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Paulo Freire - Acção Cultural Para A Liberdade

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AÇÃO CULTURAL PARA A LIBERDADE

e out ros escr itos

Page 3: Paulo Freire - Acção Cultural Para A Liberdade

Coleção: O MUNDO, HOJE Vol. 10

Ficha Catalográfica

(Preparada pelo Cent ro de Catalogação- na- fonte do SINDICATO NACIONAL DOS EDITORES DE LIVROS, RJ)

Freire, Paulo F934a Ação cultural para a liberdade. 5ª ed., Rio de Janeiro, Paz e Terra.

1981. 149 p. 21cm (O Mundo, Hoje, v. 10)

Bibliografia

1. Alfabet ização. 2. Educação de adultos. 3. Educação de adultos – Teor ia, m étodos etc. I . Títulos. I l. Sér ie.

CDD – 374

374.02 379.24

76- 0068 CDU – 371.3: 374.7+ 376.76 EDITORA PAZ E TERRA Conselho Editorial: Antonio Candido Celso Furtado Fernando Gasparian Fernando Henrique Cardoso

Page 4: Paulo Freire - Acção Cultural Para A Liberdade

Paulo Freire

AÇÃO CULTURAL

PARA A LI BERDADE

E OUTROS ESCRI TOS

5ª Edição

Paz e Terra

Page 5: Paulo Freire - Acção Cultural Para A Liberdade

Copyright Paulo Freire Capa e digramação: Sheila Santos

Direitos adquiridos pela EDITORA PAZ E TERRA S.A. Rua André Cavalcant i, 86 Fát im a – Rio de Janeiro, RJ Tel. : 244- 0448 Rua Carijós, 128 Lapa – São Paulo, SP Tel. : 263- 9539

1981 ________________ Impresso no Brasil Printed in Brazil

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Sumário

7 Breve explicação 8 Considerações em torno do ato de estudar 11 A alfabet ização de adultos – cr ít ica de sua visão ingênua com preensão de sua v isão cr ít ica 20 Os cam ponenes e seus textos de leitura 26 Ação cultural e reforma agrária 31 O papel do t rabalhador social no processo de m udança 35 Ação cultural para a libertação 35 I parte: O processo de alfabet ização de adultos com o ação cultural para a libertação 53 I I par te: Ação cultural e conscient ização 71 O processo de alfabet ização polít ica – uma int rodução 78 Algum as notas sobre hum anização e suas im plicações pedagógicas 95 O papel educat ivo das I grejas na América Lat ina 104 Prefácio à edição argent ina de A black theology of liberat ion de James Cone 107 Conscient ização e libertação: um a conversa com Paulo Freire 116 Algum as notas sobre conscient ização

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Breve explicação

Depois de um longo período de hesitação, resolvi, afinal, juntar neste volum e alguns dos textos que escrevi ent re 1968 e 1974. Textos ent re os quais som ente uns poucos têm sido mais amplamente divulgados, sobretudo em inglês e espanhol.

Tendo sido, com raras exceções, preparados para sem inários, a intenção básica ao redigi- los era a de provocar um a discussão em cujo processo se aprofundasse a análise de alguns de seus aspectos pr incipais.

Juntam ente com Extensão ou Com unicação, publicado no Brasil em 1970, por Paz e Terra , alguns deles talvez aclarem certos possíveis vazios ent re Educação com o Prát ica da Liberdade e Pedagogia do Oprim ido.

Pretendendo preservá- los com o os escrevi, não m e furtei, contudo, a alterar um ou out ro, na form a com o no conteúdo.

Espero, finalm ente, que o fato de estar constantem ente voltando a cer tos núcleos temát icos, não só em t rabalhos diferentes, mas também num mesmo texto, não chegue a cansar demasiado o leitor. Esta é, em últ ima análise, a m inha maneira de escrever sobre o que penso e de pensar sobre o que faço.

PAULO FREIRE Genebra

Outono de 1975.

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Considerações em torno do ato de estudar 1

Toda bibliografia deve reflet ir uma intenção fundamental de quem a elabora: a de atender ou a de despertar o desejo de aprofundar conhecimentos naqueles ou naquelas a quem é proposta. Se falta, nos que a recebem, o ânimo de usá- la, ou se a bibliografia, em si mesma, não é capaz de desafiá- los, se frust ra, então, a intenção fundamental referida.

A bibliografia se torna um papel inút il, ent re out ros, perdido nas gavetas das escrivaninhas.

Esta intenção fundamental de quem faz a bibliografia lhe exige um t r iplo respeito: a quem ela se dir ige, aos autores citados e a si mesmos. Uma relação bibliográfica não pode ser uma simples cópia de t ítulos, feita ao acaso, ou por ouvir dizer. Quem a sugere deve saber o que está sugerindo e por que o faz. Quem a recebe, por sua vez, deve ter nela, não uma prescrição dogmát ica de leituras, mas um desafio. Desafio que se fará m ais concreto na m edida em que comece a estudar os livros citados e não a lê- los por alto, com o se os folheasse, apenas.

Estudar é, realmente, um t rabalho difícil. Exige de quem o faz uma postura cr it ica, sistem át ica. Exige um a disciplina intelectual que não se ganha a não ser prat icando- a.

I sto é, precisam ente, o que a “educação bancár ia” ∗ não est imula. Pelo cont rário, sua tônica reside fundamentalmente em matar nos educandos a curiosidade, o espír ito invest igador, a cr iat ividade. Sua “disciplina” é a disciplina para a ingenuidade em face do texto, não para a indispensável cr it icidade.

Este procedim ento ingênuo ao qual o educando é submet ido, ao lado de out ros fatores, pode explicar as fugas ao texto, que fazem os estudantes, cuja leitura se torna puram ente m ecânica, enquanto, pela im aginação, se deslocam para out ras situações. O que se lhes pede, afinal, não é a com preensão do conteúdo, m as sua memorização. Em lugar de ser o texto e sua compreensão, o desafio passa a ser a m em orização do m esm o. Se o estudante consegue fazê- la, terá respondido ao desafio.

Num a visão crít ica, as coisas se passam diferentem ente. O que estuda se sente desafiado pelo texto em sua totalidade e seu objet ivo é apropr iar- se de sua significação profunda.

Esta postura cr it ica, fundam ental, indispensável ao ato de estudar, requer de quem a ele se dedica:

a) Que assum a o papel de sujeito deste ato.

I sto significa que é im possível um estudo sér io se o que estuda se. põe em face do texto como se est ivesse magnet izado pela palavra do autor, à qual emprestasse uma força mágic a. Se se com porta passivam ente, “dom est icadam ente” , procurando

1

Escrito em 1968, no Chile, este texto serviu de introdução à relação.bibliográfica que foi proposta aos participantes de um seminário nacional sobre educação e reforma agrária. ∗ Sobre "educação bancária”, ver Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido, Editora Paz e Terra, Rio de Janeiro, 1977, 4ª ed., (N.E.)

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apenas memorizar as afirmações do autor. Se se deixa “ invadir” pelo que afirma o autor. Se se t ransform a num a “vasilha” que deve ser enchida pelos conteúdos que ele ret ira do texto para pôr dentro de si mesmo.

Estudar ser iam ente um texto é estudar o estudo de quem , estudando, o escreveu. É perceber o condicionam ento histór ico- sociológico do conhecim ento. É buscar as relações ent re o conteúdo em estudo e out ras dim ensões afins do conhecim ento. Estudar é uma forma de reinventar, de recriar, de reescrever – tarefa de sujeito e não de objeto. Desta m aneira, não é possível a quem estuda, num a tal perspect iva, alienar- se ao texto, renunciando assim à sua at itude crít ica em face dele.

A at it ude cr it ica no estudo é a mesma que deve ser tomada diante do mundo, da realidade, da existência. Um a at itude de adent ram ento com a qual se vá alcançando a razão de ser dos fatos cada vez m ais lucidam ente.

Um texto estará tão m elhor estudado quanto, na m edida em que dele se tenha uma visão global, a ele se volte, delim itando suas dimensões parciais. O retorno ao livro para esta delim itação aclara a significação de sua globalidade.

Ao exercitar o ato de delim itar os núcleos cent rais do texto que, em interação, const it uem sua unidade, o leitor crít ico irá surpreendendo todo um conjunto temát ico, nem sem pre explicitado no índice da obra. A dem arcação destes tem as deve atender também ao quadro referencial de interesse do sujeito leitor.

Assim é que, diante de um livro, este sujeito leitor pode ser despertado por um t recho que lhe provoca um a série de reflexões em torno de um a tem át ica que o preocupa e que não é necessariam ente a de que t rata o livro em apreço. Suspeitada a possível relação ent re o t recho lido e sua preocupação, é o caso, então, de f ixar- se na análise do texto, buscando o nexo ent re seu conteúdo e o objeto de estudo sobre que se encont ra t rabalhando. I mpõe- se- lhe um a exigência: analisar o conteúdo do t recho em questão, em sua relação com os precedentes e com os que a ele se seguem, evitando, assim , t rair o pensamento do autor em sua totalidade.

Constatada a relação ent re o t recho em estudo e sua preocupação, deve separá - lo de seu conjunto, t ranscrevendo - o em uma ficha com um t ítulo que o ident ifique com o objet o específ ico de seu estudo. Nestas circunstâncias, ora pode deter- se, im ediatam ente, em reflexões a propósito das possibilidades que o t recho lhe oferece, ora pode seguir a leitura geral do texto, fixando out ros t rechos que lhe possam aportar novas m editações.

Em últ ima análise, o estudo sério de um livro como de um art igo de revista implica não somente numa penet ração crít ica em seu conteúdo básico, mas também numa sensibilidade aguda, num a perm anente inquietação intelectual, num estado de predisposição à busca.

b) Que o ato de estudar, no fundo, é um a at itude em frente ao m undo.

Esta é a razão pela qual o ato de estudar não se reduz à relação leitor- livro, ou leitor-t ex t o.

Os livros em verdade refletem o enfrentamento de seus autores com o mundo. Expressam este enfrentamento. E ainda quando os autores fujam da realidade concreta estarão expressando a sua m aneira deform ada de enfrentá- la. Estudar é

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também e sobretudo pensar a prát ica e pensar a prát ica é a melhor maneira de pensar certo. Desta form a, quem estuda não deve perder nenhuma oportunidade, em suas relações com os out ros, com a realidade, para assum ir uma postura curiosa. A de quem pergunta, a de quem indaga, a de quem busca.

O exercício desta postura cur iosa term ina por torná- la ágil, do que resulta um aproveitamento maior da curiosidade mesma.

Assim é que se im põe o regist ro constante das observações realizadas durante um a certa prát ica; durante as sim ples conversações. O regist ro das idéias que se têm e pelas quais se é “assaltado” , não raras vezes, quando se cam inha só por uma rua. Regist ros que passam a const ituir o que Wright Mills chama de “ fichas de idéias” ∗.

Estas idéias e estas observações, devidam ente fichadas, passam a const ituir desafios que devem ser respondidos por quem as regist ra.

Quase sem pre, ao se t ransform arem na incidência da reflexão dos que as anotam , estas idéias os rem etem a leituras de textos com que podem inst rum entar- se para seguir em sua reflexão.

c) Que o estudo de um tem a especifico exige do estudante que se ponha, tanto quanto possível, a par da bibliografia que se refere ao tema ou ao objeto de sua inquietude.

d) Que o ato de estudar é assum ir uma relação de diálogo com o autor do texto, cuja m ediação se encont ra nos tem as de que ele t rata. Esta relação dialógica im plica na percepção do condicionam ento histór ico- sociológico e ideológico do autor, nem sempre o mesmo do leitor.

e) Que o ato de estudar demanda hum ildade.

Se o que estuda assum e realm ente um a posição hum ilde, coerente com a at itude cr it ica, não se sente dim inuído se encont ra dif iculdades, às vezes grandes, para penet rar na significação m ais profunda do texto. Hum ilde e cr it ico, sabe que o texto, na razão mesma em que é um desafio, pode estar mais além de sua capacidade de resposta. Nem sem pre o texto se dá facilmente ao leitor.

Neste caso, o que deve fazer é reconhecer a necessidade de m elhor inst rum entar- se para voltar ao texto em condições de entendê- lo. Não adianta passar a página de um livro se sua com preensão não foi alcançada. I m põe, pelo cont rár io, a insistência na busca de seu desvelam ento. A com preensão de um texto não é algo que se recebe de presente. Exige t rabalho paciente de quem por ele se sente problem at izado.

Não se mede o estudo pelo numero de páginas lidas numa noite ou pela quant idade de livros lidos num semestre.

Estudar não é um ato de consumir idéias, mas de criá - las e recriá - las.

∗ Wright Mills – The Sociological Imagination.

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A alfabetização de adultos – critica de sua visão ingênua; compreensão de sua visão crítica

Sant iago, 1968.

A concepção, na m elhor das hipóteses, ingênua ∗ do analfabet ismo o encara ora como uma “erva daninha” – daí a expressão corrente: “erradicação do analfabet ism o” –, ora como uma “enferm idade” que passa de um a out ro, quase por contágio, ora como um a “chaga” deprim ente a ser “ curada” e cujos índices, estam pados nas est at íst icas de organism os internacionais, dizem m al dos níveis de “civilização” de certas sociedades. Mais ainda, o analfabet ism o aparece tam bém , nesta visão ingênua ou astuta, com o a m anifestação da “ incapacidade” do povo, de sua “pouca inteligência” , de sua “proverbial preguiça” .

Lim itada na com preensão do problem a, cuja com plexidade não capta ou esconde, suas respostas a ele são de caráter m ecanicista.

A alfabet ização, assim , se reduz ao ato m ecânico de “depositar” palavras, sílabas e let ras nos alfabet izandos. Este “depósito” é suficiente para que os alfabet izandos comecem a “afirmar- se” , uma vez que, em tal visão, se empresta à palavra um sent ido m ágico.

Escrita e lida, a palavra é com o se fosse um am uleto, algo justaposto ao hom em que não a diz, mas simplesmente a repete. Palavra quase sempre sem relação com o mundo e com as coisas que nomeia.

Daí que, para esta concepção distorcida da palavra, a alfabet ização se t ransform e em um ato pelo qual o cham ado alfabet izador vai “enchendo” o alfabet izando com suas palavras. A significação mágica emprestada à palavra se alonga nout ra ingenuidade: a do messianismo. O analfabeto é um “homem perdido” . É preciso, então, “salvá- lo” e sua “ salvação” está em que consinta em ir sendo "enchido” por estas palavras, meros sons m ilagrosos, que lhe são presenteadas ou im postas pelo alfabet izador que, às vezes, é um agente inconsciente dos responsáveis pela polít ica da cam panha.

As cart ilhas, por boas que sejam , do ponto de vista m etodológico ou sociológico, não podem escapar, porém, a uma espécie de "pecado original” , enquanto são o inst rum ento at ravés do qual se vão “depositando” as palavras do educador, com o também seus textos, nos alfabet izandos. E por lim itar- lhes o poder de expressão, de cr iat ividade, são inst rum entos dom est icadores.

De m odo geral, elaboradas de acordo com a concepção m ecanicista e m ágico-messiânica da “palavra- depósito” , da “palavra- som”, seu objet ivo máximo é realm ente fazer um a espécie de “ t ransfusão” na qual a palavra do educador é o ∗ Quando digo “concepção, na melhor das hipóteses, ingênua”, é porque muitos dos que poderiam ser considerados como ingênuos, ao expressá-la, são, na verdade, astutos. Sabem muito bem o que fazem e onde querem ir, quando, em campanhas de alfabetização, “alimentam” os alfabetizandos de “slogans” alienadores, em nome, ainda, da neutralidade da educação. Objetivamente, porém, se identificam ambos – ingênuos e astutos.

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“ sangue salvador” do “analfabeto enferm o". E ainda quando as palavras das cart ilhas, os textos com elas elaborados – e isto raras vezes ocorre – coincidem com a realidade existencial dos alfabet izandos, de qualquer m aneira, são palavras e textos presenteados, como clic hês, e não cr iados por aqueles que deve- riam fazê- lo∗ .

Em geral, porém , tanto as palavras quanto os textos das cart ilhas nada têm que ver com a experiência existencial dos alfabet izandos. E .quando o têm , se esgota esta relação ao ser expressada de maneira paternalista, do que resulta serem t ratados os adultos de uma forma que não ousamos sequer chamar de infant il.

Este modo de t ratar os adultos analfabetos implícita uma deformada maneira de vê-los – com o se eles fossem totalm ente diferentes dos dem ais. Não se lhes reconhece a experiência existencial bem com o o acúm ulo de conhecim entos que esta experiência lhes deu e cont inua dando.

Com o seres passivos e dóceis, pois que assim são vistos e assim são t ratados, os alfabet izandos devem ir recebendo aquela “ t ransfusão” alienante da qual, por isto m esm o, não pode resultar nenhum a cont r ibuição ao processo de t ransform ação da realidade.

Que significação pode ter para alguém um texto que, além de co- locar uma questão absurda, dá um a resposta não m enos absurda: “Ada deu o dedo ao urubu? Duvido, responde o autor da pergunta, Ada deu o dedo à ave” !

Em primeiro lugar, não sabemos da existência de nenhum lugar no mundo em que alguém convide o urubu a pousar em seu dedo. Em segundo lugar, ao responder o autor à sua est ranha pergunta, duvidando de que Ada t ivesse dado seu dedo ao urubu, pois que o deu à ave, afirma que urubu não é ave.

Que significação, na verdade, podem ter, para homens e mulheres, camponeses ou urbanos, que passam um dia duro de t rabalho ou, mais duro ainda, sem t rabalho, textos com o estes, que devem ser m em orizados: “A asa é da ave” ; “Eva viu a uva; “João já sabe ler. Vejam a alegria em sua face. João agora vai conseguir um emprego” !

Textos, de m odo geral, ilust rados – casinhas simpát icas, acolhedoras, bem decoradas; casais r isonhos, de faces delicadas, às vezes ou quase sem pre brancos e louros; crianças bem nut r idas, bolsinha a t ira - colo, dizendo adeus aos papais para ir à escola, depois de um suculento café da m anhã...

Que podem um trabalhador camponês ou um t rabalhador urbano ret irar de posit ivo para seu quefazer no m undo, para com preender, cr it icam ente, a situação concreta de opressão em que se acham , at ravés de um t rabalho de alfabet ização em que se lhes diz, adocicadam ente, que a “ asa é da ave” ou que “Eva viu a uva”?

Reforçando o “silêncio” em que se acham as massas populares dom inadas pela prescrição de uma palavra veiculadora de uma ideologia da acomodação, não pode

∗ Pequenos textos de leitura podem e devem ser elaborados pelos educadores, desde que I) correspondam à realidade concreta dos alfabetizandos; II) sejam usados não na forma tradicional das chamadas "classes de leitura", mas em verdadeiros seminários de textos; Ill) funcionem como elementos motivadores aos alfabetizandos para que comecem eles mesmos a redigir também seus textos.

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jamais um tal t rabalho const ituir- se como um inst rumento auxiliar da t ransformação da realidade.

Mas, por out ro lado, na medida em que, em si mesma, esta alfabet ização não tem a força necessária para concret izar pelo m enos algum as das ilusões que veicula, com o por exem plo a de que o “analfabeto que aprende a ler consegue um em prego” , cedo ou tarde term ina por funcionar cont ra os objet ivos am aciadores do próprio sistem a, cuja ideologia ela reproduz.

Na proporção em que os ex- analfabetos, que foram “ t reinados” na leitura de textos sem a análise de sua vinculação com o contexto social, j á agora lendo, mesmo mecanicamente, procuram o emprego ou o melhor emprego e não os encontram, percebem a falácia daquela afirm ação irresponsável.

O feit iço, então, m ais um a vez, cai sobre o feit iceiro...

Para a concepção cr it ica, o analfabet ism o nem é um a “chaga” , nem uma “erva daninha” a ser erradicada, nem tampouco uma enferm idade, mas uma das expressões concretas de uma realidade social injusta. Não é um problema est r itamente lingüíst ico nem exclusivamente pedagógico, metodológico, mas polít ico, com o a alfabet ização at ravés da qual se pretende superá- lo. Proclamar sua neut ralidade, ingênua ou astutam ente, não afeta em nada a sua polit icidade int r ínseca.

Por esta razão é que, para a concepção cr it ica da alfabet ização, não será a par t ir da m era repet ição m ecânica de pa- pe- pi- po- pu, la - le- li- lo- lu, que permitem formar pula, pêlo, lá, li, pulo, lapa, lapela, pílula etc. que se desenvolverá nos alfabet izandos a consciência de seus direitos, com o sua inserção cr it ica na realidade. Pelo cont rár io, a alfabet ização nesta perspect iva, que não pode ser a das classes dom inantes, se instaura com o um processo de busca, de cr iação, em que os alfabet izandos são desafiados a perceber a significação profunda da linguagem e da palavra. Palavra que, na sit uação concreta em que se encont ram , lhes está sendo negada. No fundo, negar a palavra implica em algo mais. Implica em negar o direito de “pronunciar o mundo” ∗ . Por isto, “dizer a palavra” não é repet ir uma palavra qualquer. Nisto consiste um dos sofism as da prát ica reacionária da alfabet ização.

O aprendizado da leitura e da escrita não pode ser feito com o algo paralelo ou quase paralelo à realidade concreta dos alfabet izandos. Aquele aprendizado, por isto m esm o, dem anda a com preensão da significação profunda da palavra, a que antes fizemos referência.

Mais que escrever e ler que a “asa é da ave” , os alfabet izandos necessitam perceber a necessidade de um out ro aprendizado: o de “escrever” a sua vida, o de “ ler” a sua realidade, o que não será possível se não tornam a história nas mãos para, fazendo-a, por ela serem feitos e refeitos.

Daí que, nesta perspect iva cr ít ica, se faça tão im portante desenvolver , nos educandos com o no educador, um pensar certo sobre a realidade. E isto não se faz at ravés de blá- blá- blá mas do respeito à unidade ent re prát ica e teor ia.

∗ A este propósito, ver Ernani Maria Fiori, Prefácio a Pedagogia do Oprimido, e Paulo Freire, nesse mesmo livro. Ed. Paz e Terra, Rio, 1997, 4ª ed. (N. E.)

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É necessário, realm ente, libertar a teoria,do equívoco de que é com um ente vít im a, não apenas na América Lat ina, segundo o qual é ident ificada com verbalismo, com blá- blá- blá, com perda de tempo.

I sto é o que explica expressões tão repet idas ent re nós, com o: “Se a educação lat ino-am ericana não fosse teór ica, m as prát ica, out ros ser iam seus resultados” , ou “é necessário dim inuir as classes teóricas” .

Explica também a divisão que se faz ent re homens e mulheres teóricos e prát icos, toma ndo- se aqueles e aquelas à margem da ação, enquanto os segundos a realizam. A separação, contudo, dever ia ser feit a ent re teór icos e verbalistas. Neste caso, os primeiros seriam necessariamente prát icos também.

O que se deve opor à prát ica não é a teor ia, de que é inseparável, mas o blá- blá- blá ou o falso pensar.

Assim como não é possível ident ificar teoria com verbalismo, tampouco o é ident ificar prát ica com at iv ism o. Ao verbalism o falta a ação; ao at iv ism o, a reflexão crít ica sobre a ação.

Não é est ranho, portanto, que os verbalistas se isolem em suas torres de marfim e considerem desprezíveis os que se dão à ação, enquanto os at iv istas considerem os que pensam sobre a ação e para ela, com o “ intelectuais nocivos” , “ teór icos” e “ filósofos” que nada fazem senão obstaculizar sua at iv idade.

Para m im , que m e situo ent re os que não aceitam a separação im possível ent re prát ica e teor ia, toda prát ica educat iva im plica num a teor ia educat iva.

Por isso é que, ao falar agora de antagônicas concepções da alfabet ização de adultos, não poderei deixar de, sim ultaneam ente, fazer referência a aspectos de suas respect ivas prát icas.

A fundamentação teórica da m inha prát ica, por exemplo, se explica ao mesmo tempo nela, não como algo acabado, mas como um movimento dinâmico em que ambas, prát ica e teor ia, se fazem e se re- fazem.

Desta form a, m uita coisa que hoje ainda m e parece válida, não só na prát ica realizada e realizando- se, m as na interpretação teórica que fiz dela, poderá vir a ser superada amanhã, não só por m im, mas por out ros.

A condição fundamental para isto, quanto a m im , é que esteja, de um lado, constantem ente aberto às cr it icas que m e façam ; e out ro, que seja capaz de m anter sem pre viva a curiosidade, disposto sem pre a ret ificar- me, em função dos próprios achados de minhas futuras prát icas e da prát ica dos dem ais.

Quanto aos out ros, os que põem em prát ica a m inha prát ica, que se esforcem por recriá- la, repensando também meu pensamento. E ao fazê- lo, que tenham em mente que nenhum a prát ica educat iva se dá no ar, m as num contexto concreto, histór ico, social, cultural, econôm ico, polít ico, não necessar iam ente idênt ico a out ro contexto.

A compreensão crít ica de m inha prát ica no Brasil, até março de 1964, por exemplo, exige a com preensão daquele contexto. Minha prát ica, enquanto social, não m e

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pertencia. Daí que não seja possível entender a prát ica que t ive, em toda a sua extensão, sem a inteligência do clima histórico em que se deu.

Este esforço, que se exige de m im e dos demais, salienta, mais uma vez, a unidade da prát ica e da teor ia.

Mas a com preensão da unidade da prát ica e da teoria, no dom ínio da educação, dem anda a com preensão, tam bém , da unidade ent re a teoria e a prát ica social que se dá num a sociedade. Assim , a teoria que deve inform ar a prát ica geral das classes dom inantes, de que a educat iva é uma dimensão, não pode ser a mesma que deve dar supor- te às reiv indicações das classes dom inadas, na sua prát ica.

Daí a im possibilidade de neut ralidade da prát ica educat iva com o da teoria que a ela corresponde.

Uma coisa, pois, é a unidade ent re prát ica e teor ia num a educação or ientada no sent ido da libertação, out ra é a m esm a unidade num a form a de educação para a “ dom est icação” .

As classes dom inantes não têm por que temer, por exemplo, a unidade da prát ica e da teor ia, na cap acit ação – para falar só nesta – da chamada mão- de- obra qualif icada, desde, porém , que nesta unidade, a teor ia de que se fale seja a “ teor ia neut ra” de um a “ técnica tam bém neut ra” .

A alfabet ização de adultos não pode escapar a esta alternat iva.

A primeira exigência prát ica que a concepção cr ít ica da alfabet ização se im põe é que as palavras geradoras, com as quais os alfabet izandos com eçam sua alfabet ização como sujeitos do processo, sejam buscadas em seu “universo vocabular m ínimo” , que envolve sua tem át ica significat iva.

Som ente a part ir da invest igação deste universo vocabular m ínim o é que o educador pode organizar o programa que, desta forma, vem dos alfabet izandos para a eles voltar, não com o dissertação m as com o problem at ização∗ .

Na prát ica cr it icada, pelo cont rár io, o educador, arbit rar iam ente – pelo menos do ponto de vista sócio - cultural – elege, em sua biblioteca, as palavras geradoras com as quais fabr ica sua cart ilha à qual, não raro, se reconhece validade ao nível de todo o país.

Para a visão crít ica, advert ida com relação aos níveis da linguagem , ent re eles o pragm át ico, de im portância fundam ental para a eleição das palavras geradoras, estas não podem ser selecionadas à luz de um critério puramente fonét ico. Uma palavra pode ter um a força especial em uma área e não tê- la em out ra, às vezes dent ro de uma mesma cidade.

Na linha destas reflexões, observem os algo m ais. Enquanto que, na concepção e na prát ica m ecanicista da alfabet ização o autor da cart ilha elege as palavras, as

∗A respeito, quer dizer, do ponto de vista da alfabetização, ver Paulo Freire. Educação como Prática da

Liberdade, Ed. Paz e Terra, Rio, 1975, 6ª ed. – Do ponto de vista da post-alfabetização – Pedagogia do Oprimido, Ed. Paz e Terra, Rio, 1975, 4ª ed.

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decom põe na etapa da análise e com põe, na síntese, out ras palavras com as sílabas encont radas para, em seguida, com as palavras cr iadas, redigir textos turno os citados, na prát ica que defendem os as palavras geradoras – palavras do povo – são postas em situações problem as (codific ações)∗ , com o desafios que exigem resposta dos alfabet izandos. Problemat izar a palavra que veio do povo significa problemat izar a tem át ica a ela refer ida, o que envolve necessariam ente a análise da realidade, que se vai desvelando com a superação do conhecimento puramente sensível dos fatos pela razão de ser dos mesmos. Assim , e pouco a pouco, os alfabet izandos vão percebendo que o fato de, como seres humanos, falarem, não significa ainda que “dizem sua palavra” .

É necessár io, na verdade, reconhecer que o analfabet ismo não é em si um freio original. Resulta de um freio anterior e passa a tornar- se freio, Ninguém é analfabeto por eleição, m as com o conseqüência das condições objet ivas em que se encont ra. Em certas circunstâncias, “ o analfabeto é o hom em que não necessit a ler∗ ∗ , em out ras, é aquele ou aquela a quem foi negado o direito de ler.

Em ambos os casos, não há eleição. O primeiro vive numa cultura cuja comunicação e cuja memória são audit ivas, se não em termos totais, em termos preponderantes. Neste caso, a palavra escr ita não tem significação. Para que se int roduzisse a palavra escr ita e, com ela, a alfabet ização, em um a realidade com o esta, com êxito, ser ia necessário que, concom itantem ente, se operasse um a t ransform ação capaz de m udar qualitat ivam ente a situação. Muitos casos de analfabet ism o regressivo terão ai sua explicação. São o resultado de cam panhas de alfabet ização m essiânica ou ingenuam ente concebidas para áreas cuja m em ória é preponderante ou totalm ente oral.

Vias várias oportunidades em que tenho conversado com cam poneses chilenos, sobretudo em áreas em que se experimentaram conflit ivamente em defesa da reform a agrár ia, tenho escutado expressões com o estas: “Antes da reform a agrár ia não precisávamos das let ras. Primeiro, porque não pensávamos. Nosso pensam ento era o do pat rão. Segundo, porque não t ínham os o que fazer com as let ras. Agora, a coisa é diferente” .

No segundo caso, o analfabeto é aquele ou aquela que, “part icipando” de um a cultura let rada, não t iveram a oportunidade de alfabet izar- se.

Nunca me esqueço da análise feita por um camponês do nordeste brasileiro, no momento em que discut ia duas codificações que apresentavam, a primeira, um índio caçando, com seu arco e sua flecha; a segunda, um cam ponês com o ele, caçando também, com uma espingarda.

“Ent re esses dois caçadores, disse, som ente o segundo pode que seja analfabeto. O primeiro, não”.

Por quê? lhe perguntei. Rindo um riso de quem se espantava com o meu porquê, respondeu: “Não se pode dizer que o índio é analfabeto porque vive numa cultura que não conhece as let ras. Pra ser analfabeto é preciso viver no m eio das let ras e não conhecer elas” .

∗ A propósito de Codificação ver Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido. ∗ ∗ Álvaro Vieira Pinto, Consciência e Realidade Nacional, ISEB, Rio, 1960.

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Na verdade, som ente na m edida em que aos alfabet izandos se problem at iza o próprio analfabet ismo é que é possível entendê- lo em sua explicação mais profunda.

Não será com “Eva viu a uva” , a “Asa é da ave” , com perguntar- lhes se “Ada deu o dedo ao urubu” que se logra tal objet ivo.

Assim , reinsistam os, enquanto na prát ica reacionária os alfabet izandos não desenvolvem nem podem desenvolver uma visão lúcida de sua realidade, na prát ica aqui defendida eles a vão percebendo com o um a totalidade. Vão superando, desta forma, o que chamamos visão focalista da realidade, segundo a qual as parcialidades de um a totalidade são vistas não integradas ent re si, na com posição do todo.

Na medida em que os alfabet izandos vão organizando uma forma cada vez mais justa de pensar, at ravés da problem at ização de seu m undo, da análise crít ica de sua prát ica, irão podendo atuar cada vez m ais seguram ente no m undo.

A alfabet ização se faz, então, um quefazer global, que envolve os alfabet izandos em suas relações com o m undo e com os out ros. Mas, ao fazer- se este quefazer global, fundado na prát ica social dos alfabet izandos, cont r ibui para que estes se assum am com o seres do quefazer – da práxis. Vale dizer, com o seres que, t ransform ando o mundo com seu t rabalho, criam o seu mundo. Este mundo, criado pela t ransformação do mundo que não criaram e que const itui seu domínio, é o mundo da cultura que se alonga no mundo da história.

Dest a forma, ao perceberem o significado criador e recriador de seu t rabalho t ransformador, descobrem um sent ido novo em sua ação, por exemplo, de cortar uma árvore, de dividi- la em pedaços, de t ratá- los de acordo com um plano previamente estabelecido e que, ao ser concret izado, dá lugar a algo que já não é a árvore. Percebem , finalm ente, que este algo, produto de seu esforço, é um objeto cultural.

De descoberta em descoberta, alcançam o fundam ental:

a) que os freios a seu direito de “dizer sua palavra” estão em relação direta com a não- apropriação por eles dos produtos de seu t rabalho.

b) que o fato de t rabalhar lhes proporciona um certo conhecim ento, não im porta se são analfabetos.

c) que, finalm ente, ent re os seres hum anos não há absolut ização da ignorância nem do saber. Ninguém sabe tudo; ninguém ignora tudo.

Nas experiências de que part icipei ontem no Brasil, como nas de que part icipo hoje no Chile, sempre foram confirmadas estas afirmações.

“Agora sei que sou culto” , disse, certa vez, um velho cam ponês chileno ao discut ir , at ravés de codif icações, a signif icação do t rabalho. E ao se lhe perguntar porque se sabia culto, respondeu seguro: “Porque t rabalho e t rabalhando t ransformo o mundo” .

Esta afirmação, muito comum também no Brasil, revela a superação que vão fazendo do conhecim ento, ao nível preponderantem ente sensível, de sua presença no m undo, pela assunção cr ít ica desta presença, o que im plica no reconhecim ento de não apenas estarem no mundo, mas com o mundo.

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Saber que é culto porque t rabalha e t rabalhando transforma o mundo, mesmo que ent re o m om ento do reconhecim ento deste fato e a real t ransform ação da sociedade haja muito ainda o que fazer é algo, porém, que não se compara com a monótona repet ição dos ba- be- bi- bo- bu.

“Me agrada discut ir sobre isto, disse uma mulher, também chilena, apontando para a codificação de um a situação existencial de sua área, porque vivo assim . Mas, cont inuou, enquanto vivo, não vejo. Agora sim , observo com o vivo” .

Desafiada por sua própria situação existencial, representada na codificação, a m ulher foi capaz, num a espécie de “em ersão” de sua form a de exist ir , de “adm irá- la” e percebê- la com o até então não o f izera. Ter present if icada à sua consciência sua maneira de exist ir , descrevê- la, analisá- la, significa, em últ ima análise, desvelar a realidade, mesmo que não signifique, ainda, um engajamento polít ico para a sua t ransform ação.

Afirmação sim ilar t ivemos oportunidade de ouvir, no ano passado – 1967 – de um hom em em Nova York, durante a discussão de um a fotografia de t recho de uma rua das redondezas de seu bairro.

Olhando silenciosamente a foto em seus pormenores – latas de lixo, pouca higiene, aspectos t ípicos de um a área discr im inada – disse, de repente: “Vivo aqui. Ando diariamente nessas ruas. Não posso dizer que jamais t ivesse visto isto. Agora, porém , percebo que não percebia."∗

No fundo, aquele hom em de Nova York percebia, naquela noite, a sua percepção anter ior, cuja deform ação ele pôde ret ificar ao tom ar distância de sua realidade, at ravés da representação da m esm a.

É verdade, tam bém , que nem sem pre esta ret ificação da percepção anter ior se dá facilm ente. É que a relação ent re o sujeito e o objeto é tal que o desvelam ento da objet iv idade afeta igualm ente a subjet ividade e, às vezes, de form a intensam ente dramát ica e mesmo dolorosa.

Em certas circunstâncias, num a espécie de “m anha da consciência” , “ prefere- se” à aceitação do real, com o é, a sua ocultação, f icando - se com o ilusório, que se transforma em real.

Na m esm a experiência de Nova York, t ive oportunidade de constatar igualm ente este fato. Discut ia- se nout ro grupo um a foto- m ontagem , bastante bem feita, de um t recho da cidade que apresentava diferentes níveis sociais, caracter izados pelos própr ios edifícios.

O grupo que debat ia estava, indubitavelmente, situado num dos úl t im os escalões. Convidados os part icipantes a analisar a foto- montagem e a situar sua área ent re os diversos níveis, o fizeram, colocando, porém, sua área numa faixa intermediária ∗ ∗.

∗ Este trabalho é realizado por uma Instituição chamada Full Circle, dirigida por Roberto Fox, um sacerdote cat6lico, atuando ao nível da post-alfabetização. Há algo de similar entre o que realizam seus educadores e o que fizemos no Brasil e tentamos no Chile. Nunca houve, porém, nenhuma influência de nossa parte sobre sua concepção da educação. Conhecemo-nos quando os visitei por sugestão de Ivan Illich. ∗ ∗ Em Pedagogia do Oprimido o autor se refere a outra observação feita na mesma experiência de Nova York. (N.E.)

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Esta m esm a resistência a aceitar o real – uma forma de defesa – t enho encont rado tam bém ent re t rabalhadores cam poneses e t rabalhadores urbanos na Am érica Lat ina. Não têm sido raros no Chile os que, ao lado dos muitos que vão decifrando sua realidade em term os crít icos, expressam , no debate em torno de sua nova experiência no “asentam iento” , um a certa nostalgia do ant igo pat rão.

Condicionados pela ideologia dom inante, não apenas obliteram sua capacidade de percepção do real, mas também, às vezes, se “ent regam” , docilmente, aos m itos daquela ideologia.

A alfabet ização de adultos, tal qual a entendemos, como a post - alfabet ização, t em aí um dos pontos cruciais a enfrentar.

“Descubro agora” , disse out ro camponês chileno, ao se lhe problemat izarem as relações hom em- mundo, “que não há homem sem mundo” E, ao perguntar- lhe o educador, em nova problemat ização: adm it indo- se que todos os seres hum anos morressem, mas ficassem as árvores, os pássaros, os animais, os mares, os r ios, a Cordilheira dos Andes, seria isto mundo? “Não!” , respondeu decidido: “Faltaria quem dissesse: isto é mundo” .

Com esta resposta, o f ilósofo cam ponês, que a concepção elit ista classif icar ia de “ ignorante absoluto” , colocou a questão dialét ica da subjet iv idade- objet iv idade.

“Quando éramos ‘inquilinos’” , disse out ro camponês, depois de dois meses de par t icipação nas at ividades de um "Círculo de Cultura” ∗ num “asentam iento” , “e o pat rão nos chamava de ingênuos, dizíamos: obrigado, pat rão. Para nós, aquilo era um elogio. Agora, que estamos ficando crít icos, sabemos o que queria dizer com ingênuos. Chamava- nos de bobos” . E que é ser crít ico? lhe perguntam os. “É pensar certo. É ver a realidade com o ela é” , respondeu.

Há algo finalm ente que gostar ia de considerar. É que todas estas reações orais que se vão dando durante as discussões nos Círculos de Cultura, devem ser t ransformadas em textos que, ent regues aos alfabet izandos, passam a ser por eles discut idos.

I sto não tem nada que ver, realm ente, com a prát ica cr it icada, em que os alfabet izandos repetem duas, t rês vezes, para m em orizar, que a “asa é da ave” .

Assim , som ente a alfabet ização que, fundando- se na prát ica social dos alfabet izandos, associa a aprendizagem da leitura e da escrita, como um ato cr iador, ao exercício da com preensão cr it ica daquela prát ica, sem ter, contudo, a ilusão de ser um a alavanca da libertação, ofere ce um a cont r ibuição a este processo.

Dai que não possa ser este um quefazer das classes dom inantes.

∗ Sobre "Círculo de Cultura”, ver Paulo Freire, Educação como Prática da Liberdade. (N. E.)

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Os camponeses e seus textos de leitura 1

Sant iago- 1968

Transformar o mundo at ravés de seu t rabalho, “dizer” o mundo, expressá- lo e expressar- se são o próprio dos seres hum anos.

A educação, qualquer que seja o nível em que se dê, se fará tão m ais verdadeira quanto m ais est im ule o desenvolvim ento desta necessidade radical dos seres humanos, a de sua expressividade.

É exatam ente isto o que não faz a educação que costum o cham ar de “bancária” , em que o educador subst itui a expressiv idade pela doação de expressões que o educando deve ir “ capitalizando” . Quanto m ais eficientem ente o faça tanto m elhor educando será considerado.

Na alfabet ização de adultos, com o na post - alfabet ização, o domínio da linguagem oral e escrita const itui um a das dim ensões do processo da expressividade. O aprendizado da leitura e da escr ita, por isso m esm o, não terá significado real se se faz at ravés da repet ição pura- mente mecânica de sílabas. Este aprendizado só é válido quando, simultaneamente com o domínio do mecanismo da formação vocabular, o educando vai percebendo o profundo sent ido da linguagem. Quando vai percebendo a solidar iedade que há ent re a linguagem- pensamento e realidade, cuja t ransform ação, ao exigir novas form as de com preensão, coloca tam bém a necessidade de novas formas de expressão.

Tal é o caso da reform a agrária. Transform ada a est rutura do lat ifúndio, de que resultou a do “asentam iento” , não ser ia possível deixar de esperar novas formas de expressão e de pensam ento- linguagem.

Na est rutura do “asentam iento” , palavras e expressões que const ituíam constelações culturais e envolviam um a com preensão do m undo, t ípica da est rutura lat ifundista, tendem a ir esvaziando- se de sua ant iga força∗.

“Pat rão. Sim , pat rão. Que posso fazer se sou um cam ponês. Fale, que nós seguim os. Se o pat rão disse, é verdade. Sabe com quem está falando?” etc., são algum as destas palavras e expressões incom pat íveis com a est rutura do “asentam iento” , enquanto esta é um a est rutura que se dem ocrat iza.

Agora bem , se ao lado destas t ransform ações se desenvolve um a educação capaz de ajudar a com preensão crít ica da m udança operada – que at ingiu igualmente a maneira de t rabalhar –, esta educação ajudará tam bém a instauração de um novo pensam ento- linguagem.

1 Este texto, como outros que fazem parte deste volume, foi escrito para um seminário realizado por uma das Equipes Centrais que coordenavam trabalhos de alfabetização de adultos em áreas rurais do Chile. ∗ Analisando as mudanças de linguagem, em sociedades em processo de democratização, diz Barbu: "Novas significações são dadas a velhas palavras e novas palavras são cunhadas para designar velhas coisas.” Barbu, Zevedei, “Democracy and Dictatorship” – Their Psychology and Patterns of Life. Routledge and Kegan Paul, Londres, 1956.

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Basta sublinhar este aspecto das relações ent re pensam ento- linguagem e est rutura social para que a alfabet ização de adultos e a post - alfabet ização tenham um significado dist into.

Advert idos destas relações, os ed ucadores darão o m áxim o de atenção à escolha das palavras geradoras, bem com o à redação dos textos de leitura. Estes devem levar em conta homens e mulheres em seu contexto em t ransformação. Não podem ser meras narrações da nova realidade, nem tam pouco revestir - se de sent ido paternalista.

Seu conteúdo, sua form a, sua extensão, sua com plexidade crescente devem ser ser iam ente considerados quando de sua elaboração.

Seu objet ivo não é fazer a descr ição de algo a ser m em orizado. Pelo cont rár io, é problemat izar situações. É necessário que os textos sejam em si um desafio e com o tal sejam tom ados pelos educandos e pelo educador para que, dialogicam ente, penet rem em sua com preensão. Daí que jam ais devam converter- se em “cant igas de ninar” que, em lugar de despertar a consciência cr it ica, a adorm ecem . “As classes de leitura” , em lugar de seguirem a rot ina normal que as caracteriza, devem ser verdadeiros sem inários de leitura. Haverá sempre oportunidade, nestes sem inários, para se estabelecerem as relações ent re um t recho do texto em discussão e aspectos vários da realidade do “asentam iento” .

Uma palavra, uma afirmação cont ida no texto que se analisa, podem viabilizar a discussão em torno da produção do “asentam iento” , de um a técnica m ais adequada às novas condições, a propósito de um problema de saúde, em torno da necessidade de urna permanente formação com que se responda aos novos desafios.

Tudo isto im plica não apenas num a r igorosa capacitação dos educadores de base, mas também numa permanente avaliação de seu t rabalho.

Avaliação e não inspeção. Nesta, ser iam m eros objetos da vigilância da Equipe Cent ral. Naquela, são tão sujeitos quanto a Equipe Cent ral no ato de, tom ando distância do t rabalho em realização, fazer a sua crít ica.

Entendida assim , a avaliação não é o at o pelo qual A avalia B . É o ato por m eio do qual A e B avaliam juntos um a prát ica, seu desenvolvim ento, os obstáculos encont rados ou os erros e equívocos porventura com et idos. Daí o seu caráter dialógico.

“Tom ando distância” da ação realizada ou realizando- se, os avaliadores a examinam. Desta form a, m uita coisa que antes (durante o tem po da ação) não era percebida, agora aparece de form a destacada diante dos avaliadores.

Neste sent ido, em lugar de ser um inst rumento de fiscalização, a avaliação é a problemat ização da própr ia ação.

É preciso que os membros da Equipe Central se convençam, hum ildemente, de que têm m uito o que aprender com os educadores que se acham diretam ente ligados às bases populares, com o estes com as bases.

Sem esta humildade, jamais admit irá a Equipe Central qualquer inadequacidade ent re sua visão da realidade e esta. Assim , se algo não anda bem , a causa deve estar na incapacidade dos educadores de base, nunca na insuficiência teór ica da Equipe

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Cent ral. Pensando possuir a verdade, decreta a sua infalibilidade. Daí que, em tal hipótese, avaliar seja, para ela, inspecionar.

Assim , quanto mais burocrát ica seja uma Equipe Central, não só do ponto de vista adm inist rat ivo m as sobretudo m ental, tanto m ais est reita e inspetora será. Ao cont rár io, t anto m ais seja ela aberta e disponível à cr iat iv idade, ant idogm át ica, quanto m ais avaliadora, no sent ido aqui descrito, será.

Além destes textos elaborados pela Equipe Cent ral, se faz absolutam ente indispensável o aproveitamento dos redigidos pelos camponeses. A pouco e pouco estes devem ir mult iplicando- se, o que não significa dever a Equipe Cent ral parar o seu esforço de redação ou de aproveitam ento de um ou out ro texto não redigido por ela (por um especialista, por exemplo, no campo da economia rural, da saúde et c. ) , quando necessário.

Neste sent ido, os educadores devem aproveitar toda oportunidade para est im ular os cam poneses a que exponham suas observações, suas dúvidas, suas crít icas.

Durante a discussão de um a situação problem át ica – codif icação – os educadores devem solicitar aos camponeses que redijam, primeiramente no quadro- negro, depois, num a folha de papel, suas observações – uma simples frase, não importa.

Estes dois momentos da redação têm objet ivos dist intos. O primeiro tem por finalidade propor ao grupo a discussão do conteúdo do texto redigido por um de seus companheiros. Na medida em que a experiência se vá afirmando, é importante que caiba ao autor do texto a coordenação da discussão em torno de sua com preensão.

O segundo, no qual o educando redige seu pequeno texto numa folha de papel, tem com o fim seu aproveitam ento poster ior num a espécie de antologia de textos cam poneses a ser organizada pela Equipe Cent ral, com a part icipação de educadores de base e, tam bém , de alguns cam poneses. Antologia não som ente de textos dos part icipantes do Cent ro de Educação de um “asentam iento” , m as dos part icipantes dos Cent ros de todos os “asentam ientos” de um a zona.

Selecionados os textos e classif icados em função de sua tem át ica, a Equipe Cent ral redigirá comentários em forma simples, de caráter problemat izador, a propósito de cada um.

Uma out ra maneira de recolher o discurso camponês, convertendo- o em textos de leitura, ser ia a de gravar as discussões nos Cent ros de Educação ou Círculos de Cultura.

Pensemos, por exem plo, num a área em que haja t rês ou quat ro “asentam ientos” e em cada um dos quais existam “n” Círculos de Cultura funcionando ainda na etapa de alfabet ização.

Com o sabem os, a codificação que os cam poneses têm diante de si não é um a sim ples ajuda v isual de que o educador se serve para “dar” uma aula melhor. A codificação, pelo cont rár io, é um objeto de conhecim ento que, m ediat izando educador e educandos, se dá a seu desvelam ento.

Representando um aspecto da realidade concreta dos cam poneses, a codificação t em escrita em si a palavra geradora a ela refer ida ou a algum de seus elem entos.

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Ao descodif icarem a codif icação, com a part icipação do educador, os cam poneses analisam sua realidade e expressam , em seu discurso, os níveis de percepção de si mesmos em suas relações com a objet ividade. Revelam os condicionamentos ideológicos a que est iveram submet idos em sua experiência na “cultura do silêncio” , nas est ruturas do lat ifúndio.

A prát ica nos tem dem onst rado, a todos os que tem os part icipado de t rabalhos como este, a im portância e a r iqueza do discurso dos alfabet izandos, ao analisar sua realidade representada na codificação. I m portância e r iqueza, qualquer que seja o ângulo em que as encaremos – seja o da form a, seja o do conteúdo, que envolve a análise lingüíst ica, a qual, por sua vez, se alonga na ideológica e polít ica.

A existência deste material abre à Equipe Central uma série de possibilidades que não podem ser desprezadas. As sugestões que farei em torno de tais possibilidades desafiarão, certam ente, a Equipe Cent ral a perceber out ras que m e tenham passado despercebidas.

Um primeiro emprego deste material, antes mesmo de t ranscritos os debates em torno das codificações, poderia ser o da realização de sem inários de avaliação em que os educadores de uma área, escutando as gravações, discut ir iam ent re si, com representantes da Equipe Cent ral, seu procedim ento durante o processo da descodificação. Neste m om ento, no contexto do sem inár io de avaliação, os educadores estar iam tom ando distância de sua prát ica anter ior, percebendo, assim , seus acertos e seus equívocos. Na m esm a linha destes sem inários de avaliação seria fundam ental que educadores, t rabalhando na área “A ” , escutassem as gravações dos debates realizados nos Círculos de Cultura da área “B ” e v ice- versa.

Esforço idênt ico poder ia ser feito ao nível dos alfabet izandos. Desta form a, cam poneses da área “A ” escutar iam e debater iam as gravações das descodificações realizadas por companheiros da área “B ” , em torno das m esm as codificações que eles também haviam descodificado e v ice- versa.

Um empenho como este ajudaria a alfabet izandos e alfabet izadores a ir superando o que costum o cham ar de visão focalista da realidade e ir ganhando a com preensão da totalidade.

Parece- me igualmente indispensável que a Equipe Cent ral m ot ive os especialistas – agrônom os, técnicos agrícolas, educadoras dom ést icas, sanitar istas, cooperat iv istas, veter inários – envolvidos nas diferentes at iv idades do “asentam iento” , para que, em seminários também, analisem o discurso dos camponeses em que, repitamos, expressam a forma como se vêem em suas relações com o mundo.

É preciso que esses técnicos superem a visão deform ada da especialidade, a que t ransforma a especialização em especialismo, escravizando- os a um a percepção est reita dos problem as.

Agrônom os, técnicos agrícolas, sanitar istas, cooperat iv istas, alfabet izadores, todos nós tem os m uito o que aprender com os cam poneses e se a isto nos recusam os, nada a eles podemos ensinar.

Procurar com preender o discurso cam ponês será um passo decisivo na superação daquela percepção est reita dos problem as a que m e refer i acim a.

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Outra possibilidade de aproveitam ento da gravação das descodificações poderia ser a de, discut indo- as com os próprios cam poneses, m ot ivá- los a que fizessem montagens de dram at izações em torno de fatos por eles vividos e por eles narrados em seus debat es.

A palavra luta, por exemplo, têm suscitado em vários Círculos de Cultura de diferentes “asentam ientos” , discussões bem vivas em que os cam poneses falam do que significou para eles a conquista de um “ fundo” , a luta para obter o direito à terra. São discussões em que contam um pouco de sua histór ia, que não se encont ra nos com pêndios convencionais.

Dramat izar estes fatos é não apenas uma forma de est imular a expressividade dos camp oneses m as tam bém de desenvolver a sua consciência polít ica.

Por out ro lado, no m om ento em que estas gravações com eçassem a cobrir todas as áreas de reforma agrária do pais, podemos imaginar o alcance polít ico- pedagógico que o intercâm bio do discurso cam ponês poderia ter. Este intercâmbio poderia ser est imulado também através do programa radiofônico sob a responsabilidade do “ I nst ituto de Desarrollo Agropecuario” que poderia começar a t ransm it ir alguns dos debates gravados, seguidos por comentários, em linguagem simples, feitos pela Equipe Central.

Há algo m ais que a análise deste discurso pode proporcionar: o reconhecim ento de uma série de preocupações das comunidades camponesas que, em últ ima análise, revelam uma temát ica a ser t ratada interdisciplinarmente e na qual se poderia basear a organização do conteúdo program át ico para a post - alfabet ização.

Por que, ao pensar- se no que deve vir depois da alfabet ização, se pensa sem pre no programa da escola primária, na sua seriação t radicional? É como se a alfabet ização dos adultos, m ais rápida ou m enos rápida, fosse um “ t ratam ento” necessário que se lhes aplicasse para que depois at ravessassem a monotonia da escola primária convencional.

Um a alfabet ização de adultos que rom pe com os esquem as t radicionais não pode, por isso mesmo, prolongar- se numa post - alfabet ização que a negue.

Tão ligada ao esforço de produção quanto a alfabet ização, a post - alfabet ização nos “asentam ientos” há de ser, com o aquela, um ato de conhecim ento e não de t ransferência deste. Seu conteúdo program át ico, part indo da realidade concreta dos cam poneses, deve oferecer- lhes a possibilidade de ir superando o conhecimento ao nível preponderantem ente “ sensível” das coisas e dos fatos pela “ razão de ser” dos mesmos.

Daí que, apoiada na prát ica dos cam p oneses, a post - alfabet ização nos “asentam ientos” deva oferecer- lhes, em níveis que se vão ampliando, um conhecim ento cada vez m ais cient if ico de seu quefazer e de sua realidade.

A análise das descodificações gravadas proporciona a apreensão de tem as básicos, capazes de ser desdobrados em unidades de aprendizagem nos m ais variados cam pos. No da agr icultura, no da saúde, no da m atem át ica, no da ecologia, no da geografia, no da histór ia, no da econom ia etc. O im portante é que todos estes estudos se façam sem pre em função da realidade concreta dos cam poneses e de sua prát ica nela.

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Finalm ente, t ranscr itas as gravações das descodif icações, a Equipe Cent ral, assessorada por educadores de base e líderes cam poneses, organizaria livros de t ex t os – as antologias cam ponesas. Livros que poderiam ser acrescidos de um ou out ro texto redigido pela equipe, como sugerimos na primeira parte deste t rabalho.

Da mesma forma como as gravações, os livros seriam intercambiados de área à área.

Ao estudar seu própr io texto ou o texto de com panheiros de out ra área, os cam poneses estar iam estudando o discurso que brotou da descodificação de um a tem át ica.

Ao discut ir e não apenas ao ler o discurso anter ior, far iam a crít ica deste discurso, com um novo, a ser gravado também. O discurso sobre o discurso anter ior, que implica no conhecimento do conhecimento anterior, daria lugar a um novo livro, um segundo livro de leitura, cada vez mais r ico, mais crít ico, mais plural em sua tem át ica.

Desta m aneira, se estar ia tentando um esforço sério no sen t ido do desenvolvim ento da expressividade dos camponeses que se ir iam inserindo cr it icamente na realidade do “asentam iento” . I nserção crít ica por meio da qual ir iam ganhando mais rapidam ente a clara com preensão de que à nova est rutura do “asentam iento” corresponde um novo pensamento- linguagem.

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Ação cultural e reforma agrária

Sant iago, 1968.

I ncidindo sobre a est rutura do lat ifúndio, t ransformando- a nout ra, t ransitór ia, a do “asentam iento” , a reforma agrária exige um permanente pensar crít ico em torno da ação t ransformadora mesma e dos resultados que dela se obtenham.

Qualquer postura ingênua em face deste processo, da qual resultem quefazeres igualmente ingênuos, pode conduzir a erros e a equívocos funestos.

Um desses equívocos, por,exemplo, pode ser o de reduzir a ação t ransformadora a um ato m ecânico, at ravés do qual a est rutura do lat ifúndio cederia seu lugar à do “asentam iento” , como quando alguém, mecanicamente, subst itui uma cadeira por out ra, ou a desloca de um lugar a out ro.

O equívoco fundamental a que esta visão, na m elhor das hipóteses acrít ica, pode levar, está em que se pretenda operar no domínio histórico- cultural, especif icam ente humano, em que se dá a reforma agrária, como quem se comporta no domínio das coisas.

Mecanicism o, tecnicism o, economicismo são dimensões de uma mesma percepção acrít ica do processo da reforma agrária. I mplicam todas elas na m inim ização dos cam poneses, com o puros objetos da t ransform ação. Dai que, num a tal perspect iva, de caráter reform ista, o im portante seja fazer as mudanças para e sobre os cam poneses, com o objetos, e não com eles, como sujeitos, também, da t ransform ação.

Se é indispensável que os cam poneses adotem novos procedim entos técnicos para o aum ento da produção, então não há out ra coisa a fazer senão “estender” a eles as técnicas dos especialistas, com as quais se pretende subst ituir seus procedim entos empíricos.

Desta form a, se esquece de que as técnicas, o saber cient íf ico, assim com o o procedimento empír ico dos camponeses se encont ram condicionados histór ico-culturalm ente. Neste sent ido são m anifestações culturais tanto as técnicas dos especialistas quanto o com portam ento em pír ico dos cam poneses.

Subest im ar a capacidade cr iadora e recr iadora dos cam poneses, desprezar seus conhecim entos, não im porta o nível em que se achem tentar “ enchê- los” com o que aos técnicos, lhes parece certo, são expressões, em últ im a análise, da ideologia dominante.

Não queremos, contudo, com isto dizer que os camponeses devam permanecer no estado em que se encont ram com relação a seu enfrentam ento com o m undo natural e à sua posição em face da vida polít ica do pais. Querem os afirm ar que eles não devem ser considerados como “vasilhas” vazias nas quais se vá depositando o conhecim ento dos especialistas, m as, pelo cont rár io, sujeitos, também, do processo de sua capacit ação. Capacit ação indispensável ao aum ento da produção, cuj a necessidade, dem asiado óbvia, não necessita ser discut ida. O que, porém , não apenas

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se pode m as se deve discut ir , é a form a de com preender e de buscar o aum ento da produção.

A visão ingênua que, em sua percepção focalista da realidade, econom icista, desconhece que não há produção fora das relações hom em- mundo, termina por t ransformar os camponeses em meros inst rumentos de produção.

Assim, na medida em que despreza o fato de que não há produção fora das relações homem- mundo, não pode perceber sua importância.

Daí que não possa com preender e, quando com preende, não dê a devida im portância ao fato de que, t ransformando a realidade natural com seu t rabalho, os homens criam o seu m undo. Mundo da cultura e da histór ia que, cr iado por eles, sobre eles se volta, condicionando- os. I sto é o que explica a cultura com o produto, capaz ao mesmo'tempo de condicionar seu criador.

O que nos parece dever ficar claro é que o indispensáve l aumento da produção agrícola não pode ser visto com o algo separado do universo cultural em que se dá.

Os obstáculos ao aum ento da produção, com os quais se defrontam os técnicos no processo da reform a agrár ia, são, em grande m edida, obstáculos de caráter cultural. A resistência dos cam poneses a esta ou àquela form a m ais eficaz de t rabalho, que implicaria numa maior produt ividade, é de natureza cultural∗ .

Os camponeses desenvolvem sua maneira de pensar e de visualizar o mundo de acordo com pautas culturais que, obviamente, se encont ram marcadas pela ideologia dos grupos dom inantes da sociedade global de que fazem parte. Sua m aneira de pensar, condicionada por seu atuar ao m esm o tem po em que a este condiciona, de há m uito e não de hoje, se vem const ituindo, cr istalizando. E se muitas destas formas de pensar e de atuar persistem hoje, mesmo em áreas em que os camponeses se experimentam em conflitos na defesa de seus direitos, com mais razão permanecem naquelas em que não t iveram uma tal experiência. Naquelas em que a reforma agrár ia sim plesm ente aconteceu.

Esta é a razão que explica a m anutenção de grande parte das m anifestações culturais do lat ifúndio na est rutura t ransitór ia do “asentam iento” . Só um m ecanicista terá dificuldades em entender que a supra- est rut ura não se t ransforma automat icamente com a mudança infra- est rutural.

A t ransformação de uma sociedade será, por isto mesmo, tão mais radical quanto seja um processo int ra- est rutural que tom a, assim , a est rutura com o a dialet ização ent re a infra e a supra- est rutura. Muito da negat ividade do que costum am os cham ar “ cultura do silêncio” , t ípica das est ruturas fechadas com o a do lat ifúndio, penet ra, com seus sinais visíveis, na nova est rutura do “asentam iento” .

Esta “ cultura do silêncio” , gerada nas condições objet ivas de uma realidade opressora, não som ente condiciona a form a de estar sendo dos cam poneses enquanto se acha vigente a infra- est rutura que a cr ia, m as cont inua condicionando- os, por largo tempo, ainda quando sua infra- est rutura tenha sido m odificada.

∗ A este propósito, ver Paulo Freire, Extensão ou Comunicação?, Ed. Paz e Terra, Rio, 1977, 3ª ed. (N. E.)

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Se a relação que havia antes ent re a est rutura dom inadora e as form as de perceber a realidade e de atuar nela está desaparecendo, isto não significa que as negat iv idades da “ cultura do silêncio” hajam perdido sua força condicionante com a instalação do “ asentam iento” . Seu poder inibidor permanece, não como rem iniscência inconseqüente, m as com o algo concreto, inter fer indo no quefazer novo que a nova est rutura dem anda dos cam poneses. Para que se esgote este poder inibidor é necessár io que as novas relações hum anas, caracter íst icas da est rutura recém-instaurada e baseadas numa realidade material diferente, sejam capazes de criar um est ilo de vida radicalm ente oposto ao anter ior. E, ainda assim , a “cultura do silêncio” pode, de vez em quando, em função de certas condições favoráveis, “ reat ivar- se” , reaparecendo em suas m anifestações t ípicas.

Só at ravés da “dialét ica da sobredeterm inação” ∗ é possível compreender esta permanência que, na verdade, cr ia problemas e dificuldades até mesmo às t ransform ações revolucionárias.

Somente armados deste inst rumento metodológico poderemos entender e explicar as reações de caráter fatalista dos cam poneses em face dos desafios que a nova realidade lhes faz. Como também compreender que eles tenham, não raras vezes, no modelo dominador do pat rão lat ifundista, o exemplo que devem seguir. Ou que, já enquanto “assentados” , lhes pareça normal dizer, referindo- se ao ant igo pat rão, “ o verdadeiro patrão mora mais acima”∗ , não percebendo que, ao considerar o ant igo pat rão com o o verdadeiro, estão quest ionando a validade m esm a de seu estado de “assentados” , na realidade nova do “asentam iento” , em que devem superar a posição anterior de objetos, assum indo a de sujeitos. Ou ainda, que m uitos vejam na Corporación de la Reforma Agrária seu novo pat rão.

Estas reações não podem ser entendidas pelos m ecanicistas que, ingenuam ente convencidos da t ransform ação autom át ica da supra - est rutura com a m udança da infra, tendem a explicá- las ant icient ificam ente, considerando os cam poneses com o “ preguiçosos e incapazes” e, às vezes tam bém , “ ingratos” .

Daí que se inclinem a formas de ação vert ical, paternalista, em lugar de est imular a tom ada de decisão dos cam poneses. Desta m aneira, reat ivando a “cultura do silêncio” e m antendo os cam poneses no estado de dependência, não cont r ibuem em nada para a superação de sua percepção fatalista em face das situações lim ites; superação desta percepção fatalista por out ra, cr ít ica, capaz de div isar m ais além destas situações, o que cham am os de “ inédito viável” ∗∗ .

Daí que, frente a estas, fatalistam ente, esta m odalidade de consciência busque suas razões fora das situações m esm as, encont rando- as quase sempre, no dest ino ou no cast igo div ino∗ ∗ ∗ . A este nível, não é possível, realm ente, um a percepção est rutural dos problem as de que resultar ia sua inserção cr it ica no processo de t ransform ação.

I sto só é possível quando, at ravés de uma permanente mobilização dos camponeses, de sua part icipação at iva num a prát ica polít ica, na defesa de seus interesses e na com preensão de que estes não devem ser antagônicos aos de seus com panheiros,

∗ Louis Althusser, Pour Marx, François Maspéro, Paris, 1967. ∗ Afirmação feita por um líder camponês, em conversa com o autor, num “asentamiento”. ∗ ∗ Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido. ∗ ∗ ∗ “A seca atual é vingança de São Pedro, por seu dia já não ser feriado santo”, disse-nos um líder camponês num dos “asentamientos”

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t rabalhadores urbanos, conseguem superar o estado que Goldman chama de “ consciência real” pelo “m áxim o de consciência possível” .∗

I m obilizar os cam poneses exercendo ainda sobre eles um a prát ica assistencialist a, não pode const ituir- se no cam inho para tal superação. Por este cam inho, os cam poneses poderão ser, no m áxim o, incorporados como objetos ao processo da reforma agrária, jamais a ele incorporados como sujeitos dele. Podem ser incorporados à produção, como inst rumentos dela, jamais incorporar- se a ela com o sujeitos.

Impõe- se, pelo cont rár io, um a m odalidade de ação at ravés da qual, culturalm ente, se enfrente a “ cultura do silêncio” e se opere a ext rojeção de seus m itos.

Nesta modalidade de ação, a realidade que m ediat iza seus sujeitos se “ent rega” à “ adm iração” destes, const ituindo- se com o objeto de conhecim ento de am bos: educadores- educandos, educandos- educadores.

Tudo isto demanda que o “asentam iento” , enquanto uma unidade de produção, seja entendido também com o unidade cultural. Desta form a, a capacitação técnica dos cam poneses jam ais se reduzir ia à t ransferência de receitas tecnicistas e se far ia um a at ividade realmente criadora.

Ao capacit ar- se em novas técnicas, deveriam discut ir a m aneira com o est iveram sendo, “ silenciosam ente” , na est rutura opressiva do lat infúndio.

Enquanto a form a de ação assistencialista, vert ical, m anipuladora, envolve, necessariam ente, a “ invasão cultural” , a que defendem os propõe a “ síntese cultural” ∗.

Para que est a se dê é necessár io que, desde o m om ento em que esta ação com eça, j á seja dialógica.

Agrônom os, técnicos agrícolas, alfabet izadores, cooperat iv istas, sanitar istas devem encont rar- se com os cam poneses, dialogicam ente, tendo a realidade m esm a do “asentam iento” como mediadora.

Desta form a, o caráter de agentes da ação, que têm os que tornam a iniciat iva desta, deixa de pertencer- lhes, na síntese, em cujo momento os camponeses assumem o papel tam bém de agentes da ação.

A ação cultural que se or ienta no sent ido da síntese tem seu ponto de part ida na invest igação tem át ica ou dos tem as geradores, por m eio da qual os cam poneses iniciam uma reflexão crít ica sobre si mesmos, percebendo- se com o estão sendo.

Ao apresentar- se aos cam poneses, durante a invest igação tem át ica, sua realidade objet iva, na qual e com a qual estão, com o um problem a, at ravés de situações codificadas, refazem sua percepção anter ior da realidade.

Alcançam , assim , o conhecim ento do conhecim ento anter ior, que os leva ao reconhecim ento de erros e equívocos no ant igo conhecim ento∗ . Desta forma ampliam

∗ Lucien Goldman, Las Ciencias Humanas y la Filosofia, Edición Nueva Vision, Buenos Aires. ∗ A propósito de “invasão cultural” e “síntese cultural”, ver Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido. (N. E) ∗ Ver Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido. (N. E.)

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o m arco do conhecer, percebendo, em sua “visão de fundo” , dim ensões até então não percebidas e que, agora, se lhes apresentam com o “percebidos destacados em si” .

Este t ipo de ação cultural, reinsistam os, só tem sent ido quando tenta const ituir - se com o um m om ento de teorização da prát ica social de que part icipam os cam poneses. Se se aliena desta prát ica, se perde, esvaziada, num puro blá- blá- blá .

Finalmente, a ação cultural como a entendemos não pode, de um lado, sobrepor- se à visão do mundo dos camponeses e invadí- los culturalm ente; de out ro, adaptar- se a ela. Pelo cont rár io, a tarefa que ela coloca ao educador é a de, part indo daquela visão, tom ada com o um problem a, exercer, com os camponeses, um a volta crít ica sobre ela, de que resulte sua inserção, cada vez m ais lúcida, na realidade em t rans-formação.

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O papel do trabalhador social no processo de mudança

Sant iago – 1968

Este encont ro do qual part icipam os é um a oportunidade que as inst ituições governamentais aqui representadas oferecem a alguns de seus grupos de técnicos para pensar em comum. Pensar em comum em torno de problemas objet ivos que envolvem sua atuação em seus vár ios cam pos de t rabalho.

Nossa cont r ibuição se cent ra na discussão do tem a que nos foi proposto: o papel do t rabalhador social no processo de m udança.

Para fazê- lo, devemos começar por exercer uma reflexão sobre a frase mesma que envolve o nosso tema

A vantagem de assim proceder está em que a frase proposta se desvela ante nós em sua com preensão t ot al. O adent ram ento que façam os neta, desde um ponto de vista cr ít ico, nos possibilitará perceber a interação de seus term os na const ituição de um pensam ento est ruturado, que contém um tem a significat ivo.

Este adent ram ento cr ít ico na frase proposta, que nos leva à apreensão mais profunda de seu significado, supera a percepção ingênua, que sendo sim plista, nos deixa sem pre na perifer ia de tudo o que t ratam os.

Para o ponto de vista crít ico que aqui defendem os, a operação de m irar im plica nout ra – a de ad - mirar. Ad- m iramos e ao adentrar- nos no ad- mirado o miramos de dentro e desde dent ro, o que nos faz ver.

Na ingenuidade, que é uma forma “desarmada” de enfrentamento com a realidade, m iramos apenas e, porque não ad- miramos, não podemos mirar o mirado em sua int imidade, o que não nos leva a ver o que foi puramente m irado.

Por isto, é necessár io que ad- miremos a frase proposta para, m irando- a de dent ro, reconhecer que não deve ser tomada como um mero clichê. A frase em discussão não é um rótulo. Ela é, em si, um problema, um desafio.

Enquanto apenas m iremos a frase, ficando assim na sua periferia, provavelmente não farem os out ra coisa, ao falar do tem a que ela envolve, senão um discurso de “ frases feit as” .

A operação refer ida de adent ram ento cr ít ico na frase proposta nos possibilita out ra operação – a de sua cisão em suas partes const itut ivas. Esta cisão da totalidade em suas partes nos perm ite retornar a ela ( totalidade) alcançando desta form a um a com preensão m ais vert ical de sua significação.

Ad- mirar, m irar desde dent ro, cindir para voltar a m irar o todo ad- m irado, que são um ir até o todo e um voltar dele até suas partes, são operações que só se dividem pela necessidade que tem o espír ito de abst rair para alcançar o concreto. No fundo, são operações que se im plicam mutuamente.

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Ao ad- m irar a frase que envolve um tema desafiador, ao cindi- la em seus elementos, constatam os que o term o papel se acha modificado por uma expressão rest r it iva, que delim ita sua “extensão” : do t rabalhador social. Nesta, por out ro lado, há um qualif icat ivo: social, que incide sobre a “compreensão” do termo t rabalhador.

Esta subunidade da est rutura geral – papel do t rabalhador social – se liga à segunda – processo de m udança – que representa, segundo a com preensão da frase, “onde” o papel se cumpre, at ravés do conect ivo em.

Na verdade porém , o papel do t rabalhador social não se dá no processo da m udança, como a inteligência puramente gramat ical da frase nos sugere.

O papel do t rabalhador social se desenvolve num domínio mais amplo, no qual a mudança é um dos aspectos. O t rabalhador social atua, com out ros, na est rutura social.

Daí que se nos imponha compreendê- la em sua complexidade. Se não a entendemos como algo que, para ser, tem de estar sendo, não teremos dela uma visão cr it ica. O que, de fat o, caracter iza a est rutura social não é a m udança nem a perm anência tomadas em si mesmas, mas a “duração” da contradição ent re ambas, em que uma delas pode ser preponderante sobre a out ra.

Na est rutura social, enquanto dialet ização ent re a infra e a supraest rutura, não há permanência da permanência nem mudança da mudança, mas o empenho de sua preservação em cont radição com o esforço por sua t ransform ação. Daí que não possa ser o t rabalhador social, com o educador que é, um técnico fr iam ente neut ro. Silenciar sua opção, escondê- la no em aranhado de suas técnicas ou disfarçá- la com a proclam ação de sua neut ralidade não significa na verdade ser neut ro m as, ao cont rár io, t rabalhar pela preservação do “ status quo” .

Daí a necessidade que tem de clar if icar sua opção, que é polít ica, at ravés de sua prát ica, tam bém polít ica. Sua opção determ ina seu papel, como seus métodos de ação.

É uma ingenuidade pensar num papel abst rato, num conjunto de métodos e de técnicas neut ros para uma ação que se dá em uma realidade que também não é neut ra.

Assim , se a opção do t rabalhador social é reacionária, sua ação e os m étodos adotados se orientarão no sent ido de frear as t ransformações. Em lugar de desenvolver um t rabalho at ravés do qual a realidade se vá desvelando a ele e aos com quem t rabalha, em um esforço crít ico comum, se preocupará, pelo cont rário, em m it ificar a realidade. Em lugar de ter nesta uma situação problemát ica que o desafia e aos hom ens com quem deveria estar em com unicação, sua tendência é inclinar- se a soluções de caráter assistencialista. O que o m ove, em últ im a análise, at ravés de ações e reações, é ajudar a “norm alização” da “ordem estabelecida” que serve aos interesses da elite do poder.

O t rabalhador social que faz esta opção pode, e quase sem pre tenta, disfarçá- la, aparentando sua adesão à m udança, ficando, porém , nas m eias m udanças, que são uma forma de não mudar,

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Um dos sinais da opção reacionária do t rabalhador social são suas inquietações em face das conseqüências da m udança, seu receio ao novo, seu m edo, às vezes im possível de ser escondido, de perder seu “status social” . Daí que, em seus m étodos de ação, não haja lugar para a com unicação, para a reflexão cr it ica, para a cr iat iv idade, para a colaboração, m as para a m anipulação ostensiva ou não.

O t rabalhador social reacionário não pode realm ente interessar- se por que os indivíduos desenvolvam um a percepção cr it ica de sua realidade. Não pode interessar-se por que exercitem um a reflexão, enquanto atuam , sobre a própria percepção que estão tendo da realidade. Não lhe interessa esta volta da percepção sobre a percepção, condicionada pela realidade em que se acham.

É que, no m om ento em que os indivíduos, atuando e reflet indo, são capazes de perceber o condicionam ento de sua percepção pela est rutura em que se encont ram, sua percepção começa a mudar, embora isto não signifique ainda a mudança da est rutura. É algo im portante perceber que a rea1idade social é t ransform ável; que feita pelos homens, pelos homens pode ser mudada; que não é algo intocável, um fado, uma sina, diante de que só houvesse um cam inho: a acom odação a ela. É algo importante que a percepção ingênua da realidade vá cedendo seu lugar a uma percepção que é capaz de perceber- se; que o fatalismo vá sendo subst ituído por uma cr ít ica esperança que pode m over os indivíduos a um a cada vez m ais concreta ação em favor da m udança radical da sociedade. Ao t rabalhador social reacionário nada disto interessa.

Poderá dizer- se que a m udança da percepção não é possível antes da m udança da est rutura, na razão mesma do seu condicionam ento por esta. Tal afirm ação, se tom ada de um ponto de vista ext rem ado, pode., nos conduzir a interpretações m ecanicistas das relações percepção- realidade.

Por out ro lado, para evitar qualquer confusão ent re nossa posição e um a postura idealist a, é necessár io que digam os algo m ais sobre este processo.

A m udança da percepção da realidade pode dar- se “ antes” da t ransform ação desta, se não se em presta ao term o antes a significação de dim ensão estagnada do tem po, com que lhe pode conotar a consciênc ia ingênua.

A signif icação do ant es, aqui, não é do sent ido comum. O antes aqui não significa um m om ento anterior que est ivesse separado do out ro por um a fronteira rígida. O antes, pelo cont rár io, faz parte do processo de t ransform ação est rutural.

Desta form a, a percepção da realidade, distorcida pela ideologia dom inante, pode ser mudada, na medida em que, no “hoje” em que se está verificando o antagonismo ent re m udança e perm anência, este antagonism o com eça a se fazer um desafio.

Esta m udança de percepção, que se dá na problemat ização de uma realidade conflit iva, implica num novo enfrentamento dos indivíduos com sua realidade. Implica numa “apropriação” do contexto, numa inserção nele, num já não ficar “aderido” a ele; num já não estar quase sob o tempo, ma s nele.

Se este esforço não pode ser desenvolvido pelo t rabalhador social reacionár io, deve ser um a preocupação constante do que se com prom ete com a m udança. Daí que seu papel seja diferente e que seus métodos de ação não possam confundir- se com aqueles re cém- refer idos, caracter íst icos da posição reacionár ia.

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Se o primeiro, proclamando a inexistente neut ralidade de seu quefazer, ent retém os indivíduos, os grupos e as com unidades com form as de ação puram ente anestésicas, o que opta pela mudança se empenha em desvelar a realidade. Trabalha com , jamais sobre, os indivíduos, a quem considera sujeitos e não objetos, incidências de sua ação. Por isso m esm o é que, hum ilde e crít ico, não pode aceitar a ingenuidade cont ida na “ frase feita” e tão generalizada em que ele aparece com o o “agente da m udança” . Esta não é tarefa de alguns, m as de todos os que com ela realm ente se comprometem.

O t rabalhador social que opta pela mudança não teme a liberdade, não prescreve, não manipula. Mas, rejeitando a prescrição e a manipulação, rejeita igualm ente o espontaneísm o.

É que ele sabe que todo empenho de t ransformação radical de uma sociedade implica na organização consciente das m assas populares opr im idas e que esta organização dem anda a existência de um a vanguarda lúcida. Se esta, de um lado, não pode ser a “proprietár ia” daquelas, não pode, de out ro, deixá- las entregues a si mesmas.

Seria, porém, uma ilusão pensar que o t rabalhador social, numa linha como esta, pudesse agir livrem ente, com o se os grupos dom inantes não est ivessem necessar iam ente despertos para a defesa de seus interesses. Em função destes é que são adm it idas certas mudanças, de caráter obviamente reform istas e, mesmo assim , com a devida cautela.

Dai a necessidade que tem o t rabalhador social de conhecer a realidad e em que atua, o sistem a de forças que enfrenta, para conhecer tam bém o seu “viável histór ico” . Em out ras palavras, para conhecer o que pode ser feito, em um momento dado, pois que se faz o que se pode e não o que se gostar ia de fazer.

I st o signif ica t er um a com preensão clara das relações ent re tát ica e est ratégia, nem sempre, infelizmente, seriamente consideradas.

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Ação cultural para a libertação 1

I PARTE: O processo de a lfabet ização de adultos com o ação cultura l para a libertação

a) Toda prát ica educat iva im plica num a concepção dos seres hum anos e do m undo

A experiência nos ensina que nem todo óbvio é tão óbvio quanto parece. Assim , é com um a obviedade que com eçam os este t rabalho: toda prát ica educat iva envolve um a postura teórica por parte do educador. Esta postura, em si mesma, implica – as vezes m ais, as vezes m enos explicitam ente – num a concepção dos seres hum anos e do m undo. E não poderia deixar de ser assim . É que a processo de or ientação dos seres hum anos no m undo envolve não apenas a associação de imagens sensoriais, como ent re os animais, mas. sobretudo, pensamento- linguagem; envolve desejo, t rabalho- ação t ransformadora sobre o mundo, de que resulta o conhecimento do m undo t ransform ado. Este processo de orientação dos seres hum anos no m undo não pode ser compreendido, de um lado, de um ponto de vista puramente subjet ivista; de out ro, de um ângulo objet iv ista m ecanicista. Na verdade, esta or ientação no m undo só pode ser realmente compreendida na unidade dialét ica ent re subjet ividade e objet iv idade. Assim entendida, a or ientação no m undo põe a questão das finalidades da ação ao nível da percepção cr ít ica da realidade.

Imersos no tempo, em seu mover- se no mundo, os animais não se assumem como presenças nele; não optam , no sent ido r igoroso da expressão, nem valoram. Seres históricos, inseridos no tempo e não imersos nele, os seres humanos se movem no m undo, capazes de optar, de decidir , de valorar. Têm o sent ido do projeto, em contraste com os outros animais, mesmo quando estes vão mais além de uma rot ina puramente inst int iva.

Daí que a ação humana, ingênua ou crít ica, envolva finalidades, sem o que não seria práxis, ainda que fosse or ientação no m undo. E não sendo práxis seria ação que ignorar ia seu própr io processo e seus objet ivos.

A relação ent re a consciência do projeto proposto e o processo no qual se busca sua concret ização é a base da ação planificada dos seres hum anos, que im plica em m étodos, objet ivos e opções de valor.

A alfabet ização de adultos deve ser v ista, analisada e com preendida desta forma. O analista cr ít ico descobr irá nos m étodos e nos textos usados pelos educadores opções valorat ivas que revelam uma filosofia do ser humano, bem ou mal esboçada, coerente ou incoerente, assim com o um a opção polít ica, explícita ou disfarçada. Som ente um a mentalidade mecanicista, que Marx chamaria de “grosseiramente materialista” , poder ia reduzir a alfabet ização de adultos a um a ação puram ente técnica. Esta m entalidade ingênua não seria capaz, por out ro lado, de perceber que a técnica, em

1 Escrito em fins de 1969, em Cambridge, Estados Unidos, este trabalho foi publicado, pela primeira vez, por Harvard Educational Review. em 1970.

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si mesma, como inst rumento de que se servem os seres humanos em sua orientação no mundo, não é neutra.

Mais de um a vez tem os dedicado nossa atenção, at ravés da análise de textos e procedimentos usados em campanhas de alfabet ização, para demonst rar as afirmações que estamos fazendo. Façamos um exercício sim ilar agora.

Tornem os com o hipótese de t rabalho duas cart ilhas em pregadas com o textos básicos, no esforço de alfabet ização. Um a que, do ponto de vista do gênero, poderíam os considerar má e out ra que, do mesmo ângulo, seria boa. Suponhamos que o autor da “boa” cart ilha fez a seleção de suas palavras geradoras dando pr ior idade àquelas que têm maior significação para um certo grupo de alfabet izandos (prát ica não muito comum, mas de que há exemplos) .

I ndubitavelm ente tal autor terá ido muito mais longe do que seu colega que preparou sua cart ilha com palavras geradoras escolhidas em sua biblioteca, exclusivam ente preocupado com a gradação das dificuldades fonét icas, Am bos os autores, porém , se ident ificam num ponto fundamental. Em cada caso, eles m esm os são os que, decompondo as palavras geradoras em sílabas, cr iam , com estas, novas palavras com as quais form am frases e sentenças e, pouco a pouco, pequenas estórias, as assim chamadas “ lições de leitura” .

Digamos mesmo que o autor da segunda cart ilha, indo um pouco m ais longe, sugere aos alfabet izadores que discutam com os alfabet izandos sobre um a ou out ra palavra geradora, bem como sobre um ou out ro dos pequenos textos de leitura de sua car t ilha.

Considerando qualquer um dos dois exemplos aqui t ratados podemos concluir, legit im am ente, que há im plícita, no conteúdo e m étodo das cart ilhas, um a certa visão dos seres hum anos, não im porta se os autores estão conscientes disto ou não. Esta visão pode ser const ruída desde vár ios ângulos. Comecem os pelo fato, inerente à idéia m esm a de cart ilha, de que é o seu autor ou autora o/ a que escolhe as palavras geradoras e, at ravés dos alfabet izadores, as propõe ou im põe aos alfabet izandos. Na m edida em que, at ravés da m ediação da cart ilha, os alfabet izadores vão “depositando” nos alfabet izandos as palavras geradoras, pode- se facilm ente detectar uma primeira importante dimensão da imagem de ser humano que começa a emergir desta análise. É um perfil de ser hum ano cuja consciência, “espacializada” e “vazia” , deve ser “enchida” pare que possa conhecer. É a m esm a concepção que levou Sart re, cr it icando a noção de que “conhecer é com er” , a exclam ar em Situat ions 1: “Oh! philosophie alimentaire!”

Esta concepção “digest iva” do conhecim ento, tão com um na prát ica educacional corrente, se encont ra claram ente nas cart ilhas. ∗

Os analfabetos são considerados “subnut r idos” , não no sent ido real em que m uitos o são, mas porque lhes falta o “pão do espír ito” . A compreensão do analfabet ismo como “erva daninha” que deve ser “erradicada” tem que ver com a visão do conhecim ento

∗ O chamado “controle de leitura”; as aulas verbosas; a memorização de diálogos no aprendizado de línguas; as relações bibliográficas que indicam o capítulo e até as linhas, de tal palavra a tal outra, que devem ser lidos; certos métodos de avaliação da aprendizagem dos estudantes revelam esta concepção “nutricionista” do conhecimento.

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com o algo a ser com ido. É necessário erradicar o analfabet ism o e, para fazê- lo, urge que os alfabet izandos se “alim entem ” de palavras.

Desta form a, esvaziada de seu caráter de signo lingüíst ico, const itut ivo do pensam ento- linguagem dos seres humanos, a palavra é t ransformada em mero “depósito vocabular” – o “pão do espír ito” , que os alfabet izandos devem com er e digerir.

Esta visão “nut r icionista” do conhecim ento talvez explique tam bém o caráter humanitarista de certas cam panhas lat ino- am ericanas de alfabet ização. Se m ilhões de hom ens e m ulheres estão analfabetos, “ fam intos de let ras” , “ sedentos de palavras” , a palavra deve ser levada a eles e elas para m atar a sua “ fom e” e sua “sede” . Palavra que, de acordo com a concepção “espacializada” e m ecânica da consciência, im plícita nas car t ilhas, deve ser “ depositada” e não nascida do esforço cr iador dos alfabet izandos.

Num a tal concepção é evidente que os alfabet izandos sejam vistos com o puros objetos do processo de aprendizagem da leitura e da escrita, e não como seus sujeitos. Enquanto objetos, sua tarefa é “estudar” , quer dizer, memorizar as assim cham adas lições de leitura, de caráter alienante, com pouquíssim o que ver, quando têm, com a sua realidade sócio - cultural.

Seria, na verdade, um t rabalho interessante analisar cart ilhas e textos de leitura usados em cam panhas ou m ovim entos de alfabet ização de adultos, oficiais ou não, em áreas rurais ou urbanas, da América Lat ina. Facilmente se surprenderia o caráter ideológico desses textos, m ascarado de um a neut ralidade que de fato não existe. Em um a análise com o esta, sem dificuldade, se encont rar iam frases e pequenas estór ias como as que se seguem:

A asa é da ave. Eva viu a uva. O galo canta. O cachorro ladra. Maria gosta dos animais. João cuida das árvores. O pai de Carlinhos se cham a Antônio. Carlinhos é um menino bom, bem comportado e estudioso. Se você t rabalha com m artelo e prego, tenha cuidado para não furar o dedo. ∗ Pedro não sabia ler. Pedro vivia envergonhado. Um dia, Pedro foi à escola e se matr iculou num curso noturno. A professora de Pedro era muito boa. Pedro agora já sabe ler , por isso, está feliz. Vejam a cara de Pedro. Pedro está sorr indo. Já tem um bom emprego. Todos devem seguir o seu exemplo.

Ao af irmar- se que Pedro está sorr indo porque já sabe ler e que é feliz porque tem agora um bom emprego e que é um exemplo a ser se- guido por todos, se estabe1ece no texto citado um a relação, na verdade inexistente, ent re o fato de sim plesm ente saber ler e obter um bom emprego. Esta ingenuidade – quando se t rata realm ente de ingenuidade – revela a incapacidade de percepção do analfabet ism o em suas im plicações polít icas e sociais, de que resulta a sua redução a algo est r itam ente lingüist ico. Daí que, numa tal perspect iva, não se apreendam as relações ent re o

∗ Aqui, talvez o autor devesse ter acrescentado: “Se porém isto ocorrer, ponha mercúrio-cromo”.

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analfabet ism o e as est ruturas da sociedade. É com o se o analfabet ism o fosse um fenôm eno aparte da realidade concreta ou a expressão da infer ior idade int r ínseca de cer tas classes ou grupos sociais.

I ncapaz de apreender o analfabet ismo contemporâneo diretamente ligado à realidade da dependência, este enfoque não pode dar um a respota cr ít ica ao desafio que ele coloca.

A mera aprendizagem da leitura e da escrita não faz m ilagres. Não é ela, em si mesma, a que cria empregos.

Um destes manuais∗ apresenta em suas “ lições de leitura” dois textos, em páginas consecut ivas, mas sem nenhuma referência explicita ao conteúdo dos mesmos. Numa página se fala do lº de maio, enfat izando- se o caráter de dia fer iado que ele tem . Toca- se, de leve, nas comemorações em que ele implica, mas não se menciona a natureza do conflito que gerou esta celebração.

O tem a cent ral da “ lição” seguinte é fer iado. Ent re out ras coisas se diz que, em dias feriados, as pessoas devem ir à praia para nadar e bronzear- se.. . Por tanto, se o lº de maio é um dia feriado e se nos dias feriados o povo deve ir à praia para nadar e bronzear- se, a conclusão insinuada no texto é a de que os t rabalhadores, no Dia do Trabalho, devem ir nadar e queimar- se ao sol. . .

A análise destes textos revela, não im porta se seus autores são ingênuos ou astutos, a ideologia da classe dom inante que tem , na educação por ela posta em prát ica, um inst rum ento eficiente para sua reprodução.

A asa é da ave Eva v iu a uva, o galo canta, o cachorro ladra, são contextos lingüíst icos que, mecanicamente memorizados e repet idos, esvaziados de seu conteúdo enquanto pensam ento- linguagem referido ao mundo, se transformam em meros clichês.

Seus autores, reflet indo sua posição de classe, não podem reconhec er , nas classes dom inadas, a capacidade de conhecer, de cr iar seus própr ios textos, com que expressariam seu pensam ento- linguagem. Repetem com os textos o que fazem com as palavras, depositando- os na consciência dos alfabet izandos, com o se esta fosse um espaço vazio. Um a vez m ais, a concepção nut r icionista do conhecim ento.

Há algo ainda implícito na ideologia das classes dom inantes e que análise de cart ilhas e livros de leitura revela – o perfil dos analfabetos como seres marginais. Aqueles que consideram os analfabetos como seres marginais devem, porém, reconhecer a existência de uma realidade de que eles se encont ram marginalizados – realidade que não é apenas um espaço físico, m as econôm ico, histór ico, social, cultural. Desta m aneira, os analfabetos têm de ser reconhecidos com o seres “ fora de” ou “m arginais a” alguma coisa, pois que seria impossível estarem marginais a nada. Mas estar “ fora de” implica em que, quem se encont ra “ora de” fez um movimento do cent ro onde se achava para a per ifer ia. Adm it indo a existência de homens e mulheres “ fora de” , m arginais à est rutura da sociedade, parece legit im o perguntar: quem é o autor deste movimento? Será que os chamados marginais, ent re eles os analfabetos, tornam a

∗ As frases e pequenas estórias que transcrevemos, talvez com alguma imprecisão, as temos de memória. Faltam-nos, no momento, as cartilhas e os livros de leitura em que as encontramos. Esta é a razão por que não fazemos referência a seus títulos bem como aos nomes de seus autores.

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decisão de m over- se até a “perifer ia” da sociedad e? Se assim é, a marginalidade é um a opção, com tudo o que ela envolve: fom e, doença, raquit ism o, baixos índices de expectat ivade vida, crime, prom iscuidade, morte em vida, impossibilidade de ser, desesperança.

De fato, porém, é difícil aceitar que 40% da população brasileira, quase 90% da do Hait i, 60% da de Bolívia, em torno de 40% da do Peru, mais de 30% da do México e da Venezuela e ao redor de 70% da de Guatem ala, t ivessem feito a t rágica escolha de sua marginalidade, como analfabetos∗.

Se então a marg inalidade não é uma opção, os chamados marginais foram expulsos, objetos, portanto, de um a violência. Na verdade, violentados, não se acham porém “ fora de” . Encont ram- se dent ro da realidade social, com o grupos ou classes dom inadas, em relação de dependência com a classe dom inante.

Em um a perspect iva m enos r igorosa, sim plista, m enos crít ica, tecnicista, se dir ia que é um a perda de tem po reflet ir sobre estes pontos e se acrescentar ia que a discussão em torno do conceito de marginalidade é um exercício acadêmico desnecessár io. Na verdade, não é assim . Aceitando- se os analfabetos como homens e mulheres à margem da sociedade, sem compreendê- los como classe dom inada, term ina- se por tomá - los como homens e mulheres “enfermos” para quem o “ remédio” seria a alfabet ização que perm it ir ia seu regresso à est rutura “ saudável” de que se encont ram separados.

Os educadores, por sua vez, serão vistos com o conselheiros hum anitár ios, infat igáveis nas suas andanças pelos arredores da cidade, convencendo os pert inazes analfabetos de que devem voltar ao seio da felicidade abandonada, de posse da palavra que os educadores lhes “presenteiam ” .

Analfabetos ou não, os opr im idos, enquanto classe, não superarão sua situação de explorados a não ser com a t ransform ação radical, revolucionária , da sociedade de classes em que se encont ram explorados.

Deste ponto de vista, já não são tomados como homens e mulheres marginais, mas como classe dom inada em relação antagônica, na int im idade mesma da sociedade, com a classe dom inante que os reduz a quase- coisas. .Assim , também, o ensino da leitura e da escr ita j á não é a repet ição m ecânica de ba- be- bi- bo- bu nem a memorização de uma palavra alienada, mas a difícil aprendizagem de nomear o mundo

Na pr im eira hipótese, o processo de alfabet ização reforça a m it ificação da realidade, fazendo- a opaca e em botando a consciência dos educandos com palavras e frases alienadas.

No segundo caso, pelo cont rár io, o processo de alfabet ização, com o ação cultural para a liber tação, é um ato de conhecim ento em que os educandos assumem o papel de sujeitos cognoscentes em diálogo com o educador, sujeito cognoscente tam bém . Por isto, é um a tentat iva corajosa de desm itologização da realidade, um esforço at ravés do qual, num permanente tomar distância da realidade em que se encontram mais ou menos imersos, os alfabet izandos dela emergem para nela inserirem- se cr it icam ente.

∗ UNESCO – La situación educativa en América Latina – quadro 20, pág 263, Paris, 1960

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Tão polít ica quanto a ação desenvolvida na pr im eira hipótese, a segunda se dist ingue da primeira porque sua polít ica é a da classe dom inada, enquanto a daquela é a da classe dom inante. Dai que, no pr im eiro caso, tudo se faça para evitar que os alfabet izandos desenvolvam a consciência cr it ica de si em suas relações com a realidade e, no segundo, tudo deva ser feito para que os alfabet izandos se assum am com o “ classe para si” . A consciência cnt ica dos opr im idos segnifica, pois, consciência de si, enquanto “ classe para si” .

Por isso também é que, no primeiro caso, a alfabet ização, mesmo feita em amplas “campanhas” ou “movimentos” , jamais se faz numa linha de massas em que estas, mobilizadas, organizam- se e organizam o processo de sua aprendizagem.

O educador que faz a segunda opção, sobretudo se é um intelectual pequeno -burguês, deve esforçar- se, cada vez m ais, por ilum inar sua ação na sua prát ica com as massas popula res, com quem tem muito que aprender. Só assim se tornará verdadeiram ente capaz de assum ir o papel de um dos sujeitos desta ação e m anter-se coerente com a opção que fez.

b) O processo de alfabet ização de adultos com o um at o de conhecim ent o

Para ser um at o de conhecim ento o processo de alfabet ização de adultos dem anda, ent re educadores e educandos, um a relação de autênt ico diálogo. Aquela em que os sujeit os do ato de conhecer ( educador- educando; educando- educador) se encont ram m ediat izados pelo objeto a ser conhecido. Nesta perspect iva, portanto, os alfabet izandos assum em , desde o com eço m esm o da ação, o papel de sujeitos cr iadores. Aprender a ler e escrever já não é, pois, memorizar sílabas, palavras ou frases, mas reflet ir crit icamente sobre o próprio pro cesso de ler e escrever e sobre o profundo significado da linguagem.

Assim como não é possível linguagem sem pensamento e linguagem- pensamento sem o mundo a que se referem, a palavra humana é mais que um mero vocábulo – é palavração.

Enquanto ato de conhecimento, a alfabet ização, que leva a sério o problema da linguagem, deve ter como objeto também a ser desvelado as relações dos seres humanos com seu mundo.

A análise destas relações com eça a aclarar o m ovim ento dialét ico que há ent re os produtos que os seres humanos criam ao t ransformarem o mundo e o condicionam ento que estes produtos exercem sobre eles. Com eça a aclarar, igualm ente, o papel da prát ica na const ituição do conhecim ento e, conseqüentem ente, o rol da reflexão cr it ica sobre a prát ica. A unidade ent re prát ica e teoria, ação e reflexão, subjet iv idade e objet iv idade, vai sendo com preendida, em term os corretos, na análise daquelas relações antes m encionadas.

Aprender a ler e escrever se faz assim uma oportunidade para que mulheres e homens percebam o que realmente significa dizer a palavra: um comportamento humano que envolve ação e reflexão. Dizer a palavra, em um sent ido verdadeiro, é o direito de expressar- se e expressar o m undo, de cr iar e recriar, de decidir , de optar. Como tal, não é o privilégio de uns poucos com que silenciam as m aior ias. É exatam ente por isto que, num a sociedade de classes, seja fundam ental à cesse dom inante est imular o que vimos chamando de cultura do silêncio, em que as classes

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dominadas se acham semimudas ou mudas, proibidas de expressar- se autent icamente, proibidas de ser.

Os analfabetos sabem que são seres concretos. Sabem que fazem coisas. Mas o que às vezes não sabem, na cultura do silêncio, em que se tornam ambíguos e duais, é que sua ação t ransform adora, com o tal, os caracter iza com o seres cr iadores e recriadores. Submet idos aos m itos da cultura dom inante, ent re eles o de sua “natural infer ior idade” , não percebem, quase sempre, a significação real de sua ação t ransformadora sobre o mundo. Dificultados em reconhecer a razão de ser dos fatos que os envolvem , é natural que m uitos, ent re eles, não estabeleçam a relação ent rh não “ ter voz” , não “dizer a palavra” , e o sistema de exploração em que vivem.

Gostar iam os de salientar que toda tentat iva de desenvolver um tal reconhecimento fora da práxis, fora da ação e da reflexão, nos pode conduzir a puro idealismo. Mas, por out ro lado, é verdade também que toda ação sobre um objeto deve ser cr it icam ente analisada no sent ido de com preender- se não apenas o objeto m as também a percepç ão que dele se t inha ou se tem ao atuar- se sobre ele. O ato de conhecer envolve um m ovim ento dialét ico que vai da ação à reflexão sobre ela e desta a um a nova ação. Para o educando conhecer o que antes não conhecia, deve engajar- se num autênt ico processo de abst ração por m eio do qual reflete sobre a totalidade “ ação- objeto” ou, em out ras palavras, sobre formas de “orientação no m undo” . Este processo de abst ração se dá na m edida em que se lhe apresentam situações ∗ representat ivas da m aneira com o o educando “se orienta no mundo” – momentos de sua quot idianeidade – e se sente desafiado a analisá- las cr it icam ente.

Ao ser um a reflexão crít ica de am bos, educador- educando e educando- educador, o processo de alfabet ização deve relacionar o ato de t ransform ar o m undo com o ato de “pronunciá- lo”.

Não há “pronúncia” do mundo sem consciente ação t ransformadora sobre o mesmo. “Ação consciente” a que Marx vár ias vezes se refer iu. Mas é necessár io sublinhar- se, também, que há diferentes maneiras de “pronunciar o mundo” . A das classes dom inantes, que determ ina o silêncio das classes dom inadas ou a aparência de sua voz, na sua recuperação por aquelas, e a das classes dom inadas, que dem anda sua organização revolucionár ia para a abolição das est ruturas de opressão.

A percepção de tudo isto é indispensável aos alfabet izandos, se nossa opção é realm ente libertadora. Tal percepção os ajuda a rejeitar o perfil que deles fazem as classes dom inantes com o “m arginais” e a encarnar- se com o classe dom inada, cuja tarefa não se esgota em serem mecanicamente alfabet izados, mas lhes impõe o dever de “pronunciar o mundo” à sua maneira.

Por out ro lado, a alfabet ização, com o um ato de conhecim ento, pressupõe um a teor ia do conhecim ento e um m étodo que corresponde a esta teoria.

Como um ato de conhecim ento, o processo de alfabet ização im plica na existência de dois contextos dialet icam ente relacionados. Um é o contexto do autênt ico diálogo ent re educadores e educandos, enquanto sujeitos de conhecim ento. É o contexto t eór ico. O out ro é o contexto concre to, em que os fatos se dão – a realidade social em que se encont ram os alfabet izandos.

∗ O autor se refere a “codificações”. (N.E.)

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No contexto teór ico, “ tom ando- se distância” do concreto, se analisam cr it icam ente os fatos que neste se dão. Esta análise envolve o exercício da abst ração at ravés da qual, por m eio de representações da realidade concreta, procuram os alcançar a razão de ser dos fatos. O m eio de que nos servim os em nossa prát ica para operar tal abst ração é a codif icação ou a representação de situações existenciais dos educandos.

A codif icação, de um lado, faz a m ediação ent re o contexto concreto e o teór ico; de out ro, com o objeto de conhecim ento, m ediat iza os sujeitos cognoscentes que buscam, em diálogo, desvelá- la. Por isto é que, sendo o selo do ato cognoscente, o diálogo não tem nada que ver, de um lado, com o monólogo do educador “bancário” ; de out ro, com o silêncio espontaneista de certo t ipo de educador liberal. O diálogo engaja at ivam ente a am bos os sujeitos do ato de conhecer educador- educando e educando- educador.

A codificação, mesmo quando puramente pictórica, é. um “discurso” a ser “ lido” por quem procura decifrá- la. Como tal, apresenta o que Chomsky chama de “est rutura de superfície” e “est rutura profunda” . A “est rutura de superfície” explícita os elem entos const it ut ivos da codif icação de maneira puramente taxeonômica.

O primeiro momento da descodificação – ou “ leitura” – é descr it ivo. A este nível, os “ leitores” – descodificadores – narram mais do que analisam, alinham as diferentes categor ias const it ut ivas da codif icação.

Suponhamos, por exem plo, a codificação de um a situação de t rabalho no cam po. A “est rutura de superfície” desta codificação ser ia representada por diferentes dados: a presença de mulheres e de homens t rabalhando com alguns inst rumentos; a figura do pat rão, no seu cavalo; árvores, pássaros, animais etc. O primeiro momento da “ leitura” ou descodif icação se cent ra na descr ição daqueles dados. “Vem os dois homens e t rês mulheres t rabalhando. O pat rão olha eles de seu cavalo. Lá longe tem umas árvores. Tem também uns passarinhos nos galhos. E anim al pastando. O céu escuro indica chuva” et c.

Esta aproximação prelim inar à “est rutura de superfície” é seguida pela problem at ização da situação codificada, com que se chega ao segundo e fundam ental m om ento da descodificação. É neste m om ento que se pode alcançar a com preensão da “est rutura profunda” da codificação, que abre possibilidades a análises crít icas em torno da realidade codificada.

Assim, se no primeiro momento, o que se faz é preponderantemente m irar a codif icação, no seg undo, ela é “ad- m irada” . Naquele se diz apenas que há homens e m ulheres t rabalhando, que o pat rão os observa de seu cavalo etc.; neste, se discute a significação do t rabalho, as relações ent re os t rabalhadores e o pat rão; o problem a da produção, quem lucra com ela et c.

Na “est rutura profunda” desta codificação hipotét ica há um m undo de problem as a ser discut idos e que se encont ram apontados na sua “est rutura de superfície” . I sto é o que se dá com qualquer codificação que, ao ser bem descodificada, proporciona aos educandos um nível mais crít ico de conhecimento de sua realidade, part indo da análise de seu contexto concreto.

Em nossa prát ica usam os codif icações ora feitas por nós, ora pelos educandos; às vezes fotografias, às vezes desenhos; j á um pequeno texto, já uma pequena dram at ização em torno de um fato concreto.

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O im portante, qualquer que seja a form a que a codificação assum a – e há out ras – é que ela seja tom ada, na verdade, com o um objeto de conhecim ento. É que dela “ tom ando distância” , no processo de sua descodif icação, educador e educandos alcancem a com preensão de sua “est rutura profunda” . Daí a necessidade de um m áxim o de cuidado durante a descodificação que, num m om ento, é a cisão que se faz da codif icação em suas par tes const it ut ivas, em out ro, é a retotalização do que foi cindido. Neste esforço, os educandos, com o sujeitos cognoscentes, percebem relações ent re os fatos sobre que discutem que antes não percebiam .

A codificação, em últ im a análise, no contexto teórico, t ransform a a quot idianeidade que ela representa num objeto cognoscivel. Desta forma, era lugar de receberem uma explicação em torno deste ou daquele fato, os educandos analisam , com o educador, aspectos de sua própria prát ica, em suas im plicações m ais diversas. Neste sent ido, nos Círculos de Cultura, os alfabet izandos se engajam na prát ica da teor ia de sua prát ica. E é pensando sobre sua prát ica, em term os cada vez m ais cr ít icos, que os educandos vão subst ituindo a visão focalista da realidade por out ra, global.

Do ponto de v ist a da t eoria do conhecim ento que aqui defendem os, isto significa que o dinam ism o ent re a codif icação de situações existenciais e sua descodif icação com prom ete os educandos num perm anente processo de ad - mirar sua anterior ad-m iração da realidade.

“ Ad- mirar” e “ad- mirado” não têm aqui sua significação usual. Ad- mirar é objet ivar um “não- eu” . É um a operação que, caracter izando os seres hum anos com o tais, os dist ingue do out ro anim al. Está diretam ente ligada à sua prát ica consciente e ao caráter criador de sua linguagem. Ad- mirar implica pôr- se em face do “não- eu” , curiosam ente, para com preendê- lo. Por isto, não há ato de conhecim ento sem ad -m iração do objeto a ser conhecido. Mas se o ato de conhecer é um processo – não há conhecim ento acabado – ao buscar conhecer ad- miramos não apenas a objeto, mas tam bém a nossa ad- m iração ante- rior do mesmo objeto. Quando ad- niiramos nossa anter ior ad- miração (sempre uma ad- m iração de) estamos simultaneamente adm irando o ato de ad- mirar e o objeto ad - m irado, de tal modo que podemos superar erros ou equívocos possivelm ente com et idos na ad- m iração passada. Esta re- ad-m iração nos leva à percepção da percepção anter ior . Talvez não seja dem asiado insist ir em que este esforço, desenvolvido no contexto teór ico, se esvazia, se se rompe a unidade dialét ica ent re este contexto e o contexto concreto. Em out ras palavras, se se rom pe a unidade dialét ica ent re prát ica e teor ia.

No processo de descodif icar representações de sua situação existencial e de perceber sua percepção anter ior dos m esm os fatos, os alfabet izandos, gradualm ente, às vezes hesitante e t im idamente, começam a quest ionar a opinião que t inham da realidade e a vão subst ituindo por um conhecim ento cada vez m ais crít ico da m esm a.

Suponhamos que propuséssemos a indivíduos de grupos ou classes dominadas codif icações que m ost rassem sua tendência∗ , a seguir os modelos culturais dos dom inadores ( tendência que têm os dom inados em certo momento de suas relações com os dom inadores) . É possível que resist issem às codificações, considerando- as falsas, talvez mesmo ofensivas. Na medida, porém, em que se aprofundassem em sua análise, com eçariam a perceber que sua aparente im itação dos m odelos do dom inador é o resultado da int rojeção daqueles m odelos e, sobretudo, dos m itos

∗ A este propósito, ver Frantz Fanon, Os condenados da Terra, e Albert Memmi, Retrato do Colonizado

Precedido pelo Retrato do Colonizador, Ed. Paz e Terra. Rio, 1977, 2ª ed.

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sobre a pseudo- superioridade das classes dom inantes a que corresponde a pseudo-infer ior idade dos dom inados. Assim , o que, de fato, é int rojeção, aparece, num a análise ingênua, como se fosse pura im itação. Basicamente, como tentei aclarar em Pedagogia do Oprim ido, quando cer tos setores das classes dominadas reproduzem o est ilo de vida das classes dom inantes, é que estas se encont ram na “ int im idade” do ser daquelas. Os oprim idos ext rojetam aos opressores quando, tomando distância deles, os objet ivam . I dent ificando- os, reconhecem- nos, então, com o seus antagonistas∗∗ .

Na medida, porém, em que a int rojeção dos valores dos dominadores não é um fenôm eno individual m as social e cultural, sua ext rojeção, dem andando a t ranform ação revolucionária das bases m ateriais da sociedade, que fazem possível tal fenôm eno, im plica tam bém num a certa form a de ação cultural. Ação cultural at ravés da qual se enfrenta, culturalmente, a cultura dom inante. Os oprim idos precisam expulsar os opressores não apenas enquanto presenças físicas, m as tam bém enquanto som bras mít icas, int rojetadas neles. A ação cultural e a revolução cultural, em diferentes m om entos do processo de libertação, que é perm anente, facilitam esta ext roj eção.

Os educandos necessitam descobrir o que há por t rás de m uitas de suas at itudes em face da realidade cultural para assim enfrentá- la de form a diferente. A ad- m iração de sua anterior ad - m iração da realidade é necessária para que isto se faça.

A capacidade que têm os educandos de conhecer em term os cr ít icos – de ir mais além da mera opinião – se vai est im ulando no processo de desvelam ento de suas relações com o mundo histórico- cultural. Mundo de que os seres hum anos são os cr iadores.

Não queremos com isto dizer – e tem os sido bastante reiteradores neste t rabalho – que o conhecim ento cr it ico das relações seres humanos- mundo surja como resultado de um jogo intelectualista.

Com o algo que se const ituísse fora da prát ica. A prát ica está com preendida nas situações concretas que são codificadas para serem subm et idas à análise cr it ica. Analisar a codif icação em sua “est rutura profunda” é, por isso mesmo, repensar a prát ica anter ior e preparar- se para um a nova e diferente prát ica, se este for o caso. Daí a necessidade, antes referida, de jamais romper- se a unidade ent re o contexto t eór ico e o contexto concreto, ent re teor ia e prát ica.

Evidentem ente, naquele contexto, ao propor- se aos educandos a análise de sua prát ica anter ior , im plícita na codif icação, o educador não poder fur tar- se, em determinados momentos, de informar. E não pode na medida mesma em que conhecer não é adivinhar. O fundamental, porém, é que a informação seja sempre precedida e associada à problem at ização do objeto em torno de cujo conhecim ento ele dá esta ou aquela inform ação. Desta form a, se alcança um a síntese ent re o conhecim ento do educador, m ais sistem at izado, e o conhecim ento do educando, menos sistemat izado – síntese que se faz at ravés do diálogo.

A responsabilidade do educador, num a perspect iva com o esta, é, então, m aior que a de seu colega, cuja tarefa se reduz à t ransferência de inform a ções a serem m em orizadas pelos educandos. Tal educador – o t ransm issor de informações – pode

∗ ∗ A este respeito ver Fanon, op. cit.

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simplesmente repet ir o que leu e às vezes nem sequer entendeu bem, uma vez que, para ele (ou ela) a educação não é um verdadeiro ato de conhecim ento.

O primeiro t ipo de educador, pelo cont rár io, é um sujeito de conhecim ento, face a face com out ros sujeitos de conhecimento. Jamais pode ser um memorizador, mas alguém que constantem ente refaz sua capacidade de conhecer no exercício que desta m esm a capacidade fazem os educandos. Para ele a educação envolve sem pre um a certa teor ia do conhecim ento posta em prát ica. Ele sabe, porém , que nem todo diálogo é, em si, a marca de uma relação de verdadeiro conhecimento.

O intelectualism o socrát ico – que tornava a definição do conceito com o o conhecimento da coisa definida e o conhecimento mesmo como virtude, não const ituía uma verdadeira pedagogia do conhecimento, mesmo que fosse dialógica. A teoria platônica do diálogo não conseguiu ir m uito m ais além de Sócrates, ainda que, para Platão, a “ pr ise de conscience” fosse um a das condições necessár ias ao ato de conhecim ento e que alcançar a verdade im plicasse na superação da “doxa” pelo “ logos” .

Para Platão, porém , a “pr ise de conscience” não se refer ia ao que os seres hum anos soubessem ou não soubesse ou soubessem equivocadamente em torno de suas relações dialét icas com o mundo. Tinha que ver com o que os seres humanos um dia souberam e de que se esqueceram ao nascer. Conhecer era, pois, relembrar ou recuperar um conhecimento olvidado. A apreensão da “doxa” e do “ logos” e a superação daquela por este não se dava na com preensão dialét ica das relações seres humanos- mundo, mas no esforço de recordar um “ logos” esquecido.

Para que o diálogo seja o selo do ato de um verdadeiro conhecim ento é preciso que os sujeitos cognoscentes tentem apreender a realidade cient if icam ente no sent ido de descobrir a razão de ser da mesma – o que a faz ser com o está sendo. Assim , conhecer não é relem brar algo previam ente conhecido e agora esquecido. Nem a “doxa” pode ser superada pelo “ logos” fora da prát ica consciente dos seres hum anos sobre a realidade.

Para ser um ato de conhecim ento, o processo de alfabet ização de adultos deve, de um lado, necessariamente, envolver as massas populares num esforço de mobilização e de organização em que elas se apropriam , com o sujeitos, ao lado dos educadores, do próprio processo. De out ro, deve engajá - las na problemat ização permanente de sua realidade ou de sua prát ica nesta.

As codificações, at ravés de que se faz a problem at ização da realidade, t razem em si a palavra geradora a elas refer ida ou a algum de seus aspectos.

Uma invest igação prelim inar nos oferece o “universo lingüíst ico mínimo” dos alfabet izandos, do qual ret iramos as palavras geradoras com que se organiza o programa.

As palavras são escolhidas,

a) em função de seu conteúdo pragm át ico, enquanto signos lingüíst icos que correspondem a um entendimento comum numa área de uma cidade, numa região de um país (nos Estados Unidos, por exemplo, a palavra “soul” , alma, tem uma significação especial ent re as populações negras) , e

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b) em função de suas dificuldades fonét icas que devem ser propostas, gradualm ente, aos alfabet izandos.

Finalmente, é interessante que a primeira palavra geradora seja t r issilábica. É que, ao ser decom p osta em sílabas, const ituindo cada uma delas uma fam ília silábica, oferece aos alfabet izandos a possibilidade de experim entar várias com binações, na sua primeira int im idade com a palavra escrita.

Escolhidas as 17 palavras geradoras, o passo seguinte será codificar 17 situações fam iliares aos alfabet izandos. Não será demasiado reafirmar que as palavras geradoras devem ser int roduzidas nas codificações, obedecendo - se à gradação de suas dif iculdades fonét icas.

Estas codificações, sublinhem os um a vez m ais, são objetos de conhecim ento que, nos Círculos de Cultura – contextos t eór icos – se dão ao desvelam ento dos sujeitos cognoscent es – educador- educando, educando- educador.

No Brasil, antes de ser iniciado o t rabalho de descodif icação das situações concretas em que se achavam as palavras geradoras, propúnham os um a série de out ras codif icações, cuja análise tornava possível a com preensão das relações seres humanos- mundo∗ .

No Chile, de modo geral, os alfabet izandos exigiam que se começasse imediatamente a t rabalhar com as palavras. Esta reação levou os educadores chilenos a propor a discussão em torno das relações seres humanos- m undo, quando da descodificação de situações a que já se ligava um a palavra geradora. O fundam ental é que esta análise seja feita, não importa se no com eço, com o no caso brasileiro, ou se durante o processo da alfabet ização. Análise que, part indo das relações ent re os seres hum anos e o m undo natural, se estende ao m undo da cultura e da histór ia, à com preensão da realidade social dos alfabet izandos.

Assim , se a palavra favela, no caso brasileiro e a palavra “callam pa” no chileno, são palavras geradoras em áreas faveladas ou “callamperas” nesses países, é óbvio que as codificações em que devem estar postas devam representar aspectos da realidade favelada.

A análise das relações ent re os seres humanos e o mundo leva necessariamente à reflexão sobre a maneira de se estar sendo numa favela ou “callampa” .

Em nossa experiência observamos, não raras vezes, como, no processo de descodificação de um a situação de favela, a análise aprofundada da situação ia fazendo possível a sobrepassagem de um estado de percepção no qual – poderíamos dizer com uma metáfora que talvez não expresse bem o que queremos descrever – os favelados se achavam “assum idos” pela situação, por um out ro em que eles a “assum iam ” . Esta análise por parte dos favelados reflete, naturalm ente, aspectos da ideologia das classea dominantes int rojetados por eles mas, também, algo fundamental que lhes pertence e em que se amuralham inst int ivamente para defender- se e preservar- se. Suas at iv idades noturnas, seus bailes, sua m úsica, o uso do corpo, seus gestos, sua m aneira de andar, de vest ir , suas crenças, sua ironia, seu humor, seus códigos de companheir ismo, sua forma de “desapertar- se” de situações difíceis, sua sem ânt ica, sua sintaxe, tudo isto const itui sua linguagem , com o

∗ A este propósito ver Paulo Freire, Educação como Prática da Liberdade. (N. E.)

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“ linguagem total” , e são valores que compõem aquela muralha e que, mesmo tocados pela ideologia dom inante, não se ent regam totalmente a ela;

Não queremos dizer, contudo,que não haja debilidades neste universo cultural, que deve ser compreendido em sua relação dialét ica com o dom inante e não simét r ica. Debilidades que devem igualmente ser problemat izadas.

O Movimento I ndependente Revolucionário – MIR – no Chile, foi bastante lúcido para perceber o potencial revolucionário dessas populações ditas “marginais” .

Estam os convencidos, não por ouvir dizer, m as por nossa prát ica e pelas observações de out ras prát icas, das conseqüências posit ivas inegáveis de um esforço paciente – a paciênc ia também uma virtude revolucionária, que tem, como seu oposto, a impaciência revolucionarista – de capacitação polít ica dessas populações, com que elas se assum am com o classe.

Sem o conhecim ento sério, responsável, de com o estas populações t ransform am , na sua prát ica, sua fraqueza em força, é im possível um a com unicação válida com elas. Sem este conhecim ento, o que fazem os, enquanto intelectuais pequeno- burgueses, é “ invadí- las” , em termos dist intos da invasão que as classes dom inantes já fazem, mas invasão sempre – uma espécie de “colonialismo revolucionário” .

Àqueles e àquelas que vêem estas populações com o “naturalm ente infer iores e incapazes” e at r ibuem a esta “ infer ior idade” todas as deficiências m ateriais que caracter izam um a favela, sugerir íam os que discut issem um dia com favelados sobre o que significa sua existência. Talvez alguns ent re esses senhores e essas senhoras descobrissem afinal que, se há algo int rínsecamente mau, que deve ser radicalmente t ransformado e não simplesmente reformado, é o sist ema capitalista mesmo, incapaz, ele sim , de resolver o problema com seus intentos “modernizantes” .

Gostar iam os de salientar que esta visão ideológico- dominante é a mesma que se encont ra na base do perfil que as sociedades m et ropolitanas fazem do Terceiro Mundo como um todo. Daí que o subdesenvolvimento apareça para muitos teóricos m et ropolitanos com o expressão de at raso, de incapacidade. O Terceiro Mundo, com o um mundo “marginal” – uma espécie de favela maior – sem nenhuma viabilidade histór ica própr ia e cuja “salvação” por isso mesmo se encont ra em seguir, docilmente, os m odelos estabelecidos de fora. Modelos de sociedades m et ropolitanas, no fundo, m odelos das classes dom inantes destas sociedades. Os interesses expansionistas destas classes, aos quais se at relam os das classes dom inantes das sociedades dependentes – Primeiro Mundo do Terceiro – estão im plícitos nestas noções.

Assim , a “ salvação” do Terceiro Mundo pelas classes dom inantes das sociedades metropolitanas, at ravés de todos os mecanismos demasiado conhecidos, signif ica a preservação de sua dependência por m eio da m odernização de suas est ruturas. Por isso é que somente as classes e grupos dom inados do Terceiro Mundo – verdadeiro Terceiro Mundo do Terceiro – com uma vanguarda revolucionária lúcida, podem encarnar a utopia de sua libertação, o sonho possível de sua independência, de seu real desenvolvimento, que não tem nada que ver com a modernização capitalista.

Neste sent ido, a pedagogia que defendem os, concebida na prát ica realizada num a área signi ficat iva do Terceiro Mundo, é, em si, um a pedagogia utópica. Utópica, não porque se nut ra de sonhos impossíveis, porque se filie a uma perspect iva idealista, porque implicite um perfil abst rato de ser humano, porque pretenda negar a

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existência das classes sociais ou, reconhecendo- a, tente ser um cham ado às classes dominantes para que, adm it indo- se em erro, aceitem engajar- se na const rução de um mundo de fraternidade.

Utópica porque, não “dom est icando” o tem po, recusa um futuro pré- fabr icado que se instalaria autom at icam ente, independente da ação consciente dos seres hum anos.

Utópica e esperançosa porque, pretendendo estar a serv iço da liber tação das classes opr im idas, se faz e se refaz na prát ica social, no concreto, e im plica na dialet ização da denúncia e do anúncio, que têm na práxis revolucionária permanente, o seu momento máximo.

Por isso, denúncia e anúncio, nesta pedagogia, não são palavras vazias, m as com prom isso histór ico. Por out ro lado, a denúncia da sociedade de classes com o um a sociedade de exploração de um a classe por out ra exige um cada vez m aior conhecim ento cient if ico de tal sociedade e, de out ro, o anúncio da nova sociedade dem anda um a teoria da ação t ransform adora da sociedade denunciada.

A denúncia e o anúncio tornam corpo quando as classes dominadas os assumem, assim como a teoria da ação t ransformadora – a teoria revolucionária – se efet iva quando é igualmente assum ida por aquelas classes.

O caráter utópico desta pedagogia é tão perm anente quanto a educação m esm a. Seu mover- se entre a denún cia e anúncio não se esgota quando a realidade denunciada hoje cede seu lugar à nova, mais ou menos anunciada naquela denúncia.

É bem verdade, porém, que há uma diferença fundamental ent re o ato da denúncia e do anúncio num a sociedade de classes e o m esm o ato num a sociedade que se refaz num a perspect iva socialista. De qualquer m aneira, quando a educação já não é utópica, isto é, quando já não se faz na desafiante unidade da denúncia e do anúncio, é porque o futuro perde sua real significação ou porque se instala o m edo de viver o r isco do futuro com o superação cr iadora do presente que envelhece.

Não há anúncio sem denúncia, assim como toda denúncia gera anúncio. Sem este, a esperança é im possível. Mas, num a autent icam ente utópica, não há com o falar em esperança se os braços se cruzam e passivam ente se espera. Na verdade, quem espera na pura espera vive um tem po de espera vã. A espera só tem sent ido quando, cheios de esperança, lutam os para concret izar o futur.o anunciado, que vai nascendo na denúncia m ilitant e.

Não pode haver esperança verdadeira, também, naqueles que tentam fazer do futuro a pura repet ição de seu presente, nem naqueles que vêem o futuro com o algo predeterm inado. Têm ambos uma noção “domest icada” da História. Os primeiros, porque pretendem parar o tem po; os segundos, porque estão certos de um futuro já “ conhecido” . A esperança utópica, pelo cont rár io, é engajam ento arr iscado. É por isso que as classes dom inantes, que apenas podem denunciar a quem as denuncia e nada podem anunciar a não ser a preservaçao do “ status quo” não podem ser, j am ais, utópicas nem profét icas.

Um a pedagogia utópica da denúncia e do anúncio tem de ser um ato de conhecim ento da realidade denunciada, ao nível da alfabet ização ou da post - alfabet ização, enquanto ação cult ural para a libertação. Daí a ênfase que dam os à constante problem at ização da realidade concreta dos alfabet izandos, representada em situações codif icadas.

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Quanto m ais a problem at ização avança e os sujeitos descodificadores se adent ram na “ int im idade” do objeto problem at izado, tanto m ais se vão tornando capazes de desvelá - lo.

É preciso, contudo, fazer aqui dois comentários. Primeiro, que não têm sido raras as vezes, em nossa prát ica e na prát ica de out ros, de que tem os t ido conhecim ento, em que os par t icipantes dos Círculos de Cultura resistem a reconhecer a situação codificada com o expressão de sua realidade. E não porque a codificação seja, na verdade, est ranha a ela, pelo cont rár io, recusam- na precisam ente porque a reflete. Repet e- se, em tais casos, a mesma resistência que ocorre no diálogo psicoterapêut ico em que um dos pólos se nega a tomar a sua alienação nas próprias mãos para analisá- la nas suas razões mais profundas. Em vez da “arqueologia” do sofrimento, prefere- se, assim, “soterrar” mais ainda o sofrimento.

Esta reação de rechaço, a que tem os feito referência em out ros t rabalhos, com eça às vezes no m om ento em que os descodificadores estão ainda ao nível da “est rutura de superfície” da codificação, em que sim plesm ente descrevem os elem entos const it ut ivos da m esm a e se reforça quando se tenta alcançar a codif icação na sua “est rutura profunda” . Esta recusa desaparece, porém , na m edida em que os part icipantes se engajam num a form a de ação polít ico- revolucionária. Aqui chegamos ao segundo com entár io que gostar iamos de fazer. Repitamos a afirmação que está provocando estas considerações. Quanto m ais a problem at ização avança e os sujeitos descodif icadores se aden- t ram na “ int im idade” do objeto, tanto mais se vão tornando capazes de desvelá - la. Este é um fato tam bém, mais generalizado em nossa ex-per iência do que a recusa anter iorm ente refer ida. Considerando, porém , que o ato de desvelar a realidade, indiscut ivelm ente im portante, não significa o engajam ento automát ico na ação t ransformadora da mesma, o problema que se nos apresenta é o de encont rar,em cada realidade histór ica, os cam inhos de ida e volta ent re o desvelamento da realidade e a prát ica dir igida no sent ido de sua t ransformação.

Nestes cam inhos de ida e volta é que se faz viável aos oprim idos assum ir- se como “ classe para si” , esperançosam ente utópicos.

A conscient ização se autent ica nesta ida e volta que é, em últ im a análise, a unidade dialét ica ent re prát ica e teor ia, em que aprendem os que a verdadeira paciência não se indent ifica, jam ais, com a espera na pura espera. A verdadeira paciência, associada sem pre à autênt ica esperança, caracter iza a at itude dos que sabem que, para fazer o im possível, é preciso torná- lo possível. E a melhor maneira de tornar o impossível possível é realizar o possível de hoje.

Vista assim , a conscient ização não vem antes ou depois da alfabet ização. Ela se dá neste com o na post - alfabet ização ou em at iv idades de educação polít ica envolvendo analfabetos e não necessariam ente ligadas a um esforço alfabet izador.

Voltando à alfabet ização, insist iremos em reafirmar que jamais tornamos a palavra com o algo estát ico ou desconectado da realidade concreta dos alfabet izandos, m as como uma dimensão de sua linguagem- pensamento em torno de seu mundo. Por isto, quando eles part icipam cr it icam ente da decomposição das primeiras palavras geradoras associadas à sua experiência quot idiana; quando ident ificam as “ fam ílias silábicas” que resultam daquela decomposição; quando percebem o mecanismo de com binações silábicas de sua língua, descobrem , finalm ente, nas várias possibilidades de com binações, suas próprias palavras. Pouco a pouco, na m edida em que essas possibilidades se vão mult iplicando at ravés do domínio de novas palavras geradoras,

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os alfabet izandos vão ampliando não apenas seu vocabulário, mas também sua capacidade de expressão pelo desenvolvim ento de sua capacidade cr iadora.

No Chile, em algumas áreas em que se fazia a reforma agrária, os camponeses que part icipavam de program as de alfabet ização costum avam escrever palavras com seus próprios inst rum entos, no chão dos cam inhos que os conduziam ao t rabalho. “Estes hom ens são sem eadores de palavras” , disse, certa vez, Maria Edi Ferreira, socióloga que fazia parte da equipe, em Sant iago, do I nst ituto de Capacitación e I nvest igación en Reforma Agrária. Naturalmente, não apenas “semeavam” palavras, mas também, discut indo idéias, ancoradas na sua prát ica real, percebiam cada vez m ais claram ente seu novo papel no “asentam iento” ∗ .

Perguntam os a um destes “sem eadores de palavras” , recém- alfabet izada, por Que ele não havia aprendido a ler e a escrever antes da reform a agrária.

“Antes da reforma agrária, meu amigo, disse ele, eu nem sequer pensava. Nem eu nem meus companheiros” .

“Por quê?” , perguntamos.

“Porque não era possível. Vivíam os sob ordens. Tínham os apenas que obedecer a elas. Não t ínhamos nada que dizer” , respondeu enfat icamente.

A resposta sim ples deste cam ponês nos int roduz, claram ente, à com preensão do que é a “ cultura do silêncio” . Na cultura do silêncio exist ir é apenas viver. O corpo segue ordens de cima. Pensar é difícil; dizer a palavra, proibido.

“Quando todas estas terras pertenciam a um lat ifúndio, disse out ro homem na mesma conversação, não havia razão para ler e escrever. Não t ínham os nenhum a responsabilidade. O pat rão dava as ordens e nós obedecíamos. Por que ler e escrever em tal situação? Agora as coisas são diferentes. Veja m eu caso, por exem plo. No ‘asentam iento’, não apenas t rabalho cerno todos os com panheiros, m as sou o responsável pelo reparo dos inst rum entos. Quando com ecei, não sabia ler nem escrever. Você não pode imaginar o que significava para m im ir a Sant iago comprar acessórios. Eu me perdia. Tinha medo de tudo – medo da cidade grande, de comprar errado, de ser enganado. Agora as coisas são diferentes” .

Observe- se com o est e camponês descreve sua anter ior experiência de analfabeto: sua desconfiança, seu m edo m ágico, m as lógico, da grande cidade, sua t im idez. E observe- se a segurança com que repete: “Agora, as coisas são diferentes” .

“Que sent iu você, am igo – perguntam os a out ro ‘semeador de palavras’, em oportunidade diferente – quando pôde escrever e ler sua primeira palavra?”

∗ Depois da desapropriação das terras, na reforma agrária chilena, os camponeses, que eram trabalhadores assalariados nos grandes latifúndios, se tornavam “assentados” durante um período de três anos em que recebiam uma variada assistência do governo através da Corporación de la Reforma Agrária. Este período de "asentamiento” precedia ao da entrega das terras aos camponeses. Naturalmente tudo isto se acabou, com a queda do governo Allende. (Nota atualizada)

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“Eu me sent i feliz, porque descobri que podia fazer que as palavras falassem” , respondeu.

“Em nossas conversações com os cam poneses – diz Dario Salas,∗ fic ávamos surpreendidos com as imagens que usavam para expressar seu interesse e sua sat isfação com a alfabet ização. Por exem plo: “Antes eu era cego, agora o véu j á nao cobre meus olhos” . “Eu vim aprender a assinar o nome. Jamais acreditei que, em minha idade, pudesse realmente aprender a ler” . “Antes as let ras me pareciam pequenos brinquedos. Hoje, elas me dizem algo e eu as posso fazer falar” .

“É com ovedor, cont inua Salas, observar o deleite dos cam poneses quando o m undo das palavras se abre a eles. Às vezes,dizem : Estam os cansados, a cabeça nos dói, mas não queremos sair daqui sem saber ler e escrever” .∗

As palavras que se seguem foram gravadas durante um a invest igação de “ tem as geradores” num dos “asentam ientos” . São a descodificação que um dos part icipantes fez da codif icação que o grupo t inha com o objeto de análise.

“Vem os lá longe um a casa. Um a casa t r iste com o se est ivesse abandonada. Quando se vê um a casa com um a cr iança nela, parece m ais feliz. Dá m ais alegria e paz a quem passa. O pai chega à casa, exausto, depois do t rabalho, preocupado, am argo, e seu f ilho corre até ele, abraça- o, porque as cr ianças não são duras com o os adultos. O pai j á com eça a sent ir - se m ais feliz desde que vê o filho. Fica realm ente contente consigo mesmo. Comove- se com o desejo que seu filho tem de amá - lo.”

Em 1968, uma equipe uruguaia publicou um pequeno livro, Se vive com o se puede, cujo conteúdo resultou dos debates gravados em torno de um certo núm ero de codificações propostas a um grupo de habitantes de um bairro proletár io de Montevidéu. A primeira edição desse livro, de t rês m il exemplares, se esgotou em 15 dias, o que ocorreu com a segunda.

O texto que se segue é um fragm ento desse livro.

A COR DA ÁGUA

A água? a água? para que serve a água? Sim, sim , é isto o que eu vejo. A água. Ah! m eu povoado distante! O riacho em torno de que me criei, lavando, o r iacho Fraile Muerto, ai me criei eu. E a meninice assim , para um lado, para o out ro. Cor da água, boas recordações. Bonitas. – Para que servia a água? Para lavar.Você sabe, para nós que somos lavadeiras, e depois aí os animais iam beber – ali estavam os cam pos – nós lavávamos também ai. – E usavam a água também para beber?

∗ Dario Salas, “Algumas experiências vividas na Supervisão da Educação Básica em Alfabetização Funcional no Chile”, Relatório. ∗ Dario Salas-se refere a um dos melhores programas de alfabetização de adultos organizados pela Corporación de la Reforma Agrária, em colaboração com o Ministério de Educação e o Instituto de Capacitación e Investigación en Reforma Agrária. Cinquenta camponeses recebiam alojamento e bolsa de estudo por um mês. As discussôes em torno das palavras geradoras se centravam na análise da situação local, regional e nacional.

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– Íamos também ao riacho que não t ínhamos água, tornávamos daí e me lembro, uma vez, em 45, que veio uma praga de “martelos” – havia que t irá- los e eu digo porque é verdade. Naqueles tem pos havia sede, não se podia olhar o que se tornava. Eu me lembro, eu era menina e separava os “martelos” assim , e as mãos, e out ras eu não t inha. E a água quente, uma grande seca, o r iacho quase sem água, água, suja, turva e quente – de tudo um pouco, e t inha de tomar, porque se não morria de sede.

Todo o livro tem este est ilo agradável, com grande força de expressão do m undo de seus autores, “ sem eadores de palavras” , procurando emergir da cultura do silêncio.

Textos do povo, assim recolhidos, é- que devem const ituir o material de leitura para os alfabet izandos e não “Eva viu a uva” , “a asa é da ave” ou “ se você t rabalha com m artelo e prego tenha cuidado para não fer ir o dedo” .

Naturalm ente, porém , num a alfabet ização do ponto de vista das classes dom inantes, o que se tem de oferecer aos alfabet izandos para ler é m esm o que “Eva viu a uva” ...

Na nossa posição, o que defendem os e propom os é que os textos de leitura dos alfabet izandos venham preponderantemente deles próprios e a eles voltem para a sua análise.

Para isto, porém , é preciso que acreditem os neles e, em nossa prát ica com eles, nos tornemos seus educandos também.

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I I PARTE: Ação cultural e conscientização

Existência em e com o mundo.

O ponto de part ida para um a análise, tanto quanto possível sistem át ica, da conscient ização, deve ser um a com preensão crít ica dos seres hum anos com o existentes no mundo e com o mundo. Na medida em que a condição básica para a conscient ização é que seu agente seja um sujeito, isto é, um ser consciente, a conscient ização, com o a educação, é um processo especif ica e exclusivam ente humano. É como seres conscientes que mulheres e homens estão não apenas no mundo, mas com o mundo. Somente homens e mulheres, com o seres “abertos” , são capazes de realizar a com plexa operação de, sim ultaneam ente, t ransform ando o m undo at ravés de sua ação, captar a realidade e expressá- la por meio de sua linguagem cr iadora. E é enquanto são capazes de tal operação, que im plica em “ tom ar distância” do m undo, objet ivando- o, que homens e mulheres se fazem seres com o m undo. Sem esta objet ivação, m ediante a qual igualm ente se objet ivam , estariam reduzidos a um puro estar no mundo, sem conhecimento de si mesmos nem do mundo.

Os animais, por sua vez, estão simplesmente no mundo, incapazes de objet ivar- se e ao mundo. Rigorosamente falando, vivem uma vida sem tempo, nela submersos, sem a possibilidade de em ergir dela, ajustados e aderidos a seu contorno.

Homens e mulheres, pelo cont rário, podendo romper esta aderência e ir mais além do mero estar no m undo, acrescentam à vida que têm a existência que cr iam . Exist ir é, assim, um modo de vida que é próprio ao ser capaz de t ransformar, de produzir, de decidir , de cr iar, de recr iar, de comunicar- se.

Enquanto o ser que simplesmente vive não é capaz de reflet ir sobre si mesmo e saber- se vivendo no mundo, o sujeito existente reflete sobre sua vida, no domínio mesmo da existência e se pergunta em torno de suas relações com o mundo.

O domínio da existência é o domínio do t rabalho, da cultura, da história, dos valores – domínio em que os seres humanos experimentam a dialét ica ent re determ inação e liberdade.

Se não t ivessem sido capazes de romper com a aderência ao mundo, emergindo dele, com o consc iência que se const ituiu na “ad- m iração” do mundo como seu objeto, seriam seres meramente determ inados e não seria possível então pensar em termos de sua liber tação.

Som ente os seres que podem reflet ir sobre sua própria lim itação são capazes de libertar- se desde, porém, que sua reflexão não se perca numa vaguidade descom prom et ida, m as se dê no exercício da ação t ransform adora da realidade condicionante. Desta form a, consciencia de e ação sobre a realidade são inseparáveis const ituintes do ato t ransform ador pelo qual homens e mulheres se fazem seres de relação∗ . A prát ica consciente dos seres hum anos, envolvendo reflexão,

∗ A este respeito ver Paulo Freire, Educação como Prática da Liberdade.

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intencionalidade, tem poralidade e t ranscendência ∗ ∗, é diferente dos m eros contactos dos animais com o mundo.

Os contactos dos anim ais são acrít icos. Não vão m ais além da associação de im agens sensoriais at ravés da experiência. São singulares e não plurais. Os animais não elaboram objet ivos. Vivem ao nível da “ imersão” , daí sua atemporalidade.

A possibilidade que têm os seres humanos de atuar sobre à realidade objet iva e de saber que atuam , de que resulta que a tornam com o objeto de sua curiosidade, a sua comunicação mediat izada pela realidade, por meio de sua linguagem criadora, a pluralidade de respostas a um desafio singular, testemunham a cr it icidade que há nas relações ent re eles e o m undo. Sua consciência, que não é a fazedora arbit rár ia da objet ividade, com a qual const itui um a unidade dialét ica, não é, tam bém , por isso mesmo, uma pura cópia, um simples reflexo daquela. Daí que esta nota de cr it icidade não possa ser compreendida nem, de um lado, por quem absolut iza a objet ividade, nem , de out ro, por quem absolut iza a consciência. No pr im eiro caso, a consciência ser ia incapaz de voltar- se cr it icam ente sobre a realidade concreta que a condic iona; no segundo, na medida em que fosse a criadora da realidade, seria um a pr ior i dest a. Em nenhum a destas hipóteses nos parece viável com preender a ação t ransform adora dos seres humanos sobre o mundo. Do ponto de vista do objet ivismo mecanicista, porque, mera réplica da realidade, a consciência seria puro objeto da realidade que, então, se t ransformaria a si mesma ∗ .

Do ponto de vista do subjet ivismo, porque a t ransformação de uma realidade simplesmente imaginada seria um absurdo. Assim, em ambos estes casos, não nos parece possível a verdadeira praxis, que im plica na unidade dialét ica ent re subjet iv idade e objet iv idade, prát ica e teor ia.

O behavior ism o é incapaz tam bém de com preender estas relações ent re os seres humanos e o mundo. Quer na forma chamada behaviorismo mecanicista, quer na chamada behaviorismo lógico.

Na primeira, os seres humanos são negados enquanto vistos como máquinas; na segunda, enquanto sua consciência é “m era abst ração” ∗∗ .

Do ponto de vista de nenhum a dessas visões dos seres hum anos e da realidade é v iável a com preensão da conscient ização. Esta só é possível porque a consciência, condicionada, é capaz de reconhecer- se com o tal.

Esta dim ensão cr it ica da consciência explica as finalidades de que as ações t ransformadoras dos seres humanos sobre o mundo estão impregnadas. Porque são capazes de ter f inalidades, são capazes de prever o resultado de sua ação, ainda

∗ ∗ Transcendência, neste contexto, significa a capacidade da consciência humana de sobrepassar os limites da configuração objetiva. Sem esta capacidade nos seria impossível a consciência do próprio limite. Estou consciente, por exemplo, dos limites da mesa em que escrevo porque sou capaz de transcendê-los. ∗ “La teoria materialista de que los hombres son producto de las circunstancias y de la educación, y de que, portanto, los hombres modificados san producto de circunstancias distintas y de una educación distinta, olvida que las circunstancias se hacen cambiar precisamente por los hombres y que el próprio educador necessita ser educado”. Marx, III Tesis sobre Feuerbach, in Marx, K. e Engels, F., Carlos Marx – Federico

Engels, Obras Escolhidas, II Tomo, pág. 404, Editorial Progresso, Moscou, 1966. ∗ ∗ Referimo-nos ao behaviorismo, tal como é estudado na obra de John Belloff, The existence of mind,

MacGibbon and Kee, Nova York, 1964.

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antes de iniciada. São seres que projetam, como deixa claro Marx em O Capital: “Aqui, diz ele, part imos del supuesto del t rabajo plasmado ya bajo una forma en la que pertenece exclusivam ente al hom bre. Una araña ejecuta operaciones que semejan a las manipulaciones del tejedor, y la const rucción de los panales de las abejas podria avergonzar, por su perfección, a m ás de un m aest ro de obras. Pero, hay algo en que el peor maest ro de obras aventaja, desde luego, a la mejor abeja, y es el hecho de que, antes de ejecutar la const rucción, la proyecta en su cérebro. Al f inal del proceso de t rabajo brota un resultado que antes de com enzar el proceso exist ia ya en la m ente del obrero, un resultado que tenia ya existencia real” ∗.

Ainda que as abelhas, com o boas “especialistas” , possam ident ificar a flor de que necessitam para fazer seu mel, não podem mudar de “especialização” . Não podem também operar subprodutos. Sua ação sobre o mundo não está acompanhada pela objet ivação deste. Sua ação carece de reflexão cr it ica. Enquanto os anim ais se adaptam ao mundo para sobreviver, os seres humanos o t ransformam de acordo com finalidades que se propõem, mesmo que sempre a part ir de uma certa situação histór ica a que “ chegam ” , independentem ente de sua consciência.

Adaptando- se ao m undo para sobreviver, sem fins a alcançar, sem opções, os anim ais não “animalizam” o mundo, A “animalização” do mundo estaria associada necessariam ente à “anim alização” e à “desanim alização” dos anim ais e isto pressuporia neles a consciência de sua inconclusão, que os engajaria num m ovim ento de busca permanente. Em realidade, ao const ruir habilmente suas colméias e ao fabricar seu me l, as abelhas cont inuam abelhas e, em seus contactos com o m undo, não se fazem mais ou menos abelhas∗.

Para os seres humanos, como seres da praxis, t ransformar o mundo, processo em que se t ransformam também, significa impregná- lo de sua presença cr iadora, deixando nele as m arcas de seu t rabalho.

A cr it icidade e as finalidades que se acham nas relações ent re os seres hum anos e o mundo implicam em que estas. relações se dão com um espaço que não é apenas fisico, mas histórico e cultural. Para os seres humanos, o aqui e o ali envolvem sempre um agora, um antes e um depois. Desta forma, as relaçbes ent re os seres humanos e o mundo são em si históricas, como históricos são os seres humanos, que não apenas fazem a histór ia em que se fazem m as, consequentem ente, contam a histór ia deste m útuo fazer. A “hom inização” – Chardin – no processo da evolução, anuncia o ser autobiográfico.

Os outros animais, pelo contrário, se acham imersos num tempo que não lhes pertence.

Há um a out ra dist inção fundam ental ent re as relações dos seres hum anos com o mundo e os contactos dos animais com ele: somente os seres humanos t rabalham, em sent ido r igososo. Ao cavalo, por exemplo, lhe falta o que é próprio aos seres humanos e a que Marx se refere no seu exemplo das abelhas: “Al final del proceso de t rabajo brota un resultado que antes de com enzar el proceso ya exist ia en la m ente del obrero, un resultado que tenia ya existencia real” . A ação que não tenha esta dim ensão não é t rabalho. Nos cam pos com o no circo, o t rabalho dos cavalos reflet e o t rabalho dos seres hum anos. A ação é t rabalho não por causa do m aior ou m enor

∗ Karl Marx, O Capital. I volume, págs. 130-131, Fundo de Cultura, México, 1966. ∗ “Os tigres não se destigricizam”, disse Ortega y Gasset em uma de suas obras.

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esforço físico despendido nela pelo organisnio que. atua, m as por causa da consciência que o sujeito tem de seu próprio esforço, da possibilidade de programar a ação, de cr iar inst rumentos com que melhor atue sobre o objeto, de ter finalidades, de antecipar resultados. Mais ainda, para que a ação seja t rabalho, é preciso que dela resultem produtos significat ivos que, separando- se do produtor, se podem dar à sua reflexão crít ica ao mesmo tempo em que o condicionam.

Assim, na medida em que os seres humanos atuam sobre a realidade, t ransformando-a com seu t rabalho, que se realiza de acordo com o esteja organizada a produção nesta ou naquela sociedade, sua consciência é condicionada e expressa esse condicionam ento at ravés de diferentes níveis.

NÍVEIS DE CONSCIÊNCIA

Ao nos propormos uma análise dos níveis de consciência, gostaríamos de sublinhar, desde o com eço, que, se, de um lado, não estarem os absolut izando a consciência e, de mo do geral, a supra- est rutura, de out ro, não estarem os tam pouco absolut izando a infra- est rutura. Estaremos, pelo cont rário, procurando compreender os diferentes níveis de consciência em sua relação dialét ica com as condições m ateriais da sociedade, por isso mesmo, nem como determ inantes daquelas condições nem como suas puras cópias. Tem os insist ido, neste com o em out ros . t rabalhos, em que a est rutura social, como um todo, é, em últ ima análise, não a soma (nem também a justaposição) da infra - est rut ura com a supra- est rutura, m as a dialet ização ent re as duas.

Dai o indiscut ível papel que pode jogar a cultura no processo de libertação das classes oprimidas.

Desta form a, ao procurar discernir , em term os relat ivos, as característ icas fundam entais da configuração hist ór ico- cultural a que esses níveis correspondem , esperam os não ser entendidos com o se est ivéssem os caindo num a das absolut izações referidas acima.

Por out ro lado, nossa intenção não é a de tentar um estudo das or igens e da evolução histór ica da consciência, para o que, sobretudo, não nos acham os capacitados, m as ensaiar um a análise int rodutória aos níveis de consciência na realidade lat ino -americana. I sto não significa que uma tal análise, pelo menos em parte, não seja aplicável a out ras áreas do Terceiro Mundo bem com o àquelas das sociedades m et ropolitanas, que se ident ificam com o Terceiro Mundo, enquanto “áreas de silêncio” .

Façamos, em primeiro lugar, algumas considerações em torno do que chamamos cultura do silêncio, em que se encont ram formas especiais de consciência dom inada.

Apesar da evidência, talvez não seja dem asiado afirm ar que a constatação da cultura do silêncio implica no reconhecimento da cultura dom inante e que ambas, ao não se gerarem a si próprias, se const ituem nas est ruturas de dom inação. A cultura do silêncio, tanto quanto dom inadores e dom inados, se encont ra em relação dialét ica e não de oposição sim ét r ica com a cultura dom inante.

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Por out ro lado, nem tudo o que com põe a cultura do silêncio é pura reprodução ideológica da cultura dominante. Nela há também algo próprio aos oprim idos em que se amuralham, como dissemos na primeira parte deste t rabalho, para defender- se, preservar- se, sobreviver. Daí a necessidade já salientada de a liderança revolucionária conhecer não apenas as debilidades desta cultura mas também sua potencialidade de rebelião.

Um dos aspectos a ser discut idos na análise da cultura do silêncio é o das relações ent re o cham ado Prim eiro Mundo e o Terceiro. Aquele, o m undo que “ fala” , que impõe, que invade; este, em momentos diferentes de suas relações dialét icas com aquele, o mundo que escuta, que segue, que se rebela, que é assim ilado ou recuperado, que se rebela de novo, que se revoluciona, que se liberta, sem que esta seqiiência seja algo preestabelecido.

Enquanto mundo que “ fala” , o Prim eiro Mundo tem , no seu seio, o seu Terceiro Mundo – o mundo das classes e dos grupos sociais dom inados, com sua cultura do silêncio também – e o Terceiro, com o totalidade dependente, tem , em sua int im idade, o seu Primeiro Mundo – o mundo de suas classes dom inantes, em relação de subordinação ao Primeiro Mundo do Primeiro, isto é, às classes dom inantes das sociedades m et ropolitanas. Neste sent ido é que há um a certa diferença ent re as classes dominantes do Primeiro Mundo e as classes dominantes do Terceiro, assim como ent re as classes e grupos dom inados de ambos estes mundos.

As classes dom inantes do Primeiro Mundo têm um poder hegemônico, que se exerce não só sobre os seus grupos e classes dom inadas m as sobre o conjunto das sociedades dependentes. As classes dom inantes destas sociedades, subordinadas aos interesses daquelas, cujo est ilo de vida tendem a reproduzir, exercem seu poder sobre as classes dom inadas nacionais.

As classes dom inantes metropolitanas, com um alto poder manipulador, que a m odernização do sistem a capitalista lhes possibilita, podem enfrentar suas cr ises m ais “ suavem ente” que as classes dom inantes da sociedade dependente. A est rutura dependente é demasiado débil para suportar a mais mínima presença das massas populares em at itude contestadora. Daí a freqüente violência com que respondem aos primeiros sintomas de reivindicação popular.

Por seu turno, as classes e grupos dom inados do Primeiro Mundo part icipam de uma totalidade dom inante, enquanto as classes e grupos dom inados do Terceiro fazem parte de uma totalidade dependente. Daí que um dos m itos da cultura dom inante do Primeiro Mundo – para falar só neste – o m ito de sua “superioridade natural” , penet re a cultura do silêncio deste m undo, o que explica o sent im ento de superioridade que muitos dominados do Primeiro Mundo têm em face dos dominados do Terceiro Mundo∗ .

O out ro lado do m esm o fenôm eno é a caracter ização que dom inados do Terceiro Mundo fazem de dominados do Primeiro, como dominadores.

Só na m edida em que estes e aqueles se assumam como a grande maioria de dom inados e não mais como m inorias divididas ent re si e reconheçam a ident idade de

∗ Neste sentido, pode-se falar também de uma tentação que revolucionários metropolitanos devem evitar: a de pretender possuir a verdade revolucionária do Terceiro Mundo. Se não superam esta tentação messiânica, terminam por cair numa contradição com sua opção: a do “colonialismo revolucionário”

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seus interesses, na diversidade de suas realidades, é que se percebem com o companheiros de uma mesma jornada.

Finalm ente, a sociedade dependente é, por definição, uma sociedade semi - silenciosa. Suas classes dom inantes não “ falam ” – refletem a voz imperial.

Som ente quando as classes e grupos dom inados, o Terceiro Mundo do Terceiro, t ransform am revolucionariam ente suas est ruturas é que se faz possível realm ente à sociedade dependente dizer sua palavra. É at ravés desta t ransform ação radical que se pode superar a cultura do silêncio.

Por out ro lado, se um grupo alcança o poder por meio de um golpe de estado e começa a tomar medidas nacionalistas, no cam po da econom ia e da cultura, com o no caso do Peru, no ano passado, 1968, sua polít ica cr ia um a nova cont radição com um a das seguintes conseqüências. Em primeiro lugar, o novo regime pode superar suas própr ias intenções e ver- se obrigado a romper com a cultura do silêncio ou, ao cont rár io, tem endo a presença das m assas populares, pode ret roceder e reim por o silêncio a elas. Terceiro, o governo pode favorecer um novo t ipo de populism o. Neste caso, est im uladas pelas m edidas nacionalistas, as massas submersas terão a ilusão detestar part icipando das t ransform ações de sua sociedade, sendo, na verdade, astutam ente m anipuladas. Mesm o, porém , que seja este o caso, a polít ica populista provocará certas “aberturas” nas áreas m ais fechadas da sociedade peruana e, at ravés destas, as m assas populares com eçarão a em ergir de seu silêncio, fazendo exigências. Na medida em que estas sejam sat isfeitas, embora parcialmente, a tendência das m assas populares será aum entar a freqüência de suas dem andas e, ao mesmo tempo, melhorar a qualidade das mesmas. Deste modo, a polít ica populista term inará por criar sérias contradições ao grupo m ilitar no poder, que será obrigado a romper definit ivamente com a cultura do silêncio ou a restaurá- la. Por esta razão, não nos parece possível, no momento atual, que algum governo lat ino- americano possa manter uma relat iva independência em face do poder imperial, se preserva internam ente a cultura do silêncio.

Em 1961, Jânio Quadros veio ao governo, no Brasil, at ravés de uma das maiores vit ór ias eleitorais na histór ia do pais. Quadros tentou um a polít ica cont raditór ia – a de um a relat iva independência em face do im pério com forte cont role interno.

Depois de sete m eses à frente do governo, inesperadam ente, anunciou à nação que se v ia forçado a renunciar à Presidência do país sob a pressão das “m esm as forças ocultas” que haviam levado o presidente Vargas ao suicídio. Em seguida, fez sua melancólica part ida para Londres.

O golpe m ilitar brasileiro que, pitorescamente, se vem chamando a si mesmo de revolução, e que derrubou o governo Goulart em 1964, tem seguido uma polít ica coerente: subm issão à met rópole, associada a uma violenta repressão e imposição de silêncio às m assas populares. Um a polít ica de subm issão tão incondicional à metrópole seria incompat ível com uma, pelo menos débil, abertura polít ica de que decorresse uma presença mais atuante das massas populares. I nviável seria também, repitamos, uma polít ica de independência com relação ao imperialismo, sem a ruptura da cultura do silêncio.

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Um a das form as de consciência dom inada, nestas sociedades dependentes, se caracter iza por sua quase “aderência” à realidade objet iva ou sua quase “ im ersão” ∗ na realidade. A este nível, como salientamos em Pedagogia do Oprim ido, a consciência dom iaada não toma suficiente distância da realidade a fim de objet ivá- la e conhecê- la cr it icam ente.

Chamamos a essa forma de consciência de “sem i - int ransit iva” . Em sua quase imersão na realidade, esta m odalidade de consciência não consegue captar m uitos dos desafios do contexto ou os percebe destorcidam ente.Sua sem i - int ransit ividade envolve um a certa obliteração que lhe é im posta pelas condições objet ivas. Daí que no seu “ fundo de visão” os dados que m ais facilm ente se destaquem sejam os que dizem respeito aos problemas vitais, cuja razão de ser, de modo geral, é sempre encont rada fora da realidade concreta. É que, a este nível de quase im ersão, não se ver ifica facilm ente o que cham am os de “percepção est rutural” dos fatos, que im plica na com preensão verdadeira da razão de ser dos mesmos. Desta forma, a explicação para os problem as se acha sem pre fora da realidade, ora nos desígnios divinos, ora no dest ino, ou também na “ inferioridade natural” de homens e mulheres cuja consciência se encont ra a este nível. A sem i - int ransit iv idade está necessar iam ente associada ao fatalismo, ainda que este não seja uma exclusividade da sem i -int ransit iv idade. De qualquer m aneira, se a explicação das situações problem át icas se encont ra em algum poder superior ou na “ incapacidade natural” dos seres humanos, é óbvio, então, que a ação destes, com o resposta àquelas situações problem át icas, não se or iente no sent ido da t ransform ação da realidade que as or igina, m as, ao cont rár io, ao poder superior responsável pela existência das situações bem com o po r sua “ infer ior idade natural” . Sua ação tem , pois, um caráter m ágico- defensivo ou m ágico- terapêut ico. Assim é que, na colheita com o na sem eadura, os cam poneses lat ino- americanos e do Terceiro Mundo em geral realizam ritos mágicos, quase sempre de natureza sincrét ico- religiosa.

Envolvendo m ais um a vez as relações dialét icas ent re subjet ividade e objet iv idade, a t ransform ação desses r itos em pura t radição não se faz, diga- se de passagem , m ecanicam ente.

Nada do que estamos dizendo sobre a semi - int ransit ividade significa, porém, que hom ens e m ulheres, cuia consciência se encont ra a este nível, sejam incapazes de superar sua com preensão m ágica dos fatos; sejam incapazes de refazer a leitura de sua realidade, percebendo, afinal, que a sua indigência tem out ras razões que não as até então adm it idas. Pelo cont rár io, a experiência tem m ost rado que m ais rapidam ente do que se pensa, esta releitura se faz possível, m esm o que, ent re o momento da releitura e do engajamento numa nova forma de ação coerente com ela, haja muito o que fazer.

Às vezes, o desvelam ento de pelo m enos parte das razões dos fatos que a releitura da realidade oferece leva os indivíduos que a fazem a um estado de inquietude que assusta aos educadores que a eles foram m ovidos apenas por sent im entos humanitár ios, sem um a opção polít ica clara.

Em situações tais, estes educadores percebem com o, em pouco tem po, foram superados por aqueles de quem pretendiam ser os educadores. Percebem que, não obstante saberem ler e escrever, eram “polit icam ente analfabetos” .

∗ Esta forma de consciência se encontra, em termos preponderantes, nas áreas rurais da América Latina, onde os latifúndios são regra geral.

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Alguns deles, am edrontados, renunciam ao t rabalho iniciado; out ros, aceitando o desafio que aquela releitura lhes coloca, refazem igualm ente sua leitura e, abandonando o espontaneísmo humanitarista, se tornam realmente m ilitantes. “ Alfabet izam- se” polit icam ente, com os analfabetos a quem pretendiam salvar...

Voltem os, porém , a algum as considerações de natureza histór ica. Sob o im pacto das t ransformações infra - est ruturais que produziram as primeiras “ rachaduras” nestas sociedades, umas, mais do que as out ras, ent raram na etapa atual de t ransição hist ór ico- cultural. No caso part icular do Brasil, este processo com eça com a abolição da escravatura nos f ins do século passado∗, acelera - se durante a primeira guerra mundial, intensifica- se com a cr ise de 1929, enfa t iza- se com a segunda guerra e prossegue até 1964, quando o golpe m ilitar condena violentam ente a nação ao silêncio.

O im portante é que, um a vez iniciado o processo de “ rachadura” , com que a sociedade brasileira entra em t ransição, os primeiros movimentos de em ersão das até então preponderantemente submersas e silenciosas massas começam a manifestar-se. ∗∗

Não significando a superação da cultura do silêncio, estes primeiros movimentos de em ergência são, contudo, um m om ento novo desta cultura, de caráter ainda est r itam ente urbano. Se, na fase anter ior , o silêncio coincidia com a percepção fatalista que as m assas populares t inham da realidade e em que as classes dom inantes eram raramente quest ionadas, agora, nos cent ros urbanos, o silêncio com eça a ser percebid o como o resultado de uma realidade material que pode ser t ransformada e não mais como algo inalterável, uma espécie de dest ino ou sina. Por isso mesmo, esses movimentos de emersão levam as classes dom inantes, experimentando- se não apenas enquanto grandes proprietários de terras mas tam bém enquanto em presários nos cent ros urbanos, a buscar novas form as de silenciar as massas populares em emersão.

Esta t ransição histór ica corresponde a um a nova form a de consciência popular – a “ t ransit ivo - ingênua” . Se, ao nível da “semi- int ransit ividade” , são os problemas vitais os que m ais facilm ente se destacam , ao nível da t ransit iv idade ingênua a capacidade de captação se am plia e, não apenas o que antes não era percebido passa a ser, m as também muito do que era entendida de uma certa forma o é agora de maneira diferente.

Não há, porém, fronteiras rígidas ent re uma modalidade e out ra de consciência. Assim , em m uitos casos, a consciência sem i - int ransit iva cont inua presente, em certos aspectos, na t ransit ivo- ingênua.

Na Am érica Lat ina, por exem plo, quase toda a população cam ponesa se encont ra ainda na etapa da quase imersão. A consciência camponesa, mesmo nas áreas em abertura, conserva um grande numero de m itos de sua primeira etapa, apesar de m archar no sent ido da t ransit iv idade.

∗ A abolição da escravatura no Brasil traz consigo a inversão de capital em indústrias mesmo incipientes ainda e estimula as primeiras ondas de imigração alemã, italiana e japonesa nos estados do centro-sul e do sul do país. ∗ ∗ Todo estudo sério que se faça para a compreensão, neste período, de como se constituiu a classe operária no Brasil, nos parece de importância capital.

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Desta m aneira, a consciência t ransit iva em erge com o consciência ingênua, tão dom inada quanto a anterior, mas indiscut ivelmente mais alerta com relação à razão de ser de sua própria ambigüidade.

Por out ro lado, a emersão da consciência popular, mesmo ainda ingenuamente t ransit iva, provoca o desenvolvim ento da consciência das classes dom inantes. É que a t ransit iv idade ingênua anuncia, nas m assas populares em ersas, a const ituição da consciência de classe dom inada, com que se assum em com o “classe para si” . Desta forma, assim como há um momento de surpresa entre as massas populares quando com eçam a ver o que antes não viam , há um a correspondente surpresa ent re as classes dom inantes quando percebem que estão sendo desveladas pelas m assas. Esta dupla revelação provoca ansiedades num as e nout ras.

As massas populares se fazem ansiosas por liberdade, por superar o silêncio em que sem pre est iveram . As classes dom inantes, por m anter o “ status quo” , para o que se inclinam , em função do grau de pressão daquelas, a reformas est ruturais que não afetem o sistem a em sua essência.

No processo de t ransição, o caráter preponderantem ente estát ico da “ sociedade fechada” vai, gradat ivamente, cedendo seu lugar a um maior dinam ismo em todas as dim ensões da vida social. As cont radições vêm à superfície e os conflitos em que a consciência popular se educa e se faz m ais exigente se m ult iplicam , provocando m aiores apreensões nas classes dom inantes.

Na m edida em que a t ransição histór ica se aprofunda e as cont radições t ípicas de uma sociedade dependente se vão ilum inando, grupos de intelectuais pequeno-burgueses começam a assum ir novas formas de compromisso, rechaçando esquemas im portados e soluções pré- fabricadas.

Alguns art istas se inspiram não mais na vida fácil da burguesia, mas na vida difícil e dura do povo; na poesia, já não se cantam apenas os am ores perdidos nem se fala de camponeses e operários urbanos como abst rações, mas como homens e mulheres concretos, em um a realidade concreta.

No caso do Brasil, estas m udanças qualitat iv as marcam todos os níveis da at ividade cr iadora.

Ao intensif icar- se a fase de t ransição, estes grupos tentam um a volta sobre a realidade nacional que passa a ser estudada em termos dist intos.

Por out ro lado a fase de t ransição gera tam bém um novo est ilo polít ico, o populismo, já que os ant igos m odelos, os da “ sociedade fechada” , não são adequados à nova etapa, a da emersão popular.

Na medida, porém, em que esta emersão é um fenômeno urbano, uma vez que as grandes áreas de lat ifúndio cont inuam intocadas, o populismo, mesmo com repercussões naquelas áreas, é igualmente uma expressão urbana. Responde à presença das massas populares, que começam a emergir de seu silêncio de maneira ingênua, mas sua resposta é manipuladora. Se, porém, a manipulação populista reforça, de um lado, a ingenuidade das massas emergentes, de out ro, enquanto lhes est im ula os protestos e as exigências, igualm ente est im ula o processo de

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desvelamento da realidade. Eis aí um dos aspectos do caráter ambíguo do populismo. Manipulador mas, ao mesmo tempo, um fator de mobilização democrát ica.∗

Assim , o novo est ilo de ação polít ica, nas sociedades em t ransição, não se esgota no papel manipulador de seus lideres, que fazem a mediação ent re as massas populares e a oligarquia. É que não é o populismo o que provoca a emersão das massas populares, m as é o aparecim ento destas, em dadas condições histór icas, que o faz possível, como um novo est ilo polít ico.

Desta maneira, independentemente da intenção de seus líderes, o populismo term ina por reforçar a part icipação polít ica das m assas populares em cujo processo se fazem conscientes, cedo ou tarde, de seu estado de exploradas.

As sociedades que experimentam a agudização deste momento histórico vivem um clima de pré- revolução, de que o cont rár io antagônico é o golpe de estado. E a maior ou menor violência deste depende, não do caráter mais ou menos humanitário destas ou daquelas forças arm adas, m as do nível em que se encont re a luta de classes na sociedade que o sofre.

Por out ro lado, quanto mais sólidos sejam os fundam entos ideológicos do golpe, tanto menos fácil será o retorno da sociedade ao mesmo est ilo polít ico em que se geraram as condições para a sua efet ivação.

Desta forma, um golpe de estado muda, qualitat ivamente, a t ransição histórica da sociedade e estabelece o com eço de nova t ransição.

Na etapa anter ior, o golpe era a possibilidade antagônica da revolução. Na nova t ransição por ele criada, o golpe define e confirma um poder arbit rário e ant ipopular e sua tendência é t ornar- se cada vez m ais r ígido, a não ser que seja possível acelerar a modernização capitalista de que decorra, pelo menos, a dim inuição das tensões sociais, at ravés de um a polít ica de m elhor dist r ibuição das rendas. O problem a que se põe é o de se realmente é viável um tal sonho – o de intensificar a m odernização capitalista, “ f inanciando- se” , ao mesmo tempo, a economia imperial...

No Brasil, na t ransição marcada pelo golpe m ilitar, se efet iva uma ideologia do “desenvolvim ento” , na qual “a idéia da grande em presa internacional subst itui a idéia do m onopólio estatal com o base para o desenvolvim ento” . ∗

E uma das exigências fundamentais de tal ideologia é, necessariamente, o silêncio dos setores populares e sua exclusão das esferas de decisão. Parece- nos assim uma ingenuidade, em que as forças populares devem evitar cair , a de pensar na possibilidade de “aberturas” polít icas, de que resultasse o restabelecim ento do r itm o anterior.

As “aberturas” que a t ransição inaugurada pelo golpe m ilitar de 1964 oferece têm sua semânt ica própria. Não signif icam uma volta ao que foi, mas idas e vindas no jogo das acom odações do sistem a m esm o.

∗ Francisco WefTort, entre outros, tem insistido em ressaltar a ambigüidade como uma das características principais do populismo. ∗ Fernando Henrique Cardoso, “Hegemonia Burguesa e Independência Econômica – Raízes estruturais da crise política brasileira”, Revista Civilização Brasileira nº 17, janeiro de 1968.

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O que se im põe é a com preensão dos desafios que a nova t ransição coloca e que demandam formas dist intas de ação. De ação em silencio, que requer difícil aprendizado.

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AÇÃO CULTURAL E REVOLUÇÃO CULTURAL

Seria desnecessário dizer aos movimentos revolucionários que eles se encontram em relação antagônica com as classes dom inantes. Não será dem asiado enfat izar, porém , que este antagonism o, que envolve objet ivos e interesses opostos, deve expressar- se em form as de ação igualm ente dist intas. Na verdade, deve haver um a diferença ent re a prát ica daquelas classes e a dos m ovim entos revolucionários, que os perfile claramente. Esta diferença não é arbit rár ia, nem puramente formal. Ela tem uma fonte radical: a natureza utópica no sent ido já refer ido neste texto, dos m ovim entos revolucionários, de que as classes dom inantes carecem em ternos definit ivos.

Na medida, porém, em que a verdadeira utopia implica na dialet ização da denúncia e do anúncio, a liderança revolucionária não pode:

a) denunciar a realidade sem conhecê- la. b) anunciar a nova realidade sem ter um pré - projeto que, emergindo na denúncia, somente se viabiliza na práxis. c) conhecer a realidade distante dos fatos concretos, fontes de seu conhecim ento. d) denunciar e anunciar sozinha. e) não confiar nas massas populares, renunciando à sua comunhão com elas.

Em caso cont rár io, a liderança revolucionár ia corre o r isco de cont radizer- se, o que ocorre quando, por exemplo, vit ima de um a visão fatalista da histór ia, tenta domest icar as massas populares a um futuro que “conhece” a priori ou quando se considera possuidora da verdade revolucionária a que as massas populares não podem ter acesso, devendo, por isso m esm o, ser “ salvas” por ela.

Neste caso, burocrat izada, a liderança revolucionária deixa de ser utopica.

As classes dom inantes é que, por sua natureza, só podem , com o dissem os antes, denunciar a quem as denuncia e anunciar os seus próprios m itos.

Um projeto verdadeiramente revolucionário, por out ro lado, se autent ica, na m edida em que vai cum prindo sua vocação natural: a de selar a unidade, a com unhão, ent re a liderança revolucionária e as m assas populares, na prát ica da t ransform ação da sociedade de classes e na da const rução da sociedade socialista. Quanto m ais esta unidade se concret iza, tanto m enos perigo tem a liderança revolucionária de burocrat izar- se.

Correndo o r isco de parecer pensar simetr icamente, diremos que, biofilica∗ , a utopia revolucionária tende ao dinâm ico e não ao estát ico; ao v ivo e não ao m orto; ao futuro com o desafio à cr iat iv idade hum ana e não ao futuro com o repet ição do presente; ao am or com o libertação e não com o posse patológica; à em oção da vida e não às fr ias abst rações; à com unhão e não ao gregarism o; ao diálogo e não ao m ut ism o; à práxise não à ordem e à lei, como m itos; aos seres humanos que se organizam cr it icam ente para a ação e não à organização deles para a passividade; à linguagem

∗ A propósito de biofilia e necrofilia, ver Erich Fromm, The heart of man, Routledge and Kegan Paul, Londres.

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cr iadora e com unicat iva e não aos “ slogans” dom est icadores; aos valores que se encarnam e não aos mitos que se impõem.

Necrofilica, a r igidez reacionária prefere o m orto ao vivo; o estát ico ao dinâm ico; o futuro com o repet ição do presente ao futuro com o aventura cr iadora; as form as patológicas de amor ao amor verdadeiro; a esquem at ização fr ia à em oção da vida; o gregarismo à verdadeira comunhão; a organização dos seres humanos como objetos e não a estes se organizando com o sujeitos; os m itos que são im postos aos valores encarnados; as prescr ições à com unicação; os “ slogans” aos desafios.

É necessário que os revolucionários dêem testem unho, m ais e m ais, da radical diferença que os separa das forças reacionár ias. Não é suficiente condenar a violência da direita, sua postura ar istocrát ica, seus m itos. Os revolucionár ios precisam provar o seu respeito às m assas populares dom inadas, confiar nelas, não com o pura tát ica, m as com o um a exigência necessária para serem revolucionários. Se esta confiança nas m assas populares, que não podem ser vistas com o algo que está aí para ser libertado, é fundamental em todos os momentos, mais ainda o é na t ransição criada pelo golpe.

Ao inst itucionalizar a violência, de que decorre uma insegurança generalizada, o golpe de estado reforça o velho clim a da cultura do silêncio. E é neste clim a que a liderança revolucionária, na sua aprendizagem perm anente, tem de encont rar novos cam inhos de testem unhar sua presença – a presença de quem nelas confia e de quem com elas está disposto a aprender. Assim , um projeto de ação revolucionária, o mais m ínimo que seja, se dist ingue do quefazer reacionário, não só do ponto de vista de seus objet ivos, mas também quanto a seus métodos e a seu conteúdo. Na medida em que, enquanto revolucionário, o projeto busca a afirm ação das classes dom inadas at ravés de sua liber t ação, qualquer concessão im pensada aos m étodos dos opressores é sem pre um a am eaça ao projeto revolucionário. Sem preacupaçòes puristas, os revolucionários devem, contudo, exigir de si mesmos uma radical coerência. A coerência ent re seu discurso e sua prát ica para que não sejam uns ao falar, out ros ao agir. Como homens e mulheres, podem equivocar- se e mesmo errar; o que não podem é, num momento, verbalizar a opção revolucionária e noutro, ter uma prát ica pequeno- burguesa.

Por out ro lado, devem adequar sua ação às condições histór ias, realizando o possível de hoje para que possam viabilizar amanhã o impossível de hoje. Uma de suas tarefas é descobrir os procedim entos m ais eficientes, em cada circunstância, a fim de ajudar as classes dom inadas a superar os níveis de consciência sem i - int ransit iva e t ransit ivo-ingênua pelo da consciência crít ica, o que significa que se assum am com o “classe para si” . Esta preocupação não pode ser est ranha a nenhum projeto revolucionário que é, também, ação cultural preparando- se para ser revolução cultural.

A revolução é um prncesso crít ico, que dem anda aquela constante com unhão ent re a liderança e as m assas populares.

Toda a prát ica revolucionária de Guevara foi um exemplo, sempre, de como ele buscava essa com unhão.

Quanto m ais estudamos sua obra tanto mais nos convencemos de sua firme convicção em torno desta necessidade. É por isso mesmo que ele não hesita em reconhecer a capacidade de amar como uma indispensável qualidade revolucionária. Ainda que se refira, constantem ente, em seu diár io da Bolívia, à falta de interesse dos

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camponeses pelo movimento guerrilheiro, em nenhum momento demonstra desamor por eles. Nunca perdeu a esperança de contar com sua part icipação.

Sua capacidade de dialogar, de com unicar- se, de subm eter sua prát ica diária a uma constante reflexão cr it ica levaram- no a ter, no seu acampamento guerrilheiro, um “contexto teór ico” , no qual analisava, com seus com panheiros, os acontecim entos que estavam vivendo e planejava, com eles, a ação de todos.

Guevara não fez dicotomias ent re m étodos, conteúdos e objet ivos de seus projetos. I rmanado com seus companheiros no mesmo risco de vida, t inha, como eles, na guerrilha, uma int rodução à liberdade, um chamamento à vida para todns aqueles e aquelas que estão mortos em vida.

Com o Camilo Torres, ele também não se fez guerrilheiro por desesperação, mas por amor verdadeiro. Ambos procuravam realizar o sonho do novo homem e da nova m ulher, nascendo na e da prát ica da libertação. Neste sent ido, Guevara encarnou a autênt ica utopia revoluc ionária. Foi um dos maiores profetas dos silenciosos do Terceiro Mundo. Conversando com m uitos deles, falou em nom e de todos.

Ao citar Guevara e seu testem unho com o guerr ilheiro, não querem os dizer que todos os revolucionários estejam obrigados, em diferentes circunstâncias histór icas, a fazer o mesmo que ele fez. O indispensável, porém, é que busquem a comunhão com as m assas popvlares.

Tal com unhão é um a característ ica fundam ental da ação cultural para a libertação. É na prát ica desta com unhão, que se dá na prát ica revolucionária, que a conscient ização alcança o seu m ais alto nível. E é nela que os oprim idos superam o que Goldman chama de “consciência real” pelo “máximo de consciência possível” ∗ . I mplicando na inserção crít ica na realidade que se desm ist ifica, a conscient ização é algo mais que a “prise de conscience” .

Por esta razão, a conscient ização é um projeto irrealizável pela direita, que, por natureza, não pode ser utópica. Não há conscient ização popular sem um a radical denúncia das estruturas de domi nação e sem o anuncio de uma nova realidade a ser cr iada em função dos interesses das classes sociais hoje dom inadas.

As classes dom inantes não podem desvelar- se a si mesmas nem tampouco proporcionar os m eios às classes dom inadas para que estas o façam . Assim, as duas form as de ação cultural, a que corresponde aos interesses das classes dom inadas e a que sat isfaz aos das classes dom inantes, são form as de ação antagônicas.

Enquanto a ação cultural para a libertação se caracter iza pelo diálogo, “ som o selo” do ato de conhecim ento, a ação cultural para a dom est icação procura em botar as consciências. A prim eira problem at iza; a segunda “sloganiza” . Desta form a, o fundamental na primeira modalidade de ação cultural, no próprio processo de organização das classes dom inadas, é possibilitar a estas a com preensão crít ica da verdade de sua realidade.

Coerente com este pr incípio, não se pode aceitar, em tal form a de ação, a t ransferência de conhecimento, que implica sempre na existência de um pólo que sabe e na de out ro que nada sabe.

∗ Lucien Goldman, The Human Science and Philosophy, Jonathan Cape Ltda, Londres, 1969.

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Do ponto de vista das classes dom inantes, a ação cultural deve estar a serviço da preservação de seu poder. Daí a necessidade da m it if icação da realidade, para o que aquelas classes contam com a ciência e a tecnologia sob seu com ando.

Para os que se engajam na ação cultural para a libertação, a ciência é igualm ente indispensável ao esforço, porém , de denúncia dos m itos veiculados pelas classes dom inantes.

O caráter utópico da ação cultural para a libertação a dist ingue da out ra form a de ação. Baseada em m itos, a ação cultural para a dom inação não pode problemat izar a realidade, propondo o seu desvelamento, pois que assim cont radir ia os interesses dom inantes. Na ação cultural problemat izante, pelo cont rário, a realidade anunciada é o projeto histór ico a ser concret izado pelas classes dom inadas, em cujo processo a consciência sem i - int ransit iva com o a ingênua são sobrepassadas pela consciência cr it ica – “m áxim o de consciência possível” .

O exercício desta cr it icidade não se esgota, por out ro lado, quando o anúncio se faz concretude. Ele se torna, ao cont rár io, absolutam ente indispensável à difícil tarefa de const rução da sociedade socialista.

Assim , a ação cultural para a libertação, que caracter izou o m ovim ento que lutou pela realização do anúncio, deve t ransform ar- se em revolução cultural.

Antes de fazer um as poucas considerações em torno dos dist intos m as inter-relacionados momentos da ação cultural e da revolução cultural, digamos algo mais sobre os níveis de consciência.

Um a relação est reita foi estabelecida ent re a ação cultural para a liber tação, a conscient ização com o um a caracter íst ica desta form a de ação e a superação da sem i -int ransit iv idade e da ingenuidade pela consciência cr it ica das classes dom inadas – sua consciência de classe.

A consciência cr it ica não se const itui at ravés de um t rabalho intelectualista m as na práxis – ação e reflexão.

Numa perspect iva revolucionária – a das classes dom inadas – est a ação conscient e não lhes pode ser negada, nem no momento da denúncia- anúncio, nem quando o anúncio se concret iza. Neste, o exercício do pensar cr it ico, sobretudo com a superação da dicotom ia ent re t rabalho m anual e t rabalho intelectual, vai ajudar a ext rojeção dos m itos que se conservam , apesar da nova realidade em nascim ento. Finalmente, neste período, o pensar crít ico é fundamental também como um modo de enfrentar a potencialidade m it ifxante da tecnologia, que se faz necessár ia à recr iação da sociedade.

Há duas direções possíveis que se oferecem à consciência ingênua. A pr im eira é a de alcan çar o nível de cr it icidade, ou o que Goldm an cham a de “m áxim o de consciência possível” , a segunda é a sua distorção num a form a “ irracional” ou “ fanát ica” . O caráter m ágico da consciência sem i - int ransit iva é, na consciência “ ir racional” , subst ituído pelo “m ít ico” . A “m assif icação” coincide com este nível de consciência. Diga- se de passagem , porém , que a “ sociedade m assificada” não deve ser ident if icada com a sociedade em que as massas populares emergem no processo histórico, como urna visão ar istocrát ica do fenôm eno pode sugerir . De fato, a em ergência das m assas populares, com suas exigências, é um fenômeno que corresponde à “ rachadura” da

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sociedade fechada. A “sociedade m assificada” aparece m uito m ais tarde: surge nas sociedades altam ente tecnologizadas, absorvidas pelo m ito do consumo. Nestas sociedades, a especialização necessár ia se t ransform a em “especialism o” alienante e a razão se distorce em “ irracionalismo” .

Ao cont rár io da especialização, cont ra a qual não poderíam os estar, os especialism os est reit am a área do conhecim ento a tal ponto que os cham ados “especialistas” se tornam geralmente incapazes de pensar mais além de seu delim itado campo. Pior, porque perdem a visão da totalidade de que a especialidade é apenas um a parte, não podem pensar corretamente nem mesmo no seu campo.

Da m esm a m aneira, a racionalidade, fundam ental à ciência e à tecnologia, cede seu lugar ao “ irracionalismo” m it ificante, sob os efeitos ext raordinários da própria tecnologia. As tentat ivas de explicar os seres hum anos com o um t ip o superior de robot devem originar- se em tal “ irracionalismo” .∗

Nas sociedades massificadas os indivíduos “pensam” e agem de acordo com as prescrições que recebem diar iam ente dos cham ados m eios de com unicação. Nestas sociedades, em que tudo ou quase tudo é pré- fabricado e o com portam ento é quase automat izado, os indivíduos “se perdem” porque não têm de “arr iscar- se” . Não têm de pensar em torno das coisas mais insignificantes; há sempre um manual que diz o que deve ser feit o na sit uação “ A” ou na situação “B” . Raram ente se faz necessário parar na esquina de uma rua para pensar em que direção seguir. Há sempre uma flecha que desproblem at iza a situação.

Mesmo que as indicações nas ruas não sejam um mal em si e que sejam necessárias em cidades cosm opolitas, elas são, porém, uma amost ra, ent re m ilhares de out ros sinais direcionais que, int rojetados, obstaculizam a capacidade de pensar cr it icam ente.

A tecnologia deixa de ser percebida com o um a das grandes expressões da cr iat iv idade humana e passa a ser tomada como um a espécie de nova divindade a que se cultua. A eficiência deixa de ser ident if icada com a capacidade que têm os seres hum anos de pensar, de imaginar, de arriscar- se na at iv idade cr iadora para reduzir- se ao mero cumprimento, preciso e pontual, das ordens que vêm de cima.∗

Esclareça- se, porém, que o desenvolvim ento tecnológico deve ser um a das preocupações do projeto revolucionário. Seria simplismo at r ibuir a responsabilidade por esses desvios à tecnologia em si mesma. Seria uma out ra espécie de irracionalism o, o de conceber a tecnologia com o um a ent idade dem oníaca, acim a dos seres hum anos. Vista cr it icam ente, a tecnologia não é senão a expressão natural do processo criador em que os seres humanos se engajam no momento em que forjam o seu primeiro instrumento com que melhor t ransformam o mundo.

∗ Em uma conversa recente com o autor, o psicanalista Michael Maccoby, assistente do dr. Erich Fromm, disse que resultados de suas investigações sugerem uma relação entre a mitificação da tecnologia e as atitudes necrofílicas. ∗ “Professionals who seek self-realization through creative and autonomous behavior without regard to the defined goals, needs and channels of their respective departments have no more place in a large corporation or government agency than squeamish soldiers in the Army... The social organization of the new technology by systematically denyng to the general population experiences which are analogous to those of its higher management, contributes very heavily to the growth of social irrationality in our society” John MacDermott, “Technology: The opiate.of intellectuals”, New York Review of Books, Vol. 13, nº 2, julho 1969.

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Considerando que a tecnologia não é apenas necessária m as parte do natural desenvolvim ento dos seres hum anos, o problem a que se coloca à revolução é o de com o evitar os desvios m ít icos a que nos refer im os.

Est e não é um problema tecnológico, mas polít ico, e se acha visceralmente ligado à concepção m esm a que se tenha da produção. Se esta se or ienta no sent ido do “consum ism o” , dificilm ente se evitará a m it if icação da tecnologia, e a sociedade socialista repete, em parte, a capit alist a.

Finalmente, clarifiquemos as razões por que temos falado da ação cultural e da revolução cultural com o m om entos dist intos do processo revolucionário.

Em primeiro lugar, a ação cultural para a libertação se realiza em oposição às classes dominantes, enquanto a revolução cultural se faz com a revolução já no poder.

Os lim ites da ação cultural para a libertação se encont ram na realidade opressora mesma e no silêncio imposto às classes dom inadas pela classes dom inantes. São esses lim ites os que determ inam as tát icas a serem usadas, que são necessariam ente diferentes das empregadas na revolução cultural.

Enquanto a ação cultural para a libertação enfrenta o silêncio com o dado concreto e com o realidade int rojetada, a revolução cultural o confronta apenas com o int rojeção. Am bas são um esforço at ravés do qual se nega, culturalm ente, a cultura dom inante, m as a revolução cultural já conta com as novas bases m ateriais que viabilizam aquela negação. A nova cultura que nasce no seio da velha que é negada não está isenta, porém , de um a perm anente análise cr it ica. É que a revolução cultural não é imobilista.

A ação cultural para a libertação e a revolução cultural im plicam na com unhão ent re os líderes e as m assas populares, com o sujeitos da t ransform ação da realidade. Na revolução cultural, porém , esta com unhão é tão ínt im a que líderes e povo se tornam um só corpo e perm anente processo de auto- avaliação.

Em dois pontos, porém , não há diferença ent re a ação cultural para a libertação e a revolução. cultural. Amb as têm na “dialét ica da sobredeterm inação” a sua explicação necessár ia e são am bas conscient izadoras. Ser consciente, num a com o na out ra, não é um “slogan” nem expressão de idealismo, mas a forma radical de ser dos seres humanos.

Se estes fossem corpos inconscientes, incapazes de perceber, de conhecer que conhecem, de recriar; se fossem inconscientes de si mesmos e do mundo, a idéia de conscient ização não ter ia sent ido, m as, neste caso, tam pouco ter ia sent ido a idéia de revolução. A realidade m ater ial que condiciona a consciência não é a fazedora de si m esm a, “ las circunstancias se hacen cam biar precisam ente por los hom bres” , disse Marx.

Desde, porém , que a consciência é condicionada pela realidade, a conscient ização é um esforço at ravés do qual, ao analisar a prát ica que realizamos, percebemos em term os crít icos o próprio condicionam ento a que estam os subm et idos.

Neste sent ido, é um processo tão perm anente quanto a revolução, que só para m entalidades m ecanicistas cessa com a chegada ao poder. E é precisam ent e neste

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momento que muitos de seus mais sérios problemas começam e que algumas am eaças a espreitam , ent re elas, a da bucrocracia esclerosante.

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O processo da alfabetização política – uma introdução

Genebra – 1970

Quando aceitei escrever este ar t igo para LUTHERISCHE MONATSHEFTE tomei seu tema como um desafio.

O própr io fato de tê- la reconhecido como tal me obrigou a assumir em face dele uma at itude crít ica e não ingênua.

Esta at itude crit ica, em si própria, implica na penet ração na “ int im idade” mesma do t ema, no sent ido de desvelá- la mais e mais. Assim , o art igo, ao ser a resposta que procuro dar ao desafio, se torna out ro desafio a seus possíveis leitores. É que m inha at itude crít ica em face do tem a m e engaja num ato de conhecim ento e este exige, não só o objeto cognoscível, m as tam bém out ro sujeito cognoscente, com o eu.

Conhecer, que é sempre um processo, supõe uma situação dialógica. Não há est r itamente falando um “eu penso” , mas um nós pensamos” . Não é o “eu penso” o que const itui o “nós pensamos” , mas, pelo cont rár io, é o “nós pensam os” que m e faz possível pensar.

Na situação gnosiológica, o objeto de conhecim ento não é o term o do conhecim ento dos sujeitos cognoscentes, m as a sua m ediação.

O tema que tenho diante de m im , como núcleo de m inha reflexão, não pode ser o térm ino de m eu ato de conhecer porque é e deve ser o objeto que estabelece as relações cognoscentes ent re m im e os prováveis leitores do art igo, com o sujeitos, tam bém , de conhecim ento.

Assim , gostaria realmente de convidá- los a assumir este papel, recusando- se desta forma a t ransformar- se em meros recipientes de m inha análise.

I sto significa então que, ao escrever, não posso ser um puro narrador de algo que considere como um fato dado, m as, pelo cont rár io, tenho de ser um a m ente cr it ica, inquieta, cur iosa, constantem ente em busca, adm it indo- m e com o se est ivesse com os leitores, que, por sua vez, devem recriar o esforço de m inha busca.

A única diferença ent re eu e os leitores, com relação ao tem a m esm o, é que, enquanto estou em face dele, com promet ido com sua clar ificação e mais e mais fixando m inha curiosidade sobre ele, os leitores estarão, de um lado, também em face dele mas, de out ro, de m inha compreensão dele, que expresso em meu art igo.

De fato, ler, como um ato de estudar, não é um simples passatempo, mas uma tarefa séria, em que os leitores procuram clar ificar as dim ensões opacas de seu estudo.

Desta forma, ler é reescrever e não memorizar os conteúdos da leitura. Devemos superar a ingênua com preensão do ato de ler e de estudar com o um ato de “com er” . Do ponto de vista desta falsa concepção que, com o Sart re, poderem os cham ar de

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“ concepção nut r icionista do conhecim ento” ∗ , aqueles que lêem e estudam devem fazê- lo para tornar- se “ intelectualmente gordos” . Daí o uso de expressões como “ fome de conhecim ento” , “ sede de saber” , ter ou não “apetência pelo saber” .

É a m esm a falsa concepção que se encont ra ilum inando a prát ica educacional com o um ato de t ransferência de conhecim ento. Em tal prát ica, os educadores são os possuidores do conhecim ento, enquanto os educandos são com o se fossem “vasilhas vazias” que devem ser enchidas pelos depósitos dos educadores. Desta form a, os educandos não têm por que perguntar, quest ionar, desde que sua at itude não pode ser out ra senão a de receber, passivam ente, o conhecim ento que os educadores neles depositam.

Se o conhecim ento fosse algo estát ico e a consciência algum a coisa vazia, ocupando um certo espaço no corpo, a prát ica educacional refer ida estar ia correta. Mas não é este o caso. O conhecim ento não é essa coisa feit a e acabada e a consciência é “ intencionalidade” ao mundo.

Ao nível hum ano, o conhecim ento envolve a constante unidade ent re ação e reflexão sobre a realidade. Como presenças no mundo, os seres humanos são corpos conscientes que o t ransform am , agindo e pensando, o que os perm ite conhecer ao nível reflexivo. Precisamente por causa disto podemos tomar nossa própria presença no mundo como objeto de nossa análise crít ica. Daí que, voltando- nos sobre as experiências anteriores, possam os conhecer o conhecim ento que nelas t ivem os.

Quanto m ais som os capazes de desvelar a razão de ser de por que som os com o estam os sendo, tanto m ais nos é possível alcançar tam bém a razão de ser da realidade em que estamos, superando assim a compreensão ingênua que dela possam os ter.

É isto precisam ente o que terem os de fazer – os leitores e eu – com relação ao tem a deste ar t igo.

No m om ento em que o escrevo, tanto quanto no em que os leitores leiam o que estou escrevendo agora, tem os de exercer aquela análise crít ica antes refer ida. I st o é, tem os de ter, com o objeto de nossa reflexão, nossas experiências ou as experiências de out ros sujeitos no campo que estamos tentando entender melhor. Assim nos será possível, em diferentes momentos, e não necessariamente ao mesmo nível, começar a perceber a real com preensão do contexto lingüist ico: “o processo da ‘alfabet ização’ polít ica” , em que o substant ivo alfabet ização aparece m etafor icam ente. Considerando a presença desta m etáfora, parece- me que a melhor maneira de começar a nossa análise é a de estudar, m esm o rapidam ente, o processo da alfabet ização de adultos, do ponto de vista lingüíst ico – que, de resto, é polít ico também – e sobre que a metáfora se baseia.

I sto envolve, m etodologicam ente, algum as considerações em torno das diferentes prát icas no cam po da alfabet ização de adultos, que im plicam em diferentes m aneiras, também, Como os analfabetos são compreendidos.

As prát icas antagônicas, que refletem aquelas form as de perceber os analfabetos são, de um lado, a que costumo chamar de “domest icadora” ; do out ro, a liber tadora. ‘

∗ Jean Paul Sartre, Situations I, Librairie Gallimard, Paris, 1959.

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Depois de descrever a primeira destas prát icas, em algumas de suas principais característ icas, à luz de m inha experiência na Am érica Lat ina, discut irei com o vejo a segunda delas.

I sto não significa, porém, que o simples fato de desenvolver um a tal prát ica seja bastante para libertar as classes opr im idas. I sto significa que tal prát ica ajuda a libertação na medida em que contribui para que os alfabet izandos compreendam sua realidade em termos crít icos.

A primeira, como prát ica “dom est icadora” , não im porta se os educadores estão conscientes disto ou não, tem , com o conotação cent ral, a dim ensão m anipuladora nas. relações ent re educadores e educandos em que, obviam ente, os segundos são os objetos passivos da ação dos pr im eiros. Desta form a, os alfabet izandos, com o seres passivos, devem ser “enchidos” pelas palavras dos educadores, em lugar de serem convidados a part icipar cr iadoram ente do processo de sua aprendizagem . As palavras geradoras que são escolhidas pelos educadores, dent ro de seu m arco cultural de referência, são apresentadas aos alfabet izandos com o se fossem algo separado da vida. Como se linguagem- pensam ento fosse possível sem realidade. Por out ro lado, em tal prát ica educacional, as est ruturas sociais nunca são discutídas como um problema a ser desnudado. Pelo cont rário, elas são m itologizadas por diferentes form as de anão que reforçam a “ consciência falsa” dos alfabet izandos.

De qualquer m odo, em fazendo a crít ica desta prát ica, penso ser necessár io aclarar que o educador burguês consciente – não importa se professor primário, secundário, universitár io ou se t rabalhando no setor da alfabet ização de adultos – não pode fazer out ra coisa senão engajar- se numa tal forma de ação.

Seria na verdade uma at itude ingênua esperar que as classes dom inantes desenvolvessem um a form a de educação que proporcionasse às classes dom inadas perceber as injust iças sociais de m aneira crít ica.

Um a tal constatação dem onst ra a im possibilidade de um a educação neut ra. Para a consciência ingênua, porém , um a afirm ação com o esta pode ser interpretada com o se eu est ivesse dizendo que, em não sendo neut ra, a educação devesse ser (ou fosse. sem pre) a prát ica at ravés da qual os educadores não respeitassem expressividade dos educandos.

I sto é exatam ente o que caracter iza a educação “dom est icadora” , m as não a de caráter libertador. Nesta ult im a, peló cont rár io, a educação é o procedim ento no qual o educador convida os educandas a conhecer, a desvelar a realidade, de m odo cr it ico. Assim, enquanto aquela pro cura est im ular a “ consciência falsa” dos educandos, de que resulta m ais fácil sua adaptaçãa à realidade, a segunda não pode ser um esforço pelo qual o educador impõe liberdade aos educandos.

É que, enquanto na educação dom est icadora há um a necessár ia dicot omia entre os que m anipulam e os que são m anipulados, na educação para a libertação não há sujeitos que libertam e objetos que são libertados. Neste processo não pode haver dicotom ia ent re seus pólos.

Assim , o primeiro processo é, em si, prescrit ivo; o segundo, dialógico.

Por isto, a educação para a “dom est icação” é um ato de t ransferência de “ conhecim ento” , enquanto a educação para a liber tação é um ato de conhecim ento e

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um método de ação t ransformadora que os seres humanos devem exercer sobre a realidade.

Desta form a, o processo de alfabet ização de adultos, visto de um ponto de vista libertador, é um ato de conhecim ento, um ato cr iador, em que os alfabet izandos exercem o papel de sujeitos cognoscentes, tanto quanto os educadores. Obviam ente, entao, os alfabet izandos não são vistos com o “vasilhas vazias” , m eros recipientes das palavras do educador.

Deste ponto de vista, ainda, os alfabet izandos não são seres marginais que necessitem ser recuperados ou resgatados. Em lugar de assim serem considerados, eles são vistos como membros da grande família de oprim idos para quem a solução não está em aprender a ler estórias alienadas, mas em fazer história e por ela serem feit os.

Se com eçam os a considerar agora o problem a da “alfabet ização” polít ica, parece que nosso ponto de part ida deva ser a análise do que é o “analfabeto” polít ico.

Se, do ponto de vista lingüist ico, o analfabeto é aquele ou aquela que não sabem ler e escrever, o “analfabeto” polít ico – não importa se sabe ler e escrever ou não – é aquele ou aquela que têm uma percepção ingênua dos seres humanos em suas relações com o mundo, uma percepção ingênua da realidade social que, para ele ou ela, é um fato dado, algo que é e não que está sendo.∗

Um a de suas tendências é fugir da realidade concreta – uma forma de negá- la – perdendo- se em visões abst ratas do m undo.

De qualquer forma, contudo, não lhe é possível fugir da realidade na qual cont inua, sem assum ir contudo, cr it icam ente, sua presença nela.

Se é um cient ista, t enta “ esconder- se” no que considera a neut ralidade de sua at iv idade cient íf ica, indiferente ao uso que se faça de seus achados, desinteressado em sequer pensar a serviço de quem t rabalha. Quase sempre, ao ser indagado sobre isto, responde vagam ente que está a serviço dos interesses da hum anidade.

Se é um religioso, estabelece a impossível separação ent re mundanidade e t ranscendência.

Se opera no cam po das ciências sociais, t rãta a sociedade, enquanto objeto de seu estudo, com o se dela não part icipasse. Em sua decantada im parcialidade, se aproxima da realidade em estudo com “ luvas” e “máscaras” para não contagiar nem contagiar- se. . .

Sua concepção da histór ia é m ecanicista e fatalista. A histór ia é o que foi e não o que está sendo e em que se gesta o que está por v ir . O presente é algo que deve ser norm alizado e o futuro, a repet ição do presente, o que significa a m anutenção do “ status quo” .

∗ Neste sentido, muitos analfabetos e semi-analfabetos, do ponto de vista lingüístico, são, porém, politicamente “letrados”, muito mais do que certos letrados eruditos. E não há nisto nenhuma razão de espanto. A prática política daqueles, sua experiência nos conflitos – no fundo a parteira real da consciência – lhes ensina o que os últimos não aprendem ou não conseguem aprender nos seus livros.

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Às vezes, contudo, o “analfabeto” polít ico percebe o futuro, não com o a repet ição do presente, m as com o algo preestabelecido, pré- dado. São v isões, estas, dom est icadoras do futuro. A prim eira o dom est ica ao presente, que deve ser repet ido; a segunda o reduz a algo inexorável. Ambas negam os seres humanos como seres da práxis e, ao fazê- lo, negam também a história. Sofrem ambas da falta de esperança.

O “analfabeto” po lít ico, experimentando um sent imento de impotência em face da irracionalidade de uma realidade alienante e todo- poderosa, procura refugiar- se na falsa segurança do subjet ivism o. Às vêzes, em lugar deste refúgio, devota- se a prát icas puram ente at iv istas. Talvez se pudesse com parar o “analfabeto” polít ico, ent regue a estas prát icas, de caráter polít ico, com o out ro analfabeto, o que, lendo m ecanicam ente um texto, não percebe, contudo, o que lê.

Em nenhum desses casos pode ele compreender os seres humanos como presenças no mundo, como seres da práxis – da ação e da reflexão sobre o mundo.

A dicotom ia ent re teoria e prát ica, a universalidade de um conhecim ento isento de condicionam ento histór ico- sociológico, o papel da filosofia com o explicação do m undo e inst rum ento para sua aceitação, a educação com o pura exposição de fatos, com o t ransferência de valores abst ratos, da herança de um saber casto, tudo isso são crenças que a consciência ingênua do “analfabeto” polít ico sem pre proclam a.

Para um a tal consciência é difícil entender a real impossibilidade de teoria sem prát ica, de pensam ento sem ação t ransform adora sobre o m undo, saber por saber, teor ia que som ente explique a realidade e educação neut ra.

Por out ro lado, quanto m ais refinada é a consciência ingênua do “analfabeto” polít ico, tanto m ais refratár io se faz à com preensão crít ica da realidade.

Na primeira parte deste art igo, passei algum tempo analisando o processo de alfabet ização para a dom est icação.

Gostaria agora de discut ir, em linhas também gerais, alguns aspectos do que penso deve ser a educação de um ponto de vista cr it ico. Aquela em que, pela desm itologização da realidade, se ajudem educadores e educandos na superação do “analfabet ismo” polít ico.

De vez em quando, farei referências a ângulos anteriorme nte analisados. Espero, porém, que estes retornos, em lugar de irritarem os leitores, nos ajudem a m im e a eles na melhor clarificação de nosso tema comum.

Começarei afirmando ou reafirmando que, se não superarmos a prát ica da educação com o pura t ransferência de um conhecim ento que som ente descreve a realidade, bloquearem os a em ergência da consciência cr it ica, reforçando assim o “analfabet ismo” polít ico.

Tem os de superar esta espécie de educação – se nossa opção é realm ente revolucionária – por uma outra, em que conhecer e t ransformar a realidade são exigências recíprocas.∗

∗ Não me parece necessário enfatizar que uma tal educação não pode ser posta em, prática pelas classes dominantes. O lamentável, porém, é que não o seja em uma sociedade que fez a revolução ou que não seja experimentada pelos movimentos revolucionários, no seu esforço organizacional das classes dominadas.

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Há um ponto de fundamental importância a ser sublinhado na superação da prát ica educat iva dom est icadora pela libertadora. Refiro - me à impossibilidade de uma real práxis libertadora se o educador segue o m odelo do “dom est icador” .

Enquanto este é sem pre o educador dos educandos, o educador para a libertação tem de “m orrer” enquanto exclusivo educador dos educandos no sent ido de renascer, no processo, com o educador – educando dos educandos. Por out ro lado, tem de propor aos educan- dos que também “morram” enquanto exclusivos educandos do educador para que renasçam com o educandos- educadores do educador- educando.

Sem esta “m orte” m útua e sem este m útuo “ renascim ento” a educação para a libertação é impossível.

I sto não significa, obviam ente, que o educador desapareça com o se fosse um a presença desnecessária. Rejeitando a m anipulação, jam ais aceitei o espontaneísm o.

A educação, como inst rumento de reprodução da ideologia dom inante ou como um m étodo de ação t ransform adora revolucionária, exige sem pre essa presença. Há, contudo, um a radical diferença ent re as duas form as de estar presente e de ser presença. Freinet , para falar apenas num dos grandes pedagogos contem porâneos inscr itos na perspect iva libertadora, jamais dejxou de estar presente, mas jamais, tam bém , exacerbou sua presença a ponto de t ransform ar a presença dos educandos em sombra da sua.

Impõe- se, realm ente, ao educador em tal linha estar desperto para o fato de que, no momento mesmo em que se inicia no processo, está se preparando para “m orrer” com o exclusivo educador do educando. Ele não pode ser um educador para a libertação se apenas subst itui o conteúdo da prát ica burguesa por out ro, m antendo, contudo, a form a daquela prát ica.

No fundo, tem de viver a profunda significação da Páscoa.

Por esta razão, um dos t rágicos equívocos de algum as sociedades socialistas, de que pelo m enos Cuba e China são exceções, está em que não têm sido capazes, em termos profundos, de superar o caráter “domest ic ador” da educação burguesa à cuja herança se som a a do stalinism o.

Assim , quase Sem pre, a educação socialista se confunde com a redução do pensamento marxista – um pensamento que, em si mesmo, não pode ser “enjaulado” – a “ tabletes” que devem ser “digeridos” .

Deste m odo, seus educadores caem na m esm a prát ica “nut r icionista” que caracter iza a educação dom est icadora.

Perpetuando a escola com o inst rum ento de cont role social, dicotom izando ensinar de aprender, esquecem a fundamental advertência de Marx em sua Terceira Tese sobre Feuerbach: “o educador deve tam bém ser educado” .

Desta forma, est imulam o “analfabet ismo” polít ico, at ravés de uma educação que, em cont radição com os reais objet ivos socialistas, desdialet iza o pensam ento.

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A persistência da ideologia burguesa, em alguns de seus aspectos, se expressa numa est ranha espécie de ideálism o segundo o qual, alcançada a t ransform ação da sociedade burguesa, um “novo mundo” é automat icamente cr iado.

Na verdade, porém, esse mundo novo não surge assim . Ele é criado no processo revolucionário que, devendo ser perm anente, não se esgota com a chegada da revolução ao poder. A cr iação desse m undo novo, que jam ais deve ser “ sacralizado” , exige a part icipação consciente das grandes m assas populares, a superação da dicotom ia t rabalho manual – t rabalho intelectual e um a form a de educação que não repita a burguesa.

Este é um dos grandes méritos da revolução cultural chinesa – o de recusar qualquer concepção estát ica, ant idialét ica, im obilista da histór ia. Daí a perm anente m obilização do povo, no sent ido de, conscientem ente, cr iar e recr iar sua sociedade. Ser consciente, na China, não é um “slogan” ou um a frase feita. Ser consciente é a form a radical de ser dos seres humanos.

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Algumas notas sobre humanização e suas implicações pedagógicas

Genebra – 1970

Nenhum tema é apenas o que aparece na forma lingüíst ica que o expressa. Há sem pre algo m ais oculto, m ais profundo, cuja explicitação se faz indispensável à sua compreensão geral. Desta forma, escrever sobre um tema implica em buscar , t anto quanto possível, rom per as aparências enganosas que podem conduzir- nos a uma distorcida visão do mesmo. I sto significa que temos de realizar o esforço difícil de desem baraçá- lo destas aparências para apanhá- lo como fenômeno dando- se numa realidade concreta.

Por esta operação, que é um a operação de busca, vam os ao encont ro do tem a na r iqueza de suas interrelações com aspectos part iculares, às vezes não suspeitados, m as que lhe são solidários. Tanto m ais sejam os capazes de um tal adent ram ento nele, quanto m ais poderem os captá- lo em seu complexo dinamismo.

Desta forma, escrever sobre um tema, como o entendemos, não é um mero ato narrat ivo. Ao apreendê- lo, como fenômeno dando- se na realidade concreta, que mediat iza os homens, quem escreve tem de assumir frente a ele uma at itude gnosiológica.

Os que lêem, por sua vez, assumindo a mesma at itude, têm de re- fazer o esforço gnosiológico anter iorm ente feita por quem escreveu. I sto significa que quem lê não deve ser um simples paciente do ato gnosiológico daquele. Ambos, finalmente, precisam evitar o equívoco socrát ico que tornava a definição do conceito com o o conhecim ento da coisa definida.

Desta forma, o que temos de fazer nào é propriamente definir o conceito do tema, nem tampouco, tomando o que ele envolve como um fat o dado, simplesmente descrevê- lo ou explicá- lo mas, pelo contrário, assumir perante ele uma at itude com prom et ida. At itude de quem não quer apenas descrever o que se passa com o se passa, porque quer, sobretudo, t ransformar a realidade para qu e, o que agora se passa de tal form a, venha a passar- se de forma diferente.

Esta at itude com prom et ida em face dos tem as, porém , não significa que, no processo de conhecer a realidade com o se está dando, partam os de posições preconcebidas. I st o é, de posições que, distorcendo os fatos nos quais se encont ram envolvidos os temas, term inariam por “domest icá- los” à nossa vontade.

Ao procurar conhecer cient if icam ente a realidade em que se dão os tem as, não devemos submeter nosso procedimento epistemológico à “nossa verdade” , m as buscar conhecer a verdade dos fatos. I sto não quer dizer, contudo, que ao em penhar-nos no conhecim ento cient ífico da realidade, devam os assum ir em face dela, com o dos resultados de nossa invest igação, um a at itude neut ra. É necessário não confundirm os a preocupação com a verdade, que deve caracter izar todo esforço cient ífico realm ente sér io, com a tão propalada neut ralidade da ciência, que de fato não existe.

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Nossa at itude compromet ida – e não neut ra – diante da realidade que buscamos conhecer resulta, num primeiro momento, de que o conhecimento é processo que implica na ação – reflexão do homem sobre o mundo. Acontece, porém, que o caráter teleológico da unidade ação- reflexão, isto é, da práxis, com que o hom em , t ransformando o mundo, se t ransforma, não pode prescindir daquela at itude compromet ida que, desta forma, em nada prejudica nosso espír ito crít ico ou nossa cient ificidade. O que não nos é legít im o fazer é pôr- nos indiferentes ao dest ino que possa ser dado a nossos achados por aqueles que, detendo o poder das decisões e subm etendo a ciência a seus inte- resses, prescrevem suas finalidades às maiorias.

Por out ro lado, a at itude com prom et ida diante dos tem as se explica ainda pelo fato de que todo tem a tem o seu cont rár io e envolve tarefas a serem cumpridas, tão antagônicas ent re si quanto cont rár ios os tem as ent re eles. Assim , ao adent rar- nos na compreensão de um tema, ao desvelá - lo, desvelam os igualm ente o seu cont rár io, o que nos impõe uma opção que, por sua vez, passa a exigir de nós uma form a de ação coerente com as tarefas apontadas no tem a. Daí que, no exercício destas tarefas, ao mesmo tempo em que temos de ser eficientes, não podemos desenvolver um t ipo de ação que cnrresponde à eficiência do tem a antagônico. Quanto m ais vam os conhecendo a realidade histór ico- social em que se const ituem os tem as em relação dialét ica com seus cont rár ios, tanto m ais nos é im possível tornar- nos neut ros em face deles. Por isso mesmo é que toda neut ralidade proclamada é sempre uma opção escondida. É que os tem as, insistam os, enquanto histór icos, envolvem orientações valóricas dos homens na experiência existencial dos mesmos.

Não pode ser out ra a nossa posição em face do tem a que agora nos reúne – tal o da hum anização dos hom ens e suas im plicações educat ivas.

No momento mesmo em que nos aproximamos, crit icamente, a este processo e o reconhecemos como um tema, somos obrigados a apreendê- lo, não como um ideal abst rato, mas como um desafio histórico, em sua relação cont raditória com a de desumanização que se veri fica na realidade objet iva em que estam os. I sto significa que desumanização e humanização não podem ocorrer a não ser na história mesma dos hom ens, dent ro das est ruturas sociais que os hom ens cr iam e a que se acham condicionados.

A primeira, como expressão concreta de alienação e dom inação; a segunda, com o projeto utópico das classes dom inadas e oprim idas. Ambas implicando, obviamente, na ação dos hom ens sobre a realidade social – a primeira, no sent ido da preservação do “status quo” ; a segunda, no da radic al t ransformação do mundo opressor.

Parece- nos im portante enfat izar esta obviedade – a da relação ent re desum anização e humanização, bem como o fato de que ambas demandam a ação dos homens sobre a realidade, ora para mantê- la, ora para m odif icá- la, para que evitem os as ilusões idealistas, ent re elas a que sonha com a hum anização dos hom ens sem a t ransformação necessária do mundo em que eles se encontram oprim idos e proibidos de ser. Um a tal ilusão, que sat isfaz os interesses de todos quantos têm condições favoráveis de vida, revela facilm ente a ideologia que se concret iza em form as assistencialistas de ação em que os proibidos de ser são convidados a esperar com paciência por dias m elhores que, m esm o tardando, não faltarão...

Não há, porém, humanização na opressão, assim como não pode haver desum anização na verdadeira libertação. Mas, por out ro lado, a libertação não se dá dent ro da consciência dos homens, isolada do mundo, senão na práxis dos homens

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dent ro da histór ia que, im plicando na relação consciência- mundo, envolve a consciência cr ít ica desta relação.

Aí está um dos pontos fundam entais das im plicações pedagógicas do processo da humanização, que nos leva à percepção de out ra impossibilidade sublinhada por nós em diferentes t rabalhos – a da neut ralidade da educação. Desta form a, assim com o a luta pela hum anização pressupõe a desum anização, com o fato concreto ou com o am eaça, assim tam bém am bas envolvem prát icas educat ivas antagônicas. É que, com o tem as cont rár ios ent re si, a hum anização e a desum anização apontam tarefas educat ivas necessariam ente cont rár ias tam bém . Por isto é que o educador que fez a opção hum anista, portanto, libertadora, não estará apto a cum prir a tarefa vinculada ao tem a de sua opção, enquanto não tenha sido capaz, at ravés de sua própr ia prát ica, de perceber corretam ente as relações dialét icas consciência- mundo ou homem- mundo.

É que, no fundo, um a das radicais diferenças ent re a educação com o tarefa dom inadora, desum anizante, e a educação com o tarefa hum anizante, libertadora, está em que a primeira é um puro ato de t ransferência de conhecim ento, enquanto a segunda é ato de conhecer. Estas tarefas radicalm ente opostas, que dem andam procedimentos da mesma forma opostos, incidem ambas, como não podia deixar de ser, sobre a relação consciência - mundo.

Assim , enquanto para a educação com o tarefa dom inadora, nas relações consciência -m undo, aquela aparece com o se fosse e devesse ser um sim ples recipiente vazio a ser “enchido” , para a educação com o tarefa libertadora e hum anista a consciência é “ int encionalidade” até o m undo.

No pr im eiro caso, o caráter at ivo, captador do conhecim ento existente, que tem a consciência, é negado.

Daí que, na educação com o tarefa dom inadora, a negação daquele caráter at ivo da consciência envolva o uso de prát icas pelas quais se busca “dom est icá- lo” , procurando- se, assim , t ransform ar a consciência naquele recipiente vazio acim a refer ido. Desta form a, a educação ou ação cultural para a dom inação não pode ser nada m ais que aquele ato at ravés do qual o educador, com o “o que sabe” , t ransfere ao educando, com o “o que não sabe” , o conhecim ento existente.

No segundo caso, pelo cont rár io, ao constatar- se o caráter at ivo, indagador, pesquisador da consciência, com o consciência reflexiva e não apenas reflexa, que lhe faz possível conhecer, autom at icam ente se constata a faculdade que ela tem , de um lado, de reconhecer ou de re - fazer o conhecim ento existente; de out ro, de desvelar e de conhecer o ainda não conhecido. Se assim não fosse, isto é, se a consciência que pode reconhecer o conhecim ento existente não fosse capaz de buscar novos conhecim entos, não haveria com o explicar o próprio conhecim ento hoje existente, um a vez que, com o processo, o conhecim ento que hoje existe foi viabilidade e logo depois conhecim ento novo, com relação ao conhecimento existente ontem e assim sucessivam ente.

Deste m odo, a educação ou a ação cultural para a libertação, em lugar de ser aquela alienante t ransferência de conhecim ento, é o autênt ico ato de conhecer, em que os educandos – tam bém educadores – com o consciências “ intencionadas” ao m undo ou com o corpos conscientes, se inserem com os educadores – educandos também – na busca de novos conhecim entos, com o conseqüência do ato de reconhecer o

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conhecim ento existente. Mas – não será demasiado reenfat izar – para que a educação, com o prát ica da liber tação, possa tentar a realização de um tal reconhecim ento do conhecim ento existente, de que decorre a procura de novos conhecim entos, jam ais pode fazer coincidir sua form a de “ t ratar” a consciência do homem com o modo pelo qual a “ t rata” a educação dom inadora. Daí a neçessidade a que fizem os referência anter iorm ente de o educador, que fez a opção hum anista, perceber corretam ente as relações consciência- mundo ou homem- mundo.

É por esta razão que a prát ica educat ivo- libertadora se obriga a propor aos homens um a espécie de “arqueologia” da consciência, at ravés de cujo esforço eles podem , em certo sent ido, refazer o cam inho natural pelo qual a consciência em erge capaz de perceber- se a si m esm a. No processo de “hom inização” em que a reflexão se instaura, se ver ifica o “ salto individual, instantâneo, do inst into ao pensam ento” . ∗ Desde aquele remot íssimo momento, porém, a consciência reflexiva caracterizou o homem como um animal não apenas capaz de conhecer, mas também capaz de saber- se conhecendo. Desta form a, ao em ergir, a consciência em erge com o “ intencionalidade” e não com o recipiente a ser enchido.

A percepção cr it ica deste fato, de um lado, desfaz o dualism o sim plista que estabelece um a inexistente dicotom ia ent re a consciência e o m undo; de out ro, ret if ica o equivoco em que se encont ra a consciência ingênua, ideologizada nas est ruturas da dom inaçào, tal o de considerar- se com o aquele recipiente vazio a ser enchido de conteúdos.

Por isto mesmo é que, quanto mais sejam os homens “anestesiados” no seu poder reflexivo, que ao ser adquir ido, no processo de sua evolução,∗ ∗ os dist ingue fundamentalmente dos animais, tanto mais se encont ram obstaculizados de libertar-se∗ ∗∗ verdadeiram ente. Parece fácil, assim , entender como, do pont o de vista da ideologia desum anizante, se faz indispensável evitar, a todo custo, qualquer esforço at ravés do qual o hom em se perceba com o um ser reflexivo, at ivo, cr iador, t ransformador do mundo. E como interessa, pelo contrário, a tal ideologia, operacionalizar a concepção dom est icadora da consciência com o espaço vazio que deve ser enchido.

Diante de seus objet ivos e da procura de realizá- los, as classes dom inantes se defrontam, porém, com um obstáculo que vêm tentando superar, cada vez mais eficientem ente, at ravés da ciência e da técnica a seu serv iço. Não lhes sendo possível m atar ou fazer desaparecer a capacidade de pensar dos hom ens, m it if icam a realidade, condicionando- lhes um pensar falso sobre si e sobre o mundo.

A m it if icação da realidade consiste em fazê- la passar pelo que ela não está sendo. Desta form a, com o processo, tal m it if icação im plica, necessar iam ente, na falsif icação da consciência. É que seria im possível falsificar a realidade, com o realidade da consciência, sem falsif icar a consciência da realidade. Uma não existe sem a outra.

∗ Teilhard de Chardin, El Fenómeno humano, Taurus, Madri, 1963, pág. 218. ∗ ∗ Teilhard de Chardin, op. cit. ∗ ∗ ∗ Não queremos com isto dizer que o simples uso da capacidade reflexiva seja suficiente para a libertação. É claro que a libertação demanda a ação transformadora sobre a realidade objetiva que os homens se acham oprimidos, portanto, desumanizados. Mas, como não há autêntica reflexão sem ação e vice-versa, ambas, em última análise, indicotomizavelmente, constituem a real práxis dos homens sobre o mundo, sem a qual é impossível a libertação.

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Assim com o o processo de libertação envolve aquela “arqueologia” da consciência at ravés da qual, como dissemos antes, o homem refaz o cam inho natural pelo qual a consciência em erge capaz de perceber- se, no processo de dom inação a m it ificação implica no desenvolvimento da “ irracionalidade” . Esta, contudo, não significa um retorno a um a form a de vida m eram ente inst int iva, mas a distorção da razão. O elemento mít ico aí int roduzido não proíbe propriamente que o homem pense; dificulta o exercício de sua cr it icidade, dando ao hom em a ilusão de que pensa certo. A propaganda se instaura, então, com o o inst rum ento eficiente para a efet ivação desta ilusão. At ravés dela, não apenas se propalam as “excelências” da ordem social, mas também se difunde que toda tentat iva de indagação em torno dela é em si “um ato subversivo e pernicioso ao bem comum” . Desta forma, a m it ificação conduz à “ sacralização” da ordem social, que não perm ite ser tocada nem discut ida. Daí que t odos os que t entam fazê- lo tenham de ser punidos, desta ou daquela forma ∗ , e sejam perfilados, at ravés também da propaganda, como “maus cidadãos a serviço da dem onização internacional” .

A “ sacralização” da ordem social dom est icadora é tão necessár ia à sua preservação quanto a “abertura” cr it ica o é à sociedade que se insere na busca perm anente da hum anização dos hom ens. Por isto, obviam ente, todo esforço de m it if icação tende a tornar- se totalizador, isto é, tende a at ingir o quefazer hum ano em todas as suas dimensões. Ne nhum a esfera pode escapar à falsificação, pois qualquer exceção pode v ir a converter- se em am eaça à “ sacralização” da ordem estabelecida. Neste sent ido, a escola, não importa qual seja o seu nível, vem desempenhando um papel dos mais importantes, como efic iente inst rum ento de cont role social. Não são raros os educadores para quem “educar é adaptar o educando a seu m eio” e a escola, em regra, não vem fazendo out ra coisa senão isto.

De modo geral, o bom aluno nâo é o inquieto, o indócil, o que revela sua dúvida, o que quer conhecer a razão dos fatos, o que rom pe os m odelos prefixados, o que denuncia a burocracia mediocrizante, o que recusa ser objeto. O bom aluno, ao cont rár io, é o que repete, é o que renuncia a pensar cr it icam ente, é o que se ajusta aos modelos, é o que “acha bonito ser r inoceronte” .∗

Por out ro lado, o professor, que se “diviniza” na sacralidade da escola igualmente sacralizante é, quase sem pre, um intocável, nâo apenas com relação à sua autor idade m it ificada, mas até – e coerentem ente – quant o a seu corpo. O aluno não pode, num gesto afet ivo, sequer por- lhe a mão no ombro. Esta int im idade de mortais ameaçaria a distância necessár ia ent re ele e os educandos.. . Estes, afinal, não têm nada a fazer a não ser receber os conteúdos que o educador lhes t ransfere, acrescidos do caráter ideológico necessário aos interesses da ordem “sacralizada” .

What did you learn in school today, dear lit t le boy of m ine? What did you learn in school today, dear lit t le boy of m ine?

I learned that Washington never told a lie, I learned that soldiers seldom die, I learned that everybody’s free, And that ’s what the teacher said to m e.

∗ Os níveis de punição variam em função dos níveis de oposição daqueles que recusam acomodar-se à “bovinização” imposta pela ordem opressora. ∗ Ver lonesco, Rhinocéros.

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That ’s what I learned in school today, That ’s what I learned in school.

I learned that policemen are my fr iends, I learned that j ust ice never ends, I learned that murderers die for their crimes Even if we make a mistake somet imes. I learned our government must be st rong, I t ’s always r ight and never wrong Our leaders are the finest men And we elect them again and again.

I learned that war is not so bad, I learned about the great ones we have had, We’ve fought in Germany and in France, And som eday I m ay get m y chance.

That ’s what I learned in school today, That ’s what I learned in school. ∗∗

Com um a ou out ra diferença, esta bem pode ser a canção que milhões de meninos de diferentes partes do mundo poderão cantar se lhes perguntarmos o que aprenderam hoje na escola.

Mas, se nossa cur iosidade cresce e passam os a perguntar aos jovens o que aprenderam hoje na Universidade, sua resposta não será em nada dram at icam ente infer ior à do m enino da canção de Tom Paxton. Poderão dizer, ent re out ras coisas:

Aprendemos hoje na Universidade que a objet ividade da ciência implica na neut ralidade do cient ista; aprendem os hoje que o saber é puro, universal e incondicionado e que a Universidade é a Sede deste saber.

Aprendemos hoje, ainda quando não verbalizadamente, que o mundo se divide entre os que sabem e os que não sabem – isto é, os que t rabalham – e a Universidade é a Casa dos primeiros. Aprendemos hoje que a Universidade, enquanto Templo de um. Saber casto, tem de pairar acim a das terrest res preocupações com o, por exem plo, a da libertação dos hom ens.

Aprendem os hoje que a realidade é um fato dado; que ela é o que é e que nossa imparcialidade cient ífica nos permite apenas descrevê- la como é. Por isto mesmo, para descrevê- la como é, não temos de indagar as razões maiores que a explicam com o é. Se, pelo cont rár io, procuram os denunciá - la com o está sendo para anunciar uma nova forma de ser, aprendemos hoje na Universidade que já não seremos cient istas, m as ideólogos.. .

Aprendemos hoje que o desenvolvimento econômico é um problema puramente técnico; que os povos subdesenvolv idos são incapazes – às vezes, por m est içagem , às vezes, por questão de clim a, às vezes, por nat ureza.

Fomos informados hoje de que os negros aprendem menos que os brancos porque são genet icam ente infer iores, m esm o que revelem certas indiscut íveis capacidades,

∗ ∗ Tom Paxton, cantado por Pete Seeger.

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como, por exemplo, a de correr, a de usar as mãos, a de resist ir fisicamente a trabalhos ma is pesados.

O indubitável é que toda esta m it if icação, at ravés da escola ou não, term ina por obstaculizar a capacidade cr ít ica dos hom ens, em favor da preservação do “ status quo” .

A int rojeção destes com o a de out ros tantos m itos explica form as de ação cont raditór ias com as opções proclam adas por m uitos.

Falam no respeito à pessoa humana e a pessoa humana se esclerosa numa frase banal, pois não a reconhecem nos hom ens concretos que se encont ram dom inados e “ coisif icados” .

Dizem- se compromet idos com a libert ação e agem de acordo com os m itos que negam a humanização.

Analisam os mecanismos sociais de repressão mas, ao mesmo tempo, at ravés de meios igualmente repressivos, freiam os estudantes a quem falam.

Dizem- se revolucionários mas, ao mesmo tempo, não crêem nas classes oprim idas a quem pretendem conduzir à libertação, com o se isto não fosse um a cont radição aberrante.

Querem a humanização dos homens mas, ao mesmo tempo, querem também a manutenção da realidade social em que os homens se acham desumanizados.

No fundo, temem a liberdade. Ao temê - la, porém, não podem arriscar- se a const ruí- la na comunhão com os que se acham dela privados.

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O papel educativo das I grejas na América Latina

Escr ito em 1971, este t rabalho foi publicado em 1973 por Study Encouter Genebra, sob o t ít ulo Educat ion, Liberat ion and the Church.

Começaremos este ensaio com uma afirmação que, revelando nossa clara posição diante do objeto de nosso estudo é, também, ao mesmo tempo, uma obviedade. Não podemos discut ir , de um lado, as I grejas, de out ro, a educaçâo e, finalm ente, o papel das pr im eiras com relação à segunda, a não ser histor icam ente.

As I grejas, de fato, não existem , com o ent idades abst ratas. Elas são const ituídas por mulheres e homens “situados” , condicionados por uma realidade conc reta, econôm ica, polít ica, social e cultural. São inst ituições inser idas na histór ia, onde a educação tam bém se dá. Da m esm a form a, o quefazer educat ivo das I grejas não pode ser com preendido fora do condicionam ento da realidade concreta em que se acham.

No momento, porém, em que levamos a sério tais afirmações, já não podemos aceitar a neutralidade das I grejas em face da história, assim como a neutralidade da educaçâo.

Deste modo, ent re os que proclamam esta neut ralidade, vamos encont rar, de um lado, os ingênuos, de diferentes m at izes, “ inocen- tes” , com a m elhor das intenções, na sua percepção da I greja e da histór ia. De out ro lado, os/ as que, “espertam ente” , escondem sua opção real.

Do ponto de vista objet ivo, contudo, todos eles se ident if icam nas conseqüências de suas prát icas. Ao insist irem na inviável neut ralidade da I greja em face da história, em face das at iv idades polít icas, não fazem out ra coisa senão exercer um a at iv idade polít ica, em favor, porém , das classes dom inantes e cont ra as classes dom inadas. Não se pode “ lavar as m ãos” em face de inconciliáveis, a não ser tom ando- se o part ido dos for t es.

Há, porém , um m odo sut il, pouco explícito, às vezes, de servir aos interesses dos fortes dando a aparência de uma ação em favor das classes oprim idas. Mais uma vez, nesta m odalidade deação, vam os encont rar, de m ãos dadas, os “ inocentes” e os “espertos” anteriormente referidos, mesmo que os “ inocentes” não o saibam.

Referimo- nos aqui às prát icas que costum am os cham ar de “ação anestesiadora” ou de “ação aspir ina” , expressões de um idealismo subjet ivista que só pode levar à preservação do “ status quo” .

São estas, em últ im a análise, m odalidades de ação, cujo pressuposto consiste na ilusão – ou em fazer crer nela – de que é possível t ransform ar o coração dos hom ens e das m ulheres, deixando, contudo, virgens, intocadas, as est ruturas sociais em que o “ coração” não pode ter “ saúde” .

Esta ilusão de que, com prédicas, obras humanitárias e o desenvolvimento de uma racionalidade desgarrada do mundo é possível, primeiro, m udar as consciências,

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depois, t ransformar o mundo, existe apenas naqueles que chamamos de “ inocentes” e a quem Niebuhr chama de “moralistas” .∗

Os “espertos” sabem m uito bem que, com tais form as de ação, retardam o processo fundam ental que é, na verdade, o da t ransform ação radical das est ruturas sociais para que se possa dar, com a instauração de um a nova prát ica social, a m udança das consciências. Mudança que, por sua vez, não é m ecanicam ente autom át ica.

Mas ainda quando, objet ivamente, como já salientamos, os resultados da ação de uns e de out ros sejam igualm ente prejudiciais, do ponto de vista da libertação das classes dom inadas, há uma importante diferença, ent re eles, que merece ser ressaltada.

Uns e out ros “at ravessam ” a ideologia das classes dom inantes e por ela são “at ravessados” , m as os “espertos” assum em esta ideologia. São bastante conscientes do que fazem.

Os “ inocentes” , por sua vez, at ravés de sua própr ia prát ica histór ica, ao desvelar a realidade e sendo nela desvelados, tanto podem assum ir a ideologia da dom inação, t ransform ando, assim , sua “ inocência” em “esperteza” , quanto podem renunciar a suas ilusões idealistas. Neste caso, então, ret iram sua adesão acrít ica às classes dom inantes e, comprometendo- se com as classes oprim idas, iniciam uma nova aprendizagem com elas.

I sto não significa porém que o seu comprom isso com as classes dom inadas já se tenha selado em form a verdadeira. É que, na prát ica de seu novo aprendizado, terão de enfrentar, de modo mais sério e mais profundo, o caráter arr iscado do exist ir. E não é fácil fazê- lo.

A primeira exigência que este novo aprendizado lhes faz abala fortemente sua concepção elit ista da existência, que haviam int rojetado no processo de sua ideologização.

Este aprendizado requer, com o condição “ sine qua” , que eles façam realmente sua Páscoa. I sto é, que “m orram ” com ó elit istas para renascerem com o revolucionários, por mais hum ilde que seja sua tarefa como tais.

I sto im plica na renúncia de seus m itos, tão caros a eles. O m ito de sua “superioridade” , o m ito de sua pureza de alma, o m ito de suas virtudes, o m ito de seu saber, o m ito de que sua tarefa é salvar os pobres. O m ito da inferior idade do povo, o m ito de sua impureza, não só espir itual, mas física∗ , o m ito de sua ignorância absoluta.

∗ Reinhold Niebuhr, Moral man and immoral society, Charles Scribner’s Sons, Nova York, 1960. ∗ Certa vez, em um dos vários seminários de que participamos em diferentes partes da América Latina, ouvimos de um dos presentes: “Se o senhor diz que não é possível diálogo entre antagônicos, como posso então dialogar com os favelados?” – Por quê? perguntamos. “Porque somos antagônicos”. – Como explica seu antagonismo? “Eu sei, eles não sabem. Além disto, eles são malcheirosos”. Dentro de toda a sua sabedoria, o homem de nosso exemplo não sabia algo tão óbvio. Que sua condição de classe lhe dava a possibilidade de banhar-se com água quente no inverno duro, de usar cheirosos sabonetes e

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Cedo percebem que a indispensável Páscoa, de que resulta a m udança de sua consciência, tem realm ente de ser existenciada. A Páscoa verdadeira não é verbalização comemorat iva, mas práxis, comprom isso histór ico. A Páscoa na verbalização é “m orte” sem ressurreição. Só na autent icidade da práxis histór ica, a Páscoa é morrer para viver. Mas uma tal forma de experimentar- se na Páscoa, em inentemente biofílica, não pode ser aceita pela visão burguesa do mundo, essencialm ente necrofílica, por isso m esm o estát ica.

A mentalidade burguesa tenta m atar o dinam ism o histór ico e profundo que tem a Passagem. Faz dela uma simples data na folhinha.

A ânsia da posse∗∗ , que é um a das conotações da form a necrofílica de ligação com o m undo, recusa a significação m ais profunda da Travessia. Na verdade, porém, não posso fazer a Travessia se carrego em m inhas mãos, como objetos de m inha posse, o corpo e alm a dest roçados dos oprim idos. Só posso empreender a Travessia com eles, para que possamos juntos renascer como homens e mulheres libertando- nos. Não posso fazer da Travessia um meio de possuir o mundo, porque ela é, irredut ivelmente, um meio de transformá - lo.

Da mesma maneira, aprendem que a consciência não se t ransforma at ravés de cursos e discursos ou de pregações eloqiientes. m as na prát ica sobre a rea lidade.

Assim , aprendem igualmente a distorção idealista, por exemplo, que faziam da tão incompreendida conscient ização quando pretendiam ter nela uma medicina mágica para a cura dos “ corações” , sem a m udança das est ruturas sociais. Ou, nout ra versão não menos idealista, quando pretendiam ter na conscient ização o inst rum ento igualmente mágico para fazer a conciliação dos inconciliáveis. Dai que a conscient ização lhes aparecesse com o um a espécie de “ terceiro cam inho” , at ravés do qual se evitassem os conflitos de classes.

Milagrosamente, a conscient ização criar ia um mundo de paz e de harmonia ent re classes opressoras e classes opr im idas, estabelecendo a necessár ia com preensão ent re elas. Conscient izadas um as e out ras, j á não haveria nas sociedades opressores e oprim idos porque todos, amando- se fraternalmente, resolveriam as suas dificuldades at ravés de m esas- redondas, com bom café, ou bom pisco, ou boa tequilla ou mesmo coca- cola.

No fundo, esta visão idealista, que só serve aos interesses das clas- ses dominant es, é a mesma que Niebuhr condenou veementemente, chamando- a de moralista.∗

Tal m ist if icação da conscient ização na Am érica Lat ina e não apenas nela, feita, não im porta se pelos “ inocentes” ou se pelos “espertos” , se vem const ituindo, naturalmente, em um obstáculo e não em um a ajuda ao processo de libertação.

desodorantes mil, assim como a possibilidade de mudar de roupa diariamente. Sem tais condições, que em nada são intrínsecas ao ser de ninguém, ele seria tão malcheiroso quanto os favelados de seu exemplo. ∗ ∗ A este respeito ver Erich Fromm, The heart of man. ∗ Referindo-se aos “moralistas”, diz Niebuhr: “They do not recognize that when collective power, whether in the form of imperialism or class domination, exploits wear-ness, it can never be dislodged unless power is raised against it... Modern religious idealists usually follow in the make of social scientists in advocating compromise and accommodation as the way to social justice”. 0p. cit, introdução, págs. XII e XIX.

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Na verdade, na m edida em que esta m ist ificação da conscient ização t ransform a- a num a panacéia, coloca- a, de um lado, a serviço das classes dom inantes, m as, de outro, term ina por est imular a que muitos grupos sérios lat ino- americanos, sobretudo de jovens, caiam no equivoco oposto ao do idealismo, que é o objet ivismo m ecanicista.

Reagindo ao subjet ivism o alienante que explica aquela distorção, os refer idos grupos term inam por negar o papel da consciência na t ransformaçâo da realidade, negando, desta form a, a dialet ização consciência - realidade. Já não percebem a diferença ent re consciência das necessidades de classe e consciência de classe∗ . Entre ambas há uma espécie de hiato dialét ico a ser resolvido. O subjet iv ism o tanto quanto o objet iv ism o m ecanicista são incapazes de fazê- la.

Estes grupos estão certos, sem dúvida, quando recusam , tanto quanto nós, que a consciência possa ser m odificada fora da práxis. É preciso, contudo, salientarm os que a práxis, at ravés da qual a consciência se t ransform a, não é pura ação, m as ação e reflexão. Daí a unidade ent re prát ica e teoria, em que am bas se vão const ituindo, fazendo- se e refazendo- se num movimento permanente no qual vamos da prát ica à teoria e desta a um a nova prá t ica.

A práxis teór ica não é out ra coisa senão a que realizam os, desde o contexto teór ico, ao tomar distância da práxis realizada ou realizando- se no cont ex t o concret o∗ ∗ , no sent ido de clar if icá- la. Por isso m esm o é que a práxis teórica só é autênt ica na medida em que o m ovim ento dialét ico ent re ela e a subseqüente práxis, a ser realizada no contexto concreto, não seja rom pido. Daí que sejam am bas essas form as de práxis momentos indicotom izáveis de um mesmo processo pelo qual conhecemos em term os crít icos. I sto significa, em out ras palavras, que a reflexão só é verdadeira quando nos remete, como salienta Sart re ∗∗ ∗ , ao concreto sobre o qual a exercem os.

Neste sent ido é que a conscient ização, associada ou não ao processo de alfabet ização, pouco importa, não pode ser uma blá- blá- blá alienante, mas um esforço crít ico de desvelam ento da realidade, que envolve necessariam ente um engajam ento polít ico.

Não há conscient ização se, de sua prát ica, não result a a ação consciente∗ ∗∗ ∗ dos oprim idos, como classe social explo rada, na luta por sua libertação. Por out ro lado, ninguém conscient iza ninguém . O educador e o povo se conscient izam at ravés do m ovim ento dialét ico ent re a reflexão cr it ica sobre a ação anter ior e a subseqüente ação no processo daquela luta.

Outra dimensão da m it if icação da conscient ização realizada pelos “ inocentes” ou pelos “ esper tos” é a tentat iva de conversão da tão propalada educação para a liber tação a

∗ “For the purposes of the historian, ..., the student of micro -history, or of history ‘as it happened’ (and of the present ‘as it happens’) as distinct from the general and rather abstract models of the historical transformation of societies, class and the problem of class consciousness are inseparable. Class in the full sense only comes into existence at the historical moment when classes begin to acquire consciousness of themselves as such.” (Hobsbawm, E. J. “Class consciousness in History”, in Mesaros, lstevan (ed.), Aspects

of History and Class consciousness, Routledge and Kegan Paul, Londres pág 6. ∗ ∗ A propósito das relações entre o contexto concreto e o contexto teórico, no ato de conhecer, ver Karel Kosik, Dialética do Concreto, Ed. Paz e Terra, Rio, 1976 ∗ ∗ ∗ Jean Paul Sartre, Search for a Method, Vintage Books, Nova York. ∗ ∗ ∗ ∗ A este propósito, ver Georg Lukacs, Historie et Conscience de Classe. Les Editions de Minuit, Paris, 1960.

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um problema puramente metodológico, tomando- se os métodos como algo neut ro, assexuado. Desta forma se pretende esvaziar a ação educat iva de seu conteúdo polít ico e a expressão “educação para a libertação” j á não faz sent ido.

Na verdade, na m edida em que tal m odalidade de educação se reduz a um conjunto de m étodos e de técnicas com os quais educandos e educadores olham a realidade social – quando a olham – para simplesmente descrevê- la, est a educação é t ão dom est icadora quanto out ra qualquer. A educação libertadora não pode ser a que busca libertar os educandos de quadros- negros para oferecer- lhes projetores. Pelo cont rár io, é a que se propõe, com o prát ica social, a cont r ibuir para a libertação das classes dom inadas. Por isso m esm o, é um a educação polít ica, tão polít ica quanto a que, servindo às classes dom inantes, se proclam a, contudo, neut ra. Daí que um a tal educação nâo possa ser posta em prát ica, em term os sistem át icos, antes da t ransform ação revolucionária da sociedade. ∗

Seria realmente uma ingenuidade, que só os “ inocentes” podem ter, esperar que as classes dom inantes pusessem em prát ica um t ipo de educação que as desvelasse mais do que as cont radições em que se acham envolvidas já o fazem.

Todos esses são descobrim entos que um núm ero cada vez m aior de cr istãos vem fazendo na América Lat ina e que exigem deles, como afirmamos anteriormente, uma tom ada de posição – ou t ransform am sua “ inocência” em “esperteza” e, assim , assumem conscientemente a ideologia da dom inação ou, pelo cont rário, se engajam na busca real da libertação dos oprim idos.

Dissemos antes que seu novo aprendizado com as classes dom inadas, no caso em que renunciem à sua adesão acrít ica às classes dom inantes, lhes fazia desafios inéditos, cujas respostas dem andavam deles que assum issem r iscos até então desconhecidos.

De fato, no processo deste novo aprendizado, cedo com eçam a perceber que, enquanto exerciam form as de ação puram ente paliat ivas, não apenas no setor da assistência social, por exemplo, mas também no especificamente religioso, part icipando, ardorosam ente, de cam panhas com o “a fam ília que reza unida permanece unida” , eram exaltados por suas vir tudes cr istãs.

No momento, porém. em que, pela própria experiência, vão percebendo que a família que reza unida precisa de casa, de t rabalho livre, de pão, de roupa, de saúde, de educação para seus filhos, de expressar- se e de expressar seu mundo, cr iando e recr iando, precisa de ser respeitada no seu corpo, na sua alm a, na sua dignidade, para permanecer unida não na dor apenas e na m iséria, neste momento mesmo, ao revelar sua percepção nova de tal realidade, passam a ter a sua própr ia fé posta em parêntese por aqueles que, achando pouco o seu poder polít ico, econôm ico ou eclesiást ico, pretendem ainda apoderar- se da consciência dos dem ais.

Na medida em que seu novo aprendizado os vai levando a uma cada vez mais clara inteligência da dram át ica realidade do povo, associada a novas form as de ação j á m enos assistencialistas, passam a ser vistos com o figuras “diabólicas” , a serviço da dem onização internacional. Dem onização que am eaça a “civilização ocidental e cr istã” , que de cr istã pouca coisa realm ent e tem.

∗ Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido.

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Assim, aprendem por meio da prát ica mesma que nunca t inham sido neutros nem im parciais no tem po de sua “ inocência” .

Neste m om ento, contudo, assustados, não suportando assum ir o r isco existencial que o engajamento histórico exige, muitos voltam, “espertam ente” , às ilusões idealistas.

Precisam , porém , racionalizar o seu retorno. Proclam am , então, a necessidade de defender as m assas populares, “ incultas e incapazes” , para que não percam a sua crença em Deus, “ tão bonita, tão m ansa, tão edif icante” . Defendê- las da “maldade subversiva de falsos cr istãos que elogiam a Revolução Cultural chinesa e falam em favor da Revolução cubana” .

Arregimentam- se na “defesa da fé” , quando, em verdade, se unem na defesa de seus interesses de classe, subordinando aquela a estes interesses. Desta form a, têm de insist ir na neut ralidade da I greja, cuja tarefa fundam ental deve ser, para eles, a de fazer a conciliação dos inconciliáveis, at ravés da estabilidade m áxim a possível da realidade social. Assim , cast ram a dimensão profét ica da I greja, cujo testem unho passa a ser o do tem or à m udança, o do tem or à t ransform ação radical do m undo injusto, com medo de perder- se no “ futuro incer to” .

Mas, ao tem er perder- se no futuro incerto, ao pretender evitar o r isco im plícito no futuro que deve ser const ruído e não recebido é que a I greja realmente se perde. Daí que não possa experimentar- se na unidade da denúncia e do anúncio. Denúncia da realidade injusta; anúncio da realidade a ser cr iada com a t ransform ação radical daquela.

Desta forma, tanto quanto as classes sociais dom inantes, às quais se at rela, não pode ser utópica, profét ica, nem esperançosa∗ . Ao pr ivar- se de sua v isão profét ica, sua tendência é formalizar- se na r itualização burocrát ica em que a esperança, sem relação com o futuro, é mera abst ração alienada e alienante. Em lugar de ser um est ímulo ao cam inhante é um convite à estabilidade. No fundo, esta é uma I greja que se proíbe de fazer a Páscoa de que fala. É uma I greja “morrendo de fr io” , sem condições de responder aos anseios de uma juventude inquieta a quem já não é possível falar uma linguagem medieval, pois que se encont ra desafiada pela dram at icidade de seu tem po. Juventude que, em parte, pelo m enos, sabe m uito bem que o problema fundamental da América Lat ina não é a “preguiça do povo” , ou sua “ infer ior idade” ou sua “ falta de educação” , m as o im perialism o, não com o abst ração ou um “slogan” , mas como uma realidade tangível, como uma presença invasora, dest ruidora. Sem a superação desta cont radição fundam ental, as sociedades dependentes lat ino- americanas poderão apenas modernizar- se.

Estão cer tos os teólogos lat ino- americanos que, engajando- se his- tor icam ente, cada vez mais, com os oprim idos, defendem hoje uma teologia polít ica da libertação e não uma teologia do “desenvolvimen- to” modernizante. Estes teólogos, sim , podem com eçar a responder, em certos aspectos, às inquietações de um a geração que opta

∗ “From the beginning of modern times, hopes for something new from God have emigrated from the Church and have been invested in revolution and rapid social change. It was most often reaction and conservatis m that remained in the Church. Thus, the Christian Church became “religious”. That is, she cultivated and apotheosized tradition. Her authority was sanctioned by what had been in force always and everywhere from earliest times.” (Moltmann, Jürgen, Religion, Revolution and the Future, Charles Scribner's Sons, Nova York, 1969, págs. 5-6.)

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pela t ransform ação revolucionária de sua sociedade e não pela conciliação dos inconciliáveis.

Eles sabem muito bem que só os oprimidos, com o classe social proibida de dizer sua palavra, podem vir a ser utópicos, profét icos e esperançosos, na m edida em que seu futuro ∗ ∗ não é a m era repet ição deform ada de seu presente. Seu futuro é a concret ização de sua libertação, sem a qual não podem ser. Só eles podem denunciar a “ordem” que os esmaga e, na práxis da t ransformação desta “ordem” , anunciar um m undo novo a ser refeito constantem ente.

Por isto é que sua esperança não é um convite à estabilidade, que não existe apenas no t radicionalismo, mas também na “modernização” alienadora. Sua esperança é um chamamento à “cam inhada” , não a uma “cam inhada” errante, de quem renuncia ou foge, mas à “cam inhada” de quem toma a história nas mãos, fazendo- a e nela refazendo- se. Caminhada que é, em últ ima análise, a sua Travessia necessár ia, na qual têm de “morrer” enquanto classe oprim ida para re- nascer com o hom ens e mulheres novos.

Esta Travessia, contudo, enfat izem os m ais unia vez, não pode ser feita “dent ro” de sua consciência, m as na histór ia. Ninguém faz a Travessia apenas na “ inter ior idade” de seu ser.

Há tam bém , contudo, aqueles que, em núm ero cada vez m aior, sem renunciar às suas posições cr istãs, ou a elas renunciando, vão tornando- se mais e mais com prom et idos com a causa da libertação das classes dominadas.

Sua experiência lhes vem ensinando que ser cr istão não significa necessariam ente ser reacionário, como ser revolucionário não implica em ser “demoníaco” . Ser revolucionário significa estar cont ra a opressão, cont ra a exploração, em favor da libert ação das classes oprim idas, em term os concretos e não em term os idealistas.

At ravés de seu novo aprendizado perceberam finalm ente que é pouco dizer que homens e mulheres são pessoas humanas mas nada fazer, objet ivamente, para que existenciem sua condição de pessoa. Aprenderam que não é com obras assistencialistas ou, como prefere Niebuhr, “humanitár ias” , que as classes oprim idas podem realm ente autent icar- se com o pessoas.

Ult rapassaram os primeiros embates que muitos de seus companheiros de Travessia não resist iram , o que não quer dizer, porém, que todos cheguem a suportar as provas m ais duras que têm ainda pela frente. É que, se, em certo m om ento do processo, a violência dos opressores se exercia quase exclusivam ente sobre a classe operár ia, poupando, o m ais das vezes, os intelectuais com prom et idos, pois que estes, em últ ima análise, fazem parte da mesma totalidade das classes dom inantes, em out ro, aquela violência se faz indiscr im inadam ente. É com o se a violência se “dem ocrat izasse” ...

∗ ∗ Na verdade só os oprimidos podem conceber um futuro completamente diferente dc seu presente, na medida em que alcançam a consciência de classe dominada. Os opressores, enquanto classe dominante, não podem conceber o futuro a não ser como preservação de seu presente de opressores. Assim, enquanto o futuro dos primeiros está na transformação revolucionária da sociedade, sem a qual não haverá sua libertação, o futuro dos segundos está na pura modernização da sociedade, com a qual podem ou esperam manter o domínio de classe.

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Este instante provoca de um lado a ret irada de alguns, o seu silêncio, a sua acom odação; de out ro, porém , novas adesões.

Um a das diferenças fundam entais, contudo, ent re os que partem e os que ficam , está em que os últ imos assumem a existência como a tensão dramát ica ent re o passado e o futuro, ent re a m orte e a vida, ent re ficar e part ir , ent re cr iar e não cr iar, ent re dizer a palavra e o silêncio cast rador, ent re a esperança e o desespero, ent re ser e não ser.

Com o seres hum anos, de fato, é um a ilusão pensar que podem os escapar a esta tensão dramát ica. Não podemos submergir na dramat icidade de nossa própria forma de estar sendo no m undo, o que significaria a nossa perda na alienação da quot idianeidade ∗ . Na verdade, se me perco na quot idianeidade, perdendo, ao mesmo tem po, a percepção da dram át ica significação de m inha existência, m inha tendência é tornar- m e fatalista ou cínico. Por out ro lado, se busco emergir da quot idianeidade, no sent ido de assum ir a dramat icidade de m inha existência, mas não me faço compromet ido historicamen te, não tenho out ro cam inho senão cair num intelectualismo vazio, igualmente alienado. Assim , é possível que fale da existência como desespero ou impossibilidade.

Desta forma, não tenho out ra maneira de superar a quot idianeidade alienante senão at ravés de m inha práxis histórica em si mesma social, e não individual. Somente na medida em que assumo totalmente m inha responsabilidade no jogo desta tensão dram át ica é que m e faço um a presença consciente no m undo. Com o tal, não posso aceitar ser m ero espectador, mas, pelo cont rário, devo buscar meu lugar, o mais humilde, o mais mínimo que seja, no processo de t ransformação do mundo. Assim, então, a dram át ica tensão ent re passado e futuro, ent re a m orte e a vida, ent re a esperança e o desespero, ent re ser e não ser, já não existe com o um a espécie de beco sem saída, mas é percebida como realmente ela é: um permanente desafio ao qual devo responder. E a resposta não pode ser out ra senão o com prom isso com a libertação das classes opr im idas, at ravés da t ransform ação revolucionária da sociedade.

A revolução, contudo, não esgota a dram át ica tensào da nossa existência. Ela resolve as cont radições antagônicas que fazem a tensão m ais dram át ica. Mas, precisam ente porque part icipa da tensão, ela é tão perm anente quanto aquela.

Dentro da história, é impossível pensar na instauração de um reino de paz imperturbável. A histór ia é devenir, é acontecimento humano.

Mas, em lugar de sent ir - m e desapontado e assustado na descoberta cr ít ica da tensão em que me acho como um ser humano, descubro nela, pelo cont rário, a alegria de ser.

Por out ro lado, contudo, não posso reduzir a tensão dram át ica à m inha experiência existencial, apenas. Naturalm ente, não posso negar a singular idade de m inha existência, mas isto não significa que m inha existênc ia pessoal tenha um a significação absoluta em si m esm a, isolada de out ras existências. Pelo cont rár io, é na intersubjet ividade, mediat izada pela objet ividade, que m inha existência ganha sent ido.

∗ Ver Karel Kosik, op.cit.

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O “eu existo” não precede ao “nós exist im os” , se const itui nele. A concepção individualista burguesa da existência não é suficiente para ret irar dela sua base social e histórica. Mulheres e homens, como seres humanos, são produtores de existência e o ato de produzi- la é social e histór ico, ainda quando tenha a sua d imensão pessoal.

A existência não é desespero, m as r isco. Não posso ser se não existo per igosam ente. Mas, se a existência é histór ica, o r isco existencial não é um a categor ia abst rata, senão histór ica tam bém . I sto significa que, se exist ir é arr iscar- se, onde quer que a existência se dê, as form as de arr iscar- se bem com o a eficiência no arr iscar- se não podem ser as mesmas em diferentes espaços e tempos.

Nossa realidade histór ico- social condiciona a nossa form a de arr iscar- nos. Daí que o testem unho não possa ser importado. Pretender a universalidade dó conteúdo e da forma do risco existencial é uma ilusão idealista que não pode ser aceita por ninguém que pense dialet icam ente.

Uma tal forma de pensar – a dialét ica – se const itui, por out ro lado, com o um dos f undam entais desafios aos que fizeram a nova opção e a quem estam os discut indo nesta parte de nosso t rabalho. É que sua form ação pequeno- burguesa, individualista, intelectualista, que dicotom iza teor ia de prát ica, t ranscendência de m undanidade, t rabalho intelectual de t rabalho manual, nem sempre é superada, facilmente, mesmo entre aqueles que se experimentam com o povo.

Sua marca pequeno- burguesa se expressa constantem ente at ravés de at itudes e de prát icas em que as classes dom inadas aparecem com o puros objetos de seu “ revolucionarismo impaciente” .

No seu novo aprendizado com o povo não há out ro cam inho senão a “ t ravessia” “ent re” a subjet iv idade e a objet iv idade e, ao fazê- lo, oscilam muitas vezes ent re o subjet ivismo idealista e o objet ivismo mecanicista, ent re o intelectualism o verboso e o at iv ism o que recusam a reflexão séria. Daí que tanto possam reat ivar as m at r izes idealistas, como possam cair no “ revolucionarismo impaciente” , antes referido.

Am bas estas posturas, com o afirm am os no início deste estudo, são obstáculos ao autênt ico processo de libertação. Ambas term inam por negar o verdadeiro papel da consciência de classe na t ransform ação revolucionária.

A análise m ais det ida deste fato não é, porém , o objet ivo deste t rabalho.

Ao procurarmos analisar agora, de maneira mais det ida, o papel das I grejas na Am érica Lat ina, em face de um a de suas tarefas, a da educação, terem os de voltar a algumas das afirmações feitas no corpo deste ensaio. Em primeiro lugar, à impossibilidade de sua neut ralidade polít ica. Por isso mesmo, se torna inviável discut ir esse papel abst ratam ente, um a vez que ele, com o a concepção da educação, seus objet ivos, m étodos, conteúdo, tudo está condicionado pela opção resultante daquela impossibilidade. Seria incorrer na mesma ilusão idealist a que cr it icam os se pretendêssem os realizar tal análise fora da realidade histór ica, tom ando a educação e seus objet ivos com o idéias puras, im utáveis, essências m ais acim a da existência concreta do mundo mesmo.

Não escapam a este condicionam ento, de um lado, a própr ia capacitação teológica dos quadros da I greja m ilitante, de out ro, a educação geral realizada at ravés das I grejas.

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Num a sociedade de classes, são as elites do poder, necessariam ente, as que definem a educação e, consequentem ente, seus objet ivos. E estes objet ivos não podem ser, obviam ente, endereçados cont ra os seus interesses. Com o dissem os anter iorm ente, seria uma ingenuidade primária esperar de tais elites que pusessem em prát ica, ou que consent issem ser posta em prát ica, em caráter geral e sitem át ico, um a educação que, desafiando o povo, lhe perm it isse perceber a “ raison d’êt re” da realidade social. O máximo que tais elites perm item é a expressão verbal de tal educação e, vez ou outra, algumas experiências, logo paralisadas, se revelam algum perigo à estabilidade.

Por isso mesmo não nos surpreenderíamos se o Conselho Episcopal Lat ino- Americano – Celan – que tem falado sem pre em seus docum entos oficiais de educação libertadora, viesse a sofrer rest r ições por parte das elites do poder, m ediat izadas por aquela I greja ant iprofét ica de que falamos anteriormente. Esta I greja que “morre de fr io” no seio morno da burguesia, não pode olhar com bons olhos e ouvir com bons ouvidos a defesa das idéias e de prát icas consideradas pelas elites com o “diabólicas” .

A nossa tarefa se simplificaria se t ivéssemos de nos perguntar qual deveria ser o papel das I grejas na Am érica Lat ina em face da educação se esta pergunta pressupusesse a coerência das I grejas com relação ao Evangelho.

A verdade, contudo, não é esta e não podemos pensar no vazio. É inviável falar objet ivamente de um papel unificado das I grejas lat ino- americanas em face da educação. Há papéis dist intos, em função da linha polít ica, clara ou oculta ou disfarçada, que diferentes I grejas vêm assum indo historicamente na América Lat ina.

Um papel, por exemplo, que corresponde a uma Igreja t radicionalista, que não chegou ainda a desvencilhar- se de suas m arcas intensam ente coloniais. Missionária no pior sent ido da palavra, “ conquistadora” de alm as, esta I greja, dicotom izando m undanidade de t ranscendência, tom a aquela com o a “sujeira” na qual os seres humanos devem pagar por seus pecados. Por isso mesmo, quanto mais sofram tanto m ais se pur ificam te, ássim , alcançam o céu, a paz eterna. O t rabalho não é a ação dos homens e das mulheres sobre o mundo, refazendo- o e fazendo- se nele, m as a “pena que pagam por ser homens” e mulheres.

Esta linha t radicionalista, não im porta se protestante ou católico- rom ana, se const itui no que o sociólogo suíço Christ ian Lalive chama de “refúgio das massas” .∗

É que um a tal postura em face do m undo, em face da vida, sat isfaz à im potência da consciência fatalista dos oprim idos, em certo m om ento de sua experiência histór ica. Aí encont ram eles um a espécie de bálsam o para o seu cansaço existencial.

Por isto, quanto mais imersas na cultura do silêncio estejam as massas populares, quanto m aior for a violência das classes apressoras, tanto m ais tendem aquelas m assas a refugiar- se em tais I grejas.

Mergulhadas na cultura do silêncio, onde a única voz é a das classes dom inantes, encont ram nesta I greja um a espécie de “útero” no qual se “defendem ” da agressividade da sociedade. Por out ro lado, ao desprezarem o mundo, como mundo do pecado, do vício, da im pureza, em certo sent ido “se vingam ” de seus opressores,

∗ Christian Lalive, El Refugio de Ias massas. Estudio Sociologico dei Pnotestantisnro Chileno, Editorial dei Pacifiço, Santiago, 1968.

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que são os “donos” deste m undo. É com o se dissessem aos opressores: “Os senhores são poderosos, mas possuem um mundo feio, que nós recusamos” .

Proibidas de dizer sua palavra, enquanto classe social subordinada, ganham, no “ refúgio” , a ilusão de que falam , na expressão de suas súplicas de salvação.

Nada disto, contudo, resolve sua situação concreta de opr im idos. A sua catarse, em últ ima análise, as aliena mais, na medida em que se faz em antagonismo com o mundo e não com o sistema sócio - econôm ico que estraga o mundo.

Assim, téndo o mundo em si mesmo como antagônico, tentam o impossível, que é renunciar à m ediação dele na sua Travessia.

Desta forma, querem chegar à t ranscendência sem passar pela mundanidade; querem a meta- história, sem experimentar- se na histór ia; querem a salvação sem a liber tação.

A dor que sofrem no processo de sua dom inação as faz aceitar esta anestesia histór ica, sob cujo efeito buscam for talecer- se para lutar cont ra o dem ônio e o pecado, deixando, porém , em paz, as causas reais de sua opressão. Assim não podem vislumbrar, mais além das situações concretas, o “ inédito viável” ∗ – o futuro com o tarefa de liber- tação que têm de cr iar.

Esta form a t radicional de I greja corresponde às sociedades “ fechadas” , com um mínimo de mercado interno, exportadoras de m atérias- pr im as; sociedades preponderantem ente agrícolas, em que a cultura do silêncio é a conotação fundamental. Na mesma medida em que estas est ruturas sociais arcaicas persistem em pleno processo de m odernização de tais sociedades, a I greja t radicionalista igualm ente persiste nele. Mas seria um equívoco pensar que a sua presença na t ransição em que ent ra esta ou aquela sociedade se ver if icasse apenas nas áreas intocadas pela modernização. Na verdade, nos próprios cent ro urbanos, t ransformando- se sob o im pacto da indust r ialização, constata- se facilm ente a força de tal t radicionalismo religioso∗ ∗ . É que som ente a m udança qualitat iva da consciência popular pode superar definit ivam ente a necessidade da “ I greja com o refúgio das m assas” . E esta mudança qualitat iva não se opera, como dissemos anteriormente, nem “dent ro” da consciência por ela mesma, nem automát ica nem mecanicamente.

Por out ro lado, a m odernização tecnológica não t raz consigo, necessar iam ente, a cr it icização das m assas populares, um a vez que, não sendo neut ra, depende da ideologia que a ilum ina.

Por tudo isto e por muito mais que a extensão deste t rabalho não perm ite analisar, a linha t radicionalista a que nos referimos se const itui como uma aliada indiscut ível das classes dom inantes, não importa que alguns dos que a lideram possam estar inconscientes disto.

O papel que tais I grejas podem desempenhar e vêm desempenando no campo da educação tem , portanto, de estar condicionado por sua visão do m undo, da religião, dos seres hum anos e de seu “ dest ino” . Sua concepção da educação, que se concret iza

∗ Ver Paulo Freire, Pedagogia do Oprimido. ∗ ∗ Ver Muniz de Souza, Beatriz, A Experiência da Salvação, Pentecostais em São Paulo, Editora Duas Cidades, São Paulo, 1969.

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em um a prát ica correspondente, não pode deixar de ser quiet ista, alierfada e alienante.

Som ente os que ainda se encont ram “ inocentem ente” nesta pers- pect iva e não “espertamente” podem superar o seu equivoco, at ravés de sua práxis, para, comprometendo- se com as classes dom inadas, em forma diferente, fazem- se realm ente profét icos.

Evoluindo desta perspect iva t radicionalista, um a nova posição vem sendo assum ida por out ras I grejas, no quadro histórico da Am érica Lat ina.

Esta nova posição com eca a const it uir - se na refer ida t ransição que a Am érica Lat ina vem experimentando e em que se verifica a superação de est ruturas t radicionais por est ruturas modernizando- se. As m assas populares, antes preponderant emente “ im ersas” no processo histór ico∗, iniciam sua “em ersão” com o resposta necessária ao processo de indust r ialização. A sociedade, inser ida em tal passagem , com eça a mudar. Desafios novos se apresentam às classes dom inantes, exigindo delas respostas dif erentes.

Os interesses imperialistas, que em si condicionam a própria t ransição da sociedade, se fazem mais e mais agressivos, expressando- se at ravés de variadas formas de penet ração e'de cont role da sociedade dependente. Em certo m om ento deste período, a ênfase no processo da indust r ialização provoca a configuração de um a “ ideologia do desenvolv im ento” , de caráter nacionalista, que, ent re out ras teses, defende o pacto ent re as “burguesias nacionais” e o proletar iado emergente.

Os econom istas lat ino- am ericanos são os pr im eiros a lançar- se à análise de tal processo, a quem se juntam sociólogos e alguns educadores. A noção e a prát ica do planejamento se instauram. A Comissão Econômica para a América Lat ina – CEPAL –, de assessoria à Am érica Lat ina, exerce um a influência decisiva em tal fase, não apenas at ravés de suas m issões técnicas, m as tam bém at ravés do esforço de explicitação de suas teses em torno da polít ica do “desenvolvim ento” . À CEPAL se vem juntar, m ais tarde, a cont r ibuição do I nst ituto Lat ino- Americano de Planejam ento Econôm ico e Social – I LPES – como aquela, um organismo da ONU, que tem, como um a de suas tarefas, a capacitação de econom istas para todo o cont inente.

Nada disto, porém, se deu nem poderia dar- se no ar. Mas, pelo cont rár io, dent ro da história mesma que a América Lat ina, mais inten- samente em uma sociedade, menos em out ra, vivia.

Seria im possível com preender todo este m ovim ento com as diferentes perspect ivas que se expressam nessa época, em face de “at raso da Am érica Lat ina” , com o se resultasse do acaso ou de meros caprichos de alguns homens.

Os já refer idos interesses econôm icos im perialistas, a necessidade de expansão de.seu mercado, por exemplo, forçavam as próprias elites nacionais, no fundo, quase sem pre, puras m etásteses das externas, a buscar cam inhos de superação das est ruturas arcaicas, sem o que aqueles interesses se frustar iam .

O importante, porém, do ponto de vista do imperialismo e de seus aliados nacionais, era que tal processo reform ista, cham ado sloganizadam ente de desenvolvimento, não

∗ Pauto Freire, Educação como Prática da Liberdade.

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afetasse os pontos cent rais das relações ent re a snciedade m at r iz e as sociedades dependentes. No fundo, “desenvolvim ento” na dependência. Desta form a, obviam ente, o ponto de decisão polít ica, econôm ica, cultural da t ransform ação da sociedade dependente deveria perm anecer na sociedade m at r iz, a não ser em certos aspectos que, delegados a ela, não alterar iam em essência seu estado de sociedade subordinada.

Por isso m esm o é que as sociedades lat ino - am ericanas, com exceção de Cuba, depois de sua revolução, vêm modernizando- se e não desenvolvendo- se, no sent ido real da palavra.

O desenvolvimento da América Lat ina só se dará na medida em que se resolva sua cont radição fundam ental ou pr incipal, que configura sua dependência. I sto significará que o ponto de decisão de sua t ransform ação se encont rará dent ro de suas sociedades, mas, ao mesmo tempo, fora das mãos de uma elite burguesa, superposta às massas populares oprim idas. É inviável o desenvolvimento integral numa sociedade de classes. Neste sent ido é que desenvolvimento é libertaçao, de um lado, da sociedade dependente como um todo em face do imperialismo; de out ro, das classes sociais oprim idas em relação às classes opressoras.

De qualquer forma, porém, o processo de expansão imperialista engendra fat os inéditos, de caráter polít ico e social. A t ransição que a sociedade dependente sofre implica na presença contraditória de um “proletariado modernizaqdo- se, ao lado de um proletar iado t radicional; de um a pequena burguesia técnico- profissional, ao lado de uma classe média t radicional” ∗ . De uma Igreja t radicional, ao lado de uma Igreja modernizando- se; de um a educação livresca, “ flor ida” , ao lado de um a educação t écn ico- profissional que com eça a ser ensaiada, com o exigência necessária da indust r ialização.

É que a passagem que faz a sociedade de um a etapa à out ra não se dá autom at icam ente, com o pensam os m ecanicistas. Não há fronteiras geograficam ente rígidas ent re tais fases, daí que coexistam dím ensões de am bas na Transição.

A presença do proletariado modernizando- se, exercitando- se numa nova experiência histór ica – a da Transição – gera o surgimento do populismo, como um novo est ilo de ação polít ica. Sua liderança joga o papel de m ediadora ent re as classes populares “emergindo” e as classes dom inantes∗∗

Não é possível, por isto mesmo, pensar em populismo se as massas populares não fizeram ainda a sua “em ersão” . Daí que, nas sociedades em Transição, ele não afete as áreas lat ifundiár ias pelo fato de que, em tais circunstâncias, as m assas cam ponesas se acham “ imersas” .

Por out ro lado, no quadro histór ico em que o populism o se const itui, sua tendência é a de se caracter izar com o um t ipo de ação “assistencialista” , de que decorre o seu caráter manipulador. É que as mas- sas populares “emergem” no processo histórico intensam ente condicionadas por toda a sua experiência na cultura do silêncio.

∗ Ver Cardoso, Fernando Henrique, Politique et développement dans les sociétés dépendentes, Edition Anthropos, Paris, 1971. ∗ ∗ Ver Weffort, Francisco, Classes Populares e Política (Contribuição ao Estudo do Populismo),

Universidade de São Paulo, São Paulo, 1968.

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Em ergem , obviam ente, sem consciência de classe, pois que não podiam tê- la no estado anterior, o de sua imersão. Aparecem tão ambíguas quanto ambíguo é o populismo que a elas responde. De um lado, reivindicam; de outro, aceitam as fórmulas assistencialistas e ma - nipuladoras.

É por esta razão também que as I grejas t radicionalistas perduram, na Transição, inclusive nos cent ros urbanos, m odernizando- se. E a tendência de tais I grejas é prest igiar- se desde que, esgotada a etapa do populism o, em certas sociedades lat ino -americanas, elas ent rem em nova t ransição, caracterizada por regimes m ilitares violentos.

“Reat ivando” nas m assas populares sua velha form a de ser, const ituída na cultura do silêncio, a repressão as leva à I greja como “ refugio” . Esta I greja, mais do que existe ao lado das que se vão modernizando, segundo já vimos', também se moderniza, em certos aspectos, com o que se torna m ais eficiente no seu t radicionalism o.

É importante observar, dent ro da Transição, que, assim com o o processo de m odernização da sociedade dependente não t raduz alterações fundam entais em sua relação com a sociedade m at r iz, e a em ersão das m assas não quer dizer sua consciência cr it ica ou de classe, a linha modernizante das igrejas não significa seu comprom isso histórico com as classes oprim idas, no sent ido de sua real libertação.

Desafiada pela eficiência que com eça a ser exigida peÌ as sociedades que vão superando suas est ruturas arcaicas, a I greja m odernizante aperfeiçoa sua burocracia para ser mais eficaz, quer na sua at ividade social- assistencial quer na sua ação pastoral. I nteressa- se, assim , por subst ituir as form as em pír icas antes usadas no seu quefazer assisten- cial, por procedim entos técnicos. Seus ant igos “Cent ros de Caridade” , orientados por leigos – na I greja Católica, por Filhas de Maria – pas- sam a cham ar- se “Cent ros de Com unidade” , sob a direção de assisten- tes sociais. Os homens e as mulheres que antes eram João, Carolina, Joaquim , Madalena, sâo agora números em fichas verdes, amarelas e azuis. Os chamados meios de comunicação com as m assas, no fundo, m eios de “com unicados” às m assas, são um a at ração irresist ível. Mas o que há de condenável na I greja “moderna” e modernizante não é propriamente a sua preocupação, de resto im portante, com o aperfeiçoam ento de seus inst rum entos de t rabalho, m as a sua opção polít ica, inegável, ainda que m uitas vezes escondida, que se encont ra condicio - nando a sua própria m odernização. Tanto quanto as I grejas t radicionalistas, de que ela é uma versão nova, o seu comprom isso real não é com as classes sociais dom inadas, mas com as elites do poder. Daí que defenda as reform as est ruturais e não a t ransform ação radical das est ruturas; daí que fale em “humanização do cap italism o” e não em sua total supressão.

Enquanto as I grejas t radicionalistas alienam as classes sociais dom inadas, revelando-lhe o mundo como seu antagônico, a I greja modernizante as aliena, em forma diferente, ao apoiar os reform ism os que preservam o “status quo” .

Reduzindo expressões como “humanismo” , “humanização” , “promoção humana” , a categor ias abst ratas, as esvazia de sua real signif icação, tornando- se assim um blá -blá- blá, que só não é inoperante porque ajuda as forças reacionárias. Na verdade, não há humanização sem libertação, assim como não há libertação sem a t ransform ação revolucionária da sociedade de classes, em que a hum anização é inviável.

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Em tal sociedade, a libertação é o “ inédito v iável” das classes dom inadas. Sua concret ização, porém , só se dá na ult rapassagem daquela sociedade e não na simples modernização de suas est ruturas.

Na medida em que a Igreja modernizante não vai mais além das mudanças per ifér icas em tal sociedade, advogando m edidas paliat ivas, de caráter neocapitalista, a sua au diência não pode ser out ra senão a dos já refer idos “ inocentes” ou “ esper tos” .

A juventude que se acha desafiada pela realidade dram át ica da Am érica Lat ina, desde que não seja “ inocente” ou “esperta” , não pode aceitar o convite que lhe faz a I greja modernizante para encarnar posições conservadoras, que são igualm ente as reform istas. Não apenas recusa este cham am ento m as até, provocada por ele, assum e at itudes nem sem pre válidas, com o, por exem plo, a postura objet ivista que analisam os nout ra parte deste t rabalho.

Na verdade, ao assum ir posições conservadoras, recusadas por aquela juventude, esta I greja não cont radiz seu “m odernism o” . É que a m odernização que estam os analisando é eminentemente conservadora, na medida mesma em que reforma para melhor preservar o “ status que” . Neste sent ido, a I greja m odernizante, conservadora, “ fica” , na aparência de que “anda” ou “cam inha” ; “estabiliza - se” , dando a impressão de que “marcha” . Morre porque recusa morrer.

A I greja modernizante dir ia hoje, de novo, ao Cristo: “Por que, Mest re, part ir , se tudo aqui é tão belo, tão bom !”

A sua linguagem é uma linguagem que esconde em lugar de ilum inar. Em face da situação concreta de opressão, num a sociedade de classes, fala de “pobres” ou de “m enos favorecidos” e não de classes oprim idas.

Pondo no m esm o nível a alienação das classes sociais dom inantes e a das classes opr im idas, pretende desconhecer a cont radição antagônica ent re elas, que resulta do próprio sistema que as cr ia. Se o sistema aliena umas e out ras, as aliena, contudo, em forma diferente.

As primeiras se alienam enquanto, t ransformando o ser no falso t er , se exacerbam no poder e já não o são autent icam ente; as segundas, porque, proibidas de ser, são quasexoisas. Engendrando o t rabalho como mercadoria o sistema cria aqueles que com pram e aqueles que vendem a força do t rabalho. O equívoco dos inocentes e a esperteza dos espertos está em afirm ar que a superação de tal cont radição é um a questão de consciência m oral∗ .

Ao proibirem, determ inadas pele próprio sistema, que as classes dominadas sejam, as classes dominantes não só deixam de ser, mas também se acham impossibilitadas, como tais, de promover os meios pelos quais se poderia superar sua alienação bem

∗ Ao não perceberem o problema em forma dialética, os “inocentes” podem conside-rar a análise que fazemos como algo maniqueista. Na verdade, porém, de um ponto de vista dialético, a questão não se reduz a uma tão simplista divisão dos seres humanos, entre bons e maus. O que a análise critica revela, por um lado, é que o sistema capitalista, em si, é o que gera, necessariamente, tal estado de coisas; de outro, é que é inviável transformá-io convidando as classes dominantes a tomar consciência de seu “erro”. Na verdade, do ponto de vista de seus interesses de classe, elas estão certas e isto é outro ponto que os ingênuos não podem perceber. E não podem porque sua tendência irre-freável é pensar a-historicamente.

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como a das classes oprim idas. Por isso mesmo, somente estas, historicament e, est ão cham adas a tal quefazer.

As out ras, enquanto classes dom inantes, não podem fazê- la. O que fazem – na sua lim itação histórica – é reformar e modernizar o sistema (em função de novas exigências que a “ inteligência” do próprio sistem a percebe) no sent ido de preservá- lo, do que resulta a alienação de todos.

Dent ro das condições concretas em que a I greja m odernizante atua, a sua concepção da educação, dos objet ivos desta, com o de sua prát ica, tem de com por um todo coerente com as linhas gerais de sua polít ica. Daí que, ainda quando fale em educação para a liber tação, tal educação esteja condicionada por sua v isão da libertação como um quefazer individual que deve dar- se, sobretudo, no câm bio das consciências e não at ravés da práxis social e histór ica dos seres humanos. Sua ênfase, por isto m esm o, recai sobre os m étodos, tom ados com o inst rum entos neut ros. A educação libertadora se reduz, finalm ente, para a I greja m odernizante, a libertar os educandos do quadro- negro, das aulas m ais estát icas, dos conteúdos mais “ livrescos” , oferecendo - lhes projetores e out ras ajudas audiovisuais, aulas mais dinâm icas e ensino técnico- profissional.

Finalm ente, tão velha quanto o cr ist ianism o m esm o, sem ser t radicional, tão nova quanto ele, sem ser modernizante, vem afirmando- se, cada vez m ais, na Am érica Lat ina, ainda que não como um todo coerente, uma out ra linha de I greja – a profét ica. Com bat ida pelas I grejas t radicionais e pela m odernizante, tanto quanto, obviam ente, pelas elites do poder, a linha profét ica, utópica e esperançosa, recusando os paliat ivos assistencialistas, os reform ism os am aciadores, se com prom ete com as classes sociais dom inadas para a t ransform ação radical da sociedade.

Rejeitanto toda form a estát ica de pensar, a linha profét ica sabe m uito bem , em oposição às I grejas anter iorm ente analisadas que, para ser, tem de estar sendo. Precisam ente porque assum e um pensar crít ico, não se concebe neut ra nem tam pouco esconde sua opção. Por isto, tam bém , não dicotom iza m undanidade de t ranscendência nem salvação de libertação. Sabe, igualm ente, que não há um “eu sou” , um “eu sei” , um “eu me liberto” , um “eu me salvo” ; como não há um “eu te dou conhecimento” , um “eu te liberto” , um “eu te salvo” , mas, pelo cont rário, um “nós somos” , um “nós sabemos” , um “nós nos liberta- mos” , um ”nós nos salvamos” .

A linha profét ica, tal qual com eça a esboçar- se, não pode, por sua vez, ser compreendida a não ser como uma expressão da realidade concreta da América Lat ina, dramát ica e desafiadora. Na verdade, ela principia a emergir quando as sociedades lat ino- americanas, em t ransição, umas mais que out ras, passam a ter suas cont radições cada vez m ais desveladas. Este é o m om ento em que se clar if icam , tam bém , de um lado, a revolução com o o cam inho de libertação das classes sociais oprim idas; de out ro, o golpe m ilitar imperialistamente inspirado, como opção reacionária.

Os cr istãos que hoje, na Am érica Lat ina, part icipam desta linha, ainda quando, algum as vezes, divergentes ent re si, sobretudo do ponto de vista de com o atuar, são, de m odo geral, os que, renunciando à “ inocência” refer ida na prim eira parte deste t rabalho, aderiram às classes oprim idas e permanecem nesta adesão.

Foi preciso que eles, protestantes ou católicos, – e do ponto de v ista profét ico esta diferença não chega a ter signif icação – eclesiást icos ou leigos, se experim entassem

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duram ente na t ransição desafiadora para que com eçassem a t ransitar tam bém de sua visão idealista para uma visão dialét ica da realidade. Em tal processo, aprenderam, não apenas de sua práxis com o povo, mas também do exemplo de desprendimento e de coragem de boa parte da juventude.

Perceberam assim , claram ente, que a realidade, que é processo e não um fato dado, se m ove coiit raditor iam ente. Entenderam que os conflitos sociais não são.em si, com o se fossem categor ias m etafísicas, m as, pelo cont rár io, são a expressão histór ica das própr ias cont radi- ções em confrontação. Daí que toda tentat iva de solução dos conflitos que não tenha em vista a superação da cont radição que os gera, de um lado, apenas os abafa; d e out ro, serve às classes dom inantes.

Dem andando a posição profét ica um a análise crít ica das est ruturas sociais em que se dão os conflitos, exige conseqüêntem ente dos que a seguem o uso das ciências polít ico- sociais que, não sendo neut ras, im plicam na opção ideológica de quem as emprega.

Não signif icando tam bém a perspect iva profét ica, utópica e esperançosa, a at itude de quem, fora do mundo concreto, fala de um mundo de sonhos impossíveis, requer, naturalm ente, o conhecim ento cient íf ico do m undo concreto. É que, ser profét ico, utópico e esperan- çoso, segundo já afirm am os, é denunciar e anunciar, at ravés da práxis real. Daí o conhecim ento cient ifico da realidade com o condição necessária à eficiência profét ica.

Não podemos denunciar a realidade nem anunciar sua radical t ransform ação, de que resultará out ra realidade, na qual nascerão o novo homem e a nova mulher, se não nos dam os, at ravés da práxis, ao conhecim ento da realidade. Mas, por out ro lado, não podem os denunciar e anunciar sem as classes sociais dom inadas, isto é, não podem os prescrever- lhes nossa denúncia e nosso anúncio. A posição profét ica não é pequeno- burguesa. Por isto mesmo ela sabe muito bem que a autent icidade da denúncia e do anúncio, com o processo perm anente, só alcança seu ponto m áxim o quando as classes dom inadas, at ravés de sua práxis, se fazem tam bém profét icas, utópicas e esperançosas, por- tanto revolucionár ias.

A sociedade que se experimenta numa revolução permanente não pode prescindir da perm anência da v isão profét ica, utópica e esperançosa de seu povo, sem a qual se estagnará e já não será revolucionária.

Da mesma forma, nenhuma Igreja poderá ser realmente profét ica enquanto seja “ refúgio das m assas” ou agência de m odernização e de conservant ism o.

A I greja profét ica não “ refugia” as massas populares oprim idas, alienando- as mais ainda, com discursos falsamente denunciantes, porque simplesmente blá - blá- blantes. Convida- as, pelo cont rár io, a um novo Êxodo.

A I greja profét ica não é tam pouco a que, m odernizando- se, conserva, “ estabiliza - se” , adapt a- se. Cr isto não foi conservador. A I greja profét ica, tal qual Ele, tem de ser andarilha, viageira constante, morrendo sempre e sempre renascendo. Para ser, tem de estar sendo. Por isto m esm o é que não há profet ism o sem a assunção da existência com o a tensão dram át ica ent re passado e futuro, ent re ficar e part ir , ent re dizer a palavra e o silêncio cast rador, ent re ser e não ser, à qual nos refer im os antes. Não há profet ismo sem risco.

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No clima histórico, intensamente desafiador, da América Lat ina, em que se vem gestando, na práxis, esta at itude profét ica em m uitos cr istãos, se gesta igual e necessariam ente um a fecunda reflexão teológica. A teologia do cham ado desenvolvim ento cede lugar à teologia da libertação, profét ica, utópica, esperançosa, não importa que ainda não tão sistem at izada.

Sua tem át ica não pode ser out ra senão a que em erge das condições objet ivas das sociedades dependentes, exploradas, invadidas. A que em erge da necessidade da superação real das cont radições que explicam tal dependência. A que vem do desespero das classes sociais opr im idas. Enquanto profét ica, a teologia da libertação não pode ser a da conciliação ent re os inconciliáveis.

Em tais circunstâncias histór icas, ser ia inviável um a teologia que pretendesse debater a “ secular ização” , no fundo, uma forma moderna de “sacralização” ∗ que procurasse ent ret er- nos com a “m orte de Deus” , “que em m uchos puntos revela una tendencia acrít ica de pura adaptación del hombre ‘un dimensionalizado’ y despolit izado de ias sociedades opulentas” , com o enfat iza Hugo Assmann∗ ∗, em seu recente e excelente livro.

Por out ro lado, ainda que aparentem ente fugindo a nosso tem a específico, parece- nos que um a tal at itude profét ica em face do m undo, da Histór ia, não deve ser tom ada com o exclusiva, nem da Am érica Lat ina, nem tampouco das demais áreas chamadas de Terceiro Mundo Esta at itude profét ica não é exot ism o de “ subdesenvolvidos” . Prim eiro, porque a posição original cr istã é m esm o profét ica, qualquer que seja o espaço e o tem po em que os cr istãos se achem . O testem unho profét ico, por ser histór ico, é que se t raduz de form a dist inta, em tem pos e espaços dist intos. Segundo, porque o própr io conceito de Tercei- ro Mundo é ideológico e polít ico e não geográfico. O chamado Primeiro Mundo tem, dentro de si e em contradição consigo, o seu Terceiro Mundo, com o este tem , dent ro de si, o seu Prim eiro, representado na ideologia da dom inação e no poder das classes dom inantes.

O Terceiro Mundo, em últ ima análise, é o mundo do silêncio, da opressão, da dependência, da exploração, da violência exercida pelas classes dom inantes sobre as classes oprim idas.

Os europeus, de sociedades tecnologizadas, e os norte- americanos não têm necessidade de vir à Am érica Lat ina para tornar- se profét icos. Basta buscar a per ifer ia de suas grandes cidades, sem “ inocência” ou “esperteza” , e ai encont rarão suficiente est ímulo para repensar- se. Encont rarão, em face deles, um a das expressões part iculares de seu Terceiro Mundo. Assim , então, podem com preender a inquietação com que se t raduz a posição profét ica na Am érica Lat ina.

Por tudo isto, o papel educat ivo de um a I greja profét ica na Am érica Lat ina tem de ser totalm ente diferente do das I grejas antes analisadas.

Naturalm ente, num a linha profét ica, a educação se instaurar ia com o m étodo de ação t ransformadora. Como práxis polít ica a serviço da permanente libertação dos seres

∗ Não há sociedades mais “sacrais” do que as sociedades burguesas. Reagem asperamente à mais mínima tentativa de ruptura com seus padrões, considerados universais, eternos e perfeitos. Infelizmente não há neste ensaio lugar para uma análise detida deste curíter sacral das chamadas sociedades escularizadas. ∗ ∗ Opresión – Liberación, DesaJìo a los Cristianos, Tierra Nueva, Montevidéu, l97I.

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hum anos, que não se dá, repitam os, nas suas consciências apenas, m as na radical m odificação das est ruturas em cujo processo se t ransform am as consciências.

Do ponto de vista profét ic o, não im porta qual seja o cam po específico em que se dê a educação, ela é sem pre um esforço de clar if icação do concreto, ao qual educadores-educandos e educandos- educadores devem encont rar- se ligados at ravés de sua presença atuan- te. É sem pre prát ica desmit ificadora que, ao desvelar a realidade da consciência, ajuda o desvelam ento da consciência da realidade.

Ao concluir este t rabalho, podem os voltar à afirm ação óbvia com a qual o iniciam os: não é possível discut ir as I grejas, a educação, com o o papel daquelas com relação a esta, a não ser histor icam ente. E histor icam ente é que terem os de acom panhar as idas e vindas do m ovim ento profét ico na Am érica Lat ina.

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Prefácio à edição argentina de A BLACK THEOLOGY OF LIBERATION

de James Cone

Genebra – 1972

Há livros que, iniciada a sua leitura, nos desafiam e fascinam , a tal ponto que se nos torna difícil deixá- los antes de chegar, com seu autor, às suas últ im as palavras. A Black Theology of Liberat ion é um desses livros.

Recebi- o em Genebra, em 1970, quando recém- aparecia nos Estados Unidos, de um jovem amigo, aluno de Cone, em Nova York, e que havia part icipado regularmente do seminário que coordenei na Universidade de Harvard, em 1969. Cone não era, porém, para mim, um desconhecido. Havia lido o seu primeiro livro que, mesmo sem a força do segundo, j á o anunciava. Foi esta a sensaçâo que t ive ao term inar a leitura de A Black Theology and Black Power, em 1969, em Cambridge.

Este livro, disse entào eu a m im mesmo, promete algo mais vigoroso que deve estar vindo.

Dest a forma, recebi a A Black Theology of Liberat ion como quem recebe algo já esperado. A lucidez de Cone, a ser iedade de suas análises, seu com prom isso com os oprim idos, nada me surpreendia. Tudo era, pelo contrário, a confirmação do anúncio refer ido.

Recordo perfeitamente que o livro me chegou na véspera de uma viagem a Roma, onde deveria coordenar, por uma semana, um sem inário sobre educaçâo e libertação. À noite, em casa, depois do jantar, aceitei o convite que o livro m e fazia e com ecei a minha int imidade com ele. Atento, im pactado, página após página, cheguei à ante-manhã com o livro nas mãos, term inando sua primeira leitura, horas depois, no percurso Genebra- Roma. Voltando à Genebra, voltei ao livro também para a segunda leitura, após a qual escrevi a Cone, dizendo- lhe da impressão que seu livro me havia causado e da im portância de sua im ediata publicação na Am érica Lat ina. É que a “black theology” , de que Cone é um a das m elhores expressões nos Estados Unidos, se ident ifica, indiscut ivelm ente, com a “ teologia da liberta- ção” que hoje floresce na América Lat ina. O profet ismo de ambas não significa somente um falar em nome dos que se encont ram proibidos de fazê- lo, mas, sobretudo, em lutar lado a lado com eles para que, t ransformando revolucionariamente a soc iedade que os reduz ao silên- cio, possam dizer, efet ivamente, sua palavra. Dizer sua palavra, por isso mesmo, não é apenas dizer "bom- dia” ou seguir as prescrições dos que, com seu poder, comandam e explorarh. Dizer a palavra é fazer história e por ela ser feit o e refeit o. As classes dom inadas, silenciosas e esm agadas, só dizem sua palavra quando, tom ando a história em suas mãos, desmontam o sistema opressor que as dest rói. É na práxis revolucionária, com um a liderança vigilante e cr it ica, que as classes dominadas aprendem a “pronunciar” seu mundo, descobrindo, assim , as verdadeiras razões de seu silêncio anterior.

Dai o caráter em inentem ente polít ico da “black theology” nos Estados Unidos, com o da teologia da libertação na América Lat ina.

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O fato, porém , de que esta e aquela sejam e tendam a ser, cada vez m ais, teologias que privilegiam o polít ico, não significa serem elas distorções da “pureza” teológica, com o se pudesse exist ir um a teologia neut ra.

A “ teologia branca” , para usar um a expressão ao gosto de Cone, é t ão polít ica quanto a “black theology” ou a “ teologia da libertação” na Am érica Lat ina. A única diferença está em que a polít ica oculta, m as facilm ente percept ível, dessa “ teologia branca” , se or ienta no sent ido da defesa dos interesses das classes dom inantes. Esta é a razão por que, sim ulando neut ralidade, essa teologia se preocupa tanto com a conciliação dos inconciliáveis, nega tão insistentem ente a existência das classes sociais e sua luta e, em suas incursões pelo social, não vai mais além dos re formismo modernizantes, que são um a form a de preservar as est ruturas de dom inação.

Pensando desde o ponto de vista das classes dom inantes os teólogos da neut ralidade impossível usam uma linguagem mist ificadora. Empenham- se em amenizar a dureza da realidade opressora e conclamam as classes dom inadas, que invariavelmente cham am de “pobres” ou de “m enos afortunadas” , a encarar, com resignação, o seu sacrifício. A dor que sofrem , a discr im inação aviltante, a existência, com o m orte em vida, tudo isso deve ser assum ido pelas classes dom inadas – pelos “pobres” , em sua linguagem – como meio de purificação de seus pecados. No fundo, deveriam agradecer aos “ r icos” pela oportunidade que lhes dão de salvar- se. . .

Na verdade, porém , as classes doniinadas precisam , ao cont rário, t ransformar o sofrimento de não ser no sofrimento que a luta por ser lhes impõe. Enquanto o primeiro const itui uma forma de aniquilamento, o segundo se converte na esperança que as m ove. Só a esperança que nasce do hoje e no hoje desta luta confere sent ido ao futuro, não como vaguidade alienada ou como algo predeterm inado, mas ao futuro com o tarefa de const rução, com o “ façanha da liberdade” .

O que fazem aqueles teólogos é propor às classes oprim idas uma passividade maior ainda, na medida em que rompem a unidade ent re reconciliação e libertação. Para eles, reconciliação não é out ra coisa senão a adaptação dos dom inados aos apet ites das classes dom inantes. Tudo se passa com o se fosse possível reduzir a reconciliação a um pacto ent re as classes dom inantes e as classes dom inadas – “ r icos” e “pobres” . Pacto no qual estas últ im as, aceitando a cont inuidade da realidade opressora, recebessem , em cont rapart ida, um a eficiente e m odernizada assistência social.

Um a tal concepção elit ista da reconciliação não encont ra abrigo na teologia da libertação na Am érica Lat ina nem tam pouco na “black theology” de que Jam es Cone, repitam os, é um dos m ais agudos representantes. Em verdade, a reconciliação ent re opressores e oprim idos enquanto classes sociais, pressupõe a libert ação destes, que tem de ser forjada por eles mesmos, at ravés de sua práxis revolucionária.

É necessár io, contudo, que você, leitor ou leitora, inicie im ediatam ente sua “ convivência” com o pensam ento de Jam es Cone. Para concluir esta breve int rodução, acrescento apenas que seu pensamento, que emerge de uma realidade incrível, a “diabólica” realidade do racismo nos Estados Unidos, tem uma força singular. Suas reflexões teológicas sobre tal realidade, ele não as propõe com o se fosse um ser do outro mundo, uma espécie de est rangeiro curioso. James Cone é um homem compromet ido, “molhado” desta realidade que ele analisa com a autoridade de quem nela se experimenta.

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A Black Theology of Liberat ion é, por isso mesmo, um livro apaixonado, escrito apaixonadamente. Alguns t remerão de raiva frente a ele; out ros, de medo. Muitos, contudo, encont rarão nele um est imulo para sua luta. James Cone não pretende mais do que isto.

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Conscientização e libertação: uma conversa com Paulo Freire

Ent revista ao I nst ituto de Ação Cultural de Genebra – 1973.

I DAC: Apesar da crescente aceitação de suas idéias nos Estados Unidos, na Europa ocidental e m esm o em certos países afr icanos (sobretudo na Tanzânia) é precisam ente da Am érica Lat ina, que foi seu ponto de part ida teór ico e prát ico, que provêm as cr it icas m ais severas cont ra você. Essas cr it icas se baseiam em dois pontos: pr im eiro, você é acusado de ter perdido o contato com a realidade lat ino -americana; em segundo lugar, lhe acusam também de idealismo e reform ismo. O que você pensa de tudo isso?

FREI RE: I nicialm ente, gostar ia de enfat izar que, de m odo geral, levo a sério as crít icas que m e fazem , em face das quais não assum o a at itude de quem se sente atacado ou ofendido. Naturalm ente, ent re elas, há aquelas a que não posso dar at enção por sua fragilidade. Não vejo, por exemplo, como preocupar- me quando sou acusado de haver rompido meu compromisso com a América Lat ina por ter sido professor visitante na Universidade de Harvard... I nteressam- me, pelo cont rário, as cr ít icas de fundo, as que se dir igem ao conteúdo mesmo de meu pensamento pedagógico e polít ico e que m e apontam com o idealista, subjet ivista, reform ista. Estas são crít icas que se vêm fazendo sobretudo na Am érica Lat ina. Parece- me, contudo, que os que assim m e classificam , baseados em momentos ingênuos de alguns t rabalhos meus – crit icados hoje por m im também – deveriam obrigar- se a seguir os passos que venho dando. Na verdade, em meus primeiros estudos, ao lado de ingenuidades, há igualm ente posições crít icas. De resto, não alimento a ilusão ingênua e pouco hum ilde de at ingir a absoluta cr it icidade. Parece- me que se impõe aos que m e analisam procurar saber qual dos dois aspectos – o ingênuo ou o crít ico – estaria sendo enfat izado no desenvolvimento de m inha prát ica e de m inha ref lexão.

I DAC: Apesar disso, parece- nos que a acusação de idealism o repousa sobre um a base real, se levarm os em conta a experiência histór ica do m ovim ento de conscient ização de massas empreendido no Brasil nos anos 1962 a 1964. Nesse tempo, a polit ização ext remamente rápida de largas camadas populares, obt ida at ravés do programa de alfabet ízação, não foi suficiente para opor urna resistência válida ao golpe de estado m ilitar que dest ruiu as esperanças despertadas nos cam pone- ses e subproletár ios urbanos por essa tom ada de consciência. Se nós estam os de acordo que a tom ada de consciência de um a situação de opressão não basta para m udar essa realidade opressiva, ter ia sido necessário, na experiência brasileira, desenvolver, desde o começo, uma polít ica de organizaçào de m assas populares com um a est ratégia capaz de or ientar sua ação de t ransform ação social e polít ica.

FREIRE: Na medida em que, sobretudo nos meus primeiros t rabalhos teóricos, nenhum a ou quase nenhum a referência fiz ao caráter polít ico da educação e em que deixei de lado o problema das classes sociais e de sua luta, abri cam inho a numerosas interpretações e prát icas reacionár ias da conscient ização, o que vale dizer , a distorções do que ela realmente deve ser. Nem sempre, porém, as crit icas a m im feit as o são porque eu tenha sido pouco claro na análise e na fundam entação teór ica da conscient ização. Pelo cont rár io, m uitas destas cr ít icas revelam a posição objet iv ista m ecanicista, por isto m esm o ant idialét ica, de quem as faz. Enquanto m ecanicistas, negando a realidade mesma da consciência, recusam conseqiientemente a

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conscient ização. Deixo portanto claro que, ao buscar superar m inhas constantes debilidades, não tenho por que recusar o papel da conscient ização no processo revolucionário.

IDAC: É verdade que m uitas vezes essas crít icas foram inspiradas pelo que você cham a de posições m ecanicistas e objet iv istas. E, no entanto, Marx j á cham ava a atenção para o fato de que a situação revolucionár ia im plica não som ente fatores objet ivos (a existência de um a realidade de opressão im posta a classes ou grupos sociais que se tornam a “negação viva” desse sistema explorador) , mas também de fat ores subjet ivos (a consciência dessa realidade de opressão por parte dos oprim idos e sua disposição de agir para pôr fim a esse estado de coisas) .

FREIRE: Aqui nós tocamos em um dos problemas fundamentais que sempre preocupou a filosofia e, de modo especial, a filosofia moderna. Refiro - me à questâo das relações ent re sujeito e objeto; consciência e realidade; pensam ento e ser ; teoria e prát ica. Toda tentat iva de com preensáo de tais relações que se funde no dualism o suj eit o- objeto, negando assim a unidade dialét ica que há ent re eles, é incapaz de explicar, de form a consistente, aquelas relações. Rom pendo a unidade dia(ét ica suj eit o- objeto, a visão dualista im plica na negação ora da objet iv idade, subm etendo- a aos poderes de um a consciência que a cr iar ia a seu gosto, ora na negação da realidade da consciência, t ransform ada, desta form a, em m era cópia da objet ividade. Na primeira hi- pótese, caim os no erro subjet ivista ou psicologista, expressão de um idealismo ant idialét ico pré- hegeliano; na segunda, nos filiamos ao ob - jet ivismo m ecanicista, igualm ente ant idialét ico. Na verdade, nem a consciência é exclusiva réplica da realidade nem est a é a const rução ca- pr ichosa da consciência. Som ente pela com preensão da unidade dialét ica em que se encontram solidárias subjet ividade e objet iv idade podem os escapar ao erro subjet iv ista com o ao erro m ecanicista e, então, perceber o papel da consciência ou do “ corpo consciente” na t ransform ação da realidade.

Como explicar, por exemplo, em termos subjet ivistas, a posição dos seres humanos, com o indivíduos, geração ou classe social, em face de situações histór icas dadas, nas quais “ent ram ” , independentem ente de sua consciência ou de sua vontade? Com o explicar, por out ro lado, o mesmo problema de une ponto de vista mecanicista? Se a consciência cr iasse, arbit rar iam ente, a realidade, um a geração ou um a classe social poder ia, ao recusar a sit uação dada de que começa a part icipar, t ransformá- la por m eio de um m ero gesto significador. Se, por out ro lado, a consciência fosse puro reflexo da realidade, a situação dada seria eternamente a situação dada, “ sujeito” determ inante de si mesma, de que os seres humanos nada mais seriam do que dóceis objetos. Em out ras palavras, a situação dada se t ransformaria a si mesma. I sto implicaria em admit ir a história como uma ent idade mít ica, exterior e superior aos seres humanos, comandando- os, também caprichosamente, de fora e de c ima. Recordo agora o que disse Marx, na Sagrada Família:

“A história não faz nada, não possui nenhuma imensa riqueza, não liberta nenhuma classe de lutas: quem faz tudo isto, quem possui e luta é o homem mesmo, o homem real, vivo; não é a histór ia que ut iliza o homem como meio para t rabalhar seus fins – com o se se t ratasse de um a pessoa à parte – pois a histór ia não é senão a at iv idade do homem que persegue seus objet ivos” .

Em verdade, ao defrontar- nos com uma dada situação na qual, “ent ramos” independentemente de nossa consciência, t em os nela a condição concreta que nos desafia. A situação dada, com o situação problem át ica, im plica no que cham ei, em

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Pedagogia do Oprim ido, de “ inédito viável” , isto é, a futur idade a ser const ruída. A concret ização do “ inédit o viável” , que dem anda a superação da situação obstaculizante – condição concreta em que estam os inde- pendentem ente de nossa consciência – só se verifica, porém , at ravés da práxis. I sto significa, enfat izem os, que os seres humanos não sobrepas- sam a situação concreta, a condição na qual estão, por m eio de sua consciência apenas ou de suas intenções. por boas que sejam . A possibilidade que t ive de t ranscender os est ratos lim ites de uma cela de 1m70 de comprimento por 60 cent ímetros de largura, na qual me achava após o golpe m ilitar brasileiro de lº de abril de 1964, não era suficiente, contudo, para mudar m inha condição de encarcerado. Cont inuava dent ro da cela, sem liberdade, apesar de poder imaginar o mundo lá fora. Mas, por out ro lado, a práxis não é a ação cega, desprovida de intenção ou de finalidade. É ação e reflexão. Mulheres e hom ens são seres humanos porque se fizeram historicamente seres da práxis e, assim , se tornaram capazes de, t ransform ando o m undo, dar significado a ele. É que, com o seres da práxis e só enquanto tais, ao assum ir a situação concreta em que estam os, com o condição desafiante, som os capazes de m udar- lhe a significação por meio de nossa ação. Por isto mesmo é que é impossível a práxis verdadeira no vazio ant idialét ico ao qual leva toda dicotom ia sujeito- objeto. Esta é a razào pela qual o sub- jet ivismo e o objet ivism o m ecanicista são sem pre obstáculos ao verdadeiro processo revolucionário, não importam os cam inhos que, na prát ica, tornem eles. Neste sent ido, é tão pernicioso à práxis revolucionária o subjet iv ism o que, esgotando- se na m era denúncia verbal das injust iças sociais prega a t ransform ação das consciências, deixando porém intactas as est ruturas da sociedade, quanto o m ecanicism o que, voluntarista e desprezando a rigorosa e perma nente análise cient ífica da realidade objet iva, se faz igualmente subjet ivista ao “operar” sobre uma realidade inventada. É exatamente este objet ivismo mecanicista o que descobre “ idealismo” ou “ reform ismo” em toda referência ao papel da subjet iv idade no processo revolucionár io. No fundo, são todas estas expressões, ainda que diferentes, de um a m esm a fonte ideológica – a pequeno- burguesa.

O objet ivism o m ecanicista é um a distorção grosseira da posição m arxista quanto à questão fundam ental das relações sujeit o- objeto. Para Marx estas relações são cont raditór ias e dinâm icas. Sujeito e objeto não se encont ram dicotom izados nem tampouco const ituem uma ident idade mas uma unidade dialét ica. A mesma unidade dialét ica em que se encont ram teor ia e prát ica.

I DAC: Você acredita que a tom ada de consciência de um a situação de exploração possa se dar no que você cham a o “ contexto teór ico” com o os “Círculos de Cultura” da experiência brasileira, onde um grupo de camponeses analfabetos, ao mesmo tempo em que aprendiam a ler um código linguíst ico, descobriam a realidade sócio-histór ica, dando- se conta de que seu analfabet ism o era apenas um aspecto de todo um processo de dom inação econôm ico- social à qual eles estavam submet idos? Ou será que essa tom ada de consciência, esse aprender a ler e a escrever sua própría realidade, só é possível na e pela prát ica t ransformadora dessa realidade de opressão?

FREI RE: A resposta a esta questão requer algumas considerações prelim inares. Comecemos a discut ir, ainda que rapidamente, o que vem a ser o “ contexto t eór ico” . Partamos de que nem o subjet ivismo, de um lado, nem o objet ivismo mecanicista, de out ro, são capazes de explicar, de form a correta, este problem a que, no fundo, é o mesmo a que nos referimos anteriormente. E não podem porque, ao dicotomizarem o sujeito do objeto, dicotom izam , autom at icam ente, a prát ica da teor ia que, desta form a, deixam de se const ituir com o a unidade dialét ica de que falam os antes.

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Separada da prát ica, a teor ia é puro verbalism o inoperante; desvinculada da teor ia, a prát ica é at iv ism o cego. Por isto m esm o é que não há práxis autênt ica fora da unidade dialet ica ação- reflexão, prát icateoria. Da mesma forma, não há contexto teór ico “ verdadeiro a não sei em unidade dialét ica com o contexto concreto” . Neste contexto, onde os fatos se dão, nos encont ram os envolvidos pelo real, “m olhados” dele, m as não necessariam ente percebendo a razão de ser dos m esm os fatos, de form a cr ít ica. No “ contexto teór ico” , “ tom ando distância” do concreto, buscam os a razão de ser dos fatos. Em outras palavras, procuramos superar a mera opinião que deles tem os e que a tom ada de consciência dos m esm os nos proporciona, por um conhecim ento cabal, cada vez m ais cient íf ico em torno deles. No “ contexto concreto” somos sujeitos e objetos em relação dialé t ica com o objeto; no “ contexto teór ico” assum im os o papel de sujeito cognoscentes da relaçao sujeito- objeto que se dá no “ contexto concreto” para voltando a este, m elhor atuar com o sujeitos em relação ao objeto.

Estes momentos const ituem a unidade – e não a separação – da prát ica e da teor ia; da ação e da reflexão. Desde porém que estes mo - mentos não existem, em termos autênt icos, a não ser com o unidade e com o processo, qualquer deles que, em certo instante, seja o ponto de part ida, não apenas requer o out ro mas o contém. Por isto é que a reflexão só é legít ima quando nos remete sempre, como salienta Sart re, ao concreto, cujos fatos busca esclarecer, tornando assim possível nossa ação m ais eficiente sobre eles. I lum inando um a ação exercida ou exercendo- se, a reflexão verdadeira clar ifica, ao m esm o tem po, a futura ação na qual se testa e que, por sua vez, se deve dar a um a nova reflexão. Em face de todas estas considerações m e parece claro que os cam poneses analfabetos não necessitam de contexto teór ico – em nosso caso, do “Circulo de Cultura” – para realizar a tom ada de consciência de sua situação objet iva de opr im idos. Esta tom ada de consciência se dá no “ contexto concreto” . É at ravés de sua experiência quot idiana, com toda a dram at icidade em queda implica, que eles tornam consciência de sua condição de oprim iàos. Mas o que a sua tomada de consciência, feita na imersão em sua quot idianeidade, nem sempre lhes dá, é a razão de ser de sua própria condição de explorados. Esta é um a das cent rais t arefas que evem os realizar no contexto teór ico. Mas, por out ro lado, precisam ente porque a consciência nào se t ransform a a não ser na práxis, o contexto teór ico não pode ser reduzido a um cent ro de estudos “desinteressados” . Neste sent ido, o “Circulo de Cultura” deve encont rar cam inhos, que cada realidade local indicará, at ravés dos quais se alongue- em cent ro de ação polít ica. Se um a radical t ransform ação das est ruturas da sociedade, que explicam a situação objet iva em que se acham os cam poneses não se der, eles cont inuarão os mesmos, explorados da mesma forma, não importa se muitos deles tenham, inclusive, alcançado a razão de ser de sua própr ia realidade. É que o desvelam ento da realidade que não esteja orientado no sent ido de uma ação polít ica sobre a mesma, bem definida, clara, não tem sen- t ido. Som ente assim , na unidade da prát ica e da teor ia, da ação e da reflexão, é que podemos superar o caráter alienador da quot idianeida- de, com o expressão de nossa maneira espontânea de nos mover no mundo ou como resultado de uma ação que se mecaniza ou se burocrat iza. Em ambas expressões da quot idianeidade não alcançam os um saber cabal dos fatos de que apenas nos dam os conta. Daí a necessidade que temos, de um lado, de ir mais além da m era capotação da presença dos faustos buscando assim, não só a interdependência que há entre eles, m as tam bém o que há ent re as parcialidades const itut ivas da totalidade de cada um e, de outro lado, a necessidade de estabelecerm os um a vigiilância constante sobre nossa própria at iv idade pensante.

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Est e é, em últ ima análise, o movimento dialét ico, impossível de ser compreendido do ângulo do subjet ivism o com o do ponto de vista do objet ivism o m ecanicista, que se põe com o exigência fundam ental a quem pretende conhecer a realidade. Este movimento implica, de um lado, em que tal sujeito necessita de um inst rum ento teór ico para operar o conhecim ento da realidade e, de out ro, em que reconheça a necessidade de reformulá- lo em função dos achados a que chegue com sua aplicação. Com isto quero dizer que os resultados de seu ato de conhecer devem const ituir - se como normas de julgamento de seu próprio comportamento cognoscente.

I DAC: Parece- nos que você postula o engajam ento polít ico do cient ista com o um a condição m esm a da validade cient íf ica do seu saber. Tem- se a impressão de que, para você, um a ciência “apolit ica” não const itui senão um “ falso saber” .

FREI RE: De fato, todo invest igador digno desse nom e sabe m uito bem que a tão propalada neutralidade da ciência, de que resulta a não menos propalada imparcialidade do cient ista, com sua cr im inosa indiferença ao dest ino que se dê aos achados de sua at iv idade cient íf ica é um dos m itos necessár ios às classes dom inantes. Daí que, vigilante e crít ico, não confunda a preocupaçao com a verdade, que deve caracter izar t odo esforço cient ífico sério, com o m ito daquela neut ralidade. Por out ro lado, porém , ao buscar conhecer a realidade, o invest igador crít ico e v igilante não pode pretender “dom est icá- la” a seus objet ivos.

O que ele quer é a verdade da realidade e não a subm issão desta à sua verdade. Ao m ito da neut ralidade da ciência e da imparcialidade do cient ista não pode responder com a m ist ificação da verdade, mas com seu respeito a ela. Mesmo porque, no momento em que se deixe seduzir por esta falsificação da realidade já não será cr ít ico e a ação resultante de um tal “ conhecim ento” falso não terá êxito. Quanto m ais cr ít ico e engajado, m ais r igoroso com relação à verdade tem de ser o invest igador, o que não significa que sua análise alcance um perfil acabado ou definit ivo da realidade social, ent re out ras razões, pelo fato m esm o de que esta, para ser, tem de estar sendo.

Esta at itude v igilante caracter iza o invest igador cr ít ico, o que não se sat isfaz com as aparências enganosas. Ele sabe m uito bem que o conhecim ento não é algo dado e acabado, m as um processo social que dem anda a ação t ransform adora dos seres hum anos sobre o m undo. Por isto m esm o não pode aceitar que o ato de conhecer se esgote na simples narração da realidade nem tampouco, o que seria pior, na decretação de que o que está sendo deve ser o que deve ser. Pelo cont rár io, quer t ransform ar a realidade para que o que agora está acontecendo de certa m aneira passe a ocorrer de form a diferente.

I DAC: As m assas populares consideradas ao nível de seu “ contexto concreto” , sem possibilidade de acesso a um a visão crít ica desse contexto, não estar iam necessariam ente condenadas a um a opção reform ista?

FREIRE: Na medida em que não se perceba a unidade dialét ica subjet ividade-objet iv idade, não será possível entender algo tão óbvio – que a forma de ser das classes dom inadas não pode ser compreendida nelas mesmas, mas em sua relação dialét ica com as classes dom inantes. Deste m odo, alguns tornam a tendência das classes dom inadas às soluções reform ista; com o se fosse um a incapacidade natural das mesmas. Na verdade, porém, as classes dominadas se tornam reform istas em suas relações com as dom inantes, na situação concreta em que se acham .

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Mergulhadas na alienação de sua quot idianeidade, não alcançam espontaneam ente a consciência de si, com o “ classe para si” .

I DAC: Não se poderia dizer que essa é precisam ente a tarefa do part ido revolucionário?

FREIRE: Esta é, sem dúvida; uma das tarefas fundamentais do part ido revolucionário – a de em penhar- se na busca da organização consciente das classes opr im idas para que, superando o estado de “classe em si” , se assum am com o “classe para si” .

Um dos aspectos cent rais de um a tal tarefa está em que as relações ent re o part ido revolucionário e as classes oprim idas não são relações ent re um pólo portador de um a consciência histór ica e out ro, vazio de consciência ou portador de um a “ consciência vazia” . Se assim fosse, o papel do part ido revolucionário seria o.de “dar” consciência às classes dom inadas e “dar” consciência a elas ser ia encher sua consciência com a consciência de sua classe. De fato, porém , as classes sociais dom inadas nem são vazias de consciência nem sua consciência, por out ro lado, é um depósito vazio. Manipuladas pelas classes dom inantes, em suas relações com elas, por elas perfiladas, int rojetando seus m itos, as classes dom inadas refletem às vezes uma consciência que não lhes é própr ia. Daí sua tendência reform ista. At ravessadas pela ideologia das classes dom inantes, suas aspirações, em grande par- te, não correspondem a seu ser autênt ico. São im postas a elas por aquelas at ravés dos mais var iados m eios de m anipulação social. Tudo isto desafia o part ido revolucionário a encarnar o seu indiscut ível pa- pel pedagógico.

I DAC: É preciso, no entanto, estar alerta para o fato de que at r ibuir ao part ido revolucionário esse papel pedagógico com porta, im plicitam ente, um certo r isco de se cair na manipulação das massas.

FREI RE: É verdade que esse r isco existe. Mas, salientem os, a pedagogia de um part ido revolucionário não pode ser a m esm a dos part idos reacionários. Dai que seus m étodos de ação devam ser out ros tam bém . Os part idos reacionários, necessar iam ente têm de evitar , por todos os m eios, a const ituição da consciência de classe ent re os oprim idos. O part ido revolucionário, pelo cont rário, tem ai um de seus importantes quefazeres.

Finalm ente, parece- me necessário afirmar que, ao analisar o papel que pode ter o contexto teór ico no aprofundam ento cr it ico da tom ada de consciência que se ver if ica no contexto concreto, não quero dizer que o part ido revolucionár io deva criar, em qualquer situação histór ica, contextos teór icos, com o se fossem “escolas revolucionarias” para depois fazer a revolução. De fato, jamais fiz tal afirmação. O que tenho dito e agora repito é que o part ido revolucionár io que se recusa a aprender com as massas populares, rompendo assim a unidade dialét ica entre ensinar e aprender, j á não é revolucionário, m as elit ista. Esquece um a fundam ental advertência de Marx em sua Terceira Tese sobre Feuerbach: “O educador tam bém precisa ser educado” .

IDAC: Falemos um pouco, agora, dessa palavra que se acha indiscut ivelmente ligada a você – CONSCIENTIZAÇÃO – e que tem sido objeto de interpretações am bíguas ou distorcidas. Há aqueles que se perguntam se as próprias classes dom inantes não podem “conscient izar o povo” . Muitos consideram a conscient ização com o um a espécie de var inha m ágica, capaz de “ curar” a injust iça social pela sim ples t ransform ação da consciência dos hom ens. A nós parece essencial que, um a vez m ais,

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você esclareça essas m ist if icações e nos rest it ua o verdadeiro conteúdo da conscient ização.

FREI RE: Antes de tudo, quero deixar claro que é im possível conceber a conscient ização de form a correta, com o se ela fosse um m ero passatem po intelectual, ou a const ituição de um a racionalidade desgarrada do concreto. O esforço de conscient ização, que se ident if ica com a própr ia ação cultural para a libertaçào, é o processo pelo qual, na relação sujeito- objeto, vár ias vezes refer ida nesta ent revista, o sujeito se torna capaz de perceber, em term os crít icos, a unid ade dialét ica ent re ele e o objeto. Por isto m esm o, repitam os, não há conscient ização fora da práxis, fora da unidade teor ica- prát ica, reflexão- ação.

Por out ro lado, enquanto em penho desm it if icador, a conscient ização não pode ser levada a efeito pelas classes sociais dom inantes, que se acham proibidas de fazê- lo, pela sua própr ia condiçlo de classes dom inantes. A ação cultural que estas necessariam ente podem desenvolver é, pelo cont rár io, aquela que, m it ificando a realidade da consciência, m it if ica a consciência da realidade. Seria uma ingenuidade, como tenho afirmado sempre, esperar que as classes dom inantes ponham em prát ica ou sequer est imulem uma forma de ação que ajude as classes dominadas a assumir-se com o tais. I nsistam os em que este é um quefazer fundamental da liderança revolucionár ia, desde que não se deixe cair na tentação pequeno- burguesado objet iv ism o m ecanicista. É que, para os m ecanicistas, as classes dom inadas estão aí, como objetos, para ser libertadas por eles enquanto sujeitos da agido revo lucionária. O processo de libertação, para eles é algo m ecânico. Daí o seu voluntarism o. Dai a sua cofiança m ágica na ação m ilitar dicotom izada da açâo polít ica. Daí que lhes seja mais fácil realizar m il ações ar- r iscadas, m esm o sem significaçãó polít ica, do que conversar com um grupo de camponeses durante 10 m inutos...

Mas, por out ro lado, sublinhamos também, a conscient ização não pode fugir, aventureiramente, ao lim ites que a realidade histórica lhe impõe. I sto é, o esforço de conscient ização não é possív el no desrespeito ao "viável histór ico” .

Quero dizer que, nem sempre, a ação popular que pode decorrer do desvelamento de um a dada situação concreta, m as setor ial, encarna a expressão polít ica do “ viável histór ico” .

Em outras palavras, as massas populares podem perceber as razões mais imediatas que explicam um fato part icular, sem contudo captar, ao m esm o tem po, as relações ent re este fato part icular e a totalidade de que ele part icipa, na qual se encont ra o “ v iável histór ico” . Desta form a, adequada ao fato “B” , a ação “A” pode, contudo, do ponto de vista da totalidade, ser inadequada. Seria o caso, por exem plo, de um a ação que, polit icam ente válida do ponto de vista das condições de um a certa área local, não o seja, porém , quanto às exigências da totalidade do país.

I DAC: Essa observação referente à dif iculdade de captar a totalidade que contém o “ viável histór ico” e de organizar os diferentes elem entos que o const ituem nos parece fundam ental. De fato, para assegurar sua dom inação, as classes dom inantes têm necessidade de dividir os oprim idos, lançando- os uns cont ra os out ros. Assim , por exemplo, nos Estados Unidos, um mesmo sistema repressivo tem procurado lançar uma m inoria racial contra outra, ao mesmo tempo em que as reivindicações do movimento de libertação das m ulheres são apresentadas com o cont raditór ias aos interesses da classe operária branca, e assim por diante. Um out ro exemplo da tentat iva de divisão dos opr im idos se encont ra na Europa ocidental, onde os governos

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dos países capitalistas est im ulam muitas vezes a animosidade ent re os operários nacionais e os operários em igrados, fazendo- os crer que um é o adversário do outro, quando, evidentemente, eles são ambos vít imas de um mesmo sistema de exploração. Em que m edida,a seu ver, o processo de conscient ização pode cont r ibuir para a tom ada de um a autênt ica “consciência de classe” por parte dos oprim idos, que supere essas visões parciais e fragmentárias da realidade?

FREIRE: Começarei por dizer, uma vez mais, que pelo fato mesmo de não poder ser um quefazer atom izado, espontaneísta ou paternalista, o t rabalho de conscient ização exige de quem a ele se dedica um a clara percepção das relações ent re parcialidade e totalidade, tát ica e est ratégia, prát ica e teor ia. Um tal t rabalho dem anda ainda um a não m enos clara visão que a liderança revolucionária deve ter de si em suas relações com as m assas populares. Nestas relações, não deve a liderança cair, de um lado, no liberalism o e ausência de organização; de out ro, no autor itar ism o burocrát ico. Na primeira hipótese, não seria capaz de encam inhar o processo revolucionávrio que assim se esfacelar ia em ações dispersas; na segunda, afogando a capacidade de ação consciente das m assas, as t ransform aria em puros objetos de sua m ani- pulação. Em am bos os casos resultar ia impossível a conscient ização. Um a out ra dim ensão deste mesmo crucial problema – o das relações ent re a liderança revolucionár ia .e as massas populares – é o papel que deve ter aquela na superação, pelas m assas populares, do nível de “ consciência das necessid ade de classe” , em que espontaneam ente se podem encont rar , pelo de “ consciência de classe” . O hiato dialét ico ent re estes níveis const itui indiscut ivelm ente um sér io desafio à liderança revolucionária. Tal hiato dialét ico é o “espaço” ideológico em que se encont ram as classes dom inadas, em sua experiência hist6rica, ent re o momento no qual, enquanto “classe em si” , não atuam de acordo com o seu ser e aquele em que, assumindo- se com o “classe para si” , percebem a tarefa histór ica que lhes é própria. Som ente assim suas necessidades se definem com o interesses de classe.

Temos aí um problema indiscut ível: de um lado, a consciência de classe não se gera espontaneamente, fora da práxis revolucionária; de out ro, esta práxis implica numa clara consciência do papel histór ico da classe dom inada. Marx sublinha, na Sagrada Fam ília, a ação consciente do proletar iado na abolição de si m esm o enquanto classe, pela abolição das condições objet ivas que o const ituem .

De fato, a consciência de classe dem anda um a prát ica de classe que, por sua vez, gera um conhecim ento a serviço dos interesses de classe. Enquanto a classe dom inante, com o tal, const itui e for talece a consciência de si no exercício do poder econôm ico, polít ico e sócio- cultural, com o qual se sobrepõe à classe dom inada e lhe im põe suas posições, esta só pode alcançar a consciência de si at ravés da práxis revolucionária. Por m eio desta, a classe dom inada se torna “classe para si” e, atuando então de acordo com o seu ser , não apenas com eça a conhecer, de form a diferente, o que antes conhecia, m as tam bém a conhecer o que antes não conhecia. Neste sent ido é que, não sendo a consciência de classe um puro estado psicológico nem a m era sensibili- dade que têm as dasses para detect 'ar o que se opõe a suas necessidades e interesses, implica sempre num conhecimento de classe. Conhecimento, porém, não se t ransfere, se cr ia, at ravés da ação sobre a realidade. A superação do refer ido hiato dialét ico, exigindo uma pedagogia revo- lucionária, exige também que as relações ent re part ido revolucionário e classe dom inada se verifiquem de tal forma que o part ido, no seu papel de consciência cr it ica das m assas populares, não lhes coloque obstáculos ao processo de sua cr it icização.

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IDAC: Nós poderíamos concluir essa conversa abordando novamente o problema cent ral da organização do part ido revolucionár io e da relação ent re a vanguarda e as m assas.

Quais são, a seu ver , os elem entos essenciais de um processo de educação polít ica num a perspect iva autent icam ente liberadora?

FREIRE: Creio que, um dos mais sérios problemas que pode enfrentar um part ido revolucionário na capacitação de seus quadros de m ilitantes está em com o superar a distância ent re a opção revolucionária verbalizada pelos m ilitantes e sua prát ica nem sempre realmente revolucionária. A ideologia pequeno- burguesa que os “at ravessou” , em sua condição de classe, inter fere no que dever ia ser a sua prát ica revolucionár ia, que se torna assim cont raditór ia de sua expressão verbal. Neste sent ido é que seus erros m etodológicos são, no fundo, de procedência ideológica. Na medida, por exemplo, em que “guardam” em si o m ito da “ incapacidade natural” das massas populares, sua tendência é descrer delas, é recusar o diálogo com elas e sent ir - se com o seus exclusivos educadores. Desta form a, não fazem out ra coisa senão cair na dicotom ia, t ípica de um a sociedade de classes, ent re ensinar e aprender, em que a classe dom inante “ensina” e a classe dom inada “aprende” . Rejeitam , conseqüêntem ente, aprender com o povo e se tornam prescr it ivos, depositantes do que lhes parece ser o seu saber revolucionár io. Daí a nossa convicção de que o esforço de clar if icação em torno do que é o processo de ideologização se deva const ituir com o um dos pontos int rodutórios a todo sem inário de capitação de m ilitantes, simultaneament e com o exercício da análise dialét ica da realidade. Deste modo, o sem inário se converte numa oportunidade na qual, ao serem os seus part icipantes desafiados a superar sua visão ingênua e focalista da realidade por out ra, crít ica e totalizante, vâo igualme nte clar if icando- se ideologicam ente. Vão percebendo que o diálogo com o povo, na ação cultural para a libertação, não é um a form alidade, m as um a condição indispensável ao ato de conhecer, se nossa opção é realmente revolucionária. Vão percebendo que é inviável a dicotom ia ent re a intenção do m ilitante, que é polít ica, e os m étodos, técnicas, processos pelos quais se põe em prát ica aquela intenção. A opção polít ica do m ilitante determ ina os cam inhos de sua expressão. Há de haver diferenças radicais ent re um militante de esquerda e um m ilitante de direita no uso que façam de um mesmo projetor de slides. Muitos dos obstáculos a um a correta ação polít ico- revolucionár ia se encont ram na cont radição ent re a opção revolucionária e o em prego de procedim entos que correspondem à prát ica da denom inação.

Se m inha opção é revolucionária é impossível considerar o povo como objeto de meu ato libertador. Mas, no m om ento em que m e recuso, coerentem ente, a ter no povo a mera incidência de m inha ação revolucionária, não posso fazer dele, igualmente, o recipiente de m eu “saber revolucionário” .

Se m inha opção é teacionária, pelo cont rár io, tenho de fazer do povo um puro inst rum ento de m inha ação preservadora do “status quo” , que eu adm ito apenas reform ar. E se am bas estas opções se concret izam sem pre histor icam ente, historicamente também se diferenciam. I sto quer dizer que, se os meios de dom inação e de libertação variam historicamente, não há, porém, possibilidade histórica em que se ident ifiquem.

A ação polít ico- revolucionária nào pode repet ir a ação polít ico- dominadora. Antagônicas nos seus objet ivos, se antagonizam nos seus m étodos, com o no uso que fazem das ajudas de que se servem.

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Algumas notas sobre conscientização 1

1974

O próprio t ítulo que o Departam ento de Educação do Con selho Mundial de I grejas deu a este sem inário: “An invitat ion to conscient izat ion and deschooling – a cont inuing conversat ion” , o define como um encont ro informal e simples. Na verdade, aqui estamos para retomar um diálogo há muito tempo começado. Com alguns, diretam ente; com out ros, indiretam ente. Em qualquer, dos casos, at ravés da m ediação de nossos escritos. Mas, na m edida m esm a em que este é um encont ro dialógico, a sim plicidade e a espontaneidade que o devem caracter izar não podem conver ter- se, a prime ira, em simplismo, a segunda, em espontaneismo. Dialogar não é um perguntar a esmo – um perguntar por perguntar, um responder por responder, um cont ent ar- se por tocar a perifer ia, apenas, do objeto de nossa curiosidade, ou um quefazer sem programa.

A relação dialógica é o selo do ato cognoscit ivo, em que o objeto cognoscível, m er liat izando os sujeitos cognoscentes, se ent rega a seu desvelam ento cr ít ico.

A importância de uma tal compreensão da relação dialógica se faz clara na medida em que tornam os o ciclo gnosiológico como uma totalidade, sem dicotom izar nele a fase da aquisição do conhecim ento existente da fase da descoberta, da cr iação do novo conhecim ento. Esta “corresponde, alíás, com o salienta o prof. Álvaro Vieira Pinto, à m ais elevada das funções do pensam ento – a at iv idade heuríst ica da consciência” .∗

Em am bas estas fases do ciclo gnosiológico se im põe um a postura crít ica, cur iosa, aos sujeit os cognoscentes, .em face do objeto de seu conhecim ento. Postura cr ít ica que é negada toda vez que, rom pendo- se a relação dialógica, se.instaura um processo de pura t ransferência de conhecim ento, em que conhecer deixa de ser um ato cr iador e recr iador para ser um ato “digest ivo” .

“An invitat ion to conscient izat ion and deschooling” – palavras que, independentem ente do desejo de I van I llich e meu, se converteram em palavras m ágicas ou quase m ágicas – nos reúne hoje precisamente para que, tomando- as com o objetos de nossa cur iosidade crít ica, analisem os, tanto quanto possível, a sua real significação.

Neste esforço analít ico para o qual som os todos cham ados, há, porém , tarefas específ icas que, const it uindo- se como ponto de part ida de nossa reflexào comum, devem ser cumpridas por alguns de nós. Por I van I llich, por Henrich Dauber, por Michael Huberman, por mim.

A mim me cabe, nesta jornada em que o tempo disponivél não corresponde à extensão da tarefa que nos im pom os, iniciar este processo. E, para fazê- la, devo tomar distância do objeto de m inha reflexão – o processo de conscient ização – e começar a indagar- me em torno dele. Parece- m e que a pr im eira preocupação neste perguntar- me que é, em parte, um reperguntar- m e, se deve cent rar na palavra m esm a conscient ização, cuja or igem é consciência. A com preensão do processo de

1 Este texto foi publicado por RISK, W: C. C., Genebra, 1975. ∗ Vieira Pinto, Álvaro, Ciência e Existencia, Ed. Paz e Terra, Rio, 1977, 2ª ed., pág. 363.

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conscient ização e sua prát ica se encont ra, por tanto, em ligação direta com a com preensão que se tenha da vencia em suas relações com o m undo.∗

Se m e ponho num a posição idealista dicotom izando consciência e realidade, subm eto esta àquela, com o se a realidade fosse const ituída pela consciência. Assim , a t ransform ação da realidade se dá pela t ransform ação da consciência. Se m e ponho num a posição m ecanicista, dicotom izando igualm ente consciência e realidade, tom o a consciência com o um espelho que apenas reflete a realidade. Em am bos os casos, nego a conscient ização que só existe quando não apenas reconheço m as experim ento a dialet icidade ent re objet iv idade e subjet iv idade, realidade e consciência, prát ica e teor ia.

Toda consciência é sem pre consciência de algo, a que se intenciona.

A consciência de si dos seres hum anos im plica na consciência das coisas, da realidade concreta em que se acham com o seres histór icos e que eles aprendem at ravés de sua habilidade cognoscit iva.

O conhecim ento da.realidade é indispensável ao desenvolvim ento da consciência de si e este ao aum ento daguele conhecim ento. Mas o ato de conhecer que, se autênt ico, dem anda sem pre o desvelam ento de seu objeto, não se dá na dicotom ia antes refer ida, ent re objet iv idade e subjet iv idade, ação e reflexão, prát ica e teor ia.

Daí se faça im portante, na prát ica do desvelam ento da realidade social, no processo conscient izador, que a realidade seja apreendida não com o algo que é, mas como devenir , como algo que está sendo. Mas se está sendo, no j ogo da perm anência e da m udança, e se não é ela o agente de tal j ogo, é que este resulta da prát ica de seres humanos sobre ela.

Impõe- se, então, discernir a razào de ser desta prát ica – as finalidades, os objet ivos, os m étodos, os interesses dos que a com andam ; a quem serve, a quem desserve, com o que se percebe, afinal, que esta é apenas um a cer t a prát ica, m as não a prát ica, tom ada com o dest ino dado. Desta m aneira, na prát ica teór ica, desveladora da realidade social, a apreensão desta im plica na sua com preensão com o realidade sofrendo sem pre um a certa prát ica dos seres humanos. Sua t ransformação, qualquer que seja ela, não pode ver if icar- se a não ser pela prát ica também.

Agora bem , se não há conscient ização sem desvelam ento da realidade objet iva, enquanto objeto de conhecim ento dos sujeitos envolvidos em seu processo, tal desvelamento, mesmo que dele decorra uma nova percepção da realidade desnudando- se, não.basta ainda para autent icar a conscient ização. Assim com o o ciclo gnosiológico não term ina na etapa da aquisição do conhecim ento existente, pois que se prolonga até a fase da cr iação do novo conhecim ento, a conscipnt ização não pode parar na etapa do desvelam ento da realidade. A sua autent icidade se dá quando a prát ica do desvelamento da realidade const itui uma unidade dinâm ica e dialét ica com a prát ica a t ransforção

Creio que algum as observações podem e devem ser feitas a part ir destas reflexões. Uma delas é a crít ica que a m im mesmo me faço pelo fato de, em Educação com o Prát ica da Liberdade, ao considerar o processo de conscient ização, ter tom ado o momento do desvelamento da realidade social com ove fosse um a espécie de

∗ Ver a este propósito, neste volume , “Conscientização e Libertação, uma conversa com Paulo Freire”.

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m ot ivador psicológico de sua t ransform ação. O m eu equívoco não estava, obviamente, em reconhecer a fundamental importância do conhecimento da realidade no processo de sua t ransform ação. O m eu equívoco consist iu em não ter tom ado estes pólos – conhecim ento da realidade e t ransform ação da realidade – em sua dialet icidade. Era com o se desvelar a realidade já significasse a sua t ransform ação. Diga- se de passagem que, em Pedagogia do Oprim ido e em Cultural Act io n for Freedom j á não é esta a posição que tom o em face do problem a da conscient ização. A práxis que medeia estes dois livros daquele me ensinou a ver o que antes não me havia sido possível ver. Mas é sobretudo em textos mais novos – ent revistas ou pequenos ensaios como Educat ion, Liberat ion and the Church –, que resultam de m inha experiência mais recente, que a abordagem deste problema toma uma feição dist inta da que se encont ra em Educação com o Prát ica da Liberdade.

O mesmo equívoco em que caí, no começo de m inhas at ividades, venho surpreendendo, na m inha experiência atual, às vezes mais acentuado, em pedagogos que não vêem as dim ensões e im plicações polít icas de sua prát ica pedagógica. Daí que falem em um a “conscient ização est r itam ente pedagógica” , diferente daquela a ser desenvolvida por polít icos. Um a conscient ização que se daria na int im idade de seus seminários, mais ou menos assépt ica, que não teria nada que ver com nenhum comprom isso de ordem polít ica.

Um a tal separação ent re educação e polít ica, ingênua ou astutam ente feita, enfat izem os, não apenas é irreal, m as perigosa. Pensar a educação independentem ente do poder que a const itui, desgarrá- la da realidade concreta em que se for ja, nos leva a um a das seguintes conseqüências. De um lado, reduzi- la a um m undo de valores e ideais abst ratos, que o pedagogo const rói no inter ior de sua consciência, sem sequer perceber os condicionam entos que o fazem pensar assim ; de out ro, conver t ê- la num repertório de ténicas comportamentais. Ou ainda, tomar a educação como alavanca da t ransform ação da realidade.

Na verdade, porém , não é a educação que form a a sociedade de um a certa m aneira, m as a sociedade que, form ando- se de um a certa m aneira, const itui a educação de acordo com os valores que a. norteiam . Mas, com o este não é um processo m ecânico, a sociedade que est rutura a educação em função dos interesses de quem tem o poder, passa a ter nela um fator fundam ental paia sua preservação.

A concepção da educação com o alavanca da t ransform ação da realidade resulta, em par te, da apreensão incom pleta do ciclo acim a refer ido. Funda- se no segundo m om ento do ciclo, o em que a educação funciona com o inst rum ento de preservação. É com o se os defensores de tal concepção dissessem : “Se a educação m antém é porque pode t ransform ar o que mantém ” . Esquecem- se de que o poder que a cr ia para que ela o mantenha não a perm ite t rabalhar cont ra ele. Por isto é que a t ransform ação radical e profunda da educação, com o sistem a, só se dá – e mesmo assim não de forma automát ica e mecânica – quando a sociedade é t ransform ada radicalmente também.

I sto não significa, porém , que o educador que deseja, e m ais do que deseja, se com prom ete com a t ransform ação radical ou revolucionária de sua sociedade, não tenha o que fazer. Tem muito o que fazer, sem que haja fórmulas prescrit ivas para seu quefazer, pois que deve descobr i- lo e descobrir com o fazê- lo nas condíções concretas histór icas em que se acha.

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É preciso, porém , que reconheça, lucidam ente, suas lim itações e, aceitando- as com humildade, evite cair, de um lado, num pessim ismo aniquilante, de outro, num oportunismo cínico.

O fato, por exem plo, de que determ inadas circunstâncias histór icas em que se encont ra o educador não lhe perm itam part icipar, mais at ivamente, deste ou daquele aspect o const it ut ivo do processo de t ransform ação revolucionária de sua sociedade, não invalida um esforço m enor, em que esteja engajado, desde que este seja o esforço que, lhe é histor icam ente viável.

Em histór ia se faz o que histor icam ente é possível e não o que se gostar ia de fazer.

Daí a necessidade da com preensão cada vez m ais lúcida de sua tarefa, que é polít ica, das lim itações que tem , para que possa enfrentar, tanto quanto possível, exitosam ente, aquela oscilação refer ida, ent re a tentação do pessim ism o e a do oportunismo.

Est e é sempre um momento existencial difícil. Muitas vezes, é exatamente quando o exper im enta que o educador ouve falar da conscient ização. Por m ot ivos diversos, ent re eles a própria falta de clareza com relação à sua tarefa, aproxim a- se da conscient ização como quem cont inua ouvindo falar dela e não como quem se apropr ia de sua signif icação exata. Desta form a, m agiciza o processo de conscient ização, em prestando- lhe poderes que realmente não tem.

Cedo ou tarde, porém , o feit iço se desfaz, desfazendo tam bém a esp erança ingênua que o alim entou. Alguns, ent re esses educadores, frust rados com os resultados de sua prória magia, em lugar de negá- la, negam o papel mesmo da subjet ividade na t ransformação da realidade, passando assim a engrossar as fileiras dos mecanicist as.

No fundo, contudo, a experiência m e vem ensinando quão difícil é fazer a t ravessia pelo domínio da subjet ividade e da objet ividade, em últ ima análise, estar no mundo e com o mundo, sem cair na tentação de absolut izar uma ou out ra. Quão difícil é, realmente, apreendê- las em sua elast icidade.

Por tudo isto é que um dos focos – talvez o preponderante – de m inha atenção, nestes quatro anos em que, t rabalhando para o Conselho Mundial de I grejas me tornei uma espécie de “andarilho do óbvio” , venha sendo o da desm it if icação da conscient ização.

Nesta andarilhagem, venho aprendendo também quão importante se faz tomar o óbvio com o objeto de nossa reflexão crít ica e, adent rando- nos nele, descobrir que ele não é, às vezes, tão óbvio quanto parece.

Dai a ênfase que dou – e com que não raro percebo que frust ro a certos auditór ios – não propriamente à análise de métodos e técnicas saem si mesmos, mas ao caráter polít ico da educação, de que decorre a im possibilidade de sua neut ralidade.

Se me convenço de uma tal impossib ilidade, não apenas por ouvir falar dela, mas por const at á- la na m inha própria experiência, percebo então a relação ent re métodos e finalidades, no fundo, a m esm a que há ent re tát ica e est ratégia. Desta form a, em lugar de ingenuamente absolut izar os métodos, os entendo a serviço de . f inalidades, na busca de cuja realização eles se fazem e se refazem .

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Talvez seja esta m it if icação de m étodos e de técnicas – estou apenas pensando alto – e a redução da conscient izaçào a cer tos m étodos e técnicas usados na Am ér ica Lat ina, no campo da alfabet ização de adultos, que expliquem, em parte pelo menos, afirm ações que sem pre escuto. Afirm ações segundo as quais a conscient ização aparece com o um a espécie de exot ism o t ropical, com o algo que fosse especificam ente terceiro - mundista.

Fala- se assim da conscient ização com o um quefazer inviável em “sociedades complexas” , como se o Terceiro Mundo não fosse, também ele, embora a seu modo, complexo.

Sem querer voltar aqui a análises feitas em t rabalhos anteriores sobre a presença de um Terceiro Mundo no corpo do Primeiro e a de um Primeiro na int im idade do Terceiro, gostar ia sim plesm ente de sublinhar que o processo de conscient ização não é privilégio do Terceiro Mundo, pois que é fenômeno humano.

Enquanto corpos conscientes, em relação dialét ica com a realidade objet iva sobre que atuam, os seres humanos estão envolvidos em um permanente processo de conscient ização. O que var ia, no tem po e no espaço, são os conteúdos, os m étodos, os objet ivos a conscient ização. Sua fonte or iginal se encontra no momento remoto que Chardin chama de “Hominização” , a part ir do qual os seres humanos se fazem capazes de desvelar a realidade sobre que atuam , de conhecê- la e de saber que conhecem.

O problema que se põe, portanto, não é o da viabilidade ou não da conscient ização em sociedades ditas com plexas, m as o da indesejabilidade, o da recusa à t ransplantação do que se fez, de form a diferente, em diferentes áreas da Am érica Lat ina, para out ro espaço histór ico, sem o devido respeito por ele. Não im porta que esse out ro espaço histórico seja do Terceiro Mundo também. E como um homem do Terceiro Mundo, eu bem sei o que representa o poder ideologicamente alienador dos t ransplantes a serviço da dom inação. Não ser ia eu, que cont ra eles sem pre est ive, que hoje os defenderia.

Mas, além da indesejabilidade dos t ransplantes, há out ra indesejabilidade, a da burocrat izaç5o da conscient ização. Sua inst itucionalização que, esvaziando - a de seu dinamismo, esclerosando- a, termina por t ransformá - la num a espécie de arco- íris de receitas – out ra form a de m it if icá- la.

Term ino aqui esta retomada, que sei demasiado incompleta, de tema a que, bem ou m al, m e dedico há bastante tem po. Mas, m esm o incom pleta, creio que seja suficiente para cumprir o seu principal fim : provocar comentários e suscitar questões com que se ampliará.

Ao fazê- lo, direi apenas que o aprendizado que venho tendo nesta Casa e a part ir dela, em nada dim inuiu as convicções básicas com as quais iniciei, bem jovem ainda, as primeiras experiências em meu país. Convicções de um cristâo em permanente estado de busca. Pelo cont rár io, este aprendizado as reforçou. E as reforçou sobretudo quando me ajudou a superar a visão mais ingênua pela visão mais crít ica de certos problemas, em face do desafio que novas realidades humanas me provocaram.