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« Pesquisa pode significar condição de consciência crítica e cabe como componente necessário de toda proposta emancipatória. Para não ser mero objeto de pressões alheias, é mister encarar a realidade com espírito crítico, tornando-a palco de possível construção social alternativa. Aí, já não se trata de copiar a realidade, mas de reconstruí-la conforme nossos interesses e esperanças. É preciso Construir a necessidade de construir caminhos, não receitas que tendem a destruir o desafio de construção. I % v (...) Predomina entre nós a atitude do imitador, que copia, reproduz e faz prova. Deveria impor-se a atitude de aprender pela elaboração própria, substituindo a curiosidade de escutar pela de produzir.1 > ) : í í/i •»» 0 w UJ 0.

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« Pesquisa p o d e significar co nd ição de consciênc ia crítica e cabe c o m o c o m p o n e n te necessário de toda proposta em ancipatória . Para não ser m ero objeto de pressões alheias, é m ister encarar a realidade com espírito crítico, to rnando-a palco de possível construção social alternativa. Aí, já não se trata de copiar a realidade, m as de reconstruí-la co n fo rm e n o s s o s in te re s s e s e e s p e ra n ç a s . É p re c is o Construir a necessidade de construir caminhos, não receitas que ten d e m a destruir o desafio de construção.

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(...) Predom ina entre nós a atitude do imitador, que copia, reproduz e faz prova. Deveria im por-se a atitude de aprender pela elaboração própria, substituindo a curiosidade de escutar pela de produzir.1

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PRINCÍPIO CIENTÍFICO E EDUCATIVOPEDRO DEMO

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BIBLIOTECA DA EDUCAÇÃO séné 1 - E s c o l a

Volume 14

D ados Internacionais de C atalogação na Publicação (C IP) (C âm ara Brasileira do Livro, SP, Brasil)

Demo, Pedro, 1941Pesquisa : princípio científico c educativo / Pedro Demo. - 12. ed.

- São Paulo : Cortez, 2006. (Biblioteca da educação. Série 1. Escola; v. 14)

Bibliografia ISBN 85-249-0282-5

1. Pesquisa I. Título II. Série

90-1996 CDD-001.4

índices para catálogo sistem ático:

1. Pesquisa 001.4

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Pedro Demo

PESQUISAPrincípio Científico e Educativo

12§ edição

/E i CORTEZ '»6D ITO R Q

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PESQUISA: princípio científico e educativo Pedro Demo

Capa: Carlos ClémenRevisão: Rosely M. SessoCoordenação editorial: Danilo A. Q. Morales

Nenhuma parte desta obra pode ser reproduzida ou duplicada sem autorização expressa do autor e do editor.

© 1996 by Pedro Demo

Direitos para esta ediçãoCORTEZ EDITORARua Bartira, 317 - Perdizes05009-000 - São Paulo - SPTel.: (11) 3864-0111 Fax: ( 11) 3864-4290E-mail: [email protected]

Impresso no Brasil - junho de 2006

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Para Lúcia e Gisela minhas m estras

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Sumário

Introdução............................................................................. 9

I. Pesquisar — O que é?1. Desmitificando o conceito...................................... 112. Horizontes múltiplos da pesquisa........................ 183. A pesquisa como descoberta e criação............... 294. A pesquisa como diálogo....................................... 36

II. A pesquisa como princípio científico1. A questão curricular................................................ 462. A questão da teoria & prática............................ 563. “Dar conta de um tema” ....................................... 634. A questão da avaliação.......................................... 68

III. A pesquisa como princípio educativo1. Educação, pesquisa e emancipação...................... 782. Limitações do apenas ensinar................................ 833. Limitações do apenas aprender............................ 884. Vazios da escola formal......................................... 94

IV. Prática de pesquisa & educação1. Construindo a prática.............................................. 992. Pinceladas de um g*rr(culo (ISEP)..................... 109

Bibliografia ........................................................................... 117

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Introdução

A idéia é fundamentar proposta de teoria e prática da pesquisa que ultrapasse os muros da academia e da sofisti­cação instrumental. É possível desenhar o alcance alternativo da pesquisa, que a tome como base não somente das lides científicas, mas também do processo de formação educativa, o que permitiria introduzir a pesquisa já na escola básica, a partir do pré-escolar e considerar atividade humana proces­sual pela vida afora.

Essa pretensão supõe que se desmitifique a pesquisa, para não encerrá-la em sofisticações operáveis apenas por castas superiores e raras. Nos espaços onde aparece, de modo geral, é cultivada como atividade menos presente que o ensino, por exemplo, mas sobretudo existe a tendência a reservá-la para entes especiais. De um lado, pode-se tentar cotidianizar a pesquisa, como processo normal de formação histórica das pessoas e grupos, à medida que significar também condição de domínio da realidade que nos circunda. De outro, a pesquisa poderia reintroduzir a adequação entre teoria e prática, dispensando o recurso artificial ao conceito extrínseco de “extensão”, inventado para trazer de volta uma universidade que fugiu da realidade concreta. Pode-se colo­car conceito de pesquisa que evite, de partida, a fuga da universidade para o mundo da Lua.

Faz parte dessa rota alternativa a expectativa de fo r­mação de novos mestres? desde que pesquisar coincida com criar e emancipar. A formação científica toma-se também

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formação educativa, quando se funda no esforço sistemático e inventivo de elaboração própria, através da qual se con­strói um projeto de emancipação social e se dialoga criticamente com a realidade. Predomina entre nós a atitude do imitador, que copia, reproduz e faz prova. Deveria impor- se a atitude de aprender pela elaboração própria, substituindo a curiosidade de escutar pela de produzir.

Esse desafio, entretanto, não pode ser algo reservado a super-homens. A pesquisa sofisticada cabe como um dos níveis de sua realização, mas não pode exclusivizar-se. A curiosidade criativa, por exemplo, encontra espaço insistente de cultivo na academia, mas é possível na escola básica e como posicionamento normal na vida. Pesquisa pode signi­ficar condição de consciência crítica e cabe como compo­nente necessário de toda proposta emancipatória. Para não ser mero objeto de pressões alheias, é mister encarar a realidade com espírito crítico, tomando-a palco de possível construção social alternativa. Aí, já não se trata de copiar a realidade, mas de reconstruí-la conforme os nossos inter­esses e esperanças. E preciso construir a necessidade de construir caminhos, não receitas que tendem a destruir o desafio de construção.

Essa proposta supõe nossos trabalhos anteriores em me­todologia e crítica da ciência, em particular a postura da “discutibilidade”, em seu lado formal e político, e as in­dagações em tomo de alternativas de construção científica em ciências sociais (Demo, 1989, 1985a e 1988a).

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Pesquisar O que é?

1. D esm itif icando o conceito

O processo de pesquisa está quase sempre cercado de ritos especiais, cujo acesso é reservado a poucos iluminados. Fazem parte desses ritos especiais certa trajetória acadêmica, domínio de sofisticações técnicas, sobretudo de manejo es­tatístico e informático, mas principalmente o destaque pri­vilegiado no espaço acadêmico: enquanto alguns somente pesquisam, a maioria dá aulas, atende alunos, administra.

Para tanto, estuda-se metodologia, em particular técni­cas de pesquisa, que ensinam como gerar, manusear e con­sumir dados, em contato com a realidade. A seguir, absor­vem-se sofisticações técnicas, a exemplo do pesquisador americano, perito em projeções, índices e taxas. Por fim, isso permite associar-se a pequeno grupo acima da média, que, além de perfazer a nata acadêmica, também tende a exclusivizar acesso a recursos. Surgem “patotas” autodefen- sivas, para evitar aulas e alunos, dispor do maior tempo possível para investigar, cultivar destaque profissional, ga­rantir acesso a financiamento.

É preciso reconhecer que a formação sofisticada do Pesquisador não é mal em si. Ao contrário, faz parte da Cena, sempre. Em meio á^ciências sociais muito teorizantes, fazem bem exigências específicas de tratamento empírico da

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realidade, tomando-se como aceitável aquilo que tem com­provação factual. E comum, por exemplo, entre educadores a ignorância em termos de manuseio de dados e finanças, imaginando-se que a “dialética” compensa facilmente tais lacunas. Ledo engano. Uma coisa não substitui a outra.

Certamente, esse pesquisador “americano”, além de mui­tas vezes decair na banalização imitativa colonialista, propende a disseminar uma visão curta de processo científico, atrelado ao empirismo e ao positivismo, fazendo sucumbir apuros técnicos a ingenuidades ou a dubiedades políticas. Esta crítica foi fartamente realizada pela pesquisa participante. Facilmente acontece que investimentos em pesquisa desse teor não conseguem ir além de acumular alguns perfis estatísticos, irrelevantes no contexto histórico, o que tem contribuído para dissociar sempre mais o processo de saber do processo de mudar. O que mais se sabe é como coibir mudanças (Brandão, 1982 e 1984; Demo, 1984). Todavia, libertar a pesquisa do exclusivismo sofisticado não pode levá-la ao exclusivismo oposto da banalização cotidiana mágica.

A desmitifícação mais fundamental, porém, está na crítica à separação artificial entre ensino e pesquisa. Tomada como marca definitiva da nossa realidade educativa e científica, muitos estão dispostos a aceitar universidades que apenas ensinam, como é o caso típico de instituições noturnas, nas quais os alunos comparecem somente para aprender e pas­sar, e os professores, quase todos biscateiros de tempo parcial, somente dão aula. É comum o professor que apenas ensina, em especial o de l e e 2o graus: estuda uma vez na vida, amealha certo lote de conhecimentos e, a seguir, transmite aos alunos, dentro da didática reprodutiva e cada dia mais desatualizada. Entretanto, essa imagem é parte constitutiva predominante, mesmo avassaladora, da universidade: a grande maioria dos professores só ensina, seja porque não domina

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sofisticações técnicas da pesquisa, mas sobretudo porque admite a cisão como algo dado. Fez “opção” pelo ensino, e passa a vida contando aos alunos o que aprendeu de outrem, imitando e reproduzindo subsidiariamente.

No oposto está a soberba do pesquisador exclusivo, que já considera ensino como atividade menor. Esta dicotomia evolui facilmente para a cisão entre teoria e prática: o pesquisador descobre, pensa, sistematiza, conhece. Cabe a outra figura, sobretudo a “decisores” assumir a intervenção na realidade. Saber desliga-se de mudar, o que pode acarre­tar para a atividade de pesquisa estigmas muito preocupan­tes, tais como (Demo, jul. 1987):

a) cultivo do distanciamento útil e mesmo recaída na neu­tralidade farsante, comodista e elitista;

b) contradição flagrante entre discurso crítico, por vezes radical, e o desvinculamento da prática, replicando con­servadorismo gritante;

c) função de “bobo da corte”, reduzindo o conhecimento, sobretudo o crítico, na prática a estratégias de controle e desmobilização social;

d) apropriação do saber, que passa sobretudo a manobra de acesso ao poder, afastando-se da função de trans­missão socializada;

e) favorecimento da alienação acadêmica no sentido de atividades tão especulativas, que nunca se sabe bem para que servem na prática, principalmente no cotidiano das pessoas e da sociedade.

De si, as ciências sociais tratam da práxis histórica, do seu presente, passado e futuro. Teorizar sobre ela é funda­mental, mas seria prátie^ inaudita permanecer apenas na teoria. Pesquisar somente para saber já seria proposta ali-

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enante, porque desencarna a pesquisa da sua face inserida na realidade histórica, reduzindo-a ao esforço de sistema­tização de idéias e de especulação dedutiva. Saber está mar- cadamente ligado a interesses sociais, definidos aqui como contraposições dialéticas. Até mesmo acumular saber para cultivar a ignorância é possível e não raro sintomático. Muitos diriam que na televisão se faz isso com incrível competên­cia: usam-se técnicas de comunicação para cultivar o anal­fabetismo político.

Como ator social, o pesquisador é fenômeno político, que, na pesquisa, o traduz sobretudo pelos interesses que mobilizam os confrontos e pelos interesses aos quais serve. Donde segue: pesquisa é sempre também fenômeno político, por mais que seja dotada de sofisticação técnica e se mas­care de neutra. Não se reduz a fenômeno político, mas nunca o desfaz de todo. Por isso vale dizer: sabemos mais o que interessa. O que explica, em parte, por que conhecemos muito mais como não mudar, já que a produção de conhecimentos está nas mãos dos privilegiados. O desconforto pode ser gritante, quando se descobre, por exemplo, que a pesquisa social sobre pobreza cresceu muito, mas nada tem a ver com a sua debelação. E difícil, talvez impossível, estabe­lecer uma correlação positiva entre o conhecimento da pobreza e o seu enfrentamento prático, embora não fosse impróprio constatar o inverso (Habermas, 1982).

Assim, desmitificar a pesquisa há de significar tambémo reconhecimento da sua imisção natural na prática, para além de todas as possíveis virtudes teóricas, em particular da sua conexão necessária com a socialização do conhe­cimento. Quem ensina carece pesquisar; quem pesquisa care­ce ensinar. Professor que apenas ensina jamais o foi. Pes­quisador que só pesquisa é elitista explorador, privilegiado e acomodado.

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1 Prova visível da dicotomia artificial está no conceito de extensão, inventado precisamente porque a universidade tende a fugir da realidade concreta circundante. Embora extensão possa conter propriedades sustentáveis em si mesmas, de modo geral significa o arremedo empobrecido de vida aca­dêmica alienada. Esta invenção americana corresponde sobre­tudo ao mútuo desconhecimento entre quem pesquisa e quem ensina. Na Europa, dificilmente aparece a função de extensão, pela razão simples de que a atividade primeira da univer­sidade é pesquisar, em sentido produtivo e construtivo, decidindo-se aí a origem básica do conceito de professor.

Professor é quem, tendo conquistado espaço acadêmico próprio através da produção, tem condições e bagagem para transmitir via ensino. Não se atribui a função de professor a alguém que não é basicamente pesquisador. Em vista disso, o termo professor é reservado para nível específico de amadurecimento acadêmico, geralmente o catedrático, o titu­lar, que já teria demonstrado capacidade de criação científica própria. Outras figuras fazem parte da cena: docentes, assis­tentes, leitores, monitores etc., mas que não se dizem pro­fessores. No campo do 1° e 29 graus não há obviamente “professores”, mas “instrutores” (Lehrer, na Alemanha; teacher, na Inglaterra), “mestres” (maître, na França) etc.

A postura européia tem o defeito de elitizar em excesso a pesquisa, se partirmos de que deve fecundar todos os níveis do saber, mas tem de correto a recusa de desvincular ensino de pesquisa. Por outra, pela via da pesquisa não se garante sem mais a presença da prática social adequada, o que recoloca a viabilidade da extensão. Todavia, é possível ela­borar uma proposta de pesquisa que dispense a muleta da extensão, se for apenas muleta. Quando a prática se reduz a “estágio”, extensão é mtcessária. Se, porém, prática fosse curricular, já é extensão.

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Dito isso, cabe explicitar que o nosso posicionamento compreende a pesquisa não só como busca de conhecimento, mas igualmente como atitude política, sem reducionismo e embaralhamento, num todo só dialético. Aí cabe a sofisti­cação técnica, como cabe o seu cultivo especificamente acadêmico, desde que não desvinculado do ensino e da prática. Mas deve caber ainda a sua cotidianização, no espaço político de instrumento de acesso ao poder, a níveis críticos da consciência social, a domínio tecnológico diante do dado social e natural, a cultura própria. Em termos cotidianos, pesquisa não é ato isolado, intermitente, especial, mas ati­tude processual de investigação diante do desconhecido e dos limites que a natureza e a sociedade nos impõem. Faz parte de toda prática, para não ser ativista e fanática. Faz parte do processo de informação, como instrumento essen­cial para a emancipação. Não só para ter, sobretudo para ser, é mister saber.

O conhecimento gerado na academia é diferente do co­nhecimento comum, mas seria incompatível soberba não re­conhecer neste também “saber”. O analfabeto “não sabe” frente a critérios do culto, mas em seu universo gera níveis próprios do saber, que por vezes não precisam ser menos críticos. Sem recair jamais no elogio da ignorância — até porque seria coisa de esperto — cabe reconhecer que conhe­cimento é processo diário, como a própria educação, que não começa nem acaba. Diante da nossa ignorância e dos nossos limites, há sempre o que conhecer, sobretudo conhe­cer faz parte do conceito de vida criativa. Para criar, em es­pecial para se emancipar, é mister informação competente.

Pesquisa é processo que deve aparecer em todo trajeto educativo, como princípio educativo que é, na base de qualquer proposta emancipatória. Se educar é sobretudo motivar a criatividade do próprio educando, para que surja o

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n0vo mestre, jamais o discípulo, a atitude de pesquisa é parte intrínseca. Pesquisar toma aí contornos muito próprios e desafiadores, a começar pelo reconhecimento de que o melhor saber é aquele que sabe superar-se. O caminho eman- cipatório não pode vir de fora, imposto ou doado, mas será conquista de dentro, construção própria, para o que é mister lançar mão de todos os instrumentos de apoio: professor, material didático, equipamentos físicos, informação. Mas, no fundo, ou é conquista, ou é domesticação.

Desmitificar a pesquisa há de significar, então, a su­peração de condições atuais da reprodução do discípulo, comandadas por um professor que nunca ultrapassou a con­dição de aluno. O novo mestre não é apenas o magnata da ciência, o gênio incomparável, o metodólogo virtuoso, mas todo cidadão que souber manejar a sua emancipação, para não permanecer na condição de objeto das pressões alheias. Algo cotidiano, pois, como deve ser cotidiana a emanci­pação, o projeto próprio de ser sujeito na história. Nada é mais degradante na academia do que a cunhagem do discípulo, domesticado para ouvir, copiar, fazer provas e sobretudo “colar”. Marca o discípulo a atitude de objeto, incapaz ou incapacitado de ter idéias e projetos próprios. Mais degradante ainda é o professor que nunca foi além da posição de discípulo, porque não sabe elaborar ciência com as próprias mãos. Como caricatura parasitária que é, repro­duz isso no aluno.

Por outra, criar não é retirar do nada. Embora seja sem­pre preferível a criação claramente inspirada e inovadora, na expectativa cotidiana não é possível fazer regra do extraor­dinário. Precisamos reconhecer, no realismo do dia-a-dia que marca e limita pessoas e sociedades, que criar já é o processo de digestão própria, peto menos a impressão de colorido pessoal em algo retirado de outrem. Mesmo porque, de modo

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geral, assim começa a criação: pela cópia retocada. Com o tempo, emergem condições mais profundas de inovação, que não caem do céu por descuido, mas são construídas na história de vida, em processo de infindável conquista.

Vale, então, rever o conceito de aprendizagem, re­lacionado ao de ensinar, sempre restritos os dois a posições receptivo-domesticadoras. Educação aparece decaída na con­dição de instrução, informação, reprodução, quando deveria aparecer como ambiência de instrumentação criativa, em contexto emancipatório. O que conta aí é aprender a criar. Um dos instrumentos essenciais da criação é a pesquisa. Nisto está o seu valor também educativo, para além da descoberta científica.

2. Horizontes múltiplos da pesquisa

Compreendida como capacidade de elaboração própria, a pesquisa condensa-se numa multiplicidade de horizontes no contexto científico (Demo, 1985b). E comum prendê-la à sua construção empírica. O pesquisador aparece exclusivizado na condição de manipulador competente de dados factuais, nas ciências sociais. “Levantamento em pírico” é seu con­teúdo mais típico, geralmente único. Por outra, não se pode desconhecer que essa direção foi muito impulsionada, rece­bendo atualmente forte instrumentação por parte da in­formática computacional. A acumulação da pesquisa também passa quase exclusivamente pela montagem de conhecimento empírico validado.

Todavia, a pesquisa empírica é apenas um horizonte dela, que, se exclusivizado, já denota desvirtuamento típico do conceito de pesquisa. O primeiro reconhecimento é que

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não se pode fazer levantamento empírico sem o concurso dos outros horizontes, aqui subsumidos em teoria, método e prática. O segundo será ressaltar a importância dessa mútua fecundação, seja para não ficarmos apenas na permuta de extremos, seja para não enclausurarmos a criatividade em vias únicas contraditórias, seja para recuperarmos propriedades das ciências sociais que jam ais deveríamos reduzir a parâmetros das ciências naturais, por mais que haja evidente espaço comum.

Mesmo quando colocamos o desafio correto de que a pesquisa é descoberta da realidade, trata-se de um conceito estreito de realidade, se a restringirmos à sua manifestação empírica. A tendência de reduzir à sua expressão empírica é facilmente compreensível, porque é a mais manipulável di­ante da expectativa metodológica dominante. E tanto mais tratável cientificamente, aquilo que é mensurável, experi- mentável, observável.

Para muitos pode parecer estranho rejeitar que seja real apenas o que se “vê”. Esta colocação tem grande signifi­cado, pois denota, desde logo, que não seria “realista” prender a realidade a um único parâmetro de pesquisa. Se sou­béssemos com evidência inconteste o que é realidade, não seria mais necessária a ciência. Neste sentido, ciência vive do desafio imorredouro de descobrir realidade que, sempre de novo, ao mesmo tempo se descobre e se esconde. Pos­sivelmente esta marca é comum também à realidade natural, mas é sobretudo característica da realidade social. “O que se vê”, de modo geral, não é, nem de longe, a parte principal e, na conseqüência, o que está nos dados muitas vezes é manifestação secundária, ocasional, superficial.

Tomando exemplo próximo, o fenômeno do poder só Pode ser captado de modo realista, se de partida não acredi­

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tarmos em sua manifestação externa, que sempre usa para se mascarar. Poder realmente importante, efetivo, é aquele que sabe esconder-se, precisamente para mandar sem ser per­cebido. Por vezes usamos o conceito de “ informal”, para denotar aquele poder que age por trás dos bastidores, exa­tamente para determinar com mais força. Não se conhece adequadamente o fenômeno do poder, se ficarmos na apa­rência empírica, até porque uma das faces mais típicas da ideologia é dissimular, mascarar, esconder (Foucault, 1979).

Sobretudo, faz parte do “em pirism o” a demissão teóri­ca, segundo a qual se reduz o que é mais importante ao que é mais empírico, sacrificando a realidade ao método de captação. Se isto for correto, a pesquisa coloca outro de­safio: desfazer a aparência visível, observável, para sur­preender a realidade por trás disso. O pesquisador não so­mente é quem sabe acumular dados mensurados, mas sobre­tudo quem nunca desiste de questionar a realidade, sabendo que qualquer conhecimento é apenas recorte.

Assim, o mínimo que podemos dizer é que há horizon­tes não-empíricos, que fazem parte da realidade. E fundamen­tal que a ciência os capte, principalmente é essencial que não reduza a realidade ao tamanho do que consegue captar. Esta critica, entre outras, motivou o surgimento de meto­dologias alternativas, ditas por vezes qualitativas, que, sem dicotomizar quantidade e qualidade, pretendem trazer à cena da pesquisa a preocupação com realidade inesgotável no mensurável. Parte do processo emancipatório é tipicamente qualitativo, no sentido da qualidade política, feita de utopias e esperanças, ideologias e compromissos, influências e artes, participação e democracia. Não cabe mensurar. Nem por isso menos importante.

De partida, é mister ressaltar que ao lado da preocu­

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pação empírica deve haver preocupação teórica. “Pesquisa teórica” pode parecer algo estranho, mas, olhando bem as coisas, é indispensável, como formulação de quadros expli­cativos de referência, burilamento conceituai, domínio de alternativas explicativas na história da ciência, capacidade de criação discursiva e analítica. À diferência do “teoricismo”, que faz teoria pela teoria e vive da mera especulação, teoria faz parte inevitável de qualquer projeto de captação da realidade, a começar pelo desafio de definir o que seja “real”.

De acordo com os quadros teóricos de referência, o real pode variar, inclusive apresentar-se contraditório. Para começar, todo dado empírico não fala por si, mas pela “boca” de uma teoria. Se fosse evidente em si, produziria a mesma análise sempre. Na prática, sucede exatamente o oposto: dependendo do quadro teórico de referência, o mesmo dado passa a “evidenciar” conclusões muito diversas, o que leva a aceitar que nos dados do IBGE, por exemplo, não está “o” Brasil, mas o Brasil do IBGE, assim como nos dados do Dieese está o Brasil do ponto de vista dos trabalhadores. Algo semelhante se deve dizer de índices e taxas, que supõem definição teórica prévia do que se vai captar e medir. Uma taxa de inflação não acusa “a” inflação como tal, mas aquela inflação que a respectiva taxa foi teoricamente predeterminada a medir. Esta questão parece clara quando se tenta decidir que componentes fazem parte da inflação, que itens do con­sumo deveriam entrar na coleta de preços, que peso atribuir no cômputo global a cada item. Por mais que as taxas possam assemelhar-se, porque as técnicas de coleta são mais ou menos as mesmas e por mais que as concepções de realidade possam aproximar-se entre si, há sempre lastro próprio de definição e sobretudo de interpretação analítica. Assim, uma taxa não “evidencia”, apenas indica relevâncias possíveis, dentro do recorte feito no real. ^

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A realidade que se quer captar é a mesma para todos, mas para captar é preciso concepção teórica dela, que pode ser diferente em todos, dependendo do que se define por ciência, por método, ou do ponto de partida e do ponto de vista, ou da ideologia subjacente, ou de circunstâncias so­ciais condicionantes ou condicionadas por interesses históri­cos dominantes.

Se numa teoria nunca está inclusa a realidade toda, mas tão-somente a maneira de a conceber, muito menos seria pensável encerrar em manifestações empíricas. A importância da hermenêutica está precisamente no reconhecimento de que a interpretação é inevitável. A realidade como tal não de­pende da interpretação para existir: existe com ou sem intérprete. Mas a realidade conhecida é inevitavelmente aquela interpretada. Caso contrário, seria ininteligível a disputa teórica entre quadros interpretativos diferentes e mesmo contraditórios. O dado é muito mais resultado teórico, do que achado, pois, para “achar”, é mister antes “decidir” o que achar e como achar (Kuhn, 1975).

A hermenêutica é a arte de descobrir a entrelinha para além das linhas, o contexto para além do texto, a significação para além da palavra. Concretamente, enfrenta os desafios do mistério da comunicação humana, que nunca é só o que aparenta: como descobrir que o comunicador, ao dizer sim, queria dizer não, ao sair da cena, queria sobretudo estar presente e ao calar-se, queria precisamente fazer-se notado.

Aí está a importância da teoria, que é a retaguarda criativa do intérprete inspirado. Domínio teórico significa a construção, via pesquisa, da capacidade de relacionar alter­nativas explicativas, de conhecer seus vazios e virtudes, sua história, sua consistência, sua potencialidade, de cultivar a polêmica dialogai construtiva, de especular chances possíveis de caminhos outros ainda não devassados. O “bom teórico”,

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assim, não é aquele que se perde nos meandros sinuosos da elucubração infindável, ao longe sempre incompreensível porque nada tem a comunicar de prático e aproveitável, mas aquele que insiste na estringência conceituai, sabe perseguir análises e interpretações, conhece caminhos diferentes de tentativa explicativa, guarda vivo senso crítico dos vazios de toda e qualquer teoria, retorna à teoria no contexto de qualquer prática, toma a explicação como desafio sempre a ser recomeçado, aceita todo ponto de chegada como inevitável próximo ponto de partida. O bom teórico é sobretudo aquele que sabe bem perguntar, colocando a teoria no devido lugar: instrumentação criativa diante de realidade sempre furtiva. Quem dispõe de boa teoria, diante do dado sabe interpretar, ou pelo menos sabe propor pistas de interpretação possível.

Faz parte, assim, da pesquisa teórica:

a) conhecer a fundo quadros de referência alternativos, clássicos e modernos, ou os teóricos relevantes;

b) atualizar-se na polêmica teórica, sem modismos, para abastecer-se e desinstalar-se;

c) elaborar precisão conceituai, atribuindo significado estrito aos termos básicos de cada teoria;

d) aceitar o desafio criativo de prepor a realidade à fixação teórica, para que a prática não se reduza à “prática teórica”, e para que a teoria se mantenha em seu de­vido lugar, como instrumentação interpretativa e con­dição de criatividade;

e) investir na consciência crítica, que se alimenta de alter­nativas explicativas, do vaivém entre teoria e prática, dos limites de cada teoria.

A seguir, é importante ressaltar a preocupação metodo­lógica. “Pesquisa metodológica” pode parecer algo ainda mais

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estranho, porque predomina a expectativa de que método se aprende, não se cria. Sobretudo em estatística, a atitude típica é a de estar diante de “pacote” que temos de engolir.

Primeiro, é constatação comum que todo cientista cria­tivo e produtivo marcou sua presença no mundo científico não só pela teoria e por vezes pela prática, mas também sempre pela discussão metodológica. Preocupa-se com mé­todo, porque é sinal de competência, no mínimo de bom nível. Marx, Escola de Frankfurt, Lévi-Strauss, Popper, todos sem exceção deixaram produções esserfCiais no campo do* método, pois é impossível criar análises inspiradas sem discutir o como fazer (Habermas 1981 e 1989). Teoria co­loca a discussão sobre concepções de realidade. Método colo­ca a discussão sobre concepções de ciência. Método é ins­trumento, caminho, procedimento, e por isso nunca vem antes da concepção de realidade. Para se colocar como captar, é mister ter-se idéia do que captar.

Ainda, também é constatação comum que metodologia científica é uma das matérias mais estratégicas na formação acadêmica, sobretudo na direção da motivação à pesquisa. Todo projeto sério de pesquisa contém em algum momento discussão do método, pelo menos no sentido barato de fases a serem seguidas, possíveis resultados colimados, autores que se pretende ler, interpretar, rebater, superar. A despreocu­pação metodológica coincide com baixo nível acadêmico, pois passa ao largo da discussão sobre modos de explicar, substi­tuindo-a por expectativas ingênuas de evidências prévias. Nada favorece mais o surgimento do discípulo “copiador” que a ignorância metodológica.

Terceiro, é preciso lembrar que a distinção entre ciência e outros saberes está no método, sobretudo. Enquanto estes são taxados de senso comum, postura acrítica, credulidade

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etc., por vezes sem razão, ciência é assumida como conheci­mento metódico, cuidadoso, testado, e se possível verdadeiro. Assim, é a metodologia que coloca mais propriamente a pretensão científica e seu domínio define na prática quem é ou não cientista.

Nesse sentido, pesquisa metodológica é um dos hori­zontes estratégicos da pesquisa como tal, que não se restringe a “decorar” estatística com seus testes áridos, mas alcança a capacidade de discutir criativamente caminhos alternativos para a ciência e mesmo de criá-los. Um exemplo recente é a pesquisa participante, que, além de recolocar a questão da teoria e da prática, apresenta invectiva forte na linha de refazer caminhos científicos, o que indica pesquisa em sen­tido estrito (Saul, 1988; Trivinos, 1987; Thiollent, 1986). São essenciais polêmicas metodológicas como a disputa entre positivismo e dialética ou em tomo da proposta de ciência social com base na comunidade comunicativa ideal (Haber- mas, 1989; Tempo Brasil, 1989; Rouanet, 1986; Siebeneich- ler, 1989; Demo, 1989).

Alguns tópicos da pesquisa metodológica poderiam ser:

a) discussão crítica das metodologias em uso: dialéticas, positivismos, estruturalismos, empirismos, sistemismos;

b) propostas de metodologias alternativas: pesquisa partici­pante, avaliação qualitativa, hermenêutica;

c) capacidade de aferir de uma teoria a concepção científica subjacente, garimpando nas linhas e nas entrelinhas a postura metodológica;

d) capacidade de detectar o fundo ideológico das produ­ções científicas, já que são condicionadas também so­cialmente, do que se pode inferir a concepção de ciência e de método;

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e) formação crítica e emancipatória de espaço científico próprio;

f) discussão do lugar da ciência na sociedade, que, como técnica, tem sido tática de lucro e opressão (Luedke & André, 1986; Haguette, 1987; Demo, 1987).

O mais interessante é o questionamento criativo, cons­tante e processual da própria ciência: seu lugar na sociedade, o que pode e não pode explicar, suas ideologias e mitos, ciência como mito moderno, para da insatisfação retirar energia alternativa. A ciência mais criativa é aquela que se questiona, quando adquire ares de sabedoria. Embora todos busquem a mesma verdade, o que cada qual encontra é uma concepção possível, com decorrente método de captação. Aí, a coisa mais verdadeira será que a verdade não está toda em ninguém. Na pesquisa metodológica a ciência demonstra sobretudo que não morreu (Abbagnano, 1989).

Por fim, outro horizonte da pesquisa é a prática, por mais que as ciências sociais, contraditoriamente, possam estranhar tal postura. Por caminhos surpreendentes, as ciências sociais — que tratam a práxis social histórica — tomaram- se ou produto tipicamente teórico, ou cópia teórica.

Advêm disso repercussões drásticas, que vão desde o descrédito crescente das ciências sociais, cada vez mais vistas como impotentes frente aos problemas que apenas estudam, até ao cúmulo de inventar “especialidades” sem qualquer de­monstração prática. E possível tomar-se “doutor em Edu­cação” sem nunca ter amealhado experiência concreta. Basta ler alguma coisa, confrontar o que se leu, discutir em teoria a teoria, propor possível nova síntese teórica.

Reproduz-se formidável indigestão teórica, de estilo imi- tativo, quase sempre na direção de filiações tacanhas a de­terminadas posturas, no que a falta de elaboração própria em

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termos teóricos e metodológicos se combina com a falta de confronto prático. É ironia: estuda-se na solidão da teoria a prática social coletiva, reintroduzindo um tipo diferente de “neutralidade”, tendo em vista a distância artificial cultivada.

Por essa porta artificial entra o fantasma da dicotomia entre saber e mudar, cuja correlação tende a ser inversa. De um lado, sabe-se muito mais do que se consegue mudar. De outro, no que se sabe, predominam estratégias de como não mudar. E temos o resultado sarcástico: as ciências sociais são sobretudo estratégia de controle e desmobilização social. Quanto mais se pintam de crítica radical, mais apenas “latem”, porque o sentido real é falar de mudança, para não mudar.

Todavia, não vale sacralizar a prática. Teoria e prática detêm a mesma relevância científica e constituem no fundo um todo só. Uma não substitui a outra e cada qual tem sua lógica própria. Nos extremos, os vícios do teoricismo e do ativismo causam os mesmos males. Não se pode realizar prática criativa sem retomo constante à teoria, bem como não se pode fecundar a teoria sem confronto com a prática.

A distância para com a prática é compreensível, sobre­tudo pelo temor do confronto, que condiciona mudanças na teoria. Na prática, a teoria é outra, e vice-versa. Se a dis­cussão crítica é cuidado providencial contra a petrificação das teorias, o confronto com a prática ainda é mais, porque é a prática que escancara a pequenez de toda construção teórica. Por isso, o que mais fomenta instabilidade teórica e obriga a buscar alternativas é o confronto prático.

A pesquisa participante é talvez a proposta mais osten­siva de valorização da prática como fonte de conhecimento, apesar de suas banalizações típicas. Propug.ia a eliminação da separação entre sujeito e objeto, tentando estabelecer relação dialogai de infkfência mútua, teórica e prática. Conhe­

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cimento adquire a dimensão de autoconhecimento, aparecendo logo a importância da formação da consciência crítica como passo primeiro de toda proposta emancipatória. Todo conhe­cimento advindo da prática necessita de elaboração teórica, mas não é menos verdadeira a postura contrária. E isto per­mitiria superar a dicotomia sarcástica entre saber & mudar.

A ideologia recebe tratamento mais adequado, porque, sendo parte integrante do processo científico em ciências sociais, o desafio será como controlar, não como suprimir. A melhor estratégia de controle será sempre enfrentar aber­tamente algo que de antemão não se tenta camuflar. Ideolo­gia aberta não faz mal, porque entra em cena como dis­cutível. Neste sentido, pode ser fator criativo e fecundante.

A pesquisa prática — que nunca pode ser bem-feita sem teoria, método e empiria — é modo salutar de pro­dução de conhecimento, que possui ainda a vantagem de puxar para o cotidiano a ciência. Pode resvalar facilmente para o senso comum, mas pode adquirir tonalidades muito criativas da sabedoria e do bom senso. Pesquisa prática não significa apenas a noção de aplicabilidade concreta, porque seria irônica uma teoria não-aplicável, mas sobretudo a prática como parte integrante do processo científico como tal. Con­seqüência disso será que prática deve ser estritamente cur­ricular, não fazendo sentido a noção truncada de estágio.

Pesquisa prática quer dizer “olhos abertos” para a reali­dade, tomando-a como mestra de nossas concepções. Quem é inteligente sempre aprende, porque está em atitude de pesquisa. Naturalmente muda de posição, no dinamismo natural de uma realidade variável e surpreendente. Ao con­trário da tendência teórica típica que “ensaca” a realidade na teoria, pesquisa prática busca o movimento contrário: colo­car realidade na teoria, obrigando a teoria a se adequar e

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nisto a se rever, mudar e mesmo se superar. Assim chega­mos a reconhecer que o critério mais pertinente, criativo, formal e politicamente, da cientificidade é a discutibilidade: somente o que é discutível, na teoria e na prática, pode ser aceito como científico. Apanha-se ciência, ao mesmo tempo, como expressão formal lógica, e como prática histórica na sociedade (Demo, 1988b e 1989; Habermas, 1989). Não há ciência sem pesquisa; sobretudo, não há criatividade científica sem pesquisa. Não há emancipação histórica criativa sem pesquisa, compreendida como diálogo crítico com a realida­de no seu dia-a-dia e como raiz política da constituição de espaço próprio, com projeto próprio de vida (Ladrière, 1978).

3. A pesquisa como descoberta e criação

Em metodologia científica, descobrir e criar não são a mesma coisa. Quando se fala de descobrir, tem-se em mente postura próxima das ciências naturais, de estilo nomotético, que as entende como esforço formal de tratamento da reali­dade, para descobrir leis da sua estrutura e funcionamento. O cientista nada cria, apenas detecta relações. A lei da gravi­dade, por exemplo, é descoberta formidável, mas não signi­fica intervenção na realidade ou criação de relações novas.

Na descoberta criou-se conhecimento novo, não realidade nova, embora a partir daí se possa inventar usos novos do conhecimento. O positivismo e o estruturalismo demarcam tal postura e, à sombra das ciências naturais, entendem ciência como descoberta das relações necessárias e dadas na reali­dade (Popper, 1959; Lévi-Strauss, 1967 e 1976).

Num exemplo aplicá^eh à história, a concepção de dia­lética estrutural-objetiva busca delinear nela leis “férreas” do

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seu desenvolvimento, pelo que a passagem do capitalismo para o socialismo se dá inexoravelmente, pela própria lei da sua dinâmica interna. Não são condições subjetivas que em­purram a história e fazem a revolução, mas condições obje­tivas, já vistas como típicas determinações. Ao cair uma pe­dra, não é imaginável que, de repente, “decidisse” não seguir a lei da gravidade.

No texto Contribuição Para a Crítica da Economia Política, considerado apenas nele mesmo, Marx desdobra esse tipo de concepção dialética, que Lévi-Strauss supõe como estruturalista a seu modo (Marx, 1973; Demo, 1989). Parte- se do ponto de vista de que a ciência tem como proposta, no quadro da neutralidade metodológica, descobrir estruturas dadas da realidade, que são formas não-históricas por defi­nição. Mesmo a consciência, que pareceria ligada à produção de conteúdos subjetivos, é algo estritamente objetivo para o estruturalismo, porque no inconsciente está a sua estrutura formal invariante, que aparece sobretudo sob o signo da ló­gica. É lógico, estritamente, aquilo que é formal-invariante.

Marx de certa forma alimentava, em momentos, a ex­pectativa de fazer da história uma ciência exata. No texto citado atribui significação pálida, muito secundária, a fatores subjetivos. A revolução do modo de produção se dá objetiva e necessariamente, como resultado inexorável do desen­volvimento das forças produtivas. Tomando-se em conta outros textos, é possível equilibrar tal concepção, sobretudo diante da importância da “luta de classes”, do papel do partido, da experiência histórica da Comuna de Paris. Como se fora gramática dada, esta não cria linguagem; apenas constata as relações necessárias dos seus termos. Descobrir a gramática de uma língua é algo sumamente criativo na linha do conhecimento sistematizado, não na linha da intervenção histórica na realidade (Moles, 1971; Bunge, 1974).

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Por outra, quando se fala de criar, temos proposta di­versa de ciência, desde os extremos hegelianos e similares que exageram o lugar das condições subjetivas, até o equilíbrio da dialética histórico-estrutural. Nunca se cria do nada, porque a história tem sempre antecedentes e conseqüen­tes, mas na fase nova pode predominar o novo, ao que se dá o nome de revolução. Qualquer dinâmica criativa não cria ao léu, porque a realidade histórica é pelo menos regu­larmente condicionada, ainda que não-determinada. O próprio fato simples de que ciência se dirige ao geral, não ao indi­vidual — de indivíduo non est scientia — já denota que, se existe conceito de revolução, é porque nesse fenômeno há estruturas que se repetem, ao lado da criação histórica. Caso contrário, seria algo irrepetível e por isso refratário à cap­tação científica.

A história vem concebida como, de um lado, condi­cionada por estruturas dadas, naturais e sociais, que jamais podem ser ignoradas, e, de outro lado, condicionada pela possível intervenção humana, que não precisa submeter-se passivamente às circunstâncias dadas ou encontradas. Assim como não se pode inventar revolução ao próprio talante, pode-se apressá-la, precipitá-la, retardá-la, de acordo com as condições de intervenção. Na revolução russa de 1917, talvez se pudesse aventar que se conseguiu precipitar a passagem histórica, tendo em vista que as condições objetivas — a passagem do capitalismo avançado, desenvolvido, para o so­cialismo — não estavam maduras ainda. As circunstâncias encontradas, contudo, foram favoráveis à intervenção de Lênin e do seu grupo, que acabaram impondo a cisão histórica mais pela via da manobra política do que pelo amadureci­mento objetivo do modo de produção. Este fato não deixou de ter conseqüências até^hõje, porque o surgimento apres­sado do socialismo queimou etapas, que a história posterior

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reclamou sempre, a saber, a necessária acumulação de capi­tal e a presença da grande produção como bases da su­peração da desigualdade. Para o socialismo é desafio im­próprio ter que acumular capital, pois deveria ter ocorrido no modo anterior de produção e, na prática, nunca se re­solveu a contento (Bahro, 1980; Gilly, 1985).

Sem aprofundar a disputa entre dialéticas “objetivantes” e “subjetivantes”, está claro que indicam concepções dife­rentes do caminho científico, mas no fundo ressaltam a mesma importância da pesquisa. Tanto em uma como em outra, pesquisar é condição essencial do descobrir e do criar. Isto, entretanto, é verdade com respeito à realidade como tal. Com respeito à produção científica, a disputa continua, caricatu­rada nos pólos antagônicos do positivismo e da dialética (Adomo/Horkheimer, 1986; Albert, 1977; Demo, 1989).

A concepção formalista de ciência distingue e separa sujeito do objeto e investe em metodologia objetiva como instrumentação de cerceamento da subjetividade. Diante do objeto, cabe ao sujeito proceder à análise, decompondo-o em partes, em atitude de observador externo. No fundo, trata-se de constatar estruturas dadas, com suas relações formais invariantes, sobre as quais é possível exarar leis. A pesquisa analítica descobre e, nisso, cria conhecimento novo. Mas nada deveria colocar no objeto, que adviesse do sujeito como intervenção política. Este modelo é copiado das ciências naturais, nas quais a ideologia poderia aparecer apenas no sujeito, não no objeto. Este é dado e cabe à ciência desven­dar a estrutura via análise (Demo, 1985a e 1988a).

Torna-se fatal a distinção entre ciência pura e aplicada, entre teoria e prática, por questão de métodó. Problema do cientista é somente saber, estudar, analisar, não intervir, mudar, questionar. O apelo à neutralidade científica é a fuga

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útil, para não ter que enfrentar a questão ideológica. Não se supera essa questão; apenas se ignora. O que não deixa de ser a pior maneira de controlar. Ideologia indesejável sempre é aquela que se dissimula para influenciar ainda mais, não aquela que aparece claramente na cena, porque nisto já respeita a condição primeira do controle possível e passa a integrar-se no repto da discutibilidade (Albert, 1977).

No outro lado, a concepção histórico-estrutural de ciência coloca o objeto construído como produto e processo científico típico, admitindo que ciência é também criação. É impor­tante discutir nesse quadro o relacionamento entre sujeito e objeto em ciências sociais, a começar pelo questionamento dos termos como tais: não há propriamente objeto, como é o caso em ciências naturais e que permite o distanciamento típico do analista observador.

De um lado, temos de assumir que as ciências sociais não são apenas questão de conhecimento, mas igualmente questão histórico-social. Elas mesmas refletem condicio­namento social e são no fundo também “problema social”. A noção de objeto construído adverte para este fato: ciência não é algo acima ou à margem da sociedade, mas compo­nente da própria sociedade em que se faz. O cientista não é ente desencarnado, mesmo quando se traveste de neutro, mas animal político sempre. A ciência tem sempre a marca do seu construtor, que nela não só retrata a realidade, mas igualmente a molda do seu ponto de vista.

De outro lado, aponta-se para a característica de uma realidade histórica dinâmica e complexa, que jamais cabe na cabeça do cientista integralmente. A ciência recorta a reali­dade, porque, não alcançando dominar o todo, avança por meio da estratégia aproxfihativa das relevâncias discemíveis. Em termos práticos, vê-se na realidade o que se imagina

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relevante, o que determina ato construtivo, pelo menos no sentido de que não se interpreta sem intervir. Na ciência deve estar a realidade, que é seu objetivo de captação, mas está sempre também a maneira própria do cientista de ver a realidade. E isso permite compreender os confrontos naturais de posturas contrárias, que constroem de modo diversificado a mesma realidade. É impossível compreender a teoria weberi- ana fora do contexto da prática ideológica histórica de Weber, e isto permite dizer que a teoria weberiana é uma cons­trução de Weber.

O termo construção pode ser exagerado, quando indica que o cientista passa a “inventar” a realidade, sobrepondo a ela a rigidez teórica ou o interesse ideológico. Este fenômeno não é raro e faz parte do negócio hermenêutico. Porque a realidade nunca é evidente, interpretar é preciso. Porque a comunicação nunca é unívoca, interpretar é inevitável. Já diz o povo: “Quem conta um cònto, aumenta um ponto”. Ou na expressão italiana do “tradutor, traidor”, porque é impossível apenas traduzir; em toda tradução há também interpretação.

Esta discussão pode mostrar o quanto a pesquisa é fun­damental para descobrir e criar. É o processo de pesquisa que, na descoberta, questionando o saber vigente, acerta relações novas no dado e estabelece conhecimento novo. E a pesquisa que, na criação, questionando a situação vigente, sugere, pede, força o surgimento de alternativas.

Pesquisa se define aqui sobretudo pela capacidade de questionamento, que não admite resultados definitivos, es­tabelecendo a provisoriedade metódica como fonte principal da renovação científica. Há por certo noções de ciência definitiva, mas que sempre se aproximam mais do dogma — que apenas mascara a incerteza fundamental da realidade histórica — do que de produtos finais. Mesmo no positivis-

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mo moderno, digamos em Popper e Albert, mas igualmente em Lévi-Strauss, o método nunca é colocado como inventor de produtos finais, até porque seria “mera invenção”. A “fal- sificabilidade” popperiana rejeita evidências últimas, vivendo, pelo menos no método, a certeza das explicações imper­feitas, pois em toda explicação há pressupostos inexplicados. No estruturalismo, embora manipulando formas invariantes da realidade no contexto formal típico das ciências naturais, sua captação é aproximativa, premida pelo modelo cada vez mais simples, mas nunca final e único.

A vantagem de posturas dialéticas está precisamente em colocar o questionamento não apenas no método, mas igual­mente na própria realidade, até porque a ideologia não aparece só no sujeito, mas na realidade como tal, por ser histórica e prática. Não somente o método é dialético, sobretudo a realidade é dialética na substância. Por isso nela mesma se elabora o contrário, que leva à superação histórica.

Para descobrir e criar é preciso primeiro questionar. Esta relação é tão forte, que aí reside o “perigo” para a ordem vigente. O cientista é figura fundamental para o domínio da realidade, sobretudo em termos tecnológicos, mas é essencial que não seja crítico, em termos políticos. Cientista útil é aquele, ao mesmo tempo, competente em termos formais, mas alienado politicamente. A insistência sobre neutralidade científica tem essa direção ideológica, porque instrumenta a postura distanciada, aparentemente relevante para a análise, mas principalmente cômoda em termos políticos.

Para tanto encerra-se a ciência na descoberta, reservando a criatividade apenas para o nível do conhecimento. A seguir separa-se teoria da prática, fazendo do cientista mero instru­mento tecnológico. Com isto a ideologia, sob a capa da neu­tralidade metódica, já penetrou todo o recinto da ciência e

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serve à ideologia dominante, o que faz da ciência tenden- cialmente produto conservador ou pelo menos útil à ideolo­gia conservadora, na figura do idiota especializado: compe­tente formalmente, tapado politicamente.

Na história, porém, a lógica que mais interessa não é a “lógica da descoberta”, como dizia Popper, mas a lógica da criação, da alternativa, da transformação, da esperança infi­nita. O questionamento não pode ser apenas ato isolado e esporádico, mas atitude processual que corresponde ao de­safio que toda sociedade coloca sobre a ciência. A sociedade vê no cientista e na universidade não somente próceres e lugares da descoberta de relações dadas e necessárias, mas principalmente a geração incansável e sempre renovada da criatividade histórica. Por mais que a universidade tenha frauda/do sistematicamente a esperança social, a sociedade continua esperando isso dela (Borda, 1985; Silva & Souza, 1984; Bachelard, 1986).

Pesquisa deve ser vista como processo social que per­passa toda vida acadêmica e penetra na medula do professor e do aluno. Sem ela, não há como falar de universidade, se a compreendermos como descoberta e criação. Somente para ensinar, não se faz necessária essa instituição e jamais se deveria atribuir esse nome a entidades que apenas oferecem aulas. Ainda que esse tipo de oferta possa existir em seu devido lugar, não pode ser misturada com aquela instituição que busca a sua principal razão de ser na pesquisa. Na ciência, o primeiro princípio é pesquisa.

4. A pesquisa como diálogo

Uma definição pertinente de pesquisa poderia ser: diálogo inteligente com a realidade, tomando-o como processo e ati-

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tude, e como integrante do cotidiano. De um lado, é mister desmitificar o conceito de diálogo:

a) não é algo sempre solene, coisa de cinema e teatro, ou algo ritual e especial como é a necessidade de comuni­cação entre professor e aluno;

b) não é expressão dos consensos, da intelecção fácil e mecânica; é sempre também confronto, se for comu­nicação entre atores com idéias próprias e posições con­trárias;

c) não se restringe a conversa, discurso, mas é sobretudo comunicação, com todos os seus riscos e desafios; não é apenas o fenômeno de indivíduos que se encontram e defrontam, mas a complexa comunicação de uma so­ciedade sempre desigual.

De outro lado, é mister fazer a aproximação devida en­tre pesquisar e dialogar. De certa maneira, se em ciências sociais não cabe propriamente a noção e a posição de ob­jeto, o relacionamento será de dois sujeitos, entre os quais cabe o diálogo como forma mais madura de convivência. Ao mesmo tempo, questionar inclui comunicar criticamente o próprio ponto de vista e receber criticamente o ponto de vista do outro.

Diálogo é fala contrária, entre atores que se encontram e se defrontam. Somente pessoas emancipadas podem de verdade dialogar, porque têm com que contribuir. Somente quem é criativo tem o que propor e contrapor. Um ser social emancipado nunca entra no diálogo para somente escutar e seguir, mas para demarcar espaço próprio, a partir do qual compreende o do outro e com ele se compõe ou se defronta.

O fenômeno do dialogo toca no complexo problema da comunicação social, cuja compreensão adequada dificilmente

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escaparia do contexto hermenêutico. Primeiro, se a comuni­cação fosse óbvia, não haveria necessidade de interpretação, e o diálogo seria apenas reprodução, como faz um alto- falante. Segundo, a ambiência comunicativa é de tal modo dialética, que no fundo tem a característica do mistério. Nunca temos certeza suficiente, se comunicamos bem e se fomos bem compreendidos.

Mas, ao lado disso, a comunicação tem a característica do ardil, porque é sempre mais fácil confundir, desentender, enganar. O sorriso irônico comunica, através do sorriso, o contrário. O humor negro comunica a tragédia como diversão. Há silêncios ensurdecedores, ausências gritantes, desapareci­mentos estratégicos. Enquanto, de um lado, a comunicação garante que é possível conviver, de outro abriga nela mesma a condição do desencontro. A comunicação pode, ao mesmo tempo, gerar e abafar a crítica, favorecer e suprimir o questionamento, motivar e desestimular o encontro.

Todavia, essa marca histórico-estrutural da comunicação não é diferente da realidade social, que também possui a característica do mistério e do ardil. Porquanto, não é so­mente algo estruturalmente dado, mas em parte feito, con­struído, conquistado. Onde entra o fator político, entra o ardil e, na sua complexidade extrema, esgueira o misterioso, de algo que somente pode ser preciso na imprecisão.

Uma realidade dessa tessitura não pode ser de todo do­minada, muito menos vilipendiada como mero objeto de manipulação. Diante dela cabe outra atitude: precisamente a de pesquisa, no respeito entre sujeitos que se defrontam, no desafio mútuo nunca totalmente devassável, na relevância do cuidado em termos de procedimento relacional, na possibili­dade de colaboração e desencontro.

Fundamental é essa compreensão, porque, de partida,

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supera a pesquisa como simples descoberta, que termina na análise teórica. Como diálogo, é necessária comunicação e a socialização do saber faz parte integrante da sua produção, sem falar na ligação estrutural e histórica entre teoria e prática. Se comunicação fosse mero discurso, não passaria de permuta de signos em contexto apenas formal. Entretanto, para além disso, comunicação é no âmago fenômeno político, de atores polarizados, competentes se emancipados.

Pesquisar, assim, é sempre também dialogar, no sentido específico de produzir conhecimento do outro para si, e de si para o outro, dentro de contexto comunicativo nunca de todo devassável e que sempre pode ir a pique. Pesquisa passa a ser, ao mesmo tempo, método de comunicação, pois é mister construir de modo conveniente a comunicação cabível e adequada, e conteúdo da comunicação, se for produtiva. Quem pesquisa tem o que comunicar. Quem não pesquisa apenas reproduz ou apenas escuta. Quem pesquisa é capaz de produzir instrumentos e procedimentos de comunicação. Quem não pesquisa assiste à comunicação dos outros.

Sendo a desigualdade social o ardil principal da so­ciedade, é também o maior desafio da comunicação. De um lado, somente seres sociais desiguais se comunicam propria­mente, porque criam a necessária polarização dialogai dia­lética. Seres iguais socialmente não criam relações novas, porque são de si contíguos e apenas permutantes. De outro, nada perturba, destrói, compromete tanto a comunicação como a desigualdade, pois somente seres iguais se comunicariam sem ruído. Aí estão o ardil e o mistério: comunicação sem ruído já não tem o que comunicar e não faz parte da história concreta; comunicação desigual tem, ao mesmo tempo, toda chance de criar e destruir. Esta é a história intranqiiila na sua estrutura e que sefftpfe clama por transformação, sem chegar ao porto seguro.

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Pesquisa assume contornos existenciais, porque encerra o desafio histórico-estrutural de compreender e enfrentar a desigualdade social, num processo que nunca termina. Pesquisa coincide com a vontade de viver, de sobreviver, de mudar, de transformar, de recomeçar. Pesquisar é demons­trar que não se perdeu o senso pela alternativa, que a espe­rança é sempre maior que qualquer fracasso, que é sempre possível reiniciar. No fundo, pesquisa passa a ser a maneira primeira de o ator político se colocar, se lançar, seja no tatear cuidadoso em ambiente desconhecido ou hostil, seja no medir as próprias forças diante de forças contrárias, seja na instrumentação estratégica da ocupação de espaço.

Com isso chegamos a um ponto fundamental desta dis­cussão, que é a visão da. pesquisa no contexto dos interes­ses sociais. O confronto histórico-estrutural de interesses é que perfaz o ambiente típico da comunicação e do diálogo. Estes tomam-se necessários e inevitáveis, não por harmo­nia funcional, mas por sobrevivência. Sem um mínimo de convivência, não há sociedade praticável, ou pelo menos suportável. Essa drasticidade dialética — que é inútil descrever como drama, pois é simples dialética do conflito— recoloca com força específica a importância da pesqui­sa, no sentido preciso do conhecimento estratégico para a defesa adequada dos interesses. A insegurança social dian­te de interesses periclitantes recomenda saber, conhecer, in­formar-se, tanto para não perder posições, quanto para con­quistar outras.

Muitas vezes destaca-se essa questão sob o ângulo da curiosidade, que estaria na base do espírito científico pes­quisador. Há algum conteúdo nisso, pelo menos como possí­vel motivação e embasa a dúvida metódica e mesmo es­tratégias didáticas de instigação da vontade de saber. Por curiosidade, muita gente lê muito, mete-se em discussões

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rsempre que pode, aprecia desvendar todos os detalhes, mantém-se bem-informada.

Entretanto, o móvel mais estrutural e histórico da pesquisa é sua raiz política, no contexto do diálogo interes­seiro. Aí a própria negação do diálogo é forma de comuni­cação, via confronto. Talvez o exemplo mais à mão, embora incômodo, sejam os sistemas de informação do tipo CIA, SNI, KGB. A informação garante poder. Para se chegar a ele, é mister pesquisar. Este exemplo é incômodo, mas não deixa de escancarar o ardil da comunicação, quando a pesquisa, a serviço do poder, pode informar para desinfor- mar, inventar “dados” para denegrir, conhecer para matar.

Outro exemplo é a pesquisa tecnológica, que adquiriu hoje o primeiro lugar como estratégia de acumulação de capital, superando já a fonte da mais-valia. O capitalismo perverso busca ainda o lucro através da depauperação do trabalhador. O capitalismo avançado, sem sair do contexto da mais-valia, descobriu que a maneira mais efetiva de fazer o capital crescer é a criação de conhecimento novo via tecnologia. Investem-se, então, fortunas na pesquisa tecno­lógica, que, com certeza, está menos a serviço do conheci­mento científico, do que a serviço dos interesses dominan­tes. É neste sentido preciso que a ciência é também fenômeno social, não apenas epistemológico, pois sua formação e progresso são marcados por interesses sociais.

Talvez estranhe colocar essa crueza histórica no con­texto da pesquisa como diálogo. Mas, em nome da comuni­cação dialética, não vale mascarar a desigualdade social, re­produzindo do diálogo uma concepção funcionalista. Não faz sentido imaginar a pesquisa sempre como boa intenção, fraternidade exuberantef^põrque é lenda. Ao ressaltarmos a raiz política da pesquisa, não decorre somente a sua chance

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histórica de comunicação construtiva, mas igualmente a potencialidade de manipulação social.

Quer dizer, não podemos transformar pesquisa em ardil. Por coerência, valorizar a pesquisa é em primeiro lugar questioná-la. Não é assim que pode tudo, ou nada. De partida, não cabe afirmar que o conhecimento em si já é transforma­dor, porque a geração da consciência critica não é automática, mas conquista política típica. O conhecimento pode dirigir- se à transformação, como pode ser estratégia para não trans­formar. Pesquisa não é só a da paz; mais insistentemente é a da guerra. Aí cabe o questionamento, contra o ardil.

Em seguida, cabe afirmar que, como princípio científico, a pesquisa instrumenta qualquer interesse político, princi­palmente quando se pinta de neutra. Colocar pesquisa como diálogo transformador é processo político de conquista, de construção, de criação, que depende da qualidade política dos pesquisadores, no contexto da respectiva sociedade.

Dito isso, podemos valorizar à vontade pesquisa como diálogo, na esperança social de que, através dela, se possa motivar o surgimento de alternativas sociais mais aceitáveis. Aí aparecem sobretudo dois componentes fundamentais da discussão:

a) pesquisa como princípio científico e educativo faz parte integrante de todo processo emancipatório, no qual se constrói o sujeito histórico auto-suficiente, crítico e auto- crítico, participante, capaz de reagir contra a situação de objeto e de não cultivar os outros como objeto;

b) pesquisa como diálogo é processo cotidiano, integrante do ritmo da vida, produto e motivo de interesses sociais em confronto, base da aprendizagem que não se restrinja a mera reprodução; na acepção mais simples, pode

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significar conhecer, saber, informar-se para sobreviver, para enfrentar a vida de modo consciente.

É possível alargar ainda mais a desmitificação do con­ceito estereotipado de pesquisa, tendo em vista que aparece naturalmente — porque necessariamente — na formação histórica do sujeito social competente. Essa competência deve ser formal (domínio científico-tecnológico) e política (cons­trução da cidadania), onde dialogar crítica e produtivamente com a sociedade e com a realidade é a própria demonstração da competência e da cidadania. Assim como “boa educação” não é monopólio de quem estudou muito, a capacidade de questionar criativamente a realidade não é marca exclusiva de cientistas (Carraher, 1983; Carraher et al., 1988).

De certa maneira, pesquisa se confunde com a filosofia, em seu sentido original: apreço pela sabedoria, tanto em sua modéstia que sabe antes de mais nada que pouco sabe, como em sua exuberância que a tudo questiona, inclusive a si mesma (Abbagnano, 1989). Também no índio que busca resposta a inquietações que o perturbam e faz o mito, ou no caboclo que tenta explicar seus êxitos e fracassos e faz o saber popular, há lastro possível de pesquisa, quer na atitude de questionamento e dúvida, quer na adequação entre teoria e prática, quer na busca de inventividade diante dos de­safios, quer no desdobramento de passos dedutivos e indu­tivos. Sem fetichizar mitos e saberes populares, parece claro que no trajeto de formação das identidades culturais, a par de processos reprodutivos insistentes, há também momentos de criatividade originados da aprendizagem via pesquisa.

Nesse sentido, o que faz da aprendizagem algo criativo é a pesquisa, porque a submete ao teste, à dúvida, ao de­safio, desfazendo tendência Tneramente reprodutiva. Aprender, além de necessário sobretudo como expediente de acumu-

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lação de informação, tem seu lado digno de atitude constru­tiva e produtiva, sempre que expressar descoberta e criação de conhecimento, pelo menos a digestão pessoal do que se transmite. Ensinar e aprender se dignificam na pesquisa, que reduz e/ou elimina a marca imitativa.

Uma coisa é aprender pela imitação, outra pela pesquisa. Pesquisar não é somente produzir conhecimento, é sobretudo aprender em sentido criativo. É possível aprender escutando aulas, tomando nota, mas aprende-se de verdade quando se parte para a elaboração própria, motivando o surgimento do pesquisador, que aprende construindo (Franchi, 1988).

E isso não redunda apenas em competência técnica e científica; funda também um passo essencial no processo emancipatório. Dialogar com a realidade talvez seja a de­finição mais apropriada de pesquisa, porque a apanha como princípio científico e educativo. Quem sabe dialogar com a realidade de modo crítico e criativo faz da pesquisa con­dição de vida, progresso e cidadania. Não faz sentido dizer que o pesquisador surge na pós-graduação, quando, pela primeira vez na vida, dialoga com a realidade e escreve trabalho científico. Se a nossa proposta for correta ou pelo menos aceitável, a pesquisa começa na infância e está em toda a vida social. Educação criativa começa na e vive da pesquisa, desde o primeiro dia de vida da criança.

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IIA pesquisa

como princípio científico

Nesta parte aplicamos ao processo de formação aca­dêmica na universidade a visão de pesquisa, ressaltando sua face de princípio científico. A par da crítica contra a marca atual desse processo medíocre e imitativo, decepcionante para o professor e sobretudo para o aluno, é mister sugerir caminhos alternativos, ainda que preliminares. Não se trata de imitar padrões externos de universidade, mas é possível deles aprender, desde que não se faça cópia subalterna.

A atual instituição universitária está em decomposição histórica, seja porque se mantém medieval, sobretudo em termos de impunidade social, distanciamento elitista e atraso didático, seja porque perdeu a noção essencial de mérito acadêmico em troca da burocratização funcional, seja porque é muito pouco produtiva e criativa, custando muito além do que vale para a sociedade que a sustenta. Todavia, repre­senta instituição necessária na sociedade, quando menos para cultivar elites intelectuais e tecnológicas, que não se saberia dispensar, tanto para o processo produtivo, quanto para o processo político, além de técnico em geral. Neste sentido, se virar cinzas, terá que delas ressurgir. Mesmo sendo uma das instituições mais conservadoras, tão falastrona quanto inepta em termos de nrftidanças sociais relevantes, terá de recuperar o brilho histórico da vanguarda criativa, em ter-

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mos de competência e mérito. Não desaparece, mas apo­drece, para ressurgir.

Cremos que visão alternativa de pesquisa seria fermento apto a recolocar a universidade no caminho das esperanças sociais nela depositadas, o que exige criatividade, intenso diálogo com a realidade, disciplina e compromisso histórico produtivo. O mínimo que se exige de instituição que se quer inventiva e alternativa é que saiba apresentar e realizar propostas coerentes, no que tem falhado absurdamente. Nossa atenção estará voltada para a pesquisa como princípio científico, sem unilateralizar a visão formal da pesquisa. A pesquisa como princípio educativo estará sempre presente, mesmo que seja na contra-luz.

1. A questão curricular

Tomemos aqui, de partida, currículo na noção corrente de proposta de ensino/aprendizagem, na qual se define, grosso modo, o que e como estudar. Na grade curricular aparecem as matérias ordenadas dentro de algum princípio didático e de certa concatenação entre elas. Cumprido esse trajeto, chega-se ao diploma e considera-se o aluno detentor de nível superior. Quanto ao professor é preciso que, no decorrer dos semestres, ministre as respectivas aulas e proceda à avaliação da aprendizagem.

Embora façamos aqui visível caricatura, ela pode clari­ficar a vigência estereotipada do mero ensinar, ao lado do mero aprender. Sem ressaltar no momento o lado da pesqui­sa como princípio educativo, bastaria trazer à cena a pesquisa como princípio científico, para demarcar o absurdo que é o mero ensinar e o mero aprender.

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Do lado do professor temos a visão empobrecida do ministrador de aulas, ainda em grande parte pessoas que detêm apenas graduação, sem experiência comprovada no campo científico. Fruto do mero aprender, naturalmente decaem no mero ensinar. Esta caricatura se adensa mais ainda no professor biscateiro, marcado por condições negativas de toda ordem:

a) em seu campo de graduação é chamado a dar qualquer matéria, como se possuísse versatilidade perfeita, não faltando casos em que é chamado a desbordar o seu campo: há administradores que ensinam economia, ad­vogados que ensinam sociologia, educadores que ensi­nam filosofia;

b) entende-se como simples repassador de conhecimento alheio, que um dia estudou e aprendeu e, em decor­rência, imagina poder transmitir aos outros, de cópia em cópia;

c) embora possa sempre existir a “picaretagem”, predomina a luta pela sobrevivência, que não deixa sequer tempo para pensar em qualidade formal e mérito acadêmico conquistado.

Essas marcas expressam a impropriedade flagrante da função de professor, banalizada na condição de repassador barato de conhecimento alheio. Deixando de lado aquilo de que ele não tem “culpa”, essa figura não ultrapassa o pata­mar de “instrutor”, porque não intemaliza os conteúdos principais do conceito de pesquisa como princípio científico. Não detém qualidade formal mínima, no sentido de ter aprendido bem a sua matéria, até porque, pela via da aprendi­zagem imitativa, não é viável qualidade formal satisfatória. Não é difícil, por exemplo, encontrar professor de matemática no 2- grau que sabe muito pouco de matemálca, além de

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estar desatualizado. Como não é difícil encontrar professor de metodologia na universidade que mal consegue mostrar intelecção satisfatória dos textos que se está lendo e repas­sando. Fez graduação escutando um “instrutor”, copiando fichas e anotações de aula, “colando” provas, jamais tentou construir elaboração própria, nem isto lhe foi exigido; tem de ciência a noção de algo que não faz parte do seu mundo profissional e cotidiano. A falta de conteúdo, resta apenas a forma, como casca externa frágil e estranha: professor é aquela Figura que, tendo graduação, é contratada para dar aulas. Pior que isso, há instituições de ensino superior que assim se definem: apenas dão aula e têm como professor típico esse biscateiro instrutor.

A noção de professor precisa ser totalmente revista, sem recair em preciosismos importados de fora. O conceito desmitificado de pesquisa admite considerar pesquisador também quem tem apenas graduação, até porque pesquisa — bem compreendida — é possível e necessária já no pré- escolar. Assim, vale perguntar: o que é professor?

a) em primeiro lugar, é pesquisador, nos sentidos releva­dos: capacidade de diálogo com a realidade, orientado a descobrir e a criar, elaborador da ciência, firme em teoria, método, empiria e prática;

b) é, a seguir, socializador de conhecimentos, desde que tenha bagagem própria, despertando no aluno a mesma noção de pesquisa;

c) é, por fim, quem, a partir de proposta de emancipação que concebe e realiza em si mesmo, torna-se capaz de motivar o novo pesquisador no aluno, evitando de todos os modos reduzi-lo a discípulo subalterno.

Parece exigência excessiva essa definição de professor. Mas, se recolocarmos a possível cotidianização da pesquisa,

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não se trata de genialidade esotérica, nem de píncaros ex­cepcionais, mas da atitude fundamental de participação construtiva, pelo menos ao nível da digestão própria, que aparece na capacidade de elaboração pessoal.

Por exemplo, quem dá aula de introdução à educação faz isso porque é capaz de escrever — pelo menos de reescrever à sua maneira — o que seria introdução à edu­cação. Não é aceitável que alguém se considere professor de introdução à educação, porque, tendo graduação em educação, já leu um livro de introdução e, em seguida, conta para os alunos o que leu. Aí não se saiu da imitação, da cópia, da simples reprodução, que vai imprimir a mesma atitude re­ceptiva nos alunos.

No extremo, é impossível ser professor “de qualquer coisa”, até porque sequer seria viável ser monitor, entendendo- se por monitor alguém que, não tendo necessariamente domínio da matéria, se apresenta como instrutor útil even­tual. Esta postura permite afirmar que somente tem algo a ensinar quem pesquisa. Os alunos não podem bastar-se com a formalidade vazia de alguém que é professor apenas porque foi contratado e investido na autoridade formal, mas neces­sitam de um autêntico mestre, compreendido como professor que tem o que dizer a partir da elaboração própria.

Essa exigência pode recair na “idiotice especializada”, quando a especialização resvala para o encerramento em de­talhes que fazem perder a noção do todo, dificultando o diálogo com a realidade. Voltando ao exemplo, um professor competente de educação pode aceitar o desafio de dar aula de introdução à educação, mas não deixaria jamais de colo­car nesse prato a sua própria pimenta, recolhida da sua ex­periência prática como^dlicador, reelaborada a partir do conhecimento crítico de muitas introduções escritas por vários

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autores. No mínimo, deve aparecer síntese própria, que começa pelo cotejo crítico dos autores.

Mas parece claro que o professor mais adequado de introdução à educação seria aquele que tem produção pró­pria nessa matéria, em particular quem faz elaborações próprias, porque, além de dispor de bagagem pessoal, é ca­paz de comparar as várias maneiras de conceber a maté­ria, de imprimir forte dose de espírito crítico e autocrítico, de formular o ambiente propício ao diálogo criativo com todas as correntes, de fomentar a produção constante de ar­gumentos alternativos na área. Este já poderia imbuir-se da condição de mestre, que se alimenta principalmente da pesquisa.

Em termos muito simplificados, pode-se dizer que, no plano da teoria, é mister exigir capacidade própria de ela­boração, e, no plano da prática, capacidade de recriar teo­ria e de unir saber & mudar. A exigência de elaboração criativa não deve ser estereotipada em vezos sofisticados ex­cepcionais. No contexto do questionamento inquieto diante da realidade, já temos aí o início fecundo da criatividade, possível mesmo num analfabeto, que, embora não conseguindo produzir ciência, é capaz de criar alguma sabedoria e muito bom senso.

Ainda é importante repisar a necessidade de atualização constante, que faz parte da pesquisa como questionamento cotidiano, com vistas a evitar o instrutor que passa uma vida toda dizendo sempre a mesma coisa, à revelia do progresso científico, o que significa precariedade dupla: apenas copiar, e surrar a cópia. A universidade está marcada fortemente por essa dupla precariedade, o que lhe transmite imagem insistente de conservadorismo: por não estar fecundada pela pesquisa, predomina a engrenagem burocrática respectiva, da

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qUal faz parte o professor-papagaio, que sempre diz a mesma c0isa e já sequer sabe o que diz.

Por outra, ainda que se deva cotidianizar a pesquisa, há um mínimo de exigência qualitativa que se defronta com misérias típicas da nossa sociedade, sobretudo com o amesquinhamento profissional e salarial. Basta colocar a necessidade de elaboração própria, para tomar-se impres­cindível o acesso a livros, tempo para discutir e escrever, condição econômica de auto-sustentação razoável. Demons­tração ostensiva dessa precariedade é o ensino notumo, que representa necessidade e banalização, ao mesmo tempo. De um lado, sem ele, grande parte da população não teria qualquer acesso, porque, antes de estudar, precisa trabalhar para sobreviver. De outro, estudar à noite significa acomo­dar exigências às condições concretas, coibindo aprovei­tamento desejável e que somente é factível nos casos de dedicação integral.

Sem chorar mágoas do subdesenvolvimento, é preciso saber encontrar equilíbrio aceitável entre a condição favore­cida e desigual dos que podem dedicar-se ao estudo integral, e aquela da maioria que vai estudar depois do trabalho. Aí é fundamental a noção cotidianizada de pesquisa: pode ba­nalizar-se, mas pode ainda ser muito aceitável, se se con­seguir ambiente propício à formação do diálogo crítico com a realidade, do questionamento processual como atitude científica básica, da insistência na elaboração própria, pelo menos da digestão pessoal. Talvez fosse o caso prolongar o tempo de estudo para o ensino notumo, por mais que seja outra carga desigual.

O importante é compreender que sem pesquisa não há ensino. A ausência de pesquisa degrada o ensino a patamares típicos da reprodução imitativa. Entretanto, isto não pode

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levar ao extremo oposto, do professor que se quer apenas pesquisador, isolando-se no espaço da produção científica. Por vezes, há professores que se afastam do ensino, por estratégia, ou seja, porque do contrário não há tempo para pesquisa. Outros, porém, induzem à formação de uma casta, que passa a ver no ensino algo secundário e menor.

Se a pesquisa é a razão do ensino, vale o reverso: o ensino é a razão da pesquisa, se não quisermos alimentar a ciência como prepotência a serviço de interesses particulares. Transmitir conhecimento deve fazer parte do mesmo ato de pesquisa, seja sob a ótica de dar aulas, seja como sociali­zação do saber, seja como divulgação socialmente relevante.

Em termos ideais, podemos colocar para o professor exigências tais como:

a) a primeira será a exigência de pesquisa;

b) deve possuir domínio teórico, para ser capaz de discu­tir alternativas explicativas da realidade, e de elaboração teórica própria;

c) deve possuir habilidade de manuseio de dados empíri­cos, para dispor desse expediente de contraste com a realidade;

d) deve possuir versatilidade metodológica, como instru­mentação essencial para discutir ciência, preferir e cons­truir versão própria;

e) deve possuir experiência prática, chamando à cena também a questão da sua cidadania (qualidade política), como sujeito social, para quem nada é neutro, muito menos ciência;

f) deve ser capaz de descobrir relações dadas na realidade, bem como de criar espaços alternativos de compreensão e intervenção;

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g) deve ser capaz de estabelecer atitude de diálogo com a realidade, alimentando processos emancipatórios na sociedade através do questionamento produtivo na teo­ria e na prática, atingindo a pesquisa como principio educativo também;

h) precisa ser construtor de conhecimento novo e agente de mudança na sociedade.

Na carteira está sentado o aluno. Quem é ele?

Em grande parte acostumado à “decoreba”, à prova e à “cola” no trajeto dos graus anteriores de ensino, chega à universidade com expectativas similares. Em concreto, vem aprender, e isto significa escutar, copiar, reproduzir e fazer prova. Típica posição de domesticado, na condição de objeto paciente diante do instrutor. O currículo lhe apresenta ti­rocínio ao longo dos semestres, que ele precisa “absorver”. O aluno é “estudante”, resumido no discípulo que indigere pacotes instrutivos.

Vê-se que a miséria do professor é a mesma do aluno, o qual será, em seguida, o professor, dentro da mesma en­grenagem reprodutiva. A maioria dos professores se espan­taria ao extremo se colocássemos a pesquisa como primeiro desafio do aluno, porque se considera o aluno como inepto para tanto. Na verdade, essa inépcia é do professor, que, não sendo pesquisador, não teria como dar o que não tem. Em vista disso, a didática típica é o rito arcaico da aula discursiva, forjada na relação depredada e enferrujada entre alguém formalmente investido da função de ensinar e um auditório cativo, que deve apenas ouvir e copiar. O mínimo que se poderia dizer é que, para transmitir conhecimento alheio, se esta é a função, aula já não é o instrumento mais produtivo, desde muito tertTpo, pelo menos desde a invenção dos modernos meios de comunicação. Está fora de dúvida

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que expedientes de áudio e vídeo podem transmitir muito melhor.

O primeiro disparate dessa relação degradante é o seu aspecto diretivo-autoritário. Embora, em última instância, o currículo só possa ser decidido pelo professor, não cabe jamais reduzir a cabeça do aluno à pequenez da cabeça de um instrutor. Este passa a demarcar o que o aluno deve ler, inclusive e de preferência algumas páginas de um livro, e sobretudo restringe a matéria ensinada àquilo que é transmi­tido em aula. Muitas vezes é proibido fazer perguntas, fechan­do-se o ensino em certas apostilas, que não passam de simplificação barata e deturpante da ciência.

E mister, pois, discutir o que é aula. Aula é momento de preleção discursiva, que tem seu lugar adequado, mas que jamais pode ser expediente didático predominante, muito menos exclusivo. O protótipo da aula é a conferência, na qual um professor — na base da sua competência respeitável— expõe seus resultados e pontos de vista, sendo correspon­dido no outro lado por uma platéia interessada. Esse inte­resse pode conjunturalmente restringir-se à situação de querer apenas escutar, ver a figura do professor, sentir a sua tendência. É claro que vale a pena escutar um bom profes­sor, porque já não se trata de ser obrigado a ouvir um re- passador barato de conhecimentos alheios, mas de ter a ocasião de ver o que um criador de ciência continua a criar.

Disso se depreende que é total disparate resumir o ensino à aula, porque corresponde a reduzir a aprendizagem ao escutar passivamente. Dito de outra maneira, a função da aula é sobretudo a motivação da pesquisa, no sentido de chamar a atenção para a riqueza da discussão, para cami­nhos alternativos de tratamento do tema, para apresentar a maneira própria do professor de compreender a questão. Em

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seguida vem o principal: motivar o aluno a pesquisar, no sentido de fazer o seu próprio questionamento, para poder chegar à elaboração própria.

Essa posição é muitas vezes confundida com seminário, entendido como mesa-redonda, na qual todos discutem jun­tos. Certamente já temos aí um avanço notável, até para retirar a monotonia de aulas discursivas e repetitivas. To­davia, ainda não saímos da propedêutica ou da ante-sala da ciência. Para entrar na sala, mister se faz elaborar ciência. Se isso não acontecer, a idéia de pesquisa está apenas esbo­çada, mas não efetivada.

Para motivarmos o elaborador científico, pelo menos a nível teórico, são necessárias condições didáticas, tais como:

a) indução do contato pessoal do aluno com as teorias, através da leitura, levando a interpretação própria;

b) manuseio de produtos científicos e teorias, em biblio­teca adequada e banco de dados;

c) transmissão de alguns ritos formais do trabalho científico (como citar; como estruturar o corpo, com começo, meio e fim; como ordenar dados);

d) destaque da preocupação metodológica, no sentido de enfrentar ciência em seus vários caminhos de realização histórica e epistemológica, induzindo a que o aluno formule posição própria fundamentada;

e) a partir disso, cobrança de elaboração própria, de início um tanto reprodutiva, mera síntese, mas que, aos poucos, se torna capacidade de criar.

No fim das contas, o aluno não pode apenas escutar; tem que produzir, o que £*ige investir em tal competência. Ir às aulas é expediente apenas instrumental, no fundo sem­

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pre secundário, que não substitui nunca o tempo investido em produzir. Aqui está um disparate monumental, quando a vida acadêmica se restringe à aula. Todavia, o maior problema não é o aluno que apenas aprende, mas o professor que apenas ensina.

Em certos lugares, a elaboração aparece, em momentos, como desafio de fazer em casa algum trabalho que exige reflexão e leitura, como trabalho de grupo seguido de alguma elaboração, e sobretudo como trabalho de fim de curso. Tudo isso já é importante demais, mas a pesquisa continua apare­cendo conjunturalmente, enquanto deveria ser a própria es­trutura curricular. O aluno leva para a vida não o que decora, mas o que cria por si mesmo. Somente isto tem condições de fazer parte da atitude do aluno, enquanto que o resto se engole como pacote e se expele como estranho.

É preciso insistir que tal postura redefine a função do professor e a função do aluno. O professor é sobretudo motivador, alguém a serviço da emancipação do aluno, nunca é a medida do que o aluno deve estudar. O aluno é a nova geração do professor, o futuro mestre, não o lacaio que precisa de cabresto. Em vez do pacote didático e curricular como medida do ensino e da aprendizagem, é preciso criar condições de criatividade, via pesquisa, para construir so­luções, principalmente diante de problemas novos. A única coisa que vale a pena aprender é a criar, o que já muda a noção de aprender. O professor que apenas ensina imbeciliza o aluno. Nunca foi deveras professor.

2. A questão da teoria & prática

Em ciências sociais, parece-nos claro que a prática deve ser estritamente curricular, não somente a teoria. Não serve

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0 estágio como sucedâneo. Nem a teoria é maior, nem a prática. Entretanto, a universidade é capaz de produzir um “professor” de ensino básico que nunca pisou numa sala de aula ou que nunca deu uma aula. Ou um economista que sabe discursar sobre teorias econômicas, mas não tem idéia de como usar na prática tais conhecimentos. Ou um sociólo­go que discute animadamente sobre mais-valia e explora­ção do trabalhador, mas nunca viu de perto um sindicato ou uma greve.

Uma das coisas mais ridículas em ciências sociais é a teoria sem prática, ou a teoria como prática. Sem perqui- rir a fundo razões históricas que levaram a se distanciarem da prática, a ponto de se tornarem tipicamente estudos teó­ricos, não escapamos de reconhecer que a aprendizagem delas é marcadamente uma indigestão teórica, que frutifica facilmente em:

a) exacerbação ideológica, no sentido de confundir adesão com argumento, condenação com análise, partidarismo com orientação metodológica;

b) cultivo de um só tipo de leitura, aquela da “igrejinha” e que a todos salva;

c) confusão entre questionamento e especulações elucu- brativas, que nem começam, nem acabam, reproduzindo o “especialista em generalidades”, perdido no próprio emaranhado conceituai;

d) fomento da farsa comum de posturas teoricamente avançadas, mas conservadoras na prática;

e) criação do artificialismo elitista do teórico incurável, que vive no mundo da Lua, definindo para os outros o que é realidade.

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Encarnam essa caricatura, hoje, sobretudo, economistas e sociólogos, entre outros, que, não por acaso, é difícil definir na prática para que servem. No lado dos sociólogos, quanto mais discutem pobreza, menos têm a ver com ela. No lado dos economistas, quanto mais discutem inflação e cresci­mento, menos se mostram capazes de cooperar. Estão desgas­tados, até as raias do sarcasmo, os planejamentos econômi­cos e sociais, as políticas sociais, as políticas de desen­volvimento, “choques e pacotes”, tendo-se cada vez mais a impressão de que estão brincando com a realidade, enquanto esta lhes escapa.

O óbvio aos olhos da sabedoria popular, ou seja: que as ciências sociais se fazem para a construção de sociedades pelo menos mais toleráveis, na academia é questão espúria, pois só interessa estudar, analisar, sistematizar e discursar. Compor saber & mudar é algo extremamente difícil de se alcançar, em que pesem toneladas de conversa fiada a res­peito. É próprio do teoricismo falar muito de mudança, para coibi-la ou retardá-la.

É complexo acertar meio termo entre o “especialista em generalidades” e o “idiota especializado”. Formação adequada— estereotipando — é feita metade de formação geral, através da qual se instrumenta a pessoa para criar soluções sobretudo diante de problemas novos, e metade de especialização, através da qual se busca dominar certo ramo do conhecimento e da prática.

Preocupa que as ciências sociais, muitas delas de ber­ço filosófico e crítico, insistam no especialista em gene­ralidades, produzindo o cientista apenas bom de discussão crítica. Se chamado a traduzir no concreto o seu conhe­cimento, pode apresentar-se totalmente tolhido, em termos operacionais. E por demais comum, por exemplo, que um

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economista especializado em inflação jamais tenha enfren­tado a prática desafiante de propor um plano contra a infla­ção e de executá-lo. Como também é comum que um edu­cador versado em teoria crítica da educação construa ques­tionamentos brilhantes da prática educativa na escola, sem jamais ter pisado lá ou sem sentir-se capaz de enfrentar no concreto a vida de um colégio.

Todavia, existe também o idiota especializado, mais facilmente encontrado em especializações “micros”, como o economista que reduz economia a técnica de manuseio em­presarial, ou o sociólogo que reduz sociologia às suas apli­cações estatísticas para levantamentos empíricos. Nestes ca­sos emerge já uma aproximação excessiva da aplicação dos conhecimentos, na linha do ativismo. Abandona-se a teoria, supondo ingenuamente que “saber fazer” não passe pela teo­ria. É caminho rápido para degradar as ciências sociais ao nível de técnicas utilitárias imediatistas: fazer economia para ganhar dinheircf nas empresas; fazer sociologia para ganhar dinheiro com pesquisa empírica.

Por um lado, a prática não se restringe à aplicação concreta dos conhecimentos teóricos, por mais que isto seja parte integrante. Prática, como teoria, perfaz um todo, e como tal está na teoria, antes e depois. Sobretudo, prática não aparece apenas como demonstração técnica do domínio conceituai, mas como modo de vida em sociedade a partir do cientista. Em termos de qualidade formal e política, uma não pode ser isolada da outra, tendo como locus mais próprio a prática histórica como cientista.

Por outro lado, é fundamental defender a necessitação mútua de teoria & prática, na maior profundidade possível de ambas, porquanto nadff € mais essencial para uma teoria do que a respectiva prática e vice-versa. Donde se conclui:

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a) em ciências sociais não cabe a noção de estágio, porque é mera concessão à necessidade de prática;

b) em princípio, à carga teórica deve corresponder a mes­ma carga prática, em vaivém de mútua fecundação, embora durante os semestres se possa graduar mais uma ou outra, conforme os momentos e as etapas;

c) a prática é algo necessariamente curricular, que faz parte intrínseca da formação do cientista social, no sentido explícito de que estudar a realidade e confrontar-se com ela é precisamente a mesma coisa;

d) é preciso organizar curricularmente a prática, para que o cientista formado não veja dicotomia ou distancia­mento entre saber & mudar.✓E mister superar ironias do nosso destino, como a de

jogar no mercado um “professor” que não sabe dar aulas, um advogado que nunca conduziu um processo judicial, um contador que nunca fez as contas de uma empresa. Mais fundamental que a aplicabilidade científica é a conjugação necessária entre teoria & prática, que aparece com força no reconhecimento de que fazer ciências sociais é prática his­tórica socialmente marcada. Não se estuda só para saber; estuda-se também para atuar. Como somos de qualquer maneira atores sociais — no ambiente político, abster-se também é atuar — a prática pode ser camuflada, escondi­da, mas jamais suprimida. E preferível, pois, assumi-la cons­cientemente.

Tomando o exemplo da formação de educador, caberia, de partida, colocar que, em seu currículo, deve aparecer tempo inicial de preparação propedêutica, de carga mais teórica, digamos, forte dose de estudo da metodologia científica e da teoria referencial, como fundamentos da formação geral

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oflium a todo educador e como ferramenta para elaboração rópria- Deve saber discutir ciência e seus caminhos de

construção, para atingir a condição de elaborador de ciência, peve instrumentar-se da teoria, para conhecer a fundo janeiras de conceber a realidade, produções alternativas e conflitantes, para amadurecer posições via elaboração própria. Neste período cabe forma inicial de prática, que fomente confronto com a realidade educacional, sistemas público e privado, problemas, estrutura e funcionamento.

A seguir aparece o sentido da especialização, com dose crescente de prática. Se fosse o caso planejamento educa­cional, exige-se que toda proposta teórica seja confrontada com práticas, em vaivém de mútua fecundação. Espaços de aplicação precisam ser freqüentados e fungidos, como órgãos de gestão educacional, escolas, departamentos, bem como é preciso realizar chances de planejamento alternativo, para que o planejamento educacional se tome modo de vida na atua­ção social cotidiana e profissional.

Avançando no tempo, deve aparecer com total clareza a capacidade de construção do planejamento educacional pelas próprias mãos, no equilíbrio entre boa teoria e boa prática. A prática passa a ser preocupação maior, aproximada sempre da capacidade de enfrentar problemas concretos e de apre­sentar soluções criativas. No final das contas, esse planejador educacional não se restringe a discussões por vezes interes­santes em torno de temas genéricos, mas sobretudo “sabe fazer” planejamento educacional, o que inclui:

a) diagnósticos da educação, com algum domínio de ins­trumentação estatística e mensuração;

b) projeções de o f e r ta i demanda, adequação de gastos, previsões e avaliações, de teor quantitativo;

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c) quadros de referência teórica sobre políticas educacio­nais, que permitam comparações e confrontos, delinea­mento de alternativas históricas, rejeição de práticas contraditórias e obsoletas;

d) construção de planos educacionais, com começo, meio e fim: teoricamente fundados e operacionalizáveis na prática;

e ) propostas de avaliação e acompanhamento, que respeitem dimensões quantitativas e qualitativas da realidade e que saibam colocar limites e potencialidades de intervenção na realidade.

Será quimérico colocar essa pretensão nas condições atuais, mas este é o desafio fundamental. Ao sabor de boas teorias, mudam as práticas e vice-versa, sempre no contexto da pesquisa curricular. A pesquisa, por ser não só conheci­mento mas sobretudo a sua produção, precisa dialogar direto com a realidade. Toda prática necessita ser teoricamente elaborada, e isto deve fazer parte da organização curricular. Prática não é ir ver, passar perto, mas a união do fazer com o teorizar o fazer. No confronto salutar da teoria com a prática e vice-versa, motiva-se o verdadeiro especialista, sempre pesquisador. Além do natural aprofundamento, fo­menta o pluralismo científico, que, embasado na inteligência criativa, é capaz de aprender dos outros, mudar de posição sem leviandade e conviver na dialética dos contrários.

Parece claro que a “aula” vai perdendo importância, à medida que surge o cientista autônomo, o novo mestre, que aprende por elaboração própria, não por imitação. É ima­ginável uma faculdade de educação, na qual a atividade dis­cente principal seja a própria elaboração de trabalhos científicos, de acordo com cada matéria curricular, inclusi­ve com margem de escolha. Teríamos “liberdade acadêmica”,

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que, se bem entendida, pode ser expressão da torça eman- cipatória da pesquisa. Tomando como exemplo “teorias da educação” em dois semestres, podemos definir tal espaço como referido às maneiras de expressão da ciência da edu­cação em termos de concepções da realidade educacional: sociologia, filosofia, história, psicologia, antropologia, eco­nomia da educação e ainda teóricos relevantes.

Em vez de um “professor” para cada âmbito, pode-se organizar de tal modo que no percurso de dois semestres o “aluno” elabora dois ou mais trabalhos, escolhendo temas de seu maior interesse. Aulas, se necessárias, seriam esporádi­cas, introdutórias, já que pode ser pertinente às vezes es­cutar o sociólogo da educação, sem fazer disso didática da aprendizagem.

Alcançaríamos dois resultados relevantes: redefinimos o papel do professor como orientador, quase flecha inteligente que indica o caminho da biblioteca ou parceiro crítico, cons­ciência vigilante; redefinimos o papel do aluno, motivando a capacidade de escolha e produção própria de temas.

3. “Dar conta de um tem a”

O trabalho pessoal de pesquisa encontra expressão própria no desafio de assumir um tema para elaborar e defender, ainda que possa restringir-se à produção teórica. O título de professor é reservado quase sempre para quem, através do tirocínio acerbo de elaboração própria, obtém reconhecimento acadêmico de mérito pessoal como produtor de ciência. Antes de ser professor, pode ser monitor, assis­tente, docente, leitor, em cujo trajeto vai forjando espaço próprio de produção. A pris-graduação faz desafio específico à criatividade de elaboração própria, sobretudo no doutorado.

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Sistemas há em que sequer o doutorado é suficiente para ser professor, já que, para tanto, se exigem ainda outros passos que comprovem a ocupação de espaço científico próprio. Não há professor que não seja em primeiro lugar construtor de ciência. Jamais seria pensável que ministrasse “qualquer” aula, sobre “qualquer” disciplina. Destacado pelo que produz e domina, a sua função se dará nessa área naturalmente, acrescendo-se o compromisso de atualização.

Embora a pesquisa seja conquista lenta e progressiva, começa no primeiro semestre. É normal que os alunos se sintam perdidos, diante do desafio de liberdade acadêmica, que não se coaduna com “matronas científicas”, prenhes de receitas prontas que substituem o esforço do aluno. Este pode insistir, na sua imaturidade, na ajuda cômoda, que demarca quantas páginas precisa ler, ou as troca pelo fichamento, ou se contenta com anotações de aula. Mas a organização curricular aponta para outra direção. O primeiro passo é aprender a aprender, que significa não imitar, copiar, repro­duzir. A verdadeira aprendizagem é aquela construída com esforço próprio através de elaboração pessoal. Para tanto, o caminho é a biblioteca, onde é preciso munir-se de leitura farta, para dominar posturas explicativas, entre elas escolher a mais aceitável e a partir desta elaborar uma própria, mesmo que seja síntese. O segundo passo é iniciar a elaborar, devagar e sempre, fazendo tentativas aproximativas, até sentir-se mais ou menos seguro de que é capaz de dar conta de um tema.

O professor tem seu lugar, como pesquisador e orienta­dor, para motivar no aluno o surgimento do novo mestre. Faz parte do conceito de criatividade, “saber se virar”, inventar saídas, sobretudo “aprender a aprender”, e isto é profundamente pesquisa. A postura de mero ensino e de mera aprendizagem é mais cômoda, menos problemática, evita o confronto produtivo entre mestre maduro e mestre em ges-

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tação. Todavia, predomina aí o lado da “imbecilização” útil, enquanto na relação de pesquisa científica e educativa pode predominar o lastro da emancipação. Neste caso, em vez do recurso autoritário, o professor dispõe do argumento mais convincente, que é o exemplo, porquanto nada é mais for­mativo que o bom exemplo.

“Dar conta de um tema” significa, pois, retomar o contexto do trabalho científico, geralmente apresentado como caminho de comprovação de hipóteses. Primeiro, concebe-se o que se quer mostrar, aonde se quer chegar, no sentido de uma proposta de construção científica. Tem a marca de uma suspeita explicativa, de uma rota pressentida, de um possível achado acadêmico. Em seguida, parte-se para “verificar”, “comprovar” tal suspeita, a que damos o nome de hipótese. Tanto é possível chegar a resultado positivo, como negativo (“verificar” ou “não verificar”), significando cada um igual interesse para a ciência.

Para “dar conta de um tema”, são passos relevantes:

a) primeiro, é mister ter um “tema”, ou seja, um problema interessante a ser estudado, fenômeno pertinente que se deseja analisar, fato novo que se pretende compreender;

b) segundo, projeta-se um caminho, com etapas, para a realização do estudo, o que denota sentido de sistema­tização e disciplina de trabalho;

c) o momento inicial é geralmente marcado pela dúvida, pois somente pesquisa quem não sabe tudo e convive criticamente com os limites do conhecimento;

d) aí, pergunta-se pelo que já se sabe do tema, para buscar alguma pista; chegando-se a uma pista preliminar, segue- se em frente, para averiguar se tem futuro; pode-se descobrir que é viátf&l 'avançar, como também que o rumo está equivocado;

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e) chega-se a uma primeira visão geral do tema, que delineie o “tamanho” do esforço que temos de investir e diante do qual medimos o “tamanho” de nossas per­nas; diante de circunstâncias limitantes, como tempo dis­ponível, recursos, instrumentos empíricos, é possível assumir o tema em maior ou menor profundidade;

f) importante será sempre “o que ler”, com vistas a for­mular o “quadro de referência”, no qual vamos apresen­tar nossa proposta explicativa da realidade; é preciso justificar as relevâncias realçadas, o tipo de ponto de vista e de partida, a preferência teórica, sempre em termos de elaboração própria;

g) importante é a questão metodológica, que coloca o desafio do como proceder: nas linhas, desenha os pas­sos da análise (bibliografia básica, dados a serem utili­zados ou produzidos, modo de interpretação, preferência de posicionamento científico, fases da empreitada), e, nas entrelinhas, aparece a tonalidade ideológica própria do autor, que é ator;

h) surge o momento de construir por escrito, com seus ritos formais (introdução, corpo, conclusão; citações; estruturação lógica da argumentação; disposição dos dados, com possíveis anexos), mas sobretudo com con­teúdo adequado, demonstrado na capacidade de reali­zação da hipótese, tão bem argumentada, que já nisto seja criativa;

i) “dar conta de um tema” não pode induzir a ingenuidade de que se achou a última palavra, nem que se inventou originalidade insuperável; quer dizer que o tratamento do tema é bem fundamentado, cercado de todos os lados viáveis, elaborado com engenho e arte, garantindo que aí aconteceu algum avanço científico.

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Assim, não cabem nesse desafio leituras pela metade, cópias pirateadas de autores, número prévio de páginas, mera reprodução de dados. Significa que a orientação básica é “fazer o que o tema exige em sua complexidade”, não o que um instrutor predetermina como limitação a priori. É o aluno que deve saber descobrir o que ler, quanto ler, como ler, para formar o seu próprio juízo. Sobretudo, deve saber jus­tificar quando e por que julga “ter dado conta do tema”, sem empáfias exaustivas.

Aqui temos um parâmetro de avaliação do novo mestre, por mais que a nossa realidade mostre o contrário: o estu­dante conclui o curso sem saber dar conta de um tema, não consegue escrever com clareza e sistematização, não ordena, manuseia, constrói e interpreta dados, o que revela continuar ainda apenas “aluno”, até porque aprendeu com um “profes­sor” que nunca saiu da condição de “aluno”. Não espanta que o educador a serviço de uma secretaria de Educação experimente dificuldade insuperável de redigir um plano ou um projeto, ou um “professor” não consiga dar elaboração aceitável à sua proposta semestral na escola, ou o diretor da escola perceba ser incapaz de construir uma “proposta pe­dagógica”, ou o sociólogo admita que não sabe dar corpo sistematizado à crítica de uma determinada política social.

Enfim, ressalte-se que o “trabalho de elaboração indi­vidual”, embora imprescindível, pode levar ao isolamento ensimesmado do cientista. “Trabalho de grupo” é muito recomendável, também por motivos educativos, como estra­tégia criativa na fase de pesquisa prévia, de discussão con­junta para indigitar caminhos possíveis, de confronto criativo de idéias diferentes e divergentes. Mas não é útil a “elabo­ração de grupo”, porque tende a sacrificar a quem de fato elabora, pois não é viáveres^rever a muitas mãos. Trabalho de grupo é muitas vezes tática de acomodação da mediocri-

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dade, sobretudo daquela esperta, que faz um companheiro carregar sozinho o grupo nas costas. Talvez se pudesse sugerir que, na discussão do tema, é preferível o trabalho conjunto; na elaboração propriamente dita é preferível o trabalho individual. A “elaboração comunitária” toma-se mais plausível quando o grupo tem projeto comum, trabalha junto há tempo e encontrou forma de redação conjunta.

4. A questão da avaliação

A avaliação pode não respeitar o ritmo de cada um em seu desenvolvimento intelectual e social, partindo para comparações externas e de cima para baixo. No oposto está a “promoção automática”, através da qual todos passam de ano, adequando-se os parâmetros de exigência ao aluno, não o contrário (Saul, 1988). Persistem polêmicas fortes sobre avaliação, e mesmo repulsa, havendo boas razões para tal atitude, sobretudo em sentido educativo, se lembrarmos que a construção da emancipação é algo de dentro para fora, cujo ritmo não pode ser predeterminado nem imposto. Exemplo disso é a comparação forçada de identidades cultu­rais, que não são superiores ou inferiores, a não ser que as sujeitemos a parâmetros externos prévios de comparação.

Todavia, como não adianta mascarar a desigualdade social, a avaliação acaba tornando-se inevitável e tem o seu protótipo mais duro na “mercadoria”, que tem custo. Vale lembrar que em Santa Catarina havia promoção automática, até o dia em que se procedeu um processo de avaliação “participativa” da escola, tomando parte também pais e a sociedade em geral, não somente educadores. Sobretudo os pais postaram-se contra, porque raciocinam de modo dito objetivo e realista: no mercado não há promoção automática;

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lá, vence quem pode. No quadro das desigualdades, a pro­moção automática desprepara para a vida, embora caiba em belas teorias educacionais (Santa Catarina, 1984).

Esse mesmo contexto motivou o surgimento de escolas alternativas, nas quais se tentou minimizar o lado da disci­plina comportamental, bem como da avaliação paramétrica. A criança deve progredir à base da motivação própria e decidir as metas existenciais às quais quer chegar. Estuda se quiser e como quiser. Tais experimentos trouxeram enrique­cimentos teóricos e práticos inegáveis, mas mostram sobre­tudo que se partem de pressupostos inviáveis e farsantes, porque imaginam-se histórias sociais destituídas de conflito e desigualdade. Se não existisse desigualdade social, não seria preciso avaliação.

A farsa reaparece hoje na universidade, quando se busca privilegiar caminhos que dispensam avaliação do desempenho, mormente a promoção por mero tempo de serviço. Dispensa- se a importância do mérito acadêmico, que exige pesquisa como atitude estrutural, produção continuada e atualizada, em troca da roda burocrática que gira sempre em tomo de si mesma. Aí o professor “cai para cima”, com o tempo. No extremo, não há mais necessidade de pós-graduação, de publicação, de pesquisa.

Tal postura, hoje tão comum, em vez de diminuir o confronto da desigualdade, apenas o mascara, exacerbando-o. Primeiro, o trabalho deixa de ser critério de progressão, predominando a cabala burocrática, a esperteza política, o “jeitinho”. Segundo, escancara o sarcasmo: quem não tem mérito, só pode promover-se automaticamente. O medíocre foge da avaliação como o diabo da cruz, por razões óbvias. E isto se reflete nos estudânfes, que passam a assumir como proposta de suas políticas estudantis o rebaixamento de

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parâmetros avaliativos, a começar pela exigência de média, de produção própria, de disciplina institucional. Surge o “democratismo” da ingerência indébita na definição curricu­lar, que deixa de se embasar em argumentações intrínsecas e profissionais, para fazer parte de “votações”.

Seria o erro oposto alijar o estudante da participação na definição curricular, pelo menos no sentido de expressar-se sobre expectativas de formação e profissionalização, de avaliar o desempenho dos professores e da instituição, de apresentar crítica a partir do seu ponto de vista, objetivando adequações necessárias no tempo. Mas não pode ser objeto de decisão democrática, se estatística faz ou não faz parte do currículo ou se o professor pode dar nota negativa. E da competência específica do professorado propor currículo adequado, que sempre estará sob o crivo crítico do alunado. A reação crítica do aluno é fundamental, mas deve ser expressão da análise científica e da pesquisa, não de confusões partidárias. Pode- se inventar um diploma obtido por eleição, mas já não seria algo da universidade e muito menos da pesquisa.

Se desfazer polêmicas pertinentes, é possível discutir alternativas de avaliação à luz do conceito de pesquisa. De partida, coloca-se a relevância positiva da avaliação, se não se restringir à sanção e ao castigo, mas transbordar para o incentivo produtivo. A avaliação pode conter o desafio da própria pesquisa, como realimentação do processo de pro­dução científica, como busca de redirecionamentos, supera­ções, alternativas, como respeito a compromissos assumidos com a sociedade em planos e políticas. Mormente, se criar alternativas é preciso, avaliar é indispensável, como fator de criatividade sempre renovada.

É sempre muito complexo avaliar mérito acadêmico, mesmo restrito à demonstração teórica. A avaliação é um

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dos desafios científicos que mais escancaram os limites da ciência, tanto na dificuldade de avaliar “isentamente”, pois no fundo é impraticável, como na impossibilidade concreta de encontrar critérios consensuais e definitivos. Em vista disso, a avaliação se refugia em critérios quantitativos, porque acredita que são menos manipuláveis e suspeitos. Este é o “espírito” de um número de semestres exigidos, de um mínimo de matérias, de uma média, mas principalmente de uma nota, mesmo camuflada de “menção”.

A par de critérios quantitativos, aparece quase sempre o de mercado, se for possível colocar assim nesse espaço. Há pesquisadores que possuem nome reconhecido, são freqüen­temente chamados para debates e conferências, ou ocupam postos relevantes, o que denotaria mérito acadêmico. Já nis­so se vê o quanto pode ser farsante tal expectativa, por­que quantidade não garante qualidade, por mais que uma não se faça sem a outra. Para exagerar, uma tese de 100 pá­ginas, comparada a outra de 300, não é necessariamente 3 vezes pior!

Tudo isso se assanha sobremaneira na progressão de carreira, para um dia se ser titular. Por mais que seja com­plexo e contraditório, é sempre possível pelo menos dizer:

a) quanto menos se avaliar a progressão de carreira, mais a mediocridade se instala, desfazendo a carreira;

b) quem imagina deter mérito acadêmico, será capaz de formular proposta de avaliação, por simples coerência, sempre discutível, também por coerência;

c) é de todo recomendável o caráter público dos ritos de avaliação, para garantir transparência geral.

Onde se destrói a Avaliação acadêmica, já se extermi­nou a universidade, porque morreu a pesquisa. Avaliar é

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pesquisar, se bem compreendido. Fugir em princípio da avaliação já é compadrio com a mediocridade e a esperteza, que passam a substituir competência acadêmica. A univer­sidade não está sabendo superar excessos passados, quando a progressão era limitada a contatos restritos e sua avaliação tinha laivos secretos, recaindo agora em novos excessos, com sinais opostos, mas todos na mesma direção. De um lado, a progressão por tempo de serviço deve ser levada em conta, até porque pode ser objetivamente comprovada, mas jamais poderia ser critério principal. De outro, a “isonomia” também deve ser levada em conta, em nome de direitos iguais, mas não pode sobrepor-se ao critério do mérito acadêmico, para não acarretar nivelamento por baixo. Aqui temos questão delicada, que exige cuidado avaliativo esmerado, no sentido da pesquisa sensível profunda. Não cabe igualar a todos via funções formais, seja porque se privilegia o ensinar sobre o pesquisar, seja porque se prefere presença burocrática a produção própria. Um professor titular não é o “mesmo” em toda e qualquer universidade, tendo em vista que cada uma, no tempo, submete a critérios diversos de avaliação. Ora, há titulares de sociologia que são farmacêuticos na origem, há titulares que são apenas graduados e nunca produziram nada na vida em termos de ciência, e há titulares que possuem, além dos títulos máximos, uma produção farta e consistente. O que seria isonomia aí? Primeiro, é falso imaginar isono­mia em termos de mérito acadêmico, pois o que interessa é precisamente a sua diferenciação. Segundo, é correto exigir que um professor de universidade, em todo território nacio­nal, seja respeitado em níveis dignos de profissão e remu­neração. A partir daí, o direito à igualdade se refere às mesmas condições de trabalho, jamais ao mesmo produto do trabalho. No fundo, em termos de mérito acadêmico, trata- se de direito a diferença.

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O conceito de pesquisa leva a dizer que a avaliação do aluno precisa ser radicalmente revista, para ser coerente como desafio de gestação do novo mestre. Primeiro, é mister desbancar a prova, que tem seu lugar apenas como expedi­ente esporádico e como acomodação limitativa. Em casos de excesso de alunos, quando é humanamente impossível de­dicar-se a número exorbitante de testes, a prova é remédio inevitável, mesmo aquela das respostas fechadas. Entretanto, jamais deveria ser o expediente típico, pois forja situação artificial autoritária e policialesca, motiva a “cola”, força a reproduzir imitativamente as aulas ou leituras caricaturais, leva o aluno a apenas “estudar para a prova”, limitando ou destruindo o desafio de pesquisa e criatividade.

Segundo, em vez da prova, a forma mais fecunda e conveniente de avaliar é motivar a produção científica em ambiente próprio, com liberdade acadêmica, na qual o es­tudante possa enfrentar o desafio de crescer por si. Neste sentido, cabe melhor, por exemplo, o trabalho em casa, sobretudo discutido em grupo, mas individualmente elabo­rado, ou o trabalho com consulta, no qual seja viável uma discussão aberta com conseqüente chance de participação produtiva, o trabalho de curso, que leva — no fim do semestre, no fim do curso, no fim da unidade — a produzir posicionamento próprio elaborado sobre a matéria estudada. A lógica subjacente é a valorização da elaboração própria, na direção do pesquisador. Não é importante avaliar se o aluno escutou a aula, decorou a lição, fez o fichamento da leitura, mas principalmente se é capaz de criatividade própria no aprender.

Com isso o professor enfrenta outros riscos e desafios. Terá que ler mais material produzido pelos alunos, estar disponível para consuUe £ discussão, facilitar retroalimen- tações constantes e-recorrentes. Pode ser ludibriado por outras

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maneiras, via trabalho de grupo onde somente um trabalha, via cópia e plágio, via compra de trabalhos. Pode ser mino­rado esse risco se o professor fizer aferição direta com o estudante, para testar se o trabalho representa produção própria. De novo, porém, isso significa mais esforço e dedicação, mas faz parte da função de motivar novos mestres.

Deveria ser regra geral que, em cada semestre, o es­tudante produzisse um número de elaborações próprias, que seriam a base fundamental de avaliação. Em muitos casos, cabe o exercício, para aprender instrumentações for­mais sobretudo, como estatística, econometria, lógica, ser­vindo, não como reprodução decorada, mas como expe­diente de internalização digerida. Todavia, é claro que não se pode ficar apenas no exercício estatístico, mas é preciso chegar ao seu uso na pesquisa, demonstrado através de elaboração própria.

Por tudo isso, é indispensável que no fim da graduação se produza “tese” científica convincente, na acepção exata de demonstração da capacidade do novo mestre, que aí conclui uma etapa, para ingressar na vida profissional com qualidade formal e política.

Por fim, é preciso chamar a atenção para a unilatera-1 idade da avaliação, quando se restringe à elaboração teórica, por mais que seja avanço incomparável, porquanto falta a prática. Quer dizer, não basta a avaliação da competência formal, no sentido de demonstrar capacidade de dominar instrumentos metodológicos, discussão e formulação teórica, construção de testes empíricos, porque isso é um lado da moeda. No outro está o desfio de qualidade política, neces­sariamente prática, e que deveria averiguar se o novo mestre é apenas bom teórico, ou se é igualmente “bom cidadão” (Demo, 1987).

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Por outra, prática não se resume à aplicação da teoria, embora isso seja essencial. Em sentido mais pleno, a prática se refere ao cientista como ator social, para quem a com­petência técnica é instrumento de realização social. Muito mais difícil é essa avaliação qualitativa, que desde logo não é passível de ser traduzida em dados mensuráveis. Na uni­versidade não se instrui apenas; também se “educa”. De mo­do geral, isso é esquecido, por vezes comodamente, para não se ter que enfrentar esse tipo de avaliação. Mas é fundamental tanto quanto competência formal e permitiria recolocar sempre o desafio de unir saber & mudar. Talvez por aí seria pensável trazer a universidade para dentro da sociedade e assumir um compromisso estrutural com ela, como vanguarda científica e tecnológica na busca de histórias alternativas, pelo menos mais toleráveis. Com isso teríamos superado a colocação artificial da extensão, que surge sempre que a universidade escapuliu da realidade.

Como avaliar o mundo da qualidade política é questão complexíssima, assumida em manifestações como pesquisa participante, avaliação qualitativa, hermenêutica social, feno- menologia, todas tão pertinentes quanto ainda tateantes. Sabem colocar a importância insubstituível da questão, mas há pouco que apresentar de resultados práticos, a começar pelo ma­nejo aceitável da ideologia no contexto da ciência, pela exigência da discutibilidade como critério mais relevante de cientificidade, pela conjunção coerente entre teoria & prática e entre saber & mudar. É essencial que o cientista saiba questionar a sociedade de que faz parte, problematizar rumos do desenvolvimento, inquirir chances da cidadania e da democracia, confrontar e preferir ideologias. Se não sabemos avaliar isso de modo ainda satisfatório, é pelo menos funda­mental que a vida acadêmica acate tal prática como inte­grante da formação. No mínimo, a prática deve entrar como

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aplicação da teoria, no que é mais facilmente avaliável (Demo, 1989: 229-57).

A avaliação apenas formal é fuga, porque atesta que não sabemos avaliar conteúdos, mas, se bem-feita, já repre­senta cuidado providencial, que resgata a noção de pesquisa como descoberta científica. Ressalta no mínimo o lado também fundamental da competência técnica e instrumental. Aplicamos, por exemplo, a uma tese de mestrado apenas critérios formais de validação, por vezes somente rituais, deixando de lado a pergunta sobre a sua relevância política como proposta de atuação histórica. Em muitos casos, essa questão é coibida, porque taxada de anticientífica, em nome da neutralidade. Não há, porém, neutralidade mais engajada que essa, o que recoloca a importância da avaliação no pleno sentido da pesquisa como princípio científico e educativo.

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IIIA pesquisa

como princípio educativo

Nesta parte buscamos questionar o espaço educativo da pesquisa, que vamos restringir ao ambiente da escola e da atuação do professor de educação básica. Essa restrição é apenas útil para concretizar melhor a discussão, mas não insinuamos que a pesquisa como princípio educativo se esgote nesse horizonte. Por outra parte, também na escola deve emergir o desafio da ciência, até porque, em nome da pesquisa, todo “professor” deve ser cientista. Esta colocação basta para revelar a distância entre o exercício do magistério básico e o ambiente de produção científica. Um professor de l 9 grau teria o maior constrangimento em ver-se colocado como cientista ou pesquisador, porque foi domesticado na universidade a aprender imitativamente e a atuar na escola como mero instrutor.

Pretender vislumbrar pesquisa na pré-escola, entre crian­ças que apenas brincam, ou na criança que abre os olhos para a vida ao nascer, é desafio que gostaríamos aqui de enfrentar, em termos preliminares. Faz parte da proposta política de pesquisa. No ambiente lúdico da criança é possível visualizar atitude de pesquisa e fomentá-la via processo educativo, como postura questionamento criativo, desafio de inventar soluções próprias, descoberta e criação de re­lacionamentos alternativos, sobretudo motivação emancipatória

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a partir de um sujeito que se recusa ser tratado como objeto. Sem forjar tiradas pernósticas, é possível interpretar o pri­meiro berro da criança que nasce como expressão de um ser que reclama, reage, indicando a busca do caminho emanci- patório, que é sempre, no mesmo todo, educação e pesquisa.

Não é o caso recuperar teorias do desenvolvimento da criança, perseguindo o trajeto histórico-estrutural de formação de personalidade. Mas não é difícil buscar reforço em teo­rias que visam precisamente valorizar a capacidade criativa da criança, desde a mais tenra idade. Pesquisa faz parte da noção de vida criativa em qualquer tempo e em qualquer lugar (Freitag, 1988; Ferreiro, 1986; Habermas, 1989).

1. Educação, pesquisa e emancipação

Emancipação é o processo histórico de conquista e exercício da qualidade de ator consciente e produtivo. Trata- se da formação do sujeito capaz de se definir e de ocu­par espaço próprio, recusando ser reduzido a objeto (Demo, 1988b e 1988c). É fenômeno teórico e prático ao mesmo tempo. Tem momento relevante na tomada de consciência crítica, quando o ser social descobre sua condição histórica, compreendendo que em parte ela é dada, em parte é cau­sada. Sobretudo compreende que a desigualdade social, para além de algo estrutural, tem causas históricas nas quais po­de entrar como vítima. Pobreza não é sina, mau-jeito, azar, mas injustiça. Sem tal conscientização não aparece o re­clamo emancipatório, porque o ser social ainda é objeto. A passagem de objeto a sujeito emerge nesse fenômeno de diagnóstico de dentro para fora (autodiagnóstico), com base no questionamento crítico. Chega-se a isso através da dis­cussão repetida, confrontada, dialogada até o ponto em que

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a “massa de manobra” se reconhece como tal, e, a seguir, lança a expectativa de sair da condição histórica imposta. Este momento é teórico, no sentido de se alimentar da dis­cussão crítica (Libâneo, 1986; Ceccon, 1982; Barbosa & Amaral, 1987).

No mesmo todo aparece o momento da prática, em dois horizontes concatenados: o desafio de um projeto concreto emancipatório, que, ciente da situação dada e causada, colo­ca-se como enfrentar na prática; toda conquista de espaço próprio, para ser competente, necessita de organização ade­quada, o que levanta a necessidade de exercício concreto da cidadania organizada.

Conceber e executar projeto emancipatório supõe de modo geral dois suportes mais visíveis, que são a busca de auto-sustentação e de autogestão, algo econômico e político. As duas dimensões formam um todo, embora com lógicas próprias, necessitando-se mutuamente.

Auto-sustentação significa o processo de trabalho e pro­dução através do qual se provê a sobrevivência material e, nesse sentido, volta-se ao enfrentamento da pobreza sócio- econômica, marcada pela privação material. Autogestão signi­fica o processo de organização política no qual o ser social e a sociedade constroem competência para conduzir o próprio destino e, nesse sentido, volta-se ao enfrentamento da pobreza política, marcada pela condição de massa de manobra (Demo, 1988c).

A compreensão adequada da emancipação somente é viável no quadro da desigualdade social, como questão his- tórico-estrutural. Revela que a sociedade vigente é estrutu­rada desigualmente, confrontada entre poucos privilegiados e muitos compelidos a manter e a sustentar tais privilégios. No princípio está a opressão, a violência social, que é mister

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jamais desconhecer, mas confrontar, para bem administrar (Werthein & Argumendo, 1985).

Emancipação quer dizer recuperar o espaço próprio que outros usurparam, já que poder não é bem abundante dis­ponível, mas apropriado no contexto do conflito social. Trata- se, pois, de trajeto problemático, no qual estratégia política é essencial, traduzida na competência de organização da cidadania individual e sobretudo coletiva. Como decorrência, só pode ser conquista, nunca doação ou imposição. Não há como emancipar alguém, se esse alguém não assumir o comando do processo. Emancipar é emancipar-SE. Muitas vezes usa-se o termo libertação para indicar esse fenômeno, acentuando-se que liberdade é criação de quem a concebe e pratica. Não se pode fazer alguém livre propriamente, se esse alguém não se libertar a si mesmo.

Emancipação não é atitude isolada, porque nada em sociedade é espontâneo estritamente. Precisa ser motivada, mas não pode ser conduzida. O filho não se emancipa sem os pais, mas estes precisam assumir uma postura instrumental de motivação.

Essa questão atinge o âmago da estrutura do poder. Numa sociedade em que no princípio está a opressão, como imaginar pais que secundem a emancipação do filho, man­dantes que não obstem a cidadania civil, professores que não castrem seus alunos?... Este é o milagre da democracia: inventar um poder que a queira... De um lado, a desigual­dade social é parte estrutural de qualquer história, de outro em cada história concreta ela aparece causada e imposta, portanto injusta. Na visão histórico-estrutural une-se, de modo dialético e realista, o reconhecimento estrutural de que poder não se elimina, com o reconhecimento histórico de que é necessário e possível democratizar. Diante da lei todos são

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iguais, embora a lei seja necessária porque todos são desi­guais. Se todos fossem iguais, a lei seria dispensável.

É patente a relevância da educação e da pesquisa para o processo emancipatório. Ressaltamos aqui principalmente a face do confronto da pobreza política, apenas por razão de proximidade de espaços, embora a face econômica não possa ser secundarizada. Mais que isso, não existe emancipação política sem emancipação econômica e vice-versa. Todavia, na escola não enfrentamos diretamente a pobreza material, porque não é o espaço adequado, por mais que se distribua merenda, já que não passa de assistência. Na escola é possível enfrentar pobreza política, com vistas a conceber e a realizar instrumentação conveniente da cidadania popular. Aí coloca- se, plenamente, a concepção hoje corrente de educação política (Buffa, 1987; Saviani, 1987).

Educação política não se esgota na face propriamente política (da qualidade política), mas inclui sempre a face técnica, ligada à informação e ao ensino. Não poderia ser cidadania competente aquela desinformada, analfabeta, desti­tuída de instrumentações técnicas para enfrentar a vida em sociedade. Qualidade formal, pois, é parte integrante.

A escola — que não faz milagres — pode fungir papel estratégico como instrumento público de equalização de opor­tunidades, à medida que se torna espaço privilegiado popu­lar, universalizante no 1Q grau, para concepção e exercício da cidadania. Este tipo de educação é das poucas ofertas pú­blicas capazes de atingir o universo social na respectiva idade e nisso guarda potencialidade central. Essa chance, para ser mais congruente em termos de direitos sociais, deveria ser universalizada a partir d ^ pfé-escolar (0 a 6 anos de idade), no contexto de uma política social da infância, preventiva, emancipatória, redistributiva e equalizadora (Demo, 1989b).

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Tudo é contraditado no dia-a-dia de uma sociedade que relega educação ao nível dos piores serviços públicos, manietando professores em situação de profunda indignidade profissional. Nessas condições, a escola é tipicamente repro­dutiva, mas não precisa reduzir-se a isso. Pode ser o signo da imbecilização popular, mas pode ser instância fundamen­tal de formação da cidadania de um povo, por mais que nada aí tenha impacto automático ou mecânico.

Dentro desse contexto, o conceito de pesquisa é funda­mental, porque está na raiz da consciência crítica questiona- dora, desde a recusa de ser massa de manobra, objeto dos outros, matéria de espoliação, até a produção de alternativas com vistas à consecução de sociedade pelo menos mais tolerável. Entra aqui o despertar da curiosidade, da inquie­tude, do desejo de descoberta e criação, sobretudo atitude política emancipatória de construção do sujeito social com ­petente e organizado.

Talvez se possa estranhar, mas isso começa no pré- escolar, compreendido de 0 a 6 anos de idade, porquanto mais do que ninguém a criança, vindo ao mundo, coloca-se em estado estrutural de descoberta e criação. Tudo é novo, mesmo chocante, e exige dela constante aprender, princi­palmente aprender a aprender. Podemos realizar em torno dela rígido controle domesticador, com vistas a que repro­duza fielmente os parâmetros vigentes da sociedade e da família, mas podemos também motivar processo emancipatório radical, a partir do qual se elabora nova personalidade, novo sujeito social, nova cidadania de base. O pré-escolar se destina a isso, se compreendermos como lugar estratégico da con­quista da autodeterminação, através de cuidados assistenciais, da estimulação psicossocial, do jogo e da educação como tal. Aí já temos, em pleno sentido, educação política, processo emancipatório, dos quais faz parte a pesquisa.

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2 . Lim itações do apenas ensinar

No “ensinar” cabe menos o desafio da emancipação com base em pesquisa do que a imposição domesticadora que leva a reproduzir discípulos. Os “professores” se dizem “en­sinadores”, porque na universidade foram obrigados a ape­nas aprender. De modo geral, um “professor” de educação básica não sabe elaborar com mão própria, muito menos “dar conta de um tema” com desenvoltura. Além de dispor de acanhada qualidade formal, decai logo na desatualização, a par dos desestímulos que o cercam, sobretudo condições profissionais adversas (Mello, 1986; Novaes, 1987).

A sala de aulas, lugar em si privilegiado para processos emancipatórios através da formação educativa, tom a-se pri­são da criatividade cerceada, à medida que se instala um ambiente meramente transmissivo e imitativo de informa­ções de segunda mão. Na frente está quem ensina, de auto­ridade incontestável, imune a qualquer avaliação; na platéia cativa estão os alunos, cuja função é ouvir, copiar e repro­duzir, na mais tacanha fidelidade. “Bom aluno” é o discípulo, que engole sem digerir o que o professor despeja sobre ele, à imagem e semelhança. O que poderia ser gesto criativo, como o treino para coordenação motora da mão na alfabeti­zação, é rebaixado a algo mecânico no contexto do “reflexo condicionado”.

Vale afirmar que o problema mais agudo da escola não é o aluno, por ser pobre, inculto, mas o professor, que ainda é apenas “aluno”. Não se trata de “culpar” o professor, por­quanto não discutimos aqui ética. Na escola não é viável atacar todos os problemas econômicos e sociais. A pobreza material pode no máximo ser aliviada, através da merenda, da distribuição de material didático, do ônibus gratuito. Por isso diz-se, çgi yisível simplificação, que na escola 50% dos

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problemas da criança não são alcançáveis, mas há outros 50% que dependem do sistema de educação, sobretudo do professor. Trata-se, pois, de colocar o desafio desses 50%, sem insinuar culpa.

Para se falar da importância da educação é mister saber dos seus limites. Seria “pedagogismo” inventar impactos facil­mente transformadores, em ambiente tão precário na maioria das vezes. Mas é preciso avançar no caminho de possível transformação, no tempo, motivando para tanto o surgimento consciente do ator básico da democracia, ou seja, o cidadão. Entretanto, para poder m otivar processos de formação da cidadania, é indispensável ser cidadão. Dada a “aprendizagem” acadêmica a que é submetido o professor, na qual o ele­mento da pesquisa é inexistente, quando não abafado, en­contra aí limitação clara para elaboração da própria cidada­nia. O fruto dessa limitação, depois, é atuação caricatural na sala de aulas e sobretudo tolhimento no exercício da cidada­nia do professor: sindicaliza-se com dificuldade e descon­fiança, não se mobiliza nos movimentos de defesa dos direi­tos, não possui visão adequada da importância política da escola pública, e vê nas crianças um monte de meros alunos.

Para além da crítica, é fundamental perguntar por pistas de atuação alternativa. A primeira preocupação é repensar o “professor” e na verdade recriá-lo. De mero “ensinador” — instrutor no sentido mais barato — deve passar a “m estre”. Para tanto, é essencial recuperar a atitude de pesquisa, as­sumindo-a como conduta estrutural, a começar pelo reco­nhecimento de que sem ela não há como ser professor em sentido pleno.

A amplitude da aplicação do conceito de pesquisa deve ser modulada de acordo com as funções na escola, levando- se em conta a sua desmitificação, mas sem jam ais afastar-se

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do compromisso de elaboração própria, de questionamento criativo, de desdobramento do senso pela descoberta e pela criação, chegando-se ao seu núcleo político de atuação social✓consciente. E possível enfrentar esse desafio, retornando a reciclagens sugestivas, perquirindo propostas de atuação al­ternativa, sobretudo partindo para construir elaborações próprias, no meio de exercícios visíveis de cidadania com pe­tente em termos formais e políticos.

Na luta pela valorização do profissional deve entrar com ênfase o compromisso com a pesquisa, no quadro da coerên­cia emancipatória, que é sempre o núcleo mais digno da educação. O “professor” (com aspas), para tomar-se PROFES­SOR (sem aspas e com maiúsculas), carece de investir-se da atitude do pesquisador e, para tanto, perseguir estratégias adequadas. Sobretudo, deve fazer parte da sua condição profis­sional sem mais, para desfazer o fardo do reles “ensinador”.

Não adianta muito, nessa direção, manter os ritos atuais dos centros de treinamento, geralmente voltados para ofertas operacionais e complementares, tendo em vista carências do sistema ou dos agentes, sem atentar para a “recriação” histórica do papel do professor. Na prática, se formos coe­rentes com qualquer proposta educativo-emancipatória, é preciso reconhecer que a dignidade do professor só pode ser elaboração própria, conquista própria. Não faz sentido esperar pacotes emancipatórios, porque seriam presentes de grego e destruição prévia da chance libertadora.

Desafio concreto será que o professor passe a “elaborar” suas aulas, com mão própria, acrescentando, sempre que possível e couber, pelo menos sínteses pessoais. Fazer apos­tila pode ser algo barato e mesmo simplificação irresponsável, mas pode também ser o início da construção de caminho próprio. Em vez de ser apenas intérprete externo do livro

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didático, o professor deveria ser o próprio livro didático, se fosse capaz de tornar-se criador da didática. Isso não dis­pensa o livro didático. Trata-se de conseguir convivência produtiva com ele, entendendo-se aí pesquisa sobretudo como diálogo com a realidade, recriado sempre pelo professor, com apoio do livro didático, que passa a ser referência relevante, nem mais nem menos.

No começo a dificuldade de elaboração própria será considerável, recomendando modéstia, que pode iniciar com meras sínteses aproximativas. Um dia, será possível apresen­tar aos alunos texto próprio de geografia, interpretação própria de obra literária, exercício próprio de matemática. Com isso muda o ambiente de aula, porque, além de entrar nela o compromisso da pesquisa, os alunos passam a conviver com o bom exemplo do professor em termos de qualidade formal e política.

A segunda preocupação é a reação sistemática e criativa contra os vezos tradicionais da mera “aula”. De partida, saber “dar aula” é sobretudo não recair na “aula”, compreendida como fala autoritária, vazia, apenas formal, de um agente preposto, cópia caricaturada de outra cópia, que só vive de pacotes alheios e os repassa em frente. Nessa acepção, o professor não sai da condição de intermediário parasita: destituído de conteúdo próprio, sobrevive de empréstimo.

Todavia, há lugar para a aula, como expediente infor­mativo, para introduzir temas e unidades, para ouvir-se recado do professor. Assim, aula não é mal em si. Toma-se mal a aula que só é aula, principalmente quando se torna o único instrumento didático. Infelizmente, já está profundamente cristalizado o protótipo caricatural da professora, misto de sacerdote e militar, de óculos para impor distância e fingir competência, figura ameaçadora no sentido da disciplina

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intimidativa e da prova fatal, que aparece para falar sozinha, restando para o aluno apenas ouvir.

É essencial impregnar a convivência com os alunos com estratégias de pesquisa, através das quais são motivados a toda hora a pelo menos digerir o que escutam através de exercícios pessoais. “Tomar nota” é preciso, mas é pouco. Toma-se nota, para poder reelaborar, não para decorar. “Decorar” deveria ser riscado do mapa, bem como a “prova”, a não ser como expediente conjuntural e operativo. Porquanto não há nisso nada “didático”, absolutamente nada “educa- tivo-emancipatório”. E todo o contrário de pesquisa.

Na concepção de Paulo Freire, é fundamental a distinção entre alfabetizar como reprodução da escrita e da leitura, e alfabetizar como ler criticamente a realidade. A “aula” apenas conduz à reprodução, chegando ao extremo de coibir a criação, quando o instrutor descarta o questionamento por parte do aluno. O professor de verdade motiva o aluno a dominar a escrita e a leitura como instrumentação formal e política do processo de formação do sujeito social emanci­pado. A finalidade não é, de si, ler e escrever — para assinar o nome, copiar ordens, reproduzir parâmetros impostos — mas ler e escrever para poder ocupar espaço próprio na sociedade, fundar caminhos da consciência crítica, chegar a projeto próprio de desenvolvimento. Pesquisa aí é simples­mente essencial (Gadotti, 1989).

O professor precisa investir na idéia de chegar a mo­tivar o aluno a fazer elaboração própria, colocando isso co­mo meta da formação. Caso contrário, não mudamos a condição de analfabeto no aluno, que apenas lê, sem inter­pretar com propriedade. Pior que o analfabeto literal, é o analfabeto político. A letra, em sociedade, é sempre também arma política.

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O caderno de notas precisa evoluir de simples cópia das aulas para ensaio de elaboração, pelo menos de síntese própria. Isso não descarta a cópia de fórmulas químicas e físicas, axiomas matemáticos, sem decair na mera “decoreba”. Devem ser recriados pelo aluno, através de vários expedien­tes motivadores: exercício de própria mão; discussão em grupo, para testar a compreensão; busca do conteúdo em outros livros; questionamento em aula para despertar a dúvida investigadora; sobretudo reconstrução pela pesquisa fora do ambiente de aula.

O aluno não vai reinventar a lei da gravidade ou o alfabeto. Aí cabe aprender, no sentido de instruir-se. Mas é apenas instrumentação técnica. O interessante começa depois: como internalizar sem decorar, como exercitar para conven­cer-se de que funciona; como experimentar para poder apli­car; como utilizar na condição de instrumento de pesquisa, para questionar e dialogar com a realidade. Mais que des­pertar a curiosidade, é fundamental despertar o ator político, capaz de criar soluções.

O professor vale pelo que instrui — a criança precisa também literalmente aprender — mas sobretudo pelo que motiva a emancipação social, técnica e politicamente. As­sim, a crítica aqui formulada volta-se contra o “mero ensi­nar”, não contra “ensinar”, que, no devido lugar, é instru­mento necessário. Instruir bem é arte, mesmo menor. Mas é diferente o instruído domesticado, de quem se instrui para se construir e reconstruir.

3. Limitações do apenas aprender

A escola continua curral formal, onde o gado é tratado. Aluno, como discípulo, é gado. Numa analogia forte, é como

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penico, que tudo aceita sem reclamar, e acha que não passa disso. O conluio perfeito dessa imbecilização está na coin­cidência entre aula, prova e cola. São a mesma coisa. Tudo é cópia. O “professor” que vive de aula e prova, pratica e impõe a cópia dos outros. O aluno, coagido, responde na mesma moeda: decora e cola. Nada é mais bem decorado do que cola.

A cola, no confronto com o domador, contém típica duplicidade, como todo fenômeno político. Signo da medio­cridade, é, ao mesmo tempo, reprodução reles, plágio, roubo. Mas pode revelar a criatividade do aluno em fugir da coação. Há maneiras inteligentes de colar, incríveis mesmo, que correspondem ao desafio de criar soluções em ambiente reprodutivo. O instrutor imbecil merece a cola inteligente.

Essa ironia é por demais ilustrativa. Na cola pode emergir algo da contra-ideologia, enquanto demonstração da capacidade de reação por parte do oprimido, e que passa pela pesquisa. Essa pesquisa será considerada mau uso, mas mesmo aí é lição importante, porque a criatividade cerceada num lado se vinga no outro, levando o cerceamento ao ridículo. A cola frauda a pesquisa, mas, na sua reação à imbecilidade do instrutor, pode ser o indício de que a pesquisa é possível e, no fundo, é a saída. Se até na cola, para ser inteligente, a pesquisa é indispensável, segue que a pesquisa deve ser assumida como método fundamental, não como reação negativa.

O intuito não é nem acabar simplesmente com a prova, nem elogiar a cola. Cabe a prova, em seu devido lugar, para aferir conjunturalmente aprendizagens, além de ser expedien­te por vezes inevitável por excesso de alunos ou por exigên­cias formais. Entretanto, prova somente avalia a aprendiza­gem; não combina com a pesquisa. Onde cabe a aprendi-

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zagem, cabc a prova. Não deveria ser, jamais, expediente exclusivo, nem preferencial de avaliação.

Por outra, decorar não é sempre necessariamente um mal. Cabe em momentos tópicos de aprendizagem opera­cional, para traduzir domínio de instrumentações formais: decorar a tabuada, a tabela atômica, alguns dados da reali­dade. Muito mais relevante que isso é compreender a lógica interna daquilo que se decorou, até porque, a partir daí, esquecer não é fatal. Decorar, apenas, é fatal, porque destrói o desafio essencial de criar soluções. Para quem só decora (cola), na prova — se der “um branco” — o único recurso é colar. Não se sabe deduzir, induzir, inferir, estabelecer relações, reconstruir contextos. Resta copiar. A cópia per­feita é a cola, como xerox. Tal condição reduz o aluno ao “mero aprender”, obstruindo passos da criatividade própria, que pedem alternativas tais como:

a) a meta é o novo mestre, que aprende a aprender; sua marca é saber criar soluções, construir alternativas no diálogo produtivo com a realidade;

b) essencial é motivar a elaboração própria, dentro dos respectivos contextos, ou seja, de modo aproximativo, crescente, atrativo, passando pela pesquisa como método essencial;

c) é mister fomentar o trabalho fora do ambiente da aula, em contato com biblioteca, material escrito em geral, na discussão conjunta e participativa, que permita o de­safio de encontrar e produzir soluções, pelo menos de sínteses pessoais;

d) é relevante a insistência na aplicabilidade dos conhe­cimentos, por onde entra um primeiro raio de prática, buscando exercícios que evidenciem isso; é precisar co-

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tidianizar o saber, para evitar que a escola, de tão for­mal, se segregue da realidade diária;

e) é fundamental, o contato com material didático que motive o espírito questionador em geral e o diálogo persistente com a realidade, ao contrário de meros “ma­nuais”, “apostilas”, receitas empobrecidas feitas para em­pobrecer.

Entretanto, até aqui está em jogo a “qualidade formal”, algo essencial, mas metade do todo: avalia-se se o aluno sabe e se sabe descobrir. E preciso ainda chegar à “quali­dade política”, em que pesem as dificuldades já arroladas acima. Para desenvolver não só a instrumentação técnica, mas igualmente a cidadania, que sempre faz parte do no­vo mestre, toma-se necessário pensar em propostas curricu­lares alternativas. Repelindo “democratismos”, é essencial que expressões curriculares admitam e motivem a iniciativa por parte dos alunos, de modo a exercitarem a organização cívi­ca, sem prejudicar a qualidade formal. Não se trata de atua­ção política qualquer, mas daquela que cabe na escola e por ela é motivada e alimentada, no todo formal e político. A própria proposta informativa deve estar voltada para a fo r ­mação, não apenas sob o ângulo da aplicabilidade concreta do saber, mas igualmente da instrumentação científica da cidadania. Embora caibam iniciativas paracurriculares sempre, o essencial é que o próprio currículo seja condição instru­mental da qualidade política, via qualidade formal. São questões relevantes:

a) construção curricular que fundamente, nela mesma, o desabrochar da qualidade política, nas disciplinas so­ciais, na assim dita “moral e cívica” — para não ser doutrinação da direita ou da esquerda — na alfabeti­zação como interpretação da realidade, na utilidade so­cial dos conhecimentos em geral;

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b) atividades de exercício da cidadania no espaço escolar: eleger representante de turma, em ambiente associativo, com propostas de trabalho, para sedimentar regras de jogo nas relações de poder; participar de grêmios es­tudantis, que não se restrinjam à recreação superficial, mas gestem iniciativas culturais e questionamentos políti­cos; acesso a informações estratégicas referentes ao exer­cício de direitos fundamentais (do homem, da criança, da mulher, de minorias, do trabalhador, do meio am­biente); ativação de espaços de influência possível, como jomalzinho, mural, panfletos;

c) garantia de espaço de atuação para complementações curriculares necessárias, tais como: conhecimento in loco e organizado de características históricas, geográficas, sociais estudadas em aula; organização de eventos cria­tivos (dia do meio ambiente, gincana matemática, “in­ventos” da química e da física, alternativas próprias à educação física); propostas de pesquisa organizada, fora da escola, para criar material próprio de desenvolvimento científico; provocação organizada de debates que fomen­tem a formação da consciência crítica: papel da edu­cação e da escola na sociedade, no desenvolvimento; questão dos partidos, do governo, do Estado; questão da família hoje, da sexualidade, das drogas, do casamento; a questão da comunidade participativa e seu lugar no controle democrático do poder público;

d) garantia de espaço de atuação para complementações curriculares recomendáveis, tais como: dia, semana do aluno, nos quais ele, de modo organizado e criativo, propõe currículo alternativo, com participação e mesmo avaliação da escola e do professor; modos de contato e influência na associação dos pais, dos professores, nos sindicatos respectivos; programações ilustrativas, como viagens de estudo, de observação, de permuta;

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e) programações ditas culturais, para estabelecer contexto adequado da identidade cultural comunitária, como preservação dos patrimônios históricos ou como cria­tividade própria local, com vistas a fomentar idéias próprias, de dentro para fora, na concepção e efetivação do projeto de desenvolvimento econômico e social; embora caiba a manifestação erudita e mesmo elitista de cultura, o mais decisivo é a compreensão da cultura como obra histórica de uma sociedade, de uma comunidade, na qual deixa retratada a sua capacidade como sujeito social, o que vem associado facilmente com pesquisa, na condição de instrumento de construção do caminho histórico-cultural.

Através de tais expedientes, entra a prática, ao lado da teoria, e a pesquisa adquire seu lugar político, além da instrumentação formal. A escola precisa perguntar-se pela influência educativa que exerce no alunado, caso pretenda ultrapassar o espaço informativo, para atingir conteúdo formativo. A questão se toma mais clara, embora de di­ficílima avaliação: que espécie de cidadão se gesta na escola... Aparece a importância da educação no processo de formação de um povo, que quer ter projeto próprio de desenvolvimento. Precisa sobretudo saber criar suas soluções, nas circunstâncias dadas e causadas.

O boletim sempre revela “notas” também referidas a comportamento, por vezes cultivando moralismos baratos, envoltos em disciplinas quadradas. A imagem mais viva disso é a “moral e cívica”, vendida como estratégia de domesti­cação ideológica da juventude. Se admitimos que educação é política, no seu âmago, sempre se defronta com questões de moral e cívica. Assim, não se trata de denegrir ou su­primir., mas de resgatar a sua função emancipatória. A escola do “bom menino” g^o está longe do “bom prisioneiro”, que

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prefere ou foi obrigado ao conformismo, desistindo da luta por espaço próprio.

Moral e cívica deve ser impulso educativo à construção e definição da cidadania, nunca o fechamento em ideologias prévias, porquanto a da direita é a mesma que a da esquerda, se pretende apenas doutrinar. “Direito à ideologia” é o oposto de ser doutrinado, pois significa direito de ter postura ideo­lógica própria, desde que não extremista e desumana. Assim, moral e cívica podem significar o seu fechamento prévio em “valores do Ocidente”, em determinada religião, em certa forma de organização da produção econômica, porque aí não se cultiva o cidadão, mas o assecla, que será tanto mais fiel quanto menos “cabeça própria” tiver. Fomentar a consciência crítica corresponde ao direito de ser gente, autônomo, mas é abuso vender ao aluno que, para ser gente, a única saída é ser capitalista ou comunista, do partido A ou do partido B. A consciência crítica deve fundar a criatividade da decisão própria, não a farsa da decisão previamente imposta.

Em boa parte, o desafio da qualidade política está em fomentar a iniciativa do aluno, sobretudo aquela organizada. Não qualquer iniciativa, porque não é assim que, de repente, tudo cabe na escola, levando a prejudicar a qualidade for­mal. Mas aquela iniciativa que decorre e fecunda o espaço escolar, nele e fora dele. O “mero aprender” estiola o de­safio técnico e político da educação, matando a expectativa preventiva, emancipatória, redistributiva e equalizadora, cabí­vel em sujeitos sociais que aprendem a aprender.

4. Vazios da esco la formal

Reivindicar a pesquisa na escola formal significa, por coerência, refazer algo da autocrítica. De um lado, a escola

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formal, principalmente a pública, é necessária, mesmo que fosse apenas para “aprender”, no sentido da socialização mais barata de informações. De outro, seu lugar e papel estão em crise, numa sociedade que conhece cada dia mais outros espaços da socialização, outros expedientes de atingimento da criança, outras ambiências culturais e informativas.

A influência da escola sobre a criança é cada vez mais “formal” e, neste sentido, vazia, pela artificialidade da sua organização distanciada da sociedade diária ou pela con­corrência avassaladora com os meios de comunicação. Por exemplo, moral e cívica na prática são os desenhos anima­dos importados, exibidos nos programas infantis na televisão. O que o professor faz na escola, neste sentido, pode ser irrelevante ou inócuo.

Colabora na decadência da escola pública sem dúvida a atuação estatal, que tende a retratar nela a própria pobreza de um Estado afastado dos compromissos para com a socie­dade e de uma sociedade subjugada como massa de mano­bra. A miséria da escola é o retrato da miséria da cidadania.

Ainda assim, continua sendo um dos espaços mais estratégicos de equalização de oportunidades, que, não por acaso, deve ser universalizado. É essencial que, mesmo sendo espaço formal, assuma posição mais visível e decisiva na sociedade, na linha do conceito de pesquisa aqui veiculado. Parte do desinteresse no alunado ou do comportamento corporativista no professorado, bem como da imagem de “treco” do governo, provém do seu vazio formal, distan­ciado do compromisso original de motivar processos educa- tivo-emancipatórios. Persistindo a visão caricatural da aula, da prova, da cola e da decoreba, a escola poderia ser dis­pensada, pois a televisão seria instrumento muito mais efi­ciente do “mero ensinar” para o “mero aprender”.

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Esse repto recoloca a questão da qualidade formal e política. Muitas escolas quase nada ensinam, porque não concentram suficiente competência técnica, passando a re­presentar uma das farsas mais irônicas da sociedade: ir à escola para se imbecilizar. Outras escolas não assumem o compromisso de pelo menos ensinar, porque entendem que destruir a escola pública é modo de valorizar o professor e de confrontar-se com o governo, igualado a representante do retrocesso histórico. Aí já começa a aparecer o problema da qualidade política, pois a escola não apresenta nem com­petência, nem cidadania. Num lado, a pesquisa faz falta como instrumentação da descoberta e da elaboração própria. Noutro, faz falta como motivação ao questionamento e ao diálogo.

Do ponto de vista da pesquisa, seriam desafios da escola formal, para ocupar/recuperar lugar que lhe cabe na sociedade:

a) para além de instância de instrumentação formal ne­cessária, a escola precisa assumir papel de espaço cul­tural comunitário, no qual seja possível discutir e efeti­var interesses comunitários relativos à educação, mormente avançar na proposta de projeto próprio de desenvolvimento;

b) precisa apresentar-se como referência pertinente de mobilizações comunitárias que incentivem processos educativo-emancipatórios (movimentos associativos, even­tos de mobilização, criações culturais);

c) precisa caminhar na direção da oferta integral, para proporcionar aos alunos permanência condizente com o desafio de elaboração própria e à comunidade a certeza de educação tomada a sério;

d) deve cultivar a noção de patrimônio social e comunitário, que subsiste através da cooperação de todos via impos­

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tos e tributos, representando a sua qualidade, a quali­dade da cidadania popular;

e) precisa acatar o controle democrático por parte da comunidade interessada, sobretudo dos pais organizados em associação respectiva, para abandonar de vez a im­punidade atual, maléfica em todos os sentidos; sem misturar as lógicas das associações dos professores e dos pais ou da comunidade, é mister tornar transparente a administração pública;

f) precisa constituir-se patrimônio do professor público, porque, além de palco da realização profissional, a escola é, através de suas mãos, lugar estratégico da formação da cidadania popular; como tal, reivindica dignidade adequada no currículo, no prédio, no material didático e, não por último, no professor; entretanto, paralisar a escola pública sistematicamente não é maneira educa- tivo-emancipatória de defendê-la, por mais que greve seja direito; greve sistemática revela tanto governos empedernidos em suas posições conservadoras, como falta de estratégia política eficaz, com graves prejuízos para as crianças;

g) precisa atualizar-se sempre, para corresponder ao pro­gresso da ciência e aos desafios da sociedade, assumindo caminhos novos de informação, materiais novos para didática, expedientes renovados de reciclagem; é urgente evitar a imagem de casa velha, perdida no tempo, olhando para trás.

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IVPrática de pesquisa & educação

Referimos aqui experiência inicial do Instituto Superior de Educação do Pará (ISEP), inaugurado a 5 de março de 1990, em Belém, sob iniciativa da secretária de Educação do Estado, prof-. Therezinha Gueiros, no contexto da “filosofia” deste livro. Durante o ano de 1989, um grupo de trabalho, coordenado pela prof3 Ivone Tupiassu, construiu a proposta de uma faculdade alternativa para profissionais do pré-escolar até a 4- série do le grau, em habilitação única, tendo como parâmetro de funcionamento, além da proposta constitucional de formação integral e integrada do desen­volvimento da criança (0 a 10 anos), a didática da pesquisa e da prática:

a) união indissolúvel de teoria & prática, de ensino & pesquisa, e insistência na extensão intrínseca;

b) elaboração própria como critério de avaliação no pro­fessor, que será orientador, e no aluno, que será novo mestre;

c) união de saber & mudar, no contexto da qualidade formal e política, sem aula e sem prova.

Nessa referência, acentuaremos a construção da práti­ca, como tentativa primeira de oferecer a 100 alunos — obtidos dentre 1 400 candidatos — a chance de aprender a aprender.

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1. Construindo a prática✓E difícil embutir no currículo a prática, a começar pelos

vícios históricos dos “estágios” e da “extensão”. Os estágios são concessões à prática, com presença curricular residual, mal organizados, sem acompanhamento de qualidade por parte do curso e por parte dos responsáveis no local do estágio. Na maioria dos casos mantém-se como exigência formal, resvalando para a exploração de mão-de-obra especializada barata. Órgãos públicos há que entregam aos estagiários as atividades de campo, liberando os técnicos que permanecem teorizando.

A extensão — pertinente quando intrínseca — arrasta- se no voluntariado e na ilusão de evitar o afastamento da universidade de seus compromissos sociais. Há exemplos de atividade extensionista, que, além do impacto na comunidade, motivou a formação política dos alunos. Mas são inúmeros os problemas de concepção e execução. Primeiro, não é fácil conservar a união intrínseca com o currículo, em termos de ensino & pesquisa, para não recair em invenção paralela. Segundo, frente à comunidade é fundamental desenvolver atividades sistemáticas e profundas, para não bastar-se com proveito para o aluno, deixando a população como cobaia. Terceiro, é quase inexistente a preocupação em reelaborar na teoria o trabalho de extensão. Por fim, facilmente incute-se em atividades extensionistas comunitárias o assistencialismo, pela falta de proposta fundamentada e emancipatória, pela tendência de oferecer pacotes sociais prévios, pela falta de experiência. Se é um mal repelente a ciência não se sensi­bilizar com o sofrimento do povo, não é menor mal confun­dir ciência com pieguice e voluntariados sonsos.

1. Prática não se restringe à aplicação da teoria, por mais que seja essencial. Toda teoria que não se aplique, já nisso se basta £ si mesma e para nada serve. Esta afirmação

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precisa ser bem compreendida, para não recair no extremo oposto. A aplicação prática não é único critério de validação teórica, até porque sempre são possíveis muitas maneiras de aplicação, cada uma contendo alguma “validade” relativa. Existe o “ lugar da teoria” — por isso é importante a pesquisa teórica — mas não significa que se faça teoria pela teoria, pois seria já fuga da realidade. A expressão “ lugar da teo­ria” denota forma própria de relevância frente à realidade, o que inclui “utilidade” histórica também. A aplicação ressalta o lado da qualidade formal, no aprimoramento das condições instrumentais de exercício profissional. Mas não é menos essencial reclamar o outro lado da prática, como prática da cidadania, em cujo plano deve aparecer a instrumentação científica na função de embasamento da profissão como forma de atuação social também. Indispensável é ser técnico compe­tente, como é indispensável ser cidadão atuante e organi­zado, trazendo para o bojo dessa cidadania a instrumentação científica adequada.

Qualidade formal não se faz sem qualidade política e vice-versa. A relação mútua é de necessária complementari­dade, porque a cidadania que interessa é a competente, não só em termos de organização política, mas igualmente em termos técnicos. Uma das expectativas mais significativas que a sociedade deposita na universidade é a formação de elite intelectual duplamente capaz: como profissional científico e como cidadão de vanguarda. Essa cidadania de vanguarda não pode ser obtida à revelia da aprendizagem acadêmica, através de atividades paralelas muitas vezes embutidas na extensão mas principalmente na própria construção científica da profissão. Nesse quadro, ciência deveria comparecer como capaz de aplicação e como capaz de mudança. A sociedade espera que essa elite acadêmica consiga propor bases científi­cas para transformações sociais alternativas.

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Essa questão se toma ainda mais congruente, se lem­brarmos que as ciências sociais se dedicam a pesquisar a práxis histórica do homem, algo de ostensiva praticidade e cotidianidade. Tal práxis precisa ser teorizada, não para fugir de si mesma, mas para retomar convenientemente instrumen- tada na direção de mudanças sociais relevantes. Toda forma brilhante de compreender a realidade é brilhante também porque é forma de enfrentar os seus problemas. A estringência lógica é instrumentação essencial de toda concepção teórica, mas ninguém mora nela.

2. Valorizar a prática não leva a qualquer prática. A prática aqui buscada é aquela contextuada pela teoria, de um lado, e pela pesquisa/ensino/extensão, de outro. Ou seja, toda prática deve estar relacionada com a formação acadêmica, para começar; em seguida, deve estar relacionada com o desdobramento da cidadania, e, mesmo nesse espaço, não cabe qualquer cidadania, mas aquela referida ao processo de formação, quer dizer: não desvinculada da qualidade formal. É fundamental dizer isso, para evitarmos banalizações fáceis, como empurrar para a prática tudo e nada que se faça na vida, ou como relegar ao plano da prática atividades apenas paralelas, paracurriculares, ou como supervalorizar a prática às custas da formação teórica global. São componentes fun­damentais:

a) necessita de orientação do professor, no sentido básico do termo: liberdade de expressão, iniciativa própria, mas construída com os necessários cuidados formais de uma proposta científica;

b) toda prática deve ter a sua elaboração teórica, para realizar em plenitude o confronto da teoria com a reali­dade histórica; jamais trata-se de prática dispersa, inter­mitente, esporádica, sem rumo, sem método, sem com­

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promisso com resultados; para tanto, é mister recons­truir teoricamente a prática, no que se garante também que a prática é fonte de conhecimento e não só apli­cação decorrente;

c) toda prática deve ser construída em fases aproximativas e cumulativas, até completar-se, para permitir acompanha­mento adequado por parte do orientador e por parte do próprio aluno; por vezes, frente a idéias que se imagi­nam alternativas, dispensa-se cuidado metódico e teórico, acreditando que do descuido surja criatividade; seria errôneo aprisionar a prática em esquemas rígidos e rituais, como seria errôneo definir bagunça irresponsável como estratégia de criação;

d) toda prática deve estar no contexto da formação acadê­mica, unindo saber & mudar, desde a aplicação teórica até a fundação científica do sujeito social e profissional;

e) deve existir espaço para prática coletiva, no sentido de se construírem projetos comuns em contexto de nego­ciação e diálogo, ainda que a elaboração teórica deva ser individual, para garantir que todos produzam pes­soalmente.

3. Na grade curricular, a prática deve aparecer de modo gradativo, passo a passo, como qualquer disciplina, tendo como meta a formação teórico-prática, ao longo, digamos, de 8 semestres:

a) no primeiro ano, a título de fundamentação teórica e metodológica rumo à capacidade de elaboração própria, caberia a prática inicial, que conteria pelo menos dois horizontes de confronto: conhecer in loco os lugares mais relevantes da prática institucional respectiva, de modo sistemático e planejado, para experimentar si­tuações características de realização histórica; confron­

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tar-se com práticas alheias, para amealhar exemplos vivos de realização concreta;

b) nos segundo e terceiro anos, já profissionalizantes, caberia a prática intermediária, definida como pro­gramações concretas sistemáticas e eficazes, embora li­mitadas no tempo, incluídas atividades de extensão; a eficácia reporta ao compromisso de construir práticas que não sejam só do interesse do aluno, mas garantam visível utilidade social; poderia caber um semestre dedicado a projeto alternativo criado pelo próprio aluno, para não restringir-se a trabalhos institucionais dados;

c) no quarto ano, já conclusivo, trata-se de prática pro­fissional plena, demandando dedicação diária (meio dia) e integração efetiva no local de trabalho sem regalia.

Por fim, é fundamental que exista, como integralização curricular, o trabalho de conclusão do curso, no estilo de uma tese, direcionado a motivar o aluno a produzir proposta teórico-prática de realização profissional. Seria teste maior de capacidade de elaboração própria, na qual se demonstre domínio teórico-metodológico, bem como condição de reali­zação prática e empírica. Em particular o último ano não deve estar abarrotado de tarefas curriculares, muito menos prejudicado por tarefas herdadas de semestres não-finalizados.

4. Conforme propostas alternativas, a prática tem papel fundamental de confronto e fecundação teórica, assim como vale repisar que é papel da teoria o confronto e fecundação prática. Representa uma opção da teoria e, por isso, é somente um critério da verdade, jamais esgotando as utopias conceituais de cada concepção teórica. Todavia, a prática é condição necessária de historicidade concreta, para poder acontecer. Teoria que nunca acontece, jamais se dirigiu à realidade, ou melttôr,' foge dela. A prática é limitante, pois

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não consegue executar toda a riqueza da teoria, mas não há história real sem prática.

As marcas limitantes da prática atormentam o teórico e o conduzem a fugir dela muitas vezes. O único jeito de alimentar certezas teóricas é não confrontá-las com a prática, já que na prática elas se desfazem inevitavelmente. Ade­mais, aparece a questão ideológica, porquanto não há como construir prática sem ideologia. Para cientistas que apreciam neutralidade científica, existe aí outra razão para evitar a prática, pois somente em teoria poder-se-ia fazer da vida concreta e histórica uma mera relação lógica. A prática competente não evita, mascara ou força ideologia, mas a concebe como componente natural do processo saber/mudar, tratando-se já de como controlar, não de como suprimir. Não há coisa mais ideológica do que a pretensão de suprimir a ideologia, pois coincidiria com a morte do homem político, em nome da forma vazia (Demo, 1989).

Faz parte da dialética compreender tal fecundação con­trária entre teoria e prática, trazendo à cena dos critérios de cientificidade não somente os formais (coerência, consistência, lógica), mas igualmente os políticos, apanhados hoje no conceito de discutibilidade: somente se aceita como científico o que é discutível formal e politicamente. Assim tratada, a ideologia contida na ciência não aparece só como demônio da deturpação, mas como motivação política fundamental de projetos alternativos e da própria função social da ciência, desde que permaneça discutível. A ideologia mais controlável é a discutível, até porque pode ser impulso à criatividade.

Para chegar ao “mudar”, como projeto emancipatório, entra em cena compromisso social com um tipo de sociedade e de história, que pede posicionamento político. Aí a ciência é instrumentação formal para alternativas históricas pelo

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menos mais toleráveis. A sociedade preferencial não é mera dedução lógico-formal, mas projeto político, na arena con­trária das ideologias sociais vigentes, dominantes e subalter­nas. Inevitavelmente a ciência ou subsidiará a ordem vi­gente, mesmo que pela via da abstenção estratégica, ou sub­sidiará a contra-ideologia, instrumentando os dominados no sentido de projeto alternativo de história (Demo, 1988a).

No extremo, a prática isolada se tom a fanatism o, ao recusar toda discussão de si mesma e a própria idéia de alternativa. Todavia, no seu devido lugar, a prática “traz novas dimensões ao conhecimento científico social... essen­ciais para a sua construção... Obriga à revisão teórica, porque na prática toda teoria é outra... Leva o cientista a ‘sujar’ as mãos, tomando-o concretamente histórico... ao mesmo tempo aproveitável e condenável... Assume a opção ideológica e submete-se ao julgamento histórico aberto... Pode colaborar no controle ideológico, fugindo do escamoteamento de suas justificações políticas... Tom a a teoria muito mais produ­tiva, porque a obriga a adequar-se a uma realidade proces­sual, inquieta, conflituosa, que pouco tem a ver com visão estereotipada da realidade social... Impõe à teoria o teste saudável da modéstia, porque em contato com a realidade concreta e política descobre-se facilmente que uma coisa é o discurso, outra é a prática. Não esgotamos a realidade, nem temos toda a verdade na mão; somos apenas pesquisa­dores, gente que duvida, erra, deturpa, mas, sabendo disso, quer reduzir o desacerto... Leva ao questionamento constante da formação acadêmica, centrada em irrelevâncias que divertem a alienação universitária, sem conseguir tornar as ciências sociais baluartes concretos de realização humana, salvaguarda da democracia, vigilância indomável contra as desigualdades sociais... Repõe a importância do componente político da realidade, que não só acontece, mas pode pelo

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menos em parte ser planejada; a prática traz a oportunidade histórica de construirmos, até onde possível, a nossa própria história, para que o projeto político seja expressão da so­ciedade possível e desejada” (Demo, 1984, 65-66).

A conversa sobre transformação histórica começa a ficar séria. A prática adequada incute no cientista social pelo menos duas virtudes essenciais: a modéstia do pesquisador, que descobre sobretudo que a sua descoberta é sempre parcial; e a pertinácia do lutador, que percebe ser toda mudança rele­vante luta renhida. O primeiro susto é surpreender-se pequeno na prática, tendo em vista que a distância entre a beleza da teoria e a dureza da prática pode ser alarmante. Torna-se patente que a grande maioria das propostas que se querem transformadoras não ultrapassam a conversa fiada, porque não se efetivam em nenhuma realização histórica coerente, com seus riscos e desafios. Descobre-se — e aí está o segundo susto — que é tendência típica das ciências sociais fazer este sermão farsante: apresentar-se a público como radicais, para encobrir o seu conservadorismo. Quanto mais falam sobre transformação, menos a realizam, satisfazendo- se com o aparato discursivo, que já é autêntico “aparelho ideológico” de governos e Estados. Para fins de controle e desmobilização social, nada mais estratégico que a lingua­gem falsamente radical, pois traveste de vanguarda o inter­mediário parasita. Não parece duvidoso que a tendência falastrona das ciências sociais se deve em parte pelo menos à falta de prática coerente. O sistema se diverte com isso, porque tem aí a estratégia mais fácil de se legitimar na sociedade: o discurso radical sem prática esparge a crença de que estamos em plena democracia.

5. Discutir a prática significa sempre também recolocar a questão da cidadania. Sem polemizar, cidadania quer dizer atuação política consciente e organizada, a nível de sujeito

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social. Remete à capacidade histórica de ocupação de espaço próprio, no contexto emancipatório; inclui a sua manifes­tação individual, mas se completa principalmente na organi­zação associativa, para ser competente. A qualidade política coloca para a universidade (e, mutatis mutandis, para a escola), ao lado da expectativa sobre competência científica, a pergunta fundamental: Competência para quê e para quem?

O profissional competente se realiza em dois horizontes mais marcantes: como capaz de operar a instrumentação científica em termos de aplicação prática e como capaz de ser ator eficaz na realidade histórica. Cidadania envolve os dois horizontes, embora no seu âmago se constitua de competência política. Olhando por este ângulo, são dis- cerníveis vários níveis de atuação política, tais como:

a) o profissional competente, politicamente acomodado;

b) o profissional competente, politicamente inquieto oumesmo questionador em termos individuais;

c) o profissional competente, politicamente organizado.

No primeiro caso, temos a atitude mais comum, de­corrente de elitização pela qual passa a formação dita “su­perior”. Chegando a pertencer a uma das elites sociais, ainda que não expressiva de modo geral, adota naturalmente pos­tura de privilegiado, e não se interessa por mudança. Não é desinteresse, mas interesse acomodado na ordem vigente, encoberto elegantemente pela proposta metodológica da neu­tralidade científica.

Embora a qualidade política não possa ser efetivada às custas da qualidade formal, neste caso trata-se exatamente do contrário: realizar qualidade formal às expensas da quali­dade política. “Bom cientista não faz política, apenas pesqui­sa!” Esta visão instrumentalista e tecnicista aparentemente

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neutra, além de notória deturpação da realidade, reproduz posição conservadora, no mínimo pela via da evasiva, que permite servir a qualquer sistema, sem questioná-lo. Essa marca histórica tem incutido uma tendência extrema de instrumentar a ganância do grupo dominante, que encontra nesse cientista “neutro” o seu lacaio ideal.

No segundo caso, trata-se de atitude já crítica, embora restrita à inquietude individual. É relativamente comum que cientistas consigam ver a realidade com olhos mais críticos, pois detêm um instrumental mais acurado de análise, o que já dignifica o papel da universidade, mas está longe de corresponder à expectativa social ou mesmo à expectativa da potencialidade científica. Pode recair na condição do pri­meiro caso, quando a verve crítica se atém ao plano verbal. Até certo ponto, tal atitude parece típica de intelectuais que, sabendo manejar a crítica social com virtuosismo por vezes marcante, não a levam às vias de fato, desunindo por outra via — irônica — saber & mudar.

No terceiro caso, temos o cientista capaz de perceber a importância da luta histórica na ocupação dos espaços so­ciais, no contexto da unidade de contrários, com realce para a forma organizada de cidadania. Não está dito, auto­maticamente, que a cidadania organizada se mova em di­reção da transformação, pois é possível — talvez predomi­nante — que se mova em direção oposta. Se um pesquisa­dor se alinhar a partido conservador, estaria oferecendo competência formal/política em direção conservadora, também legítima no contexto da democracia pluralista. A qualidade formal instrumenta a ideologia dominante, com ajustes históri­cos considerados necessários dentro de um sistema tomado como preservável. No outro lado, pode aparecer o pesquisa­dor voltado para instrumentar a contra-ideologia, movendo- se na direção de mudanças, em tom maior ou menor, de

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acordo com a confluência teórico-prática: alguns são refor­madores da ordem vigente, trabalham dentro da referência histórica do sistema dado, procurando introduzir processos sociais que, ao longe e na sua acumulação histórica, eclodam em condição favorável a superações históricas; outros se querem transformadores, desde que façam a prática coerente de confronto radical com o sistema vigente.

Não se trata de buscar limites estritos em meio a reali­dade tão fluida e escorregadia, como são os posicionamentos políticos. A coerência, entretanto, deve ser estringente, para não deixar dúvidas, nem na teoria, nem na prática, evitando o truque comum do intelectual esperto que sabe embrulhar num pacote brilhante e crítico uma postura retrógrada. Há reformadores que apenas maquiam o sistema; não empurram a história para a frente e, neste sentido, seriam melhor alcunhados de conservadores. Há conservadores que insistem de modo efetivo em liberdades humanas — há liberalismos que fazem isso — que melhor seria classificá-los como reformistas. E há transformadores que não transformam nada, usando o discurso radical apenas para tergiversar.

2. P inceladas de um currículo (ISEP)

1. O trajeto curricular de 8 semestres começa por um ano dedicado à fundamentação teórica e metodológica, como instrumentação imediata da elaboração própria. O aluno precisa apropriar-se de condições para se confrontar com as várias concepções de educação e de ciência, a par do domínio da língua portuguesa e sua didática, completando-se com didática e prática. Esta é definida como inicial, delimitada no esforço organizado de conhecimento in loco do sistema de ensino e como^confronto com práticas relevantes.

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A forma de avaliação típica é o trabalho de pesquisa para cada disciplina ao final do semestre, precedido de pelo menos 3 cumulativos, para facilitar o desdobramento cres­cente e a orientação do professor. Este assume papel de orientador, pode dar algumas aulas intermitentes, mas sua função principal é motivar o processo de pesquisa e cons­trução própria no aluno.

O aluno se apresenta ao respectivo orientador pelo menos2 vezes na semana e com ele discute o trajeto semestral, inclusive a prática, sendo esta a forma principal de freqüência.

Nos dois anos seguintes entra em cena o estudo pro­fissionalizante: ciências naturais e biológicas, matemática, ciências sociais e disciplinas voltadas ao desenvolvimento integrado da criança, sem reinventar qualquer cisão entre pré-escolar (ou dentro dele) e a primeira parte do 1Q grau.

A prática recebe o nome de intermediária, definida como atividade sistemática eficaz, embora limitada no tempo (média de 1 dia na semana), cabendo a extensão nesse espaço facilmente. O leque da prática é em princípio infinito, mas não pode descambar na proliferação de práticas esporádicas, dispersivas, que relembram o estágio. É de bom aviso re­alçar um semestre para prática alternativa, ancorada na ini­ciativa pessoal do aluno, para não restringirmos tudo à prática institucional.

Tem o papel de confrontar com a realidade tudo o que se vê na teoria, de modo sistemático e eficaz, já combi­nando saber e mudar. Não se trata apenas da aplicação prática, mas igualmente de exercícios práticos de cidadania possível, sempre no contexto da formação acadêmica. A extensão pode entrar aí de modo adequado, desde que intrínseca.

No quarto ano, a carga da prática será maior, descrita como prática profissional, através da qual o aluno assume papel específico institucional, de meio tempo, da forma mais

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integrada possível, como qualquer profissional. Passa meio dia no curso e meio dia na instituição profissional. Terá carga teórica menor, embora se torne ainda mais importante a elaboração teórica da prática, terminando o 8g semestre com um trabalho de fim de curso, direcionado para a cons­trução teórico-prática da proposta profissional de cada aluno (projeto educativo para a vida profissional).

2. Em termos de metas, poderíamos sumariar em qua­lidade form al e qualidade política. É preciso motivar o alu­no a se tomar competente em termos de domínio da instru­mentação científica. Deve saber de fato a matéria. A ferra­menta mais importante, todavia, é aprender a aprender, ou seja: criar a capacidade de inventar soluções próprias. O curso não assume compromisso de ensinar tudo, porque é lenda essa pretensão, mas sobretudo porque o seu papel básico é despertar a habilidade pessoal de formar em si a atitude de pesquisa.

Faz parte da qualidade formal o domínio teórico, a versatilidade metodológica, a capacidade de aplicação prática, o treino no manuseio de dados. Tudo isso se alcança melhor pela pesquisa, fincada na elaboração própria. Esta é a forma básica de avaliação, nunca a prova, que pode aparecer apenas como expediente eventual ou operacional.

A qualidade política perpassa muitos momentos possíveis na construção curricular, desde o aparecimento do contexto social em disciplinas que isso permitam (estudos sociais, por exemplo), até maneiras de aplicação concreta que liguem saber & mudar. Embora se possa motivar um leque de expedientes paracurriculares ou extracurriculares, mais fun­damental é a sua inclusão curricular como tal, para não tomá- la como simples decorrência eventual, voluntária, da maneira como geralmente é vista a extensão.

A assim dita “moral e cívica”, em vez de ser sermão da direita ou da esquerda, poderia tornar-se algo produzido

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pela iniciativa discente, questionando a problemática social vigente e seus contornos culturais: família, religião, governo, Estado, justiça social, juventude, droga, sexo. Evidentemente, o procedimento curricular mais apto à formação da quali­dade política é a prática, que leva não só à aplicação cien­tífica, mas sobretudo à fundamentação científica de práticas alternativas, unindo sempre saber & mudar.

A iniciativa do aluno é o maior patrimônio didático, sem o que de pouco adiantaria a competência do professor. Tal iniciativa não deve voltar-se apenas a estudar, mas igualmente ao questionamento social da ciência e da so­ciedade, de onde surge o manancial sempre decantado das lideranças novas de origem universitária. Para além do que a lei já prevê, a prática discente pode corresponder a essa expectativa histórica de cultivo de lideranças alternativas. A iniciativa pode descambar por caminhos de unilateralização às expensas da qualidade formal, quando se toma partici­pação política como partidarização, desrespeito ao mérito acadêmico, “democratismo” que substitui competência por aclamação, truque preocupado com “jeitinhos” para chegar ao diploma com o menor esforço possível. Não cabe ao aluno decidir o currículo, embora deva discuti-lo perti­nazmente. Cabe ao aluno avaliar o professor, bem como o próprio curso, sem desvirtuar o espírito da proposta, no sentido de aprofundar a oportunidade da pesquisa, da elabo­ração própria, da prática emancipatória.

3. Na realização do currículo é sempre questão vital a relação professor!aluno, em particular nessa proposta, que supõe relacionamento capaz de conviver com a ambiência emancipatória com base na pesquisa. O desafio poderia ser resumido na gestação da autoridade que não seja autoritária. Agir de modo autoritário não combina com educação. Mas perder a autoridade também não.

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Voltando a uma discussão metodológica sobre critérios de cientificidade, intriga sempre a presença insistente do argumento de autoridade, que, de si, jamais deveria ser argumento, mas acaba sendo o dominante. Qualquer enun­ciado científico deveria valer por sua qualidade intrínseca, não por força de influências extrínsecas, em particular de autoridades. Entretanto, como ciência não é apenas fenômeno lógico, mas igualmente social, sempre emerge a circunstância social. Alguns chamam a isso de “intersubjetividade”, deno­tando a opinião dominante entre os cientistas importantes, como critério de aceitação científica (Demo, 1989).

O argumento de autoridade, todavia, torna-se mais tole­rável quando ocupa o espaço da autoridade do argumento, significando a respeitabilidade de um cientista obtida a peso de seu mérito acadêmico. Respeita-se o que ele diz, não pela submissão ao autoritarismo, mas pelo reconhecimento da sua autoridade. Escutar um professor produtivo, apreciar um livro de pesquisador criativo, preferir certa universidade pela sua marca de vanguarda científica, pode indicar reconhe­cimento do mérito acadêmico implícito.

Professor autoritário é aquele que se vale da posição de força porque lhe faltam argumentos ou que esbraveja agres­sivamente porque não tem o que ensinar, ou que tolhe a discussão crítica para evitar que se descubram os seus vazios. Professor com autoridade, por outra, é aquele que, a peso do bom exemplo, impõe respeito. Esta marca é fundamental, derivada da autoridade merecida. Somente este último tipo de professor pode exercer papel motivador da emancipação do aluno, pois é mestre em sentido legítimo, podendo, pois, apoiar o surgimento de novos mestres. Será exigente e dis­ciplinado, porque competência científica precisa ser conquis­tada palmo a palmo, com o suor do rosto, progressivamente, sob o ritmo insistente de avaliação severa. Atém-se às regras de jogo do curso, d^itro do espírito da pesquisa e da

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emancipação educativa, porque não carece mais que isso para “impor-se”. Por isso mesmo, não há de temer qualquer avaliação, também por parte dos alunos.

Autoridade fundada no mérito convive com consciên­cia crítica de seus limites, que cabe como uma luva no conceito de pesquisa. Não pretende ensinar tudo, porque não existe esse “sábio universal”, mas sobretudo porque seria apequenar a ciência e a realidade imaginar que coubessem no “ensinar”. Sua meta é outra: motivar no aluno condições de criar soluções próprias, afastando sempre a reprodução de discípulos. Sabe que não é possível substituir a iniciativa dos alunos; ao contrário, sua missão é fomentar tal iniciativa e conseguir que o aluno se torne pesquisador, não por imposição disciplinar, mas como processo de conquista for­mal e política.

4. A “rotina” do ISEP toma a seguinte forma: pela manhã, são programados pelo menos 2 eventos semanais (conferências, exposições, experiências, audiovisuais) e inter­mitentemente aulas estratégicas, que podem até tomar as 5 manhãs (por exemplo, um curso de estatística ou de gramática); pela tarde, há orientação, estando os orientadores integralmente disponíveis para pelo menos 2 contatos se­manais com cada aluno. De modo geral, há 2 orientadores por disciplina, com exceção da prática, na qual todos os professores são orientadores, com número prévio de orien- tandos. A cada fim de mês, apresenta-se pelo menos um trabalho escrito prévio em cada disciplina, culminando no trabalho de fim de semestre, inclusive para a prática. O aluno passa a “dar conta de um tema”, e é orientado para tanto, sob peso de intensa leitura e pesquisa. A biblioteca é espaço essencial da pesquisa e da elaboração própria.

O aluno iniciante sofre fase de profunda desestrutura- ção, porque está manietado à cópia (aula e prova). Na pri­meira semana, apresentam-se as disciplinas do semestre,

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com 3 a 5 textos limitados de leitura (por volta de 20 textos ao todo), com o objetivo também de evitar o vazio. Este “pacote” de leitura vale apenas para o l 9 semestre, seguindo- se leitura comandada pelas necessidades do tema, nunca truncadas e funcionalizadas. A orientação começa na segunda semana, após leitura prévia, voltada para a descoberta do tema a ser tratado/pesquisado no semestre em cada disci­plina. A desestruturação se supera com a conquista da auto­confiança na capacidade de construir ciência com as próprias mãos, dentro do tamanho de cada um. Aí é essencial a noção desmitificada de pesquisa e em especial seu fundo educa- tivo-emancipatório.

O aluno passa a “administrar” seu tempo: comparece às orientações, sai para a prática em média 4 horas semanais (no 1Q ano), precisa ler e escrever. O melhor lugar para estudar é o instituto, onde estão livros, colegas, orientado­res, além de espaço ad hoc. Mas é possível conquistar tem­po para si, em casa ou em lugar preferido, dentro da noção de tempo integral. Para os professores, as manhãs signifi­cam momento de pesquisa, além de rotinas administrati­vas, porque é essencial que, devendo orientar o aluno a produzir, eles mesmos produzam. Professor que não produz não pode orientar.

Emerge “liberdade acadêmica” na escolha dos temas, na organização da orientação e da prática, na elaboração própria. Para correr menor risco de “bagunça”, a estrutu­ração da orientação e da avaliação recebe certa sistemati- cidade. Ainda assim, experiências como essa não poderiam dispensar a “liberdade acadêmica”, para corresponder ao desafio emancipatório, tendo que encontrar meio termo entre rigidez disciplinar, já apenas formal, e flexibilidade exces­siva, já improdutiva. O aluno tende a empurrar o orientador para a condição de “matrona científica”, que preforma o caminho que o estudante não sabe construir por si, e a isto

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é preciso resistir bravamente. O orientador não “tira dúvidas”, decide leituras, enquadra trabalhos, mas orienta a que o próprio aluno o faça. Jamais será o caso substituir a inicia­tiva do aluno.

Por outra, o professor também propende a instalar-se na rotina imitativa, razão pela qual é fundamental que produza sempre textos próprios, que devem aparecer em lugar desta­cado na biblioteca. Mais que isso, os professores precisam envolver-se em projetos curriculares de pesquisa, para surgir ocupação de espaço científico próprio.

Faz parte da “rotina” o tempo integral, para professor e aluno. Em região pobre, esta exigência é, ao mesmo tempo, compreensível e problemática. Do ponto de vista da criança a ser atendida, é direito dela o melhor profissional possível. Mas poucos podem estudar o dia todo. Nesse contexto, é mister reconhecer que tal proposta não pode ser exclusiva, embora deva ter chance de existir, como fermento da melhor qualidade viável. Cabe ao Estado comparecer com apoios operacionais aos alunos pobres, tendo em vista que a pobreza da população não é gerada pelo instituto, nem pode ser critério acadêmico.

Espera-se um “profissional recriado”, muito diferente dos vigentes, capaz de construir um projeto próprio educativo e assistencial, ao mesmo tempo competente cientificamen­te e participativo politicamente. Agentes lídimos de mudança, com base no saber e na cidadania. Como contrapeso às exi­gências extremas de trabalho produtivo integral, o ISEP assumiu compromisso de atuar, sem isolamento, com os “recursos humanos” locais, tais quais são, evitando-se de­pendências. Por isso o conceito de pesquisa se ajusta a tal expectativa, começando no pré-escolar, como princípio científico e educativo.

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“ edro Demo é PhD em Sociologia, professor titular em Sociologia da UnB.

C O R T E Z S U l

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Obras do AutorAvaliação Qualitativa - Polêm icas do Nosso Tem po, v. 25, 2a edição

Pobreza Política - Polêm icas do Nosso Tem po, v. 27 , 3a ed ição

Participação é conquista, 5a ed ição - Tem as em aberto , educação.

Saber Pensar, 3 a e d iç ã o , (G uia da Escola C idadã, vol. 6)

Educação pelo Avesso, 2a edição .