diminuição na produção de alimentos. Aos poucos, nas praças e ruas de Manaus, foi

destacando-se mais o valor de troca que o valor de uso. A busca pelo novo modificou a

paisagem do antigo centro, as casas tornaram-se lojas de departamentos, novas vitrines

modernas. Nesse período muitas praças cederam seu espaço a estacionamentos e novas

construções como o terminal de integração da Matriz. Muitas esculturas e monumentos que

ornamentavam estas praças foram removidos ou destruídos, enfim, a paisagem urbana foi

novamente renovada visando esquecer o período da crise.

Mas o declínio de muitas empresas da Zona Franca fez crescer nas ruas um grande

número de vendedores autônomos que se apropriaram das praças e ruas, tornando-as

espaços de troca. Hoje a área central da cidade é um espaço onde reina o comércio em

todos os sentidos. Não existe mais a perspectiva de construir a cidade para o futuro;

constrói-se para o aqui e agora. O fascínio pelo novo impede a valorização de monumentos

e construções antigas. E a falta desse olhar cuidadoso para o passado nos impede de

cristalizar as memórias presentes nas obras, nos impede de construir nossa própria

identidade.

Manaus foi perdendo as características de aldeia e foi transformada, no período da

borracha, em uma cidade cosmopolita, com uma estrutura urbana seguindo padrões

europeus. O centro da cidade foi projetado para a elite. Com o declínio da produção

gomífera, o espaço urbano recebeu novos usos, as praças principalmente, se transformaram

em ambiente coletivo. Nova adaptação acontece quando da implantação da Zona Franca,

onde a estrutura precisa se adequar aos novos padrões comerciais, à era dos arranha-céus. O

centro histórico se transforma em centro comercial e com o declínio de algumas empresas,

passa a ser palco do comércio informal. O centro sofre grandes degradações, é reinventado

e repossuído pela população.

Hoje, a área do Centro Histórico passa por algumas intervenções. São projetos como

Belle époque, que está restaurando alguns prédios antigos e conferindo-lhes uso; as praças

também estão sendo recuperadas, mas esse processo muitas vezes não é cuidadoso e, na

intenção de melhorar, descaracteriza-se os lugares e obras. A própria seleção do que

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 21

Page 22: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

restaurar é um ato arbitrário, pois prevê a conservação de alguns marcos enquanto outros,

de igual importância são fadados ao desaparecimento. As intervenções operadas no tecido

urbano não seguem um pensamento contínuo, mas idéias individuais de seus

administradores.

De cidade-obra para cidade-produto: as mudanças da modernidade

Cada período da história pede transformações, as necessidades se modificam, o

homem evolui. Com isso, transforma tudo à sua volta e a cidade é o reflexo de todas essas

mudanças. E como ela vai assimilando essas transformações, podemos usar bem as palavras

de Argan ... nenhuma cidade jamais nasceu da invenção de um gênio, a cidade é o produto

de toda uma história que se cristaliza e manifesta35. Os vários períodos históricos da cidade

de Manaus, estão cristalizados nas obras. Complementando, podemos usar Munford, que

assim a descreve:

Em verdade, a partir de suas origens, a cidade pode ser descrita como uma estrutura especialmente equipada para armazenar e transmitir os bens da civilização e suficientemente condensada para admitir a quantidade máxima de facilidades num mínimo de espaço, mas também capaz de um alargamento estrutural que lhe permite encontrar um lugar que sirva de abrigo às necessidades mutáveis e às formas mais complexas de uma sociedade crescente e de sua herança acumulada. 36

Com o objetivo de concentrar facilidades num único espaço, a cidade organizou

uma força de trabalho mais qualificada, concentrou a distribuição de renda e operou uma

distinção entre seus moradores e os moradores de núcleos vizinhos, tirando-lhes a condição

de igualdade e reduzindo-os a súditos. E eis que surge a cidade: a partir do domínio de

técnicas agrícolas, da produção do excedente e da divisão de classes. Embora sendo

universal, a cidade é concebida a partir das particularidades de cada cultura, de acordo com

os utensílios, conhecimento, economia, sociedade e política. E essas formas são

modificadas com o tempo.

35 ARGAN, Giulio Carlo. História da Arte como História da Cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1990, p. 244.36 MUNFORD, Lewis. p. 38/39.

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 22

Page 23: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

Entre outras necessidades, o homem busca a cidade para viver bem, nesse sentido é

a cidade grega que vai estabelecer inicialmente padrões estéticos e artísticos, como modelo

para o viver bem na cidade. A sociedade grega é quem estabelece os padrões culturais para

todo o ocidente, é o modelo de organização em todos os aspectos. Munford37 conta-nos que

o cidadão grego não vivia confortavelmente, mas que a beleza que encantava-lhe os olhos e

ouvidos, o mantinha satisfeito. Contudo, os avanços tecnológicos que, procuravam

melhorar a vida cotidiana, lhe tiravam a criatividade. O moderno urbanismo helenístico

produziu uma cidade de fachadas. O comércio e o crescente número de pessoas aumentou a

circulação. Na arquitetura, esse efeito se deu na padronização de prédios e fachadas. Os

monumentos eram vistos de vários ângulos, mas o edifício público helenístico deveria ser

visto por uma avenida principal. Tal princípio também fundamentou o processo de

urbanização adotado no século XIX, no qual se inspirou Eduardo Ribeiro, ao projetar o

Palácio do Governo ao final da grande avenida (hoje Av. Eduardo Ribeiro), cujos prédios

tinham fachadas padronizadas.

As ruas largas, a arquitetura, monumentos e obras de arte, fizeram da cidade helenística a

cidade do espetáculo, um recipiente de espectadores. E esse papel de espectador unia a

todos, pobres e ricos, nobres e humildes. O Império Romano também deixou suas marcas

na história da cidade. Os espaços abertos das cidades romanas, não sofreram mudanças

radicais até o século XVII. As cidades gregas e romanas serviam de museu a céu aberto, e

funcionaram assim até a institucionalização destes, no século XVIII. A beleza era usada

como um bálsamo para curar a perda da liberdade política e a criatividade cultural das

cidades gregas. Arquitetos e planejadores da era helenística, trabalhavam para alcançar

efeitos estéticos. O imperador Augusto orgulhava-se de ter encontrado uma cidade em

tijolos e ter deixado-a em mármore (a Eduardo Ribeiro costumou-se empregar que ele

encontrou uma aldeia e a transformou em cidade). Toda essa ostentação e vaidade, apego

ao materialismo e às riquezas na cidade grega, segundo Munford, deu origem às religiões

que exaltavam o espírito, em detrimento dos bens materiais. Foi uma revolta contra o nível

que atingira a civilização e sua sede por poder e riqueza. Mas se a beleza produzida em

Roma juntava pobres e ricos, em Manaus a classe mais pobre não se apropriava dela, não a

vivenciava como sua, não se sentiam parte dela.

37 Idem.

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 23

Page 24: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

Na concepção de cidade antiga, o uso dos espaços públicos e dos monumentos

merecia destaque. As plantas obedeciam o caminhar, o traçado natural, eram plantas

orgânicas. Durante a Antigüidade Clássica, Idade Média e Renascença, havia uma

preocupação artística em harmonizar prédios públicos, praças e monumentos. A cidade era

construída como uma obra, privilegiando o caminhar e o deliciar-se com fontes, esculturas

e monumentos. As ruas tortuosas possibilitavam o descobrir belezas. Havia uma

preocupação estética, uma necessidade de beleza.

A cidade barroca primou pela organização, e a avenida foi o fator principal. Passou

a ser um lugar para reunir espectadores; estes contemplavam o que se passava à sua frente

sem lhes pedir licença. Esse passar sem pedir licença era colocado em prática pelo

engenheiro militar italiano, que idealizava um plano para a cidade e o executava, ainda que

para isso tivesse que destruir habitações, monumentos, lojas, igrejas. É interessante notar a

semelhança de funções entre o engenheiro militar barroco e o engenheiro militar do século

XX. Eduardo Ribeiro era engenheiro militar e, inspirado nas mudanças promovidas pelo

barão Haussmann, implementou modificações significativas no tecido urbano da cidade,

abrindo avenidas e aterrando igarapés. Munford, critica a ação do barão, pois ao abrir

avenidas, abriu também feridas nas relações sociais e na história do lugar. Esse mesmo

pensamento pôs em prática o prefeito Jorge Teixeira, que em 1975, a fim de

descongestionar a cidade, abriu inúmeras avenidas e construiu pontes. Por outro lado,

passou por cima de praças e monumentos do Centro Histórico da Cidade.

Essa visão que presa pela geometria, pelo progresso, pela necessidade de

modernidade, é chamada de planejamento progressista, é ele que rege as modificações

operadas em Manaus. Em oposição a essa concepção de cidade, o século XIX também

discute o urbanismo culturalista, que toma como modelo a cidade antiga. Camillo Sitte 38, é

considerado o iniciador do urbanismo culturalista, era arquiteto e historiador da arte.

Defende os padrões da cidade antiga em detrimento aos da cidade moderna. Seu livro A

Construção das Cidades Segundo seus Princípios Artísticos, defende essa tese de modelo

ideal da cidade baseada na antiga concepção de organização urbana: espaços fechados,

praças cercadas por prédios públicos e adornadas por esculturas.

38 SITTE, Camillo. Op. cit.

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 24

Page 25: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

Quanto aos espaços abertos, a praça não desapareceu na cidade barroca, apenas

ganhou uma nova finalidade urbana. Até então não havia sido utilizada para fins

residenciais. No barroco, a praça servia para aglomerar pessoas do mesmo ofício e posição,

ou melhor.

As novas praças, na verdade, atendiam a uma nova necessidade da classe superior, ou melhor, a toda uma série de necessidades. Eram originariamente construídas para famílias aristocráticas ou de mercadores, com o mesmo padrão de vida, os mesmos hábitos. Se as fachadas uniformes da praça ocultavam diferenças de opinião política e fé religiosa, havia talvez, no século XVII, necessidade extra justamente deste tipo de arbítrio manto de classe, ocultar suas disparidades, rivalidades e inimizades emergentes: gente nobre mostrava uma frente comum de classe, que polidamente ocultava suas diferenças ideológicas e de partido. Aqueles que residiam numa praça tinham, por esse simples fato, alcançado uma distinção extra; e presumivelmente, poderia ter uma carruagem e cavalos...

Os espaços abertos da praça não eram concebidos, na verdade, como lugares para caminhar e relaxar os músculos ao ar livre, como são usados hoje em dia; constituíam, antes, locais de estacionamentos para veículos... Aquelas praças abertas, ademais, podiam-se conduzir os convidados para uma grande festa, em carruagens, sem causar exagerado congestionamento.39

No século XVIII, as praças tornaram-se jardins comuns, sem a visível barreira

social.

Após três revoluções: inglesa, americana e francesa, que derrubaram o poder

centralizado, o Estado pode tomar o poder de novo. O novo traçado urbano deveria

favorecer o poder do Estado, o que pode ser observado na construção de Washington, para

a qual foi chamado, segundo Munford, o francês Pierre – Charles L’Efant.

L’Efant acreditava, em suas próprias palavras, que o “modo de tomar posse de um distrito inteiro e melhorá-lo deve a princípio deixar à posteridade uma grande idéia do interesse patriótico que o promoveu”: assim, até mesmo suas praças deveriam ser transformadas em santuários com figuras esculpidas, “para convidar a Juventude de gerações sucessivas a passar pelos caminhos daqueles sábios ou heróis que seu país julgava conveniente celebrar”.40

39 MUNFORD, Lews. Op. cit. p. 429.40 Idem, p. 437.

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Page 26: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

As praças e ruas de Manaus, à época da República, ganharam elementos

(monumentos, nomes, esculturas), referentes a figuras importantes do momento político.

Assim como em todo o Brasil, ganhou obras para celebrar a República.

Da industrialização resulta a urbanização, o uso do espaço como mercadoria. Onde

predomina a troca pelas possibilidades de uso, embora toda mercadoria tenha seu valor

monetário e de uso. A forma da cidade é modificada. As ruas tornam-se retas e largas e não

há mais a preocupação com a harmonização de prédios, praças e monumentos. Inicia-se um

período de velocidade no olhar e no caminhar. Sobre esse caminhar na cidade moderna,

James Hillman41 diz que:

Caminhar hoje é principalmente um caminhar com os olhos. Não queremos labirintos, nem surpresas. Sacrificamos os pés pelos olhos. Cidades mais antigas quase sempre cresciam em torno dos rastros dos pés: trilhas, esquinas, caminhos, entroncamentos. Essas cidades seguiam os padrões inerentes aos pés, em vez de plantas desenhadas pelos olhos.

Há grande nostalgia nas palavras de Camillo Sitte, apaixonado pela cidade-obra-de-

arte, ao dizer que: As transformações em nossa vida pública foram tantas e tão irreparáveis

que muitas das antigas formas de construção perderam seu sentido – e quanto a isso nada

podemos fazer42. E uma das grandes mudanças foi a nova concepção de praça. Sitte 43

estabelece a diferença entre as praças da cidade antiga e as praças da cidade moderna.

Nestas, as obras, de caráter monumental para produzir efeito, são colocadas ao centro,

ocupando assim todo o espaço; enquanto que naquelas, as obras eram dispostas ao longo da

praça, permitindo a colocação de várias obras e deixando o centro livre. Podemos visualizar

estas definições com a Praça São Sebastião, com um único monumento ao centro e a Praça

Heliodoro Balbi, um jardim onde várias obras estão dispostas.

Mas tudo isto são características da sociedade moderna pós Revolução Industrial,

quando a cidade, antes obra, passou a ser considerada produto. Antes da industrialização, a

estrutura da cidade correspondia a: centros de vida social e política, onde se acumulam não

apenas as riquezas como também os conhecimentos, as técnicas e as obras (obras de arte,

41 HILLMAN, James. Cidade e Alma. São Paulo: Studio Nobel, 1993.42 SITTE, Camillo. A Construção das Cidades Segundo Seus Princípios Artísticos. São Paulo: Ática, 1992, p. 112.43 Idem.

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 26

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monumentos)44. Os investimentos aconteciam na cidade porque ela representava um

patrimônio, por isso eram construídas as obras de arte. Mas a cidade como obra, na visão

do período industrial, era muito dispendiosa e não oferecia vantagem econômica. A

realidade era outra, o capitalismo comercial e bancário tornou móvel a riqueza e

possibilitou a transferência; e a cidade tornou-se produto.

Nesse contexto, os núcleos urbanos transformaram-se para continuar existindo na

cidade tomada pela indústria; os centros antigos então, passaram a desempenhar dois

papéis: tornaram-se ao mesmo tempo lugar de consumo e consumo do lugar, tornaram-se

centros de consumo. E quanto ao centro comercial, ressurgiu, mas apenas como lembrança

do que foi a cidade antiga45. Este é o caso de Manaus e das suas praças que ganharam nova

função: lugar de consumo, sem perder a função de consumo do lugar.

Arte urbana e espaço público

A arte pública só se torna necessáriaquando tem uma função,

quando é necessária para alguém.Claudia Büttner46

Na obra História da Arte como História da Cidade47, Giulio Carlo Argan, fala do

espaço urbano como espaço de objetos. Estes objetos, por sua vez, constituirão e

qualificarão a imagem da cidade, sendo o monumento a auto-representação da cidade e de

sua história. Cita que: O que a produz [a obra de arte] é a necessidade, para quem vive e

opera no espaço, de representar para si de uma forma autêntica ou distorcida a situação

espacial em que opera.48

Vera Pallamin49 também fala do significado da arte urbana e sua relação com o

espaço público e a sociedade:

Sendo partícipe na produção simbólica do espaço urbano, a arte urbana - compreendida no plano das relações sociais e não reduzida a uma sua dimensão

44 LEFEBVRE, Henry. O Direito à Cidade. São Paulo; Editora Moraes, 1991, p. 4.45 Idem, p. 12/13.46 BÜTTNER, Claudia. Projetos artísticos nos espaços não institucionais de hoje. In Cidade e Cultura: esfera pública e transformação urbana. Vera M. Pallamin (org). São Paulo: Estação Liberdade, 2002, p. 88.47 ARGAN, J. C. História da Arte como História da Cidade. São Paulo: Martins Fontes, 1998.48

49 PALLAMIN, Vera M. Arte urbana como prática crítica. In Cidade e Cultura. Op. cit, p. 106.

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Page 28: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

estetizada - repercute as contradições, conflitos e relações de poder que o constituem. Nesse registro específico de sua tematização, associa-se direta e indiretamente à natureza constituinte do espaço público, a questões de identidade social e urbana, de gênero e expressões culturais que possam ou não nele vir a ocorrer, às condições de cidadania e democracia.

Em relação às representações sociais que a arte nos espaços públicos tem para a

sociedade, Vera complementa:

Em meio aos espaços públicos, as práticas artísticas são apresentação e representação dos imaginários sociais. Sendo um campo de indeterminação, a arte urbana adentra a camada das construções simbólicas dos espaços públicos urbanos, intervindo nos modos diferenciais da produção de seus valores de uso, sua validade ou legitimação, assim como de discursos e formas sedimentadas de representação cultural ali expostas. Pode criar situações de visibilidade e presença inéditas, apontar ausências notáveis no domínio público ou resistências às exclusões aí promovidas, desestabilizar expectativas e criar novas convivências, abrindo-se a uma miríade de motivações.50

As manifestações artísticas efetivadas em locais públicos da área urbana, dizem

respeito à sociedade que a manifesta e usufruiu. Certamente estão embutidas nela, o poder e

as características peculiares do momento histórico. Hoje, especialmente, as formas de arte

apresentadas em locais públicos precisam inserir a população, ou melhor, precisam dar

espaço para que as pessoas se sintam parte dessas obras, precisam dar-lhe oportunidade de

interagir. Cláudia Büttner comenta a respeito:

Uma forma de arte a ser assimilada em público e que representa sobretudo o próprio cidadão no espaço público parece ser uma das funções mais importantes da arte pública numa democracia.

Vivemos num tempo em que funções importantes do ambiente público, como, por exemplo, a de ver e ser visto, desapareceram das praças para serem substituídas - de modo insatisfatório - por aqueles quinze minutos de fama nos talk shows da TV a que, segundo Warshol, todos têm direito.51

Claudia acrescenta que por causa dessa necessidade, os artistas procuram inserir o

nome das pessoas nos espaços públicos, para que estas sintam atendidas as suas

necessidades de se destacarem no anonimato que as grandes cidades causam. E ainda que,

50 Idem, p. 108.51 BÜTTNER, Claudia. Op. cit, p. 85.

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representar os moradores e incentivar a comunicação entre as pessoas, deveriam ser os

objetivos da arte pública.

Como possibilidade de comunicação, Claudia defende a função da arte como

transformadora da sociedade:

... é justamente a arte que oferece a possibilidade de dar forma aos processos de comunicação. Enquanto na sociedade não existir um consenso sobre conteúdo, tipo e função de monumentos, a falta de capacidade para o discurso político exigirá uma arte que se estenda como uma oportunidade de comunicação ou catalisadora de participação ativa e debate discursivo.

A arte é uma linguagem altamente desenvolvida, que criou estratégias e processos diversos para transmitir conteúdos e atitudes. Já que ela foi capaz de explicar realidades complexas em séculos passados, poderia passar a ver hoje a sua missão mais nobre na tarefa de transformar indivíduos apolíticos e associais em cidadão comunicativos e responsáveis.52

Observando os espaços públicos do Centro de Manaus e suas obras, percebemos o

inverso às tendências atuais da arte pública, mesmo porque há muito não se empreende

objetos artísticos nos locais públicos. As obras encontradas dizem respeito a um outro

tempo que não encontra significado para a maioria das pessoas porque estas desconhecem

sua própria história. As transformações urbanas, tão inevitáveis, acabam por destruir as

referências que as pessoas tentam formar dos lugares. Sobre esse processo de

transformação urbana que provoca incessante transformação na sociedade, Ana Fani

comenta:

A vida das pessoas se modifica com a mesma rapidez com que se reproduz a cidade. O lugar da festa, do encontro quase desaparecem; o número de brincadeiras infantis nas ruas diminui - as crianças quase não são vistas; os pedaços da cidade são vendidos, no mercado, como mercadorias; árvores são destruídas, praças transformadas em concreto...

Por outro lado, os habitantes parecem perderem na cidade suas próprias referências. A imagem de uma grande cidade hoje é tão mutante que se assemelha à de um grande guindaste, aliás, a presença maciça destes, das britadeiras, das betoneiras nos dão o limite do processo de transformação diária ao qual está submetida a cidade.53

52 Idem, p. 79.53 CARLOS, Ana Fani A. A Cidade. São Paulo: Contexto, 2001, p. 19.

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A esse respeito, Nicolau Sevcenko fala que, no momento em que a sociedade atinge

seu mais alto nível de tecnologia e crescimento econômico, enfrentamos uma crise de

valores morais. E essa crise se dá pelo imediatismo reinante, ou seja, por uma "prática ética

do presentismo", que valoriza apenas o "presente imediatamente definido", e esquece o

passado.54 Sem a atenção ao passado, destrói-se os lugares e a vida reinante neles,

comprometendo as referências das pessoas e a própria história e memória destes lugares.

Essas transformações têm ainda outra razão de ser:

... o espaço da cidade é o instrumento ideal de exteriorização do poder. Aos governantes, não bastam marcos edificados, obeliscos de vitórias, edificações alusivas de suas gestões. Importa interferir na imagem da cidade, pois registram nela, indelével, a marca de sua perpetuidade.55

Essa marca hoje se faz com a interferência, por vezes inescrupulosa, nos lugares

públicos e em suas obras. A retirada e colocação de objetos de um lugar para outro é uma

característica não só da nossa cidade, mas da cidade que se moderniza e prima pelo

presente imediato. A falta de cuidados com as obras e monumentos reflete o descuido com

a história e a memória da cidade.

54 SEVCENKO, Nicolau. O desafio das tecnologias à cultura democrática. In Cidade e Cultura. Op. cit., p. 39.55 MARTINS, Luiza. Op. cit, p.189.

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Capítulo 2 - Memória e Patrimônio

Memória: conceitos e classificações

Introdução aos conceitos de memória

A memória é um elemento essencial do que se costuma chamar identidade, individual ou coletiva, cuja busca é uma das atividades fundamentais dos indivíduos e das sociedades de hoje, na febre e na angústia.56

No século XVIII, o Século das Luzes, a história declara independência da religião.

Há uma necessidade de reescrever uma história racional, universal, sem os infortúnios das

crenças. Segundo Edgar Salvadori57:

... o campo da memória, entendido como o lugar da transmissão dos valores e das crenças, deveria ser investigado incansavelmente, por métodos adequados para que se pudesse extrair desse universo de erros e equívocos a própria verdade histórica.

A memória torna-se objeto da história que a transforma em dicionários e

enciclopédias. É a lógica do período, todo o conhecimento é disposto de forma ordenada;

conhecer é classificar. Por isso, "o dicionário e a enciclopédia tornaram-se o conhecimento

do mundo por meio do uso do método racional".58

Mas esta iniciativa não é inovadora, as civilizações antigas, segundo Le Goff59, a

partir da escrita passaram a criar listas, glossários e tratados, para eles nomear também

significava conhecer. E acrescenta que "A memorização pelo inventário, pela lista

hierarquizada não é unicamente uma atividade nova de organização do saber, mas um

aspecto da organização de um poder novo".60

56 LE GOFF, Jacques. Por amor às cidades: conversações com Jean Lebrun. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998, p, 476. 57 DECCA, Edgar Salvadori de. As desavenças da história com a memória. In: SILVA, Zélia Lopes da (Org.). Cultura Histórica em Debate. São Paulo: Editora Unesp, 1995.58 Idem.59 LE GOFF, Jacques. História e Memória. Campinas: Editora da Unicamp, 1992, p. 435. 60 Idem, p. 436.

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A instalação desta “historiografia profana”, que se opunha aos mitos, lendas e

superstições, "comprometeu sensivelmente o campo da memória coletiva e também as

percepções sobre a memória e seu lugar no campo do conhecimento”61. “Com o

desenvolvimento da escrita estas “memórias vivas” transformam-se em arquivistas.”62

O passado deveria ser sistematizado, para tanto, a memória no século XVIII,

... deveria ser objeto de uma nova definição, para que ela pudesse servir de fonte para a crítica racionalista e ao mesmo tempo ser reinventada como um novo lugar possível de acumulação e ampliação de conhecimentos. Não mais um lugar onde imperasse as superstições e as crenças religiosas, mas o espaço material de transmissão do conhecimento racional por meio de enciclopédias e dicionários e de organização documental sistemática pela constituição de arquivos do passado.63

No século XIX, diz Le Goff, levanta-se uma civilização da inscrição, valorizando

monumentos, placas comemorativas,

... o movimento científico, destinado a fornecer à memória coletiva das nações os monumentos de lembrança, acelera-se.

Entre as manifestações importantes ou significativas da memória coletiva, encontra-se o aparecimento, no século XIX e no início do século XX, de dois fenômenos. O primeiro, em seguida a Primeira Guerra Mundial, é a construção de monumentos aos mortos. (...)64

O segundo é a fotografia, que revoluciona a memória: multiplica-a e democratiza-a, dá-lhe uma precisão e uma verdade visuais nunca antes atingidas, permitindo assim guardar a memória do tempo e da evolução cronológica.65

Em relação aos monumentos aos mortos, Françoise Choay66 os classifica de

"comemorativos", e exemplifica com algumas "relíquias" das guerras transformadas em

monumentos. Os quais não precisam da mão do artista para edificá-lo e que, por seu caráter

trágico e simbólico para a sociedade, produzem tanto efeito.

61 DECCA, Edgar Salvadori de. Op. cit. 62 LE GOFF, Jacques. Op. cit., p. 437.63 Idem.64 LE GOFF, op. cit., p. 464.65 Idem, p. 465 e 466.66 CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade: editora UNESP, 2001, p.23/24.

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No século XIX, Manaus passa por um grande processo de modernização e

embelezamento das praças, com a importação de obras monumentais e artísticas, efeito das

recentes transformações pelas quais passava a Europa. A lembrança deste período está

presente nos logradouros e prédios erguidos à essa época e são fontes constantes para a

retomada da história da cidade nesse período. É o que Michael Pollak67 menciona como

dispositivos da memória, pontos de referência para a memória coletiva, e o que Pierre

Nora68 denominou de lugares de memória.

Memória individual - Memória coletiva - Memória histórica

Maurice Halbwachs69 escreveu depois da II Guerra Mundial, publicou seu

livro sobre as memórias coletivas em 1950, no momento em que se começava a ter

noção do papel do indivíduo; quando se constitui as ciências sociais e estas

transformam a memória coletiva. Colaboram a sociologia, a psicologia social, a

antropologia, aliados ao medo de uma perda de memória; é nesse período então,

diz Le Goff, que a memória torna-se objeto da sociedade de consumo. Halbwachs

definiu esses três conceitos de memória: memória individual, memória coletiva e

memória histórica.

Segundo ele, a memória individual precisa da coletiva, embora não se confunda com

ela e o indivíduo participa dessas duas espécies de memória. Não está totalmente fechada,

isolada, precisa emprestar palavras e idéias do seu meio. E como somos produto do meio, a

memória individual é construída a partir da memória coletiva. Halbwachs trabalha com

duas categorias: tempo e lugar.

Memória oficial

Como memória oficial, compreende-se aquela registrada e ensinada nas escolas.

Escrita por quem está no poder. Cristalizada nas denominações oficiais de ruas e praças e

67 POLLAK, Michael. Memória e identidade social. Rio de Janeiro: Estudos históricos, vol. 2.1989.68 NORA, Pierre, op. cit.69 HALBWACHS, Maurice. Memória Coletiva. São Paulo: Vértice, 1990.

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na construção de monumentos. Caracteriza-se também por criar heróis simbólicos, datas e

festas comemorativas de interesse do Estado. Os monumentos analisados neste trabalho,

dizem respeito à este tipo de iniciativa, são classificados como monumentos

comemorativos, implantados para a construção de uma memória histórica e coletiva.

Memória subterrânea

Quem trabalha o conceito de memória subterrânea é Michael Pollak70, no seu artigo

“Memória, Esquecimento, Silêncio”, onde estabelece também o conceito de memória em

disputa:

... Ao privilegiar a análise dos excluídos, dos marginalizados e das minorias, a história oral ressaltou a importância de memórias subterrâneas que, como parte integrante das culturas minoritárias e dominadas, se opõem à “memória oficial”, no caso a memória nacional. (...) essas memórias subterrâneas que prosseguem seu trabalho de subversão no silêncio e de maneira quase imperceptível afloram em momentos de crise em sobressaltos bruscos e exacerbados. A memória entra em disputa. Os objetos de pesquisa são escolhidos de preferência onde existe conflito e competição entre memórias concorrentes71.

Ainda sobre a memória subterrânea, Pollak acrescenta:

A fronteira entre o dizível e o indizível, o confessável e o inconfessável, separa, em nossos exemplos, uma memória coletiva subterrânea da sociedade civil dominada ou de grupos específicos, de uma memória coletiva organizada que resume a imagem que uma sociedade majoritária ou o Estado desejam passar e impor.72

A cidade de Manaus, hoje se depara com a imersão em alguns pontos, de elementos

que estão trazendo à tona a memória subterrânea. São os artefatos indígenas que estão

sendo encontrados e que revelam uma cidade subterrânea com história e memória diferente

da cidade construída. A cidade construída no período da borracha, visava passar uma

imagem de modernidade por uma necessidade de fazer parte do mundo moderno,

enterrando e escondendo qualquer resquício de atraso, representado não só pela cultura

70 POLLAK, Michael, op. cit.71 Idem, p. 4.72 Idem, p. 8.

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indígena, mas por vários grupos que foram excluídos. Essa visão surge hoje, com alguns

trabalhos acadêmicos que colocam em disputa essa memória da cidade moderna com a

memória subterrânea, vivida por essa sociedade esquecida. A análise que se pretende com

este trabalho, busca localizar entre essas memórias, a importância dos monumentos

construídos, como reflexo da modernização, da necessidade de construir uma memória

coletiva, de guardar datas, mas também de materializar momentos históricos importantes

para a cidade. Porque, como afirma Pierre Nora73, as memórias não são espontâneas, é

necessário que se mantenham os "lugares de memória" e esses monumentos incorporam

essa função. Outro fator importante, é o de que não há um passado uníssono, bem como não

existem lugares sem conflito, daí surgem as memórias em disputa. Logo, cada monumento

analisado, cada espaço da cidade guarda diferentes memórias e histórias.

O lugar como cristalização da memória

Pierre Nora74 discute a questão dos lugares como cristalização da memória e sua

localização entre a memória e a história. Declara o fim das sociedades–memória, das

ideologias-memória e por isso a necessidade desses lugares de memória. Esse estudo dos

lugares, segundo ele, está entre dois movimentos, um estritamente historiográfico e outro

histórico, que declara o fim da memória.

Os lugares de memória nascem e vivem do sentimento que não há memória espontânea, que é preciso criar arquivos, que é preciso manter aniversários, organizar celebrações, pronunciar elogios fúnebres, notariar atas, porque essas operações não são naturais. É por isso a defesa, pelas minorias, de uma memória refugiada sobre focos privilegiados e enciumadamente guardados nada mais faz do que levar à incandescência a verdade de todos os lugares de memória. Sem vigilância comemorativa, a história depressa os varreria. São bastões sobre os quais se escora. Mas se o que eles defendem não estivesse ameaçado, não se teria, tampouco, a necessidade de construí-los. Se vivêssemos verdadeiramente as lembranças que eles envolvem, eles seriam inúteis. E se, em compensação, a história não se apoderasse deles para deformá-los, transformá-los, sová-los e petrificá-los eles não se tornariam lugares de memória. É este vai-e-vem que os constitui: momentos de história arrancados do movimento da história, mas que lhe

73 NORA, Pierre, op. cit.74 Idem.

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são devolvidos. Não mais inteiramente a vida, nem mais inteiramente a morte, como as conchas na praia quando o mar se retira da memória viva.75

Além dos monumentos, objeto desta pesquisa, algumas construções do entorno da

Praça Dom Pedro II, constituem lugares de memória, como o Palácio Rio Branco, o prédio

da antiga Prefeitura, o Arquivo Público e o Hotel Cassina. Valem aqui algumas reflexões

sobre eles.

O Palácio Rio Branco, também conhecido como “prédio da Assembléia

Legislativa”, de acordo com Wanderley Martins76, teve sua construção iniciada em 1905,

mas as obras passaram longo período paralisadas, retornando apenas em 1934. O prédio foi

inaugurado em 7 de setembro de 1938. Em 1993 sofreu reforma. É um ícone da

arquitetura da belle époque, um símbolo do poder do Estado, principalmente pelo seu uso, a

Assembléia Legislativa. Atualmente no seu hall de entrada, funciona um museu. À sua

entrada fica um guarda que orienta quem procura os parlamentares e apresenta as

exposições. Como toda a praça está fechada para reforma, eventualmente este prédio pode

sofrer algumas interferências, além das adaptações feitas em sua estrutura.

Quanto ao prédio da antiga Prefeitura,

Conhecido como “Paço Municipal”, seu verdadeiro nome é “Paço da Liberdade”, sua construção foi iniciada em 1874. Em 1879 ele passa a abrigar a sede do Governo Provincial e, posteriormente, com a Proclamação da República, passa a ser utilizado como Administração do Governo Republicano. Novamente, em 1917, começa a sediar o Governo Municipal, quando o Governo do Estado instala-se no Palácio Rio Negro.77

Sobre ele Leandro Tocantins escreveu:

E se há referência a formas gregas, é justo logo salientar o prédio da Prefeitura Municipal, antigo palácio dos Presidentes de província, na Praça Pedro II, construído dentro das linhas do neoclassicismo brasileiro de Grandjean de Montigny. Seu tranqüilo pórtico de colunas gregas e frontão reto empresta-lhe majestade imperial. É o mais harmonioso edifício da capital. 78

75 Idem, p. 13.76 SANTOS, Wanderley Martins dos. AMAZONAS. Assembléia Legislativa. Sinopse Histórica: 1852-1994. Manaus: Imprensa Oficial, 1994.77 CAMINHANDO por Manaus. P. 61.78 TOCANTINS, Leandro. O rio comanda a vida. Manaus: Editora Valer/Edições Governo do Estado, 2000, p. 229.

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“O mais harmonioso edifício da capital”, encontra-se há um ano, desativado e

cercado por compensados com a intenção de deter a ação de vândalos, o que, segundo as

pessoas na praça, não acontece. O prédio que é o mais antigo da cidade e que foi erguido

durante o período imperial para servir ao Presidente da Província, está abandonado, aguarda

reforma e nova adaptação que o tornará um museu, possivelmente.

No canto da praça, vê-se a estrutura em ruínas do antigo Hotel Cassina,

De propriedade do comerciante italiano Andréa Cassina, foi construído em 1899 e durante anos foi hotel de 1º classe, que hospedava ricos comerciantes e atores teatrais famosos, de passagem por Manaus, vindos do sul do país ou do exterior. (...) A Prefeitura de Manaus planeja restaurá-lo para devolvê-lo à comunidade em toda a sua beleza do início do século, mas pertence ainda, a uma família local. A história do Amazonas da época da borracha está muito ligada ao jogo e ao Hotel Cassina, (...) Com a crise dos anos 20 e 30 e o conseqüente empobrecimento das populações o hotel pouco-a-pouco transformou-se em pensão e cabaré. Havia dança no térreo e jogo no 1º andar. Nos anos 40 decai mais ainda tornando-se lugar de prostituição e encerra as suas atividades nos anos 50. Desde então abandonado, hoje ainda é conhecido como Cabaré Chinelo, em decorrência da decadência que caracterizou seus últimos anos de boêmia.79

Este prédio representa hoje, um retrato vivo da decadência da borracha. Mas está de

pé, na sua função de lugar de memória, como a "imortalizar a morte".

O prédio onde fica localizado o Arquivo Público, já é um lugar de memória pela sua

idealização, além do seu significado histórico e arquitetônico:

... o prédio onde funciona o Arquivo Público do Estado do Amazonas, [foi] criado em 1852 e regulamentado em 1897, que possui vasto acervo, inclusive com manuscritos da época da Província, e documentos oriundos da administração pública estadual. A edificação perdeu sua originalidade em decorrência das muitas transformações sofridas.80

Esse significado se torna maior pelos documentos que guarda. É uma casa da

memória, como falou a professora Socorro Jatobá, em uma palestra intitulada “O museu: a

casa da memória”, proferida no Museu Amazônico, no dia 5 de fevereiro de 2002. Na

ocasião ela explicou que o museu foi criado na Antigüidade por Ptolomeu II, em

79 CAMINHANDO por Manaus, p. 59, 60, 61.80 CAMINHANDO por Manaus. p. 61.

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homenagem ao personagem mítico Orfeu, que prestava serviço às musas. Era um espaço

para reflexão, nele se reuniam pessoas para falar sobre arte, ler poemas. E essa iniciativa

durou quase 7 séculos. Lembrou que os antigos não tinham as noções de acervo,

patrimônio, obras de arte que temos hoje. Falou da importância do museu hoje, em que

vivemos uma supervalorização do presente. O museu realizaria, através de seus objetos, um

exercício de memória; seria uma força de resistência à manipulação da memória. O museu

teria o papel de educar o olhar. Além dos museus seriam casas de memória os arquivos,

bibliotecas, galerias de arte.

No Arquivo Público da praça Pedro II estão guardados registros antigos da história

da cidade. Alguns ainda podem ser consultados, outros não. Quem precisar ir ao Arquivo

vai se surpreender com as condições do lugar e de seu acervo. Há apenas uma bibliotecária

que é a Diretora; poucos documentos estão organizados em ordem cronológica; não há ar

condicionado, apenas um ventilador na sala do acervo; no espaço destinado a consultas,

cadeiras sem estofamento, uma mesa e as janelas abertas para iluminar o ambiente pois as

lâmpadas estão queimadas. Os próprios funcionários parecem não saber do valor que

aquele ambiente e as obras que ali se encontram, tem para a história e a memória da cidade.

Em relação a guardar a memória em arquivos, fato preponderante em nosso século,

Pierre Nora comenta:

Menos a memória é vivida no interior, mais ela tem necessidade de suportes exteriores e de referências tangíveis de uma existência que só vive através delas. Daí a obsessão pelo arquivo que marca o contemporâneo e que afeta, ao mesmo tempo, a preservação integral de todo o presente e a preservação integral de todo o passado.81

(...) A lembrança é passado completo em sua reconstituição a mais minuciosa. É

uma memória registradora, que delega ao arquivo o cuidado de se lembrar por ela e desacelera os sinais onde ela se deposita, como a serpente sua pele morta. (...) O que nós chamamos de memória e, de fato, a constituição gigantesca e vertiginosa do estoque material daquilo que nos é impossível lembrar, repertório insondável daquilo que poderíamos ter necessidade de nos lembrar. (...) À medida em que desaparece a memória tradicional, nós nos sentimos obrigados a acumular religiosamente vestígios, testemunhos, documentos, imagens, discursos, sinais visíveis do que foi, como se esse dossiê cada vez mais prolífero devesse se tornar prova em não se sabe que tribunal da história. (...)

81 NORA, Pierre, op. cit. p. 14.

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Assim, a materialização da memória, em poucos anos, dilatou-se prodigiosamente, desacelerou-se, descentralizou-se, democratizou-se.82

Esse processo é causado pelo efeito globalização, pelos meios de comunicação que

lançam muitas informações com pouco tempo para assimilá-las, então para não esquecer é

necessário registrar, guardar em arquivos. No Globo Repórter, exibido pela Rede Globo em

22 de março de 2002, uma psicóloga comenta a “curta memória” dos jovens, ao estudar os

mecanismos pelos quais os mais velhos conseguiram guardar informações históricas e

lembrar de personalidades e datas marcantes da história do mundo e da história do Brasil.

Para ela, na época lembrada pelos idosos, não havia tanta informação para ser assimilada e

havia tempo para esse processo de fixação; enquanto que hoje, tudo acontece muito rápido,

a realidade é on line, a mente não está preparada para memorizar tantos dados.

Outro dado importante é que não se tem a necessidade de armazenar estes dados na

memória, pois eles estão escritos nos jornais, transmitidos na televisão, saem em revistas,

são publicados em livros, podem ser arquivados no computador, em disquetes. A memória

está à mão, sempre. É o que diz Nora: “Produzir arquivo, é o imperativo da época.”83

Françoise Choay84, refere-se às novas formas de memória citando Victor Hugo, que previu

a morte do monumento depois da invenção da imprensa. Ela diz:

Sua intuição visionária foi confirmada pela criação e pelo aperfeiçoamento de novas formas de conservação do passado: memória das técnicas de gravação da imagem e do som, que aprisionam e restituem o passado sob uma forma mais concreta, porque se dirigem diretamente aos sentidos e à sensibilidade, "memórias" dos sistemas eletrônicos mais abstratos e incorpóreos.

As imagens são meios de transmissão da memória social, são usadas para construir

e ajudar a reter e transmitir memórias. Estão diretamente relacionadas ao poder,

principalmente os monumentos públicos. A esse respeito, Peter Burke85 diz que:

82 Idem, p. 15.83 Idem, p. 16.84 CHOAY, Françoise. A Alegoria do Patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade: editora UNESP, 2001, p.21.85 BURKE, Peter. Variedades de História Cultural. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 75.

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 39

Page 40: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

Historiadores dos séculos XIX e XX, em particular, vêm dedicando um interesse cada vez maior aos monumentos públicos nos últimos anos, precisamente porque esses monumentos ao mesmo tempo expressavam e formavam a memória nacional.

Em relação às obras artísticas existentes nas praças de Manaus, é notório que a

grande maioria foi importada e pertencem a um período característico da história da cidade

e das modernas concepções de cidade e espaço público. São ícones da memória nacional,

pois existem obras semelhantes às nossas em outros estados brasileiros. Também

representam, como atestam alguns historiadores, uma imposição, um recurso para uma

espécie de branqueamento da população, para que esta esquecesse sua identidade indígena.

O prof. Otoni Mesquita86, analisando a arquitetura de Manaus da belle époque, diz que:

Todo processo de mudanças, com suas obras públicas, a introdução de novos costumes e a adoção de modernos serviços públicos podem ser simbolicamente compreendidos como um “rito de passagem” do processo de branqueamento através do qual a cultura local despia-se das tradições de origem indígena e vestia-se com características ocidentais.

A prof. Bernardete Andrade, em palestra proferida na UA, em janeiro deste ano,

apresentou sua tese de mestrado que trata da memória indígena, ou melhor, da inexistência

de uma memória indígena em Manaus. Falou que a presença indígena em nossa cidade

encontra-se no subterrâneo, nos achados arqueológicos, que a paisagem da cidade não fala

dos índios. A professora busca a memória soterrada embaixo da cidade e das obras

européias, busca a memória subterrânea a que se refere Michael Pollak.87

Realmente apresentamos uma recusa em nos identificarmos com os índios, nenhuma

praça tem nome indígena, não há esculturas de índios ou mesmo do caboclo seringueiro

decorando os logradouros públicos. Estas imagens estão dispostas em museus e casas de

artesanato onde a maioria da população que visita, é estrangeira.

Neste sentido, as obras colocadas pelo poder público, refletem a imposição da

memória oficial sobre a memória coletiva e individual, o que acabou por gerar esta nossa

memória subterrânea, a que se refere a professora Bernardete. E o patrimônio construído na

86 MESQUITA, Otoni. Manaus: história e arquitetura (1852-1910). Manaus: Editora Valer, 1999, p. 147.87 Op. cit.

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 40

Page 41: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

área do Centro Histórico reflete esse processo de modernização que foi vivenciado por

muitas cidades em vários países, na passagem do século XIX para o século XX.

Patrimônio

Conceitos e significados

Jacques Le Goff88 chama o século XIX de “século patrimonial”, pela preocupação

sistematizada com o futuro das cidades. Isto porque no período barroco (século XVI), as

coleções existentes eram de propriedade dos reis, estavam na moda e significavam poder.

Posteriormente esses acervos passam a constituir os museus nacionais e tornam-se

acessíveis a todos. Mas, a partir de 1830, coube ao Estado a responsabilidade de identificar,

reconhecer e registrar os objetos que constituem patrimônio. Com isso, o Estado obteve

grande poder de manipulação simbólica e criou seus monumentos e os colocou em locais

públicos. Porque a visibilidade do objeto no espaço público, potencializa sua força

simbólica. Isto foi um fator de importância para a instauração de um novo regime político,

a República. E em Manaus nós temos os nossos monumentos que exaltam o ideal

republicano.

No século XX, na década de 1970, começou-se a questionar as finalidades do

patrimônio histórico e discutir o conceito de patrimônio aliado ao de memória: preservação

da produção material como preservação da memória das sociedades. O patrimônio histórico

como fator de continuidade histórica, identidade e segurança para as sociedades

contemporâneas. Porque vivenciamos a cultura da eletrônica, que criou uma nova dimensão

de espaço e de tempo, tão rápida que não conseguimos assimilar as informações e nos

adaptarmos às novas situações. Com essa universalização, torna-se ainda mais necessária a

referência, o direito à memória, à diferença, à cidadania. E a fragmentação dos espaços

públicos e a destruição e alteração de suas obras, nos privam desse sentimento de pertença e

causam estranhamento, o que contribui para a neurose coletiva, que por sua vez vai se

exprimir em atos de vandalismo e depredações contra esses mesmos lugares e obras.

88 LE GOFF, Jacques. Por amor às cidades: conversações com Jean Lebrun. São Paulo: Fundação Editora da UNESP, 1998.

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 41

Page 42: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

Carlos A. C. Lemos89, em seu livro O que é Patrimônio Histórico, faz

esclarecimentos gerais sobre o tema. Segundo ele, o que se chama hoje de Patrimônio

Artístico é uma parte do Patrimônio Cultural. O autor enfoca que o professor francês

Hugues de Varine-Boham (acessor internacional da UNESCO), trouxe essa discussão de

forma mais abrangente. Dividiu o Patrimônio Cultural em três categorias:

1. Elementos pertencentes à natureza, ao meio ambiente;

2. Conhecimento, técnicas, elementos do saber;

3. Bens culturais, os artefatos.

Carlos Lemos ressalta que a preocupação em preservar bens no Brasil é nova. Mas

houve uma iniciativa isolada e sem conseqüências em 1742, por parte do Conde de

Galveias, ao escrever ao governador de Pernambuco, Luís Pereira Freire de Andrade, que

resguardasse uma construção do período do Conde de Nassau.

Depois desse acontecimento, o debate só vai ser retomado na década de 20, e a

partir daí, reconstrói a trajetória da proteção ao Patrimônio no Brasil. Na década de 20

houve um projeto de Lei que visava a proteção do Patrimônio de partes de construções que

pudessem ser retiradas e servir a outras, um fato comum naquele período. Em 1923, o

deputado Luiz Cedro, apresentava um projeto de preservação do Patrimônio, que sugeria a

criação de uma "Inspetoria dos Monumentos Históricos dos Estados Unidos do Brasil, para

o fim de conservar os imóveis públicos ou particulares, que no ponto de vista da história ou

da arte revistam um interesse nacional."

Uma lei de janeiro de 1937, reorganizou o Ministério da Educação, chefiado por

Gustavo Capanema, criou o Serviço do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. O

Decreto-lei n º 25, de 30 de novembro, definiu o Patrimônio Histórico e Artístico Nacional

como "o conjunto dos bens móveis e imóveis existentes no país e cuja conservação seja de

interesse público, quer por sua vinculação a fatos memoráveis da história da Brasil, quer

por seu excepcional valor arqueológico ou etnográfico, bibliográfico ou artístico"90.

A instituição do SPHAN, segundo Déa Fenelon91, foi um ato autoritário para

estabelecer uma identidade nacional. Posto que mesmo com as pesquisas feitas no interior

do país, as experiências e os valores dos diversos segmentos da população não foram

89 LEMOS, Carlos A. C. O que é Patrimônio Histórico. São Paulo: Brasiliense, 1982.90 LEMOS, Carlos. Op. cit., p. 43.91 FENELON, Déa Ribeiro. Políticas Culturais e o Patrimônio Histórico. In O Direito à Memória: Patrimônio Histórico e Cidadania. São Paulo: DPH, 1992.

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 42

Page 43: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

levados em conta. E elegeu-se um grupo de elementos que simbolizasse a cultura brasileira

de forma unificadora e autoritária.

No entanto, sempre é preciso reconhecer e afirmar o significado deste patrimônio que o SPHAN e outros órgãos do patrimônio histórico conseguiram preservar ao identificar, restaurar e conservar bens culturais de inegável valor histórico e artístico - sobretudo o legado barroco, como testemunho das condições da presença portuguesa ao longo dos séculos de colonização. O que se quer destaca, entretanto, é a política cultural que orientou esta preservação: ao tentar apresentar somente estes registros e acervos, carregando nas tintas do seu significado como fator de unidade nacional, atuou como fator de solvência das contradições reais e retirou da memória o significado de luta social que ela possui. A preocupação em consagrar um patrimônio que acentuava apenas a presença do Estado, das instituições estabelecidas e classes sociais dirigentes, apagou marcas importantes do cotidiano e da experiência social vivenciada por grandes contingentes da população, alijada da reflexão para constituir-se em cultura.92

Podemos também dizer que a instituição do SPHAN trata-se do discurso criado pelo

Estado em relação ao patrimônio. Pois segundo Reginaldo Gonçalves93, "Os "patrimônios

culturais" são constituídos concomitantemente à formação dos Estados nacionais, que

fazem uso dessas narrativas para construir memórias, tradições e identidades". Em relação

ao uso dos bens culturais e sua função "civilizadora", Reginaldo acrescenta: "os cidadãos

devem ser educados, civilizados, e, nesse processo, o patrimônio (definido em termos

monumentais) tem um papel crucial, na medida em que é por seu intermédio que os

indivíduos entram em contato com a nação e sua "tradição".

Até a década de 60 procurou-se vincular em todo o Brasil, uma imagem que

representaria a nação. Os modernistas que estavam empenhados em "construir uma feição

brasileira para marcar uma civilização nacional" encontraram nos centros históricos de

Minas Geras, o "abrasileiramento" da cultura européia. Adotou-se como modelo para a

seleção e valorização do patrimônio a arquitetura colonial. Nesse sentido:

O investimento maior do Iphan nos centros históricos se dava no controle das fachadas do casario, mantendo-se o cenário colonial como valor patrimonial unicamente por suas características estilísticas. Tratava-se do critério "fachadista",

92 FENELON, Déa. Op. cit., p. 30.93 GONÇALVES, José Reginaldo Santos. Monumentalidade e cotidiano: os patrimônios culturais como gênero de discurso. In Cidade: história e desafios. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002.

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 43

Page 44: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

cujo valor de patrimônio era atribuído a partir de seus elementos visuais de comunicação mais mediata.Envolvendo trabalhos nas fachadas, a instalação de focos de iluminação nos monumentos e a demolição de prédios novos ou "feios", e incentivando o uso comercial ligado ao turismo, apropriam-se dos sítios urbanos como matéria-prima para a construção da imagem, preparando-os para o consumo ou como cenários de atração para o consumo. 94

Semelhante política se aplica em Manaus, com os projetos de restauração de parte

da arquitetura antiga do Centro e a nova função de alguns prédios. Essas propostas que

visam a apropriação do patrimônio para o consumo:

... desconsideram os sítios como referências de uma população heterogênea e diversificada, capaz de reconhecer neles elementos de sua história e identidade, seja como parte da nação, da cidade, como lugar de sua vivência afetiva ou como participante da construção do local. São projetos que se utilizam do patrimônio sem, no entanto, contribuir para sua transformação em fonte de conhecimento, referência da história, da memória e da identidade, fundamentais ao exercício da cidadania.95

Com a apropriação do patrimônio para o consumo, exclui-se parte da população de

seu convívio, pois à apenas uma parcela da sociedade é possível o acesso aos bens

patrimoniais através das viagens, negado principalmente pela dificuldade nos transportes.

Contudo, o IPHAN propõe mudanças:

Finalmente, as mudanças adotadas pelo IPHAN partir dos anos 80 irão incorporar outros elementos, sobretudo os bens de origem popular, os seus fazeres e, bem mais recentemente, o patrimônio imaterial, como as festas, as danças, as procissões, a gastronomia, etc. de alguma forma quebrou-se a hegemonia do patrimônio de "pedra e cal" e da presença exclusiva de arquitetos para a definição dos bens patrimoniais.96

A legislação e a prática em relação aos bens patrimoniais, o que considerar como

patrimônio e como preservar são discussões que permeiam vários segmentos da sociedade.

Trata-se hoje de um debate do qual participam diversos setores e profissionais,

transformou-se em uma questão multidisciplinar e complexa. Versa-se sobre questões

94 MOTTA, Lia. Cidades mineiras e o IPHAN. In Cidade: história e desafios. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002.95 Idem, p. 137.96 CAMARGO, Haroldo L. Patrimônio Histórico e Cultural. São Paulo: Aleph, 2002, p. 91/92.

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 44

Page 45: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

simbólicas, valor histórico e artístico, valor afetivo, diferentes memórias e grupos sociais,

busca-se soluções diferenciadas para diferentes bens patrimoniais. Cada caso precisa ser

tratado cuidadosamente, pois existe uma teia de complicações em jogo.

Certa ocasião, contemplando o Teatro Amazonas, em Manaus, me interroguei se os índios, em Manaus, gostariam dele. Eles deveriam pensar, talvez: "Nossos antepassados foram escravizados para construir esse delírio do homem branco, que decidiu levantar uma cidade no meio da mata e, ainda, construir um teatro ali, para se deleitar com espetáculos de ópera que nada tinham a ver com a nossa cultura. O que esse teatro pode representar como memória de nosso povo? Que relação podem os índios, portanto, ter com o Teatro Amazonas? Uma relação atávica de negação ou desprezo, ou de alheamento, eu imagino. Portanto, é muito difícil estabelecer o que é ou não significativo para a memória de diferentes segmentos humanos, principalmente nas grandes cidades, carregadas de heterogeneidade.97

Em Manaus não se tem definida uma política de preservação e conservação do que

represente o patrimônio histórico e artístico da cidade. Os projetos de restauração recaem

hoje sobre a arquitetura construída na belle époque e sobre as praças do Centro Histórico de

Manaus, embora haja uma legislação municipal referente ao patrimônio, tombamento,

conservação e proteção.

A Lei Orgânica do Município de Manaus, prevê a proteção dos bens que constituem

o patrimônio municipal. Observemos o que diz a Lei n.º 2044 de 18 de outubro de 1989,

publicada no Diário Oficial, no dia 30 de outubro de 1989, na administração de Arthur

Virgílio Neto:

LEI N.º 2044 DE 18 DE OUTUBRO DE 1989DISPÕE sobre a proteção do patrimônio histórico, artístico, paisagístico e cultural do Município de Manaus e da outras providências.

Art. 1º - Constituem patrimônio histórico, artístico, paisagístico e cultural do Município de Manaus, a partir do respectivo tombamento, na forma desta Lei, os bens públicos e particulares situados no território municipal, na forma abaixo:

I – construções e obras de arte de notável qualidade estética ou particularmente representativas de determinada época ou estilo;

II – prédios, monumentos e documentos intimamente ligados a fato memorável da história local ou a pessoa de excepcional notoriedade;

97 PINHEIRO, Augusto I. F. Aprendendo com o patrimônio. In Cidade: história e desafios. Rio de Janeiro: Editora FGV, 2002, p. 154.

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 45

Page 46: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

III – monumentos naturais, praças, sítios e paisagens, inclusive os agenciados pela indústria humana, que possuam especial atrativo ou sirvam de “habitat” a espécimes interessantes da flora ou da fauna local;

Art. 3º - Os bens que integrem o inciso I e o inciso III do artigo 1º só poderão ser objeto de tombamento após 10 (dez) anos de existência.

Art. 4º - Far-se-á o tombamento pela inscrição do bem no livro próprio com a inteira discriminação das suas características de modo que seja individualizado.

Parágrafo segundo – A inscrição em livro de Tombo será determinada em despacho expresso do Secretário Municipal de Cultura.

Art. 5º - A proposta de tombamento será apresentada pelo Secretário Municipal de Cultura em processo dirigido ao Prefeito Municipal ao qual compete por via de Decreto, tombar o bem, mandando inscrevê-lo em livro próprio, conforme a sua especificidade.

Art. 6º - Sem prejuízo de ato municipal, ainda que cumulativo, serão os bens tombados como patrimônio federal ou estadual, situados no território do Município de Manaus, inscritos no respectivo livro, mediante despacho do Secretário Municipal de Cultura.

Art. 11 – Verificada a necessidade de obras de conservação e restauração do bem tombado, a Secretaria Municipal de cultura notificará o proprietário ou possuidor a efetivá-las em prazo razoável, ou de 180 dias; se o proprietário não o fizer, poderá o município realizá-las, cobrando depois o custo respectivo.

Art. 13 – Os bens tombados ou qualquer de seus componentes não poderão ser demolidos, nem modificados, restaurados, pintados ou removidos, sem prévia autorização expressa da Secretaria Municipal de Cultura, e nos termos em que ela for concedida.

Art. 14 – Igual autorização será exigida para qualquer ato que altere a aparência do bem.

Art. 15 – Sem autorização expressa não se afixará placas, letreiros, anúncios ou cartazes de qualquer natureza no bem tombado, nem se instalará atividade comercial ou industrial.

Observa-se que a Lei determina proteção a partir do tombamento para os bens com

mais de 10 anos de existência e também prevê sua conservação e restauração, bem como

dispõe de punições para quem atentar contra a aparência do bem tombado. A Secretaria de

Cultura deveria cuidar da fiscalização e do cumprimento desta Lei. Por que não o faz? A

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 46

Page 47: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

Prefeitura deveria cuidar da conservação e preservação dos bens tombados. Por que as

praças encontram-se abandonadas e as obras alteradas em reformas constantes?

Em 1990, o Decreto n.º 6.978, de 26 de Março, publicado em Diário Oficial em 5 de

abril do mesmo ano, regulamenta a Lei acima citada e complementa as orientações sobre o

processo de tombamento.

DECRETO N.º 6.978 DE 26 DE MARÇO DE 1990REGULAMENTA a Lei n.º 2.044, de 18 de outubro de 1989, que “DISPÕE sobre a proteção do patrimônio histórico, artístico, paisagístico e cultural do Município de Manaus e dá outras providências.

Art. 1º - O tombamento, de que trata a lei n.º 2.044/89, será proposto pela autoridade competente, ao Prefeito Municipal a quem cabe, através de Decreto, tombar o bem, ordenando que o mesmo seja inscrito em livro próprio.

Art. 2º - Depois de publicado o Decreto no Diário Oficial, a autoridade competente, através de despacho fundamentado em autos do processo de tombamento, ordenará a inscrição imediata do bem no livro respectivo para que o tombamento possa produzir todos os seus efeitos legais.

Art. 3º - Para cada espécie de bem tombado, haverá um livro respectivo, observando-se o disposto nos incisos I a VI do artigo 1º , da Lei n.º 2.044/89.

Art. 4º - Nos livros de tombo, o bem, conforme sua espécie, será identificado pela sua exata localização e pela área construída total.

Parágrafo Único – Constarão ainda do registro de tombamento, o estado de conservação em que se encontrava o bem quando da inscrição do livro, a data do tombamento, a data da conclusão da construção do bem tombado, exceto nos casos de monumentos naturais e paisagens, o motivo do tombamento, de acordo com o Decreto que o ordenou.

Durante as pesquisas, não foram localizados os livros de Tombo a que se referem o

Decreto e a Lei acima citados. A Secretaria de Cultura não forneceu uma relação completa

dos bens tombados ou dos registros devidos em livro de Tombo. Se estes livros existem,

onde estão? Na prática, de quem é a responsabilidade de efetuar o tombamento? Pois a

maioria das obras escultóricas presentes nas praças, já ultrapassaram os dez anos de

existência. Em Diário Oficial, foram localizados os Decretos que efetuam o tombamento de

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 47

Page 48: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

alguns imóveis do Centro Histórico, mas as obras das praças não têm tratamento individual.

Na verdade não há, de forma sistematizada, uma relação completa com as esculturas,

monumentos e obras artísticas encontradas nas praças do Centro Histórico, a relação mais

completa que se tem data de 192298 e nela constam apenas algumas praças. Talvez porque

estas obras façam parte do Centro Antigo, também chamado de Centro Histórico, que foi

tombado como um todo, de acordo com a Lei Orgânica, como se observa na Subseção II –

Do Patrimônio Cultural, Art. 342:

Art. 342 – Fica tombado, para fins de proteção, acautelamento e programação especial, a partir da data da promulgação desta Lei, o Centro Antigo da cidade, compreendido entre a Rua Leonardo Malcher e a orla fluvial, limitado esse espaço, à direita, pelo igarapé de São Raimundo e, à esquerda, pelo igarapé de Educandos, tendo como referência a Ponte Benjamim Constant.

Partindo-se desta informação, já que toda a área do Centro Histórico foi tombada, as obras não

deveriam receber os cuidados previstos em Lei? Por que isto ainda não acontece? Será que, na verdade,

estas leis têm apenas autoridade de veto e, não se tem definida uma política de preservação e

conservação destes bens? Por que as reformas no traçado urbano alteram diretamente as peças e as

estruturas das praças quando, por estarem tombadas, as praças deveriam receber um tratamento mais

cauteloso?

Centro Histórico de Manaus

Compreendido entre a rua Leonardo Malcher, a avenida Joaquim Nabuco e a orla

fluvial, o Centro Histórico de Manaus, também denominado Centro Antigo trata-se do

tecido urbano originário da cidade. Está protegido pela Lei Orgânica do Município, embora

esta proteção não seja exercida pelo poder público e as referências arquitetônicas dos vários

períodos da história da cidade estejam desaparecendo ou recebendo modificações que

atentam contra a sua forma e função. Quanto ao traçado das praças, estes mudam a cada

administração, ganhando calçamento, palmeiras, pinturas, gradeamento, mudando-se de

lugar seus objetos ou mesmo substituindo-os.

Esta área é um marco da cultura visual da cidade e guarda valiosos lugares de

memória, importantes para a retomada e a interpretação das várias fases da história da

98 Relatório apresentado à Intendência Municipal de Manáos, em sessão de 1º de outubro de 1922 – pelo Superintendente Dr. Basílio Torreão Franco de Sá.

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 48

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cidade. Uma história que se cristaliza em cada prédio, fachada alterada, praça remodelada,

escultura substituída, monumento deslocado. Além da questão do patrimônio construído

especialmente no Centro Histórico, as muitas adaptações deste espaço o tornaram também

um centro comercial, e a partir daí a conservação em meio a necessidade do novo

reivindicada pelo comércio, dificulta a execução e propostas de projetos de conservação.

Os Centro Históricos são, em síntese, lugares de vida e trabalho, espaços de atividades produtivas e de serviços vinculados a outros bairros da cidade e da região. São também, áreas culturais, nas quais se concentram a maioria dos melhores exemplos arquitetônicos e dos espaços urbanos da cidade herdados do passado, importantes testemunhos da sua história social e econômica.99

Jorge Hardoy100 é taxativo ao afirmar que a maior concentração de cortiços e

pensões em cada cidade encontra-se nos Centros Históricos e nos bairros que o rodeiam.101

Em Manaus é muito fácil constatar esta afirmativa, pois o Centro é cercado pela periferia. Esta realidade acontece desde a construção do projeto urbanístico durante o período da borracha, quando para se definir a cidade moderna, o perímetro urbano do centro foi se modelando tendo como limites uma área bem mais pobre e pouco cuidada, compreendida pela parte da sociedade que era lançada às margens da modernidade. Devido a proximidade para o trabalho, as pessoas insistem em morar nas proximidades do Centro, ainda que em condições precárias. Hardoy também complementa dizendo que a conservação e recuperação do patrimônio urbano edificado, deveriam ser complementos da reabilitação de vilas miseráveis que são a primeira prioridade.102 Mas a cada governo mudam-se interesses e projetos e muita coisa fica inacabada ou nem chega a começar.

A “passagem” entre um período histórico e outro não se resolveu, em nossos tempos, no âmbito da cidade.103

A questão é como ligar o novo ao antigo e retomar um processo de continuidade.104

Percebe-se claramente a preocupação manifestada por Glauco Campello quanto a

relação do antigo com o novo. Em nossa cidade, como em tantas outras, as administrações

perpetuam a falta de solução para este problema. Enquanto isso, as obras vão se perdendo

em intervenções inadequadas, fruto desta falta de planejamento definido. "Restaura-se um

logradouro público, dotando-o de gradeamento de proteção para os seus jardins

99 HARDOY, Jorged. A Cidade Latino-Americana: a vigência dos centros históricos. IN Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Nº 21. Ano 1986. P, 130.100 Idem.101 HARDOY, Jorge. Op. cit. p. 132.102 Idem.103 CAMPELLO, Glauco. Patrimônio e cidade, cidade e patrimônio. In Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Ano. 1994. P. 118. 104 Idem. P. 119.

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 49

Page 50: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

replantados, mas não se define um tratamento adequado para o grupo de comerciantes

informais que trabalham no local.

A crise que abala hoje em dia a cidade (e a cidade como um todo, não apenas aquele que, com termo teoricamente absurdo, chama-se centro histórico) é relacionada por Argan à crise da historicidade intrínseca, congênita à cidade; em conseqüência não se pode admitir uma política de salvaguarda para a parte antiga separada de uma política urbanística que considere globalmente todos os problemas da cidade.105

Para Argan não pode haver política diferente para uma parte da cidade, chamada

de centro histórico, sem estendê-la à toda a cidade, porque o antigo e o novo dividem o

mesmo espaço urbano. E relembrando Vera Bosi106, toda e qualquer atitude relacionada

à obra, deverá ser estendida às ruas, praças e população, para que dessa forma seja

realmente preservado o Patrimônio.

Para entender melhor as intervenções operadas na região tombada do centro

histórico, especialmente em seus logradouros públicos, segue-se uma síntese da história

destes lugares.

Os Logradouros Públicos do Centro Histórico de Manaus

As praças presentes hoje no Centro Histórico de Manaus, são a prova viva das

modificações urbanas, da história da cidade e da memória cristalizada nos lugares.

Refletem o poder da memória coletiva no que se refere ao nome desses lugares. Cada uma

delas tem seu nome oficial (atual) mas é conhecida por uma outra denominação, a que se

tornou popular, a que resiste às mudanças sofridas pelo próprio espaço urbano. Não se

pretende aqui, reconstituir detalhadamente a história desses lugares, as informações

históricas são necessárias enquanto elementos indispensáveis para a compreensão das

modificações do espaço público e da permanência de elementos como memória e registro

histórico da cidade. Também não é de interesse deste trabalho participar da visão saudosista

de uma cidade idealizada e recriada nos livros e registros sobre o período da borracha. O

105 ARGAN, G. C., op. Cit. p. 5.106 Op. Cit.

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 50

Page 51: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

enfoque será entender essas transformações como um processo natural da cidade e de seus

lugares, a capacidade de adaptação da cidade às necessidades atuais, a relação que se tem

entre o antigo e o novo e, discutir a necessidade da preservação dos lugares enquanto

patrimônio.

Praça Dom Bosco

Pequenas praças como a Dom Bosco, localizada entre as ruas Epaminondas e da

Instalação, contribuem com a história da cidade. Construída em 1905 pelo Superintendente

Adolpho Lisboa, ela foi chamada de Praça Uruguayana e, de acordo com documentos

oficiais107, ocupava uma área de 1.200m2 e era atravessada por uma linha de bonde. Aos

poucos foi perdendo o seu espaço e hoje ela está quase encoberta, por entre os grandes

prédios, e seu pequeno espaço ainda é ocupado por uma lanchonete e uma banca de revista

(e antes da última reforma também possuía uma central de rádio táxi). Algumas árvores

ajudavam a compor o ambiente de praça, com bancos e postes de iluminação. Os bancos

foram trocados e os postes de iluminação modificados. No centro, onde antes se via, sob

um alto pedestal, o busto em bronze de Dom Bosco, vê-se agora uma escultura de corpo

inteiro, em cimento branco. A praça foi fechada para as reformas no primeiro semestre de

2002 e a estátua substituída na primeira quinzena de agosto do mesmo ano. Depois da

reforma, a praça conta com 8 bancos, três pequenos postes com duas lâmpadas, quatro

depósitos de lixo, sete palmeiras, a banca de revista e a lanchonete. Como marca do

"presentismo" e da necessidade do novo e das autoridades deixarem o registro de seus

feitos para a posteridade, em dois dos lados do pedestal (que foi recortado), lê-se as placas:

(1 ª ) Encerrando a celebração dos 80 anos do Colégio Dom Bosco, a associação de ex-alunos entrega à comunidade amazonense a nova estátua de D. Bosco, recordando o aniversário natalício (16.08.1815) do pai e amigo dos jovens.

Manaus, 16 de agosto de 2002

107 Relatório apresentado à Intendência Municipal de Manáos, em sessão de 1º de Outubro de 1922 – pelo Superintendente Dr. Basílio Torreão Franco de Sá. Este foi um dos relatórios mais completos encontrados durante esta pesquisa. Nele encontram-se praças e monumentos com número de tombo e algumas informações de extrema importância. Esta praça, possui o número de tombo 27.

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 51

Page 52: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

É interessante ressaltar que o busto que havia, também foi uma homenagem dos alunos do Colégio Dom Bosco, segundo informações do Pe. Atílio108, provavelmente a turma de 1934.

(2 ª )Prefeitura Municipal de ManausPrefeito Municipal de ManausAlfredo Nascimento

Empresa Municipal de UrbanizaçãoM ª Auxiliadora Dias CarvalhoSecretaria Municipal De Obras, Saneamento Básico e Serviço PúblicoPaulo Herban Maciel Jacob FilhoConselho Municipal de Desenvolvimento UrbanoJosé Roque N. MarquesPresidente

Rest.: agosto/2002Eu Amo Manaus

Essas modificações feitas na Praça Dom Bosco fazem parte deste projeto "Eu Amo Manaus". E nesta placa estão registrados todos os administradores responsáveis pelas alterações.

Praça Adalberto Vale

Está localizada entre as ruas Theodoreto Souto, Guilherme Moreira, Marcílio Dias e

Av. Floriano Peixoto. Recebeu anteriormente os nomes de Praça Tamandaré e Praça

Tenreiro Aranha, no período em que ali foi colocado o monumento do fundador da

Província, que hoje se encontra na Praça da Saudade. Atualmente a praça constitui-se no

espaço da feira de artesanato regional, onde podem ser encontrados uma série de artefatos e

objetos decorativos que remetem às origens indígenas da cidade. Entre as barracas,

procurando, pode-se encontrar o busto de Adalberto Vale que também ocupou outros

lugares dentro da mesma praça. Esta obra é de autoria de Luiz Morrone, um conceituado

escultor que está presente na maioria dos logradouros públicos de São Paulo entre outros

Estados. Foi feito em São Paulo e data de 1969. Os prédios ao redor também foram

modificados, alterando a paisagem do lugar. O prédio do Hotel Amazonas, por exemplo,

não mais ostenta a seqüência de letras na vertical, formando um harmonioso conjunto; há

pouco tempo passou a ser suporte para a divulgação de uma empresa de telefonia, que se

108 Em entrevista concedida em 22 de outubro de 1997, da qual também participou o Pe. Augusto.

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 52

Page 53: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

destaca mais que o prédio. São as necessidades da modernidade, ou melhor, são os

elementos urbanos que começam a surgir na virada do século XIX para o século XX. Nas

palavras de José Geraldo109:

Nas ruas, os instrumentos de sedução para o consumo se multiplicavam através de luminosos, belos cartazes de rua, fotografias, grandes vitrines envidraçadas e propagandas nos magazines.

Esses elementos urbanos destinados à propaganda cada vez mais se modernizam e

invadem os lugares públicos alterando as paisagens da cidade.

A Praça Adalberto Vale não dispõe de bancos para que as pessoas possam

acomodar-se. Trata-se apenas de um lugar de passagem e que serve para fazer compras.

Praça dos Remédios

Ainda hoje é chamada de Praça dos Remédios, embora tenha mudado de nome

oficialmente em 1897110. Localizada em frente à Igreja dos Remédios, entre as ruas Cel.

Sérgio Pessoa, Miranda Leão, Leovegildo Coelho e rua dos Barés, também tem sua área

comprometida pelo comércio, muito intenso ao redor. Em 1906 possuía um chafariz de

ferro fundido111, hoje tem uma escultura sagrada, a figura de Cristo de braços abertos, sob

um imenso pedestal, algumas árvores e bancos.

A Praça Torquato Tapajós é extensa em comprimento e pouco larga. Camillo Sitte a

classificaria como praça de profundidade. A parte central possui algumas pequenas árvores,

as maiores encontram-se nos arredores. Existem alguns bancos e o público freqüentador é

formado pelas pessoas que trabalham nas proximidades ou que usam a praça como local de

trabalho, como os lavadores de carro. A arquitetura ao redor marca principalmente a

109 MORAES, José Geraldo Vinci. Cidade e cultura urbana na primeira República. São Paulo: Atual, 1994, 19.110 No Relatório apresentado ao Exmo. Snr. Dr. Fileto Pires Ferreira, Governador do Estado, pelo Secretário dos Negócios do Interior, em 5 de Janeiro de 1898, lê-se o seguinte trecho: Dos actos da Intendência desta Capital promulgados nas diversas sessões do anno passado constam as seguintes resoluções: Resolução de 23 de novembro, dando à praça dos Remédios o nome de Torquato Tapajós, como homenagem à memória do distincto Amazonense que teve este nome.

111 Op. cit. Nº de tombo 25.

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 53

Page 54: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

tomada do centro pelo comércio e a adaptação de sua arquitetura à nova necessidade. A

Igreja dos Remédios ainda se mantém em funcionamento.

Praça do Congresso

A Praça do Congresso, ou praça do IEA (Instituto de Educação do Amazonas) como

alguns chamam, já foi a Praça Antônio Bittencourt e Praça da Saúde. Localizada no alto da

Av. Eduardo Ribeiro e entre as ruas Ramos Ferreira e Monsenhor Coutinho, recebeu o

nome atual em 31 de maio de 1942, quando aconteceu o Congresso Eucarístico Diocesano,

comemorando os 50 anos de criação do bispado. Como parte dos festejos, registrou-se a

procissão fluvial de Belém a Manaus, subindo o rio Amazonas e a substituição do nome da

praça com a colocação do Monumento a N. S. da Conceição112, este uma dos objetos desta

pesquisa. Além deste monumento, há o busto de Eduardo Ribeiro. Em 2000, durante as

comemorações dos 500 anos do descobrimento do Brasil, foi colocado o relógio da Rede

Globo. A instalação do Relógio quebrou com a harmonia da praça e a visão que se tinha ao

subir uma das principais avenidas do Centro de Manaus, a Av. Eduardo Ribeiro, impedindo

a visão das obras e da fachada do Colégio, que fica ao fundo da Praça. Mas, tratando-se de

uma obra descartável como os produtos da modernidade, após cumprir seu papel foi

retirado.

É um local muito freqüentado por estudantes, das escolas ao redor; hippies, que

aproveitam para praticar o seu comércio informal; skatistas, que transformam as bordas dos

canteiros e bancos em plataforma para suas manobras e organizações políticas e estudantis,

que têm na praça um ponto referencial para manifestações e atos públicos.

A Praça do Congresso possui muitas árvores e plantas, distribuídas nos vários

canteiros, por entre bancos que a circundam. Assim como as anteriores, possui uma banca

de revistas.

Praça Dom Pedro II

... se é verdade que a razão fundamental de ser um lugar de memória é parar o tempo, é bloquear o trabalho do esquecimento, fixar um estado de coisas, imortalizar a morte, materializar o imaterial para – o ouro é a única memória do dinheiro – prender o

112 CAMINHANDO por Manaus: Cinco Roteiros Históricos da Cidade. Manaus: Fumtur, 1996.

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 54

Page 55: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

máximo de sentido num mínimo de sinais, é claro, e é isso que os torna apaixonantes: que os lugares de memória só vivem de sua aptidão para a metamorfose, no incessante ressaltar de seus significados e no silvado imprevisível de suas ramificações.113

A praça Dom Pedro II é um dos lugares mais antigos da cidade e contém todas estas

observações de Pierre Nora. Não só o espaço público, mas os prédios que a cercam

passaram por metamorfoses e adaptações para continuar existindo. O próprio Hotel Cassina

está de pé, como a “imortalizar a morte” não só de seu próprio glamour, mas de uma época

de riquezas e extravagâncias. Quanto ao espaço da praça, foi a única organizada de acordo

com padrões urbanísticos antigos, que tratam a cidade como uma obra de arte. Seu espaço

é cercado por edifícios importantes e imponentes e seu traçado original pouco foi

modificado.

Há registros de sua existência antes dos anos de 1800, quando era então chamada de

Praça do Pelourinho114. Isso se deve porque neste lugar foi erguido este instrumento de

tortura. Sobre isso Mário Ypiranga115 escreve:

Não temos notícia de quando foi chantado o pelourinho em Manaus, embora a ata da solenidade do de Barcelos seja conhecida. Como a capital passou de lá para Manaus, não haveria necessidade de nova solenidade: apenas a presença do instrumento da justiça. O que vale ressaltar é que esse instrumento da justiça só pôde ter sido doado quando da predicação de vila. E todavia não aparecem nas atas da Câmara Municipal de Manaus referências ao ato de concessão. Aliás a plantação do pelourinho era um ato que se revestia da maior solenidade pública, sendo obrigado o bando e o pregão pelas ruas. O instrumento de tortura era doado em nome do rei ao lugar, pelo próprio Ouvidor em correição, ao qual para tanto lavrava o têrmo de entrega, como se verifica dos atos dos pelourinhos entregues às vilas de Ega, lugar de Nogueira, etc. no pelourinho eram supliciados os criminosos de penas leves: açoites, exprobação pública. O lugar da barra possuiu dois, e anteriormente a 1800 já estava aquêle símbolo da justiça erguido no largo ou praça vulgarmente conhecida pelo nome de Pelourinho, hoje praça Dom Pedro II.

Ypiranga acrescenta que o pelourinho foi derrubado no dia 6 de setembro de 1857 e

que em 1855 tinha apenas valor histórico, não funcionando mais como símbolo de justiça.

Recebeu melhoramentos na administração de Lôbo d’Almada; e a partir da

instalação da Província, não só esta como outras praças e ruas ganharam características de 113 NORA, Pierre, op. cit. p. 22.114 MONTEIRO, Mário Ypiranga. Fundação de Manaus. Guanabara: Conquista, s/d. p. 44.115 Idem, p. 108/109.

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 55

Page 56: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

logradouros públicos. Diz Mário Ypiranga que “A praça ainda possuía uma função

improdutiva, no antes provincial: é onde está chantado o pelourinho, detestado símbolo da

justiça do rei.”116 Também registra que “Diz o padre dr. José Maria Coelho, vigário da

barra, que em 1821 ela [ a cidade] possuía onze pequenas ruas e uma praça quadrada com

“edifícios nobres” e outros cobertos de telha.”117 Estava ele se referindo à praça Pedro II.

No ano de 1892, encontra-se nos arquivos de Ofícios de Obras Públicas, referências,

nos últimos meses do ano, de contrato para reformar a praça, ou melhor para obras de

embelezamento. O lugar denomina-se na época, praça da República. No ano seguinte, são

colocadas nove palmeiras e encomendados 48 bancos, uma fonte monumental e um kiosk

para o guarda, o que pode indicar uma preocupação em vigiar o local, cuidar do bem

público, além disso muitos reparos foram feitos. Em 1894, fala-se que o gradil existente foi

modificado e que foram fornecidos objetos para a praça. Em 1896, há registros indicando

que a iluminação da praça era feita a base de querosene, neste ano também foram feitos

reparos e mudanças significativas como: mudança do passeio de cimento para legedo de

pedra de Lisboa; recolocação de uma bordadura; mudança do calçamento de paralelepípedo

de madeira para paralelepípedo de granito; além do concerto de dois bancos, colocação de

um mictório e uma bacia syphoidal, entre outros. Neste mesmo ano, no relatório dos

próprios do município lê-se: um dito terreo de pedra e cal situado a praça da República

que serve de cadeia. Esta foi a única referência encontrada sobre uma cadeia nesta praça.

Em 1897, novos reparos. O ex-prefeito de Manaus (1909-1910) Agnello Bittencourt118,

escreveu um depoimento sobre esta praça:

Da atual Praça D. Pedro II, antigo Largo do Quartel, já remodelada pelo Pensador, assisti, em 1897, à partida das tropas amazonenses para Canudos, ocasião em que lhes foi ofertada pelas senhoras da Capital uma bandeira de seda, bordada a ouro, ainda hoje existente no museu da Polícia militar.

Em 1900, o jornal A Federação anuncia que os bancos da praça deverão ser

pintados. E no ano seguinte, o mesmo jornal informa que as bandas de música não estão

tocando no chalet da praça da República, por falta de iluminação, bancos e calçamento,

estando a Banda de Música a se apresentar na praça General Ozório. Já em 1903, a praça 116 Idem, p. 55.117 Idem, p. 96.118 BITTENCOURT, Agello. Fundação de Manaus: pródromos e sequências. Manaus: EDUA, 1999.

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 56

Page 57: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

volta a receber apresentações musicais, é o que anuncia o jornal O Debate. O Jornal do

Comércio, em 1906, informa que o gradil que circunda a praça vai ser retirado e

aproveitado em outro lugar. Em Relatório de 1918, registrou-se que o jardim da praça fora

completamente reformada. O Relatório de 1922, de Basílio Torreão Franco de Sá, apresenta

documento registrando os bens tombados pela municipalidade, é o documento mais

completo que se tem sobre esse assunto. Em relação à praça lê-se:

N.º 20 Jardim da Praça da Republica

Construído pelo Governo do Estado na Praça que lhe dá o nome, occupa uma área de 2.610m2,00, contem um pavilhão de ferro para musica, um chafariz de ferro fundido com bacia de alvenaria e uma fonte armada com pedra e cimento.

Sua entrega ao Município foi feita em virtude do documento abaixo:

“Gabinete do Chefe do Departamento do Interior, em Manáos, 10 de Maio de 1897. N.º 239.

Ao Sr. Superintendente Municipal da Capital.

Cientifico-vos que o Snr. Dr. Governador do Estado mandou passar a Intendencia deste Municipio o Jardim da Praça da República, devendo ser custeada pela mesma Intendencia.

Saude e Fraternidade

(a) Pedro Freire

Autorisado pela lei n.º 66, de 18 de Maio de 1897 o Superintendente Municipal Snr. Dr. Justiniano Serpa manda proceder neste logradouro publico os reparos necessários.

Em 1900 o Superintendente Snr. Dr. Arthur Cesar Moreira de Araujo, manda remodelar este jardim e collocar um tanque para água sobre colunas de alvenaria.

Em 1907 o Superintendente interino, Coronel José da Costa Monteiro Tapajós, manda retirar o muro, gradil e portões de ferro que fechavam este logradouro publico.

Em 1911 o Superintendente Snr. Dr. Jorge de Moraes manda reparar o coreto e o chafariz, dar nova instalação eletrica e rever o ajardinamento.

Em 1920 o Superintendente Snr. Dr. Basilio Torreão Franco de Sá manda proceder a restauração deste proprio e dotal-o com bancos.

Pelos registros, nota-se quantas modificações e adaptações o lugar sofreu. Percebe-

se que anualmente eram feitas intervenções e que a estratégia de cercar o jardim público

com gradil - adotada há poucos anos para o monumento da praça São Sebastião e mais

recentemente para toda a praça da Matriz – já fora utilizada há muito tempo, retirada e

colocada algumas vezes.

No livro Caminhando por Manaus, citado anteriormente, lê-se ainda uma passagem

sobre a praça:

A Praça Dom Pedro II (recomenda-se a visita durante o dia, somente), hoje um local sossegado, onde os aposentados reúnem-se para jogar dominó, foi outrora

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 57

Page 58: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

palco de eletrizantes acontecimentos. Era exatamente ao seu redor que concentravam-se os teatros, bares, cabarés, cafés e edifícios públicos, tão assiduamente frequentados pelas pessoas mais ricas e importantes da cidade.119

O professor Márcio Páscoa120 comenta sobre a existência do Éden Theatro e sobre a

movimentação na praça.

Há muito que o público interessado em funções teatrais havia aumentado, e bastante. Foi então que o proprietário do Hotel do Commercio, o português Benjamin Lucas, construiu o Éden Theatro, em um terreno contíguo ao seu hotel, que situava-se naquela que viria a se chamar Praça da República. o Éden Theatro foi inaugurado em 3 de maio de 1888, pela Companhia Dramática e de operetas de Eduardo Álvares, empresa esta contratada exclusivamente por Benjamin Lucas para vir trabalhar em Manaus. (p, 126).

Em 1904, foi comprado pela firma Metello & Soares, que já mantinha outros estabelecimentos do gênero em outras capitais, e passou a se chamar Teatro El Dorado. (p, 166).

Ignora-se também se o estabelecimento foi vendido e/ou mudou de nome após essa data. [1907] ... Sua localização, uma das melhores da capital amazonense, àquela época, era ao lado do Hotel do Commercio, em frente ao Hotel Cassina, na mesma praça onde se localizava a sede do governo. Esta região, aliás, era uma das de maior movimentação noturna em Manaus, repleta de cafés-concerto, pequenos teatros e music-halls, que iniciavam as atividades desde bem cedo. (p, 167).

As colocações acima nos fazem imaginar quanta vida havia neste lugar e como é

triste olhá-lo agora, sabendo o que já fora há tempos atrás. É uma tristeza pela falta de

cuidados com um lugar importante e não saudosismo da época de glamour. Evoco mais

uma vez Pierre Nora121:

Para a história–memória de antigamente, a verdadeira percepção do passado consistia em considerar que ele não era verdadeiramente passado. Um esforço de lembrança poderia ressuscitá-lo; o presente tornando-se ele próprio, à sua maneira, um passado reconduzido, atualizado, conjurado enquanto presente por essa solda e por essa ancoragem. Sem dúvida, para que haja um sentimento do passado, é necessário que ocorra uma brecha entre o presente e o passado, que apareça um “antes” e um “depois”.

119 CAMINHANDO por Manaus, p. 59.120 PÁSCOA, Márcio. A vida musical em Manaus na época da borracha. Manaus: Imprensa Oficial do Estado do Amazonas, 1997.121 NORA, Pierre. Op. cit. p, 18, 19.

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 58

Page 59: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

As palavras de Márcio Páscoa revelam o “antes” da praça e as declarações a seguir,

o “depois”, ou o atual.

No final de fevereiro de 2002, foram feitas entrevistas com cinco pessoas na praça

Dom Pedro II. Não foram entrevistas sistematizadas, mas conversas informais, mas muito

reveladoras. Um senhor (Maurício) que estacionava o carro na praça e disse trabalhar na

Assembléia, contou que o lugar é local de prostituição, os meninos que lavam carro e as

mulheres se drogam. Falou que deveria haver um trabalho social na praça para tirar as

mulheres de lá, ou conscientizá-las do perigo que correm. Mas admitiu, não claramente,

que também se utiliza dos serviços dessas mulheres, “são tão fáceis”, disse ele. Quanto à

praça, passa por ela todos os dias e às vezes à noite.

Uma outra entrevistada foi uma prostituta chamada Dulce, que estava na praça em

frente ao Arquivo Público e respondeu com muita educação as perguntas e falou sem receio

sobre sua vida. Quando perguntada sobre o que significava a praça pra ela, foi logo dizendo

que aquilo era apenas um “quebra-galho”, que não fazia ponto diariamente, apenas quando

estava precisando de dinheiro. Que era ‘casada’ e que o marido desconfiava mas não tinha

certeza desse seu trabalho. Contou que está na praça desde o tempo do cruzeiro e que criou

as duas filhas (uma de 14 anos) “nos bregas”. Falou também que existem mulheres que

estão lá porque gostam, não precisam, tem estancias e dinheiro no banco, mas continuam

indo à praça. Disse que não viu ainda reforma na praça como acontece nas outras, apenas

pequenas limpezas são feitas e quanto ao prédio da Prefeitura, apesar da cerca de

compensados, está sendo depredado.

O senhor Assis, que vende tucumã ao lado do prédio da Assembléia, falou que o que

torna o lugar mal visto são as mulheres, e disse isso com um certo desdém. Comentou

também sobre o crescimento das barracas de lanche e vendedores na praça, que estes eram

pessoas que de alguma forma já trabalhavam ali, mas apenas agora conseguiram melhorar.

Lamentou o estado triste do prédio da Prefeitura e disse que poderia transformar-se em

escola, que seria muito útil.

O senhor Damião, vendedor de bombons e vários outros pequenos produtos, tem

sua barraca em frente ao prédio da Assembléia. Falou que a praça é um meio de vida, não

só pra ele, mas pra muita gente ali. Acha que uma reforma deixaria a praça mais bonita e

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Page 60: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

melhoraria as vendas. Disse ainda que as pessoas que trabalham na Assembléia não

compram na barraquinha, na verdade estão começando agora.

Todos são unânimes em afirmar que as pessoas que moram nos arredores da praça

apenas passam por ela; não a freqüentam para jogar, como mencionado no livro

Caminhando por Manaus, mesmo porque esse livro foi publicado em 1996 e para turistas,

embora prevenindo contra visitas noturnas, não coloca a realidade do lugar, que desde a

década de 40 é centro de prostituição. E ainda que a desativação do prédio da Prefeitura

mudou consideravelmente o lugar. Antes era muito mais movimentado, agora, segundo

eles, o público da praça diminuiu muito. Em relação às obras artísticas encontradas na

praça, desconhecem sua história e seu valor estético; sabem apenas que estão sujas e que o

chalet ou “casinha”, como chamam, serve para os desocupados fazerem barulho e os

mendigos dormirem à noite.

É interessante colocar que mesmo não conhecendo a história anterior da praça e de

seus objetos de arte, essas pessoas têm com o lugar uma relação muito estreita e qualquer

mudança que seja feita na praça as atinge diretamente, como o fechamento da Prefeitura, ou

o possível fechamento da praça para reforma. Quanto às prostitutas, já fazem parte da

história e da memória da praça. E quanto à praça é depositária de todos os momentos da

história da cidade, da força do poder público provincial e republicano, da magnitude e

decadência da borracha, da Zona Franca e da Manaus atual, que vive a polêmica entre o

antigo e o novo, entre o que deve ser restaurado e o que continuará esquecido por mais

tempo.

A praça Pedro II ao longo de sua história foi recebendo denominações e

significações de acordo com os prédios e suas respectivas funções. Nos primeiros registros

é mencionada como Largo do Pelourinho, porque é nela que se localiza este instrumento de

tortura, e o lugar tem outro significado para a população. Imagino as pessoas se

encaminhando em direção à praça (apenas um lugar aberto), para assistir às punições

“leves”, dos importunadores da ordem. E lembro-me de leituras feitas sobre o Coliseu,

quando este tinha como função ser palco de lutas entre animais e gladiadores ou pessoas

comuns; e o público delirava da arquibancada.

Os jogos gladiatórios foram introduzidos em Roma pela primeira vez em 264 a. C., pelo cônsul Décimo Júnio Bruto, por ocasião do enterro de seu pai; mas

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 60

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os romanos deram-lhes um encaminhamento mais utilitário, empregando as competições mortais como meios populares de castigo público de criminosos – a princípio, presumivelmente, tanto um exemplo admonitório quanto uma diversão.122

Assim como o Coliseu tem hoje outro significado, é um marco na história da

arquitetura, monumento histórico, patrimônio da humanidade; também a praça foi revestida

de outras significações, foram construídas outras memórias. Quando o pelourinho foi

retirado, a praça passou a se chamar Largo do Quartel. E de lá, como contou Agnello

Bitencourt, saíram os soldados para a guerra de Canudos. A praça era então palco da saída

de heróis, heróis nacionais.

No período do Império, a praça recebeu o nome de Pedro II, e assim é mencionada

na administração de Eduardo Ribeiro, quando da colocação do chalet. Neste período, o

lugar é um jardim, muito arborizado, com bancos e obras de arte, cercado por toda a

movimentação de bares, teatros e cassinos. A partir de 1892 a praça passa a se chamar

praça da República. o chalet é palco para apresentações de música da banda militar.

Não foram encontrados registros mais precisos que determinassem o período em

que a praça tenha voltado a ser chamada de praça Pedro II; mas pelo que se tem, foi uma

mudança relativamente recente, posto que até 1969 ainda se chamava Praça da República.

No entanto, hoje, a população continua a atribuir o nome de acordo com a função de alguns

prédios e grupos que se instalaram no lugar. A praça não é conhecida pela população como

praça Pedro II; é mais conhecida como “praça da Prefeitura”, como o prédio da Prefeitura

foi desativado as pessoas se referem a ela como “praça da antiga Prefeitura”; ou “praça

próxima à Assembléia”; ou ainda como “praça das prostitutas”.

Este nome praça Pedro II, não tem significado para as pessoas que passam hoje

pelo lugar. Da mesma forma que chamam a praça Heliodoro Balbi, de praça da Polícia,

devido ao Quartel da Polícia; a praça Torquato Tapajós, de praça dos Remédios, por causa

da Igreja dos Remédios; a praça 5 de Setembro, chamam ainda de praça da Saudade.

Oficialmente outros nomes são dados pelo poder público, mas esses nomes nem sempre são

aceitos pela população que se apropria do lugar e a ele dá nomes de acordo com o

significado que tem para elas. A identidade do lugar é dada pelos grupos e pela população

em geral que usa a praça, independente da denominação dada pelo poder público. Isto

122 MUNFORD, Lews. A cidade na história: suas origens, transformações e perspectivas. São Paulo: Martins Fontes, 1998. p. 256.

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mostra a força das “memórias não-oficiais” tão presentes nos logradouros públicos de nossa

cidade.

Vê-se o que Michael Pollak chamou de disputas de memória: a memória oficial e a

memória coletiva. Buscou-se utilizar-se de ambas para traçar um roteiro histórico mais

completo do lugar. E os lugares de memória sintetizam a história e a memória. Os lugares e

os tempos revelam memórias distintas.

Estou certa que ainda há muitas memórias soltas e que darão a este trabalho um

outro significado, mas por enquanto sirvo-me das palavras de Jacques Le Goff: "A

memória, onde cresce a história, que por sua vez a alimenta, procura salvar o passado para

servir o presente e o futuro"123.

E os lugares de memória, sejam eles monumentos arquitetônicos, obras de arte, ou

documentos perpassam esses tempos da história. Estão sempre se transformando, se

adaptando, mas persistindo e existindo, como diz Pierre Nora: “os lugares de memória só

vivem de sua aptidão para a metamorfose”.

Praça da Polícia

A Praça Heliodoro Balbi, mais conhecida como Praça da Polícia, está localizada

numa área de grande confluência comercial: na Av. Sete de Setembro com a José

Paranaguá, estando ligada ainda às ruas Dr. Moreira e Marcílio Dias, local onde se

encontram muitas lojas de importações. Foi a praça que mais nomes recebeu durante sua

história: Praça 28 de Setembro, Largo do Palacete, Praça da Constituição, Praça Gonçalves

Ledo, Praça João Pessoa, Largo do Liceu e Praça Roosevelt124.

As primeiras notícias de arborização que se tem datam de 1873/1874125, mas a

disposição atual foi feita durante a administração de Adolpho Lisboa, em 1906126. As

esculturas foram trazidas da França e o jardim parece ter uma temática predominante, uma

123 Op. cit. p. 477.124 MESQUITA, Otoni Moreira de. Manaus: História e Arquitetura – 1852-1920. Manaus: Valer, 1999. P. 282. 125 FALLA dirigida à Assembléia Provincial do Amazonas na Primeira Sessão da 12a Legislatura, em 25 de Março de 1874, pelo Presidente da Província Bacharel Domingos Monteiro Peixoto. In Relatórios da Província do Amazonas, vol. V. 1874-1877.126 Relatório do Superintendente Franco de Sá. Op. cit. Nº de tombo da praça 23. 12. FREIRE, Cristina. Além dos Mapas: os monumentos no imaginário urbano contemporâneo. São Paulo: SESC: Annablume, 1997, p. 178/179.

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alusão à caça, tendo como figura central, a Diana Caçadora. Pertencem a este jardim: um

coreto de ferro, uma pérgula, uma pequena fonte, uma cabeça em homenagem a José

Ferreira de Castro, uma herma de D. Pedro II, a Diana Caçadora, um cachorro e um javali

em posição de luta, uma ninfa, o Hermes, uma máscara de Bento Bruno de Menezes, um

soldado francês e um zuavo. É o logradouro público que concentra o maior número de

objetos decorativos e a disposição destas obras obedece ao padrão antigo: estão distribuídas

ao longo da praça, entre canteiros, árvores, pontes e lagos. Entre tantas obras importadas, a

seringueira está presente como símbolo do que ajudou a construir o lugar. O público nesta

praça é muito freqüente, pois o lugar oferece atrativos como: alguns bancos em cimento

sob as grandes árvores – que também marcam aspectos da história da nossa cidade, como a

árvore sob a qual se reuniam os membros do Clube da Madrugada; o coreto e a pérgula

ajudam a proteger contra o sol e a chuva e servem como ponto de encontro, como as pontes

de cimento que imitam troncos de árvores. Seu espaço é utilizado com freqüência também

para exposições e eventos culturais.

Este jardim, aconchegante principalmente nos fins de tarde e em dias em que a

correria do comércio e o barulho dos carros não interferem muito, é palco de um tema

mitológico contado por suas esculturas francesas.

Construindo memórias no Jardim do Édem

O significado da praça para quem a usa hoje é totalmente diferente de outros

tempos. O olhar dos mais velhos é diferente do olhar dos mais moços. Mas esses mais

moços estão construindo ainda as suas memórias do lugar. Busquei captar essas memórias

através de depoimentos de jovens estudantes, professores127 e usuários da praça. E em

alguns relatos, românticos e nostálgicos, nem parece que se trata de jovens que estão

construindo suas mais significativas lembranças. Tanto que o resultado foi uma colcha de

(re)significações de uma riqueza tão grande. A Praça é mais do que eu percebia.

O coreto e a ponte são os lugares preferidos dos namorados que marcam encontros,

tiram fotos e lá se sentam para conversar. A partir deles têm-se uma visão privilegiada da

praça. Nos bancos, as pessoas jogam dominó (tem inclusive uma dama desenhada em um

127 Os estudantes e professores consultados são da Escola Estadual Francisco das Chagas Albuquerque, do turno noturno no qual trabalho, localizada na Av. Joaquim Nabuco, em frente ao Cine Chaplin; portanto, próxima à praça. Os depoimentos foram colhidos de forma escrita, no período de 20 a 24 de agosto.

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 63

Page 64: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

dos bancos) e até deitam para descansar. As pessoas ainda levam seus filhos para passear e

também gostam de comprar as bijuterias dos hippies. O espaço é usado por grupos de

estudantes de escolas e cursos próximos para pequenas comemorações. Também é o espaço

usado há alguns anos para a apuração das Escolas de Samba, após o desfile. De lá saem em

carreata os vitoriosos pela Av. Eduardo Ribeiro.

Alguns eventos como feiras e exposições foram mencionados, como a “Feira do

Mel”, onde as pessoas observavam como era feito e os benefícios trazidos à saúde. Mas o

acontecimento atual é o pagode que acontece às sextas-feiras; apesar do som não ser de

qualidade, os jovens afirmam que é um ótimo lugar para beber, namorar, paquerar,

conversar, etc.

Por volta de 1986, conta uma professora em um dos depoimentos, que levava sua

turma de crianças para brincarem e fazer piqueniques uma vez por mês; porque a praça era

um lugar com muitas árvores. Depois disso os “cheira-cola” passaram a representar perigo

para as crianças e a atividade foi suspensa. Também a professora parou de trabalhar com

crianças.

As lembranças mais atuais contam de encontros e desencontros, surpresas

agradáveis ou não na praça. Como esta saudade de um jovem de aproximadamente 20 anos:

Dos 13 aos 16 anos, ao tocar em fanfarra, ensaiávamos na Praça da Polícia, em frente ao Comando Geral, das 17:00 às 19:00 horas. Recordo-me que era muito bom o clima e ao mesmo tempo agradávamos o público que passava e parava para observar nossos ensaios. Me sentia muito satisfeito por tocar ali.

Na maioria dos relatos, principalmente das meninas, a praça ainda é o lugar dos

namorados:

Antes de me casar eu sempre arranjava uns namorados por lá. Era legal ficar passeando... Não sei se ainda tem uma pequena “ponte” que passava em cima de um laguinho. Ali eu conheci vários garotos e uma amiga.

Eu fui muitas vezes com a minha namorada passear. Às vezes nós até gasetávamos aula para ir pra praça namorar, ficar junto. Sentávamos nos bancos e começávamos a conversar sobre tudo o que acontecia sobre nós. Naquela praça eu passei momentos muito bons. Fui pro carnaval durante dois anos seguidos com a minha namorada e foram momentos inesquecíveis, dancei, pulei, namorei, etc.

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 64

Page 65: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

Quando conheci meu primeiro namorado a gente gostava muito de passear e nesses passeios incluíamos a Praça da polícia, onde a gente tirava muitas fotos, sentávamos nos bancos para comer pipoca, ver os passarinhos voando de uma árvore para outra atrás de alimento. Admiramos também os peixes que há embaixo da ponte, em alguns dias tem orquestra. É uma pena que a gente não pode ir todos os dias, mas vamos sempre que temos tempo. É muito legal passar o fim de tarde na Praça da Polícia, sem nada pra fazer, só ficar pensando na vida, se distrair com o vai e vem de pessoas.

Esses namorados às vezes são surpreendidos pelos pombos e guardam também essa

lembrança não muito agradável.

O fim de tarde na praça é lembrado como um dos momentos mais agradáveis:

Acho muito interessante também às seis horas, quando os pássaros estão procurando lugar para dormir; o céu fica cheio de passarinhos pra lá e pra cá. Adoro ficar olhando aquele cenário lindo. Às vezes levo minha sobrinha para brincar de patinete. Ah!, não perco todos os anos a Banda do Pina, me divirto muito embaixo do trio com minhas amigas na época do carnaval. Ah, já ia esquecendo daquele tacacá gostoso que adoro tomar com meu namorado.

Algumas cenas causam admiração a quem passa, como a mulher que tem quase todo

o corpo atrofiado e que desenha e pinta com a boca. Outras chocam o visitante, como os

mendigos que tomam banho no lago. Há quem afirme que a área é também local de

prostituição e consumo de drogas e outros reclamam principalmente da sujeira e dos

bêbados.

Há ainda quem tenha um olhar atento sobre o lugar:

Também gosto de observar os peixes que existem lá, acho divertido ficar olhando como se movem. São tranqüilos e não se assustam com a presença das pessoas, pois não procuram se esconder, estão sempre visíveis.

A Praça da Polícia, como afirmaram alguns, tem de tudo um pouco: serve para

namorar, conversar, relaxar, jogar; durante o dia há o comércio dos hippies e de vários

carros lanche e no final da tarde surgem as barracas de tacacá. O movimento maior

acontece na sexta-feira com o pagode e outros ritmos, que está atraindo um grande número

de pessoas, principalmente estudantes. É ponto de várias tribos: patricinhas e mauricinhos,

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 65

Page 66: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

pichadores, roqueiros, estudantes, meninos de rua, cheira-cola, mendigos, bêbados,

lavadores de carro, garotas de programa.

É um jardim onde a presença da natureza alivia o stress e ajuda a purificar o corpo e

a alma. Onde a fonte (ainda que inoperante) e os seus lagos cheios de peixes, parecem atrair

para um novo recomeçar. Onde o vento balançando as árvores no final de tarde, sussurre no

ouvido que ali pode-se respirar a paz. Onde os romances começados indiquem uma a

possibilidade de uma vida feliz. Mas nesse Édem, por entre as árvores esconde-se a

serpente tentadora, e a maçã está prestes a ser mordida. É um lugar que também atrai pelas

possibilidades do pecado, do escuro entre as árvores, da bebida livre, das mulheres fáceis. É

o Éden nos seus limites do bem e do mal.

Sensibilidade, percepção e memória

São inúmeras as possibilidades de uso do espaço da Praça da Polícia. É um lugar

para o uso da sensibilidade, onde as pessoas às vezes se permitem serem sensíveis à

natureza e à outras pessoas. É um lugar de memória: onde as esculturas falam de um tempo

de riqueza. No coreto toca-se talvez a mesma música, para um público cada vez mais

diversificado. É um lugar de comércio como todo o centro. É como parte da cidade

moderna, é um lugar de consumo, onde as pessoas vão pelos prazeres da bebida, do cigarro,

da festa e do lazer... Mas é também consumo do lugar, onde as pessoas se apropriam do

espaço e constroem memórias.

Lembro-me que descobri esta praça na década de oitenta, quando ia com uma amiga

depois do cinema, para conversar. Lembro-me que ia sozinha no fim de tarde para escrever

poemas. Sentava-me em uma das pedras em frente ao lago artificial, que na época estava

limpo e não tinha o gradil de proteção. Sentava-me e ouvia o barulho da água, o vento nas

árvores, as árvores tão lindas... Eu queria escrever, não sabia sobre o que gostaria de

escrever, mas sabia que assim que descobrisse, a praça seria o lugar ideal. Queria pintar as

árvores, o lago, a ponte. Algum tempo depois uma pintura do Monet (O tanque de

Nenúfares), me lembrou essa ponte. A pintura reflete em cores, a sensação daquele

momento. Naquela época, não me recordo das esculturas, só a natureza, ainda que

construída artificialmente, me chamava a atenção.

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 66

Page 67: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

Nos anos noventa, trabalhava no centro e sempre passava pela praça, que já não era

a mesma. Parecia estar sempre cheia e era barulhenta, suja. Eu passava apressada e não

olhava mais. Descobri todas as obras da praça em 1997 com a pesquisa Inventário e

Catalogação de Obras Públicas em Logradouros Públicos do Centro Histórico de Manaus.

No entanto, esses depoimentos colhidos, me fizeram perceber a dimensão maior da praça,

do coletivo de significações que ela possui, da incrível colcha de pessoas e momentos que

estão costuradas a ela. São olhares diferentes e ao mesmo tempo tão iguais. É o imaginário

individual que passou ao coletivo. São (re) significações que fazem o lugar resistir. Que faz

com que essas memórias de consumo do lugar sejam construídas dentro do lugar de

consumo. Sensibilidade, percepção e memória construídas e vivenciadas em uma praça de

uma cidade moderna.

Praça da Matriz

A Praça da Matriz (antigo Largo da Matriz), com jardins distribuídos na frente, à

esquerda e à direita da Catedral, apesar de ter perdido também parte de sua área (para o

terminal de coletivos, por exemplo), constitui-se ainda num dos lugares mais arborizados

do centro. Sofreu inúmeras intervenções, teve suas obras removidas de lugar, depredadas e

descaracterizadas. Hoje, está tomada pelo comércio informal e por menores infratores, o

que torna o trânsito de pedestres tumultuado e o lugar perigoso para a população. No final

de 2002 sofreu novas intervenções, toda a praça recebeu gradeamento.

Praça da Saudade

Entre as grandes praças está a Praça 5 de Setembro, ainda hoje conhecida como

Praça da Saudade, devido sua localização, à época da abertura, próxima ao Cemitério São

José onde hoje se encontra o Atlético Rio Negro Clube. Sua abertura aconteceu na década

de 1860128 , a partir desta data o espaço passou por modificações que tornaram o traçado

irregular e criaram ambientes disformes e descontextualizados dentro da praça, como o

prédio da Suhab e o parque de diversões permanente. As mudanças mais recentes

aconteceram em janeiro de 2000, quando o lago artificial, onde se encontram as duas

esculturas (Homem Pré-Histórico e Homem Moderno), passou por uma reforma que o

128 MESQUITA, O. M. op. cit. p. 288.

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 67

Page 68: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

restaurou e ainda o dotou de peixes regionais, tudo isso cercado por um gradil de proteção.

Diante disso, pode ser notado que há a presença de duas praças dentro de uma: a parte

baixa, onde fica o Monumento a Tenreiro Aranha (um dos maiores da cidade), o parque e o

palco; e a parte alta, onde ficam as árvores, alguns bancos e o lago artificial. Contudo,

muitos grupos reúnem-se nela: os surdo-mudo tem ali seu ponto de encontro, além de

membros de igrejas protestantes, que são os que mais usam o espaço para seus encontros e

shows. Algumas festas ainda são realizadas no espaço da praça, mas não com tanta

freqüência, o perigo decorrente da permanência de menores infratores, assusta a população.

O lago artificial, recentemente restaurado, com o Homem Pré-Histórico e o Homem

Moderno, tornou-se a atração da praça, chamando a atenção, principalmente das crianças

que procuram pelos “peixinhos”. A parte alta da praça é ajardinada e possui bancos. A parte

baixa possui o monumento, o parque de diversões, o palco e o prédio, uma combinação

pouco agradável.

Praça São Sebastião

Este é o logradouro público mais visitado pelos turistas que vem à Manaus, porque

nele está situado o Teatro Amazonas, que é o cartão postal da cidade. Esta praça foi aberta

em 1867129. Neste mesmo ano, no dia 7 de setembro, foi levantada a Coluna comemorativa

à Abertura dos Portos, fato ocorrido no ano anterior130. Durante a construção do Teatro, a

praça serviu como depósito de alguns materiais. Em 1922, foram colocados 18 bancos

juntamente com os reparos feitos no calçamento131, colocado entre 1902/1906. Em 1900, foi

inaugurado o Monumento à Abertura dos Portos, em substituição à coluna.

A praça tem seu traçado cercado por árvores e bancos. E a Igreja de São Sebastião,

ali localizada, também utiliza seu espaço para realizar seus festejos. Em 1989, o logradouro

e o seu monumento, foram restaurados com o patrocínio da Dismac, empresa do Distrito

Industrial. A disposição de um único monumento ao centro da praça é a forma moderna de

129 Discurso com que o Exmo. Sr. 1º Vice-Presidente da Província, Tenente Coronel Sebastião José Basílio Pyrrho abrio a Assembléia Legislativa Provincial do Amazonas no dia 15 de maio de 1867. In Relatórios da Província do Amazonas, vl. III, 1863-1870.130 MONTEIRO, Mário Ypiranga. História do Monumento da praça São Sebastião. Manaus: Prefeitura Municipal, 1990.

131 Relatório do Superintendente Franco de Sá. Op. cit. Lê-se neste mesmo parágrafo, que foi colocado um foco elétrico no alto do monumento.

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 68

Page 69: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

organização desses lugares. Com o centro ocupado, não sobra mais espaço para outra obra e

a praça torna-se de uma obra só, mas está muito bem ocupada pelo grandioso e rico

monumento.

O calçadão da praça é um dos elementos que a diferencia e destaca das outras do

Centro, possui ondas em negro e branco, semelhantes às encontradas em Copacabana. O

contorno é feito com árvores e bancos, que por serem poucos, são disputados pelos

freqüentadores nos fins de tarde.

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 69

Page 70: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

Capítulo 3 - Monumentos do Centro Histórico de Manaus

Considerações sobre o monumento

Na Enciclopédia Einaudi132 encontra-se uma breve definição de monumento, no que

se refere à origem da palavra, sua função, classificação e suas principais características.

Mas é Françoise Choay133, quem esclarece outros aspectos de significação, valor e função

do monumento:

“O sentido original do termo é do latim monumentum, que por sua vez deriva de monere

(“advertir”, “lembrar”), aquilo que traz à lembrança alguma coisa. A natureza afetiva do

seu propósito é essencial: não se trata de apresentar, de dar uma informação neutra, mas

de tocar, pela emoção, uma memória viva. Nesse sentido primeiro, chamar-se-á

monumento tudo o que for edificado por uma comunidade de indivíduos para

rememorar ou fazer que outras gerações de pessoas rememorem acontecimentos,

sacrifícios, ritos ou crenças. A especificidade do monumento deve-se precisamente ao

seu modo de atuação sobre a memória. Não apenas ele a trabalha e a mobiliza pela

mediação da afetividade, de forma que lembre o passado fazendo-o vibrar como se fosse

presente. Mas esse passado invocado, convocado, de certa forma encantado, não é um

132 “A palavra latina monuentum remete para a raiz indo-europeia men, que exprime uma das funções essenciais do espírito (mens), a memória (memini). O verbo monere significa ‘fazer recordar’, donde ‘avisar’, ‘iluminar’, ‘instruir’. O monumentum é um sinal do passado. Atendendo às suas origens filológicas, o monumento é tudo aquilo que pode evocar o passado, perpetuar a recordação... Mas desde a Antiguidade romana o monumentum tende a especializar-se em dois sentidos: 1) uma obra comemorativa de arquitectura ou de escultura: arco do triunfo, coluna, troféu, pórtico, etc.; 2) um monumento funerário destinado a perpetuar a recordação de uma pessoa no domínio em que a memória é particularmente valorizada: a morte. O monumentum tem como características o ligar-se ai poder de perpetuação, voluntária ou involuntária, das sociedades históricas (é um legado à memória colectiva) e o reenviar a testemunhos que só numa parcela mínima são testemunhos escritos.” ENCICLOPÉDIA Einaudi. 1. Memória – História. Imprensa Nacional – Casa da Moeda. Porto – Portugal, 1997, p. 95.133 CHOAY, Françoise. A alegoria do patrimônio. São Paulo: Estação Liberdade: Editora UNESP, 2001, p. 17/18.

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Page 71: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

passado qualquer: ele é localizado e selecionado para fins vitais, na medida em que

pode, de forma direta, contribuir para manter e preservar a identidade de uma

comunidade étnica ou religiosa, nacional, tribal ou familiar. Para aqueles que edificam,

assim como para os destinatários das lembranças que veiculam, o monumento é uma

defesa contra o traumatismo da existência, um dispositivo de segurança. O monumento

assegura, acalma, tranqüiliza, conjurando o ser do tempo. Ele constitui uma garantia das

origens e dissipa a inquietação gerada pela incerteza dos começos. Desafio à entropia, à

ação dissolvente que o tempo exerce sobre todas as coisas naturais e artificiais, ele tenta

combater a angústia da morte e do aniquilamento.“

Etmologicamente, o monumento está ligado à memória, ao fazer lembrar, ao tornar

presente, de alguma forma, um acontecimento, uma lembrança do passado. Com o

propósito de chamar a atenção pela emoção segundo Choay, pode-se chamar de

monumento as construções que objetivam rememorar um acontecimento. Estes marcos são

vitais para a preservação da identidade de um lugar, de uma comunidade. E atuam como

segurança contra o esquecimento. Hoje, esta função assume largas proporções e constitui

grandes debates. Para a sociedade contemporânea (urbana) lembrar é uma atividade pouco

usual, as informações podem ser armazenadas, o presentismo é o marco atual. Os

monumentos que encontram-se na área urbana, nos locais públicos tornaram-se invisíveis,

estão perdendo a referência espacial diante das constantes modificações que o espaço e ele

próprio vem sofrendo ao longo dos anos. Se não são percebidos, perdem a referência

temporal, perdem sua finalidade, sua essência que é fazer lembrar, rememorar um

acontecimento. O que culmina para o esquecimento, a desvalorização da obra e a perda da

história, comprometendo assim a identidade do lugar.

Os monumentos aqui tratados constituem referência a fatos históricos de relevante

significado não só para a cidade de Manaus, mas para o Estado, para o Brasil e outros

países. Têm, portanto, a função de fazer com que novas gerações rememorem estes

acontecimentos. Embora esta função necessite ser reavivada, as obras encontram-se ainda

erguidas prontas para fazer lembrar a quem dela se aproxime.

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A própria Choay coloca que o monumento aos poucos foi tendo o seu ideal de

memória substituído pelo ideal de beleza e explica dois motivos. O primeiro devido à

valorização do significado estético da arte, da busca pela perfeição e na riqueza empregada

na obra. O segundo, o surgimento da imprensa, que confinou a memória à escrita, aos

livros, à enciclopédia. Dos quatro monumentos analisados dois possuem riqueza estética,

mas também referem-se a fatos de grande relevância para a região (a criação da Província

do Amazonas e a abertura dos portos do Estado a outras nações). Um outro que representa a

elevação da vila de Manaus à categoria de cidade, é uma obra muito simples. Mas todos

apresentam um valor histórico, constituem-se monumentos por permanecerem inseridos na

cidade mutante e sofrendo intervenções. Para uma compreensão dos significados dos

monumentos no centro histórico de Manaus, é necessário estuda-los individualmente.

Foram selecionados quatro monumentos: Monumento à Tenreiro Aranha, Monumento à

Abertura dos Portos, Monumento à Nossa Senhora da Conceição e Obelisco, em

homenagem à elevação da vila à categoria de cidade.

Monumento à Tenreiro Aranha

Esta obra, uma das mais belas e monumentais da cidade, foi feita na Itália por

Enrico Quattrini. A escultura é de bronze, 2,00m de altura, aproximadamente. O pedestal de

6,30m, granito rosa lavrado. A base do pedestal também é de granito. O monumento

apresenta quatro placas de identificação, uma em bronze, onde a tintura verde dificulta a

leitura das inscrições. Esta obra clássica é uma homenagem à Elevação do Amazonas à

Categoria de Província e a seu fundador João Batista de Figueiredo Tenreiro Aranha134. Foi

134 João Baptista de Figueiredo Tenreiro Aranha, nasceu em Belém a 23 de junho de 1798. Filho do poeta Bento de Figueiredo Tenreiro Aranha e D. Rosalina Espinosa Solkman Tenreiro Aranha. Aos 14 anos, já despertava admiração no campo da matemática. Começou a trabalhar cedo. Estava no esquadrão de Cavalaria quando aconteceu a proclamação da nova Constituição, abandonou o cargo e se uniu à esquadra. Foi perseguido por causa de suas idéias em favor ao Brasil, publicadas no “Periódico Paraense” e por participar de movimentos tendentes a reconhecer a independência e aclamação de D. Pedro I, no Pará. Durante sua carreira política, foi eleito deputado provincial de 1840 a 1849, ininterruptamente. Nas legislaturas de 1848 e 1849, serviu na Assembléia Geral, como deputado pelo Pará, que então, compreendia o Amazonas. Nesse período se deu a elevação do Amazonas à Categoria de Província. Em sessão de 7 de novembro de 1849, apresentou a seguinte declaração: “Indico que se dirija uma representação à Assembléia Geral Legislativa, para que a Comarca do Alto Amazonas seja elevada à sua antiga categoria de Província”. Em 1850, sendo criada a Província do Amazonas, é nomeado seu primeiro presidente, conforme decreto imperial de 7 de junho de 1851. “A escolha de Tenreiro Aranha – diz Arthur Reis - para a presidência da nova Província não podia ser mais acertada. Dados os seus conhecimentos das necessidades vitais da região, o ardor de suas atitudes sempre claras e a atividade desinteressada que revelara na obtenção da grande medida pleiteada pelo povo da comarca, ninguém, no momento, com melhores credenciais para o alto cargo. Estava naturalmente

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Page 73: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

colocada primeiramente na antiga praça Tamandaré, hoje Adalberto Vale, montada por

Silvio Centofanti (assistente de Domenico De Angelis135) e Raffaelis Marchesi, em 1907.

Em 1932 foi retirada daí e colocada na Praça 5 de Setembro136. As pessoas acomodam-se na

base do pedestal e a própria escultura já foi usada como suporte para enfeite da praça

durante a copa do mundo de futebol de 1998. É espantoso como se consegue chegar ao

pescoço da escultura, amarrar-lhe os enfeites sem que nenhuma providência contrária seja

tomada.

A peça que encima o monumento é ricamente detalhada, na expressão da figura, em

sua roupa e principalmente no panejamento que cobre o suporte onde a figura se apóia.

Nota-se também a presença dos pombos, responsáveis por parte da sujeira que encobre os

monumentos. As duas crianças, guardiãs do brasão dos Estados Unidos do Brasil,

representam simplicidade, inocência, mas principalmente começo e plenitude de

possibilidades, para uma província recém criada.

Ypiranga Monteiro137 cita em sua obra, os conflitos em torno do monumento. O

primeiro deles diz respeito à data, posto que existem documentos que atestam o lançamento

da pedra fundamental em 5 de setembro de 1883, sendo que o monumento foi inaugurado a

5 de setembro de 1907. Outra dúvida é a que ou a quem o monumento homenageia. No

projeto consta a intenção de homenagear a data da inauguração da Província, pois já havia

um monumento em homenagem à abertura dos portos (outro fato importante para a história

do Estado). Este monumento deveria ter um busto de Tenreiro Aranha, como um

agradecimento aos serviços prestados ao Amazonas. Este projeto foi apresentado em 11 de

maio de 1883 e em 5 de junho do mesmo ano, Bento Aranha (filho do homenageado)

encaminhou modificações que foram: um aumento na verba para a construção e a

substituição do busto por uma estátua.

O projeto ficou parado até o governo de Eduardo Ribeiro, que autorizou e elevou as

verbas para a construção do monumento, que só foi inaugurado em 5 de setembro de 1907,

indicado”. Durante sua curta estada no cargo, deu início a várias obras na nova província. Faleceu em 19 de janeiro de 1861, vítima de incêndio, em Belém. (Fonte: BITTENCOURT, Agnelo. Dicionário Amazonense de Biografias. Vultos do Passado. Rio de Janeiro: Editora Conquista, 1973.)135 Domenico De Angelis veio para executar a decoração do Salão Nobre do Teatro Amazonas, sendo também o mentor do projeto do Monumento à Abertura dos Portos, da Praça São Sebastião.136 MESQUITA, O. M. op. cit. p. 290/292.137 MONTEIRO, M. Ypiranga. História do Monumento à Província. Manaus: EDUA Editora da Universidade do Amazonas, 1999.

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na antiga praça Tamandaré (atual Adalberto Vale). Sendo transferido desta, em 1932, para a

praça 5 de setembro, para a qual foi concebido. Monteiro138 narra um fato curioso: o

monumento teve seu pedestal danificado por um raio no dia 25 de janeiro de 1958, que foi

reparado dias depois.

Em imagens antigas, vê-se o monumento ao centro com todas as ‘trilhas’da praça

convergindo para ele. Com as modificações ocorridas no traçado deste espaço público, o

monumento ficou deslocado do centro e com uma vista que não o valoriza tanto. Um

monumento que registra a memória da criação da Província do Amazonas, o marco da

independência política do Estado, merece mais atenção. Como as placas estão deterioradas,

dificultam a identificação das informações contidas nelas.

No pedestal, face frontal, podemos ler:

TENREIRO ARANHA1798 – 1861FUNDADOR DA PROVÍNCIA DA AMAZONAS

Na face lateral esquerda vemos:

OFERTA DA MUNICIPALIDADE DE MANÁOSPOR INICIATIVA DOSUPERINTENDENTE CORONELADOUPHO GUILme DE MIRANDA LISBOAMCMVII

Na face direita:

ERGUIDO NO GOVERNO DO CORONELDR. ANTONIO CONSTANTINO NERY

Na parte de trás, as inscrições não são mais tão visíveis, mas Ypiranga Monteiro139

as transcreveu:

LEI No 502 DE 5 DE SETEMBRO DE 1850 ELEVA ACOMARCA DO ALTO AMAZONAS NA PROVÍNCIA DO GRÃO PARÁ À CATEGORIA DE PROVÍNCIA COM ADENOMINAÇÃO DE PROVÍNCIA DO AMAZONAS.

138 Idem.139 MONTEIRO, Ypiranga. Op. Cit p. 35/36.

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Dom Pedro, por graça de Deus e Unânime Aclamação dos Povos, Imperador Constitucional e defensor perpétuo do Brasil; Fazemos saber a todos os nossos Súbditos que a Assembléia geral decretou, e Nós Queremos a Lei seguinte:Art. 1o – A Comarca do Alto Amazonas na Província do Grão Pará, fica elevada a categoria de Província, com a denominação de Província do Amazonas. A sua extensão e limites são os mesmos da Antiga Comarca do Rio Negro.Art. 2o – A Nova Província terá por capital a Vila da Barra do Rio Negro, enquanto a Assembléia respectiva não decretar a sua mudança.

O monumento a Tenreiro Aranha é um marco do Brasil império presente

principalmente nas informações acima citadas. Como uma obra encomendada pelo Estado,

objetivava imprimir na sociedade lembranças de um Imperador “defensor perpétuo do

Brasil”, que concede a independência do Amazonas, da Província do Grão Pará, tornando-o

também província. Hoje sabemos que isto não correspondeu à realidade, mas não é por isso

que vamos desconsiderar o monumento. Ele é importante justamente por ser um registro

desse momento histórico, dos ideais, dos pensamentos daquela época, das intenções oficiais

do Estado. É importante para que se pesquise sobre a história extra-oficial e o monumento

está presente para ser confrontado, para ser usado como prova, como testemunha histórica,

por isso não pode ser alterado. Todos os conflitos em torno de sua construção ainda não

estão de todo resolvidos e a história da elevação do Amazonas à categoria de Província gera

ainda grandes discussões. Sabe-se que Tenreiro Aranha foi denominado 1o presidente da

recém criada província em 1850, mas só chegou a assumir em 1852 e por pouco tempo.

Sabe-se que atuou na criação da lei, embora o desenrolar do processo tenha contato com

outros heróis anônimos. Merecia ele encimar o monumento? Mas ele está erguido

esperando que se questione todos os fatos a que ele tem a função de não deixar esquecer.

Monumento à Abertura dos Portos

Este grandioso monumento foi erguido em 1900, por iniciativa do Governo do

Estado. Foi construído na Itália, projetado por Domenico de Angelis (o decorador do Salão

Nobre do Teatro Amazonas) e executado por Enrico Quatrini.

Este monumento apresenta notável valor histórico e artístico. Histórico por marcar

um acontecimento de grande relevância política, econômica e cultural do nosso Estado.

Artístico pela escolha do artista, a composição temática, o rico material utilizado (a peça

em bronze e o pedestal em granito rosa lavrado) e a monumentalidade da obra. Apresenta

Patrimônio e Memória da Cidade – Evany Nascimento / Luiz Balkar Peixoto 75

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características como a multiplicidade do barroco, com a preocupação em ocupar os espaços

com detalhes (âncoras, cabeças, serpentes, brasões) e o tratamento dos panos do grupo em

bronze. Observa-se também características maneiristas, como as múltiplas faces que ganha

este grupo, devido ao envolvimento entre a figura principal e a figura representativa do

deus do comércio. Desta forma, é necessário andar ao redor da obra para apreciá-la na sua

totalidade.

Na restauração de 1989, o monumento ganhou o gradil de proteção. Infelizmente

não há proteção contra os pombos que sujam a peça inteira, principalmente em locais de

difícil acesso.

O Monumento dedicado à Abertura dos Portos, juntamente com o Teatro Amazonas

constitui um dos cartões postais da cidade. É um dos pontos turísticos mais visitados.

Cada nave representa um continente, a que representa o continente americano, traz

na embarcação o padrão de uma nave escandinava. O continente europeu vem caracterizado

por uma nave romana que traz à frente um pássaro. A criança segura o globo terrestre e

acena de forma simpática. A barca que representa a África tem o estilo de nave fenícia, traz

uma cabeça humana e sobre ela a criança com os dentes de marfim, como uma menção à

riqueza do continente. A barca da Ásia é uma nave turca com uma cabeça de leão, a criança

sobre ela carrega uma espécie de vaso. Próximo às barcas podem ser vistas as âncoras

decoradas.

As figuras que encimam o monumento ajudam a compor as múltiplas faces da peça:

a figura central e sua esvoaçante vestimenta, o Deus do comércio e as crianças que brincam

com os potes. Nele a beleza e riqueza do material juntamente com o trabalho artístico

completam o rico e expressivo monumento.

Monumento à Nossa Senhora da Conceição

Este monumento é rodeado por quatro placas de mármore com informações sobre

seu significado. Como pode ser lido na placa da face frontal, trata-se de uma homenagem a

Francisco Orellana, que navegou por todo o Rio Amazonas em 1542. Na parte posterior a

homenagem é ao 1o Congresso Eucarístico realizado em Manaus, que comemorou os 50

anos de criação do bispado.

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No pedestal face frontal:

EM PREITO DE GRATIDÃOA DOM FRANCISCO DE ORELLANA E AOS SEUS COMPANHEIROSNO QUARTO CENTENÁRIO DO DESCOBRIMENTO DO RIO NEGROAS ADMINISTRAÇÕES DO ESTADO DO AMAZONAS E DA PREFEITURA DE MANAUS MANDARAM CONSTRUIR ÊSTE MONUMENTO.3.6.1542 3.6.1942

Na placa da face posterior:

PARA LEMBRAR AOS POSTEIROS O 1o CONGRESSO EUCARÍSTICODIOCESANO DE MANAUSOMEMORATIVO DO CINCOENCETENÁRIO DA CRIAÇÃO DO BISPADOA PREFEITURA MUNICIPAL ERGUEU, SOB AS BÊNÇÃOS DO POVO,ESTE MARCO À NOSSA SENHORA DA CONCEIÇÃO, PADROEIRA DO AMAZONAS.5 – 5 – 1892 4 – 6 – 1942

Na placa da face lateral direita lê-se:

MANAUS AGRADECIDAAO SEU 1o BISPO DOM JOSÉ LOURENÇO DE AGUIARO ORGANIZADOR DA DIOCESE.

Na lateral esquerda:

MANAUS DE JOELHOS DIANTE DE LEÃO XIIIPAPA DOS OPERÁRIOS E CRIADOR DA DIOCESE.

Como atestam as placas, o monumento foi inaugurado em junho de 1942, por

iniciativa do Estado e da Prefeitura de Manaus, em decorrência do 1o Congresso Eucarístico

Diocesano de Manaus que comemorou os 50 anos de criação do bispado na cidade. Como

parte das comemorações houve uma procissão fluvial de Belém a Manaus, subindo o rio

Amazonas. O nome da praça foi modificado de Praça Antônio Bittencourt para Praça do

Congresso140. A escultura que encima o monumento, originalmente uma peça em mármore

branco, foi modificada recebendo uma pintura na intervenção feita na praça em 2001.

Apresenta similares do estilo barroco como a vestimenta e as formas de anjos aos seus pés.

Está sobre uma base de cimento que não faz uma composição harmoniosa com a peça,

posto que é desproporcional a ela e o material e as cores utilizadas o torna um componente

140 Manaus ontem e hoje. Manaus: Prefeitura Municipal, 1996.

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alheio à própria peça, como se fossem duas obras distintas. A desproporção do pedestal em

relação à peça artística, talvez na intenção de valorizar o monumento obteve, na verdade,

um resultado oposto. A obra fica alta demais, o que impede a observação de seus detalhes e

acaba por comprometê-la. Um outro fator é a sua colocação junto a um cenário muito

grandioso para a peça, que tem ao fundo o prédio do Instituto de Educação do Amazonas,

também com o intuito de dar-lhe um lugar de destaque acabou-se por minimizar a obra.

É chamado de monumento porque prevê a memorização da realização do 1o

Congresso Eucarístico, sendo que na ocasião o bispado comemorava 50 anos de criação e

este ano (2003) completa 101 anos; e também por registrar a viagem feita por todo o Rio

Amazonas em 1542, pelos espanhóis. É uma obra negligenciada pela Igreja posto que não

se realizam eventos religiosos em suas proximidades, muito menos é levado em

consideração sua homenagem a Francisco Orellana. No entanto, é conhecida pelos

estudantes e freqüentadores da praça que empregam ao monumento outra função, a de

suporte para cartazes e avisos. O monumento necessita freqüentemente de limpeza, para a

retirada destes cartazes e das marcas da pichação. Quem freqüenta a praça não lê as placas

de mármore que explicam o significado da obra.

Obelisco

O obelisco, de aproximadamente 4m de altura, fica em frente à entrada do Porto

de Manaus, no limite da Av. Eduardo Ribeiro. É um monumento em comemoração ao 1º

Centenário da Elevação da Vila da Barra do Rio Negro à Categoria de Cidade (1848-

1948), conforme informações na própria peça. Tais informações também esclarecem que

sob projeto de Branco e Silva141, o monumento foi construído por Tupinambá Nogueira e 141 Branco e Silva nasceu em Manaus em 1896 e foi registrado como Leovegildo Ferreira da Silva. Estudou no Liceu de Artes de Lisboa, Portugal. Dentre suas inúmeras obras destacam-se: Presépio Maravilha, premiada em vários congressos eucarísticos e detentora de duas Menções Honrosas e um Diploma do Vaticano, como 1o lugar em Arte Sacra, na II Feira Nacional da Indústria, São Paulo – 1949; Santa Ceia, outra obra de arte sacra, com esculturas em tamanho natural, numa fiel reprodução da versão de Delin Frères, de Paris, autorizada pelo Vaticano e colocada em exposição no Rio de Janeiro, São Paulo, Belo horizonte e Recife; Lendas e Fatos Amazônicos, esculturas em tamanho natural, evidenciando o Belo e Horrível das principais lendas e fatos amazônicos, tendo sido colocada em exposição no Rio de Janeiro, São Paulo e Manaus, com relevante sucesso. Como pintor de retratos, alcançou fama nacional com o quadro de corpo inteiro do então Presidente Getúlio Vargas, que se encontra no Museu da República. Como artista plástico, fiel e autêntico acadêmico, jamais se distanciou do que denominava realismo, não aceitando imposições da moda, mas respeitando as tendências e valores dos “transformistas”. A maioria de suas telas expressa a natureza

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Page 79: Patrimônio e Memória da Cidade: Monumentos do Centro Histórico de Manaus

as placas de mármore colocadas pela “A Reformadora Marmoraria”. Formalmente

apresenta três faces lisas e na face frontal, parte superior, as datas referentes ao

centenário. O pedestal de cimento pintado de vermelho possui arabescos na parte inferior

e superior. Nas quatro faces do pedestal encontram-se placas de mármore, onde estão

discriminados os nomes que compunham, na época, o Governo do Estado, o Tribunal de

Justiça, a Assembléia Legislativa, bem como a Representação Federal.

Na face frontal do pedestal, parte superior lê-se as datas de 1848 e 1948 e na parte

inferior:

1o CENTENÁRIODA ELEVAÇÃODA VILA DA BRARRADO RIO NEGROÀ CATEGORIADE CIDADE

Na placa de mármore, face frontal:

GOVERNO DO ESTADOGovernador – Leopoldo NevesSecretário Geral – Péricles MoraesChefe De Polícia – José A. T. BorboremaPolícia Militar – Cel. Antonio BitencourtFazenda Pública – Almachio Braule PintoImprensa Oficial – Mithridades CorreaEducação E Cultura – Fueth Paulo MourãoSaúde – Alberto CarreiraFomento – Ademar ThuryEstatística – Manoel Alexandre Fo Serviços Técnicos – Jatir PauiEconomia Agrícola – Paulo AlmeidaÁguas – Antonio OliveiraRodovias – Vilar Câmara

Na face lateral direita:

TRIBUNAL DE JUSTIÇAPresidente DesembargadorMarcílio D. de VasconcelosDesembargadores

Artur VirgílioStanislau AfonsoJorge CarvalhalRaimundo Pessoa

amazônica, segundo a sua própria ótica, ou seja, “Sublime e Cruel”. Branco e Silva foi o restaurador das obras de Capranesi e Domenico D’Angelis. (Fonte: Centro de Artes – Chaminé – Catálogo. Manaus, Imprensa Oficial do Estado, 1993).Na praça da Matriz, o busto de Floriano Peixoto também leva sua assinatura e data de 1966.

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Sadoc PereiraAndré AraújoJoão CorrêaJoão MachadoFelismino SoaresProcurador GeralLeôncio de Salignac

REPRESENTAÇÃO FEDERALSenadoresÁlvaro Maia

Severino NunesWaldemar PedrosaDeputadosAlexandre Carvalho LealAntonio MaiaAntovila VieiraCosme FerreiraFrancisco Pereira da SilvaLeopoldo PeresManoel AnunciaçãoVivaldo Lima

Na face lateral esquerda:

ASSEMBLÉIA LEGISLATIVAPresidente – Menandro TapajósDeputadosAbdul de Sá PeixotoAlexandre MontorilAreal SantoArtur Virgílio Fo Áureo MeloDanilo CorrêaHomero de Miranda LeãoJaime AraújoJoão Fábio de AraújoJosué Cláudio de SouzaMendonça Jr.Nobre da SilvaPaulo JobimRaymundo N. da SilvaAnderson de MenesesAlmeron CaminhaAristophano AnthonyAugusto MontenegroCarlos MeloGama e SilvaJackson CabralJoão VeigaJosé NegreirosJúlio de Carvalho Fo Ney RayolPaulo Pinto NeryPlínio Ramos CoelhoThomaz Meirelles

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Valdemar Machado e Silva

No pedestal, face posterior:

PREFEITURA MUNICIPALPrefeitoRaimundo Chaves RibeiroSecretárioOscar RayolCâmara MunicipalPresidenteAdriano JorgeVereadoresPaulo GonçalvesOséas MartinsRaimundo Coqueiro MendesRodolfo ValeSérgio Pessoa NetoWalter Rayol

E em um canto do monumento a placa:

Projeto do ObeliscoBranco SilvaConstruçãoTupinambá Nogueira

O obelisco é um pilar de pedra alto e agulhado com estrutura quadrangular e ápice

piramidal. Por estar apontando para o alto, no Egito era símbolo de culto ao deus-sol;

significa também a ligação entre a terra e o céu. Seu caráter de apontar para o alto, elevar,

talvez justifique a escolha da peça para simbolizar este acontecimento de grande

importância para o Estado, embora na execução não se tenha levado em conta a estética.

De acordo com o Jornal do Comércio, na data de sua inauguração, toda a

sociedade esteve presente:

“E não resta dúvida que o ponto mais alto das comemorações foi o ato inaugural do belo obelisco erguido à entrada da cidade, assinalando a primeira centúria de Manáus. Ali, a população confraternizou, rendendo tributo de homenagem a seus dirigentes, que tão fielmente interpretaram seus sentimentos, demorando-se todos na admiração do monumento magnífico, que guardará para as gerações vindouras a lembrança dêste instante glorioso da nossa história”.142

142 Jornal do Comércio. Número avulso. 26 de outubro de 1948.

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Na face frontal do obelisco, parte superior vê-se as datas, emolduradas por ramos

de louro e abaixo, os dizeres referente a elas. As placas de mármore encontram-se sujas,

pichadas e com algumas bordas rachadas.

Valor estético e valor histórico

Segundo Argan, podemos tratar a obra de arte de duas maneiras diferentes:

“Uma vez que as obras de arte são coisas às quais está relacionado um valor, há duas maneiras de trata-las. Pode-se ter preocupação pelas coisas: procura-las, identifica-las, classifica-las, conserva-las, restaura-las, exibi-las, compra-las, vende-las; ou, então, pode-se ter em mente o valor: pesquisar em que ele consiste, como se gera e se transmite, se conhece e se usufruiu.”

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(Capítulo 4) Considerações finais

Manaus: Memória e Patrimônio na sociedade contemporânea

Argan explica que nas grandes cidades o homem já perdeu o seu poder de pensar, conceber e, compreender sua realidade. A própria metrópole o sufoca, fazendo-o dominar ou suportar o domínio. A corrida angustiante por um emprego ou por melhores salários e reconhecimento profissional, torna a realidade do homem objeto de um sucesso ou de um fracasso143 . Tudo precisa acontecer num espaço mínimo de tempo. Não se faz mais projetos a longo prazo, os resultados precisam ser imediatos.

A humanidade já viveu um momento histórico com essa mesma angústia. No

período barroco, as pessoas sofreram com a conscientização da brevidade da vida, do

caráter passageiro das coisas, do tempo implacável e contínuo, diante disso tudo estava o

homem, sendo consumido pelo tempo ou pela angústia daquilo que não volta. Hoje,

percebemos, com tantas pesquisas, a luta do homem para deter, controlar o tempo; seja

com medicamentos para prolongar a vida de quem foi acometido por doenças, outrora

incuráveis, ou mesmo pela oportunidade de produzir a vida além dos processos naturais;

seja pela louca corrida atrás da eterna juventude, não mais apenas com cosméticos ou

academias, mas com o uso de cirurgias que dão um resultado mais rápido; pela corrida

por negócios (ou um casamento) que enriqueçam mais rapidamente, sem muitos esforços.

Tudo se quer de uma forma muito imediata porque a comunicação nos mostra novidades

a todo instante e nos incita a consumir.

Esta é a nossa sociedade atual, que precisa possuir riquezas o mais rápido possível

para acompanhar as tendências da moda que mudam, não mais a cada estação, mas a cada

novela, programa ou celebridade que aparece na TV. Com essa mobilidade louca do

tempo presente, falta-nos tempo para entender tanta correria, e as transformações que este

momento está operando nas nossas vidas e na cidade, que está em crise.

Argan144 fala da crise da cidade como crise da arte e do objeto. O objeto como

produto industrializado está cada vez menos ‘simpático’. O fascínio pelas máquinas é

tanto que a produção de aparelhos ‘robotizados’, com luzes e sons que lembram as naves

de extra-terrestres dos filmes de ficção científica, aumenta a cada dia. Novos modelos,

com design ainda mais avançado surgem a todo momento. A corrida por produtos

modernos, um referencial da nossa sociedade de consumo, é o que alimenta esta produção

excessiva. Na verdade é um círculo vicioso em que estamos mergulhados: compra-se

143 ARGAN, G.C. op. cit. p. 7.144 Op. cit.

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muito porque há sempre novos produtos e produz-se mais porque o consumidor exigente

vai em busca de novidade.

Mumford145, assim como Argan coloca que o homem contemporâneo ou pós-

histórico, à medida do que vai acontecendo, pode perder progressivamente o seu

sentimento, emoção, audácia criadora e até mesmo sua própria consciência. E quanto à

cidade, esta será desintegrada, ficando apenas um centro subterrâneo de controle146.

Movidos pelo consumo, precisamos cada vez mais de espaço para as novidades

que são produzidas. Diante disso, todo espaço precisa ser convertido, remodelado,

reestruturado para as novas necessidades. Por causa disso nossas praças vão aos poucos

perdendo sua função, beleza e identidade. Sendo transformadas de acordo com o novo

projeto do mais novo administrador. Atendendo assim a uma exigência que já se sabe que

pouco vai durar, porque as coisas hoje são feitas para a brevidade e para serem

reaproveitadas.

O espaço do Centro Histórico de Manaus, além de ser um bairro, abriga o centro comercial, a área de maior movimento da cidade. Passou por inúmeras mudanças, algumas atendendo ao Centro Histórico, outras atendendo ao centro comercial. Essas mudanças, produziram disformidades, desigualdades de formas entre dois momentos históricos da cidade que parecem competir pela sobrevivência, ganhando claramente a área comercial, que dividida entre a formal e a informal, também compete entre si. Essa competição produz uma poluição cada vez maior.

... a metrópole não é mais cidade, mas um sistema de circuitos de informação e de comunicação; o objeto é substituído pela imagem, pela escrita luminosa. A arte, que produz objetos-que-têm-valor, é substiuída por uma experiência estética, cuja finalidade não pode ser outra que a criação de imagens-choque, de sinais, de notícias – elementos urbanísticos.147 Sobre este comentário, fica mais claro entender a poluição visual do centro. Trata-se dos chamados “elementos urbanísticos”, as placas luminosas, out door e faixas que encobrem as fachadas dos prédios antigos e transformam os objetos artísticos em peças que, sem brilho, passam despercebidas na correria do centro. É uma característica da nossa época, o excesso de som e de imagens. Uma sociedade capitalista e consumista pede e produz apelo visual muito forte. Desta forma, o centro de Manaus, por exemplo, já deixou de ser um conjunto. Está fragmentado visualmente, cada loja apresenta placas com tamanhos, cores, formatos e brilho diferente, com o objetivo de chamar mais a atenção dos consumidores. Assim, nossos olhos bombardeados com tanta informação visual, já não conseguem captar com interesse as imagens de esculturas e monumentos de outras épocas, cujo material como ferro, bronze e mármore, tornam-se opacos diante dos vários ‘neons’ do urbanismo contemporâneo.

Diante de tudo isso nos perguntamos: para que serve o Patrimônio hoje? O que fazer para preservá-lo? Glauco Campelo nos dá uma dica:

Se, por um lado, para atender o significado mais amplo do patrimônio cultural urbano, teríamos, antes de mais nada, de conhecer a cidade, vemos, por outro, que a memória histórica e afetiva, selecionada pela visão de seus habitantes, desempenha um papel fundamental para o resguardo de sua unidade e continuidade.148

Primeiramente é necessário que a sociedade saiba do valor histórico e artístico de seu patrimônio e se sinta presente no processo histórico de sua cidade. As escolas precisam trabalhar mais a História Cultural do Amazonas e da Cidade de Manaus em sala de aula. Esta é uma disciplina quase extinta. Não se pode conscientizar a população de sua história se não atingirmos as escolas. É na sala de aula que o indivíduo começa a conhecer o mundo e a enraizar em seu caráter valores que o acompanharão por toda a vida. Se trabalharmos com crianças e jovens o conhecimento e a valorização do nosso patrimônio estaremos criando condições de preservação e conservação de nossos valores culturais e artísticos.

145 Op. cit.

146 Idem, p. 10.147 ARGAN, G.C. op. cit. p. 08.148 Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional. Op. cit. p. 125.

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Argan vai além, dizendo que

Não é apenas genericamente cultural, mas especificamente científico o problema da restauração dos monumentos e das velhas casas dos centros históricos. Porém, é bom nunca esquecer que as cidades são “bens culturais” em seu conjunto e que, portanto, é inútil sanear bairros antigos se não se cuida, ao mesmo tempo, de lhes restituir uma função que não seja artificiosa. Os critérios de restauração rigorosa e, ao mesmo tempo, de conservação da população que tradicionalmente habitava os centros históricos deram, em certos casos, um bom resultado, que, porém, seria muito difícil conseguir na cidade, onde não se conserva a antiga tradição artesanal e as pessoas tendem a abandonar os velhos centros para irem viver em horríveis periferias que consideram mais cômodas e modernas. Um grande problema cultural da arquitetura moderna, portanto, é a reanimação dos centros históricos, que não se podem condenar a uma existência puramente de museu. É claro, todavia, que tal reanimação só é concebível no âmbito de uma revisão e reforma de todo o complexo urbano: se os centros históricos podem morrer esmagados sob o peso das periferias, não é possível imaginar a recuperação do centro histórico sem o beneficiamento das periferias.149

Diante dessas palavras vemos o nosso Centro Histórico, cercado por palafitas, feiras mal estruturadas, pedintes e menores infratores. Este conjunto constitui o espaço urbano que precisa ser reorganizado para que o Patrimônio Histórico, Artístico e Cultural seja revitalizado.

Um segundo passo seria a divulgação deste patrimônio. Com uma população

satisfeita, sendo atendidas as suas necessidades básicas e participando diretamente da

preservação de seus bens, estaríamos prontos para a atrair turistas para a nossa cidade.

Precisaríamos de placas de identificação em nossas ruas, edifícios e monumentos. Os

prédios estariam prontos para serem visitados, contendo panfletos sobre seu histórico.

Temos muito o que mostrar em Manaus: os belos prédios, registro de uma arquitetura

bem projetada, o famoso Teatro Amazonas; as casas antigas e seus diversos estilos; os

monumentos e esculturas trazidos da Europa, entre outras coisas.

O governo está investindo em turismo e todo esse investimento pode retornar ao Estado, se empregado corretamente. Uma cidade limpa, bonita e com uma população saudável e feliz, certamente atrairia multidões de visitantes e milhões em dinheiro.

Os próprios órgãos que zelam ou, deveriam zelar, pelo patrimônio, o perdem e o destroem. Mas isso não acontece apenas em nossa cidade, é uma realidade brasileira. As cidades citadas neste texto mais Salvador, são as que se conhece que tem política séria em relação ao patrimônio. E ainda se fala tanto em turismo. Mas é necessário muito investimento em nossas cidades para que se possa atrair turistas. Ora, se colocarmos nosso patrimônio em evidência e com uma plaqueta indicando que é nosso, as pessoas virão e o dinheiro para mantê-lo também.

Com isso, não precisaríamos derrubar nossos prédios antigos. A cidade antiga seria atração dentro da nova, que continuaria a existir com seu comércio. Ambas seriam evidenciadas por apresentarem períodos diferentes da nossa história. E assim teríamos a continuação da nossa vida moderna, sem perdermos nossa memória e identidade.

As palavras de Camillo Sitte podem finalizar estas considerações:

A vida moderna e a moderna técnica de construção não mais comportam uma imitação fiel dos complexos urbanos antigos – e não aceitar essa conclusão significa entregar-se a um devaneio infrutífero. As magníficas obras antigas, verdadeiros legados pelos mestres do passado, devem permanecer vivas entre nós de outro modo que não através da imitação insensata; e apenas quando aprendermos sua essência e conseguirmos aplicá-la com sensatez às circunstâncias modernas é que será possível obter ainda uma colheita florida de uma terra que se tornou estéril.150

149 Op. cit. p. 249.150 Op. cit. p. 117.

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