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"4. O materialismo eliminativo e as atitudes proposicionais Paul Churchland O materialismo eliminativo é a tese segundo a qual a nossa concepção de senso comum dos fenómenos psicológicos é uma teoria radicalmente falsa. Uma teoria tão fundamentalmente defeituosa que quer os princípios quer a ontologia dessa teoria serão eventualmente removidos, e não paulatinamente reduzidos, por uma neurociência completa. O nosso entendimento mútuo e mesmo a nossa introspecção poderão então ser reconstituídos no enquadramento conceptual de uma neurociância completa, uma teoria que podemos esperar venha a ser mais poderosa do que a psicologia de senso-comum que substituiu e mais substancialmente integrada na ciência física em geral. O meu propósito neste artigo é explorar estas projecções, tanto quanto elas se reflectem (1) nos principais elementos da psicologia de senso comum: as atitudes proposicionais (crenças, desejos, etc), e (2) na concepção de racionalidade na qual estes elementos figuram. Este foco representa uma mudança de fortuna do materialismo. Há vinte anos atrás, as emoções, os qualia e os raw feels eram vistos como os principais obstáculos para o programa materialista. Com estas barreiras em dissolução, o lugar da oposição deslocou-se. Agora é o reino do intencional, o reino da atitude proposicional, que é mais frequentemente tomado como sendo irredutível e ineliminável, num enquadramento materialista, a favor do que quer que seja. Se isto é assim, e porquê, é o que tem que ser examinado. Um tal exame não fará no entanto muito sentido se não se tiver primeiro apreciado que a rede relevante de conceitos de senso comum constitui de facto uma teoria empírica, com todas as funções, virtudes, e perigos acarretados por esse estatuto. Vou por isso começar com um breve esboço desta forma de ver as coisas e um ensaio sumário do seu rationale. A resistência que tudo isto encontra ainda me surpreende. Afinal, o senso comum deixou cair muitas teorias. Lembremos a ideia de que o espaço tem uma direcção preferencial para as coisas caírem; que o peso é uma característica intrínseca de um corpo; que um objecto móvel livre de forças prontamente retornará a estar em repouso; que a esfera dos céus roda diariamente,

Paul churchland atitudes proposicionais

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! "4.!

O materialismo eliminativo e as atitudes proposicionais

Paul Churchland

O materialismo eliminativo é a tese segundo a qual a nossa concepção de senso

comum dos fenómenos psicológicos é uma teoria radicalmente falsa. Uma teoria tão

fundamentalmente defeituosa que quer os princípios quer a ontologia dessa teoria

serão eventualmente removidos, e não paulatinamente reduzidos, por uma

neurociência completa. O nosso entendimento mútuo e mesmo a nossa

introspecção poderão então ser reconstituídos no enquadramento conceptual de

uma neurociância completa, uma teoria que podemos esperar venha a ser mais

poderosa do que a psicologia de senso-comum que substituiu e mais

substancialmente integrada na ciência física em geral. O meu propósito neste artigo

é explorar estas projecções, tanto quanto elas se reflectem (1) nos principais

elementos da psicologia de senso comum: as atitudes proposicionais (crenças,

desejos, etc), e (2) na concepção de racionalidade na qual estes elementos figuram.

Este foco representa uma mudança de fortuna do materialismo. Há vinte anos atrás,

as emoções, os qualia e os raw feels eram vistos como os principais obstáculos

para o programa materialista. Com estas barreiras em dissolução, o lugar da

oposição deslocou-se. Agora é o reino do intencional, o reino da atitude

proposicional, que é mais frequentemente tomado como sendo irredutível e

ineliminável, num enquadramento materialista, a favor do que quer que seja. Se isto

é assim, e porquê, é o que tem que ser examinado.

Um tal exame não fará no entanto muito sentido se não se tiver primeiro apreciado

que a rede relevante de conceitos de senso comum constitui de facto uma teoria

empírica, com todas as funções, virtudes, e perigos acarretados por esse estatuto.

Vou por isso começar com um breve esboço desta forma de ver as coisas e um

ensaio sumário do seu rationale. A resistência que tudo isto encontra ainda me

surpreende. Afinal, o senso comum deixou cair muitas teorias. Lembremos a ideia

de que o espaço tem uma direcção preferencial para as coisas caírem; que o peso é

uma característica intrínseca de um corpo; que um objecto móvel livre de forças

prontamente retornará a estar em repouso; que a esfera dos céus roda diariamente,

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! "4'!

e por aí fora. Estes exemplos são claros, talvez, mas as pessoas só parecem

dispostas a conceder um componente teórico no senso comum se (1) a teoria e o

senso comum envolvidos estiverem, de forma segura, localizados na Antiguidade,

(2) a teoria relevante for agora tão claramente falsa que a sua natureza especulativa

é incontornável. De facto, é mais fácil discernir teorias nestas circunstâncias. Mas a

visão retrospectiva é sempre 20/20. Vamos então, por uma vez que seja, aspirar a

alguma visão prospectiva.

I. Por que é que a psicologia de senso comum é uma teoria? Vermos o nosso enquadramento conceptual de senso comum para os fenómenos

mentais como uma teoria traz uma organização simples e unificadora à maioria dos

tópicos da filosofia da mente, incluindo a explicação e previsão de comportamento,

a semântica dos predicados mentais, a teoria da acção e o problema das outras

mentes, a intencionalidade dos estados mentais, a natureza da introspecção, e o

problema mente-corpo. Qualquer perspectiva que consiga pôr todas estas questões

em conjunto merece uma cuidadosa consideração.

Comecemos com a explicação do comportamento humano (e animal). O facto é que

a pessoa média é capaz de explicar e mesmo prever o comportamento de outras

pessoas com uma facilidade e sucesso notáveis. Tais explicações e previsões

fazem, de forma standard, referência aos desejos, crenças, temores, intenções,

percepções, etc, aos quais os agentes estão presumivelmente sujeitos. Mas

explicações pressupõem leis – pelo menos leis prontas a usar [rough and ready] –

que liguem as condições explicativas com o comportamento explicado. De forma a

confortar-nos, uma rica rede de leis de senso comum pode de facto ser reconstruída

a partir deste comércio quotidiano de explicação e antecipação; os seus princípios

são homilias familiares; e as suas variadas funções são transparentes. Cada um de

nós compreende os outros tão bem como o fazemos porque partilhamos um

domínio tácito de um corpo integrado de contos / histórias acerca das relações

legiformes que se dão entre circunstâncias externas, estados internos e

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! "4/!

comportamento manifesto. Dada a sua natureza e funções, este corpo de histórias

pode de forma apta ser chamado psicologia de senso comum [folk psychology]171.

Esta abordagem implica que a semântica dos termos no nosso vocabulário

mentalista familiar seja compreendida da mesma maneira que a semântica dos

termos teóricos em geral: o significado de qualquer termo teórico é fixado ou

constituído pela rede de leis na qual figura. (Esta posição é muito diferente do

behaviorismo lógico. Nós negamos que as leis relevantes sejam analíticas, e são as

conexões legiformes geralmente que têm peso semântico, não apenas as conexões

com comportamento manifesto. Mas esta visão não dá conta da ainda que pouca

plausibilidade o behaviorismo lógico tinha.

De forma ainda mais importante, o reconhecimento de que a psicologia de senso

comum é uma teoria oferece uma solução simples e decisiva para um velho

problema céptico, o problema das outras mentes. A convicção problemática de que

um outro indivíduo é o sujeito de certos estados mentais não é inferida

dedutivamente do seu comportamento, nem é inferida por analogia indutiva, a partir

da instancia isolada do nosso próprio caso. Antes, essa convicção é uma hipótese

explicativa singular de um tipo perfeitamente simples. A sua função, em conjunção

com as leis de fundo da psicologia de senso comum, é oferecer

explicações/previsões/entendimento do comportamento continuado do indivíduo, e é

credível até ao ponto em que é bem sucedida quanto a isto em relação a hipóteses

concorrentes. Em geral, tais hipóteses são bem sucedidas e por isso a crença que

os outros gozam de estados mentais apoiada pela psicologia de senso comum é

uma crença razoável.

O conhecimento das outras mentes não tem assim nenhuma dependência do

conhecimento da nossa própria mente. Aplicando os princípios da nossa psicologia

do senso comum ao nosso comportamento, um Marciano adscrever-nos-ia o

conjunto familiar de estados mentais, mesmo se a sua própria psicologia for muito

diferente da nossa, Ele não estaria portanto, a ‘generalizar a partir do seu próprio

caso’.

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Page 4: Paul churchland   atitudes proposicionais

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Da mesma forma, juízos introspectivos acerca do nosso próprio caso revelam não

ter qualquer especial estatuto, ou integridade. Nesta forma de ver as coisas, um

juízo introspectivo é apenas uma instancia de um hábito adquirido de resposta

conceptual aos nossos próprios estados internos, e a integridade de qualquer

resposta particular é sempre contingente à integridade do enquadramento

conceptual adquirido (teoria) no qual a resposta é formulada. Assim sendo, a nossa

certeza introspectiva de que a nossa mente é o lugar de crenças e desejos pode

estar tão mal posicionada como o estava a clássica certeza visual do homem de que

a esfera polvilhada de estrelas dos céus rodava diariamente.

Um outro paradoxo é a intencionalidade dos estados mentais. As “atitudes

proposicionais”, como Russell lhes chamou, formam o núcleo sistemático da

psicologia de senso comum, e o seu carácter singular e propriedades lógicas

anómalas inspiraram alguns a ver aqui um contraste fundamental com qualquer

coisa que fenómenos meramente físicos pudessem possivelmente mostrar. A chave

para esta questão reside de novo na natureza teórica da psicologia do senso

comum. A intencionalidade dos estados mentais emerge aqui não como um mistério

da natureza mas como um traço etsrutural dos conceitos da psicologia de senso

comum. De forma irónica, estes mesmos traços estruturais revelam a afinidade

muito próxima que a psicologia de senso comum tem com teorias nas ciências

físicas. Deixem-me tentar explicar.

Considere-se a ampla variedade do que poderíamos chamar “atitudes numéricas”

que aparecem no enquadramento conceptual da ciência física: ‘....tem uma massa

kg de n’, ‘......tem uma velocidade de n’, ‘.....tem uma temperatura K de n’ , e assim

por diante. Estas expressões são expressões que formam predicados: quando se

substitui um termo singular por um número no lugar de ‘n’, resulta um predicado

determinado. De forma mais interessante, as relações entre as várias “atitudes

numéricas” que resultam são precisamente as relações entre os números contidos

nessas atitudes. De forma ainda mais interessante, o lugar do argumento que

recebe os termos singulares para números está aberto à quantificação. Tudo isto

permite a expressão de generalizações a respeito das relações legiformes que se

sustentam entre as várias atitudes numéricas na natureza. Tais leis envolvem

quantificação sobre números, e explorarm as relações matemáticas que se

sustentam nesse domínio. Assim, por exemplo,

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! "4+!

(1) (x) (f) (m)[((x tem uma massa de m) & (x sofre uma força net de f) % (x

acelera a f/m)]

Considere-se agora a ampla variedade de atitudes proposicionais: ‘....acredita que

p’, ‘......deseja que p’, ‘.....teme que p’, ‘....está feliz que p’, etc. Estas expressões

também são formadores de predicados. Quando se substitui por uma proposição o

termo singular no lugar de ‘p’, resulta um predicado determinado, por exemplo,

‘.....acredita que Tom é alto’. (Frases não funcionam geralmente como termos

singulares, mas é dificil fugir à ideia de que quando uma frase ocorre no lugar de ‘p’,

está a funcionar como um termo singular. Sobre isto direi mais abaixo)

De forma mais interessante, as relações entre as atitudes proposicionais resultantes

são caracteristicamente as relações que se sustentam entre as proposições

‘contidas’ nelas, relações tais como acarretamento, equivalência, inconsistência

mútua. De forma ainda mais interessante, o lugar de argumento que toma os termos

singulares para proposições está aberto a quantificação. Tudo isto permite a

expressão de generalizações a respeito das relações legiformes que se sustentam

entre as atitudes proposicionais.Tais leis envolvem quantificação sobre proposições,

e exploram várias relações sustentandose nesse domonio. Assim, por exemplo,

(2) (x) (p) [(x teme que p)%(x deseja que ~p)]

(3) (x) (p) ) [(x espera que p) & (x descobre que p)) %(x está satisfeito que p)]

(4) (x) (p) (q) [(x acredita que p) & (x acredita que (se p então q)))

%(exceptuando confusão, distracção, etc, x acredita que q)]

(5) (x) (p) (q) [(x deseja que p) & (x acredita que (se p então q)) &(x é capaz de

fazer acontecer q)] %(exceptuando desejos em conflito ou estratégias preferidas, x

faz com que q)]

Não apenas a psicologia de senso comum é uma teoria, mas ela é tão obviamente

uma teoria que devemos pensar que é um mistério só na segunda metade do século

XX os filósofos terem percebido tal coisa. Os traços estruturais da psicologia de

senso comum são um perfeito paralelo dos da física matemática; a única diferença

reside mo respectivo domínio de entidades abstractas que cada uma explora. –

números no caso da física, proposições no caso da psicologia.

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! "44!

Finalmente, apercebermo-nos de que a psicologia de senso comum é uma teoria

lança uma nova luz sobre o problema mente-corpo. A questão torna-se uma

questão de saber como a ontologia de uma particular teoria (a psicologia de senso

comum) está ou não está relacionada com a ontologia de outra teoria (neurociência

completa); e as posições filosóficas maiores acerca do problema mente-corpo

emergem como diferentes antecipações daquilo que investigação futura revelará

acerca do estatuto interteórico e integridade da psicologia de senso comum.

O teórico da identidade de forma optimista espera que a psicologia de senso comum

seja suavemente reduzida à neurociência completa, e a sua ontologia preservada

por meio de identidades transteóricas. O dualista espera que ela prove ser

irredutível à neurociência completa, em virtude de ser uma descrição não

redundante de um domínio autónomo e não físico de fenómenos naturais. O

funcionalista também espera que ela venha a mostrar ser irredutível, mas com os

fundamentos muito diferentes de a economia interna caracterizada pela psicologia

de senso comum não ser, em última análise, um aeconomia governada por leis de

estados naturais, mas sim uma organização abstracta de estados funcionais, uma

organização instanciável numa variedade de substractos materiais bastante

diferentes. Ela é por isso irredutível aos princípios peculiares a cada um deles.

Finalmente, o materialista eliminativo também é pessimista acerca das perspectivas

de redução, mas a sua razão é que a psicologia de senso comum é um relato

radicalmente inadequado das actividades internas, demasiado confuso e demasiado

defeituoso para sobreviver através de redução teórica. Segundo esta forma de ver,

ela será simplesmente deslocada por uma melhor teoria dessas actividades.

Qual destes fados é o real destino da psicologia de senso comum, vamos já tentar

adivinhar. Por agora, o ponto a manter em mente, é que vamos explorar o fado de

uma teoria, uma teoria sistemática, corrigível, especulativa.

II Por que é que a psicologia de senso comum pode (realmente) ser falsa

Dado o facto de a psicologia de senso comum ser uma teoria empírica, é pelo

menos uma possibilidade abstracta a de que os seus princípio sejam radicalmente

falsos e a sua ontologia uma ilusão. No entanto, com a excepção do materialismo

eliminativo, nenhuma das posições mais improtantes leva esta possibilidade a sério.

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! "4*!

Nenhuma delas duvida da integridade básica ou verdade da psicologia de senso

comum (daqui em diante PSC) e todas elas antecipam um futuro no qual leis e

categorias seriam conservadas. Este conservadorismo não deixa de ter algum

fundamento. Afinal, a PSC tem um sucesso explicativo de previsão considerável. E

que melhor fundamento poderia haver para a confiança na integridade das suas

categorias?

De facto, que melhor fundamento? Mesmo assim, a presunção a favor da PSC é

espúria, nascida de inocência e visão reduzida. Um exame mais fundo revela uma

imagem diferente. Primeiro, temos que lidar não apenas com os sucessos da PSC,

mas com as suas falhas explicativas, e com a sua extensão e seriedade. Em

segundo lugar, temos que considerar a história de longo prazo da PSC, o seu

crescimento, fertilidade, e actuais promessas de desenvolvimento futuro. E terceiro,

temos que considerar que tipos de teorias é provável que sejam verdadeiras da

etiologia do nosso comportamento, dado o que aprendemos sobre nós próprios na

história recente. I.e., temos que avaliar a PSC quanto á sua coerência e

continuidade com teorias férteis e bem estabelecidas em domínios adjacentes e

justapostos – com a teoria evolucionista, biologia e neurociência, por exemplo –

porque coerência activa com o resto daquilo que presumimos saber é talvez a

medida final de qualquer hipótese.

Um inventário sério deste tipo revela uma situação muito problemática, uma

situação que evocaria cepticismo aberto na caso de qualquer teoria menos familiar e

menos querida. Deixem-me esboçar alguns detalhes relevantes. Quando centramos

a nossa atenção não no que a PSC explica mas naquilo que ela não explica e nem

sequer aborda, descobrimos que há aí muita coisa. Como exemplos de fenómenos

mentais centrais e importantes que permanecem largamente ou totalmente

misteriosos dentro do enquadramento da PSC, considere-se a natureza e Dinâmica

da doença mental, a faculdade da imaginação criativa, ou o fundamento da

diferença de inteligência entre indivíduos. Considere-se a nossa total ignorância da

natureza e funções psicológicas do sono, esse curioso estado em que um terço da

nossa vida se passa. Reflicta-se sobre a habilidade comum de apanhar uma bola

lançada em pleno ar, ou acertar num carro em movimento com uma bola de neve.

Considere-se a construção interna de uma imagem 3D a partir de diferenças subtis

no arranjo 2D de estimulações nas retinas. Considere-se a rica variedade de ilusões

perceptivas, visuais ou outras. Considere-se o milagre da memória, com a sua

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! "*1!

capacidade de recuperação relâmpago do que é relevante. Sobre estes e muitos

outros fenómenos mentais, a PSC lança uma luz negligenciável.

Um mistério que se impõe particularmente é o da natureza do processo de

aprendizagem, especialmente tanto quanto este envolve mudança conceptual de

larga escala, e especialmente quando aparece em forma pré-linguística ou

inteiramente não linguística (como em bebés e animais), que é de longe a mais

comum na natureza. A PSC depara-se com dificuldades especiais, uma vez que a

sua concepção da aprendizagem com manipulação e armazenamento de atitudes

proposicionais founders sobre o facto de que como formular, manipular e armazenar

um tecido rico de atitudes proposicionais é em si algo que é aprendido, e é apenas

uma entre muitas perícias cognitivas adquiridas. A PSC aparecer-nos-ia assim

constitutivamente incapaz de sequer se dirigir a este mistério tão básico.

Falhanços a tão larga escala não mostram ainda que a PSC é uma teoria falsa,

mas movem essa perspectiva para o leque das reais possibilidades, e mostram

decisivamente que a PSC é no máximo uma teoria altamente superficial, um

vislumbre parcial e não penetrante sobre uma realidade mais profunda e complexa.

Tendo chegado a esta opinião, podemos ser perdoados por explorar a possibilidade

de que a PSC ofereça um esboço enganador da nossa cinemática e Dinâmica

internas, um esboço cujo sucesso é devido mais à aplicação selectiva e

interpretação forçada da nossa parte do que a insight genuíno por parte da PSC.

Um olhar sobre a história da PSC faz pouco para afastar tais medos, uma vez

erguidos. A história é uma história de recuos, infertilidade e decadência. O

presumido domínio da PSC costumava ser muito maior do que é agora. Em culturas

primitivas, o comportamento da maioria dos elementos da natureza era

compreendido em termos intencionais. O vento podia conhecer fúria/ raiva, a lua

ciúmes, o rio generosidade, o mar fúria, e assim por diante. Estas não eram

metáforas. Eram feitos sacrifícios e augúrios aceites para placar ou adivinhar as

mutáveis paixões dos deuses. Apesar da sua esterilidade, esta abordagem animista

à natureza dominou a nossa história, e foi apenas nos últimos 2000 ou 3000 anos

que restringimos a aplicação literal da PSC aos animais mais elevados.

Mesmo neste domínio preferido, no entanto, quer o conteúdo quer o sucesso da

PSC não avançaram significativamente em dois ou três mil anos. A PSC os gregos

é essencialmente a PSC que usamos hoje, e nós somos apenas

negligenciavelmente melhores a explicar o comportamento humano do que era

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! "*)!

Sófocles. Este é um período muito longo de estagnação e infertilidade para qualquer

teoria demonstrar, especialmente quando se depara com enormes listas de

anomalias e mistérios no seu domínio explicativo. Talvez teorias perfeitas não

tenham necessidade de evoluir. Ma a PSC é profundamente imperfeita. O seu

falhanço a desenvolver o seus recursos e a estender o âmbito do seu sucesso é por

isso escuramente curioso, e temos obrigação de inquirir acerca da integridade das

suas categorias básicas. Para usar os termos de Imre Lakatos, a PSC é um

programa de investigação estagnado ou degenerescente, e tem sido isso mesmo

desde há milénios.

Sucesso em explicações até à data presente não é evidentemente a única

dimensão em que uma teoria pode mostrar ser virtuosa ou promissora. Uma teoria

com problemas ou estagnada pode merecer paciência ou solicitude por outras

razões; por exemplo por ser a única teoria ou abordagem teórica que se adequa

bem a outras teorias sobre assuntos adjacentes, ou a única que promete reduzir-se

ou ser explicada por alguma teoria de fundo cujo domínio abarca o domínio da

teoria em causa. Em suma, pode obter crédito por oferecer uma promessa de

integração teórica, Como é que a PSC se situa nesta dimensão?

É talvez precisamente aqui que a FPC está pior posicionada. Se nós abordarmos o

homo sapiens da perspectiva da história natural e das ciências físicas, podemos

contar uma história coerente da sua constituição, desenvolvimento, e capacidades

comportamentais que envolva desde a física de partículas à teoria atómica e

molecular, química orgânica, teoria evolucionista, biologia, fisiologia e neurociência

materialista. Essa história, embora ainda radicalmente incompleta, é extremamente

poderosa, tendo melhor desempenho do que a PSC em muitos pontos mesmo no

seu próprio domínio. E ela é deliberadamente e auto conscientemente coerente com

o resto da imagem do mundo em desenvolvimento. Em suma, a maior síntese

téorica da história da raça humana está actualmente nas nossas mãos, e partes

dessa história já nos dão descrições e explicações muito boas do inout sensorial

humano, actividade neuronal e controle motor.

Mas a PSC não é parte dessa síntese em crescimento. As suas categorais

intencionais estão em magnífico isolamento, sem perpsectivas visíveis de redução a

um corpo mais amplo. Uma redução bem sucedida não pode ser excluída, na minha

opinião, mas a impotência explicativa e a longa estagnação inspiram muito pouca fé

em que as suas categorias venham a encontrar-se claramente reflectidas no

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! "*"!

enquadramento da neurociência. Pelo contrario, lembramo-nos de como a alquimia

deve ter parecido quando a química elementar estava a tomar forma, como a

cosmologia aristotélica deve ter parecido enquanto a Mecânica clássica estava a ser

articulada, ou como a concepção vitalista da vida deve ter parecido quando a

química orgânica avançava.

Ao esboçar um sumario justo da situação, devemos fazer um particular esforço para

abstrair do facto de que a PSC é uma parte central do nosso actual lebenswelt, e

serve como principal veículo do nosso comercio interpessoal. Pois estes factos dão

à PSC uma inércia conceptual que vai muito para alem das suas virtudes puramente

teóricas. Ao restringirmo-nos a esta última dimensão, o que devemos dizer é que a

PSC sofre falhanços a uma escala épica, que tem estado estagnada pelo menos há

vinte e cinco séculos, e que as suas categorias parecem (pelo menos até agora)

ser incomensuráveis com ou ortogonais às categorias da ciência física de

background cuja pretensão de longo prazo de xplicar o comportamento humano

parece inegável. Qualquer teoria susceptível desta descrição deve ser vista como

uma candidata séria à eliminação.

Claro que neste estádio das coisas não podemos insistir em nenhuma conclusão

mais forte. Nem é minha preocupação fazê-lo. Estamos aqui a explorar uma

possibilidade, e os factos não pedem nem mais nem menos do que quer ela seja

levada a sério. O traço distintivo do materialista eliminativo é que ele leva essa

possibilidade mesmo muito a sério.

III Argumentos contra a eliminação Este é o rationale básico do materialismo eliminativo: a PSC é uma teoria, e muito

provavelmente uma teoria falsa; vamos pois tentar ultrapassá-la.

O rationale é simples e claro, mas muitas pessoas consideram-no pouco

convincente. Será objectado que a PSC não é, estrittametne falando, uma teoria

empírica; que ela não é falsa, ou pelo menos não é refutável por considerações

empíricas, e que não deve ou não pode ser ultrapassada à maneira de uma teoria

empírica defunta. No que se segue examinaremos estas objecções à medida que

elas fluem da posição mais popular e mais bem fundada das posições em

concorrência na filosofia da mente: o funcionalismo.

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! "*.!

Uma antipatia pelo materialismo eliminativo surge de duas correntes distintas no

seio do funcionalismo. A primeira diz respeito ao carácter normativo da PSC, ou

pelo menos desse núcleo central da PSC que trata das atitudes proposicionais. A

PSC, alguns dirão, é uma caracterização de um ideal, ou pelo menos louvável modo

de actividade interna. Ela esboça não apenas o que é ter e processar crenças e

desejos, mas também (e inevitavelmente) o que é ser racional na sua

administração. O ideal disposto pela PSC pode ser imperfeitamente alcançado por

humanos empíricos, mas isto não põe em causa a PSC como caracterização

normativa. Nem têm tais falhanços que pôr seriamente em causa a PSC mesmo

como caracterização descritiva, pois permanece verdadeiro que as nossas

actividades podem ser de forma útil e apurada compreendidas como racionais,

excepto nos ocasionais lapsos devidos a ruído, interferência ou outra falha, cujos

defeitos a investigação empírica poderá eventualmente deslindar. Assim sendo,

embora a neurociência possa aumentá-la de forma útil, a PSC não tem necessidade

premente de ser substituída, nem poderia ser substituída enquanto caracterização

normativa, por qualquer teoria descritiva de mecanismos neuronais, uma vez que a

racionalidade é definida sobre atitudes proposicionais tais como crenças e desejos.

Assim, a PSC está aqui para ficar.

Daniel Dennett defendeu uma posição de acordo com estas linhas. E a forma de ver

descrita também dá voz a um tema dos dualistas de propriedades, Karl Popper e

Joseph Margolis citam ambos a natureza normativa da actividade mental e

linguística como um impedimento à sua penetração ou eliminação por qualquer

teoria descritiva /materialista. Espero deflaccionar o atractivo de tais teses mais

abaixo.

A segunda corrente diz respeito à natureza abstracta da PSC. A tese central do

funcionalismo é que os princípios da PSC caracterizam os nossos estados internos

de uma forma que não faz referencia à sua natureza intrínseca ou constituição

física. Antes, eles são caracterizados em termos da rede de relações causais que

têm uns com os outros, e a circunstâncias sensoriais e comportamento manifesto.

Dada a sua especificação abstracta, essa economia interna pode por isso ser

realizada numa variedade de sistemas físicos nomicamente heterogéneos. Todos

podem diferir, mesmo radicalmente, na sua constituição física, e no entanto, num

outro nível, todos partilharão a mesma natureza. Esta forma de ver as coisas, diz

Fodor, ‘é compatível com pretensões muito fortes acerca da ineliminabilidade da

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! "*'!

linguagem mental das teorias do comportamento’172 Dad a possibildiade real de

instanciações múltiplas em substratos físicos heterogénos, não podemos eliminar a

carcaterização funcional a favor de qualquer teoria peculiar a um desses

substractos. Isso impedir-nos-ia de descrever a organização (abstracta) que

qualquer instanciação partilha com todas as outras. Uma caracterização funcional

dos nossos estados internos está pois aqui para ficar.

Este segundo tema, como o primeiro, atribui um carácter fracamente estipulativo à

PSC, como se o ónus recaísse sobre os sistemas empíricos para fielmente

instanciar a organização que a PSC especifica, em vez de o ónus recair sobre a

PSC de descrever fielmente as actividades internas de uma classe naturalmente

distinta de sistemas empíricos. Esta impressão é acentuada pelos exemplos

standard usados para ilustrar as teses do funcionalismo – ratoeiras, aparelhos de

válvulas (valve lifters?), calculadoras aritméticas, computadores, robôs, e por aí fora.

Estes são artefactos concebidos para se encaixarem num formulário preconcebido.

Em tais casos uma falha de adequação entre o sistema físico e a caracterização

formal relevante impugna apenas o primeiro, não o segundo. A caracterização

funcional é assim removida da critica empírica de uma forma que é muito pouco

comum em teorias empíricas. Um funcionalista proeminente – Hilary Putnam –

argumentou mesmo que a PSC não é de todo uma teoria corrigível173.

Simplesmente, se a PSC for vista nestes moldes, como regularmente é o caso, a

questão da sua integridade empírica muito improvavelmente se colocará, quanto

mais uma resposta crítica.

Embora justo para com alguns funcionalistas, o que acabou de ser dito não é justo

para com Fodor. Na sua forma de ver as coisas, a finalidade da psicologia é

encontrar a melhor caracterização funcional de nós próprios, e saber qual é essa

caracterização permanece uma questão empírica. Da mesma forma, o seu

argumento a favor da ineliminabilidade do vacabulário mental da psicologia não

escolhe o estado actual da nossa PSC como alvo em particular. Só tem que se

defender que alguma caracterização funcional abstracta tem que ser retida, talvez

alguma articulação ou refinamento da PSC.

!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

172 Psychological Explanation (New York, Random House, 1968), p. 116. 173 ‘Robots: Machines or artificially created life?’, Journal of Philosophy, LXI, 21 (Nov. 12, 1964): 668-691, pp. 675, 681 ff.

Page 13: Paul churchland   atitudes proposicionais

! "*/!

As suas previsões quanto à PSC permanecem, no entanto, em baixa. Em primeiro

lugar, é claro que Fodor pensa que não há nada de fundamentalmente ou

interessantemente errado com a PSC. Pelo contrario, a a concepção central de

actividade cognitiva da PSC – como consistindo na manipulação de atitudes

proposicionais – vem a ser o elemento central da teoria de Fodor da natureza do

pensamento (The Language of Thought, op. cit.). Em segundo lugar, permanece o

ponto de acordo com o qual por mais ‘limpeza e arrumação’ que a PSC precise, ela

não poderá ser deslocada por nenhuma teoria naturalista do nosso substracto físico,

uma vez que são os traços funcionais abstractos dos seus estados internos que

fazem uma pessoa, não a química do substracto.

Tudo isto é apelativo. Mas quase nada, penso, é acertado. O funcionalismo tem

gozado durante demasiado tempo a reputação de ser uma ousada posição avant

garde. É preciso revelar como é de facto uma posição reaccionária e de vistas

curtas.

IV A natureza conservadora do funcionalismo Uma perspectiva valiosa sobre o funcionalismo pode ser obtida a partir da história

seguinte. Para começar, lembremo-nos da teoria da matéria inanimada dos

alquimistas. Temos aqui uma tradição longa e variada, não uma única teoria, mas

os nossos propósitos serão servidos por um vislumbre.

Os alquimistas concebiam o inanimado como inteiramente contínuo com a matéria

animada, na medida em que as propriedades sensíveis e comportamentais das

várias substâncias eram devidas à animação [ensoulment] da matéria básica por

vários espíritos ou essências. Estes aspectos não materiais eram supostos ter um

desenvolvimento, exactamente como encontramos crescimento e desenvolvimento

em várias almas de plantas, animais e humanos. A perícia particular do alquimista

consistia em semear, nutrir e trazer à maturidade os espíritos materializados

desejados nas combinações apropriadas.

Numa ortodoxia, os quatro espíritos fundamentais (para a matéria inanimada) eram

chamados ‘mercúrio’, ‘sulfúrio’, ‘arsénico amarelo’ e ‘sal amoníaco’. Cada um destes

espíritos era considerado responsável por um síndroma amplo mas característico de

propriedades sensíveis, combinatórias e causais. O espírito mercúrio, por exemplo,

era considerado responsável por certas características típicas de substâncias

Page 14: Paul churchland   atitudes proposicionais

! "*3!

metálicas – serem brilhantes, liquefactíveis, etc. O sulfúrio era considerado

responsável por certos traços residuais típicos de substâncias metálicas, e por

aquelas manifestadas pelos minerais dos quais o metal podia ser destilado.

Qualquer substância metálica dada seria uma orquestração critica, principalmente

destes dois espíritos. Existia uma história semelhante para os outros dois espíritos,

e entre os quatro um certo domínio de traços físicos e transformações era tornado

inteligível e controlável.

O grau de controlo era sempre limitado, como é óbvio. Ou melhor, as previsões que

os alquimistas faziam e o controlo que possuíam eram devidas mais ao saber

manipulativo adquirido na aprendizagem com um mestre do que a qualquer insight

genuíno fornecido pela teoria. A teoria seguia, mais do que ditava, a prática. Mas a

teoria dava alguma ordem à prática, e na ausência de uma alternativa desenvolvida

era suficientemente forte para suster uma longa e teimosa tradição.

A tradição tinha-se tornado apagada e fragmentada no tempo em que a química de

Lavoisier e Dalton se ergueu para a substituir para sempre. Mas vamos supor que

ela tinha permanecido um pouco mais – talvez porque a ortodoxia dos quatro

espíritos se tinha tornado uma parte muito usada do senso comum de cada um – e

vamos examinar a natureza do conflito entre as duas teorias e as possíveis

avenidas de resolução.

Não há dúvida que a linha mais simples de resolução, e aquela que historicamente

aconteceu, é a simples substituição. A interpretação dualista das quatro essências –

como espíritos imateriais – aparecerá sem determinação e desnecessária dado o

poder da taxonomia corpuscular da química atómica. E uma redução da velha

taxonomia à nova parecerá impossível, dada a extensão na qual a velha teoria

comparativamente impotente classifica as coisas transversalmente relativamente à

nova. A eliminação aparecerá então como a única alternativa – a não ser que algum

astucioso e determinado defensor da visão alquímica tenha a inteligência de sugerir

a defesa seguinte.

Ser ‘animado por mercúrio’ ou ‘sulfúrio’, ou qualquer outro dos dois assim chamados

espíritos, é de facto um estado funcional. O primeiro, por exemplo, é definido pela

disposição para reflectir luz, liquefazer-se sob calor, unir-se com outra matéria no

mesmo estado, e assim por diante. E cada um destes quatro estados está

relacionado com os outros, pelo facto de o síndroma para cada um variar como

função de qual dos outros três estados é também instanciado no mesmo substrato.

Page 15: Paul churchland   atitudes proposicionais

! "*+!

Assim o nível de descrição compreendido pelo vocabulário alquímico é abstracto:

várias substâncias materiais, convenientemente ‘animadas’ podem manifestar as

características de um metal, por exemplo, ou mesmo especificamente do outro. Pois

é o síndrome total das propriedades causais e ocorrentes que importa, e não os

detalhes corpusculares do substracto. A alquimia, conclui-se, compreende um nível

de organização na realidade distinto de e irredutível à organização que se encontra

na química corpuscular.

Esta concepção podia ter sido muito apelativa. Afinal, poupa aos alquimistas o

trabalho de defenderem almas que vão e vêm; liberta-os de terem de enfrentar as

exigências sérias de uma redução naturalista, e poupa-lhes o choque e a confusão

da simples eliminação. A teoria alquímica emerge como basicamente correcta! E

eles também não têm que parecer demasiado teimosos ou dogmáticos nisto. A

alquimia, tal como está, concedem eles, pode precisar de limpeza e arrumação, e a

experiência deve ser o nosso guia. Mas não temos que temer a sua deslocação

naturalista, lembram-nos eles, uma vez que é a particular orquestração dos

síndromas de propriedades causais e ocorrentes que tornam um pedaço de matéria

ouro, e não os detalhes idiossincráticos do seu substrato corpuscular. Uma outra

circunstância ainda podia ter tornado esta pretensão ainda mais plausível. Porque o

facto é que os alquimistas sabiam como fazer ouro, neste sentido relevantemente

enfraquecido de ouro, e podiam fazê-lo de uma variedade de maneiras. O seu ouro

nunca era tão perfeito - infelizmente! – como o ouro nutrido nas profundezas da

natureza, mas que mortal pode esperar igualar-se às artes da própria natureza?

O que esta história mostra é que é pelo menos possível para a constelação de

lances, teses e defesas característicos do funcionalismo constituírem um insulto à

razão e à verdade, e fazê-lo com uma plausibilidade que é assustadora.

A alquimia é uma teoria péssima, bem merecedora da sua eliminação completa, e a

defesa que acabámos de explorar é reacionária, retrógrada lança poeira para os

nossos olhos, e é errada.Mas em contexto histórico, ela poderia ter parecido

totalmente razoável mesmo a pessoas sensatas.

O exemplo alquímico é um caso deliberadamente transparente do que poderia ser

chamado ‘estratagema funcionalista’ e outros casos são fáceis de imaginar. Uma

defesa fabulosa da teoria flogística da combustão pode ser erguida nesta linha.

Pense-se em ser altamente flogisticado e ser deflogisticado como estados

funcionais definidos por certos síndromas de disposições causais; aponte-se para a

Page 16: Paul churchland   atitudes proposicionais

! "*4!

grande variedade de substratos naturais capazes de combustão e calcificação;

clame-se uma integridade funcional irredutível para aquilo que provou não ter

qualquer integridade natural; esconda-s eos defeitos que permanecem sob um

compromisso de procurar melhorias. Uma receita semelhante dará nova vida aos

quatro humores da medicina medieval, para a essência vital ou archeus da biologia

pré-moderna, etc.

Se a sua aplicação noutros casos for de todo um guia, o estratagema funcionalista é

uma cortina de fumo para a preservação do erro e da confusão. De onde deriva a

nossa certeza de que nas revistas científicas contemporâneas a mesma charada

não está a ser jogada em benefício da PSC? O paralelo com a alquimia é em todos

os outros aspectos assustadoramente completo, até ao próprio paralelo da busca de

ouro artificial com a busca de inteligência artificial.

Vamos ver se não sou mal entendido neste ponto. Ambas as finalidades são boas

finalidades : graças à física nuclear ouro artificial (mas real) está finalmente à mão

para nós, nem que seja em quantidades submicroscópicas, a inteligência artificial

(mas real) eventualmente estará também. Mas assim como a cuidadosa

orquestração dos síndromas superficias era a forma errada de produzir ouro

genuíno, assim também pode a cuidadosa orquestração de síndromas superficiais

ser a forma errada de produzir inteligência genuína. Da mesma forma que com o

ouro, pode ser que o que seja requerido seja que a ciência penetre nos género

natural subjacente que pode dar origem ao síndroma total directamente.

Em suma, quando confrontados com a impotência explicativa, história estagnada e

isolamento sistemático dos idiomas intencionais da PSC, não é uma defesa

adequada insistir que esses idiomas são abstractos, funcionais, e irredutíveis em

carácter. Desde logo, a mesma defesa poderia ser erguida com plausibilidade

comparável para qualquer haywire rede de estados internos que a nossa tradição

supersticiosa nos tivesse adscrito. E por ouro, a desfesa assume essencialmente o

que está em causa: assume que são os idiomas intencionais da PSC. Mais ou

menos um pouco, que exprimem os traços importantes partilhados por todos os

sistemas cognitivos. Mas pode ser que não seja assim. É pelo menos certamente

errado assumir que o fazem, e depois argumentar contra a possibilidade de um

deslocamento materialista que este tem que descrever as questões a um nível

diferente do nível que é realmente importante. Isto é pura e simplesmente uma

petição de princípio a favor do enquadramento antigo.

Page 17: Paul churchland   atitudes proposicionais

! "**!

Finalmente, é muito importante apontar que o materialismo eliminativo é

estritamente consistente com a tese de que a essência de um sistema cognitivo

reside na organização funcional abstracta dos seus estados internos. O materialista

eliminativo não está comprometido com a ideia segundo a qual um relato adequado

da cognição tem de ser um relato naturalista, embora se lhe possa perdoar explorar

essa possibilidade. O que ele de facto mantém é que o relato adequado da

cognição, seja funcionalista ou naturalistas, terá tanta semelhança com a PSC como

a química moderna tem semelhança com a alquimia dos quatro espíritos.

Vamos agora tentar lidar com o argumento contra o materialismo eliminativo a partir

da dimensão normativa da PSC. Creio que isto ode ser feito fácil e rapidamente.

Em primeiro lugar, o facto de as regularidade adscritas ao núcleo intencional da

PSC serem predicadas a certas relações lógicas entre proposições não constitui por

si fundamento para defender algo de normativo acerca da PSC. Fazendo um

paralelo relevante, o facto de as regularidades adscritas pela clássica lei dos gases

serem predicadas sobre relações aritméticas entre números não implica o que quer

que seja de normativo acerca da lei clássica dos gases. E relações lógicas entre

proposições são tanto uma questão objectiva de factos abstractos como o são as

relações aritméticas entre números. A esse respeito, a lei

(4) (x) (p) (q) [(x acredita que p) & (x acredita que (se p então q))) %(exceptuando

confusão, distracção, etc, x acredita que q)]

Está inteiramente a par com a lei clássica dos gases:

(6) (x) (P) (V) (") [((x tem a pressão P) & (x tem o volume V) & (x tem a quantidade

")) % (exceptuando pressão ou densidade muito alta, x tem uma temperatura de PV/

"R)]

Uma dimensão normativa entra apenas porque acontece valorizarmos mais os

padrões adscritos pela PSC. Mas não os valorizamos todos, Considere-se

(6) (x) (p) [(x deseja com todo o seu coração que p) & (x vem a saber que ~p)

%(exceptuando uma excepcional força de carácter, x fica destroçado que ~p)]

Page 18: Paul churchland   atitudes proposicionais

! .11!

Além do mais, com acontece em geral com as convicções normativas, insights

frescos podem motivar enormes mudanças no que valorizamos.

Em segundo lugar, as leis da PSC adscrevem-nos apenas uma racionalidade

mínima e truncada, não a racionalidade ideal que alguns sugeriram. A racionalidade

caracterizada pelo conjunto de todas as leis da PSC fica muito aquém da

racionalidade ideal. Isto não é surpreendente. Nós não temos de qualquer modo

qualquer concepção clara e acabada de racionalidade ideal; certamente o homem

comum não a tem. Assim sendo, simplesmente é implausível que as falhas das

quais a PSC sofre sejam devidas em primeiro lugar a falhas humanas de se manter

à altura dos standards ideais oferecidos. Bem ao contrario a concepção de

racionalidade que ela oferece parece coxa e superficial, especialmente quando

comparada com a complexidade dialéctica da nossa história científica, ou com o

virtuosismo de raciocínio manifestado por qualquer criança.

Em terceito lugar, mesmo se a nossa actual concepção de racionalidade – e mais

em geral de virtude cognitiva – está largamente constituída no modelo

sentencial/proposicional da PSC, não há garantia que este enquadramento seja

adequado ao relato mais profundo e mais preciso da virtude cognitiva que é

claramente necessário. Mesmo se concedermos a integridade categorial da PSC,

pelo menos aplicada a humanos utentes de linguagem, continua a estar longe de

ser claro que os parâmetros básicos da virtude intelectual sejam encontrado ao nível

categorial compreendido pelas atitudes proposicionais. Afinal, o uso de linguagem é

algo que é aprendido por um cérebro já capaz de vigorosa actividade cognitiva: o

uso de linguagem é adquirido como apenas uma entre um grande número de

perícias de manipulação aprendidas; e é dominado por um cérebro que a evolução

moldou para muitas funções, o uso de linguagem sendo apenas uma última e talvez

menor entre elas. Sobre este pano de fundo, o uso de lingaugem aparece como

uma actividade bastante periférica, como um modo racialmente idiossincrático de

interacção social que é dominado graças à versatilidade e poder de um modo mais

básico de actividade. Porquê aceitar então uma teoria da actividade cognitiva que

modeliza os seus elementos à imagem da linguagem humana? E porquê assumir

que os parâmetros fundamentais da virtude cognitiva são ou podem ser definidos

sobre elementos deste nível superficial?

Um avanço sério na nossa apreciação da virtude cognitiva pareceria assim requerer

que vamos para alem da PSC, que transcendamos a pobreza da concepção de

Page 19: Paul churchland   atitudes proposicionais

! .1)!

racionalidade da PSC transcendendo inteiramente a sua cinemática proposicional,

desenvolvendo uma cinemática da actividade cognitiva mais geral e mais profunda,

e distinguindo dentro deste novo enquadramento quais dos modos cinematicamente

possíveis de actividade devem ser valorizados e encorajados (como mais eficientes,

fiáveis, produtivos, ou seja o que for). O materialismo eliminativo não implica assim

o fim das nossas preocupações normativas. Implica apenas que elas terão que ser

reconstituídas a um nível mais revelador de entendimento, um nível providenciado

por uma neurociência madura.

Vamos agora explorar o que um futuro teoricamente informado pode reservar-nos.

Não porque possamos prever estas questões com clarividência especial mas

porque é importante quebrar os grilhões da nossa imaginação constituídos pela

cinemática proposicional da PSC. No que diz respeito a esta secção, podemos

resumir assim as nossas conclusões. A PSC não é nem mais nem menos do que

uma teoria culturalmente entrincheirada da forma como nós próprios e os animais

superiores funcionam. Não tem nenhuns traços que a tornem empiricamente

invulnerável, nenhuma função singular que a torne insubstituível, nenhum estatuto

especial que seja. Teremos por isso uma postura céptica para qualquer pleito a sua

favor.

V Para além da psicologia do senso comum O que pode a eliminação da PSC de facto envolver – poderá ela envolver não

apenas os idiomas relativamente simples da sensação, mas todo o aparato das

atitudes proposicionais? Isso depende fortemente daquilo que a neurociência possa

descobrir, e da nossa determinação em capitalizar sobre isso. Eis três cenários nos

quais a concepção operativa da actividade cognitiva é progressivamente divorciada

das formas e categorias que caracterizam a linguagem natural. Se o leitor me

permitir a falta de substância real, vou tentar esboçar alguma forma plausível.

Primeiro vamos supor que a investigação acerca da estrutura e actividade do

cérebro, quer de grão fino quer global, finalmente produz uma nova cinemática e

correlativa dinâmica para aquilo que conhecemos como actividade cognitiva. A

teoria é uniforme para todos os cérebros terrestres, não apenas os cérebros

humanos, e faz contacto conceptual apropriado com a biologia evolucionista e a

termodinâmica do não-equilíbrio. Adscreve-nos, a cada momento, um conjunto ou

Page 20: Paul churchland   atitudes proposicionais

! .1"!

configuração de estados complexos, que são especificados na teoria como ‘sólidos’

figurativos dentro de um espaço de fases quadri- ou penta dimensional. As leis da

teoria governam a interacção, movimento e transformação destes estados ‘sólidos’

dentro daquele espaço, e também a sua relação com quaisquer transdutores

sensoriais e motores que o sistema possua. Como com a Mecânica celestial, a

especificação exacta dos ‘sólidos’ envolvidos e dar conta exaustivo de todos os

‘sólidos’ adjacentes dinamicamente relevantes não é possível na prática, por muitas

razões, mas aqui vem a verificar-se que as aproximações óbvias nas quais

recaímos providenciam excelentes explicações / previsões da mudança interna e

comportamento externo, pelo menos a curto prazo.

Quanto à actividade de longo prazo, a teoria oferece relatos poderosos e relevantes

do processo de aprendizagem, da natureza da doença mental, das variações em

carácter e inteligência no reino animal, bem como entre os indivíduos humanos.

Alem disso, oferece uma teoria do ‘conhecimento’, tal como este é tradicionalmente

concebido. De acordo com a nova teoria, qualquer frase declarativa à qual um

falante dê o seu confiante assentimento é meramente uma projecção uni-

dimensional – através da lente composta das áreas de Wernicke e Broca para a

superfície idiosincrática da língua do falante – uma projecção uni-dimensional de um

‘sólido’ quadri-ou penta dimensional que é um elemento no seu verdadeiro estado

cinemático.(Lembremo-nos das sombras na parede da caverna de Platão).

Sendo projecções dessa realidade interna, tais frases transportam informação

relevante acerca dela e são portanto apropriadas para funcionar como elemtnos de

um sistema comunicacional. Por outro lado, sendo projecção sub-dimensionais, elas

não reflectem senão uma pequena parte da realidade projectada. Elas são portanto

impróprias para representar a realidade mais profunda em todos os aspectos

cinematicamente, dinamicamente e mesmo normativamente relevantes desta. I.e.,

um sistema de atitudes proposicionais, tal como a PSC, tem inevitavelmente que

falhar em capturar o que está a passar-se aí, embora possa reflectir sufieciente

estrutusra de superfície para manter uma tradição à maneira da alquimia entre

pessoas que não dispõem de uma melhor teoria. Da perspectiva da nova teoria, no

entanto, é claro que simplesmente não existem estados legiformes do tipo que a

PSC postula. As leis que realmente governam as nossas actividades internas são

definidas sobre estados e configurações cinemáticos diferentes e muito mais

Page 21: Paul churchland   atitudes proposicionais

! .1.!

complexos, como o são os critérios normativos para a integridade do

desenvolvimento e a virtude intelectual.

Um resultado teórico como o que acabei de descrever pode razoavelmente ser

contado como um caso a favor da eliminação de uma ontologia teórica a favor de

uma outra, mas o sucesso aqui imaginado para a neurociência sistemática não tem

que ter qualquer efeito sensível na prática comum. Velhos hábitos custam a morrer,

e na ausência de alguma necessidade prática, podem não morrer de todo. Mesmo

assim, não é inconcebível que algum segmento da população, ou toda ela, se

tornasse intimamente familiar com o vocabulário requerido para caracterizar os

nossos estados cinemáticos, aprendesse as leis que governam as suas interacções

e projecções comportamentais, adquirisse facilidade da adscrição de primeira-

pessoa, e deslocasse assim totalmente o uso da PSC, mesmo na vida comum. A

queda da ontologia da PSC estaria então completa.

Podemos agora explorar uma segunda possibilidade bem mais radical ainda. Toda a

gente conhece a tese de Chomsky de acordo com a qual a mente ou cérebro

humana contem inatamente e de forma única, as estruturas abstractas para

aprender e usar lingas naturais especificamente humanas.

Uma hipótese alternativa é que o nosso cérebro de facto contem estruturas inatas,

mas que essas estruturas têm como função original e ainda primária a organização

da experiência perceptiva, sendo a administração de categorias linguísticas uma

função adquirida adicional para a qual a evolução apenas incidentalmente as

recrutou174. Esta hipótese tem a vantagem de não requerer o salto evolutivo que a

tese de Chomsky parece requerer, e há ainda outras vantagens. Mas estes

assuntos não têm que nos preocupar aqui. Vamos supor, para os nossos

propósitos, que esta tese concorrente é verdadeira, e considerar a história que se

segue.

Investigação sobre as estruturas neuronais que sustentam a organização e

processamento de informação perceptiva revelam que elas são capazes de

administrar uma grande variedade de tarefas complexas, algumas das quais

mostrando uma complexidade muito superior à mostrada pela linguagem natural. As

línguas naturais, vem a revelar-se, exploram apenas uma porção muito elementar !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

174 Richard Gregory defende esta posição em ‘The Grammar of Vision’, Listener, LXXXIII, 2133 (Fevereiro 1970) 242-246, reimpresso no seu livro Concepts and Mechanisms of Perception (London, Duckworth, 1975), pp. 622-629.

Page 22: Paul churchland   atitudes proposicionais

! .1'!

da maquinaria disponível, o grosso da qual serve para actividade muito mais

complexas, para alem do âmbito das concepções proposicionais da PSC. O

desenrolar detalhado dessas maquinaria e das capacidades que ela tem torna claro

que uma forma de linguagem bem mais sofisticadas que a linguagem natural

embora decididamente estranha [alien] nas suas estruturas sintácticas e

semânticas, também poderia ser aprendida e utilizada pelos nossos sistemas inatos.

Um tal novo sistema de comunicação, vem rapidamente a ser concluído, poderia

elevar a eficiência da troca de informação entre os cérebros uma ordem de

magnitude, e melhoraria a avaliação epistémica uma dimensão comparável, uma

vez que reflectiria a estrutura subjacente das nossas actividades cognitivas num

detalhe maior do que a língua natural o faz.

Guiado pelo nosso novo entendimento dessas estruturas internas, vimos a construir

um novo sistema de comunicação verbal inteiramente distinto da língua natural, com

uma nova e mais poderosa grmática combinatória sobre novos elementos formando

novas combinações com propriedades exóticas. As cadeias compostas deste

sistema alternativo – chamemos –lhes “ubersatzen” – não só avaliadas como

verdadeiras e falsas, nem as relações entre elas são nem remotamente

semelhantes a relações de acarretamento, etc, que se dão entre frases. Elas

mostram uma organização diferente e manifestam virtudes diferentes também.

Uma vez construída, mostra-se que esta linguagem pode ser aprendida; tem o

poder projectado, e em duas gerações varre o planeta. Toda a gente usa o novo

sistema. As formas sintácticas e categorias semânticas das assim chamadas

‘línguas naturais’ desaparecem completamente. E com elas desaparecem as

atitudes proposicionais da PSC, deslocadas por um sistema mais revelador, no qual,

(evidentemente) atitudes ubsersatzenais’ têm o papel principal. A PSC mais uma

vez foi eliminada.

Note-se que esta segunda história ilustra um tema com variações sem fim. São

possíveis tantas psicologias do senso comum como são possíveis sistemas de

comunicação diferentemente estruturados que lhes sirvam de modelos.

Uma terceira e ainda mais estranha possibilidade pode ser esboçada da forma

seguinte. Nós sabemos que há uma considerável lateralização de função entre os

dois hemisférios cerebrais , e que os dois hemisféricos podem fazer uso da

informação que obtêm um do outro através da grande comissura cerebral – o corpo

caloso – um gigantesco cabo de neurónios que os liga. Pacientes cuja comissura foi

Page 23: Paul churchland   atitudes proposicionais

! .1/!

cirurgicamente cortada manifestam uma variedade de de défices comportamentais,

que indicam uma perda de acesso por um hemisférico à informação que este

costumava obter do outro. No entanto, em pessoas com agenese calosal (um

defeito congénito no qual o cabo de conexão simplesmente está ausente) há pouco

ou nenhum défice comportamental, sugerindo que os dois hemisféricos aprenderam

a explorar a informação transportada por outros trajectos menos directos que os

conectam através de regiões sub corticais. Isto sugere que, mesmo no caso normal,

um hemisfério em desenvolvimento aprende a fazer uso da informação que a

comissura cerebral deposita na sua entrada. O que nós temos então, no caso de

um humano normal, são dois sistemas cognitivos fisicamente distintos, (ambos

capazes de funcionamento independente) a responder de uma forma sistemática e

aprendida a informação trocada. O que é especialmente interessante neste caso é a

pura quantidade de informação trocada. O cabo da comissura consiste em '200

milhões de neurónios175 e mesmo se assumirmos que cada uma desta fibras é

capaz de um ou dois estados por segundo (uma estimativa conservadora), estamos

a olhar para um canal cuja capacidade de informação é > 2 x 10 8 bits binários por

segundo. Compare-se isto com os <500 bits por segundo do inglês falado. Agora, se

dois hemisférios diferentes podem aprender a comunicar numa escala tão

impressionante, porque não poderiam dois cérebros diferentes aprender a fazê-lo

também? Isto requereria uma comissura artificial de algum tipo, mas vamos

imaginar que conseguimos criar um bom transdutor para implante em alguma zona

do cérebro que a investigação mostre ser apropriada, um transdutor que converta

uma sinfonia de actividade neuronal em (digamos) microondas irradiando de uma

antena na testa, e fazendo a função inversa de converter as microondas recebidas

de volta em activação neuronal. Conectá-lo não é necessariamente um problema

inultrapassável. Simplesmente fazemos os processos normais de arborizações

dendríticas a crescer as sua miríade de conexões com a microsuperfície activa do

transdutor.

Uma vez assim aberto o canal entre duas ou mais pessoas, elas podem aprender

(aprender) a trocar informação e a coordenar o seu comportamento com a mesma

intimidade e virtuosismo manifestados pelos nossos dois hemisférios cerebrais.

Pense-se no que isto faria por equipas de hóquei, companhias de ballet e equipas !!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!!

175 M. S. Gazzaniga e J. E. LeDoux, The Integrated Mind (New York, Plenum Press, 1975).

Page 24: Paul churchland   atitudes proposicionais

! .13!

de investigação! Se a população inteira estivesse assim conectada, a língua falada

poderia bem desaparecer completamente, vítima de um princípio ‘porque rastejar

quando se pode voar?’ As bibliotecas ficariam cheias não de livros mas de longas

gravações de actividade neuronal exemplar. Estas constituem uma herança cultural,

um Terceiro Mundo em evolução, para usar a expressão de Karl Popper. Mas não

consistem em frases ou argumentos.

Como é que tais pessoas compreenderão e conceberão outros indivíduos? Só

posso responder a esta questão dizendo ‘Aproximadamente da mesma maneira que

o teu hemisfério direito ‘concebe’ e ‘compreende’ o teu hemisfério direito –

intimamente e eficientemente mas não proposicionalmente’.

Estas especulações, espero, evocarão o sentido necessário de possibilidades

inexploradas, e de qualquer forma terminarei com elas por aqui mesmo. A sua

função é fazer algumas incursões pela aura de inconcebibilidade que usualmente

rodeia a ideia de que poderíamos rejeitar a PSC. A tensão conceptual que se sente

encontra até expressão num argumento para mostrar que o materialismo eliminativo

é incoerente, uma vez que nega as próprias condições pressupostas pelo seu ser

significativo. Terminarei com uma discussão deste lance muito popular.

Tal como me chegou, esta reductio avança salientando que o materialismo

eliminativo é apenas uma cadeira sem significado de marcas ou sons, a não ser que

essa cadeira seja a expressão de uma certa crença, e uma certa intenção de

comunicar, e um conhecimento da gramática da linguagem, e por aí em diante. Mas

se a afirmação do materialismo eliminativo é verdadeira, não existem tais estados

para exprimir. A afirmação em causa seria então uma cadeia de marcas ou sons

sem significado. Seria portanto não verdadeira. Portanto a afirmação não é

verdadeira. Q.E.D.

A dificuldade de qualquer reductio não formal é que a conclusão contra a suposição

inicial é sempre não melhor do que as suposições materiais evocadas para alcançar

a conclusão incoerente. Neste caso as suposições adicionais envolvem uma certa

teoria do significado, uma teoria do significado que pressupõe a integridade da PSC.

Mas formalmente falando, também se pode inferir, do resultado incoerente, que esta

teoria do significado é o que tem de ser rejeitado. Dada a critica independente da

PSC vista atrás, esta pareceria ser a opção preferida. Mas em qualquer caso, não

se pode simplesmente assumir essa particular teoria do significado sem petição de

princípio quanto ao assunto em causa, nomeadamente, a integridade da PSC.

Page 25: Paul churchland   atitudes proposicionais

! .1+!

A natureza de petição de princípio deste lance é ilustrada da forma mais gráfica pelo

seguinte análogo, que devo a Patrícia Churchland176. A questão aqui, colocada no

século dezassete, é saber se existe uma substância que seja espírito vital. Nesse

tempo, esta substância era tomada, sem significativa consciência das alternativas,

como sendo aquilo que distinguia o animado do inanimado. Dado o monopólio de

que tal concepção gozava, dado o grau no qual estava integrada com muitas outras

das nossas concepções, e dada a magnitude das revisões que qualquer alternativa

séria requereria, a refutação seguinte de qualquer pretensão anti-vitalista teria sido

considerada instantaneamente plausível.

O anti-vitalista afirma que não existe coisa tal que seja espírito vital. Mas esta

pretensão é auto-refutante. O falante só pode esperar ser tomado a sério apenas se

a sua pretensão não puder ser tomada a sério. Pois se a pretensão é verdadeira,

então o falante não tem espírito vital e deve estar morto. Mas se ele está morto,

então a sua pretensão é uma cadeira de ruídos sem significado, desprovida de

razão e verdade.

Que este argumento incorre em petição de princípio não precisa, penso, de mais

elaboração. Àqueles que se deixam impressionar pelo argumento anterior,

recomendo o paralelo para exame.

A tese do presente artigo pode ser resumida da seguinte maneira: as atitudes

proposicionais da psicologia de senso comum não constituem uma barreira

inultrapassável à onda de avanço da neurociência. Pelo contrário, o justificado

afastamento da psicologia de senso comum é não apenas perfeitamente possível

como representa uma dos mais intrigantes afastamentos teóricos que podemos

neste momento imaginar.

Paul M Churchland

University of Manitoba

(ALGUMAS NOTAS EM FALTA – em revisão)

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