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TIRAS, GÊNERO E HIPERGÊNERO: COMO OS TRÊS CONCEITOS SE PROCESSAM NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS? Paulo Ramos (Universidade Federal de São Paulo) [email protected] Introdução O “Dicionário de gêneros textuais”, de Sérgio Roberto Costa, define história em quadrinhos (ou HQs) como um gênero com três características essenciais: 1) integração entre palavras e imagens; 2) presença do tipo narrativo na maioria dos textos; 3) papel como suporte mais recorrente. A mesma obra traz o verbete tira, entendida deste fora: segmento ou fragmento de HQs, geralmente com três ou quatro quadros, apresenta um texto sincrético que alia o verbal e o visual no mesmo enunciado e sob a mesma enunciação. Circula em jornais ou revistas, numa só faixa horizontal de mais ou menos 14 cm x 4 cm, em geral na seção “Quadrinhos” do caderno de diversões, amenidades ou também conhecido como recreativo, onde se podem encontrar Cruzadas, Horóscopo, HQs, etc. (op. cit., p. 191-192). As definições dos dois verbetes ajudam a ilustrar uma questão aparentemente contraditória sobre a relação entre os dois termos. Se história em quadrinhos é um gênero – e o dicionário atesta que é –, como a tira pode ser um gênero das histórias em quadrinhos? Ou, na explicação dada pela obra, “um segmento ou fragmento de HQs”? Seguida essa linha de raciocínio, sugere-se que exista uma espécie de hierarquia genérica, em que um estaria num patamar acima do outro. Mas como isso seria possível se ambos são gêneros? Esse uso é corrente em muitas das menções sobre os dois termos, embora com poucas explicações a respeito das questões colocadas por nós. Este artigo procura trazer uma possível resposta, ancorada na articulação entre os conceitos de gênero e de hipergênero propostos por Maingueneau (2004, 2005, 2006, 2010) e na forma como trabalhados por Ramos (2010a, 2011) no escopo das histórias em quadrinhos. Para Ramos, os quadrinhos compõem um campo maior, denominado hipergênero, que agrega elementos comuns aos diferentes gêneros quadrinísticos, como o uso de uma linguagem própria, com elementos visuais e verbais escritos, e a tendência à presença de sequências textuais narrativas, leitura semelhante à feita por Costa. Tais características seriam percebidas em uma gama de gêneros autônomos, unidos por esses elementos coincidentes. Nesta exposição, a premissa será aplicada às tiras. Estas apresentam gêneros distintos, como a tira cômica, a tira seriada, a tira cômica seriada e a tira livre, porém com características compartilhadas e agregadas pelo hipergênero quadrinhos. O recorte de análise serão trabalhos extraídos de autores brasileiros e estrangeiros. Espera-se, com a exposição, contribuir no sentido de permitir um maior aprofundamento do tema, bem como fornecer um arcabouço teórico que possibilite uma melhor compreensão do que sejam os conceitos de tira, quadrinhos e hipergênero quando aplicados no processamento textual das histórias em quadrinhos. Conceito de gênero

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TIRAS, GÊNERO E HIPERGÊNERO: COMO OS TRÊS CONCEITOS SE PROCESSAM

NAS HISTÓRIAS EM QUADRINHOS?

Paulo Ramos (Universidade Federal de São Paulo) [email protected]

Introdução

O “Dicionário de gêneros textuais”, de Sérgio Roberto Costa, define história em quadrinhos (ou HQs) como um gênero com três características essenciais: 1) integração entre palavras e imagens; 2) presença do tipo narrativo na maioria dos textos; 3) papel como suporte mais recorrente. A mesma obra traz o verbete tira, entendida deste fora:

segmento ou fragmento de HQs, geralmente com três ou quatro quadros, apresenta um texto sincrético que alia o verbal e o visual no mesmo enunciado e sob a mesma enunciação. Circula em jornais ou revistas, numa só faixa horizontal de mais ou menos 14 cm x 4 cm, em geral na seção “Quadrinhos” do caderno de diversões, amenidades ou também conhecido como recreativo, onde se podem encontrar Cruzadas, Horóscopo, HQs, etc. (op. cit., p. 191-192).

As definições dos dois verbetes ajudam a ilustrar uma questão aparentemente contraditória sobre a relação entre os dois termos. Se história em quadrinhos é um gênero – e o dicionário atesta que é –, como a tira pode ser um gênero das histórias em quadrinhos? Ou, na explicação dada pela obra, “um segmento ou fragmento de HQs”? Seguida essa linha de raciocínio, sugere-se que exista uma espécie de hierarquia genérica, em que um estaria num patamar acima do outro. Mas como isso seria possível se ambos são gêneros? Esse uso é corrente em muitas das menções sobre os dois termos, embora com poucas explicações a respeito das questões colocadas por nós. Este artigo procura trazer uma possível resposta, ancorada na articulação entre os conceitos de gênero e de hipergênero propostos por Maingueneau (2004, 2005, 2006, 2010) e na forma como trabalhados por Ramos (2010a, 2011) no escopo das histórias em quadrinhos. Para Ramos, os quadrinhos compõem um campo maior, denominado hipergênero, que agrega elementos comuns aos diferentes gêneros quadrinísticos, como o uso de uma linguagem própria, com elementos visuais e verbais escritos, e a tendência à presença de sequências textuais narrativas, leitura semelhante à feita por Costa. Tais características seriam percebidas em uma gama de gêneros autônomos, unidos por esses elementos coincidentes. Nesta exposição, a premissa será aplicada às tiras. Estas apresentam gêneros distintos, como a tira cômica, a tira seriada, a tira cômica seriada e a tira livre, porém com características compartilhadas e agregadas pelo hipergênero quadrinhos. O recorte de análise serão trabalhos extraídos de autores brasileiros e estrangeiros. Espera-se, com a exposição, contribuir no sentido de permitir um maior aprofundamento do tema, bem como fornecer um arcabouço teórico que possibilite uma melhor compreensão do que sejam os conceitos de tira, quadrinhos e hipergênero quando aplicados no processamento textual das histórias em quadrinhos.

Conceito de gênero

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Embora existam diferentes perspectivas sobre o estudo dos gêneros, parece

haver consenso de que o texto-fonte seja o de Bakhtin (2000). No entender do autor russo, a língua é vista como uma atividade essencialmente dialógica, na qual os sujeitos da interação atuam como seres socio-historicamente situados, em que os diferentes processos de comunicação ocorrem com o auxílio de gêneros do discurso, definidos por ele como “tipos relativamente estáveis de enunciados” (op. cit., 2000, p. 279).

Nas palavras de Faraco (2004), ao “dizer que os tipos são relativamente estáveis, Bakhtin está dando relevo, de um lado, à historicidade dos gêneros; e, de outro, à necessária imprecisão de suas características e fronteiras”. E acrescenta: “Desse modo, Bakhtin articula uma compreensão dos gêneros que combina estabilidade e mudança; reiteração (à medida que aspectos da atividade recorrem) e abertura para o novo (à medida que aspectos da atividade mudam” (op. cit., 2004, p. 113).

Como se vê, a constituição do gênero na atividade interacional não é algo fixo, é mutável e se molda à situação discursiva. É um equilíbrio entre elementos recorrentes e difusos, que podem, inclusive, consolidar outro gênero. A esse processo Bakhtin chama de forças centrípetas (de estabilidade) e forças centrífugas (de mudança).

Cada enunciação concreta do sujeito do discurso constitui o ponto de aplicação seja das forças centrípetas, seja das centrífugas. Os processos de centralização e descentralização, de unificação e de desunificação cruzam-se nesta enunciação, e ela basta não apenas à língua, como sua encarnação discursiva individualizada, mas também ao plurilinguismo, tornando-se seu participante ativo. (BAKHTIN, 1998, p. 82)

Brandão (2001) vê no raciocínio das forças uma tensão que leva às características de estabilidade do gênero, ameaçadas por constantes pontos de fuga, que levam a uma instabilidade genérica. Essa relação, embora maleável, levaria a um equilíbrio, necessário para a situação comunicativa. Como resume o autor russo, numa citação sempre lembrada quando o assunto é abordado, se “não existissem os gêneros do discurso e se não os dominássemos, se tivéssemos de criá-los pela primeira vez no processo da fala, se tivéssemos de construir cada um de nossos enunciados, a comunicação verbal seria quase impossível” (BAKHTIN, 2000, p. 302). É nesse equilíbrio que seriam evidenciadas algumas características comuns aos gêneros. Cada um apresenta uma estrutura composicional, um tema e um estilo, podendo ser de duas formas: primários ou secundários. O que caracteriza os primários é serem produzidos em situações espontâneas de comunicação. Os vários modos de produção do diálogo oral, por exemplo. Os gêneros secundários surgem a partir dos primários. Aparecem no que Bakhtin chamou de forma de comunicação mais complexa e evoluída, manifestada numa (re)criação dos gêneros primários nos secundários, o que fica mais nítido na língua escrita. Um caso é a reprodução de um diálogo num romance. Na prática, as ideias de Bakhtin colocam o tema nas atividades humanas, quaisquer atividades, e não só nas literárias, como vinha sendo feito até então. E traz, como consequência, uma pluralidade de gêneros nas práticas interativas. Esses princípios teóricos influenciaram uma série de estudos sobre o assunto, ora se aproximando teoricamente do autor russo, ora reavaliando seus conceitos. Marcuschi (2005) comenta que houve inicialmente uma tendência de abordar os “enunciados relativamente estáveis”, na definição de Bakhtin, com os olhos voltados ao caráter estável. Hoje, a tendência se volta ao “relativamente”, ao aspecto maleável e não-rígido dos gêneros numa situação sócio-comunicativa.

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Existe uma grande diversidade de teorias de gêneros no momento atual, mas pode-se dizer que as teorias de gênero que privilegiam a forma ou a estrutura estão hoje em crise, tendo-se em vista que o gênero é essencialmente flexível e variável, tal como o seu componente crucial, a linguagem. Pois, assim como a língua varia, também os gêneros variam, adaptam-se, renovam-se e multiplicam-se. Em suma, hoje, a tendência é observar os gêneros pelo seu lado cognitivo, evitando a classificação e a postura estrutural. (op. cit., p. 18)

Maingueneau é um dos autores que se enquadram nesse paradigma socio-comunicativo e de particular interesse para esta discussão.

Gênero e hipergênero Maingueneau trabalhou a questão dos gêneros em dois momentos teóricos. No primeiro (2002), defende que um gênero do discurso (termo usado por ele) não se limita apenas à organização textual, embora seja um de seus elementos. Há outras características, igualmente pertinentes e definidoras: finalidade, lugar e momento onde ocorre, suporte material (televisão, diálogo, rádio, jornal), o estabelecimento de parceiros coerentes com a situação (o autor chama de “parceiros legítimos”). Neste último caso, acrescenta que o locutor e o interlocutor travam um contrato comunicativo, uma espécie de jogo, e que exercem papéis definidos na situação comunicativa. O autor francês vê o gênero do discurso atrelado a uma cena enunciativa. Para ele, a situação de comunicação funciona tal qual uma encenação. São três as cenas:

• Cena englobante – É a que define o tipo de discurso a que pertence a situação comunicativa. Pode ser, por exemplo, religioso, político, publicitário.

• Cena genérica – É o gênero do discurso a que pertence a situação de comunicação. A cena genérica, aliada à englobante, define o quadro cênico do texto.

• Cenografia – É a forma como o quadro cênico é transmitido. Em outras palavras: é a própria cena da enunciação.

As três cenas podem ocorrer ao mesmo tempo. Maingueneau afirma que há uma tensão, um conflito entre elas. O resultado dessa articulação emerge no texto. Um exemplo do autor torna mais fácil o entendimento dos três conceitos: uma carta feita em 1988 pelo ex-presidente francês François Mitterand, então candidato à reeleição. Foi publicada na imprensa. Um trecho:

Meus caros compatriotas, Vocês o compreenderão. Desejo, nesta carta, falar-lhes da França. Graças à confiança que depositaram em mim, exerço há sete anos o mais alto cargo da República. No final desse mandato, não teria concebido o projeto de apresentar-me novamente ao sufrágio de vocês se não tivesse tido a convicção de que nos restava ainda muito a fazer juntos para assegurar a nosso país o papel que dele se espera no mundo e para zelar pela unidade da Nação. (op. cit., 2002, p. 91)

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Segundo o modelo de Maingueneau, a cena englobante é o discurso político, em que os parceiros interagem num espaço-tempo eleitoral. A cena genérica é a das publicações. A cenografia é a da correspondência particular própria de uma carta. Para o autor, nem todos os gêneros permitem cenografias diferentes. Por isso, defende a ideia de um continuum. Num extremo, há as que dificilmente permitem uma mudança na cena genérica, como uma receita médica. No outro extremo, estão os casos que permitem uma gama diferenciada de cenografias, caso das publicidades. Entre os dois pólos, estariam os gêneros que tendem a usar uma cenografia mais rotineira. O autor ilustra com o caso dos guias turísticos. Num segundo momento teórico (2004, 2005, 2006, 2010), Maingueneau acrescentou mais alguns elementos a esse modelo de gênero do discurso. O autor distinguiu os gêneros chamados instituídos dos conversacionais (que lemos como semelhantes aos gêneros primários e secundários propostos por Bakhtin). Os conversacionais têm um modelo muito instável e dependente da relação entre os interlocutores. Os instituídos se aproximam mais das situações convencionais de gênero e podem ser de duas ordens, rotineiros e os autorais. Os rotineiros apresentam situações comunicativas relativamente constantes. “Os parâmetros que os constituem resultam na verdade da estabilização de coerções ligadas a uma atividade verbal desenvolvida numa situação social determinada” (op. cit, 2006, p. 239). A entrevista radiofônica e o debate televisivo são dois dos exemplos apresentados pelo autor. Os gêneros autorais ocorrem com o auxílio de uma indicação paratextual do autor ou do editor. “Quando se atribui esse ou aquele rótulo a uma obra, indica-se como se pretende que o texto seja recebido, instaura-se – de maneira não negociada – um quadro para a atividade discursiva desse texto” (op. cit., p. 238-239). Se dissermos, por exemplo, que um texto de cinco páginas é um ensaio, ele tende a ser visto assim pelo leitor. Mas o mesmo texto pode ser rotulado de artigo ou resenha. A forma lexical utilizada influencia na forma de o leitor interpretar o gênero. Com base nesses princípios, Maingueneau detalha o continuum proveniente da articulação entre cena genérica e da cenografia. São quatro tipos:

• Gêneros instituídos tipo 1 Gêneros instituídos que não admitem variações. Ex.: carta comercial.

• Gêneros instituídos tipo 2 Há maior presença autoral, mas ainda há orientações que moldam a situação de comunicação. Ex.: telejornal.

• Gêneros instituídos tipo 3 A grande característica é que não há uma cenografia específica. Há diferentes cenografias, conforme a intenção. Ex.: anúncios publicitários.

• Gêneros instituídos tipo 4 São os casos dos gêneros autorais, “aqueles com relação aos quais a própria noção de ´gênero´ é problemática. Ex.: uso de rótulos como meditação ou relato.

Os rótulos podem influenciar, segundo o autor, os aspectos formais do texto, interpretativos, ou ambos. O uso deles constitui o que chamou de hipergêneros. O trecho em que Maingueneau fundamenta o conceito é um pouco extenso, mas sintetiza com precisão o assunto:

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No caso dos rótulos que se referem a um tipo de organização textual, mencionamos em primeiro lugar aquilo a que demos o nome de hipergêneros. Trata-se de categorizações como “diálogo”, “carta”, “ensaio”, diário” etc. que permitem “formatar” o texto. Não se trata, diferentemente do gênero do discurso, de um dispositivo de comunicação historicamente definido, mas um modo de organização com fracas coerções que encontramos nos mais diversos lugares e épocas e no âmbito do qual podem desenvolver-se as mais variadas encenações da fala. O diálogo, que no Ocidente tem estruturado uma multiplicidade de textos longos ao longo de uns 2.500 anos, é um bom exemplo de hipergênero. Basta fazer com que conversem ao menos dois locutores para se poder falar de “diálogo”. O fato de o diálogo - assim como a correspondência epistolar - ter sido usado de modo tão constante decorre do fato de que, por sua proximidade com o intercâmbio conversacional, ele permite formatar os mais diferentes conteúdos. (op. cit., 2006, p. 244)

Em trabalho posterior, o autor aplica o conceito de hipergênero aos blogs, que, no entender dele, não poderiam ser considerados gêneros.

Na realidade, blog é uma categoria que atravessa categorias temáticas (pessoal, institucional, comercial, educacional...) e impõe rígidas restrições formais. Ele é uma espécie de hipergênero típico, cujas propriedades comunicativas são mínimas: alguém (com um nome próprio) fala sobre si mesmo(a) para alguém que esteja seu website. (op. cit., 2010, p. 131).

Ramos (2010a, 2011) faz uma aproximação da teoria de Maingueneau com o âmbito das histórias em quadrinhos. Estas seriam vistas como um hipergênero, que apresentaria algumas características comuns a uma gama de gêneros autônomos, a saber:

• uso de uma linguagem própria, com recursos como balões, legendas, onomatopéias e outros;

• predomina o tipo textual narrativo, que tem nos diálogos um de seus elementos constituintes;

• pode haver personagens fixos ou não; alguns se baseiam em personalidades reais, como os políticos;

• a narrativa pode ocorrer em um ou mais quadrinhos e varia conforme o formato do gênero, padronizado pela indústria cultural;

• em muitos casos, o rótulo, o formato e o veículo de publicação constituem elementos que acrescentam informações genéricas ao leitor, de modo a orientar a percepção do gênero em questão;

• a tendência é de uso de imagens desenhadas, mas ocorrem casos de utilização de fotografias para compor as histórias.

Nota-se que alguns dos elementos são comuns à definição proposta por Costa,

mas há outros, não elencados pelo autor no verbete relacionado ao tema. Pode-se entender por história em quadrinhos, então, o grande rótulo que une todas essas características e engloba a diversidade de gêneros, rotulados de diferentes maneiras, que utilizam a linguagem dos quadrinhos para compor um texto tendencialmente narrativo dentro de um contexto sociolinguístico interacional.

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Entre os gêneros que compartilhariam essas características estariam os ligados às tiras. Como apresentam um formato fixo, o da tira, costumam-se observar as características genéricas pelo adjetivo que acompanha a palavra: tiras cômicas, seriadas, cômicas seriadas, livres.

Gêneros das tiras As tiras cômicas são as mais comuns de serem vistas e são as que predominam

nos cadernos de cultura dos jornais brasileiros. Por isso, costumam ser vistas como sinônimas de tiras. Em estudo específico sobre o gênero, Ramos (2011) observou que tais produções se assemelham ao modo de composição das piadas. O autor elencou um conjunto de características próprias a elas:

• apresentam formato fixo, de uma coluna; • a tendência é que o formato seja horizontal, de um (mais comum) ou dois

andares; em revistas em quadrinhos, pode aparecer também na vertical; • a tendência é de uso de poucos quadrinhos, dada a limitação do formato

(o que constitui narrativas mais curtas); em geral, fica entre uma e quatro vinhetas (embora haja casos que utilizem vários quadrinhos);

• a tendência é de uso de imagens desenhadas; há registro de casos que utilizam fotografias, mas são raros;

• em jornais, é comum aparecer na parte de cima da tira o título e o nome do autor; em coletâneas feitas em livros e em blogs, essas informações são suprimidas das tiras porque aparecem em geral na capa da obra;

• os personagens podem ser fixos ou não; • há predomínio da sequência narrrativa, com uso de diálogos; • o tema abordado é sobre humor; • há tendência de criar um desfecho inesperado, como se fosse “uma piada

por dia”; • a narrativa pode ter continuidade temática em outras tiras.

Esta tira da série norte-americana Baby Blues ajuda a ilustrar esses pontos na prática:

Fig. 1 – Tira cômica de Baby Blues, de Rick Kirkman e Jerry Scott A série mostra as dificuldades diárias de um casal no processo de criação dos filhos. Como são “marinheiros de primeira viagem” na paternidade, têm de descobrir

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uma saída para cada situação nova que aparece. A mostrada na tira da figura 1 se baseia no choro contínuo do bebê durante a noite. Nas palavras da esposa, a solução seria “tentar descobrir o que tem de errado” para dar um jeito. O humor surge no quadrinho final: o marido, em vez de arrumar uma maneira de pôr um fim ao choro da criança, procura o “manual do proprietário”, para encontrar, ali, uma resposta ao que deve fazer. O desfecho inesperado é o leva ao efeito de humor, tal qual uma piada.

Para Raskin (1985), a piada teria um modo de comunicação non-bona-fide (não confiável), que se sobreporia ao bona-fide (confiável) no processamento textual, tornando-se o modo preferencial. Em outras palavras: o texto começa a ser percebido de uma maneira e termina de outra, diferente da inicial. A piada, para ser entendida como tal, tem de obedecer a duas premissas: 1) o texto precisa ser compatível, no todo ou em parte, com dois scripts diferentes; 2) os dois scripts com os quais o texto é compatível precisam ser opostos.

Os scripts, como se vê, estão na base do modelo de Raskin e podem ser entendidos como a descrição de uma sequência ou rotina de ações de uma situação estereotipada dos participantes da interação. Na piada, apresenta-se um script para revelar, posteriormente, outro, oposto ao primeiro. A mudança de script é feita por meio de um gatilho (termo do autor, traduzido), presente em dado trecho-chave (punch line), que leva a uma ambiguidade ou contradição. Gil (1991) defende que o texto de humor se manifesta num modo jocoso de comunicação, tal qual o non-bona-fide, de Raskin. A comicidade surge da passagem do sério para o jocoso, que se sobrepõe à leitura “séria” no processo de formação do sentido. Para a autora, a piada é formada por um antecedente e um consequente. Nas palavras dela:

A coerência da piada se realiza de uma forma específica e própria dessa espécie de humor. Ela se expressa através de uma estrutura que se compõe de um antecedente e um consequente, à semelhança do silogismo estudado por Aristóteles. A primeira parte, o antecedente, apresenta as personagens, fornece os elementos da história e sugere um tópico. A segunda, o consequente, como no silogismo, apresenta a conclusão. Mas se no silogismo o consequente se governa pela analogia e procura as semelhanças entre os termos, na piada ele se orienta pelo princípio da surpresa e ressalta as oposições entre as partes. (op. cit., p. 192-193)

O antecedente, segundo o modelo de Gil, apresenta três partes: primeira

proposição, segunda proposição e elemento mediador. Todos funcionam como estratégias para preparar a revelação surpreendente do humor, que se encontra no consequente. A piada, para a autora, apresenta uma estrutura particular, com algumas características próprias. São textos que se valem dos recursos narrativos e dialogais e são tendencialmente curtos. A pouca extensão se dá por dois motivos: 1) por uma característica própria do gênero, um conhecimento genérico (expressão nossa) compartilhado pelos parceiros da interação; 2) pela dificuldade de manter por muito tempo a tensão que leva à surpresa.

Ramos vê nessas e em outras características das piadas uma proximidade com as tiras cômicas. O gênero também teria texto curto, tendencialmente narrativo e com o desfecho surpreendente, próprio da piada. É algo que não seria visto em outro gênero das tiras, as seriadas.

Também chamadas por alguns autores como tiras de aventuras, as tiras seriadas têm como marca a narração de uma história maior, contada em partes. Cada tira

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funciona como um capítulo. Tal qual uma novela, a tira retoma a cena final da anterior e serve de gancho para a seguinte. Um exemplo do personagem Popeye:

Fig. 2 – Popeye, exemplo de tira seriada A singularidade do gênero é o aspecto serial. No exemplo em pauta, a tira de cima foi publicada no dia 20 de setembro (a data aparece no quadrinho final) e a outra, dois dias depois. A primeira registra ao leitor que Olívia Palito quer inscrever o namorado, Popeye, num “concurso para arranjar um marido”. Nas palavras dela, “o cara que vencer o Popeye ganha o prêmio... ou seja... eu!”. A cena fica em suspenso até a tira seguinte. No próximo capítulo, ou seja, na próxima tira, a narrativa é retomada do quadrinho onde havia parado. Há um novo desenrolar e, uma vez mais, encerra-se em suspenso, dando o gancho para a parte do capítulo seguinte. O leitor, então, é instado a acompanhar diariamente, etapa por etapa, o desenrolar da história. Como dito, como ocorre com as novelas televisivas. Essa sequência em série e o que marca o gênero. Pode ocorrer também um híbrido das tiras cômicas com as seriadas, o que se pode chamar de tira cômica seriada. Ela ao mesmo tempo em que narra um capítulo por dia, termina com um desfecho inesperado, fonte do humor. Dois casos assim, ambos da série Ed Mort, de Luis Fernando Verissimo e Miguel Paiva:

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Figs. 3 e 4 – Ed Mort, exemplo de tira cômica seriada

As duas tiras fazem parte de uma narrativa maior, chamada Ed Mort em

Disneyworld Blues. A história foi reunida num livro, publicado em 1987. Antes disso, foram publicadas diariamente, uma a uma, em cadernos de cultura de jornais brasileiros. Os dois exemplos mostram um fragmento da narrativa.

A figura 3 apresenta um diálogo entre um dos suspeitos (o homem gordo, à esquerda na primeira vinheta) e o personagem-título, o detetive Ed Mort. O primeiro diz: “Trabalha outra moça aqui, mas ela está... doente”. O detetive pergunta: “O que você quer dizer com “... doente?” O leitor tem de inferir pela tira do dia anterior do que trata a situação do diálogo, algo que não ocorre na tira cômica tradicional (mas, sim, nas tiras seriadas).

Mesmo assim, há desfecho inesperado e humor na última vinheta. O detetive, com expressão compenetrada, imagina: “Sempre desconfiei de pessoas que falam com reticências.” Ele se refere à representação gráfica das reticências do balão do suspeito, que sugere pausa na fala. O inusitado estaria não na suspeição da pausa, mas das reticências em si. No diálogo-representação da fala, portanto, foi evidenciado um recurso gráfico.

Na tira seguinte, parte da história é resumida por Ed Mort numa legenda, logo no início: “Minha cliente tinha perdido a memória e usava um vestido da butique “Trapinhos”. Mas lá ninguém a vira. Ou diziam que não...”. Há um novo diálogo entre os mesmos personagens. Infere-se que seja uma sequência do que tinha sido representado na outra tira. “Onde mora a moça que trabalha aqui?”, pergunta Ed Mort. “Ela morreu”, respondeu o suspeito. Ed Mort: “Mas você acabou de dizer que ela estava doente.”

Essa informação, a de que ela tinha adoecido, exigia uma leitura prévia da tira anterior. Novamente, há desfecho inesperado e humor. A moça teria morrido porque

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ficara doente “de repente”, como é lido no balão da última vinheta. O caso analisado tem características das tiras cômicas (o desfecho inesperado que leva ao humor) e das tiras seriadas (capítulos de uma narrativa maior e inferência de informações dos capítulos anteriores para a compreensão da história). Por isso, o nome tira cômica

seriada.

Ramos (2010b) vê ainda a possibilidade de um quarto gênero relacionado às tiras. Seria um gênero ainda em processo de consolidação, pautado em produções brasileiras percebidas em particular na segunda metade da década inicial deste século. Elas seriam ancoradas numa liberdade temática, tendência à experimentação gráfica e ausência de humor. Um exemplo citado pelo autor, de autoria do cartunista Laerte:

Fig. 5 – Tira de Laerte

Trata-se de uma tira, como o formato evidencia ao leitor. Mas não há humor e vê-se um tema abstrato, que sugere uma leitura aberta a ser preenchida. Em situações assim, que já encontram alguns pares de autores no Brasil, Ramos propôs o termo tira

livre, que teria como principal marca de estabilidade justamente a liberdade no processo de produção, o que a diferencia e singulariza em relação aos demais gêneros.

Considerações finais

Entendemos que há um uso acrítico no tocante às histórias em quadrinhos e às

tiras cômicas. Estas, em geral, são vistas como integrantes daquelas, embora ambas sejam rotuladas como gêneros. Este artigo procurou trazer uma contribuição no sentido de aclarar um pouco essa discussão. As tiras e demais formas de histórias em quadrinhos (charges, cartuns, quadrinhos de terror, de super-heróis, infantis, de faroeste etc.) compartilham a tendência de serem textos com sequências narrativas, que mesclam elementos verbais escritos e visuais e que se valem de uma linguagem com códigos próprios, a dos quadrinhos.

Essas marcas compartilhadas criam no leitor a expectativa genérica de que sejam, de fatos, histórias em quadrinhos, embora cada um se singularize em relação ao outro. Uma possibilidade de leitura é que todos integrem um hipergênero de histórias em quadrinhos, que conteria diferentes gêneros autônomos.

Procuramos, nestas linhas, expor quais seriam os gêneros relacionados à tira. Vimos que seriam quatro gêneros, todos autônomos e com marcas de produção/circulação próprias: as tiras cômicas (as mais comuns), as tiras seriadas, as tiras cômicas seriadas e as tiras livres. Entender as marcas de cada um é compreender também melhor como se processam os textos em quadrinhos, em particular quando observados sob o viés lingüístico e textual.

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