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Para Viver Um Grande Amor Vinicius de Moraes Para viver um grande amor, preciso é muita concentração e muito siso, muita seriedade e pouco riso — para viver um grande amor. Para viver um grande amor, mister é ser um homem de uma só mulher; pois ser de muitas, poxa! é de colher... — não tem nenhum valor. Para viver um grande amor, primeiro é preciso sagrar-se cavalheiro e ser de sua dama por inteiro — seja lá como for. Há que fazer do corpo uma morada onde clausure-se a mulher amada e postar-se de fora com uma espada — para viver um grande amor. Para viver um grande amor, vos digo, é preciso atenção como o "velho amigo", que porque é só vos quer sempre consigo para iludir o grande amor. É preciso muitíssimo cuidado com quem quer que não esteja apaixonado, pois quem não está, está sempre preparado pra chatear o grande amor. Para viver um amor, na realidade, há que compenetrar-se da verdade de que não existe amor sem fidelidade — para viver um grande amor. Pois quem trai seu amor por vanidade é um desconhecedor da liberdade, dessa imensa, indizível liberdade que traz um só amor. Para viver um grande amor, il faut além de fiel, ser bem conhecedor de arte culinária e de judô — para viver um grande amor. Para viver um grande amor perfeito, não basta ser apenas bom sujeito; é preciso também ter muito peito — peito de remador. É preciso olhar sempre a bem-amada como a sua primeira namorada e sua viúva também, amortalhada no seu finado amor. É muito necessário ter em vista um crédito de rosas no florista — muito mais, muito mais que na modista! — para aprazer ao grande amor. Pois do que o grande amor quer saber mesmo, é de amor, é de amor, de amor a esmo; depois, um tutuzinho com torresmo conta ponto a favor... Conta ponto saber fazer coisinhas: ovos mexidos, camarões, sopinhas, molhos, strogonoffs — comidinhas para depois do amor. E

Poemas para dramatizar

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Para Viver Um Grande AmorVinicius de Moraes

Para viver um grande amor, preciso é muita concentração e muito siso, muita seriedade e pouco riso — para viver um grande amor.

Para viver um grande amor, mister é ser um homem de uma só mulher; pois ser de muitas, poxa! é de colher... — não tem nenhum valor.

Para viver um grande amor, primeiro é preciso sagrar-se cavalheiro e ser de sua dama por inteiro — seja lá como for. Há que fazer do corpo uma morada onde clausure-se a mulher amada e postar-se de fora com uma espada — para viver um grande amor.

Para viver um grande amor, vos digo, é preciso atenção como o "velho amigo", que porque é só vos quer sempre consigo para iludir o grande amor. É preciso muitíssimo cuidado com quem quer que não esteja apaixonado, pois quem não está, está sempre preparado pra chatear o grande amor.

Para viver um amor, na realidade, há que compenetrar-se da verdade de que não existe amor sem fidelidade — para viver um grande amor. Pois quem trai seu amor por vanidade é um desconhecedor da liberdade, dessa imensa, indizível liberdade que traz um só amor.

Para viver um grande amor, il faut além de fiel, ser bem conhecedor de arte culinária e de judô — para viver um grande amor.

Para viver um grande amor perfeito, não basta ser apenas bom sujeito; é preciso também ter muito peito — peito de remador. É preciso olhar sempre a bem-amada como a sua primeira namorada e sua viúva também, amortalhada no seu finado amor.

É muito necessário ter em vista um crédito de rosas no florista — muito mais, muito mais que na modista! — para aprazer ao grande amor. Pois do que o grande amor quer saber mesmo, é de amor, é de amor, de amor a esmo; depois, um tutuzinho com torresmo conta ponto a favor...

Conta ponto saber fazer coisinhas: ovos mexidos, camarões, sopinhas, molhos, strogonoffs — comidinhas para depois do amor. E o que há de melhor que ir pra cozinha e preparar com amor uma galinha com uma rica e gostosa farofinha, para o seu grande amor?

Para viver um grande amor é muito, muito importante viver sempre junto e até ser, se possível, um só defunto — pra não morrer de dor. É preciso um cuidado permanente não só com o corpo mas também com a mente, pois qualquer "baixo" seu, a amada sente — e esfria um pouco o amor. Há que ser bem cortês sem cortesia; doce e conciliador sem covardia; saber ganhar dinheiro com poesia — para viver um grande amor.

É preciso saber tomar uísque (com o mau bebedor nunca se arrisque!) e ser impermeável ao diz-que-diz-que — que não quer nada com o amor.

Mas tudo isso não adianta nada, se nesta selva oscura e desvairada não se souber achar a bem-amada — para viver um grande amor.

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Drummond...só podia ser dele...

Quando encontrar alguém e esse alguém fizer seu coração parar de funcionar por alguns segundos, preste atenção: pode ser a pessoa mais importante da sua vida. Se os olhares se cruzarem e, neste momento, houver o mesmo brilho intenso entre eles, fique alerta: pode ser a pessoa que você está esperando desde o dia em que nasceu. Se o toque dos lábios for intenso, se o beijo for apaixonante, e os olhos se encherem d'água neste momento, perceba: existe algo mágico entre vocês. Se o primeiro e o último pensamento do seu dia for essa pessoa, se a vontade de ficar juntos chegar a apertar o coração, agradeça: Deus te mandou um presente divino - O Amor. Se um dia tiverem que pedir perdão um ao outro por algum motivo e em troca receber um abraço, um sorriso, um afago nos cabelos e os gestos valerem mais que mil palavras, entregue-se: vocês foram feitos um pro outro. Se por algum motivo você estiver triste, se a vida te deu uma rasteira e a outra pessoa sofrer o seu sofrimento, chorar as suas lágrimas e enxugá-las com ternura, que coisa maravilhosa: você poderá contar com ela em qualquer momento de sua vida. Se você conseguir, em pensamento, sentir o cheiro da pessoa como se ela estivesse ali do seu lado... Se você achar a pessoa maravilhosamente linda, mesmo ela estando de pijamas velhos, chinelos de dedo e cabelos emaranhados... Se você não consegue trabalhar direito o dia todo, ansioso pelo encontro que está marcado para a noite... Se você não consegue imaginar, de maneira nenhuma, um futuro sem a pessoa ao seu lado... Se você tiver a certeza que vai ver a outra envelhecendo e, mesmo assim, tiver a convicção que vai continuar sendo louco por ela... Se você preferir morrer, antes de ver a outra partindo: é o amor que chegou na sua vida. É uma dádiva. Muitas pessoas apaixonam-se muitas vezes na vida, mas poucas amam ou encontram um amor verdadeiro. Ou às vezes encontram e, por não prestarem atenção nesses sinais, deixam o amor passar, sem deixá-lo acontecer verdadeiramente. É o livre-arbítrio. Por isso, preste atenção nos sinais - não deixe que as loucuras do dia-a-dia o deixem cego para a melhor coisa da vida: O Amor.

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Essa negra fulo _ Jorge de Lima

Ora, se deu que chegou (isso já faz muito tempo) no bangüê dum meu avô uma negra bonitinha, chamada negra Fulô.

Essa negra Fulô!Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô! (Era a fala da Sinhá) — Vai forrar a minha cama pentear os meus cabelos, vem ajudar a tirar a minha roupa, Fulô!

Essa negra Fulô!

Essa negrinha Fulô!ficou logo pra mucama pra vigiar a Sinhá, pra engomar pro Sinhô!

Essa negra Fulô! Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!(Era a fala da Sinhá) vem me ajudar, ó Fulô, vem abanar o meu corpo que eu estou suada, Fulô! vem coçar minha coceira, vem me catar cafuné, vem balançar minha rede, vem me contar uma história, que eu estou com sono, Fulô!

Essa negra Fulô!

"Era um dia uma princesa que vivia num castelo que possuía um vestido com os peixinhos do mar. Entrou na perna dum pato saiu na perna dum pinto o Rei-Sinhô me mandou que vos contasse mais cinco".

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Essa negra Fulô! Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!Vai botar para dormir esses meninos, Fulô! "minha mãe me penteou minha madrasta me enterrou pelos figos da figueira que o Sabiá beliscou".

Essa negra Fulô! Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô! (Era a fala da Sinhá Chamando a negra Fulô!)Cadê meu frasco de cheiroQue teu Sinhô me mandou?— Ah! Foi você que roubou!Ah! Foi você que roubou!

Essa negra Fulô!Essa negra Fulô!

O Sinhô foi ver a negra levar couro do feitor. A negra tirou a roupa, O Sinhô disse: Fulô! (A vista se escureceu que nem a negra Fulô).

Essa negra Fulô!Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!Cadê meu lenço de rendas, Cadê meu cinto, meu broche, Cadê o meu terço de ouro que teu Sinhô me mandou? Ah! foi você que roubou! Ah! foi você que roubou!

Essa negra Fulô!Essa negra Fulô!

O Sinhô foi açoitar sozinho a negra Fulô. A negra tirou a saia

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e tirou o cabeção, de dentro dêle pulou nuinha a negra Fulô.

Essa negra Fulô!Essa negra Fulô!

Ó Fulô! Ó Fulô!Cadê, cadê teu Sinhôque Nosso Senhor me mandou? Ah! Foi você que roubou, foi você, negra fulô?

Essa negra Fulô!

 

 Inverno_ Jorge de Lima

Zefa, chegou o inverno!Formigas de asas e tanajuras! Chegou o inverno!Lama e mais lamachuva e mais chuva, Zefa! Vai nascer tudo, Zefa,Vai haver verde, verde do bom, verde nos galhos, verde na terra, verde em ti, Zefa, que eu quero bem!Formigas de asas e tanajuras! O rio cheio, barrigas cheias, mulheres cheias, Zefa! Águas nas locas, pitus gostosos, carás, cabojés, e chuva e mais chuva! Vai nascer tudo milho, feijão, até de novo teu coração, Zefa!Formigas de asas e tanajuras! Chegou o inverno!

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Chuva e mais chuva! Vai casar, tudo, moça e viúva!Chegou o inverno Covas bem fundas pra enterrar cana:cana caiana e flor de Cuba!Terra tão mole que as enxadas nelas se afundam com olho e tudo!Leite e mais leite pra requeijões!Cargas de imbu!Em junho o milho, milho e canjica pra São João!E tudo isto, Zefa...E mais gostoso que tudo isso: noites de frio, lá fora o escuro, lá fora a chuva, trovão, corisco, terras caídas, córgos gemendo, os caborés gemendo, os caborés piando, Zefa! Os cururus cantando, Zefa! Dentro da nossa casa de palha: carne de sol chia nas brasas, farinha d'água, café, cigarro, cachaça, Zefa... ...rede gemendo...Tempo gostoso!Vai nascer tudo! Lá fora a chuva, chuva e mais chuva, trovão, corisco, terras caídas e vento e chuva, chuva e mais chuva! Mas tudo isso, Zefa, vamos dizer, só com os poderes de Jesus Cristo!

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José

E agora, José?A festa acabou,a luz apagou,o povo sumiu,a noite esfriou,e agora, José?e agora, Você?Você que é sem nome,que zomba dos outros,Você que faz versos,que ama, protesta?e agora, José?

Está sem mulher,está sem discurso,está sem carinho,já não pode beber,já não pode fumar,cuspir já não pode,a noite esfriou,o dia não veio,o bonde não veio,o riso não veio,não veio a utopiae tudo acaboue tudo fugiue tudo mofou,e agora, José?

E agora, José?sua doce palavra,seu instante de febre,sua gula e jejum,sua biblioteca,sua lavra de ouro,seu terno de vidro,sua incoerência,seu ódio, - e agora?

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Com a chave na mão quer abrir a porta,não existe porta;quer morrer no mar,mas o mar secou;quer ir para Minas,Minas não há mais.José, e agora?

Se você gritasse,se você gemesse,se você tocasse,a valsa vienense,se você dormisse,se você cansasse,se você morresse....Mas você não morre,você é duro, José!

Sozinho no escuroqual bicho-do-mato,sem teogonia,sem parede nuapara se encostar,sem cavalo pretoque fuja do galope,você marcha, José!José, para onde?

Morte do Leiteiro Carlos Drummond de Andrade

Há pouco leite no país,é preciso entregá-lo cedo.Há muita sede no país,é preciso entregá-lo cedo.

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Há no país uma legenda,que ladrão se mata com tiro.Então o moço que é leiteirode madrugada com sua latasai correndo e distribuindoleite bom para gente ruim.Sua lata, suas garrafase seus sapatos de borrachavão dizendo aos homens no sonoque alguém acordou cedinhoe veio do último subúrbiotrazer o leite mais frioe mais alvo da melhor vacapara todos criarem forçana luta brava da cidade.

Na mão a garrafa brancanão tem tempo de dizeras coisas que lhe atribuonem o moço leiteiro ignaro,morados na Rua Namur,empregado no entreposto,com 21 anos de idade,sabe lá o que seja impulsode humana compreensão.E já que tem pressa, o corpovai deixando à beira das casasuma apenas mercadoria.

E como a porta dos fundostambém escondesse genteque aspira ao pouco de leitedisponível em nosso tempo,avancemos por esse beco,peguemos o corredor,depositemos o litro...Sem fazer barulho, é claro,que barulho nada resolve.

Meu leiteiro tão sutilde passo maneiro e leve,antes desliza que marcha.É certo que algum rumorsempre se faz: passo errado,vaso de flor no caminho,cão latindo por princípio,ou um gato quizilento.E há sempre um senhor que acorda,resmunga e torna a dormir.

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Mas este acordou em pânico(ladrões infestam o bairro),não quis saber de mais nada.O revólver da gavetasaltou para sua mão.Ladrão? se pega com tiro.Os tiros na madrugadaliquidaram meu leiteiro.Se era noivo, se era virgem,se era alegre, se era bom,não sei,é tarde para saber.

Mas o homem perdeu o sonode todo, e foge pra rua.Meu Deus, matei um inocente.Bala que mata gatunotambém serve pra furtara vida de nosso irmão.Quem quiser que chame médico,polícia não bota a mãoneste filho de meu pai.Está salva a propriedade.A noite geral prossegue,a manhã custa a chegar,mas o leiteiroestatelado, ao relento,perdeu a pressa que tinha.

Da garrafa estilhaçada,no ladrilho já serenoescorre uma coisa espessaque é leite, sangue... não sei.Por entre objetos confusos,mal redimidos da noite,duas cores se procuram,suavemente se tocam,amorosamente se enlaçam,formando um terceiro toma que chamamos aurora.

Romance II ou do Ouro Incansável _ Cecília Meireles Mil bateias vão rodando sobre córregos escuros; a terra vai sendo abertapor intermináveis sulcos;infinitas galeriaspenetram morros profundos.

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De seu calmo esconderijo,o ouro vem, dócil e ingênuo;torna-se pó, folha, barra,prestígio, poder, engenho...É tão claro! - e turva tudo:honra, amor e pensamento.

Borda flores nos vestidos, sobe a opulentos altares, traça palácios e pontes,eleva os homens audazes,e acende paixões que alastram sinistras rivalidades.

Pelos córregos, definhamnegros a rodar bateias.Morre-se de febre e fomesobre a riqueza da terra:uns querem metais luzentes,outros, as redradas pedras.

Ladrões e contrabandistas estão cercando os caminhos;cada família disputaprivilégios mais antigos;os impostos vão crescendo e as cadeias vão subindo.

Por ódio, cobiça, inveja,vai sendo o inferno traçado.Os reis querem seus tributos,- mas não se encontram vassalos.Mil bateias vão rodando,mil bateias sem cansaço.

Mil galerias desabam;mil homens ficam sepultos;mil intrigas, mil enredosprendem culpados e justos;

já ninguém dorme tranqüilo,que a noite é um mundo de sustos.

Descem fantasmas dos morros,vêm almas dos cemitérios:todos pedem ouro e prata, e estendem punhos severos,mas vão sendo fabricadasmuitas algemas de ferro.

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Romance XXI ou das Idéias A vastidão desses campos.A alta muralha das serras.As lavras inchadas de ouro.Os diamantes entre as pedras.Negros, índios e mulatos.Almocrafes e gamelas.

Os rios todos virados.Toda revirada, a terra.Capitães, governadores,padres intendentes, poetas.

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Carros, liteiras douradas,cavalos de crina aberta.A água a transbordar das fontes.Altares cheios de velas.Cavalhadas. Luminárias.Sinos, procissões, promessas.Anjos e santos nascendo em mãos de gangrena e lepra.Finas músicas broslando as alfaias das capelas.Todos os sonhos barrocosdeslizando pelas pedras.Pátios de seixos. Escadas.Boticas. Pontes. Conversas.Gente que chega e que passa.E as idéias.

Amplas casas. Longos muros.Vida de sombras inquietas.Pelos cantos da alcovas,histerias de donzelas.Lamparinas, oratórios,bálsamos, pílulas, rezas.Orgulhosos sobrenomes.Intrincada parentela.No batuque das mulatas,a prosápia degenera:pelas portas dos fidalgos, na lã das noites secretas,meninos recém-nascidoscomo mendigos esperam.Bastardias. Desavenças.Emboscadas pela treva.Sesmarias, salteadores.Emaranhadas invejas.O clero. A nobreza. O povo.E as idéias.

E as mobílias de cabiúna.E as cortinas amarelas.Dom José. Dona Maria.Fogos. Mascaradas. Festas.Nascimentos. Batizados.Palavras que se interpretamnos discursos, nas saúdes...Visitas. Sermões de exéquias.Os estudantes que partem.Os doutores que regressam.(Em redor das grandes luzes,há sempre sombras perversas.

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Sinistros corvos espreitampelas douradas janelas.)E há mocidade! E há prestígio.E as idéias.

As esposas preguiçosasna rede embalando as sestas.Negras de peitos robustosque os claros meninos cevam.Arapongas, papagaios, passarinhos da floresta.Essa lassidão do tempoentre imbaúbas, quaresmas,cana, milho, bananeirase a brisa que o riacho encrespa.Os rumores familiaresque a lenta vida atravessam:elefantíase; partos;sarna; torceduras; quedas;sezões; picadas de cobras;sarampos e erisipelas...Candombeiros. Feiticeiros.Ungüentos. Emplastos. Ervas.Senzalas. Tronco. Chibata.Congos. Angolas. Benguelas.Ó imenso tumulto humano!E as idéias.

Banquetes. Gamão. Notícias.Livros. Gazetas. Querelas.Alvarás. Decretos. Cartas.A Europa a ferver em guerras.Portugal todo de luto:triste Rainha o governa!Ouro! Ouro! Pedem mais ouro!E sugestões indiscretas:Tão longe o trono se encontra!Quem no Brasil o tivera!Ah, se Dom José IIpõe a coroa na testa!Uns poucos de americanos,por umas praias desertas,já libertaram seu povoda prepotente Inglaterra!Washington. Jefferson. Franklin.(Palpita a noite, repletade fantasmas, de presságios...)E as idéias.

Doces invenções da Arcádia!

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Delicada primavera:pastoras, sonetos, liras,- entre as ameaças austerasde mais impostos e taxasque uns protelam e outros negam.Casamentos impossíveis.Calúnias. Sátiras. Essapaixão da mediocridadeque na sombra se exaspera.E os versos de asas douradas,que amor trazem e amor levam...Anarda. Nise. Marília...As verdades e as quimeras.Outras leis, outras pessoas.Novo mundo que começa.Nova raça. Outro destino.Planos de melhores eras.E os inimigos atentos,que, de olhos sinistros, velam.E os aleives. E as denúncias.E as idéias.

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Tu Tens um Medo Acabar. Não vês que acabas todo o dia. Que morres no amor. Na tristeza. Na dúvida. No desejo. Que te renovas todo dia. No amor. Na tristeza Na dúvida.

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No desejo. Que és sempre outro. Que és sempre o mesmo. Que morrerás por idades imensas. Até não teres medo de morrer. E então serás eterno. Não ames como os homens amam. Não ames com amor. Ama sem amor. Ama sem querer. Ama sem sentir. Ama como se fosses outro. Como se fosses amar. Sem esperar. Tão separado do que ama, em ti, Que não te inquiete Se o amor leva à felicidade, Se leva à morte, Se leva a algum destino. Se te leva. E se vai, ele mesmo... Não faças de ti Um sonho a realizar. Vai. Sem caminho marcado. Tu és o de todos os caminhos. Sê apenas uma presença. Invisível presença silenciosa. Todas as coisas esperam a luz, Sem dizerem que a esperam. Sem saberem que existe. Todas as coisas esperarão por ti, Sem te falarem. Sem lhes falares. Sê o que renuncia Altamente: Sem tristeza da tua renúncia!

Sem orgulho da tua renúncia! Abre as tuas mãos sobre o infinito. E não deixes ficar de ti Nem esse último gesto! O que tu viste amargo, Doloroso, Difícil, O que tu viste inútil Foi o que viram os teus olhos Humanos, Esquecidos...

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Enganados... No momento da tua renúncia Estende sobre a vida Os teus olhos E tu verás o que vias: Mas tu verás melhor... ... E tudo que era efêmero se desfez. E ficaste só tu, que é eterno.

O Vaqueiro Eu venho dêrne menino, Dêrne munto pequenino, Cumprindo o belo destino Que me deu Nosso Senhô. Eu nasci pra sê vaquêro, Sou o mais feliz brasilêro, Eu não invejo dinhêro, Nem diproma de dotô. Sei que o dotô tem riquêza, É tratado com fineza, Faz figura de grandeza,

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Tem carta e tem anelão, Tem casa branca jeitosa E ôtas coisa preciosa; Mas não goza o quanto goza Um vaquêro do sertão.

Da minha vida eu me orgúio, Levo a Jurema no embrúio Gosto de ver o barúio De barbatão a corrê, Pedra nos casco rolando, Gaios de pau estralando, E o vaquêro atrás gritando, Sem o perigo temê. Criei-me neste serviço, Gosto deste reboliço, Boi pra mim não tem feitiço, Mandinga nem catimbó. Meu cavalo Capuêro, Corredô, forte e ligêro, Nunca respeita barsêro De unha de gato ou cipó. Tenho na vida um tesôro Que vale mais de que ôro: O meu liforme de côro, Pernêra, chapéu, gibão. Sou vaquêro destemido, Dos fazendêro querido, O meu grito é conhecido Nos campo do meu sertão. O pulo do meu cavalo Nunca me causou abalo; Eu nunca sofri um galo, pois eu sei me desviá. Travesso a grossa chapada, Desço a medonha quebrada, Na mais doida disparada, Na pega do marruá. Se o bicho brabo se acoa, Não corro nem fico à tôa: Comigo ninguém caçoa, Não corro sem vê de quê. É mêrmo por desaforo Que eu dou de chapéu de côro Na testa de quarqué tôro Que não qué me obedecê. Não dou carrêra perdida, Conheço bem esta lida, Eu vivo gozando a vida Cheio de satisfação.

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Já tou tão acostumado Que trabaio e não me enfado, Faço com gosto os mandado Das fia do meu patrão. Vivo do currá pro mato, Sou correto e munto izato, Por farta de zelo e trato Nunca um bezerro morreu. Se arguém me vê trabaiando, A bezerrama curando, Dá pra ficá maginando Que o dono do gado é eu. Eu não invejo riqueza Nem posição, nem grandeza, Nem a vida de fineza Do povo da capitá. Pra minha vida sê bela Só basta não fartá nela Bom cavalo, boa sela E gado pr'eu campeá. Somente uma coisa iziste, Que ainda que teja triste Meu coração não resiste E pula de animação. É uma viola magoada, Bem chorosa e apaxonada, Acompanhando a toada Dum cantadô do sertão. Tenho sagrado direito De ficá bem satisfeito Vendo a viola no peito De quem toca e canta bem. Dessas coisa sou herdêro, Que o meu pai era vaquêro, Foi um fino violêro E era cantadô tombém. Eu não sei tocá viola, Mas seu toque me consola, Verso de minha cachola Nem que eu peleje não sai, Nunca cantei um repente Mas vivo munto contente, Pois herdei perfeitamente Um dos dote de meu pai. O dote de sê vaquêro, Resorvido marruêro, Querido dos fazendêro Do sertão do Ceará. Não perciso maió gozo, Sou sertanejo ditoso,

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O meu aboio sodoso Faz quem tem amô chorá. Patativa do Assaré

A TERRA É NATURÁ

Esta terra é como o SóQue nace todos os diaBriando o grande, o menóE tudo que a terra cria.O só quilarêa os monte,Tombém as água das fonte,Com a sua luz amiga,Potrege, no mesmo instante,Do grandaião elefanteA pequenina formiga.

Esta terra é como a chuva,Que vai da praia a campina,Móia a casada, a viúva,A véia, a moça, a menina.Quando sangra o nevuêro,Pra conquistá o aguacêro,Ninguém vai fazê fuxico,Pois a chuva tudo cobre,Móia a tapera do pobreE a grande casa do rico.

Esta terra é como a lua,Este foco prateadoQue é do campo até a rua,A lampa dos namorado;Mas, mesmo ao véio cacundo,Já com ar de moribundoSem amô, sem vaidade,Esta lua cô de prataNão lhe dêxa de sê grata;Lhe manda quilaridade.

Esta terra é como o vento,O vento que, por caprichoAssopra, às vez, um momento,Brando, fazendo cuchicho.Ôtras vez, vira o capêta,Vai fazendo piruêta,Roncando com desatino,

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Levando tudo de móioJogando arguêro nos óioDo grande e do pequenino.

Se o orguiôso podesseCom seu rancô desmedido,Tarvez até já tivesseEste vento repartido,Ficando com a viraçãoDando ao pobre o furacão;Pois sei que ele tem vontadeE acha mesmo que percisaGozá de frescô da brisa,Dando ao pobre a tempestade.

Pois o vento, o só, a lua,A chuva e a terra também,Tudo é coisa minha e sua,Seu dotô conhece bem.Pra se sabê disso tudoNinguém precisa de istudo;Eu, sem escrevê nem lê,Conheço desta verdade,Seu dotô, tenha bondadeDe uvi o que vô dizê.

Não invejo o seu tesôro,Sua mala de dinhêroA sua prata, o seu ôroO seu boi, o seu carnêroSeu repôso, seu recreio,Seu bom carro de passeio,Sua casa de moráE a sua loja surtida,O que quero nesta vidaÉ terra pra trabaiá.

Iscute o que tô dizendo,Seu dotô, seu coroné:De fome tão padecendoMeus fio e minha muié.Sem briga, questão nem guerra,Meça desta grande terraUmas tarefa pra eu!Tenha pena do agregadoNão me dêxe deserdadoDaquilo que Deus me deu.

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Poema(s) da CabraJoão Cabral de Melo NetoNas margens do Mediterrâneonão se vê um palmo de terraque a terra tivesse esquecidode fazer converter em pedra.

Nas margens do MediterrâneoNão se vê um palmo de pedraque a pedra tivesse esquecidode ocupar com sua fera.

Ali, onde nenhuma linha pode lembrar, porque mais doce,o que até chega a parecersuave serra de uma foice,

não se vê um palmo de terrapor mais pedra ou fera que seja,que a cabra não tenha ocupadocom sua planta fibrosa e negra.

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A cabra é negra. Mas seu negronão é o negro do ébano douto(que é quase azul) ou o negro ricodo jacarandá (mais bem roxo).

O negro da cabra é o negrodo preto, do pobre, do pouco.Negro da poeira, que é cinzento.Negro da ferrugem, que é fosco.

Negro do feio, às vezes branco.Ou o negro do pardo, que é pardo.disso que não chega a ter corou perdeu toda cor no gasto.

É o negro da segunda classe.Do inferior (que é sempre opaco).Disso que não pode ter corporque em negro sai mais barato.Se o negro quer dizer noturnoo negro da cabra é solar.Não é o da cabra o negro noite.É o negro de sol. Luminar.

Será o negro do queimadomais que o negro da escuridão.Negra é do sol que acumulou.É o negro mais bem do carvão.

Não é o negro do macabro.Negro funeral. Nem do luto.Tampouco é o negro do mistério,de braços cruzados, eunuco.

É mesmo o negro do carvão.O negro da hulha. Do coque.Negro que pode haver na pólvora:negro de vida, não de morte.O negro da cabra é o negroda natureza dela cabra. Mesmo dessa que não é negra,como a do Moxotó, que é clara.

O negro é o duro que há no fundoda cabra. De seu natural.Tal no fundo da terra há pedra, no fundo da pedra, metal.

O negro é o duro que há no fundoda natureza sem orvalho

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que é a da cabra, esse animalsem folhas, só raiz e talo,

que é a da cabra, esse animalde alma-caroço, de alma córnea,sem moelas, úmidos, lábios,pão sem miolo, apenas côdea.Quem já encontrou uma cabra que tivesse ritmos domésticos?O grosso derrame do porco,da vaca, do sono e de tédio?

Quem encontrou cabra que fosse animal de sociedade?Tal o cão, o gato, o cavalo,diletos do homem e da arte?

A cabra guarda todo o arisco,rebelde, do animal selvagem,viva demais que é para seranimal dos de luxo ou pajem.

Viva demais para não ser,quando colaboracionista,o reduzido irredutível,o inconformado conformista.A cabra é o melhor instrumentode verrumar a terra magra.Por dentro da serra e da secanão chega onde chega a cabra.

Se a serra é terra, a cabra é pedra.Se a serra é pedra, é pedernal.Sua boca é sempre mais duraque a serra, não importa qual.

A cabra tem o dente frio,a insolência do que mastiga.Por isso o homem vive da cabramas sempre a vê como inimiga.

Por isso quem vive da cabrae não é capaz do seu braçodesconfia sempre da cabra:diz que tem parte com o Diabo                Não é pelo vício da pedra,por preferir a pedra à folha.É que a cabra é expulsa do verde,trancada do lado de fora.

Page 26: Poemas para dramatizar

A cabra é trancada por dentro.Condenada à caatinga seca.Liberta, no vasto sem nada,proibida, na verdura estreita.

Leva no pescoço uma cangaque a impede de furar as cercas.Leva os muros do próprio cárcere:prisioneira e carcereira.

Liberdade de fome e sededa ambulante prisioneira.Não é que ela busque o difícil:é que a sabem capaz de pedra.A vida da cabra não deixalazer para ser fina ou lírica(tal o urubu, que em doces linhasvoa à procura da carniça).

Vive a cabra contra a pendente,sem os êxtases das decidas.Viver para a cabra não ére-ruminar-se introspectiva.

É, literalmente, cavara vida sob a superfície,que a cabra, proibida de folhas,tem de desentranhar raízes.

Eis porque é a cabra grosseira,de mãos ásperas, realista.Eis porque, mesmo ruminando,não é jamais contemplativa.O núcleo de cabra é visívelpor debaixo de muitas coisas.Com a natureza da cabraoutras aprendem sua crosta.

Um núcleo de cabra é visívelem certos atributos roucosque têm as coisas obrigadasa fazer de seu corpo couro.

A fazer de seu couro sola,a armar-se em couraças, escamas:como se dá com certas coisase muitas condições humanas.

Os jumentos são animaisque muito aprenderam com a cabra.

Page 27: Poemas para dramatizar

O nordestino, convivendo-a,fez-se de sua mesma casta.                     9O núcleo de cabra é visíveldebaixo do homem do Nordeste.Da cabra lhe vem o escarpadoe o estofo nervudo que o enche.

Se adivinha o núcleo de cabrano jeito de existir, Cardozo,que reponta sob seu gestocomo esqueleto sob o corpo.

E é outra ossatura mais forteque o esqueleto comum, de todos;debaixo do próprio esqueleto,no fundo centro de seus ossos.

A cabra deu ao nordestinoesse esqueleto mais de dentro:o aço do osso, que resistequando o osso perde seu cimento.O Mediterrâneo é mar clássico,com águas de mármore azul.Em nada me lembra das águassem marca do rio Pajeú.

As ondas do Mediterrâneoestão no mármore traçadas.Nos rios do Sertão, se existe,a água corre despenteada.

As margens do Mediterrâneoparecem deserto balcão.Deserto, mas de terras nobresnão da piçarra do Sertão.

Mas não minto o Mediterrâneonem sua atmosfera maiordescrevendo-lhe as cabras negrasem termos da do Moxotó.

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MORTE E VIDA SEVERINA João Cabral de Melo NetoO RETIRANTE EXPLICA AO LEITOR QUEM É E A QUE VAI      — O meu nome é Severino,   como não tenho outro de pia.  Como há muitos Severinos,  que é santo de romaria,   deram então de me chamar  Severino de Maria  como há muitos Severinos  com mães chamadas Maria,  fiquei sendo o da Maria  do finado Zacarias.     Mais isso ainda diz pouco:   há muitos na freguesia,   por causa de um coronel   que se chamou Zacarias   e que foi o mais antigo   senhor desta sesmaria.    Como então dizer quem falo   ora a Vossas Senhorias?   Vejamos: é o Severino   da Maria do Zacarias,   lá da serra da Costela,   limites da Paraíba.    Mas isso ainda diz pouco:   se ao menos mais cinco havia   com nome de Severino   filhos de tantas Marias   mulheres de outros tantos,   já finados, Zacarias,   vivendo na mesma serra   magra e ossuda em que eu vivia.    Somos muitos Severinos  iguais em tudo na vida:   na mesma cabeça grande   que a custo é que se equilibra,   no mesmo ventre crescido   sobre as mesmas pernas finas   e iguais também porque o sangue,   que usamos tem pouca tinta.    E se somos Severinos   iguais em tudo na vida,   morremos de morte igual,   mesma morte severina:   que é a morte de que se morre   

Page 29: Poemas para dramatizar

de velhice antes dos trinta,   de emboscada antes dos vinte   de fome um pouco por dia   (de fraqueza e de doença   é que a morte severina   ataca em qualquer idade,   e até gente não nascida).    Somos muitos Severinos   iguais em tudo e na sina:   a de abrandar estas pedras   suando-se muito em cima,   a de tentar despertar   terra sempre mais extinta,    a de querer arrancar   alguns roçado da cinza.   Mas, para que me conheçam   melhor Vossas Senhorias   e melhor possam seguir   a história de minha vida,   passo a ser o Severino   que em vossa presença emigra.   

         

ONDE SAIU O HOMEM,  ANUNCIA-LHE O QUE SE VERÁ       —— Compadre José, compadre,  que na relva estais deitado:  conversais e não sabeis  que vosso filho é chegado?  Estais aí conversando  em vossa prosa entretida:  não sabeis que vosso filho  saltou para dentro da vida?  Saltou para dento da vida  ao dar o primeiro grito  e estais aí conversando  pois sabeis que ele é nascido.     APARECEM E SE APROXIMAM DA CASA DO  HOMEM VIZINHOS,  AMIGOS, DUAS CIGANAS, ETC   —— Todo o céu e a terra  lhe cantam louvor.  

Page 30: Poemas para dramatizar

Foi por ele que a maré  esta noite não baixou.   —— Foi por ele que a maré  fez parar o seu motor:  a lama ficou coberta  e o mau-cheiro não voou.   —— E a alfazema do sargaço,  ácida, desinfetante,  veio varrer nossas ruas  enviada do mar distante.   —— E a língua seca de esponja  que tem o vento terral  veio enxugar a umidade  do encharcado lamaçal.    —— Todo o céu e a terra  lhe cantam louvor  e cada casa se torna  num mocambo sedutor.   —— Cada casebre se torna  no mocambo modelar  que tanto celebram os  sociólogos do lugar.   —— E a banda de maruins  que toda noite se ouvia  por causa dele, esta noite,  creio que não irradia.   —— E este rio de água, cega,  ou baça, de comer terra,  que jamais espelha o céu,  hoje enfeitou-se de estrelas.  

COMEÇAM A CHEGAR PESSOAS TRAZENDO  PRESENTES PARA  O RECÉM-NASCIDO    

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  —  Minha pobreza tal é  que não trago presente grande:  trago para a mãe caranguejos  pescados por esses mangues  mamando leite de lama  conservará nosso sangue.   ——  Minha pobreza tal é  que coisa alguma posso ofertar:  somente o leite que tenho  para meu filho amamentar  aqui todos são irmãos, de leite, de lama, de ar.   ——  Minha pobreza tal é  que não tenho presente melhor:  trago este papel de jornal  para lhe servir de cobertor  cobrindo-se assim de letras  vai um dia ser doutor.   ——  Minha pobreza tal é  que não tenho presente caro:  como não posso trazer  um olho d'água de Lagoa do Cerro,  trago aqui água de Olinda,  água da bica do Rosário.   ——  Minha pobreza tal é  que grande coisa não trago:  trago este canário da terra  que canta sorrindo e de estalo.   ——  Minha pobreza tal é  que minha oferta não é rica:  trago daquela bolacha d'água  que só em Paudalho se fabrica.   ——  Minha pobreza tal é  que melhor presente não tem:  dou este boneco de barro  de Severino de Tracunhaém.   ——  Minha pobreza tal é  que pouco tenho o que dar:  dou da pitu que o pintor Monteiro  fabricava em Gravatá. ——  Trago abacaxi de Goiana  e de todo o Estado rolete de cana.   ——  Eis ostras chegadas agora,  apanhadas no cais da Aurora.   ——  Eis tamarindos da Jaqueira  e jaca da Tamarineira.   ——  Mangabas do Cajueiro  e cajus da Mangabeira.    

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——  Peixe pescado no Passarinho,  carne de boi dos Peixinhos.   ——  Siris apanhados no lamaçal  que já no avesso da rua Imperial.   ——  Mangas compradas nos quintais ricos  do Espinheiro e dos Aflitos.   ——  Goiamuns dados pela gente pobre  da Avenida Sul e da Avenida Norte.  

        

 FALAM AS DUAS CIGANAS QUE HAVIAM  APARECIDO COM OS VIZINHOS   

——  Atenção peço, senhores,  para esta breve leitura:  somos ciganas do Egito,  lemos a sorte  futura.  Vou dizer todas as coisas  que desde já posso ver  na vida desse menino  acabado de nascer:  aprenderá a engatinhar  por aí, com aratus,  aprenderá a caminhar  na lama, como goiamuns,  e a correr o ensinarão  o anfíbios caranguejos,  pelo que será anfíbio  como a gente daqui mesmo.  Cedo aprenderá a caçar:  primeiro, com as galinhas,  que é catando pelo chão  tudo o que cheira a comida  depois, aprenderá com  outras espécies de bichos:  com os porcos nos monturos,  com os cachorros no lixo.  Vejo-o, uns anos mais tarde,  na ilha do Maruim,  vestido negro de lama,  voltar de pescar siris  e vejo-o, ainda maior,  pelo imenso lamarão  

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fazendo dos dedos iscas  para pescar camarão.   ——  Atenção peço, senhores,  também para minha leitura:  também venho dos Egitos,  vou completar a figura.  Outras coisas que estou vendo  é necessário que eu diga:  não ficará a pescar  de jereré toda a vida.  Minha amiga se esqueceu  de dizer todas as linhas  não pensem que a vida dele  há de ser sempre daninha.  Enxergo daqui a planura  que é a vida do homem de ofício,  bem mais sadia que os mangues,  tenha embora precipícios.  Não o vejo dentro dos mangues,  vejo-o dentro de uma fábrica:  se está negro não é lama,  é graxa de sua máquina,  coisa mais limpa que a lama  do pescador de maré  que vemos aqui vestido  de lama da cara ao pé.  E mais: para que não pensem  que em sua vida tudo é triste,  vejo coisa que o trabalho  talvez até lhe conquiste:  que é mudar-se destes mangues  daqui do Capibaribe  para um mocambo melhor  

nos mangues do Beberibe.          

FALAM OS VIZINHOS, AMIGOS, PESSOAS QUE  VIERAM COM PRESENTES, ETC  

Page 34: Poemas para dramatizar

   ——  De sua formosura  já venho dizer:  é um menino magro,  de muito peso não é,  mas tem o peso de homem,  de obra de ventre de mulher.   ——  De sua formosura  deixai-me que diga:  é uma criança pálida,  é uma criança franzina,  mas tem a marca de homem,  marca de humana oficina.   ——  Sua formosura  deixai-me que cante:  é um menino guenzo  como todos os desses mangues,  mas a máquina de homem  já bate nele, incessante.   ——  Sua formosura  eis aqui descrita:  é uma criança pequena,  enclenque e setemesinha,  mas as mãos que criam coisas  nas suas já se adivinha.       ——  De sua formosura  deixai-me que diga:  é belo como o coqueiro  que vence a areia marinha.   ——  De sua formosura  deixai-me que diga:  belo como o avelós  contra o Agreste de cinza.   ——  De sua formosura  deixai-me que diga:  belo como a palmatória  na caatinga sem saliva.   ——  De sua formosura  deixai-me que diga:  é tão belo como um sim  numa sala negativa.       ——  é tão belo como a soca  que o canavial multiplica.   ——  Belo porque é uma porta  abrindo-se em mais saídas.  

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——  Belo como a última onda  que o fim do mar sempre adia.   ——  é tão belo como as ondas  em sua adição infinita.       ——  Belo porque tem do novo  a surpresa e a alegria.   ——  Belo como a coisa nova  na prateleira até então vazia.   ——  Como qualquer coisa nova  inaugurando o seu dia.   ——  Ou como o caderno novo  quando a gente o principia.       ——  E belo porque o novo  todo o velho contagia.   ——  Belo porque corrompe  com sangue novo a anemia.   ——  Infecciona a miséria  com vida nova e sadia.   ——  Com oásis, o deserto,  com ventos, a calmaria.  

        

O CARPINA FALA COM O RETIRANTE QUE  ESTEVE DE FORA,  SEM TOMAR PARTE DE NADA    ——  Severino, retirante,  deixe agora que lhe diga:  eu não sei bem a resposta  da pergunta que fazia,  se não vale mais saltar  fora da ponte e da vida  nem conheço essa resposta,  se quer mesmo que lhe diga  é difícil defender,  só com palavras, a vida,  ainda mais quando ela é  esta que vê, severina  mas se responder não pude  à pergunta que fazia,  ela, a vida, a respondeu  com sua presença viva.  

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     E não há melhor resposta  que o espetáculo da vida:  vê-la desfiar seu fio,  que também se chama vida,  ver a fábrica que ela mesma,  teimosamente, se fabrica,  vê-la brotar como há pouco  em nova vida explodida  mesmo quando é assim pequena  a explosão, como a ocorrida  como a de há pouco, franzina  mesmo quando é a explosão  de uma vida severina.  

A um Bruxo, Com AmorCarlos Drummond AndradeEm certa casa da Rua Cosme Velho(que se abre no vazio)venho visitar-te; e me recebesna sala trajestada com simplicidadeonde pensamentos idos e vividosperdem o amarelode novo interrogando o céu e a noite.Outros leram da vida um capítulo, tu leste o livro inteiro.Daí esse cansaço nos gestos e, filtrada,uma luz que não vem de parte algumapois todos os castiçaisestão apagados.Contas a meia vozmaneiras de amar e de compor os ministériose deitá-los abaixo, entre malinase bruxelas.Conheces a fundoa geologia moral dos Lobo Nevese essa espécie de olhos derramadosque não foram feitos para ciumentos.E ficas mirando o ratinho meio cadávercom a polida, minuciosa curiosidadede quem saboreia por tabelao prazer de Fortunato, vivisseccionista amador.Olhas para a guerra, o murro, a facadacomo para uma simples quebra da monotonia universale tens no rosto antigouma expressão a que não acho nome certo(das sensações do mundo a mais sutil):volúpia do aborrecimento?ou, grande lascivo, do nada?

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O vento que rola do Silvestre leva o diálogo,e o mesmo som do relógio, lento, igual e seco,tal um pigarro que parece vir do tempo da Stoltz e do gabinete Paraná,mostra que os homens morreram.A terra está nua deles.Contudo, em longe recanto,a ramagem começa a sussurar alguma coisaque não se estende logoa parece a canção das manhãs novas.Bem a distingo, ronda clara:É Flora,com olhos dotados de um mover particularente mavioso e pensativo;Marcela, a rir com expressão cândida (e outra coisa);Virgília,cujos olhos dão a sensação singular de luz úmida;Mariana, que os tem redondos e namorados;e Sancha, de olhos intimativos;e os grandes, de Capitu, abertos como a vaga do mar lá fora,o mar que fala a mesma linguagemobscura e nova de D. Severinae das chinelinhas de alcova de Conceição.A todas decifrastes íris e braçose delas disseste a razão última e refolhadamoça, flor mulher florcanção de mulher nova...E ao pé dessa música dissimulas (ou insinuas, quem sabe)o turvo grunhir dos porcos, troça concentrada e filosóficaentre loucos que riem de ser loucose os que vão à Rua da Misericórdia e não a encontram.O eflúvio da manhã,quem o pede ao crepúsculo da tarde?Uma presença, o clarineta,vai pé ante pé procurar o remédio,mas haverá remédio para existirsenão existir?E, para os dias mais ásperos, alémda cocaína moral dos bons livros?Que crime cometemos além de vivere porventura o de amarnão se sabe a quem, mas amar?Todos os cemitérios se parecem,e não pousas em nenhum deles, mas onde a dúvidaapalpa o mármore da verdade, a descobrira fenda necessária;onde o diabo joga dama com o destino,estás sempre aí, bruxo alusivo e zombeteiro,que resolves em mim tantos enigmas.Um som remoto e brandorompe em meio a embriões e ruínas,

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eternas exéquias e aleluias eternas,e chega ao despistamento de teu pencenê.O estribeiro Oblivionbate à porta e chama ao espetáculopromovido para divertir o planeta Saturno.Dás volta à chave,envolves-te na capa,e qual novo Ariel, sem mais resposta,sais pela janela, dissolves-te no ar.

Caso do Vestido

Carlos Drummond de Andrade

Nossa mãe, o que é aquelevestido, naquele prego?

Minhas filhas, é o vestidode uma dona que passou.

Passou quando, nossa mãe?Era nossa conhecida?

Minhas filhas, boca presa.Vosso pai evém chegando.

Nossa mãe, dizei depressaque vestido é esse vestido.

Minhas filhas, mas o corpoficou frio e não o veste.

O vestido, nesse prego,está morto, sossegado.

Nossa mãe, esse vestidotanta renda, esse segredo!

Page 39: Poemas para dramatizar

Minhas filhas, escutaipalavras de minha boca.

Era uma dona de longe, vosso pai enamorou-se.

E ficou tão transtornado,se perdeu tanto de nós, 

se afastou de toda vida,se fechou, se devorou,

chorou no prato de carne,bebeu, brigou, me bateu,

me deixou com vosso berço,foi para a dona de longe,

mas a dona não ligou.Em vão o pai implorou.

Dava apólice, fazenda, dava carro, dava ouro, 

beberia seu sobejo,lamberia seu sapato.

Mas a dona nem ligou.Então vosso pai, irado,

me pediu que lhe pedisse,a essa dona tão perversa,

que tivesse paciênciae fosse dormir com ele...

Nossa mãe, por que chorais?Nosso lenço vos cedemos.

Minhas filhas, vosso paichega ao pátio.  Disfarcemos.

Nossa mãe, não escutamospisar de pé no degrau.

Minhas filhas, procureiaquela mulher do demo.

E lhe roguei que aplacassede meu marido a vontade.

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Eu não amo teu marido,me falou ela se rindo.

Mas posso ficar com elese a senhora fizer gosto,

só pra lhe satisfazer,não por mim, não quero homem.

Olhei para vosso pai, os olhos dele pediam.

Olhei para a dona ruim, os olhos dela gozavam.

O seu vestido de renda, de colo mui devassado, 

mais mostrava que escondiaas partes da pecadora.

Eu fiz meu pelo-sinal,me curvei... disse que sim.

Sai pensando na morte,mas a morte não chegava.

Andei pelas cinco ruas, passei ponte, passei rio, 

visitei vossos parentes, não comia, não falava,

tive uma febre terçã,mas a morte não chegava.

Fiquei fora de perigo,fiquei de cabeça branca,

perdi meus dentes, meus olhos, costurei, lavei, fiz doce,

minhas mãos se escalavraram,meus anéis se dispersaram,

minha corrente de ouropagou conta de farmácia.

Vosso pais sumiu no mundo.O mundo é grande e pequeno.

Page 41: Poemas para dramatizar

Um dia a dona soberbame aparece já sem nada,

pobre, desfeita, mofina,com sua trouxa na mão.

Dona, me disse baixinho,não te dou vosso marido,

que não sei onde ele anda.Mas te dou este vestido, 

última peça de luxoque guardei como lembrança

daquele dia de cobra,da maior humilhação.

Eu não tinha amor por ele,ao depois amor pegou.

Mas então ele enjoadoconfessou que só gostava

de mim como eu era dantes.Me joguei a suas plantas,

fiz toda sorte de dengo,no chão rocei minha cara,

me puxei pelos cabelos,me lancei na correnteza,

me cortei de canivete,me atirei no sumidouro,

bebi fel e gasolina,rezei duzentas novenas,

dona, de nada valeu:vosso marido sumiu.

Aqui trago minha roupaque recorda meu malfeito

de ofender dona casadapisando no seu orgulho.

Recebei esse vestidoe me dai vosso perdão.

Page 42: Poemas para dramatizar

Olhei para a cara dela,quede os olhos cintilantes?

quede graça de sorriso,quede colo de camélia?

quede aquela cinturinhadelgada como jeitosa?

quede pezinhos calçadoscom sandálias de cetim?

Olhei muito para ela, boca não disse palavra.

Peguei o vestido, pusnesse prego da parede.

Ela se foi de mansinhoe já na ponta da estrada

vosso pai aparecia.Olhou pra mim em silêncio,

mal reparou no vestidoe disse apenas: — Mulher,

põe mais um prato na mesa.Eu fiz, ele se assentou,

comeu, limpou o suor,era sempre o mesmo homem,

comia meio de ladoe nem estava mais velho.

O barulho da comidana boca, me acalentava,

me dava uma grande paz,um sentimento esquisito

de que tudo foi um sonho, vestido não há... nem nada.

Minhas filhas, eis que ouçovosso pai subindo a escada.

 Texto extraído do livro "Nova Reunião - 19 Livros de Poesia", José Olympio Editora -

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1985, pág. 157.