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Retalhos Da Guerra

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Índice

Introdução da revista........................................................................................................3

Essa Coisa.......................................................................................................................4

Não ouvem suas merdas.................................................................................................5

Embarque para a aventura..............................................................................................7

O famoso pente zero......................................................................................................11

Incha, desincha e passa................................................................................................13

Da recruta até à boina…................................................................................................16

As viagens de fim-de-semana........................................................................................19

Preparação para a guerra..............................................................................................22

Corpos amputados.........................................................................................................25

A vermelhinha................................................................................................................27

O frio da realidade..........................................................................................................29

Que o diabo leve a guerra..............................................................................................32

Tudo o resto ficava para trás.........................................................................................35

Não sei para onde vou… mas vou.................................................................................38

O princípio do fim...........................................................................................................42

A sabotagem..................................................................................................................45

O povo não queria guerra..............................................................................................49

O embarque...................................................................................................................52

A Viagem....................................................................................................................... 55

A chegada e a ida para a guerra....................................................................................59

Operação de resgate.....................................................................................................63

As Zungueiras................................................................................................................76

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Introdução da revista

Num tempo de necessária reflexão política, a VS&C inicia agora a publicação

das memórias de guerra de um ex-combatente, alguém que tem algo a recordar na sua vida e a ensinar ao seu país, José da Silva Marques, cuja colaboração bem vem na linha editorial desta publicação que é feita, em grande medida, num presente feito de memória, para um melhor futuro. De resto, à semelhança da nossa edição anterior. E porque nunca esquecemos nada! Na forma de ”tema de capa” desta edição de Dezembro de 2005, este trabalho terá a sua continuidade, mês após mês, nas próximas edições desta revista. Até lá, aqui ficam estes.

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Essa Coisa

Ontem tive uma agradável surpresa. Quando andava no sótão, remexendo nas coisas que sempre arrumamos e das quais não nos queremos desfazer. Manias de um cinquentão ou manias de quase toda a gente.

Encontrei uma coisa que norteou a minha vida precisamente durante 40 meses. Coisa essa perdida entre livros e outras velharias, daquelas coisas às quais no seu tempo não dávamos a devida importância mas, que quando as revisitamos, nos contam histórias, retalhos de uma vida. Essa coisa que encontrei, e que já tinha dado por perdida, tem muitas histórias por contar, e todas por escrever.

Essa coisa representa seis por cento dos já muitos dias, meses e anos que por cá ando.

Essa coisa que desprezei durante quarenta meses, que me dava vontade de sei lá o quê, apesar da pouca consciência que eu tinha do mundo e principalmente da política.

Essa coisa azul de treze por dez centímetros, com tantas páginas como eu conto por anos a minha vida, precisamente cinquenta e cinco.

Essa coisa chamada caderneta militar.

Essa coisa relata, desde dezoito de Dezembro de 1969 a quatro de Outubro de 1973, a vida de um militar na aeronáutica, que serviu nas forças pára-quedistas, por entre a recruta e os cursos de pára-quedismo, do combate, de minas e armadilhas, boxe e defesa pessoal e tantas outras coisas. Ainda atravessou uma guerra como tropa especial, especialmente

treinados para combater, sofrer e morrer. Mil histórias por contar aos retalhos, narrativas verídicas e testemunhadas por

colegas ainda presentes. Tivesse eu o talento e o bom português necessário e tentaria deixar aqui algumas dessas histórias.

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Não ouvem suas merdas

Estávamos em Julho de 1969, quando o astronauta Neil Armstrong, bem lá em cima na Lua, dizia aquela famosa frase: "Um pequeno passo para o Homem, um salto gigantesco para a Humanidade" e eu cá em baixo com os meus quase vinte anos e com um calor abrasador, vou, estupidamente, todo pimpão, a uma Junta Distrital de Recrutamento Militar situada numa antiga casa conventual que se transformou em Hospital Militar (Enfermaria Militar em pleno séc. XX, até à década de setenta). Este edifício deteriorou-se e foi parcialmente delapidado, entregue ao ostracismo e degradação (anos setenta), valendo a recuperação pela paróquia que o adquiriu em 1981, procedendo às necessárias obras de restauro: Centro Social e Paroquial, jardim-de-infância e serviços de alcance humano e espiritual.

Estávamos todos no átrio, rapazes de todas as classes e origens. Do rapaz pobre da urbe (como eu), acolhido no largo das almas, junto à antiga Igreja Matriz, (hoje Igreja das Almas), ao filho de boas (ricas) famílias, que envergonhados por não pertencer à maioria (a pobreza abundava por estas regiões), se refugiavam num canto. Dos vulgos saloios das aldeias e das serras, de ceroulas e chancas no verão, até ao filho do abastado agricultor.

E lá ia vociferando aquele animal fardado:

- “Não ouvem suas merdas, é assim que querem ser militares?”.

Ouvem-se vozes em surdina entre os reguilas de pé descalço cá da urbe:

- “Quem pensa que é este filho da puta?”.

Ninguém teve a coragem de levantar a voz para aquela barriga fardada. Lá nos pesaram e mediram,

sempre nus, não sei porquê, pois aproveitavam coxos e marrecos e tudo o que viesse à rede. Quem não quisesse, que fugisse a salto para França como tantos outros. Depois de todos estes procedimentos, deram-nos uns impressos para preencher: se não quiséssemos ir para o exército, poderíamos escolher entre a Marinha e a Aeronáutica. O gajo afinal era nosso amigo! Até nos sugeria outras opções! Nada mais

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falso: eles queriam era voluntários para tropas especializadas, a que hoje vulgarmente chamamos “Forças de Intervenção Rápida”.

Nessa altura ainda me martelava nos ouvidos “Não ouvem suas merdas? É assim que querem ser militares?” e foi com isso a zurzir nos ouvidos que tomei a minha primeira grande decisão e disse para o Jorge, amigo pachorrento com cara de menino, meu colega de muitas lides e brincadeiras desde a escola primária:

- “Militar como ele não vou ser de certeza! Vamos para a Marinha, Jorge?”.Respondeu-me de imediato o Jorge: - “Estás maluco, eu nem sei nadar!”.E do outro lado do trio, disse o Fiúza, o pescador:- “Vamos Zé? Eu vou inscrever-me para a Marinha”.Estas posições opostas, de dois amigos de infância, baralharam-me as contas,

pois fazia intenção de irmos os três juntos para a tropa. Então, sem lhes dizer a verdadeira razão, pois para mal dos meus pecados também não sabia nadar, disse:

- “Nada disso, vamos para a Força Aérea e o culpado é aquela barriga fardada. Não quero ir para o Exército”.

E foi assim que me inscrevi na Força Aérea. Como dentro desse ramo das Forças Armadas havia pára-quedismo, e como os putos da rua como nós eram ávidos de aventura, vai daí… alistámo-nos, os três amigos, nas Forças Pára-quedistas.

Assim, tomei uma das minhas decisões mais importantes, a qual iria marcar positivamente o resto da minha vida, quer pelo espírito de grupo e camaradagem, quer pelos ensinamentos que fui recolhendo ao longo de quarenta meses de serviço militar, onde o lema era: “Que nunca por vencidos se conheçam”.

Mas a parte “estúpida” desta crónica consiste no que aconteceu a seguir. O grupo oriundo das aldeias e das serras, munindo-se de bombos e pandeiretas, foi tocando e bebendo ainda mais, pelas ruas, como quem ia para uma festa muito importante. Muitos deles acabariam por perecer na guerra… Só passados uns bons meses é que eu percebi e interiorizei o sentido e as motivaçõescom que eles, no fim da inspecção militar, foram festejar pelas ruas, como o anunciar de uma festa ou de uma romaria. Era provavelmente um grito de libertação, por saírem do mundo atrasado e das aldeias em que o ditador Salazar os tinha deixado.

Sempre que me lembro disto, lembro-me, simultaneamente dos mortos da guerra, da carne para canhão em que eles se tornaram.

QUE DESCANSEM EM PAZ!

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Embarque para a aventura

A doze de Dezembro de 1969, em Itália, ocorre o "Massacre de Estado": bombas colocadas por fascistas e manipuladas pelos serviços secretos italianos que praticam a "estratégia da tensão" (o que só se soube anos mais tarde), explodem na estação de Milão, matando várias pessoas. O anarquista Pietro Valpreda é acusado e preso por dois anos, injustamente.

Cinco dias após estes acontecimentos, lá estava eu também numa estação ferroviária em Viana. Um belo conjunto arquitectónico edificado entre 1878 e 1982, sob projecto do Eng.º Alfredo Soares, que incluía uma elegante escadaria voltada para Sul. Subsiste a obra dos alçados em cantaria; elementos acessórios (gare e coberturas laterais) com a característica estrutura de ferro fundido, muito em voga nas últimas décadas de Oitocentos. Hoje está praticamente fundida com o centro comercial Estação de Viana, com arquitectura temática, inspirada nos caminhos-de-ferro.

Estava pronto para embarcar pelas 22 horas na aventura de fazer trezentos quilómetros em cerca de sete horas.

Tinha sido convocado para prestar testes nos pára-quedistas em Tancos. Tancos era uma freguesia de Vila Nova da Barquinha, situada no centro do país, com uma população civil de cerca de seiscentas almas. Para além do Entroncamento, que deve o seu nome ao facto de aqui entroncarem duas linhas de comboio (a que liga Lisboa ao Porto e a que liga a Linha do Norte a Espanha), surge situado numa pequena ilha escarpada, no curso médio do rio Tejo, o Castelo de Almourol, um dos monumentos militares medievais mais emblemáticos e cenográficos da Reconquista, sendo, simultaneamente, um dos que melhor evoca a memória dos Templários no nosso país.

É desta simpática localidade, sob o comando do general Norton de Matos, que o Corpo Expedicionário Português (CEP), formado por trinta mil homens, sai em 1917 do Tejo para França (1.ª Brigada do CEP) a bordo de três vapores britânicos; é aqui que, em 1956, é criado o Batalhão de Caçadores Pára-quedistas – BCP - dependente da recém criada Força Aérea Portuguesa. Mais tarde, com o rebentamento da guerra em África, é criado o Regimento de Caçadores Pára-quedistas (RCP).

Lá chegámos ao RCP por volta das cinco horas da manhã. Cinquenta candidatos a pára-quedistas de vários pontos de país, cansados da viagem mas também excitados pela aventura. Ficaram todos à conversa, todos com histórias para contar. Sentia-se ali um misto de basófilas e valentões e eu lá pensei com os meus botões: onde é que me vim meter? Acabaria por comentar com o Fiúza pescador:

- “Pá, já viste isto? Acho que não pertenço a esta guerra, só marados e cabeludos”.

Então, debaixo daquela calma enervante, diz o Jorge Viana:- “Tende calma, não há-de ser nada, se eles conseguem… nós vamos

conseguir”.

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E pensava eu que era um puto reguila da rua… Comparado com os tripeiros da banharia, alfacinhas do Casal Ventoso e outros, até me sentia meio envergonhado.

Quase sem darmos conta, toca o clarim de alvorada e, como se houvesse uma mola, todos nos levantámos pensando que era para nós. A partir desse momento, acho que as pulsações subiram para a centena e por lá permaneceram, durante todo o dia. Enquanto isso, os militares “verdadeiros” lá se preparavam para a formatura e para mais um dia de instrução militar.

E lá fomos nós também para a parada, bem desalinhados como convém, para irmos ao pequeno-almoço. Depois disso sim, aí é que foram elas, pois na parada avisaram que íamos ter toda a manhã para exames médicos e a tarde para a parte física. Logo comentei:

- “Não fizerem já isso no Verão, em Viana?”.E atalha logo o habitualmente calmo e pacato Jorge Viana:- “Em Viana exames médicos para ir para a tropa? 'Tás maluco! Lá só foi para

mostrar os tomates e ir para a lista dos apurados!” - não resistimos a uma sonora gargalhada.

Como é norma, ficámos todos nus, mas agora com uma simples diferença: estava um frio de rachar. Todos bem alinhados e virados contra uma parede. Lá chegaram os tipos de bata branca com um marcador preto na mão dizendo ao colega mais próximo, mas desta vez com educação:

“- Levante o pé se faz favor!”E nós, apesar de nos sentirmos como simples cavalos a quem vê os cascos,

pela forma educada como fomos interpelados sentimo-nos desarmados. E lá foram eles fazendo algumas cruzes nas plantas dos pés e eu sem perceber patavina. Chegou a minha vez, analisaram e deixaram uma cruz num deles, o que me deixou ainda mais confuso. Mais tarde vim a saber que também tinha os pés um pouco “chatos”, mas com o resto estava tudo bem. Entre medições, auscultações e pesagens, começaram a excluir os casados, quem tinha problemas de dentes ou varizes e sei lá mais o quê. Só sei que nos testes físicos reprovaram metade, sobrando para a parte da tarde vinte e cinco. Na ida para o almoço um pára-quedista que por lá andava e com ar de “peito inchado” foi avisando:

- “Da parte da tarde nas provas físicas, ‘vão de vela’ mais metade”.Depois de uma manhã dedicada aos testes físicos, lá fomos para um refeitório

moderno e bem apetrechado, que funcionava já em sistema de self-service onde registei como primeira nota, e que me agradou de sobremaneira o seguinte: além do regime militar dos pára-quedistas ser duro, exigente, com uma disciplina férrea, e apesar de vivermos num período salazarista fascista, ali respirava-se democracia. A comida que era distribuída ao recluso ou ao recruta, era exactamente a mesma para o resto das patentes, fosse comandante ou ministro.

Com o sol a pique, logo nas primeiras provas começaram a vir ao de cima algumas particularidades, sobressaindo dois grupos distintos. O que tinha a ver com força física bruta... desde o trabalhador agrícola ao que trabalhava nas obras e até na estiva – o trabalho exigia-lhes apenas força física e pouco mais, tinham poucos conhecimentos, só a escolarização e aprendizagem até á idade escolar primária e

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muitos deles sem a completarem; o outro grupo tinha a ver com menos força física, mas mais destreza, habilidade e inteligência. Estes eram aqueles a quem eu chamei de putos da rua, os reguilas habituados às espertezas, aos narizes esmurrados e algumas cabeças partidas mas que levavam a melhor.

Nós, para além do Fiúza que vinha das fainas de mar sendo uma força da natureza e muito combativo, éramos putos da rua.

- “Zé, já viste nas que nos metemos? São só brutamontes” - disse o Jorge.Aproveitei para lhe devolver o incentivo, com um sorriso descolorido, dizendo-

lhe: - “Pá, se eles conseguem nós também conseguiremos”.

- “Jorge, onde é que eu já ouvi isto?” - disse o Fiúza com ar de gozo. Lá fomos dando cumprimento ao programa, com corridas, saltos, passagem de obstáculos e outros que tais, onde eu me sentia como peixe na água.

Há três aspectos que me marcaram: a força física, a inteligência e a coragem.

A Força físicaNunca me tinha passado pela cabeça o difícil que era elevar o peso do nosso

corpo, só com a força dos braços numa barra de aço suspensa.- “Tudo lá para cima, minhas meninas, ou pesa-vos o rabo?” – dizia o instrutor.Eu não sei quanto ou o que é que me pesava, mas subindo à força de braços,

esgatanhando ou trepando, eu tinha de chegar lá acima cinco vezes.

A inteligênciaApercebi-me dessa importância numa das provas quando, às tantas, gritou um

sargento nada barrigudo e com um porte físico de respeito:- “Vai toda a gente junto daquele caixote tirar um par de luvas e regressar aqui

imediatamente!”.Na terra batida onde o cascalho abundava, lá fomos nós mostrar a nossa

agressividade. Tocou-me em sorte um rapaz alentejano que pesava bastante mais do que eu. Comecei então a enfardar porrada, mas ia sempre à luta, quanto mais enfardava, mais ganas e vontade me dava para ir para cima dele.

- “Alto lá, parem!” – avisou o instrutor.Depois virou-se para mim, talvez com um misto de pena por estar a levar uma

boa dose, mas também com admiração pela valentia, apontou com o dedo espetado para a cara do opositor, gritando-me:

- “Que adianta a valentia se não está a ser inteligente? Vês aqui a cara deste chaparro todo contente? É aqui que tens de lhe bater. Aqui! Olhos bem abertos e vai-lhe às fuças sempre que lhe vires a cara destapada!”.

Claro que a partir daquele momento tudo mudou, deixei de ser eu a enfardar. A partir dali, toda a valentia e confiança do amigo alentejano se esfumou, acabando por se acobardar e encolher. Isto levou a que fosse eliminado.

A Coragem

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Partimos para o último teste só com treze resistentes para o temido salto da torre. Todos alinhados para ver um salto de demonstração. Quando vimos um pára-quedista subir a uma torre enorme, preso por uma corda e lançar-se para baixo… um friozinho subiu pela espinha acima não deixando ninguém respirar até a queda se consumar. Os cabos retesaram-se, a cerca de um metro do solo, levando o Pára-quedista a manter os membros completamente firmes colados ao corpo, para que no momento do choque não virasse espantalho e lesionando-se gravemente.

Lá fui subindo, com as pernas “trémulas de coragem”, até ao patamar superior e, em posição de salto, lembrei-me do conselho do instrutor de boxe: “Olhos bem abertos e vai-lhe às fuças!”. Ao sinal, atirei-me com os olhos bem abertos para o espaço, recusando-me sempre olhar para baixo. Só houve um colega que não conseguiu saltar, já em cima da torre entrou em pânico e gritou:

- “Nãoooooooooo, não consigo! Não! …”.De facto, o temível salto da torre mete mais respeito do que saltar de um avião. Coincidência ou não, apenas metade dos que passaram nas provas médicas foi

apurada.Foi assim que nós, os três amigos, fomos escolhidos para as Tropas Pára-

quedistas, em dezoito de Dezembro de 1969, ficando eu com o Nº 1626/69.

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O famoso pente zero

A 11 de Maio de 1969 apresentei-me em Tancos, no Regimento de Caçadores Pára-quedistas, para dar início à verdadeira aventura - o alistamento nas tropas pára-quedistas, a frequência da escola de recrutas e por aí adiante até à conquista da célebre boina verde e do brevete.

Chegámos por volta das cinco e meia da manhã, depois de uma viagem turbulenta de sete horas num comboio, procedente do norte, superlotado só com militares. Do fim-de-semana chegavam ao Entroncamento, de vários pontos do país, militares do Exército, da Força Aérea e os Pára-quedistas - às centenas.

Um grupo de pára-quedistas esperava por nós à porta de armas, para nos acompanhar às instalações. Na entrada do quartel, e de forma imponente, estava à entrada do aquartelamento do RCP, o monumento aos Pára-quedistas mortos em combate.

A estátua simbolizava um Pára-quedista vindo dos céus; nós, feitos “maçaricos”, limitámo-nos a olhar com respeito.

. Todos os militares eram obrigados a “bater a pala” em sinal de respeitoDepois das apresentações a cerca de duas centenas de candidatos a recrutas,

os três amigos foram colocados no 7º pelotão da 1ª Companhia. Fomos alojados num dos três edifícios de dois pisos que albergavam as três companhias de militares, ali formadas para fornecer homens muito bem preparados para alimentar a guerra em África.

O facto de continuarmos sempre juntos tem uma explicação simples: quando, pela primeira vez, em Tancos, nos mandaram formar, ficámos juntos - mais por instinto de defesa do que por qualquer outra coisa pré-concebida - e assim nos foi atribuída numeração seguida. Por via disso e durante 40 meses, andámos sempre próximos.

Formámos na parada frontal ao edifício. Distribuíram a cada um o kit de fardamento com 32 peças. O oficial destacado logo avisou: - “Senhores recrutas, acaba de vos ser distribuído um kit de fardamento, composto por 32 peças, para iniciarem a vossa vida militar. No fim do serviço militar - demore este o tempo que demorar - têm de devolver todas as peças para fazerem o respectivo espólio.”

Depois de uma pausa continuou:- “O nosso Sargento vai acompanhar-vos e ajudar nas tarefas que se seguirão.

Deixo-vos com ele.”Notou-se algum agrado na forma educada como nos tratou o Capitão, isso era

visível em cada um de nós.- “COMPANHIA!!!” – soou o vozeirão do sargento-” Isto está uma bandalheira, eu quero toda a gente agrupada por pelotões na próxima formatura. Têm meia hora para arrumar o kit que vos foi distribuído e regressarem já equipados de ténis, calção e camisola branca!”– gritou o sargento.- “Vamos depois fazer uma visitinha, que se vai prolongar por toda a manhã.”

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Apesar de inebriados pela simpatia do capitão, veio o reverso, e acordámos com aquele vozeirão do sargento, como que a alertar que a tropa começaria naquele momento.

E começara mesmo: acabaram as palavras simpáticas com que até aí sempre nos tinham brindado, a bandalheira na formatura como naquele dia, acabara a roupa civil no quartel e estava quase certo que também iria acabar o cabelo daqueles jovens cabeludos de uma época de ouro, anos 60 - ainda hoje falam dela com evidente orgulho.

Numa tremenda confusão, cerca de 200 recrutas rapidamente mudaram de roupa, como se veio a confirmar, fomos ao nosso amigo e famoso ‘pente zero’.

Pela primeira vez na minha vida e em 5 minutos, vi-me despojado do cabelo até ao casco e o surpreendentemente já não nos reconhecíamos, mais parecíamos almas penadas. Apesar do tempo quente ou talvez por isso, sentia-se na barbearia um cheiro esquisito, era o cheiro a carecada que eu acabei por vivenciar, ao longo de 40 meses, mais de uma vintena de vezes.

Aos mais cabeludos, os barbeiros entretinham-se a fazer as mais disparatadas tropelias com o cabelo. Ora eram Beatles, oram eram índios moicanos, mas acabavam invariavelmente de cabeça lisa.

Desta vez senti-me nu, espoliado e violentado com esta carecada higiénica. Senti-me mais frágil, mais despido e já com saudades do que tinha ficado para trás: os colegas de trabalho, os amigos e, como não podia deixar de ser, a namorada. Mal cheguei à caserna fui ao saco e desencantei um bloco para escrever para ela e para a famelga. Aproveitei para tirar, no interior da caserna, umas fotos comigo já fardado, com a velha Mauser e capacete de guerra, mas com ar apalermado. Como se não fosse ter milhentas oportunidades de tirar esses retratos sem ser a fingir. Enfim… deviam ser efeitos da anestesia que a carecada me provocou.

Na época dos cabelos à Beatles, o famoso ‘pente zero’ produziu em nós efeitos anormais: ficámos todos estranhos e quase não falávamos uns com os outros. Aproveitei para ir dormir bem cedo, descansando das últimas 24 horas que quase me derrotaram, mas um pensamento não parou de martelar a minha cabeça desprotegida: “Lindo começo este!”.

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Incha, desincha e passa

Depois do ataque às nossas cabeças com o barbeiro a ser o único homem capaz de elevar a sua cadeira da barbearia à categoria de um cadafalso ou mesmo à da terrível guilhotina, tal o sentimento descabelado que provoca nas suas “vítimas”, o dia a dia de uma recruta nos pára-quedistas sem ser um inferno, é sem dúvida terrivelmente duro em todos os aspectos. É um embate tremendo esta alteração nas nossas vidas sob o ponto de vista organizacional. Quase todos os candidatos traziam expectativas erradas pelo fascínio do voo e dos saltos. Vínhamos pelo espírito de aventura e pelo deslumbramento de fazer parte de uma tropa especial, movidos por sonhos mais ou menos comuns de chegar até ao brevete, mas sem avaliar o percurso.

Regras e mais regras nos são impostas. Elas são-nos inscritas para sabermos com o que podemos contar, desde a primeira hora.

Depois de aprendermos a pôr os atacadores nas botas, a fazer as camas, a vestir, a arrumar os cacifos e com todos já fardados, ainda com os bonés de pala espetada da goma, marchando já a passo mais ou menos certo, o instrutor deu pela falta de um colega que se demorou um pouco mais na casa de banho, e logo gritou: “- Quando um falha, todos os outros pagam da mesma maneira. Dez flexões para toda a gente – enquanto cumpríamos” – continuou o sargento:

-“ Aqui senhores recrutas, não há lugar para o individualismo ou egoísmo. São uma equipa que têm de agir entre si. Por uma questão de sobrevivência e de respeito pela elite que vos espera, é assim que é e é assim que vai ser sempre no vosso futuro!”

Nesta etapa, fazem-se novas amizades e cumplicidades salutares na acção e desta vez determinadas pelas alturas de cada um. O Martins (Risotas), minhoto de gema da Pousada de Saramagos, tinha mais um centímetro do que eu e portanto precedia-me na coluna. Por esse facto ele foi quase sempre meu colega de exercícios nas corridas, nas marchas e em quase tudo. Era por assim dizer o meu par.

O Risotas era a boa disposição em pessoa e daí a alcunha. Era um amigo a sério, sempre disponível em todas as situações. Devo-lhe a sua amizade e solidariedade nos momentos de maior pressão em que chegava a duvidar das minhas capacidades.

“- Vamos lá Marques, esta merda incha desincha e passa” - incentivava o Risotas.

Quando não o via com um sorriso malandro, era ele que estava em sofrimento e só lhe dizia:

“- Vamos lá com essa merda pá, que raio de minhoto és tu?” – ele esboçava um sorriso – como a dizer que não se queria dar por vencido.

Ninguém se deixa ir abaixo, mas os rostos ilustram bem o ar inexpressivo e obstinado de quem pretende vingar. O cansaço psicológico é mais duro que o físico. Estamos todos sempre na expectativa sobre o que se seguirá, a mente acaba por sofrer mais do que todo o resto.

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Quando se está em formação no campo de instrução, uns arregalam os olhos para afugentar o choque resultante de um tratamento que nos escapa ao controle, outros erguem a cabeça, dispostos a não vergar. Todos compenetrados e direitos muito atentos às palavras dos instrutores que nos podem levar do céu para o inferno, em segundos, nunca se sabem as ideias que atravessam a mente dos duros e exigentes instrutores.

É tudo ou nada em termos de emoções, começa-se ali a formar o espírito de equipa, a cumplicidade com o Risotas alastra no pelotão. Tudo é novo para nós e por isso apoiamo-nos uns aos outros. Se um cai, caem todos. Se um vence vencemos todos. Na dureza dos exercícios, no peso das ordens e no imperativo das vozes de comando é este o nosso dia a dia.

A primeira semana é terrível pelo choque, pela violência no tratamento e pela dureza dos exercícios, logo se registam as primeiras baixas. Não é por acaso que nas primeiras três semanas ninguém pode sair de fim-de-semana e mesmo com essas cautelas alguns desistem, desertando para a emigração.

Os que ficam são os que aceitam com disciplina a voz rija que os dirige, bem diferente do carinho da família que ficou para trás. Estamos todos por nossa conta. Longe de casa e muito perto de descobrirmos uma realidade ainda desconhecida, boa ou má, mas que já nos marca para sempre. Integramo-nos com muito trabalho e determinação sempre lutando por vencer o medo.

Ao fim de três semanas, foi-nos concedida uma saída para podermos recuperar energias, visitar a família, os amigos e as namoradas. Quase todos partiram para as suas terrinhas, só quem morava para lá da serra do Marão, não se aventurou pois os dois dias de férias iriam direitinhos para a viagem.

Com a farda azul substituindo a velha farda cinzenta, apresentámo-nos em parada para uma revista ao fardamento com todos bem alinhados, botas reluzentes, e com o bivaque altivo da aeronáutica bem aconchegado tentando tapar a careca. Surgiu finalmente a voz de comando mais ansiada:

-“ DESTROOOÇAR…”Como por magia só se via bivaques no ar a comemorar, como se tivesse

acabado a vida militar e não um simples passaporte de fim-de-semana ao fim de vinte e um dias.

Foram dois dias que voaram num ápice. Às cinco da manhã de segunda-feira, estava de volta ao quartel pronto para novas batalhas. Mais de uma dúzia de recrutas aproveitou para não voltar mais optando pela deserção. Enquanto desfazia o saco da roupa lavada, que minha mãe tinha esmerado e acautelava o chouriço da ordem no armário, reparo no Covilhã (um recruta que era pastor na serra da estrela - daí a alcunha) com aquele porte físico impressionante de farda verde de instrução, deitado no chão, rejeitando a cama esmeradamente feita, completamente pronto para iniciar a recruta às oito horas e não resisti:

“- Covilhã, para te deitares no chão deves estar maluco ou com saudades da serra e das ovelhas.”

“- O gajo está maluco” – diz outro. Responde o Covilhã com absoluta calma:

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“- Malucos estais vós! Prefiro dormir no chão e aproveitar este tempinho do que perder meia hora a fazer a cama. Logo mais, está na hora de ir dar cabo do cabedal.”

Olhámos uns para os outros e quase todos seguimos o exemplo.O tempo vai passando e o corpo acostuma-se à dor. Os nervos fintando as

emoções e os desejos para responder apenas perante a razão. Braços treinados e cabeças frias perante a dureza da recruta.

Em finais de Julho de 1970, com o aproximar do fim da recruta, autocarros azuis da Força Aérea esperam-nos para uma visita de estudo à Barragem do Castelo de Bode e à Nazaré. Eis que surge a notícia há muito esperada principalmente por quem aguarda mudanças: a morte de Salazar. Depois de uma cadeira ter-lhe pregado realmente uma partida: queda, a cabeça a bater no chão, hematoma cerebral, bloco operatório, diminuição das faculdades mentais o que o levou a dois anos em agonia.Depois de muito hesitar, Américo Tomás acaba por nomear Marcelo Caetano para a Presidência do Conselho de Ministros. Alguns, junto de Salazar, fingem que é ele ainda o Presidente do Conselho ou ele finge acreditar na encenação e, a fingir, lá vai dando despacho aos assuntos correntes. Morre a 27 de Julho de 1970, com 81 anos de idade e 42 de poder ininterrupto.

Estando a nossa escola de recrutas praticamente concluída e o pessoal devidamente fardado fomos aproveitados para irmos ao Mosteiros dos Jerónimos onde o ditador estava em câmara ardente, fazer a visita da ordem, na segunda metade da aprazada visita.

Cerca de duas semanas depois, terminei a minha recruta com aproveitamento, em 14 de Agosto de 1970.

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Da recruta até à boina…

Concluí a recruta, com a Cerimónia do Juramento de Bandeira, sem a presença de qualquer dos meus familiares, pois a disponibilidade era pouca e os cobres não abundavam. A minha pobre mãe, para além deste rapaz, ainda tinha o meu mano velho, o Manuel Elpídio, no exército em Sacavém. Este, acabou por não ir para a guerra, mas sim, por passar os últimos dias na prisão, à custa de um episódio curioso que, bem lembrado, até dá para rir.

O Manel era casado, por via daqueles deslizes fortuitos entre namorados e quem o queria ver contente, era em casa, junto da mulher e mais tarde do fruto dessa relação que eu apadrinhei Então vai daí, surripiou os passaportes de saída do quartel, autorizando-se a si próprio a ir visitar a família. Se juntarmos a isto, o facto de, enquanto cabo da guarda, ter permitido a saída do quartel, de colegas não autorizados, deu como resultado uns dias à sombra. Ah valente mano, só por isso já valeu a pena, de entre os três irmãos que nós éramos, só eu ter batido com os costados na guerra.

Finda a cerimónia, gozei alguns dias de férias, que bem merecia, findas as quais e precisamente no dia em que o meu outro mano, o Fernando, fazia 15 anos, inicio a segunda fase da minha aventura, o Curso de Pára-Quedismo, para a conquista do almejado brevete.

O primeiro dia, confesso que não me agradou muito, pois começou logo pela vacinação contra a febre-amarela. Éramos umas centenas de recrutas alinhados e sentados no chão, já sem camisa, à espera do sacrifício. Passava o primeiro enfermeiro com um tabuleiro de algodões ensopados em tintura de iodo, com que desinfectava a zona onde seria dada a picada. O segundo, vinha com as agulhas e sem parar, espetava uma no sítio assinalado. O terceiro, trazia uma seringa enorme, que enroscava na agulha e comprimia o líquido, que rapidamente era injectado, provocando uma sensação muito dolorosa, agravada pelo terror às enormes agulhas. O quarto, passava com outro recipiente, retirando e recolhendo as referidas agulhas. Por último, um outro enfermeiro, com novos algodões molhados em tintura de iodo, fazia a desinfecção final para minimizar os efeitos da vacina, que provocava uma tremenda reacção deixando o braço quase imobilizado, e impedir a formação de um hematoma. Assim, demos início ao primeiro dia, das três semanas em terra, com uma bateria de exercícios, especialmente duros, onde se privilegiavam os movimentos de braços, para que o corpo não "emperrasse”. A amostra do primeiro dia, não augurava nada de bom para o cabedal. O curso iria culminar com uma semana no ar, de forma a serem executados seis saltos em cinco dias, para finalmente podermos ostentar no peito, o brevete de pára-quedista.

Acho que nunca sofri tanto na minha vida, como nestas três semanas.- Quem disse que o homem não chora? Puro engano, chora por amor e chora também pela dor. Senti que o meu arreganho, destemor e vontade de vencer, não chegavam.

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Valeram o espírito de corpo e os amigos. Destaco o Risotas, sempre com uma palavra de ânimo e coragem apesar do seu sofrimento. Os exercícios eram desumanos e violentos demais para que, quem está de fora possa acreditar na sua execução. Os que eram feitos em especial com toros de madeira, eram de uma violência extrema, especialmente: os Alás, a Ama-seca, a Rosca, o Combinado, o Lançado e o Cumprimento.

Ao fim de cada sessão diária eu só dizia para o Jorge, colega da escola primária:“- A minha mãe não criou um filho para isto, vão para o raio que os parta”“- Zé falta só um dia e vamos conseguir, depois do banho vamos ao bar e pago-

te uma cerveja.”“- Não brinques comigo pá, acho que ia morrer bêbado” - dizia sem fôlego.“- Ai de ti Jorge, se contas esta merda em Viana, a minha mãe, coitada, tinha um

chilique”.Ao longe passava um pelotão de novos recrutas, na maior bandalheira, com

passos algo trocados. O Fiúza não se conteve:“- A figura que nós fazíamos pá, já pensaste que para a semana já vamos

saltar?“- Como o tempo passa - atalhou o Jorge” – alguém dizia: incha, desincha e

passa.Lá voltámos à temível torre de saltos uma e outra vez. Como a foto ilustra, eram

quedas a 45º com embate violento, em que ninguém se magoava, pois bem treinados e preparados fisicamente, o corpo enrolava-se ao tocar no chão. Tão martirizado pela intensidade dos exercícios e pelos vários embates a que era sujeito: cambalhotas no empedrado, crosses de botas calçadas, luta em que predominava o boxe, pistas de cordas onde queriam fazer de nós uns Tarzan’s, pistas vermelha e branca como meras toupeiras, cada vez me sentia com menos tempo para estar cansado. Ficava á mercê dos instrutores, mas nunca dos abutres. Já interiorizara que eles tinham razão e portanto nem em pensamento os questionava.

Instrução dura, Combate fácil, era o lema que nos norteava sempre. Pensava comigo:

“- Vamos para a guerra? Então, há que prepararmo-nos como deve ser.”A semana dos saltos, há muito tempo almejada, tinha chegado, finalmente ia

saltar. “- Para a semana serão os saltos” – gritou o sargento de cima do palanque –

“vão finalmente dar corpo a estas semanas de treino intensivo e ganharem merecidamente a vossa boina verde e o brevete.”

E gritando a plenos pulmões:“- INSTRUÇÃO DURA…”“- COMBATE FÁCIL” – Responderam forte, mas com emoção, as centenas de

vozes dos futuros pára-quedistas.Estas seis semanas de instrução reduziram-se a poucos segundos de forma

vertiginosa no meu cérebro. O esforço, testado ao limite, o calor a bater no corpo, o suor a escorrer por cada milímetro da pele, o querer vergar pelo cansaço ganho a cada

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dia que passava, a voz austera, firme e sabedora do instrutor, o testar toda a energia física e mental, era superior a tudo o que eu julgava poder aguentar.

Não me sentia especial, nem diferente dos outros, era sim, um futuro pára-quedista!

A boina era ainda uma miragem, mas estava tão perto... iria consegui-la. Todos os instrutores estavam ali, em frente a nós, a incutir-nos na alma e no sangue o que é ser Pára-quedista... Tudo transpirava à tão falada mística dos Boinas Verdes. Senti o peso de um toro, travando com ele a teimosia de ambos. As calistenias, pareciam minutos intermináveis, mas cada gota de suor ali largada era para que o verde da boina fosse merecido. Os crosses, com os instrutores, que noutra vida quase de certeza foram lebres nunca derrubadas pelo predador, faziam com que no final pensasse que não existia oxigénio suficiente para me restabelecer de tal cansaço... mas foi mais um que concluí! A pista de cordas, cada vez que olhava para ela, só pensava que nada ali era fácil mas ia conseguir! A sensação de se mandar para o chão como se do avião estivesse a sair, fazia com que nesse instante, pensasse que poderiam vir os crosses, as calistenias os saltos da torre e tudo o mais, porque estava ali para ser aquilo que tantos queriam e poucos conseguiam! Realmente o sonho comanda a vida... e agora o sonho vai tomar forma, a forma da placa de embarque do Nordatlas com o seu som inconfundível, o azul do céu e para concluí-lo, os campos do Arrepiado ali ao lado do Tejo.

Quando saí destes segundos que me trespassaram, dei por mim sobrevoando o Tejo e o campo de saltos do Arrepiado. Um barulho ensurdecedor aliviava-me o medo, olhei para os colegas e nem um sorriso de confiança, tal a concentração de todos. Lá ao fundo vislumbrei o Risotas, que mesmo com um sorriso amarelo me acalmou e me fez lembrar do “vai-lhe às fuças”.

Até que chegou a minha vez... finalmente o “já”, aquilo que tanto ansiava, a pancada confiante do largador nas minhas costas, atirou-me para aquilo por que tanto lutara... o salto... o esticão da fita extractora, foi como se alguém me tivesse dito: “acorda, conseguiste!” Ao mesmo tempo o vento a batia-me na cara, com carícias que nunca mais vou esquecer. Olhei para baixo e vi árvores tão pequeninas, que pensei que o chão ainda estava longe, mas qual quê, eram árvores do Ribatejo, muito pequenas. Aterrei da pior maneira, comendo terra lavrada e ainda tive que correr atrás do pára-quedas, qual barco à vela.

Apesar disso, o encontro com o solo foi uma experiência que queria repetir vezes sem conta. Claro que repeti, sempre com a alegria que só um verdadeiro Pára-quedista pode descrever... Seguiram-se mais cinco saltos e no último obtive aquilo que tanto esperava. Agora sim, era merecedor... Depois de tanta luta, tanto sacrifício, tanta lágrima caída, os instrutores, que tanto me tinham ensinado, sendo para mim exemplos a seguir, com ar orgulhoso, colocaram-me na cabeça o meu justo prémio... a Boina Verde! Uma luta contra as lágrimas que teimavam em cair-me, só provava que, somente quem passa por tão duras provas, lhe sabe dar o valor. Era minha e juntamente com ela, já erguia ao peito o meu brevete. Era um Pára-Quedista, um Boina Verde!

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As viagens de fim-de-semana

Todos os Pára-quedistas ostentam garbosamente o seu brevete e em especial a famosa Boina Verde, que John Wayne imortalizou no filme “OS BOINAS VERDES”, com o título original: The Green Berets.

A apresentação do filme dizia: Os Boinas Verdes eram considerados como a força de combate mais valente sobre a face da Terra - as Forças Especiais de Elite, cuidadosamente escolhidas e treinadas para a guerra anti-guerrilha do Vietnam, como a Legião Estrangeira Francesa, na Indochina. Acrescento eu: ou como nos anos 60 Os Boinas Verdes Portugueses em África.

Foi na minha incorporação, que pela primeira vez, na história dos pára-quedistas foi estreada a farda azul, vindo substituir a bonita farda amarela. Mas a boina verde, essa não mudou desde 1955, mantendo-se como elemento de união da família pára-quedista.

Os "páras" granjearam a fama de militares de elite, não só pelas aparições públicas, mas também, e muito especialmente, porque para ser boina verde era e é necessário, percorrer um longo e duro caminho. O jovem candidato submetia-se às provas de admissão e só após o último salto do Curso de Pára-quedismo, passava a usar por direito próprio a boina verde.

Ainda hoje, este símbolo continua a atrair milhares de jovens que, das cidades, vilas e aldeias de Portugal, vêem nele algo que "mexe com eles".

No fim-de-semana, irradiámos de Tancos, para outros lugares, a nova farda azul com o brevete reluzente e a sua boina verde. Íamos para junto dos nossos familiares e partilhar, com eles, o que tão duramente tínhamos conquistado. A surpresa pela farda era notória, nas pessoas que connosco cruzavam, mas ao mesmo tempo mostravam respeito e admiração, provocando no nosso cérebro o martelar insistente do refrão habitual das marchas pára-quedistas:

Olhem bem, sintam respeitoEles têm asas ao peitoCabeça erguida, heróis do arBoinas Verdes vão a passar.

Mas foi sol de pouca dura. Quando dei por ela, era domingo e já estava de novo na estação. Ás 9:50, esperávamos o comboio que vinha de Valença e nos levaria até à estação de Campanha, no Porto. Uma viagem de 2 horas para fazer 70 km, onde nos esperava, um autêntico pandemónio, com a mudança de comboio que nos levaria ao Entroncamento. Um comboio, já a abarrotar de militares, esperava ainda pelos que vinham na linha do Minho. Era mesmo o desenrascanço à militar. Todos apinhados até à porta, mas os mais atrevidos entravam mesmo pela janela. Os revisores da CP, não se metiam com a maralha, era o salve-se quem puder.

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Mais uma viagem Porto/Entroncamento, num domingo à noite, agora com o comboio repleto de militares. Sempre que não arranjava um lugar sentado (e nunca arranjava) ia mesmo deitado nas bagageiras superiores por cima das janelas ou nos preciosos cacifos à entrada da carruagem, com evidente prejuízo para as malas e bagagens. Como em Campanhã já os preciosos lugares estavam faustosamente ocupados, restou-me viver a experiência de dormir em pé, solidamente amparado pelos colegas que me acompanhavam desde Viana. Eles também estavam escorados por uma horda compacta de militares de todos os ramos, estando sempre em maioria os da Boina Castanha (Exército). Como sempre, uma autêntica viagem aos infernos, de cinco horas, até ao Entroncamento. Na primeira hora, todos conversavam ou pelo menos tentavam fazê-lo, tal era a barulheira, mas momentos depois, rendiam-se ao cansaço de dois dias mal dormidos (os de suposto descanso). Para isso, o maralhal procurava o seu travesseiro que não era mais que o ombro do parceiro.

Quando se ouvia, de forma mais forte, o “pouca-terra” do bater dos carris, a experiência dizia-nos que se aproximava o revisor, para picar os bilhetes. Coitado do homem, levava mais de um hora, em cada carruagem, para cumprir, mal, a tarefa. Havia sempre quem o tentasse ludibriar. Passavam à socapa para lugares já controlados ou escondiam-se em tudo quanto era sitio. O certo é que o melhor lugar para fugir ao picar do bilhete, era aninhado no meio de um grupo, onde o possível contacto ficava à distância do comprimento do braço do revisor até ao visado. Perto de mim, para além dos militares do exército, iam dois grupos, barulhentos, um de mancebos de "páras" e outro de comandos, estupidamente a vangloriarem e a elogiarem o comportamento dos seus instrutores. Cada um deles, como desafiando o outro, parecia delirar de satisfação com as provações físicas e as humilhações sofridas naquela semana, infligidas por alguns fanáticos com patente.

"- O nosso tenente obrigou-nos a mergulhar a cabeça na imundice da fossa do quartel”.

“- Ele é o máximo, tem o curso de não sei quê, e esteve na legião estrangeira " - dizia um comando secundado por outros.

Dizia o outro grupo dos “Páras”:"- O nosso capitão obrigou-nos, a todos, a dormir nus, na parada, e depois

obrigou-nos, ao pequeno-almoço a comer gafanhotos e grilos; ele é mesmo bom, esteve na Guiné, e parece que matou mais de cinquenta turras.”

Eu que já não suportava aquelas bazófias, comecei a remoer os castigos e reparos que apanhara nas seis semanas já passadas:

"- Levante essa cabeçorra, soldado Marques, endireite essa pala do boné, parece a de um ciclista".

“- Sabe para que serve essa pala, bem comprida, que você teima em lhe fazer uma bainha? Para olhar dela só para baixo e nunca da pala para cima” - vociferava o sargento.

“- Para cima estão os seus superiores, ouviu? Dez flexões para aprender.”“- Meu sargento – tentava eu argumentar.”“- Quinze flexões – respondeu ao meu esboço de argumento.”

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Enquanto eu estava nas minhas reflexões e os outros continuavam com as gabarolices, um tipo que usava boina negra, como a da polícia militar, de forma educada, sem ser ofensivo, interpelou-os de forma pedagógica dizendo:

“- Porque é que vocês ficam tão satisfeitos com as sacanices que vos fazem?”Num solavanco do comboio estalou uma confusão… já não bastava o cheiro a

trovoada que pairava no ar, tinha que vir aquele solavanco servir de rastilho. Envolveram-se todos numa alegre batalha de murros e cabeçadas, insultos e palavrões, entre boinas verdes e vermelhas, com o feijão verde pelo meio, como sempre sem culpa nenhuma, a levar para tabaco, o que durou quase toda a viagem.

Virei-me para o Jorge, pois o Fuíza só o voltei a encontrar no quartel.“- Está tudo louco, vou mudar de carruagem.”

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Preparação para a guerra

Depois de mais uma viagem numa noite interminável e atribulada, mas saborosa, de fim-de-semana, a meados do mês de Setembro de 1970 lá estou de novo no Regimento de Caçadores Pára-quedistas em Tancos. Quando dou comigo, encontrando-me em formatura na parada para nos ser apresentado o Capitão Gomes, comandante do Curso de Combate que visava fundamentalmente a preparação para a guerra. Segundo se contava, e eu vim a confirmar isso muito mais tarde, este oficial era um autêntico especialista no tipo de guerra que se travava em Angola, Guiné e Moçambique, aliás, como tantos outros que as forças Pára-quedistas tinham no terreno.

Para mim, que só ambicionava ser Pára-quedista, esta última etapa era perfeitamente dispensável para as minhas ambições. Ser Pára-quedista, ostentar com orgulho a Boina Verde e no peito o Brevete era o corolário do trabalho desenvolvido ao longo de quatro semanas e que culminaram no prazer de voar, de contemplar a terra tão pequena lá em baixo. É indescritível a sensação de paz e tranquilidade que o contacto com a natureza no seu estado mais puro nos proporcionava. É o voar com o silêncio e com a ausência de peso.

Até Ícaro se deslumbrou com a bela imagem do sol e sentindo-se atraído, voou em sua direcção, acabando por deixar a cera de suas asas rapidamente se derreterem e acabando por cair no mar - apesar de ser sem dúvida um deslumbramento, tal o domínio que se sente sobre a terra, pela sensação de liberdade e poder - não se pode perder o discernimento, pois aqueles segundos passam demasiado depressa e os procedimentos a cumprir durante o voo não permitem veleidades.

Dei comigo a pensar cá com os meus botões:- “Caramba, afinal para ser Pára-quedista ainda preciso de fazer muito mais?” Fui acordado destes pensamentos com o vozeirão do sargento que comandava

a formatura:- “COMPANHIAAAAA. SÉEEE… UP” (Voz de sentido)- “DÁ LICENÇA MEU CAPITÃO… COMPANHIA PRONTA. - “Mande descansar” – diz o Capitão GomesCom a cabeça em completa turbulência - mais parecia o Noratlas quando ligava

os motores para me levar a voar nos céus do Arripiado - ia retendo algumas frases chave do discurso mobilizador que o capitão no seu (porte altivo apesar da imagem (falsa) que a sua cara de bonacheirão, que parecia transmitir) nos ia passando:

- “O curso de combate está pensado para dotar o Pára-quedista de competências técnicas e de tácticas de combate para o cumprimento das missões necessárias na guerra. “ – e continuava dando especial ênfase a algumas frases:

- “Este curso de combate que agora inicia, terminará a 18 de Dezembro, a tempo de poderem ter alguns dias de férias junto de vossas famílias.”

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Como o silêncio imperava, nem podia comentar nada com o Risotas, que ali estava ao meu lado direito, firme e hirto, naquela pose de soldado de chumbo que contrastava com a sua habitual boa disposição. Dei comigo a pensar novamente:

- “Puta de vida, nesse dia fará um ano inteirinho que vim a testes e fiquei apurado para Pára-quedista. Se soubesse o que sei hoje… não era o filho da senhora Maria que apanhavam cá.”

E lá continuava o Comandante… - “Ficarão prontos a demonstrar técnicas de combate que garantam o

movimento, a acção de fogo e protecção em segurança, demonstrando também técnicas de transposição de obstáculos e desníveis, e cursos de água com recurso a cordas e outros meios”.

Estávamos em posição de descanso - o que é uma treta, pois estar de pé com as pernas abertas mas sem as poder movimentar, braços atrás das costas mas sem os poder mexer, sem poder falar, coçar ou olhar para o lado – não será nem uma posição confortável.

Quase ao fim de uma hora de discurso, acho que falava, falava mas já ninguém o ouvia. Até que, finalmente, mandou destroçar, dando de presente quinze minutos de intervalo, mas avisando:

- “Tudo o que aqui vos disse, vai ser exigido nos próximos três meses, não vos prometo tarefas fáceis. Vão ser levados ao limite das vossas possibilidades físicas e psicológicas” - terminou gritando:

- “INSTRUÇÃO DURA”- “COMBATE FÁCIL “ - gritou toda a companhia a plenos pulmõesDepois desta prelecção, que mais não era que guerra psicológica de forma a

disseminar ideias chave do que nos esperava, percebi claramente que agora iria ser a sério. Até que o Cunha, (o baixote com cara de cigano mas com uma energia incrível, mais conhecido pelo Braga, por ser duma freguesia (Palmeira) limítrofe a Braga, cidade dos arcebispos,) veio com a novidade:

- “Acho, pelo que me contaram, e pelo paleio do nosso capitão, que esta companhia vai bater com os cornos na Guiné. Aposto com quem quiser.”

- “Quem é que te enfiou essa merda na cabeçorra?” – protesto eu, pois a guerra na Guiné não era para brincadeiras.

- “Para além das baixas, a Guiné não interessa nem ao Menino Jesus” – tentava eu contrariar, como se ainda fosse dono de mim e do meu destino.

Sem darmos conta do tempo, (até acho que os relógios dos tipos não funcionavam bem) já chamavam por nós para a formatura.

- “Como estiveram a descansar ouvindo o nosso capitão, vamos gastar um pouco essas energias acumuladas no fim-de-semana” – dizia o nosso sargento.

Para petisco foi servido um crosse com uma dezena de quilómetros, de tronco nu na estrada que separava a Base Aérea Nº3 e o nosso quartel, lá fomos palmilhar estrada ao som do bater das botas militares, que iam aumentando de peso na proporção de metros percorridos, com o suor a incomodar e a arder nos olhos.

- “Esse cabrão nunca mais vira”- dizia o Risotas atrás de mim, pois quanto mais nos afastávamos, mais tínhamos que calcorrear no retorno.

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No retorno, cruzei-me com o Jorge, meu amigo de infância, que por ser “rodas baixas” ia na parte da frente do grupo e com o olhar me queria dizer:

- “Zé, se eles conseguem nós também vamos conseguir.”Como sempre, o Jorge tinha razão, conseguimos esse e todos os que se

seguiram. Nesta fase da instrução já não havia lugar a desistências, antes quebrar que torcer.

E alguns quebraram mesmo, como veio acontecer, num exercício numa zona de vegetação traiçoeira, em que se “brincava” às emboscadas.

De um lado, os supostos Turras, (designação que se dava aos combatentes dos movimentos de libertação em África) na pele dos instrutores muito experientes. Do outro lado nós, instruendos que andávamos a aprender a combater sempre num ritmo intenso, forjado no esforço físico e sacrifício, num ambiente muito próximo do perigo, da incerteza e do acaso.

Os “turras” com bala real e nós com bala simulada de madeira numa velhinha Mauser. Às duas por três deu-se o contacto, entre dois camaradas divididos pelo exercício mas irmanados na mesma causa. O “Turra” surgiu de repente, detrás de uns arbustos, provavelmente ainda extasiado pela guerra de onde tinha regressado há poucos meses, e procurou a luta corpo a corpo, no intuito de dar uma sova ao instruendo. Mas para mal dele e sofrimento de todos, a Mauser encostou-se ao peito dele e disparou-se, vomitando uma bala de madeira que lhe rebentou as entranhas. Foi atingido mortalmente um combatente acabado de regressar da guerra em Moçambique, onde tinha resistido e sobrevivido às mais perigosas operações de combate.

Para nós foi mais um tiro entre tantos, que cruzavam por cima das nossas cabeças e mal nos apercebemos da tragédia. Tudo continuou como se nada tivesse acontecido. A ordem era avançar sempre, pois são situações que podem surgir na guerra a sério e temos sempre que encarar, resistir e seguir em frente. O exercício continuou, revelando já que todos eram muito fortes psicologicamente, com concentração redobrada, mostrando, da pior maneira, que estávamos quase prontos para enfrentar situações de todo o tipo e seguir em frente cumprindo as missões necessárias em teatro de guerra.

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Corpos amputados

Como tantos outros meus colegas, nessa noite não preguei olho. Só me vinha à memória o acidente que despegou a vida ao militar que nos instruía e nos preparava para a guerra. Apesar de não termos presenciado directamente o acidente, e por falta de informação oficial, as vozes da caserna eram demolidoras e abalaram, um pouco, a nossa força mental, que vinha sendo cimentada desde o primeiro dia. Com o aproximar do sono, acercou-se uma estranha dor de cabeça, fruto da realidade acordada que fervilhava com as vozes da caserna, com o sono mal dormido a querer-se aproximar da barreira do som do pesadelo.

Nessa noite, recusava-me a dormir e lembrei todos os momentos: todos os sacrifícios; todas as lutas constantes para me conseguir superar e todo o suor, o sangue e as lágrimas vertidas. O problema de desistir, nesta altura, já não se punha nem o permitiam e, se a ida para a guerra era uma inevitabilidade, então só me restava olhar e seguir em frente.

Procurei aprender com os erros, e estes, em situações limite, podem retumbar em erros fatais. Aprendi que errar é uma experiência dolorosa (por vezes física e irremediável), é na frustração e no desconforto, inerente ao erro, que se fixa a memória da lição adquirida.

Muita coisa me passou pela cabeça nas noites seguintes. Durante o dia, o Curso de Combate absorvia-me por completo, ia adquirindo conhecimentos de forma a me preparar técnica e operacionalmente para a guerra. No fim da instrução militar, recolhia à caserna e, depois de um retemperador banho, aproveitava sempre para escrever à família, procurando sossegá-la fazendo o inverso do esperado, ou seja, era eu que a animava dando sempre, uma imagem mais colorida, desta minha estadia no serviço militar.

As minhas noites eram mal dormidas derivadas ao cansaço físico. Comparado com os meus camaradas não era tão forte, pois só conseguia superar as actividades, de ordem física, atingindo os limites das minhas reservas. Já mentalmente era forte e determinado, nunca desistindo, transmitindo força anímica aos colegas que, antes, me tinham ajudado.

A partir dessa altura, comecei a interessar-me pelas coisas da guerra e fiquei a saber das dificuldades sentidas pelas nossas Forças, no início da guerra em África, e que as Forças Armadas foram apanhadas impreparadas para fazer face à guerra, trazida pelos ventos que já sopravam desde os anos 40, nas colónias de outros países europeus.

Em Dezembro de 1961, cinquenta mil tropas indianas, apoiadas por blindados, artilharia, meios aéreos e navais, ocuparam militarmente Goa, Damão e Diu. Os 3500 militares portugueses e goeses tinham ordens de Salazar para lutar até à morte, tendo o ditador português comunicado que só esperava, como resultado do combate, "militares vitoriosos ou mortos". Ao contrário do que se esperava, as tropas Indianas ainda se depararam com a resistência de alguns militares portugueses, nomeadamente

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em Vasco da Gama, onde 500 militares, fortemente armados, obrigaram as forças indianas a combater.

Com o rebentamento da guerra, nas colónias portuguesas, era evidente o apoio que faltava aos militares em situação de guerra. Não se previram situações, tais como: a morte; a incapacidade; a pensão de sangue; a trasladação dos corpos; o aprisionamento ou a captura de militares em operações; o pagamento de vencimentos: a distribuição de correspondência; as licenças de férias, entre outras. Aqueles que sofreram graves mutilações, no teatro de operações ou em acções de preparação para o combate, constituem a face mais visível da Guerra Colonial e, em certo sentido, aquela que a sociedade portuguesa tem tido mais dificuldade em encarar. Assim, se foi constituindo um exército de deficientes, que não parou de aumentar, formado por jovens que, na força da vida, se viram amputados, cegos, com doenças internas graves, doentes da mente, com futuro incerto e que ainda hoje vemos alguns a vaguear nas cidades, vilas e aldeias do nosso país, como almas perdidas sem abrigo.

Foram considerados «inválidos». Muitos deles sofreram duplamente a sua deficiência ao se tornarem, durante muito tempo, um pesado fardo para as famílias. Os hospitais militares foram, no início, para muitos um refúgio, mas também o depósito onde os corpos amputados, os homens em cadeira de rodas ou os cegos, tropeçando, se mantiveram longe da vista da sociedade, porque, oficialmente, Portugal não estava, oficialmente em guerra e a sua visibilidade poderia motivar interrogações incómodas, para o regime, sobre a realidade do que se passava nas frentes de combate.

Estava eu a conversar com o “Risotas”, sobre a guerra e perguntei-lhe:- “E os nossos militares deficientes, que será feito deles?”Pela primeira vez o vi com a voz um pouco embargada:- “Marques, nem me fales nessa merda, prefiro ficar lá de vez”. – E acrescenta:- “A guerra é nojenta, e o que ela nos tira, quando não nos tira a vida, nunca

mais devolve.”Na retaguarda, iam aumentando os caixões, daqueles cujas famílias tinham

possibilidade de pagar a trasladação dos corpos (os outros foram, durante os primeiros anos, enterrados nas zonas de combate) e os feridos, que se acumulavam nos hospitais militares que eram pequenos, incapazes e não adaptados para os feridos em operações de guerra.

Poder vir a engrossar o exército de deficientes, era o medo, que muitas vezes, me roubou o sono.

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A vermelhinha

Dos “duzentos paus” que a minha mãe me dava, por semana, e descontando os 110$00 que a CP cobrava por um bilhete militar de Viana ao Entroncamento (ida e volta), era com “noventa paus”, por semana, que eu tinha que me desenrascar para o tabaco, para as cartas e selos, e já pouco sobrava para as cervejolas.

Conhecia as dificuldades da vida, e era sabedor da luta, diária, que minha mãe, analfabeta, mas com um sentido arguto para o negócio, travava na sua loja de ferro-velho, para poder juntar “algum” para os dois filhos, que estavam na tropa, e, ambos, teimavam em vir a casa todos os fins-de-semana.

Nunca me aventurei em jogar à batota, por não ter muito jeito, por medo de perder o pouco pecúlio, mas também porque não tinha massa para arriscar. Alguns camaradas (sempre que o cabo ou sargento de dia, não estivesse por perto) aproveitavam as horas mortas para jogar à "lerpa" a dinheiro ou a tabaco. Os menos instruídos nessa arte jogavam ao montinho e os mais reguilas, das grandes cidades, mais habituados a levarem os outros por lorpas, arriscavam a jogar à vermelhinha. Eu arrisquei uma vez e serviu-me de emenda para toda a vida.

A vermelhinha era um jogo de cartas, da mais pura batota, e que ainda se vê, um pouco à socapa, por feiras e romarias depenando os incautos. Consistia em escolher uma dama de um naipe vermelho (daí o nome Vermelhinha), entre duas outras cartas de naipe preto. O jogador, batoteiro, mostrava previamente onde estava a dama e, depois de manipular as cartas com grande velocidade, convidava a vítima a tentar descobri-la. Para servir de isco havia sempre um cúmplice. Este jogava e acertava quase sempre e até nos “ajudava” quando o batoteiro fingia uma pequena distracção. Indicava-nos onde devíamos apostar, chamando-nos a atenção para o facto da dama estar marcada com uma pequena dobra num dos cantos. Ganhei a primeira vez, o que a mim, e a outros incautos, me levou a apostar mais forte de seguida. Mas joguei pouco.

O papalvo do Marques lá começou a jogar, tendo escolhido de imediato a carta marcada. Só que a carta marcada era afinal um Às de espadas! Como é que isto podia ter acontecido?

O Júlio Maia, colega mais antigo e por sinal também de Viana do Castelo, onde chegámos a trabalhar juntos numa fábrica de boinas, a CEDEMI – que para além de fornecer as boinas aos militares também era conhecida pela paixão e dedicação ao ciclismo - não chegou a ir á guerra, tendo se especializado na dobragem e manutenção dos pára-quedas, Na sua farda amarela imponente, depois de me deixar perder outra vez, chamou-me de lado e disse:

“- Zé, deixa-te dessas merdas, esse jogo é só para perder dinheiro. Ninguém ganha. Repara naquele “Pára”.” – Referindo-se de forma abreviada a um pára-quedista.

“ – Aquele tipo é o cúmplice, está ali para vos sacar a massa. Deixa-te de ser parvo e gasta mas é o dinheiro numas cervejolas que tem mais interesse. Anda daí,

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vamos ao bar. Esses gajos são uns filhos da puta, quando baterem com os cornos, em Angola, vão aprender o valor da amizade. Foge deles.” – disse o Maia.

E lá me explicou que naquele jogo era quase impossível alguém ganhar. Havia muitos truques que o batoteiro podia fazer, incluindo, naturalmente, o truque de, disfarçadamente, desmarcar o canto da dama, para marcar o de uma das outras cartas de naipe preto. O dito cúmplice do batoteiro, quando me deu a dica, sobre a marca, era mesmo no sentido de me “ajudar” a esvaziar os bolsos.

Aprendi a lição: no jogo da vida, ganha quem tiver amigos e cúmplices, que nem sempre são fáceis de descobrir. Na situação real de jogo, os ganhos afinal seriam partilhados com o amigo, que era, para efeitos de demonstração da «teoria da amizade» o seu verdadeiro cúmplice naquele jogo.

É evidente que, a maior parte das vezes, acabava tudo à batatada, num espírito “fraterno” em que ninguém, naquele quartel, se incomodava em acalmar os ânimos. Sempre achei que isso já fazia parte da instrução no sentido de nos brutalizar.

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O frio da realidade

A fase final da preparação de um Combatente Pára-quedista, é dedicada a simular, em condições adversas e semelhantes ao da guerra no ultramar, uma operação militar que ocorrem nas três frentes de batalha em África. Visa o último teste de aperfeiçoamento, de forma a pôr em prática todos os conhecimentos adquiridos ao longo destes sete meses.

O dia começou frio, como a noite não dormida, como é habitual na viagem de fim-de-semana. Lá estavam as Berliet’s, – as viaturas, de origem francesa e montadas no Tramagal, mais usadas no transporte de tropas – alinhadas ao longo do arruamento que aponta para a porta de armas, à nossa espera para nos embrulhar no seu aço frio.

A ração de combate, para quatro dias, estava bem aconchegada na mochila. Tudo era enlatado: feijão, sardinhas, bolachas da manutenção militar, ladrilhos de marmelada, chocolate em bisnagas como se fossem pastas de dentes, água enlatada no cantil. Até eu me sentia também enlatado dentro daquele camuflado, modelo PQ qualquer coisa, com uma dúzia de bolsos de coisa nenhuma. Tudo ia na minha casa ambulante – a mochila – e ainda a manta e a capa para dormir, bem enrolada em forma de “U” invertido. A isso juntava a G3 carregada com munições de madeira.

Surgiu o Capitão Gomes, já completamente ataviado com ar de guerrilheiro. Abandonou o ar de bonacheirão, adoptando agora aquela expressão dura, com o olhar penetrante e atento, capaz de penetrar no íntimo de cada soldado, mercê da sua larguíssima experiência adquirida na guerra.

E um a um lá gritavam os comandantes de pelotão até chegar ao meu grupo:“ - Dá licença meu capitão, 7º pelotão pronto.” - Gritou com voz firme o Sargento.De forma ordenada, fomos subindo para aquelas máquinas de aço frio e pouco

cómodas, onde se acomodaram trinta futuros combatentes.Ainda o dia não tinha despontado e já se notavam, no horizonte, nuvens escuras

de chuva que aliadas à penumbra tornavam o ambiente ainda mais gélido. Saímos à porta de armas do Regimento, com a sentinela bem perfilada. O comboio militar virou à direita ficando, à esquerda, a Base Aérea nº 3, onde descansavam os nossos amigos Noratlas, e o ainda velhinho Ju-52, velhos conhecidos, dos saltos no Arripiado.

Havia sete Berliet’s para outros tantos pelotões. O comandante do curso era transportado num Unimog, viatura que se revelava um veículo militar muito instável e de alta perigosidade, pela facilidade com que se despistava e capotava. Originava, nas guerras de África, um número elevadíssimo de acidentes, provocando mortos e feridos graves.

A coluna militar vista de trás, dava-me uma visão fantasmagórica que eu me habituei a ver no transporte de tropas, em filmes de guerra. Rapidamente a minha mente voava para tudo o que me tinha trazido até este momento. Eu só queria ser pára-quedista e saltar de avião. Nunca me passou pela cabeça as aventuras em que me vim meter. Por força das circunstâncias e pelos laços de amizade que se foram

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alicerçando, com todos os camaradas e com alguns instrutores, que apesar de tudo nos tratavam como pessoas e nos ajudavam a formar homens, para além de guerrilheiros, dei comigo a gostar desta família. Passei a ponte de Constança sobre o rio Zêzere. Este depois de serpentear ao longo de mais de 200 km conflui uns metros abaixo com o rio Tejo. Já na outra margem e com o dia a alvorecer, a minha cabeça meio abandonada, entre as orelhas, começou a fervilhar e os meus olhos a deixarem de ver para o lado de fora das coisas.

Fui reparando nos semblantes dos meus companheiros de armas e tentando adivinhar o que lhes ia na alma. Sentíamo-nos como uns cadastrados ligados à grilheta um dos outros. Ninguém falava e não era só o frio daquele Dezembro gélido de 1970, mas também o frio da realidade que nos tolhia.

De entre todos os que se procuravam livrar do frio cortante, que entrava por nós dentro, sobressaía o bom gigante do Patacão. Um alentejano no seu estado puro, lento e calmo em tudo o que fazia, até no pensar era lento. Nem as pernas enormes assentes num 46, de botas, o faziam andar mais depressa. Tinha a tez queimada pelo sol das planícies alentejanas. De perto, só se lhe vislumbrava um nico de cara e a luz dos olhos.

Recordei as aulas teóricas dadas ao ar livre, onde o bom gigante era o prato da festa:

“- Patacão, isto chama-se o precursor e tem como função…” – e agora virado para todo o grupo, o Instrutor lá foi explicando vagarosamente, em que consistia o corpo de uma granada ofensiva.

De repente vira-se de novo e pergunta:“- Patacão, como se chama isto?” - Mostrando o precursor.“- Na sei, meu sargento” – Responde o Patacão.Perante a risada geral, o sargento quase engolia o precursor de raiva. Eram

umas aulas divertidas.O Cunha, quase com metade da altura do Patacão, mas com uma energia

incrível, estava sentado a meu lado e perguntou-me:“- De que te ris pá? Nem com este frio deixas de magicar?” “- Estava a pensar no Patacão e no sargento Vermelhinho.”“- Não me fales nesse cabrão de Sargento, ainda sinto os ouvidos a fritar.”“- Esse gajo, numa bela segunda-feira e depois de uma aula de minas e

armadilhas, deu 15 minutos de intervalo.” – Como se eu não soubesse da história, o Cunha lá foi vomitando a sua revolta:

“- Passado o intervalo, esse cabrão deu pela minha falta. Estava estourado e adormeci sentado e encostado a uma árvore. O filho da puta veio procurar-me, sozinho, deu comigo e em vez de me acordar, atirou uma granada perto para me pregar um susto…”

Com a cara transfigurada pela revolta rematou:“ – Se um dia o apanho na Guiné, limpo o sebo a esse cabrão”.Parecia que este exercício fora programado, propositadamente, para esta altura

do ano, para que as condições mais adversas testassem as nossas capacidades e ultimassem a nossa preparação em situações limite.

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No outro topo da Berliet, enxergo o Fiúza, com aquela cara moldada pelos anos do mar e habituado às agruras próprias do ambiente. Lembro-me sempre de ele falar, no seu jeito exaltado, dos homens do mar:

“- A bordo da traineira, contava um velho pescador que quando ouviu o diabo descrever as agruras do inferno lhe tinha respondido: “a gente habitua-se a tudo”.

Talvez seja verdade. Mas ninguém está perfeitamente adaptado, a qualquer coisa que seja, sem por lá ter passado. A vida do mar tem muitas semelhanças à que encontrei nas forças pára-quedistas.

Para uns será mais fácil do que para outros, mas todos sentimos inicialmente os problemas de viver em espaço apertado, termos de acondicionar num cacifo todos os nossos pertences e a necessidade de partilhar quase tudo o que era privado. Não há nada que se faça que não acabe por interferir com a vida do camarada do lado, exigindo-se de todos um sentido de grupo, de colaboração, de tolerância e solidariedade que dificilmente terá paralelo na vida civil.

Passaram duas semanas após a segunda baixa mortal neste meio ano de preparação. Cada vez tudo se tornava mais exigente, mais duro para testar os limites físicos e mentais, quase sobre-humanos, de cada homem de forma a torná-lo um caçador por excelência.

Descíamos as escarpas íngremes da serra, em Vila de Rei, carregando cada um de nós, todo o equipamento individual, com o auxílio duma corda de sisal. Exercícios necessários, mas extraordinariamente exigentes, onde todos acabavam arrasados e sedentos. Ali tão perto estavam as águas perigosas do rio Zêzere a ameaçar-nos se déssemos alguma queda, mas agora serviam para nos refrescar.

Nunca se soube se o soldado, se atirou ao rio para se refrescar ou caiu já inanimado pelo esforço a que foi submetido. Alguns minutos depois deu-se a falta dele e aí o Fiúza, nosso “homem do mar”, ainda a recuperar do esforço, não hesitou e mergulhou às profundezas tentando resgatar uma e outra vez, num esforço, que se veio a revelar infrutífero, pois a corrente arrastou o corpo rapidamente nas águas de Inverno pelo rio abaixo.

Os semblantes destes três camaradas eram comuns a todos quantos iam aconchegados na viatura. Era o frio da realidade tomando conta de todos, mas tinha a consciência que a preparação e treino de um Caçador Pára-quedista só poderá fazer-se utilizando como meio o próprio risco.

Depois de quase uma hora de viagem empoleirado, lá chegámos ao objectivo de uma povoação chamada Vila de Rei.

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Que o diabo leve a guerra

As tropas estavam estacionadas no sopé da montanha. Os sete pelotões foram distribuídos, pela área de intervenção, nos povoados que formavam uma península delimitada pelas ribeiras Isna e Codes e pelo rio Zêzere. Apresentava-se imponente aquele mar de água, novidade para muitos de nós, mas que não era mais do que a Albufeira do Castelo de Bode.

Fomos alinhados na orla da ribeira de Isna onde o comandante de pelotão, em pouco mais de cinco minutos, nos deu em forma de prelecção, mas muito concisa e telegráfica, os objectivos da operação.

“- Caros soldados e futuros Caçadores Pára-quedistas” – Dizia com a voz firme o nosso sargento.

“- Imaginem-se algures no Ultramar, não direi Guiné, pois a Guiné não é isto, mas talvez no norte de Angola”.Quando falou Guiné, olhámos de soslaio uns para os outros.

“ – Este pelotão é um pelotão de assalto a redutos inimigos, e vamos bater a zona que nos foi determinada, ao longo desta montanha. Iremos encontrar ao longo desta semana: povoações, tropa inimiga, picadas armadilhadas, emboscadas, mas também tropa amigam.”- Enquanto ia falando, com uma mão atrás das costas e com a G3 na outra, deslocava-se passando a menos de meio metro de cada um de nós, fitando-nos.

E continuando, foi lembrando alguns ensinamentos e comportamentos em situação de guerrilha, relembrando, várias vezes, a necessidade de progredir em silêncio e no material que carregávamos “pendurado” no corpo, para que não fosse a chocalhar.

“- O factor surpresa é fundamental, não podemos ser emboscados que nem uns “arre-machos”- e terminou avisando:

“- Poupem a água! daqui a três dias seremos reabastecidos, mas até lá, não sei se haverá mais água”.

De repente ouve-se o rebentamento de um morteiro indicando que tudo estava a postos e a operação “Limpeza” acabava de ter início.

Claro que era tudo a fingir, mas nas nossas mentes, estávamos na guerra e íamos de encontro ao risco.

Através de um percurso sinuoso, ao longo da ribeira, fomos encontrando velhas azenhas, mas inimigo, nem cheiro. Alguns aldeões aqui e ali, como habituados a este tipo de operações militares, sorriam como se sentissem reconfortados pela tropa amiga que os punha a salvo de algum ataque “terrorista”.

Surgiu uma aldeã, com a pele marcada pelo tempo, com a cara encovada pela fome e pelo trabalho duro e penoso que a serra lhe reservava.

“- Coitados dos nossos soldados, é p’ra isto que uma mãe cria um filho?” – Lamentava-se a velhota

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“ - O meu filho Zé morreu em Angola, foi dos primeiros a ir para o Ultramar” – passou o braço pelo cara como a limpar a malfadada lembrança.

“ – Quem devia ir para Angola eram “eles”. O Salazar já morreu, essa alma maldita, mas a guerra não acaba” – Enquanto falava, virava a cara para o chão, com medo que algum oficial a ouvisse.

Entreolhámo-nos meio envergonhados pelo “desplante” e a coragem que os anos e a sabedoria lhe abonavam.

“ - Que o diabo leve a guerra, meus filhos “ - Disse em jeito de despedida.Fomos progredindo, sempre a corta mato, evitando os trilhos e caminhos,

sempre de olhar atento a cada passo calcorreado e evitando os barulhos que podiam alertar a nossa presença, em terreno hostil. Ainda as palavras da anciã nos martelavam no ouvido, quando passou mesmo ali, pertinho, um coelho bravo, em autêntica correria alucinada, como sentindo que estavam a invadir o seu território, ou algum predador o ameaçava.

“- Um coelho!” – Exclamou em surdina o Covilhã, habituado a conviver com a serra e com as suas ovelhas, lá para o lado da Serra da Estrela.

Se não sentisse o olhar frio, recriminatório e penetrante do Cabo Veríssimo, por quem tínhamos todos imenso respeito pela forma como nos tratava e acompanhava desde o primeiro dia de instrução militar, o nosso pastor soldado tinha-se atirado ao pobre coelho que fugia espavorido.

De vez em quando, éramos invadidos pela perfumada carqueja e um cheiro oculto e penetrante a rosmaninho. Neste local, esquecido pelo tempo, existem, embrenhados na serra, numerosos vestígios da vida comunitária rural. Antigas pontes, velhas azenhas e levadas, açudes e fontes de mergulho fazem parte deste património riquíssimo que coabitava com os coelhos bravos, raposas, javalis e saca-rabos. Perdizes, tordos, gaios, milhafres e muitas outras aves completam o quadro de vida animal desta zona montanhosa de Vila de Rei, onde estávamos em treino militar. Esta paisagem fresca, quase nos distraía da missão e dei comigo a pensar:

“- Vê-se logo que é tudo a fingir, na Guiné não há disto. A vida lá deve ser terrível, segundo o que dizem os que de lá vêm.

Depois de vários obstáculos naturais serem transpostos, quase sempre com a ajuda de cordas, lá fomos batendo toda aquela zona. De repente um rebentamento e… tudo desapareceu pelo chão dentro, num instante.

“- Foi o rebentamento de uma mina anti-pessoal.” - Disse alguém, como se não soubéssemos que as minas não eram para nós, mas para o treino ser o mais próximo da realidade.

É sempre aterrador o rebentamento de uma mina, muito mais tratando-se de uma anti-pessoal, (armas destinadas a mutilar ou ferir, por vezes matar, as suas vítimas). Para os militares, a finalidade da mina é ferir, mais do que matar. Matando, apenas retira uma pessoa do campo de batalha, ao passo que, se ferir, vários militares estarão envolvidas na evacuação e tratamento das vítimas. Serve também para desmoralizar os soldados que vêem os seus camaradas a sofrer e a serem amputados. Muitos deles nunca mais serão os mesmos homens.

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Após alguns momentos de silêncio, lá seguimos em frente, com cuidados redobrados. Apesar de percebermos que o rebentamento não fora ali perto, caminhávamos atentos ao que pudesse surgir.

Os dias foram passando. Fizeram-se alguns aprisionamentos de militares “inimigos”. Estes quando se sentiam acossados escondiam-se em grutas ou casas abandonadas. A tropa pára-quedista batia toda a zona e possíveis locais de esconderijo e rapidamente os desalojava e prendia.

Ao fim de seis dias, já exaustos e sem mantimentos, chegámos ao topo mais alto da montanha. Aqui, era o ponto de reunião de toda a tropa terminando o treino no terreno. Descomprimimos toda a carga stressante. O frio era intenso, mas ao calor das fogueiras que nos permitiram acender, relatámos as peripécias que surgiram ao longo desta jornada.Virei-me para o Risotas, enquanto despia o camuflado e virava as costas para a fogueira, e disse:

“ – Martins, vê o que tenho aqui nas costas! Deve ser algum corte já a cicatrizar. Sinto comichão, mas também me dói um pouco”.

“- Fuíza, chama aí o enfermeiro, para vir tirar este bichinho” - Pediu o Risotas.“- Risotas, não brinques com coisas sérias, vê lá o que tenho na merda das

costas que me está a picar.” – Dizia eu já com pouca vontade de brincar.Chegou o enfermeiro que depois de observar o ferimento, virou-se para o Fiúza

dizendo:“- Ó nosso pára, vá buscar a minha mala que está ali junto á minha mochila”.“- Mau, mau” - Pensei logo com os meus botões. “O que é que estes tipos estão

a arranjar?”.Ao fim de alguns segundos, o enfermeiro mostrou-me, na ponta da pinça, algo

ensanguentado.“- Sabe o que é isto? É uma carraça, que já estava mais dentro do que fora, das

suas costas. Vamos agora desinfectar isso e fazer um penso”.“- Foda-se… por isso me doía!” – exclamei eu com cara de totó. Sempre que lá

ia com as unhas, parecia-me uma casquinha de uma ferida e, afinal, era essa puta parasita”.

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Tudo o resto ficava para trás

Foram quase nove meses de instrução militar exigindo-nos total disponibilidade física e psíquica, onde o sacrifício por vezes se tornava sobre-humano. Que podia fazer? Só tinha duas saídas possíveis: desistir ou esforçar-me para tentar ultrapassar as minhas dificuldades.

Desistir, significava virar as costas às dificuldades pessoais e humanas que se me deparavam e impediam de progredir e isso, não queria, não só por vergonha de aparecer ma minha terrinha como um derrotado, mas também por solidariedade para com os meus companheiros, com quem aprendi o verdadeiro significado da palavra solidariedade.

Esforçar-me requeria passar por cima de mim mesmo, das minhas dificuldades internas, custasse o que custasse. A partir do momento em que eu senti ser importante superar o desafio, exigi de mim próprio o cumprimento da "missão". Impunha-se activar todas as minhas forças, mesmo aquelas vindas de não sei onde. Foi assim que descobri possuir capacidades até então nunca reveladas.

Senti, muitas vezes, necessidade de ajuda. Faltavam-me recursos e sozinho não conseguia trilhar o meu próprio caminho. Mas também nesses momentos me consciencializei da necessidade de ultrapassar todos os obstáculos. Estava determinado a conquistar a recompensa de me poder sentir um real vencedor.

Ao longo destes nove meses de parto, em muitos momentos, senti que precisava de me "ouvir" e escutar-me. Não é uma tarefa fácil quando estamos em plena guerra interna, desesperados com as questões e exigências quase sobre-humanas.

Enfim… como dizia o Cunha, quando se viu ao peito com o crachá de caçador pára-quedista:

“- Puta que pariu pá… somos uma máquina.”“- Não há caralho que nos foda.” “- Tirando o Sargento Vermelhinho, não é Braga?”. Dizia o Risotas, com ar de

gozo naquele seu jeito característico, referindo-se ao Cunha.“- Não me falem nesse cabrão. Ainda bem que foi bater com os cornos para a

Guiné.” Todos sabíamos que aquilo era dito só da boca para fora, pois o Cunha era um camarada íntegro e solidário. Era o seu sangue a ferver naquele corpo pequeno mas raçudo, com tez aciganada e com uma força física incrível que lhe valeu o 2º lugar nas provas físicas logo atrás do Covilhã que era só por si uma força da natureza.

No rosto de todos vislumbrava-se a alegria. O brevete de Pára-quedista e o crachá de Caçador, preso no lado direito do peito inchado pelo orgulho de termos conseguido superar todas as adversidades, fora uma dura conquista. Havia uma vaidade incontida por se sentirem, finalmente, pára-quedistas de corpo inteiro.

Por fim uns dias de férias. Sentimo-las como se fossem para uma despedida dos amigos, das namoradas, dos pais, e de toda uma vida que ficava para trás. Só não se

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deixavam os filhos para trás porque não aceitavam nas Tropas Pára-quedistas mancebos casados. Era como tirar um passaporte para a guerra, talvez para a morte, com pena suspensa, mas nunca para a vida. A vida, essa ficava nas vilas e aldeias onde cada um deixava um pouco de si.

Éramos combatentes preparados física e psicologicamente para enfrentar a guerra, de olhos nos olhos, sabendo que pouco nos restaria no infinito e de nada valia temer o inferno. Isso diferenciava-nos dos demais militares. Os casados não eram aceites, exceptuando os militares de carreira, já bastava deixarmos os pais num sofrimento ao partir para a guerra.

A Nação mandava os seus melhores filhos para África, como antes os tinha mandado para a Índia, com resultados nefastos quer para o país, quer para quem por lá ficou ou amargurou pelo oriente. Salazar, o ditador, comunicou à nação que só esperava, como resultado do combate, na Índia, "militares vitoriosos ou mortos".

Em 1961, quando rebentou a guerra de libertação de Angola, ficou célebre a frase proferida, do alto do seu cadeirão que o haveria de levar á morte, ordenando de forma peremptória, com o dedo espetado e de cabeça perdida “Para Angola e em força”. Era assim o tratamento dado aos melhores filhos que partiam para a guerra, como se fossem soldadinhos de chumbo e alinhadinhos como convinha ao velho regime. Regressavam mortos ou vivos, estropiados ou traumatizados, mutilados ou tolhidos. O resto ficou nas picadas. A Pátria não os reconhecia como filhos que deram o melhor da sua juventude, que foram arrancados dos seus empregos e das universidades comprometendo-lhes o futuro.

Nos Pára-quedistas a mobilização para a guerra começa muito antes do embarque, precisamente logo após o fim da instrução da especialidade militar, o curso de combate.

A partir dos últimos dias de Dezembro de 1970, já me considerava um mobilizado e vivi essa angústia. Estávamos na época natalícia e o pai natal reservava-nos uma prenda especial. Nos primeiros dias de Janeiro, de 1971, fomos informados solenemente, e em parada, que toda a companhia estava mobilizada para a Guiné. Essa notícia criou algum desconforto entre todos, não por irmos para a guerra, pois sabíamos isso desde o primeiro dia, mas por irmos bater com os costados na Guiné. A má nova foi-nos dada pelo Coronel Robalo, comandante do Regimento de Caçadores Pára-quedistas, ladeado pelo capitão Valente dos Santos, que nos tinha ministrado o curso de pára-quedismo. Este último era um militar extraordinariamente exigente, mas com um pouco de loucura à mistura. Era de estatura pequena mas entroncado. Falava-se que tinha menos um pulmão, perdido algures em África, mas não se notava nada, muito pelo contrário, pois a sua vontade, energia e raça era a de um autêntico combatente pára-quedista fazendo dele um herói vivo e respeitado por todos. Do outro lado, ladeava o comandante, o Capitão Gomes, que nos tinha acabado de aplicar o Curso de Combate.

Com a companhia perfilada, começaram a ser distribuídos os “passaportes” de dez dias – era esse o termo que designava as autorizações de saída de fim-de-semana ou férias –.

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Dez dias para ir a casa fazer a despedida dos familiares, dos amigos, das coisas que os acompanharam em toda a sua juventude e agora, abruptamente, eram interrompidas. Poder fazer umas asneiras por conta, arranjar umas madrinhas de guerra para se corresponderem. Ter acesso ao último prazer carnal, tal era a fome de se agarrar à vida, tentando não engravidar as namoradas. Ao quartel voltar-se-ia depois para daí iniciar a verdadeira viagem.

Ali mesmo detrás de mim sussurrava o Patacão:“- Compadre! Chegando à minha terrinha, com a fome que levo desta vida de

cabrão, vou arrebentar as beiças à minha Ceição.”“- Não sejas chaparro.” – Proferiu o Risotas. “- Quem sabe se ela não virá a ser a tua esposa ainda.”“- E depois? Quem me garante que regresso da Guiné?” – Defende-se o bom

gigante.Penso eu com os meus botões:“- Este gajo é mesmo parvo, mas não deixa de ter a sua razão.”Distribuídos os passaportes, reparo que não chegam para todos. Como o meu

pelotão era o 7º e último, eu não recebi o tal papelucho.“ – Foda-se, queres ver que acabaram os passaportes.”- Diz o Cunha com cara

de poucos amigos.Depois de uns minutos os sargentos, que distribuíram os passaportes, voltaram

a colocar-se na cabeça dos respectivos pelotões. Ouve-se novamente uma voz:“- Todos os soldados pára-quedistas que acabaram de receber os seus

passaportes aproveitem esses dias para descansarem bastante, e despedirem-se das famílias e amigos. Para todos esses e só esses: DESTRO….. ÇAR.”

“ – Os restantes”. - Continuou o Coronel Durão.“ – Deixo-vos com o nosso capitão Gomes, que vos dará uma explicação em

detalhe.”

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Não sei para onde vou… mas vou.

Como pedindo desculpas por não termos sido mobilizados para a guerra, quando na verdade, desde o primeiro dia, já sentíamos pendente nas nossas cabeças, o machado do destino que nos esperava, o oficial pára-quedista, em tom pesaroso, disse que não podíamos ser todos mobilizados para a Guiné, porque o Regimento precisava de alguns de nós por algum tempo.

“- Este gajo, não deve bater bem da bola! Fala como se estivéssemos todos com pena de não embarcar de imediato para a guerra e logo para a Guiné.” – Pensei.

Não sei qual a “guerra” que nos está talhada, mas o Vietname (pelo que já se sabia por ex-combatentes regressados) … não obrigado.

Ser mobilizado para o “Vietname português” era como aceitar uma punição. Era considerada uma condenação a dois anos de apodrecimento em condições piores que as de um cárcere. O risco de o regresso se fazer na posição horizontal, entre tábuas ou deixar por lá as botas era muito grande.

Não existe na Guiné formações rochosas. A cota média a nível do mar situa-se abaixo dos 40 metros e só nas “Colinas do Boé” vai até aos 300 metros de altura. No litoral, o mar invade os rios alargando-os. A sua localização entre o Equador e o Trópico de Câncer, traz consigo um calor tórrido que varrido por ventos alísios e saharianos quentes, que secam os solos e a vegetação, formam poeiras altamente perniciosas para as vias respiratórias. Se juntarmos a isto ainda as monções e as suas trovoadas, os tornados rápidos acompanhados de chuvas torrenciais e uma guerra extraordinariamente difícil, o imaginar embarcar para aquele país e guerra era por si só um pesadelo.

Na guerra do ultramar, a Guiné era a que apresentava maior percentagem de mortos em combate representando essa percentagem o dobro da de Moçambique e o triplo da de Angola. Por todas estas razões, esta fama divulgou-se por toda a população em idade de cumprir o serviço militar, tornando-se um destino quase fatídico para qualquer potencial combatente.

Então, foi-nos explicado que, habitualmente, o último pelotão fornecia pára-quedistas para a segurança do quartel, para a gestão do refeitório, do bar e outros serviços de apoio e ainda alguns Páras eram destacados para prestar serviço na Polícia Aérea.

Eu sabia, pelo jornal da caserna, que todo o militar, fosse de que arma fosse, tinha aversão à polícia militar. Como não tínhamos polícia própria, era um fartote de mimos sempre que havia reencontros entre polícias e policiados. À porta de qualquer bar ou estação de caminho-de-ferro, nos momentos de embarque das tropas para o Ultramar ou fosse qual fosse a situação havia sempre um bom pretexto para chatear.

“- Só me faltava agora empacotarem-me nas guerras das polícias.” – Pensei eu.Este grupo, de cerca de vinte Pára-quedistas, no qual me incluía, só teve direito

a gozar um fim-de-semana após a conclusão do curso de combate que não era mais do que o último estádio de preparação para a guerra.

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Como se dos Óscares de Hollywood se tratasse, com as luzes da ribalta, cerca de duas centenas de nomeados foram projectados para a guerra. Foram todos, de forma prematura, arrancados dos ventres das suas cidades vilas ou aldeias, das universidades e/ou do trabalho e lançados para a guerra do ultramar.

Minha mãe andava contente por eu me ter safo da guerra, a namorada já pensava em casório e os amigos davam-me palmadas de júbilo nas costas ainda massacradas por longos meses de instrução. Eu, de uma forma estúpida, já quase embarcava nessa onda quando algo vindo do âmago me sussurrou:

“- Não vás por aí Zé… tu estás é condenado, como os demais, a regar com o teu suor, as tuas lágrimas e o teu sangue o capim das savanas.”

O meu vizinho Magalhães, da Rua das Correias, que tinha sido dos primeiros Pára-quedistas Vianenses. Combateu na Índia, por altura da invasão das tropas de Nerú, bem me dizia:

“- Zé, um Pára foi feito para combater, nunca te esqueças disto. Não sei se regressamos… mas vamos.”

Com aquelas palavras do “velho” Boina Verde, que a sociedade vianense considerava um pé rapado e renegava por ser uma pessoa humilde proveniente de famílias pobres, mas honradas, desta cidade, aprendi bastante. Descobri, muito novo, que a pátria não reconhecia os seus melhores filhos, aqueles que davam a sua juventude, o seu sangue e a sua própria vida para defender… nunca soube muito bem o quê!

A miudagem de pé descalço, admirava o senhor Magalhães, o velho pára-quedista. Ele era um símbolo para nós, pois tratava-se de um verdadeiro combatente. Palavras sábias as deste homem marcado pela vida e pelo ostracismo da pátria. Sempre que alguém me perguntava, se me tinha safo da guerra eu só respondia:

“- Não sei para onde vou… mas vou.”A televisão mostrava um povo a preto e branco que ostentavam lenços brancos,

de pureza imaculada, na Cova da Iria. O aceno de despedida à Virgem era idêntico ao da despedida do filho num cais, na hora do embarque.

Deixavam para trás uma recém-casada e uma promessa de fidelidade extrema, para o que desse e viesse. O pranto e a alma destroçada da mãe que, vendo o filho partir, via-se, a ela própria, a esvair-se em sangue como aquele que tantas vezes encharcou a picada.“Adeus, até ao meu regresso” e muitos regressaram vivos e inteiros. Outros regressaram vivos, mas não inteiros e houve ainda os que não regressaram. E há ainda aqueles que, tendo regressado, deixaram lá ficar a alma.

Quando regressámos daqueles parcos dias, a que pomposamente chamaram férias, mas que também podiam ser um prelúdio da morte anunciada para as terras quentes de África, faltaram uns quantos. Estes, tinham decidido dar o salto para a França em busca da vida e não da morte. Foi-lhes colado o rótulo de desertores, pelo RDM, pelo regime e seus aficionados, mas o povo anónimo, esse que labutava nos campos e nas fábricas, nunca os condenou por fugirem à guerra.

Todos os que se apresentaram, formaram na parada do quartel, bem alinhados e disciplinados. Sentiam-se numa antecâmara onde nem todos conseguiam disfarçar

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uma crescente angústia, como os bois quando se apercebem que vão para o matadouro. Pela memória passavam as imagens tristes que o povo já se habituara a ver na televisão: o navio afastando-se do cais, o choro das mães, as lágrimas enroladas nos lenços brancos da despedida e da incerteza da volta.

O tempo corria depressa neste restinho de liberdade sufocada, da primavera marcelista. Os que não embarcaram para a Guiné foram encaminhados, para outras tarefas.

A semana entre o Natal e o Ano Novo, de 1970, era uma transição para outras paragens. A companhia estava mobilizada para embarcar para a Guiné. A vintena que ficava, iria render os do curso anterior por forma a que estes se juntassem no embarque já aprazado para as primeiras semanas do novo ano.

O 1º sargento Capucho, que nos tinha acabado de ministrar o curso de combate, era um homem aparentemente frágil. Tinha o corpo pequeno e adelgaçado e a tez bem marcada pelas campanhas de África e o sol algarvio. Mancava, ligeiramente, devido a um ferimento em combate, mas isso não o impedia de se colocar a nosso lado em todos os exercícios. Com o seu exemplo, no curso de combate, fez de nós melhores homens, mais fortes, mais determinados e melhor preparados para a vida e para a morte. Foi ele que nos informou, em primeira-mão, o que nos esperava nos próximos tempos até sair a próxima fornada para nos substituir. Depois, todos ou quase todos iriam acompanhar a próxima fornada de combatentes e partir para o ultramar, lá para o verão.

“ - Como a velhice é um posto, vou chamar já os primeiros quatro homens para irem prestar serviço para a PA, em Lisboa, como sabem Polícia Aérea. Certo Patacão?” – disse o sargento Capucho.

“ – Eu na sei nada, meu Sargento.” – Respondeu o alentejano nunca sabendo de nada na sua matreirice de chaparro, olhando imediatamente, para mim, atitude que foi acompanhada por todos os demais, como se eu não soubesse que tinha o número mais baixo e portanto o mais antigo.

“ – Parece que sou bruxo” – pensei logo, pois sabia que sendo o mais antigo já me tinha safo, por uma unha negra, de ir bater com os cornos na Guiné mas de ir para as polícias não escapava.

O sargento Capucho, com aquele ar de puto reguila e com a boina atirada um pouco para trás, sacou de uma folha e continuou:

“ - Como vos conheço de ginjeira, vou chamar-vos pelos nomes e dão um passo em frente os soldados: Marques, Casimiro, Araújo e o Fitas”. Depois de uma breve pausa, para poderemos digerir melhor a informação, acrescentou:

“ - Vão ter que se apresentar no GDACI em Monsanto, a 5 de Janeiro. Os restantes ficarão cá no regimento.” - e foi continuando:

“- O Martins, como tem cara de perdigueiro algarvio, vai tirar o curso de tratador de Cães de Guerra. Estou a brincar contigo pá, também sou algarvio, sei que gostas de cães e tens uma certa feição para lidar com os cães.”

O Martins, não escondeu a sua alegria pois foi sempre esse o seu sonho.

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“- Para o refeitório ficam: O Covilhã, o Cunha, o Risotas, o Patacão de um cabrão” – disse com ar de gozo para o bom gigante, continuando a listar mais uns quantos para o refeitório.

E lá foi nomeando, um a um, para os seus novos “empregos”. Quando deu por terminada a atribuição de tarefas, mandou destroçar todos os que iam exercer novas funções, até que chegasse o dia, mais lá para o verão, de sermos todos mobilizados para África. Acompanharíamos o 1º curso de combate de 1971 que agora se iniciava e por lá encontraríamos outros meus patrícios.

“- Do mal o menos, sempre vou para a guerra com mais gente da minha terra.” - Lembrando-me logo do Ramos da Areosa, do Martins de Valença e do Lima da Correlhã.

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O princípio do fim.

A contestação oblíqua ao sistema colonial, de forma camuflada e sobre a capa de reivindicações laborais é afogada em sangue pelas punições militares e paramilitares. Três manifestações, por melhores salários, acabam em morticínios: a 3 de Agosto de 1959, em Pidjiguiti, na Guiné, cerca de cinquenta estivadores são mortos numa acção reivindicada pelo PAIGC – Partido Africano para a Independência de Guiné e Cabo Verde; em Janeiro de 1960, em Mueda, em Moçambique, as forças coloniais massacram centenas de camponeses; em Janeiro de 1961, na Baixa de Cassange, em Angola, milhares de apanhadores de algodão são chacinados. Tudo isto dá lugar à contestação frontal, a 4 de Fevereiro de 1961, em Luanda. Um grupo de nacionalistas angolanos ataca duas cadeias e o quartel da Polícia Móvel com o objectivo de libertar camaradas presos. Este acto violento de revolta e ao mesmo tempo de reivindicação de angolanidade, simboliza o princípio do fim do “3º Império”, do Império Africano de Portugal.

Precisamente uma década depois, nos primeiros dias de 1971, apresento-me, com o Fuíza, o Araújo e o Fitas, em Lisboa, mais propriamente em Monsanto, no GDACI - Grupo de Detecção, Alerta e Conduta da Intercepção. E ali me é atribuído o nº 4/71 sendo alojado numa camarata com outros militares da Policia Aérea.

Ao sermos apresentados aos colegas da caserna, tomo o primeiro contacto com um ex-combatente deficiente. Este tinha uma prótese que lhe substituía não só a bota, perdida algures em Moçambique, mas toda a perna. Restava-lhe apenas um toco onde se aparelhava o apetrecho que o ajudava a mover-se e a deslocar-se todos os dias para a cidade. Tentava dar um novo rumo á sua vida, já que a morte não o conseguiu derrotar. Era um indivíduo extremamente inteligente. Tentava por outros meios refazer a vida, sozinho, preferindo ficar na capital do que regressar à sua terrinha. Com a anuência do comando do GDACI, ali “morava” connosco como se de um militar ainda se tratasse. Tinha “direito” a alojamento e alimentação e procurava romper na vida como técnico de reparação de rádios e televisões.

Ao fim de oito meses de instrução e preparação, para uma guerra algures em África, apercebi-me, desde o primeiro dia, que este destacamento para a polícia podia ser como umas férias merecidas. Antes que a guerra tomasse conta de nós, esta era a última oportunidade de respirar a liberdade e apreciar a capital histórica de melancólicos encantos e grande beleza. Os seus bairros medievais de Alfama e Mouraria, o Bairro Alto e a Madragoa, com as suas ruas típicas, dão um toque tradicional e folclórico devido aos seus casarios.

Na primeira semana, fiquei espantado e atónito com as facilidades que dispunham outras armas, das mesmas forças armadas, e para as quais não estava minimamente preparado. Espantoso isto. O regime, a que vinha habituado, era extremamente rigoroso. Não havia lugar a cansaço nem a adormecimento na forma, quanto mais poder-me “desenfiar” do quartel e regressar 3 semanas depois, como se nada tivesse acontecido. Em tempo de guerra fui afeito e formado a nunca transgredir

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em qualquer situação, a cumprir sem regatear ou sequer questionar qualquer ordem ou dever. Um dia, tive de dar uma marrada sem capacete, numa árvore, caindo como um tordo, só porque o sargento entendeu punir-me, para exemplo de todos, a pretexto de algum abrandamento meu. De uma outra vez, já no fim do curso de combate, depois de uma marcha de 40 quilómetros, durante 4 horas, com botas calçadas e transportando o restante equipamento, chegámos completamente exaustos, esfomeados e sedentos. No refeitório, em vez de uma suculenta refeição para repor o que aquela estafa nos tinha levado, encontrámos, em cima das mesas, um papel em forma de cavalete dizendo: ”isto é a vossa refeição!”.Chegou, junto de nós, um furriel, sem qualquer postura militar, como se de um civil se tratasse. Depois das apresentações da praxe foi dizendo-nos:

“- Vocês, aqui, são quatro pára-quedistas e vão estar de serviço, um por dia, às rondas no exterior do quartel, portanto…” – colocando um pé no beliche, continuou:

“ – Dizia eu que, como só precisamos de um Pára-quedista de cada vez. Desde que, aquele que cá ficar, assegure diariamente os serviços de ronda, os restantes podem ir para casa.” – Olhámos uns para os outros atónitos, mas sem nos atrevermos a dizer qualquer palavra.

“ – Atenção que esse “desenfianço” é por vossa conta e risco. Eu, não disse nada.”

O Furriel com aquele ar de menino do papá, abandonou a caserna, como se tivesse feito um discurso importante.

“ – Ai que caralho, isto é assim?” – interrogou logo o Fiúza.Aproximaram-se os novos colegas da polícia e militares da Força Aérea, e um

deles ajudou à missa dizendo:“ – Nosso Pára, aproveitem. Já os outros que cá estavam faziam o mesmo. Esta

tropa é para se fazer nas calmas… enquanto cá estão aproveitem.”O Araújo, sujeito aparentemente bonacheirão, mas vivaço e sempre pronto a

tirar proveito das situações, atirou logo de rajada:“ – Tendes medo? Eu para a semana fico já em casa e que se foda a tropa.” –

tentando tirar vantagem do facto de ficarmos surpresos com esta benesse que não lembrava ao diabo.Eu tinha o exemplo do meu mano mais velho, que num quartel do exército em Sacavém, volta e meia, se desenfiava com a maior impunidade. Só agora, compreendia realmente como estas tropas, em África, eram presa fácil e o termo “carne para canhão” se aplicava com toda a propriedade.

Lembrei-me logo dos relatos feitos por aqueles que regressavam da guerra. Diziam eles, que mal uma companhia do exército era colocada no seu aquartelamento, era certo e sabido que nos primeiros dias os “turras” caíam-lhes em cima, flagelando-os sem piedade.

“ – Ó Afife, tem calma. Esta merda, não é à medida do freguês” – disse eu dirigindo-me ao Araújo. Era assim que eu o tratava por ser de Afife, terra do poeta Pedro Homem de Melo.

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“ - O Furriel disse o que disse, mas nós não vamos pelo diz que disse. Se a velhice é um posto… eu sou o mais velho. Portanto, tem calma, temos toda a semana para pensar e não nos vamos meter em alhadas”.

Aquela cara de menino bonacheirão, virou, como por encanto, cara de menino amuado a quem lhe foi sacado o “brinquedo”. Esquecendo-se que o brinquedo, num instante, se poderia transformar, se algo corresse mal, num mandato para a “casa da rata” - assim era denominada, entres os militares, a prisão.

É evidente que aquela proposta me ficou a martelar nos ouvidos e pensando bem, não era de desperdiçar. Já bastava desperdiçar os meus melhores anos e arrancarem-me da minha cidade pacata - Viana do Castelo. Aqui, o mar combina na perfeição com a montanha. O estuário do rio Lima, outrora o rio do esquecimento, é de uma beleza única vagueando aos pés de Santa Luzia. As duas margens são ligadas por uma ponte metálica obra de Gustav Eiffel - o criador da torre Eiffel em Paris - que em Viana do Castelo também deixou a sua marca.

Naquela primeira semana, saí para a rua com mais 4 PA’s. Utilizávamos um unimogue que mais parecia uma pandeireta, dando sinais sempre que o condutor se deliciava a fazer perícias. Dar uma cambalhota e projectar-me, não para casa desenfiado, mas para a enfermaria com o chassis feito num oito, era sempre o mais provável.

Onde houvesse cheiro a militares da força aérea, lá estávamos nós para manter e impor a ordem, como se de um embarque, de militares para África, se tratasse.

Na segunda saída, calhou-me logo acompanhar um embarque no aeroporto. Tratava-se do pessoal da minha companhia que comigo andara, sofrera e vencera em Tancos.

“Nosso Pára, não dê confiança aos militares. Lembre-se que a você compete-lhe manter a ordem e a lei” – atalhou o comandante da ronda, um furriel todo emproado.

Mas qual quê, os camaradas de tantas privações passadas, mal me viram com o braçal da Policia Aérea, arrancaram-me da minha pose policial. Vi-me envolvido no meio deles confraternizando e dando a cada um, um abraço de despedida. Só lhes faltou, para desespero dos restantes PA, lançaram-me ao ar em tremenda gritaria. Ainda bem que imperou o bom senso. Ri, bebi, chorei e até embarquei com eles, pois o meu coração e um pedaço de mim, também iam para a Guiné.

Quando os vi na placa de embarque, a decisão ficou tomada: iria para casa sim senhor, mal me pudesse escapar desenfiar-me-ia. Que me poderia acontecer de fosse apanhado? Algum castigo era superior ao destes meus amigos que agora partiam? Sabia que nem todos iriam regressar e muitos dos que voltassem viriam com problemas de vária ordem na mente e nos ossos.

Sabendo que militar é sinónimo de desenrascar, assim que chegasse ao alto de Monsanto, iria acertar isto com os meus camaradas: três de nós, iriam de férias.

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A sabotagem

Como era o mais antigo, decidi entrar logo de serviço ou de prevenção vinte e quatro horas por dia, naquela semana. Se não houvesse embarques para África o trabalho era quase nulo ou rotineiro. Os focos de problemas só surgiam ao fim-de-semana e as saídas de ronda pela capital eram normalmente tidas como efeito dissuasor.

O facto de sermos uma Policial Militar em tempo de guerra, permitia-nos, quando em serviço, ter acesso a todos os locais públicos sem qualquer tipo de impedimento ou constrangimento.

Assim, pela primeira vez e até hoje a única, fui assistir a uma sessão de striptease, no Hotel Ritz que ficava ali sobranceiro à rotunda do Marques de Pombal. Para mim era uma autêntica novidade. Apesar de não ser oriundo de uma aldeia dos confins da serra, a minha cidade, ainda hoje pacata, não era dada a essas modernices de então, sendo coisas só da capital e das grandes cidades. Não nego que algo em mim acelerou quando as luzes baixaram e se ouviu a música acompanhada da actuação de uma das mulheres, onde todos os olhares se concentraram. A mulher entrou com um cigarro aceso entre os dedos, caminhando docemente para captar a atenção dos espectadores. O seu dançar sensual, o despir atrevido, o seu corpo mantido em forma, sem sacrifício, mostravam uma mulher normal, não muito bonita, mas muito feminina. Era capaz de provocar muitas sensações ao bambolear as ancas, ao roçar-se no poste ou ao deitar-se lânguida no chão e a abrir as pernas... Imaginei que ela se aproximava da minha cara e sentia o seu cheiro, como ela o fez, durante a actuação, junto de caras desconhecidas. A avaliar pelas suas expressões cheiraria bem a vulva e saberia melhor, a avaliar pelo aspecto de alguns. A dançarina sabe o que vale, sabe o que provoca, mas não dá a quem quer.

Aqui não se podia “despir” a farda, nem sequer mostrar as emoções. Éramos quatro militares, fingindo ser assexuados, que se passeavam por detrás da plateia, simulando espreitar alguém fardado por perto. Era um olho no pau, outro no cigano.

Enquanto isso, nos Estados Unidos, meio milhão de pessoas marchava contra a Guerra do Vietname em Washington. Uma guerra injusta, em que os USA se envolveram no conflito a pretexto de um ataque norte-vietnamita aos seus navios USS Maddox e USS C.Turney Joy que patrulhavam o golfo de Tonquim, em Julho de 1964. Hoje, sabe-se que o ataque foi uma farsa do governo estado-unidense para ter um pretexto de intervir no Vietname. O Povo levantou-se contra uma guerra em que os vietnamitas tiveram de suportar baixas e bombardeamentos terríveis. Entre os militares americanos, 57 939 perderam as suas vidas.

Hoje, sabe-se também que, na guerra em África, Portugal apenas com 10 milhões de habitantes onde entre os anos 60 e 74 emigrou um milhão e meio de portugueses, fez um esforço cerca de nove vezes superior ao dos EUA, no Vietname, que possui 250 milhões de habitantes. Portugal mobilizou para a guerra do ultramar mais de 800 mil jovens, teve 8 mil mortos, 112 205 feridos e doentes, 4 mil deficientes

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físicos e estima-se que haja cerca de 100 mil doentes de stress de guerra. À defesa era destinado 40 % do Orçamento de Estado.

O mundo acordava. Os povos dos países fazedores de guerras e que tinham liberdade… protestavam contra todos os Vietnam’s, outros levantavam-se em armas e tudo faziam para alertar consciências, minando e sabotando os regimes.

Perante este cenário de guerra, eu, como tantos outros, sabia o que nos esperava. O grupo dos quatro tentou passar o tempinho que restava junto da família, das namoradas e dos amigos.

No fim de tarde, de 8 de Março de 1971, no átrio junto à soleira da casa da minha namorada, com a sogra debaixo de olho, estava eu namorando e gozando um pouco tentando afogar os desejos e os prazeres de dois jovens. Nestas alturas, as namoradas eram mais permissivas sabendo que ao contrário do slogan da época balnear “há mar e mar, há ir e voltar” o lema era: “há mar e ultramar, há ir e será que há voltar?”. Mesmo com a sogra do outro lado da porta entreaberta velando ou fazendo que o fazia, já o fogo nos consumia, levando-nos onde o amor, a paixão e o desejo podia levar. Não havia muitas formas de apagar o incêndio senão fundindo os corpos. Estávamos nós já na fase de rescaldo e sem ainda ter avaliado os estragos quando a sogra Maria, que não era Maria, me chamou quase gritando:

“- Zé, venha cá depressa” – meio assustado e meio atónito pela forma como ela me chamou, pensei logo que íamos ter chatice.

A primeira frase que me veio à cabeça foi: “calma se’Maria, eu quando vier da guerra caso com a sua filha”.

“- Olhe e veja esta notícia na televisão, parece que há problemas na Força Aérea” – respirei de alívio, afinal, não era por causa da filha, nem pelos nossos devaneios.

Apesar deste alívio momentâneo, fiquei bloqueado não conseguindo entender muito bem o que se passava nem ouvir o que ela dizia e perguntei-lhe:

“ – Diga lá o que se passa, não consegui perceber o que aconteceu” – ela olhou-me com cara de mulher avisada, mostrando-me uma cara que não sendo de tolerância, também não era de recriminação e disse:

“- Espere que vai dar outra vez a notícia, mas parece-me que é coisa grave” – enquanto olhava para a filha, mirando-a e recriminando-a com um olhar penetrante, abanando ligeiramente a cabeça, deixando-a completamente gelada.

Comecei a ficar tenso, pois as notícias sobre a Força Aérea eram graves e eu era um militar no activo, mas “desenfiado” em casa. Foram segundos intermináveis que me deixaram bastante nervoso, até começar o telejornal da RTP do estado: SABOTAGEM NA BASE AÉREA Nº 3 DE TANCOS era a notícia de abertura.

“ – Ai minha Nossa Senhora D’Aparecida!” – dizia a velhota.Dei um beijo à minha namorada, pela primeira vez em frente da futura sogra, e disse-lhes:

“- Não há-de ser nada, mas eu vou ter que ir já embora. O meu quartel, como era de esperar, também entrou de prevenção e eu estou aqui desenfiado.”

A notícia colheu meio mundo de surpresa. A BA3 era o maior complexo militar da Força Aérea sendo uma base de aviação de ligação, transporte e treino de tropas

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pára-quedistas, para além de ser uma unidade também de treino dos pilotos para a guerra colonial.

Fora ali desencadeada pela ARA (Acção Revolucionária Armada) uma acção com vinte cargas explosivas e incendiárias em vinte aviões e helicópteros. Para afrontar o regime e logo num santuário militar por excelência, infringindo pesadas baixas materiais em aviões de guerra bastaram três homens: um cabo miliciano, militar no activo precisamente na base de Tancos e quase a completar o curso de piloto de helicópteros dado por instrutores franceses; um ex-furriel enfermeiro militar com a especialidade de neuro-psiquiatria, com quase três anos de serviço em Moçambique donde tinha regressado em Março de 1969 e onde assistiu, impotente, às mortes e às vidas estropiadas por ferimentos sem remédio de muitos combatentes involuntários; e o mais velho, 28 anos de idade, que também esteve na acção do Cunene, tendo sido soldado de uma companhia de caçadores conheceu em Angola, Ambriz e Lundas.Às dez menos dez da noite, já estava na estação de comboios a comprar um bilhete, mas sem utilizar o “privilégio” de ser militar. Pagava mais caro, mas desta vez ia vestido à civil por ser mais seguro. Embarquei, não se via um militar fardado no comboio, por ser um dia de semana. Passei a noite de terça para quarta-feira, de 9 de Março de 1971, – precisamente no dia de aniversário de minha mãe deixando-a mais uma vez aflita – dentro de um comboio, mas desta vez não ia encafuado como em tantas outras viagens de fim-de-semana. Havia lugares sentados e desta vez, sentia-me mais cidadão, com mais direitos e olhado de forma diferente pelas pessoas.

Ao fim de quatrocentos quilómetros e de nove horas intermináveis, desembarco na estação de Santa Apolónia em Lisboa, por volta das sete da manhã. O dia estava bonito, o sol a despontar e uma pequena brisa trazia a maresia salpicada com o bafo do Tejo ali mesmo ao lado.

Com as pessoas ainda ensonadas e taciturnas, Lisboa já começa a formigar. Os comboios descarregavam os passageiros nas estações. Os barcos, que antes tinha ajudado a construir nos Estaleiros Navais de Viana do Castelo, vindos da outra margem desaguavam no cais. As camionetas despejavam os seus utentes no Campo das Cebolas. O Metro e os Autocarros transportavam esse formigueiro de pessoas para os seus empregos.

Uma vez chegado, meto-me num táxi e digo ao taxista:“ – Para Monsanto por favor, para a Policia Aérea.”Ainda à civil rumo á Serra de Monsanto de forma a tentar entrar sem dar nas

vistas no quartel. Pelo caminho vou conversando com o chauffeur, dando-lhe conta da minha situação e tentando ganhá-lo. Fui mudando de roupa pelo caminho e na subida para Monsanto, numa zona mais arborizada e deserta, comecei a mudar de calças. O homem do táxi, com cara de gozo, diz-me:

“ – Ó pára-quedista, mude de calças rápido pois se alguém o avistar de calças na mão, ainda passamos por paneleiros” – mesmo troçando da situação, o homem tinha razão, dois homens em Monsanto e um a mudar de roupa…

Completei a muda, fiquei de farda azul vestida e de boina verde. Eram quase oito horas da manhã e ainda de dentro do táxi vi quem estava de sentinela à porta de armas, e para mal dos meus pecados, não me era familiar o sentinela.

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Como estava na hora de mudança das sentinelas, foi o bom do taxista, que se tornou meu cúmplice e me disse:

“ – Aguarde uns minutos, pode ser que tenhamos sorte com o próximo.”E naqueles dois ou três minutos de espera ainda dentro do táxi, confessou-me

que também tinha um filho em Angola, que entendia muito bem a vida de um militar e que me ia ajudar esperando o tempo que fosse necessário.

Era muito raro, uma família não ter nenhum dos seus membros no ultramar e nas agruras da guerra.

Por sorte a sentinela que entrara agora de serviço, era da minha camarata. Este sabia que eu estava ausente sem autorização, mas percebia as razões pois tinha sido um dos que me dissera para aproveitar estes meses nas calmas. Fez-me sinal para entrar e ao passar por ele, quase em surdina me avisou:

“ – Nosso Pára, vá de imediato guardar o saco pois vai haver mais uma chamada para confirmar as presenças”.

“ – Obrigado nosso cabo, Deus lhe pague” – manifestei logo ali o meu sincero agradecimento.

“ – Não perca tempo e não se preocupe porque não está em falta, o seu amigo alentejano ontem respondeu por si.”

Claro que fui dar um abraço sentido ao, muito recente, amigo alentejano que demonstrou a todos o valor da amizade. Com um gesto mostrou que vale a pena sentir a felicidade de poder contar incondicionalmente com alguém. Soube estar presente, adivinhando a minha dificuldade e fazendo da amizade um ponto positivo na vida.

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O povo não queria guerra

Com mais uma fornada pronta, de Caçadores Pára-quedistas, era o sinal de que estava iminente mais um embarque para África.

Maio corria velozmente para o fim e eu era rendido na Polícia Aérea sendo colocado de novo em Tancos. Aqui reencontrei camaradas do meu curso que só aguardavam sinal verde, tal como eu, para embarcar junto desta última fornada e, desta vez, falava-se que seria para Angola.

O Golpe de 28 de Maio de 1926, foi um pronunciamento militar que pôs termo à Primeira República, levando à implantação da auto-denominada Ditadura Nacional, depois transformada, após a aprovação da Constituição de 1933, em Estado Novo, regime que se manteve no poder em Portugal até à Revolução dos Cravos de 25 de Abril de 1974. O Golpe de 28 de Maio começou em Braga, comandado pelo general Gomes da Costa, seguida de imediato em outras cidades como Porto, Lisboa, Évora, Coimbra e Santarém.

Em 1971, 45 anos depois, estávamos desfilando em Braga, cidade que conta com mais de 2.250 anos nos Anais da História e uma das cidades cristãs mais antigas. É, ainda, considerada como o maior centro de estudos religiosos em Portugal e pode, realmente, estar muito orgulhosa do seu título de "Cidade dos Arcebispos". O povo veio à rua aclamar os seus soldados que iam subindo a Avenida da Liberdade. As pessoas apinhavam-se nos passeios, vibravam num misto de aplausos e de emoções, as pétalas de flor arremessadas das janelas voavam como se de pequenos pára-quedas se tratassem. O marchar característico dos Pára-quedistas e o som das botas em uníssono, ecoava ao longo do percurso.

Foi de facto fantástica a recepção que nos esperava no Campo da Vinha, onde as tropas chegavam e alinhavam em formação com os seus estandartes. As casas engalanadas com as suas varandas e janelas polvilhadas de colchas e bandeiras, davam um ar festivo e um acolhimento aos bravos soldados que em breve partiriam para a guerra.

O povo anónimo e as suas famílias vitoriavam a bandeira e os seus soldados. O povo não queria guerra. O povo sabia que esta parada militar era uma antecâmara da guerra e que muitos dos que agora vitoriavam, não voltariam tombando no capim ensanguentado. E o regime apropriava-se indevidamente destes sentimentos.

Regressámos à casa mãe, era assim que era denominado o Regimento de Caçadores Pára-quedistas. Ao fim de alguns dias é publicada mais uma lista de mobilização. Recebi a esperada notícia com tranquilidade onde cerca de duzentos militares foram divididos pelos 3 teatros de guerra em África. Ao pessoal do meu curso, que se tinha safo da primeira leva, tocava-lhes, agora, Angola. Ainda não era desta que dois amigos embarcariam: o Martins “o algarvio” porque estava a tirar a especialidade de tratador de cães de guerra, mas no fim do curso dificilmente escaparia e o Covilhã, que mercê da sua extraordinária força e destreza, sendo considerado o melhor soldado

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do curso nas provas físicas, ficaria na metrópole adstrito à área da educação física e desportiva.

A mobilização esperada desta vez também foi comigo… foi-me concedida uma licença de dez dias, de forma a poder estar junto dos meus, pois a ordem de embarque poderia surgir a cada momento. A única coisa que sabia era que ia para Angola, de avião ou de barco, mas o destino estava traçado.

Não foram férias esses dez dias concedidos, mas sim um tempo de despedida de tudo o que me prendia e do que queria levar comigo e não era só a família, os amigos e a namorada. Queria levar a essência da minha cidade e das águas do Rio Lima. Este com uma longa história profundamente interligada a uma velha lenda, sobre as suas margens. Na altura do Império Romano era conhecido por "Rio do Esquecimento", pois os soldados sabiam que quem atravessasse as suas margens perderia "o olvido do passado e da própria pátria", tal como refere o Conde de Bertiandos, in Lendas. Assim sendo, as legiões romanas temiam as águas do Lima e negavam-se a navegar sobre elas. Apenas no ano de 135 a.C. as tropas romanas atingiram a margem esquerda do Lima, comandadas por Décios Junos Brutos, que, empunhando o estandarte das águias de Roma, desafiou a "beleza manhosa" das águas do rio e as atravessou sozinho. Já do outro lado da margem, o comandante chamou cada soldado pelo seu nome, conseguindo assim provar às suas tropas que, apesar do fascínio do rio Lima fazer lembrar o rio Lethes, apagando a memória a quem o atravessasse, a lenda não era verdadeira. Ainda hoje, quem conhece este rio e sabe a "história" das suas margens não se cansa de enaltecer a velha lenda popular.

Desde puto, era ali no rio, a dois passos de casa, que ia apanhar caranguejos com uma corda, uma pedra e as entranhas do peixe pedidas às peixeiras do mercado. Precisamente no local onde viria a surgiu o pior atentado urbanístico vianense, um prédio de 12 andares. Hoje toda a população quer vê-lo em baixo para exemplo dos vindouros.

Queria transportar, na minha memória as mimosas do monte de Santa Luzia. Vale a pena subir ao topo do Monte de Santa Luzia (a cerca de três quilómetros do centro da cidade), a pé, de funicular ou de carro. Dele se desfruta uma das panorâmicas mais sublimes do planeta sobre a cidade, o rio e o mar. A cidade com as ruas e vielas sinuosas, largos e praças pitorescas, as suas muitas casas senhoriais e palacetes recordando a importância que adquiriu no século XV como porto de pesca e terra de onde saíram navios, marinheiros e navegadores para os grandes Descobrimentos portugueses do século XVI, iriam também comigo.

A Nossa Senhora da Agonia, celebrada em Agosto, atraindo multidões para assistirem à procissão, com o desfile das mulheres envergando os seus magníficos trajes típicos, os arraiais com muita música, bailes e fogo-de-artifício, além da tradicional bênção dos barcos de pesca seriam recordações que me acompanhariam sempre.

Já o poeta vianense, Pedro Homem de Melo, lia como quem canta este tema que Amália imortalizou:

Se o meu sangue não me engana

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como engana a fantasiahavemos de ir a Vianaó meu amor de algum diaó meu amor de algum diahavemos de ir a Vianase o meu sangue não me enganahavemos de ir a Viana.

Levei de tudo isto um pouco, para além dos abraços dos amigos, da paixão da namorada e do amor de minha mãe.

Em meados de Junho de 1971, só a Jorgelina, uma das minhas irmãs, acompanhou-me à estação dos caminhos-de-ferro. Depois de uma despedida com dor e já com muitas saudades, com o comboio a entrar na ponte metálica sobre o rio, dei comigo, com os olhos vidrados, a fixar o lado esquerdo da linha férrea, Queria ver, mais uma vez, a minha casa que ficava ali a algumas dezenas de metros.

É muito doloroso, uma mãe ver um filho partir para a guerra. E ali estava ela sozinha, vestida de preto, acenando-me o último adeus até onde a vista o permitia. Por fim, deitou ambas as mãos à cabeça, numa atitude de desespero, por ver partir alguém que ela brotou e criou e que agora via a guerra levar. Pela primeira vez uma lágrima correu teimosamente no meu rosto. Acenei com a alma tolhida. Levei comigo essa imagem que me acompanhou sempre na guerra e para além dela.

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O embarque

Todos tínhamos já como companhia a “guia de marcha” para Angola. Sabíamos que dali a alguns dias estaríamos, do outro lado do mar, precisamente onde 10 anos antes tinha rebentado a guerra. Esta viria a conduzir à libertação desastrosa de uma das últimas colónias em África.

Nessa noite, nada nos restava, senão despedirmo-nos de nós próprios, com o corpo a despegar-se da alma, pois os dez dias de licença de mobilização já estavam gozados, as despedidas da família e os abraços dos amigos já estavam consumados e até dos braços da namorada já nos tínhamos separado. Era como se o cérebro se diluísse e se separassem os neurónios, fica-se um destroço humano. Este desunir o corpo da alma cria em nós uma tristeza travestida de alegria pela acção das dezenas de cervejas que se emborcam tingindo o espírito de cada soldado.

Nada nem ninguém conseguiria tingir por muitas horas este apocalipse que se apoderava de nós, onde o álcool só conseguia preservar por algumas horas este estado de falsa alegria que nos levava a coisas impensáveis.

Como a querer prolongar os santos populares, engalanaram-se as camaratas, de cama a cama, como rolos de papel higiénico áspero em consonância com o que fizeram de nós. Muitos, já bem bebidos, a incomodar os soldados que por cá ficavam a ultimar a sua preparação militar. Algumas escaramuças foram inevitáveis e as cervejas que nos acompanhavam tiravam-nos o discernimento e o bom senso. Os soldados precisavam de descansar porque para eles o dia seguinte, era mais uma preparação dura e infernal que os esperava e não se compadecia com os sinistros festejos dos mobilizados.

Já a madrugada ia alta e ainda se viam espalhados pelo campo de futebol que ficava quase paredes-meias com a camarata, muitos corpos vomitados, outros tantos sonolentos a acordar para a vida novamente. O efeito de uma falsa alegria que lhes tingia a tristeza, passava rapidamente e como cordeirinhos regressavam às suas casernas para tentar dormir um pouco antes do despontar do dia. O corpo casava-se de novo com a alma e o discernimento voltava lentamente.

Na esquina virada para o campo onde os mobilizados regressavam ordeiramente e quase em silêncio, estava, na penumbra, o sargento de dia, qual malvado, qual carniceiro sem dó nem piedade a apontar o caminho do cadafalso. Era com certeza mais um sargento analfabeto, orgulhoso das divisas conquistadas só porque se ofereceu para matar pretos em África, mas desprovido de qualquer sentimento altruísta e falho de humanidade.

De forma cobarde, apontava a cada um o caminho da guilhotina que lhes ia ceifar, pela última vez, o cabelo que estava novamente a começar a crescer.

“- Filho da puta, ainda por cima um nosso conterrâneo” – não se conteve o Afife.“- É de Viana o gajo pá?”- logo perguntou outro.Nem respondi com a vergonha, mas todos sabiam que sim.

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Naquele momento uma garrafa de cerveja estilhaçou-se na parede a poucos centímetros da cabeça do açougueiro. Sei que voou por cima das nossas cabeças e arremessada bem lá de trás como se de uma granada se tratasse. Nunca se soube quem a atirou, nem tão pouco alguém procurou saber o autor. O clima de irmandade fortalecia-se e o assunto morreu ali para todos, menos para o sargento que, cobardemente, se encolheu e não tossiu nem mugiu. Com isso, beneficiaram aqueles que escaparam da ida ao barbeiro.

Hoje, passado mais de 30 anos, esse sargento que parecia que tinha o rei na barriga com a farda e as sujas divisas, passeia sozinho. Nenhum de nós, e somos bastantes, lhe passa “bife”.

De manhã bem cedo, mais cinquenta e dois pára-quedistas transportados num autocarro da Força Aérea partiram de Tancos até à capital, mais precisamente para o Cais da Rocha de Conde Óbidos, onde nos esperava o navio “Vera Cruz”.

Até 1974, o mar era a grande via de ligação ao império. Mais de 90% da carga e de 80% do pessoal metropolitano empenhado na guerra tinha sido transportado em navios. Os paquetes mais requisitados na ligação a África foram o Vera Cruz, o Niassa, o Lima, o Império e o Uíje. O Niassa foi o primeiro paquete afretado como transporte de tropas e de material de guerra, por Portaria de 4 de Março de 1961, mas seria o Vera Cruz a fazer mais viagens, chegando a realizar 13 num ano. Em 1961, efectuaram-se 19 travessias em nove paquetes em missão militar e o ritmo aumentou à medida que crescia a força expedicionária em África.

O “Vera Cruz”, antigo paquete de luxo, fez a sua 1ª viagem inaugural ao Rio de Janeiro em 1952. Com lotação esgotada, entre os muitos convidados encontrava-se o Almirante Gago Coutinho. Em 1954, juntamente com seu irmão gémeo, o paquete Santa Maria, iniciou a sua carreira aos portos da América Central. Em qualquer porto que atracava era motivo de interesse. A sua imponência e beleza como navio de linhas elegantes eram motivo de registo. Mantendo as viagens regulares ao continente americano, o Vera Cruz em 1956, realizou um périplo por África de 8 de Agosto a 29 de Setembro. Só em 1959 é que realizou a sua primeira viagem a Angola. Com o início da guerra colonial em Angola, o governo de Salazar, para fazer frente aos acontecimentos, requisitou diversos navios para o transporte de tropas e material de guerra, passando a ser uma das principais ocupações dos navios portugueses. O Vera Cruz não foi excepção. Adaptado para o transporte de tropas, com a instalação de alojamentos nas cobertas, a 5 de Maio de 1961, largou de Lisboa rumo a Luanda tendo no mastro principal hasteada a flâmula verde e encarnada, habitual nos navios de guerra. Em 1962, o Vera Cruz é requisitado para se deslocar ao Paquistão com o fim de recolher os militares feitos prisioneiros, devido à invasão da Índia Portuguesa pelos indianos.

Estava ali imponente atracado no Rio Tejo para mais uma missão que a guerra lhe destinava, embarcar tropas para o ultramar. Seria das últimas viagens que faria, pois em 1972 seria vendido para abate desaparecendo um dos símbolos da Guerra Colonial.

A tropa do exército, vinha de vários pontos do País em quantidade suficiente para encher o navio. Desfilava em continência perante as altas esferas militares, com

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as senhoras do Movimento Nacional Feminino e da Cruz Vermelha a distribuírem lembranças e folhetos sobre o território de destino. Depois de os mandarem para a guerra ainda tinham que prestar vassalagem aos senhores da guerra que depois da cerimónia, da entrega de mais de um milhar de jovens para a guerra, regressariam sem remorsos para os faustosos sofás dos ministérios do Terreiro do Paço.

Felizmente dessa nos livrámos. Subimos directamente o portaló do navio sendo instalados em 2ª classe, em camarotes, como se fossemos diferentes dos demais militares, tal era o estatuto que uma Tropa Especial da Força Aérea dispunha.

Os soldados do exército, vulgo feijão verde, estavam mal preparados para a guerra pois, pouco mais sabiam do que marchar. Em menos de meio ano, lá estavam os verdadeiros sacrificados pela guerra, como se de animais se tratassem, a serem alojados em beliches armados nos porões negros do navio.

As famílias apinhavam-se nas varandas da gare marítima com lenços a acenar. As despedidas das famílias, o coro dos lamentos gritado por milhares pessoas são momentos muito difíceis de descrever. As lágrimas que derramei, embora disfarçadas, foram de solidariedade para com as mães dos muitos companheiros de viagem. Nenhum familiar meu se foi despedir porque o norte ficava muito longe e a vida difícil não o permitia.

Olhava para os militares pendurados em tudo quanto era sítio a lutar por um lugar no convés, nas baleeiras, ou a trepar aos mastros, para os últimos acenos.

A sirene apitava e, durante alguns anos, a instalação sonora tocava uma marcha intitulada “ANGOLA É NOSSA” independentemente do destino – um ritual abandonado nos anos mais próximos do fim da guerra.

“Carne p’ra Canhão!!!” era esse o sentimento que a marcha militar deixava… a alguns milhares de jovens que não sabiam se regressariam sãos e salvos. Enfim era a dita “guerra do ultramar” que nos esperava.

Por volta do meio-dia, o navio recolhia o portaló e os cabos. Afastava-se lentamente, virava a proa à foz do Tejo, passava por baixo da ponte do ditador, hoje ponte 25 de Abril, e deslizava diante da Torre de Belém. A fome já apertava e eram dadas instruções para a primeira refeição a bordo.

Ainda tenho bem presente o afastamento do navio do cais. Vi a multidão com rostos algo crispados a acenar os lenços e milhares de pessoas com as lágrimas escapando do choro compulsivo.

Já não se avistava o cais, mas ainda se ouvia o gritar lancinante das mães. Esses gritos acompanharam-me durante os nove dias de viagem. Foram terríveis os momentos do despegar do solo pátrio a caminho do desconhecido da guerra. Por mais cerimónias ou levantamento da moral das tropas, sabíamos que nem todos voltariam. Muitos de nós regressariam embrulhados em caixões, outros deixariam por lá as botas decepadas pelas minas, mas todos sabíamos que não mais seríamos os mesmos jovens que agora nos mandavam mar dentro.Puta de vida esta…

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A Viagem

O VERA CRUZ apesar de ser um navio adaptado a transporte de tropas ainda mantinha as suas linhas de concepção extremamente avançada para a época. Foi o primeiro verdadeiro paquete Português, pois todos os navios de passageiros usados anteriormente se classificavam como unidades mistas, pela grande quantidade de carga transportada a par dos passageiros. Nos pisos superiores alojavam-se os oficiais. Acima da linha do convés, coabitavam os sargentos dos diversos ramos e os militares da força aérea bem instalados, em camarotes triplos. Sentíamo-nos uns privilegiados pois as condições acima da linha do convés eram ainda excelentes.

Nos porões, a carga, neste caso os soldados do exército, foi alojada e dormia em beliches triplos. As condições de higiene rapidamente se degradaram transformando os porões em autênticos “bordéis” de imundice e maus cheiros (embora os soldados não tivessem culpa nenhuma, coitados!). Assim, muitos soldados tiveram de vir dormir para a proa do navio ou estenderem-se pelo chão como deserdados da sorte e não como cidadãos enviados ao serviço da pátria.

Quando se deixaram de ouvir os gritos lancinantes de quem em terra via partir os seus filhos para a guerra, sentimo-nos escoltados por algo maravilhoso e de grande satisfação para toda a gente. Era a primeira vez que tínhamos o privilégio de ver golfinhos. Toda a gente ia à borda contemplar este espectáculo único que se prolongou até ao fim da tarde. Que beleza!!!

A partir do início da década de 70, tudo se complicou para a já pequena população de golfinhos. A poluição do rio, cada vez mais preocupante, e a construção das pontes sobre o Tejo, contaminaram toda a cadeia alimentar. O crescente tráfego marítimo e a não existência de normas ambientais e de conduta na observação destes animais, acabaram por dizimar toda esta população.

Com a primeira noite vieram os primeiros enjoos com excepção para a tripulação e para os militares profissionais. Para estes últimos a guerra era só mais uma comissão de serviço advindo daí mais uma promoção, para alindar os seus ombros, subir na carreira e ganhar mais uns cobres. Só o Fiúza, o pescador, é que estava como peixe na água. Eu como antes trabalhava nuns estaleiros de construção naval, já vinha também um pouco habituado.

Todos os outros viram-se de repente no meio do mar, como prisioneiros do destino comandando pelo leme do deus Ares, conhecido como Marte o deus da guerra com milhares de Phobos e outros tantos Deimos, os seus filhos. Segundo a mitologia, Marte teve dois filhos com Vénus (a deusa do amor e o planeta mais bonito visível, a olho nu, perto do anoitecer ou do amanhecer) Phobos e Deimos (o Medo e o Terror).

Anoitecia rapidamente. Olhando em frente, mal se avistava o horizonte. Os tons vermelhos, como Marte, sugeriam sangue e este, por sua vez, conflitos e guerras. Não é de admirar que o planeta vermelho fosse associado a uma divindade considerada a zeladora do reino dos mortos e o deus da guerra.

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Tanto de um lado como de outro não havia sinais de terra. Estávamos sós, completamente abandonados no meio do oceano Atlântico.

Bem dizia o Ramos nas suas tiradas sempre cáusticas:“- Desta vez concordo! Gosto muito de ter os pés assentes em terra firme”.Às praças, como eu, e aos milicianos, a todos era imposta a guerra. Em

alternativa tínhamos a deserção que tinha como consequências nunca mais poder pisar solo pátrio e ter de deixar para trás as famílias, cuja maioria era sustentada com os nossos pobres salários. A Polícia Politica (PIDE/GDS) a rondar as casas de cada um, incomodando as pobres famílias mercê dos bufos que, a troco de uns miseráveis tostões, informavam a PIDE de tudo o que lhes parecia suspeito. Com estes condicionalismos, num país em ditadura, só nos restava dizer presente e irmos para a guerra.

Não era uma questão de patriotismo, heroísmo ou cobardia, mas simplesmente os condicionalismos do país.

A vida a bordo de um navio com mais de 3000 militares alojados, cuja lotação em condições normais era cerca de metade, rapidamente se transforma em rotina e cansaço.

O Martins, o magrinho, sempre interessadíssimo pelos pormenores nunca tendo estado tão perto de tanta coisa desconhecida, fazia as suas habituais visitas ao interior do navio e não se cansava de dizer:

“- É espantoso o número de coisas que não sabia e que não se vêem do lado de fora. Estes barcos têm de tudo, sabiam?”

Ao fim do segundo dia a bordo, pelo meio da tarde, avistava-se pela primeira vez a Ilha da Madeira sobre um céu quente, a beleza de um postal ilustrado. Tinha aproveitado para escrever umas cartas para casa, ainda a bordo, pois tinham-nos dito que sairíamos por algumas horas e poderíamos enviá-las da Madeira. Os mais afoitos saíram até onde lhes era permitido, o cais. Parece que tinham medo que alguém, à última da hora, pensasse em fugir à guerra. A maioria nem saiu do barco debruçando-se sobre a borda falsa do navio vendo e deliciando-se com aquela beleza para nós nunca vista.

Tocou a sirene do navio, subiu-se o portaló e depois da contagem do pessoal, o Vera Cruz arrancou em direcção à guerra prometida. Um navio cheio de milhares de jovens feitos homens à força que nem tiveram tempo de o ser, jovens feitos homens para matar, sem tempo para pensar o seu futuro, sem outra liberdade que não a de tentarem cumprir o seu destino programado por outros.

Os militares têm sempre como referência a disciplina e a hierarquia. Nesta viagem pelos mares do atlântico, por ter o número mais antigo entre os meus companheiros de armas, acabo por ficar por eles responsável, como cabo dia, num dos nove dias da viagem.

Nesta viagem rapidamente se instalou a rotina. As noites eram o prolongamento dos dias de batota onde a lerpa e a vermelhinha pontificavam. O “vício” era tal que os mais embrenhados no jogo raramente conseguiam ir tomar o pequeno-almoço. Eu, como tantos outros, não falhava a este “requinte” que nos era servido pelas sete da manhã, hora a que a lerpa ainda não tinha acabado para muita boa gente.

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Ocupávamos as restantes horas do dia com as idas ao bar e ao cinema que funcionava na coberta superior, para além das refeições que nos eram servidas em pratos ensaiando umas valsas que só os rebordos das mesas evitavam males maiores.

Quando se deixou para trás Lisboa e posteriormente a Ilha da Madeira ficou também muito de nós e os melhores anos das nossas vidas. As saudades são já indescritíveis e uma solidão enorme invade-nos. Os soldados lá se acantonam pelo convés e à sombra das baleeiras tentam combater esta ociosidade aliada ao stress de uma viagem para a guerra, mas uma melancolia sem remédio domina-os.

Nos tempos mornos da viagem tínhamos por companhia um mar de água, cuja cor se confundia com um céu de chumbo quente. O sul confundia-se com a guerra e os militares confundiam-se com a família. As memórias de vinte anos, destes rapazes feitos homens, vinham novamente ao pensamento. O Fugitivo, a Lassie, o Robin dos Bosques e o Zorro (séries da televisão) confundiam-se com guerrilheiros. As brincadeiras ao pião e ao espeto confundiam-se com o jogo da lerpa, e essas brincadeiras de crianças confundiam-se agora com a contenda que nos esperava.

Lembro-me do meu primeiro pião de bucho que se confunde também com o meu primeiro roubo. Os piões alinhadinhos na vertical e pendurados numa corda estavam ali como a desafiar-me e eu não resisti: fui ao último e zás… Passados uns minutos já a minha velhota tinha sido avisada. Levou-me pelas orelhas até devolver o pião na drogaria, tudo isto tendo como testemunha o velhinho mercado municipal. E foi precisamente nesse local que acabou por nascer o maior aborto urbanístico (prédio do Coutinho) que há memória em Viana do Castelo. Finalmente, passados trinta anos, está prestes a ser demolido corrigindo e despoluindo o horizonte desta cidade.

Estava eu absorvido pela saudade e divagando pelas minhas memórias quando alguém grita à porta do camarote:

“- Há porrada junto ao cinema e acho que é com os Comandos.” Quase ninguém se mexeu nem pestanejou demonstrando total indiferença pelos

que se entretinham a jogar à galheta. Como eu também não me mexi, pois estava observando a lerpa, algum esperto me alertou:

“- Oh Marques, não és tu que estás de cabo de dia? Parece que temos malta nossa envolvida.”

A contra gosto lá me levantei. Os camaradas suspenderam a batota e fomos ver o que se passava. Tremenda algazarra com o pessoal do Exército a assistir a uma sessão de batatada no convés entre dois ou três Páras e outros tantos Comandos. Sempre que a rivalidade entre Páras e Comandos conduzia a este tipo de “combates”, o pessoal do Exército regozijava-se pois não gostavam dos Comandos nem pintados. Quando se pressentiu que tudo poderia descambar em algo grave, pois um Pára teimava em empurrar pela borda-falsa o seu adversário, alguém desapertou os contendores e aquilo morreu ali. Se entre marido e mulher não se mete a colher, entre militares não é muito diferente pois ninguém vai fazer queixinhas a seguir. Eu, que estava bem sossegado a ver as “habilidades” dos jogadores da batota no meu camarote, é que acabei por levar por tabela. De repente, como cabo de dia vejo-me a responder pelos actos de cerca de cinco dúzias de pára-quedistas que comigo embarcaram. Como dois ou três, se lembraram de andar à pancada… fui avisado que

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mal chegasse a Luanda, iria ser responsabilizado pelo ocorrido, por não ter identificado os Pára-quedistas intervenientes.

Como tinha alguma habilidade para o desenho, a pedido de alguns, fui tatuando nos seus braços o emblema dos Pára-quedistas. Assim os dias foram passando numa rotina que me começava a assustar. Já nada nos intimidava nem a viagem nem a guerra que nos esperava. Só nos restava o cansaço, o sono e a saudade. Por isso alguém dizia: “- Já só faltam 104 semanas para regressarmos”.

Foi isso que definiu o nosso objectivo principal e nos norteou todo o tempo: contar semana a semana.Ao nono dia já se avistava o arranha-céus do Banco Comercial de Angola. O que era um ponto no horizonte, começou a emergir e com ele vislumbrámos a baía lindíssima de Luanda. Quando o Vera Cruz finalmente acostou ao porto de Luanda as tropas desembarcaram e logo, no cais, reparámos num autocarro azul da força aérea, que nos transportou a Belas onde estava instalado o nosso Batalhão de Caçadores Pára-quedistas nº 21.

Já em terra firme, avistam-se os barcos de pesca dos negros, passando lentamente para um e outro lado. Uns pássaros grandes e estranhos que pareciam gaivotas passeiam sem mover as asas, acima das palmeiras. Uns negros maltrapilhos arrastam-se a pedir esmola, outros oferecem cinzeiros de madeira e objectos esculpidos. Uns sujeitos brancos e sebentos trocam escudos por angolares com a taxa acrescida de 12%. Os brancos aqui, de patilhas e camisas transparentes, têm todos aspectos de vendedores de automóveis e de taxistas. As mulheres brancas andam excessivamente bem vestidas e as jovens mulatas são lindas de morrer. Somos rodeados por pretitos, descalços nesta terra poeirenta e vermelha que mais parece barro, com cachos de enormes bananas ao preço da chuva.E assim terminou esta viagem, ancorando neste Brasil africano chamado Angola.

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A chegada e a ida para a guerra

Os militares do exército, Comandos incluídos, seguiram de comboio até ao Grafanil, um entreposto do exército onde a “mercadoria” chegava aos magotes. Poucos dias depois, são colocados nos lugares mais inóspitos desta terra, onde se derramava, em cada morro traiçoeiro, sangue dos jovens que para ali foram enviados. É disso mesmo que se trata, jovens feito homens, à pressa, enviados para a guerra.

Nós, meia centena de Pára-quedistas, seguimos até Belas situada na periferia de Luanda, a cerca de 12 km. O autocarro serpenteava ao longo da costa tendo sempre como fundo as belas praias de Luanda. Deslumbrante esta baía, em semicírculo, onde avança uma língua de areia frente à cidade chamada Ilha de Luanda. Outrora, tinha sido uma espécie de feudo do Rei do Congo (até 1648) com uma enorme importância financeira. Era nestas praias que se apanhava o Zimbo, um minúsculo búzio, que era moeda corrente na altura em que aqui chegaram as caravelas dos navegadores portugueses. O Zimbo era tão valioso que, no Congo, até recusavam as moedas de ouro.

O graduado, responsável pelo nosso transporte até ao quartel, apontando para o fim da baía, tentando, logo ali, recordar-nos os valores adquiridos, ao longo da instrução, na metrópole, disse-nos:

“ – Reparem naquela fortaleza onde a baía acaba e começa a ilha de Luanda”. Chama-se Fortaleza de S. Miguel e foi a primeira fortificação definitiva erguida em solo angolano”. Parecia o meu professor David, ainda vivo, explicando os monumentos durante a

remota visita de estudo, resumida a uma volta ao distrito de Viana do Castelo, quando terminei a 4ª classe, uma dúzia de anos antes. Foi no meu professor que procurei sempre a sabedoria e os ensinamentos.

Nada do que possa fazer na vida irá tirar o brilho e o encanto do meu professor. Apesar da minha escolaridade ter ficado por ali, mercê da miséria em que se vivia, só lhe acrescentei mais cinco anos de escolaridade, com cinquenta anos feitos. Ao longo da vida fui tendo outros mestres. Com todos eles, fui conhecendo e aprendendo a depender somente das minhas forças e da minha vontade. No final, se for bem sucedido, saberei que vivi sempre de acordo com os valores e princípios em que acredito, mas se falhar, também será por minha causa, pois não valorizei adequadamente o tempo que estive com os meus mestres.

Acordei dos meus pensamentos, novamente, com a voz do graduado:“- Foi naquela fortaleza, em Março de 1961, que foram alojados os primeiros

pára-quedistas enviados para Angola para suster a sublevação, proteger as populações ameaçadas, limpar itinerários e libertar pequenas populações.”

Como a querer-nos preparar para o que nos esperava (não era nem de perto nem de longe uma visita de estudo às belezas destas paragens), acrescentou:

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“- E foi nessas primeiras operações ofensivas, em Abril de 1961, que as Tropas Pára-quedistas sofreram o seu primeiro morto em combate: Soldado Pára-quedista JOAQUIM AFONSO DOMINGUES”.

Dez anos depois, estava eu, com os meus companheiros de jornada, rendendo outros combatentes desta guerra que ainda durava e parecia não ter fim.

Foi rápida a viagem até Belas. O quartel do Batalhão de Caçadores Pára-quedistas nº 21 (BCP 21) era a mais bela Unidade das Forças Armadas Portuguesas e considerado, por muitos, o melhor quartel de África.

Logo, fomos distribuídos pelas três Companhias de Combate ali estacionadas, pois era de combatentes que esta “leva” tratava e não de pessoal de apoio, apesar de este ser sempre necessário.Foi quase um começar tudo de novo. Embora muitos de nós já tivéssemos mais um ano de tropa e na metrópole fossemos considerados “velhinhos” e, principalmente os militares mais novos, nos olhassem com respeito e alguma subserviência, aqui acontecia o inverso. Víamos chegar do mato (da guerra), quase dia sim dia sim, pára-quedistas cansados, sujos, esfomeados, mas valentes. De nenhum se ouvia um queixume que fosse. Não que tivessem medo dos superiores, mas porque já tinham interiorizado que tudo o que aprenderam, todas as privações e humilhações sofridas, na preparação para a guerra, fizeram deles homens mais duros, mais viris e melhores preparados para enfrentar todas as agruras de uma guerra traiçoeira.

Como eu sentia orgulho quando via chegar os combatentes pára-quedistas que regressavam de mais uma missão. Era a sua nobreza de carácter que os elevava ao patamar dos melhores. Por breves instantes, uma lágrima traiçoeira, sustida a muito custo, fazia-me sentir muito pequenino.

Este primeiro embate, com combatentes valorosos, marcou-me para toda a vida. A chegada dos militares que eu já admirava e o sentir-me entre eles, fez-me respeitar sempre tudo e todos, até o IN (inimigo). Este também merecia o nosso respeito, pois estavam, em armas, defendendo as suas causas.A maioria destes deslocados para a guerra, foi parar à 1ª Companhia de Caçadores Pára-quedistas (1ª CCP). Enquanto os meus camaradas passeavam pelo quartel conhecendo todos os seus cantos, eu aguardava a minha primeira triste e desalentada surpresa da minha vida como militar Pára-quedista. Já estava habituado e, por isso, já nem ligava quando volta e meia tinha de ir à tosquia por dá cá aquela palha. Era mais carecada menos carecada. Mas sempre que podia e me era permitido, manifestava a minha discordância. Gostei sempre de pensar e agir em consonância com o meu carácter.

Pela primeira vez, nesta “viagem de ida” a África, formámos na parada da companhia. Deram-nos as boas-vindas através do comandante da companhia, o Capitão Ferreira Pinto. Fisicamente era a antítese de um Tropa Especial e de um líder. Era um homem pequeno, sem carisma, sem aquele vozeirão típico e muitíssimo educado para os seus comandados. Deu as boas-vindas aos que chegavam à terra onde os ricos eram mais ricos e os pobres eram mais pobres. A mim, foi-me aplicado um castigo injusto, descabido e excessivamente penoso resultante do acontecido a bordo do navio que nos transportou para esta “guerra prometida”. Senti que o castigo

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não era mais do que um exemplo para todos, para que se percebesse o valor inestimável da disciplina. Recusei “denunciar” camaradas meus que se envolveram em desacatos durante a viagem (não esqueçamos que era uma viagem só com ida marcada e que alguns de nós não teriam vinda). Ainda nem sequer tinha a cabeça nem o organismo refeitos da viagem tormentosa de nove dias pelo mar, apanhei como castigo três dias seguidos de sentinela. Não tinha condições físicas nem psicológicas para cumprir de forma satisfatória a punição que me fora aplicada.

Era certo e seguro que não ia conseguir manter-me em alerta três dias seguidos. Senti-me como os prisioneiros no Tarrafal (terra da morte lenta), para onde o ditador Salazar enviava os que lutavam pela liberdade, neste país amordaçado, pobre e isolado. Aconteceu o que tanto temia. Ao segundo dia, fui apanhado a dormir, na torre de vigia, pelo sargento-da-guarda. Presumo que estava escondido na penumbra à espera que o sono me derrotasse. Subindo as poucas escadas encontrou-me ali sentado, abraçado à arma, dormitando de forma intermitente. De supetão, sacou-me a arma dos braços com medo que o meu acordar com um “intruso” à vista, me levasse a disparar por instinto.

Num estremunhar de sono, pânico e medo, muito medo, logo pensei:“- Estou perdido, agora não me safo. Maldita hora que vim para a guerra”.No militar profissional, que fazia da guerra uma forma de vida, vi, através do seu

olhar, uma estúpida alegria pela façanha de apanhar um militar a dormir no posto. Não se importava com as atenuantes justificadas por uma viagem tormentosa, num barco com um convés vomitado e apinhado de militares, em que nenhum estômago conseguiu sossegar durante esses dias. Esta proeza custou-me mais um castigo, desta feita um dos mais humilhantes que um militar, em especial um pára-quedista, pode sofrer. Quinze dias de detenção militar mais uma carecada que não me perturbou rigorosamente nada. Fui proibido de usar a Boina Verde, andei em cabelo. Foi-me retirado o Brevete e o crachá e até o cinto, que dá um ar mais humano quando fardados, me foi tirado. Não pude sair do quartel. Sempre que o batalhão formava na parada ali estava eu com mais alguns detidos, ao lado do oficial-de-dia, com a vergonha estampada no rosto, virado para os meus camaradas de forma a todos saberem que eu estava detido. Foi humilhante demais. Paguei bem caro o ser fiel e camarada dos meus companheiros. No entanto, nem sequer sonhei em fazê-lo, denunciar, nunca. Ali, aprendi, para toda a vida, que o valor da solidariedade, da amizade e do respeito se sobrepõe a tudo. Foram dias difíceis, muito difíceis de ultrapassar, mas a forma como respeitei esses valores fizeram de mim um homem diferente, mais respeitado por todos, sejam eles iguais ou superiores na patente.

Passada essa fase menos boa, da qual não me orgulho nem me arrependo, fui logo mobilizado para uma operação militar de alto risco em Marimba. Situada na fronteira com o Zaire, era aqui que os pelotões do exército eram fustigados por “terroristas” sempre que saiam para o mato. Não era normal neste tipo de operações levarem novatos, isso estava sempre destinado aos mais experientes e com mais tempo de guerra. Fiquei sempre na dúvida se não terá sido um prolongamento do castigo.

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O Noratlas já nos esperava na base. Desta vez, não era para me proporcionar a fantástica leveza de um salto em pára-quedas, mas sim, levar-me ao encontro do IN…

Tiraram um rapaz da sua vida, amadurecem-no à força para o enviarem para uma guerra sem fim, onde outros homens já por lá sofriam as agruras de uma vida sem vida, onde os dias se contavam por cruzinhas riscadas num calendário feito á mão, que colado pelo lado de dentro da porta do cacifo, nos dava os bons dias logo ao acordar ============================================================e que nos fazia interiorizar que já faltava menos um dia para o nosso regresso ao “puto". Era essa a expressão que se usava por África para designar Portugal, a Metrópole.

Olhei para o calendário que pacientemente tinha desenhado uns dias antes e logo o cabo Vasques, o mesmo que muitas vezes me acompanhou e me “vigiou” na minha detenção, e que na vida civil era também um cabo, mas cabo-forcado, um aficionado da tauromaquia, habituado portanto a pegar o touro pelos cornos e que na altura era o homem da HK21 a metralhadora de mão que os páras usavam.

Reparando como eu contemplava as cruzinhas me disse com voz grave pejada pela barba cerrada que enfarruscava até aos olhos sempre que estava no mato e não podia tratar dela, me disse:

“- Tem calma maçarico, quando regressarmos desta operação, e se correr bem, já vais poder riscar mais 3 ou 4 dias no calendário.”

Achei-me tão pequenino ao ouvir estas palavras de um combatente com dezenas de operações no cabedal, conhecedor desta guerra de norte a leste desta Angola assolada pela guerra.

“- Vamos lá Marques, vais ver que tudo o que aprendeste no curso de combate, te vai ser muito útil e que isto até nem é assim tão difícil como parece.”

Estas palavras acompanhadas com uma palmada nas costas de camarada para camarada, deu-me o alento que precisava e senti-me confiante.

E assim dei por mim a entrar para o Noratlas que nos esperava na BA9 (base aérea nº 9) que nos levou até Malange, cidade dos Diamantes e depois transbordamos para os Pumas para rapidamente nos deixarem no objectivo.

Apesar de ir ao encontro do fogo e talvez do inferno, ao voar com o ruído ensurdecedor do helicóptero, via uma terra virgem dona de uma paisagem linda e exuberante que me lembrava o meu Verde Minho, e que esta guerra ao longo de dez anos a desvirginou deixando-a a escorrer no capim sangue virgem de homens forçados. A paisagem fresca onde em cada centímetro quadrado tinha em cima uma planta, um insecto ou um pretinho, como dizia o Tenente-Médico António Lobo Antunes que por aqui estava destacado nesta guerra que também não comprou mas que lhe tocou também em sorte e que eu vim a conhecer nesta terra perdida em África encostada ao Zaire pelas piores razões e que mais tarde veio a tornar-se dos escritores mais conhecidos tendo sido considerado um candidato ao Prémio Nobel da Literatura e sendo Em 2007 é atribuído o Prémio Camões, o mais importante galardão literário de língua portuguesa.

Senti esta terra também como um doce balanço de uma região imensa que se espraia por terra dentro. Marimba ficava no topo de um monte onde a terra azul ao

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longe parece o mar. Terra de contrastes com árvores enormes, animais de toda a espécie, mas também um corredor importante para os guerrilheiros que vinham do Zaire onde se iam abastecer de armamento, para lutarem pelo que acreditavam.

Como as forças Pára-quedistas, estavam sedeadas em Luanda, sempre que se deslocavam para efectuarem operações de combate, para alem do apoio da Força Aérea, socorriam-se sempre dos quartéis do exército que soterrados nos locais mais inóspitos por mata dentro, nos davam abrigo, banho e por vezes uma refeição quente, no regresso das saídas para o mato e para invariavelmente o encontro com o IN.

Mal se encontrava tropa amiga no interior de Angola soterrados em quartéis e cercados pelo arame farpado, vinha sempre a pergunta sacramental, onde todos buscavam todos na esperança de encontrarem algum patrício por estes Cus de Judas, mais tarde imortalizado em livro por Lobo Antunes, que já se lançava na escrita nos seus tempos livres entre mortos e doentes desta guerra maldita onde tudo faltava nestes quartéis por terra dentro.

“- Esta aqui alguém de Bragança” – dizia um tropa residente e escanzelado que nem parecia transmontano.

Que raio, era como se estivéssemos do outro lado da vida, como mortos vivos que se encontravam no alem desejosos de conhecer alguém que connosco viveu a vida terrena.

“- Está aqui alguém de Viana” – ouviu-se do outro lado e logo o coração aterrou numa savana da saudade, como a querer sorver aquele delicioso momento de alguém da minha terra estar nos confins, perdido nada guerra como eu.

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Operação de resgate

Que o homem (Adão) foi criado por Deus à Sua imagem e semelhança a partir do barro, e foi expulso do Paraíso como consequência do pecado original depois de adquirir consciência do bem e do mal, isso, toda a gente sabe. Como se o homem junto com a mulher fossem a origem do mal. Nada mais injusto sabendo que os dois são a geração do amor e da paz, são os homens na sua voracidade e instinto predador que destrói tudo à sua passagem quando estão imbuídos pela ganância e poder do dinheiro. O poder como a capacidade de impor algo sem alternativa para a desobediência. O poder dos mais fortes, dos mais ricos. Nenhum fragmento bíblico traz esclarecimentos que pusessem fim à essa que é uma das maiores diatribes cristãs.

Bem insistia a D. Miguta minha catequista na Igreja Matriz, que com o Padre Constantino liderava a igreja e educava com pulso firme os meninos e as meninas na religião cristã, que nós rapazes da rua, já não íamos muitos em toadas que não tivessem a ver com o que a vida de pé descalço nos ensinava

Que mal fiz eu a Deus para vir parar no meio desta guerra que já durava à uma década? Será que vou ter que culpar o Adão ou Eva por terem comido o fruto proibido. Até que surge no meio da maralha um militar, sinalizando com o braço bem levantado gritando:

“- Sou eu de Viana”. Respondeu com evidente e incontida alegria. Um militar bonacheirão do exército,

É neste fim do mundo, que venho encontrar o amigo Viegas. O amigo pescador e parceiro de muitas tardes a jogar futebol amador nos Cabeços. Momentos bem passados naquelas escarpas viradas ao Atlântico. Trata-se de uma zona onde parece que escoam pedregulhos pelo monte de Santa Luzia abaixo. Degradada onde ruas são autênticos labirintos num sobe e desce torneando cabeços de pedra, daí o nome Cabeços, deficientemente infra-estruturada, onde as casas nasceram como cogumelos sem regras como procurando o aconchego em cada pedra, com deficientes condições de habitabilidade.

Até meus olhos ficaram ligeiramente cacimbados neste reencontro que a guerra veio apadrinhar na Zona Militar Norte. No fim desta Operação militar que nos estava destinada, então sim, teria tempo para confraternizar com o amigo Viegas e beber umas cervejolas à maneira.

Passados esses momentos, foi só o tempo de irmos reabastecer os cantis com água e pouco mais, pois a ração de combate, já a trazíamos de Luanda e não sabendo o que nos esperava, nem nos atreveríamos a tocar-lhe por muita larica que assolasse os estômagos, já habituados a este tipo de privações.

Nada foi retirado do corpo para descansar um pouco, nem mochila, nem o armamento que nos inundava o corpo que para alem da Armalite também conhecido como AR-10 e que tiveram um intenso serviço em combate, equipando exclusivamente os Pára-quedistas empenhados na Guerra do Ultramar, em Angola, Guiné e Moçambique. Depressa ganhou uma reputação de precisão e fiabilidade, apesar das

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más condições a que estavam sujeita em África. Era a minha menina que nunca abandonava e nunca me traiu. Aconchegamos bem as granadas ao cinturão, os seis carregadores à perna e fomos atestar os cantis.

“-Rápido, caralho não temos tempo a perder, dez minutos para encherem os cantis e esticarem as pernas.” Gritou o tenente Gonçalves que comandava este reduzido grupo de combatentes.

O Alouette III, equipado com um canhão lateral de calibre 20 mm, que vomita munições de 20mm por 136mm, designado por heli-canhão, ali estava pronto a levantar novamente. O cenário de guerra era evidente, acabaram-se os treinos e tudo agora era a sério. Os Pumas que nos iriam transportar para o cerne da guerra, para o combate estavam a ser abastecidos dentro do quartel onde estavam alojados uma companhia do exército para manter segurança às populações e proteger este corredor vital para o abastecimento ao IN, vindo do Congo. Numa enorme nuvem de pó cor de tijolo e ali estava o enorme passaporte para a batalha que só precisava de alguns minutos para se reabastecer, os pilotos esticarem as pernas, acertarem as agulhas com o nosso tenente todos aninhados com os mapas mal desembrulhados no chão.

Estávamos numa zona onde o contacto com o IN acontecia com frequência. O quartel era relativamente perto de uma fronteira hostil e importante corredor de infiltração dos “turras”. Era para aqui que tinham sido desterrados, deserdados, mal preparados e deficientemente apoiados estes militares do exército. O que não sabíamos, e só nos foi comunicado já no local, num rápido briefing, é que um pelotão do exército estava incomunicável na mata há várias horas e alguém com o ouvido mais apurado, disse ter sentido uns rebentamentos para os lados onde o pessoal tinha partido numa operação de rotina pois nas últimas semanas vivia-se numa aparente acalmia. Se dentro dos próximos minutos, não acontecesse o contacto via rádio, o que era uma operação com objectivos já definidos ia-se transformar numa operação de alto risco e que consistia tentar encontrar os desaparecidos pelas coordenadas que dispúnhamos o que era muito pouco, visto que iríamos correr sérios riscos de ser alvejados por fogo inimigo ou provavelmente por fogo amigo.

O nosso grupo já estava preparado e á espera de ordens para embarcar dentro de momentos a bordo dessas máquinas de guerra que são os Pumas

O Vasques, o mesmo que uns dias antes tinha a responsabilidade de me “guardar” quando fui castigado com 15 dias de detenção, era ele que empunhava a metralhadora, a calma em pessoa, apesar de ir na linha da frente e correr mais riscos, ia estar sempre muito perto da testa da coluna em apoio directo aos homens da frente. Dentro de poucos minutos todos se iam confundir com a mata onde os guerrilheiros do MPLA, se sentiam como peixe na água, conhecendo como a palma das mãos cada picada, cada riacho e cada morro.

Era o último preparativo. Verificar muito bem se os carregadores estavam bem aconchegados e protegidos, se as granadas estavam bem presas à cintura, se a mochila namorava bem as costas, pois a jornada ia ser dura e bastante exigente.

O 1º sargento Maia Nunes, depois de nos explicar rapidamente os objectivos para a operação, gritou.

“- Tudo em ordem rapaziada?”

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E de seguida levantou o polegar para o tenente Gonçalves, dizendo que estava todo pronto para avançar.

Os pilotos tomaram o seu lugar, as pás do helicóptero de forma malandra e preguiçosa começaram a rodar e em poucos segundos já atingiam a sua rotação adequada para levantar voo, recebendo polegar levantado do co-piloto que nos esperava nas portas escancaradas e, um a um de cabeça baixa fomos correndo para dentro.

Já tinha subido bastantes vezes aqueles últimos degraus, mas desta vez as pernas tremeram-me, tive que cerrar os dentes e aferrolhar as mãos na arma que empunhava, como se estivesse a pedir apoio e solidariedade, como ela me ouvisse, como ela sentisse que o meu coração estava louco, querendo saltar para fora da carcaça, como se ela fosse a minha mãe a quem eu pedia protecção.

Senti na companheira naqueles longuíssimos segundos toda a feminilidade, mas também a sua força e bravura. Uma verdadeira mãe coragem.

Nesta guerra de guerrilha, onde só o mato, as condições hostis e as populações viviam à volta dos quartéis do exército, nunca se sabia ao certo quem estava do lado de lá e do lado de cá, os guerrilheiros confundiam-se com a população, tirando daí partido, para melhor conhecerem os hábitos e movimentações da tropa portuguesa.

O inimigo está atento por todo o lado, mantém os seus homens nos locais estratégicos. Nas próprias sanzalas há nativos que informa, por meio de batuques e outros sinais, da nossa passagem e do rumo que tomamos.

Por questões de segurança é sempre por norma no local e em poucos minutos que somos informados dos objectivos com mais pormenor.

Mas desta vez não havia muito a dizer, ou não nos quiserem dizer.Só sabia que íamos ser largados no topo de algum morro, na zona onde

presumivelmente os camaradas do exército estavam ou estiveram a operar. A partir daí tudo poderia acontecer, inclusive, fogo amigo de qualquer das partes. Não era nada para que não estivéssemos treinados, mas em situação real, tudo se transforma e mais que nunca tínhamos que apelar à plena concentração e sempre em alerta máxima.

Via-se ao longe o heli-canhão já a sobrevoar, um morro não muito elevado, o que aumentava os níveis de perigo em sermos surpreendidos ou mesmo fustigados. Mas… pilotos experientes apesar de muitos jovens, era essa juventude irreverente que os fazia ir á luta uma e outra vez sempre que necessário nunca se furtando e exporem-se ao perigo sempre iminente. Sabiam o que faziam e as largadas eram sempre feitas em perfeita segurança.

Enquanto o heli-canhão sobrevoava as redondezas zelando pela nossa segurança, o Puma baixou, fomos largados, e em poucos segundos já estávamos a tomar contacto com o capim não muito alto, nem espesso. Sem nada combinado, era o instinto de defesa e o intenso treino que nos levou um a um corrermos de imediato e formando um circulo suficientemente afastados uns do outros mas também sem nunca perdermos o contacto visual entre nós.

Passados poucos minutos, já não se ouvia o ruído característico dos helis, estavam de regresso à base, durante uns minutos ali estivemos de sentidos bem alertas, tentando vislumbrar algo de anormal enquanto no centro se reuniam o Tenente

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Gonçalves e Sargento Maia Nunes com um mapa espalhado no capim e falavam em voz muito baixa apontando e fazendo alguns gestos com as mãos como a quererem falar o menos possível, mas era sabido que íamos percorrer o mesmo trajecto que estava destinado aos “desaparecidos”.

E eu ali, apesar de quase com ano e meio de vida militar e bem treinado, era um maçarico no seu primeiro contacto com a guerra de guerrilha que polvilhava com sangue, suor e minas estas terras de África onde a presença dos portugueses estava a ser combatida a ferro e fogo.

Passado uns momentos é chamado ao centro o 1º Cabo Pára-Quedista Caria, onde lhe és explicado o rumo e o objectivo, pois seria ele a encabeçar a coluna que por morro abaixo se ia embrenhar na mata não muito densa, mas mesmo assim sempre perigosa e traiçoeira.

Com o Caria na testa da coluna, aqui ninguém usa galões ou divisas sendo impossível alguém do exterior distinguir quem comanda quem, aqui mais que nunca somos todos iguais, somos os Irmãos de Marte, irmãos de guerra. Mas apesar disso a cadeia de comando funcionava na perfeição. Uma ordem do Tenente, ou do camarada mais velho ainda que soldado, tinha o mesmo valor e era aceita de imediato sem pestanejar.

Logo de seguida seguia o forcado Vasques, o homem da metralhadora, com barba até aos olhos, era o único a quem era permitido usar patilhas tão compridas, tinha uma queixada bem marcada que exprimia toda a sua voracidade animal e cobiça. Com uns olhos bem negros que se transformavam, em situações limite, frios e sem sentimentos, sempre semi-cerrados, à espreita e com uma relação zangada com a parte inferior do rosto a indicar astúcia, avidez e egoísmo. Era o inverso do 1º Cabo Caria, com a cabeça enterrada nos ombros e igualmente barbudo e de tês bem morena, mas com uns olhos vivos e amigos com uma relação íntima com o poder do pensamento e da bondade e aliando-se sempre com um sorriso involuntário nos lábios.

De metralhadora em punho seguia solidariamente o Cabo Caria. Desceu o morro sempre ligeiramente, agachado, e fugindo de uma sempre previsível linha de fogo. Embrenhamo-nos na mata e com quase total ausência de ruído. Ninguém podia tossir, ninguém podia falar e a progressão era feita de forma vagarosa, mas segura, evitando sempre os trilhos e procurando sempre os caminhos mais agrestes; parecíamos corcundas errantes e sorumbáticos.

Era sabido por todos os pára-quedistas que o trajecto mais fácil e limpo era de igual modo o caminho mais fácil para sermos logo detectados pelo inimigo ao rebentamento de uma mina. Era sabido também de sobejo os estragos que faria no desgraçado que a pisasse; Além de que também iria colocar toda a gente em perigo eminente de sermos fustigados por rajadas de morte, de quem estaria sempre à espreita dessa “aselhice”.

As minas anti-pessoais são para isso mesmo: ferir e mutilar, não matar. O rebentamento de uma mina, envolver-nos-ia a todos quer física, quer psicologicamente. Seria necessário tratar das vítimas, ver sofrer camaradas nossos e pouco podermos fazer. Seria necessário preparar a evacuação, o que não seria tarefa fácil, quando

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sitiados numa mata densa, onde o céu é substituído pelas copas das árvores entrelaçadas. Árvores amigas e traiçoeiras.

Todos conhecemos a árvore: de abrigo, da chuva, do sol, do vento, das sombras. A árvore oxigénio, a árvore paisagem, a árvore de fruto, da madeira ou da rolha de cortiça. Mas aqui, sob as copas frondosas a mente reproduz florestas inundadas de bestas imaginárias. Animais selvagens reais pululam por todo o lado. Esta floresta tropical é também local de armadilhas e pilhagens por parte de ladrões e salteadores, mas também de guerra sangrenta… esta guerra traiçoeira, esta guerra de guerrilha.

Caminhamos determinados sem interrupção várias horas, sem uma palavra, sem uma paragem, sem um queixume. As botas pesavam. Já as sentira encharcadas pela travessia de um riacho e agora sentia-as novamente ressequidas, pelo calor que do solo emanava. Doíam-me os calcanhares e os ombros. Subimos e descemos uns quantos morros e o raio da mochila já me dilacerava as costas; tudo me pesava e incomodava. A nossa sorte foi que não tivemos, nenhum contacto com os “Turras”. Era o enorme cansaço a sede e o stress que nos iam corroendo…. Em determinado momento as árvores tornaram-se menos densas e o ondular do capim surgiu como por encanto no horizonte.

Foi nesta raia que a ordem veio para parar e a ordem gestual para formarmos em círculo. Com os graduados no seu interior, procurámos o conforto de uma árvore amiga, para descansarmos as costas e comer alguma coisa. Equipas de quatro homens, iam-se revezando para manter sempre uma sentinela em estado de alerta.

Apesar do cansaço evidente em todos nós, apesar de todos abrirmos as mochilas e retirarmos algumas conservas, abri-las, beber com calma a água do cantil de alumínio… Não se conseguia perscrutar o mínimo barulho que destoasse do silêncio com que a mata nos envolvia.

Extraordinário! Como estávamos tão bem preparados! Eu tinha aprendido muito com os mais velhos. Até nos mais ínfimos e desprezíveis pormenores, também aí nos destacávamos das outras forças militares neste teatro de operações. Quando se levantassem ferros, nada nem ninguém poderia testemunhar que estivera ali, duas dezenas de homens fortemente armados, emboscados e a tomar a sua refeição. Não poderia ficar quaisquer restos ou rastos de presença humana.

É uma prerrogativa dos que regressarem vivos e de mente escorreita, contar a história dos que tombaram, dos deserdados da vida em prol da pátria. Dei-me a olhar para os meus camaradas neste baptismo na guerra e pensar. - Será que iremos voltar todos? Será que ainda vamos a tempo de encontrar ou resgatar os camaradas do exército?

Tinha comentado com uns amigos, na caserna, antes desta operação, que um dia, se tivesse talento e arte, ainda iria escrever para deixar aos meus netos estas mutações. Sem omitir nomes nem factos, salvo se para preservar algo mais íntimo de cada um. Poria o pudor de lado porque eles, éramos todos nós, que um dia caminhámos pela picada fora, à frente ou a trás de alguém, como se fossemos apenas uma farda sem ninguém dentro, com o único intento de dar mais passos para a frente que para trás.

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Certo é que muitos de nós, nunca passaram de corpos desalmados que nunca se consumiram com nada, que nunca tiveram dúvidas. E saíram sempre incólumes de todas as picadas da vida, sem questionarem nada, sem sofrerem com nada, como se a única função neste mundo fosse ultrapassar todas as provações e todas as humilhações. Agora eis-nos na guerra, perseguindo e matando iguais, não para salvar a pele. Não foi para isso que nos prepararam. Olhava tentando ver-me naqueles vultos cansados dos meus companheiros acantonadamente fundidos na vegetação e não me reconhecia naqueles olhares alongados, crispados, inquietos e atentos que bisbilhotavam o mais pequeno movimento ou barulho.

Quase sem fazer barulho se aproximou o Cabo Oliveira, também ele combatente experimentado, era um homem esguio e um falso franzino, quando na verdade era forte e musculoso. Era frequente vê-lo numa busca incessante nos exercícios de fortalecimento muscular para a melhoria da sua auto-imagem.

Veio dizer-nos que no sentido da chana ia sair uma equipa de pisteiros para fazer um reconhecimento à zona e tentar obter respostas. A chana à nossa frente é um mar de capim que lhe chega à altura do peito. Mas é sabido que onde finda a chana haverá árvores e sombra. No fundo da chana há sempre árvores, bem como à direita ou à esquerda ou atrás.

“- Portanto rapaziada olhar bem atento pois poderemos ter surpresas.” - Sussurrou o cabo Oliveira.

“- Vamos tentar descobrir pistas e indícios que nos conduziam à descoberta de passagens do IN ou mesmo dos nossos camaradas do exército.”

Regressaram pouco tempo depois com muitas certezas e outras tantas dúvidas.Os indícios e pegadas tudo apontavam que por ali tinha passado gente. Tropas ou guerrilheiros ou mesmo ambos, pois as pegadas eram de pés descalços mas também de botas militares, e a única certeza era que por ali passaram tropas nossas ou deles.

“- Ou de ambas. Tenho um pressentimento que o pessoal do exército foi seguido e houve problemas.” – Adiantou o Tenente.

“- Oliveira, vamos estar mais atentos e tentar descobrir mais pormenores.” – Ordenou olhando para todos os que o rodeavam.

Levantámos ferro e pusemo-nos a caminho em bicha pirilau, bem distantes uns dos outros mas sempre com o camarada à vista.

Já deixáramos para trás uma longa extensão do terreno, coberta apenas por capim e o sol abrasador fora-nos moendo e secando as entranhas.

É tão bom o sol quando nos indica o caminho e nos reaquece do frio da noite, quando nos acaricia a cara e a alma. Mas quando essa carícia se torna incómoda e mais tarde torturante, deixa de ser bendita e passa a ser amaldiçoada.

A pequena vegetação estava mais levantada nas pegadas de botas do que nas dos pés descalços o que revelava claramente que as primeiras eram mas antigas ainda que entre elas mediasse um curto espaço de tempo.

“- Os Turras seguiram o nosso pessoal e não me cheira a boa coisa.” – Dizia o Tenente

Pela sua experiência e excelência como combatente, o Tenente, como sempre, tinha razão.

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Por ali tinha passado tropa portuguesa e pouco tempo depois guerrilheiros no seu encalço, o que vinha dar razão à sua tese, a qual temíamos.

Não era tempo para nos preocuparmos com o cansaço, com a sede e com as privações, apesar de sofrermos de tudo isto, as palavras do Tenente trouxeram-nos mais fôlego.

Umas horas depois de ser trilhado muito terreno traiçoeiro e no preciso momento em que as pegados se separam, uns para um lado e outros para outro.

“- Os filhos da puta vão emboscar o pessoal do exército e por isso atalharam picada.” - Garantia o cabo Oliveira em surdina mas perfeitamente audível fazendo sinal para parar.

O tenente que seguia logo atrás da HK do Vasques, aproximou-se rapidamente perguntando:

“- Que se passa Oliveira? “- Os tipos separaram-se e vão se emboscar para a apanhar o pelotão do

exército com “as calças na mão”.“- Se é que já não o fizeram.” Retorquiu o Vasques.“- Nada disso, pá.” – Contesta o Tenente“- Não levam assim tanto tempo de avanço e se houvesse borrasca, já tínhamos

ouvido. Puxa do mapa, estende-o no chão, tentando perscrutar no papel algo que o

ajudasse a tomar uma decisão no sentido do caminho a seguir.Neste preciso momento ouve-se uma morteirada e logo depois outra e outra.O meu baptismo de fogo, estava pronto e quentinho a ser servido, pensei eu.

Para meu espanto ninguém se atirou para o chão tentando resguardar-se e não seria eu, o maçarico, que o iria fazer. Afinal ninguém o fez porque a experiencia dizia-lhes que o fogo de morteiro não era dirigido a nós… mas eu sentia que aquele fogo não era assim tão distante do local onde nos encontrávamos!

“- Vamos tentar ver o que se passa de lá de cima”, e ao pronunciar estas palavras, o Tenente apontava simultaneamente para um morro que sobranceiro se apresentava do nosso lado direito.

Outras morteiradas zumbiram à procura de um destino e temeu-se que esse fosse em direcção aos nossos amigos do exército e eu… maçarico, ali estava sem saber muito bem o que fazer, mas as tropas pára-quedistas, tinham uma vantagem sobre todos os outros ramos das forças armadas que ali combatiam. As rendições eram individuais, o que permitia sempre, em cada operação, uma mescla de experiências em combatentes no fim de cada comissão de serviço e alguns como eu que tinham acabado de desembarcar nesta guerra, aprendiam muito com aqueles que por lá passaram por mais que uma vez.

Jamais aconteceria estar um grupo de “Páras” sozinho, inexperientes e lançados às feras como acontecia no exército, onde as companhias eram rendidas por outras companhias acabadinhas de chegar da metrópole com 4 ou 5 meses de preparação.

Só tenho que estar atento, aprender depressa e seguir todas as orientações dos mais velhos, pensava eu no meio daquele inferno.

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Ouviram-se ao longe umas rajadas que não me pareceram ser de armas nossas…

“- É a costureirinha a dar fogo, filhos da puta” – disse o Vasques que também ele utilizava uma metralhadora, e ele sabia do que falava.

A tal costureirinha não era senão uma arma de fabrico soviético de seu nome: A PPSh (costureirinha). Não era somente melhor do ponto de vista de fabricação, a sua superioridade também se alargava a outras áreas. Tinha uma taxa fenomenal de tiro, por volta de 900 TPM (tiros por minuto), assim como uma reputação pela sua durabilidade e necessidade de pouca manutenção.

Utilizada pelo exército soviético na segunda grande guerra, sobreviveu a esta. Quer a sua facilidade de construção, quer a grande quantidade de unidades disponíveis, fizeram com que servisse para que a URSS apoiasse muitos movimentos de guerrilheiros, armando-os desta forma.De repente, um caudal de fogo fez com que todos nos atirássemos por terra, procurando abrigarmo-nos daquela avalanche mortífera…

Após breves segundos, demos conta que não era dirigido a nós o fogo, mas sim, para mais à frente uma centena de metros. Tudo a rebentar na zona de morte e as granadas a explodirem fogachadas de todo o tipo, a semearam a morte e a destruição entre os jovens do exército, tínhamos a certeza…

Agora, já tínhamos a convicção de que muitos dos nossos camaradas tinham sido disseminados pelos turras, pela resposta tímida ao fogo destes. Algo se passava de muito grave. Só tínhamos que apressar o passo, não esperar mais e ir ao seu encalço, revelarmos a nossa presença sem medo, arriscando ainda mais do que era apanágio das nossas tropas, mas a situação dramática assim o exigia, e assim, corremos no encalço deles.

À cabeça, porque a situação assim o exigia, ia o comandante de pelotão. Até surpreendia ver toda aquela energia toda, misto de raiva, lucidez e determinação com que estava impregnado e com ela contagiava todo o grupo. Passado um quarto de hora, ali estávamos nós a cheirar a pólvora que esvoaçava no ar.

A nossa coluna parou e num ápice vislumbrámos de que lados estavam os turras. O tenente foi rápido na decisão, chamou para junto de si os restantes graduados e disse-lhes:

“- Meus senhores, não há por onde escolhermos, vamo-nos a eles e rápido. O Maia Nunes, vai por ali e aproxima-se o mais possível, pois será por ali que tentarão fugir os “pulhas” mas…”- dizia o tenente.

“- Ninguém dispara antes de mim, suceda o que suceder. A minha equipa vai pelo outro lado, junto aquelas árvores, e é dali que faremos o assalto. Quero determinação e muito barulho no ataque a esses cabrões”.

Senti, que fora naquele momento, que a guerra tinha verdadeiramente começado.

A equipa do Tenente, num estardalhaço mortífero, onde os gritos dos seus homens se misturavam ao matraquear ensurdecedor das armas automáticas, numa correria desenfreada, de peito aberto, e coração generoso, acorreram em auxílio dos

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camaradas, varrendo toda aquela zona, num relance, não dando tempo a que o inimigo sequer respirasse… tal a surpresa do nosso ataque!Tudo deixara de lhes importar…. Fugiam como ratos, abandonado tudo incluindo as armas. O que lhes ia valendo, era a camuflagem das árvores, o ondear dos pequenos arbustos, o serpentear da pequena vegetação, por onde tentavam desaparecer numa corria desenfreada.

O cheiro a pólvora queimada infestava o ar, e aos turras eram metralhados sem dó, nem piedade. Um inferno sangrento desabava sobre eles. Ouviam-se gritos lancinantes de mãos dadas com a morte …. Desta forma, aniquilámos quase por completo quem tinha subjugado à dor e à morte os nossos camaradas do exército.

Éramos os « IRMÃOS DE MARTE» no seu estado mais primário, mais fervente de raiva, com fúria de vingança, em defesa das nossas tropas, abatendo-se sobre aqueles pobres diabos que ao fim e ao cabo, não passavam de maltrapilhos, armados para combater as nossas tropas.

Do nosso lado e todos os que fugiram para o lado do capim, poucos conseguiram passar ilesos. Tudo fervilhava de agitação. Desde que emergisse uma cabeça, ou algo que os identificasse, eram logo ouvidos mais uns disparos, era uma questão de tempo, talvez mais uns minutos para tudo aquilo terminar.

Mais uns quantos disparos aos turras em fuga e tudo se acalmou. Meia dúzia de negros, tiveram o bem senso de levantarem os braços abdicando da morte certa, outros nem essa hipótese tiveram, morreram ou ficaram estropiados às primeiras rajadas.

Por estranho que pareça, não tive medo, não enterrei a cabeça no chão e não fora por valentia … pois nem para isso tivera tempo. Fiquei quase incapacitado para o mais elementar acto de protecção ou auto-defesa. Pouco daquilo me parecia uma guerra, tal a disparidade no confronto entre nós e eles. Não ripostaram. Ou ficaram ali mortos, totalmente aniquilados ou fugiram como ratos, das balas que os perseguiam sem dó nem piedade.

Por mais hediondo que seja dizer isto, parecia-me que tinha acabado de participar e assistir a uma "caçada". A "presa" era o homem, não um coelho selvagem ou um javali, contudo, nem os processos utilizados nem o resultado final tinham sido diferentes.

Não era o mesmo Zé das Almas, como era conhecido na meninice, por morar e brincar no Largo das Almas onde estava edificada a 1ª igreja matriz de Viana do Castelo. Sentia-me um desalmado, não me sentia herói… não me sentia vilão… era alguém…e ninguém.

Senti-me sem afectos. Incapaz de poupar o semelhante que ali à minha frente via querer fugir da morte. Não me sentia nervoso, nem tão pouco com remorsos ou com vergonha por não ter compaixão, por lhes tirar a alma e a vida…

“- Que raio é isto caramba? Puta de guerra esta que me faz ficar assim?”Tal como num incêndio, é necessário, quanto antes fazer o rescaldo. Limpar a

zona, manter a segurança no perímetro e não deixar que se reacenda. Impedir que algum daqueles seres prostrados por terra, ainda com alguma centelha de vida e sem

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nada a perder, se lembrasse, numa atitude desesperante de nos alvejar, ou seja, colocar o local em condições de segurança.

Era hora de chamar os Pumas e o heli-canhão. Também, uma vez criadas as condições de segurança, ir ter com o pessoal do exército que estava acantonado ali bem perto e tinha estado debaixo de fogo intenso. Trazê-los para junto de nós, tratar dos feridos e evacuá-los para a base, tratar dos mortos e recuperar psicologicamente os vivos.

É nesta altura que eu “acordo” para a realidade, estava como meio narcotizado e desumanizado.

O tenente pega na equipa do Maia Nunes sempre com o Vasques 1à ilharga e onde eu me incluía e partimos ao encontro dos camaradas do exército.

Extraordinário este homem! Um autêntico comandante de homens, de barba rija, que se posicionava sempre na primeira linha, dando sempre o exemplo, nunca se resguardando, pondo os soldados à sua frente. Falo do Tenente Gonçalves, ruivo e alto e gingão na forma de andar, um minhoto como eu, mas de Braga, cidade milenar, cidade de arcebispos, de Igrejas e de Sé, de cónegos, monsenhores e cursos de cristandade.

Fomos ao encontro deles. Um grupo pequeno de militares do exército esperava-nos, donde se destacava, estando uns passos à frente um militar, provavelmente o mais graduado, dirigiu-se a nós, com os olhos empedernidos de medo e dor, mas o seu rosto denotava um alívio por se sentir a salvo com os seus homens.

“- Foi uma desgraça meu comandante, sou o furriel miliciano B….. e estou desolado” – Choramingou o militar.

“- Qual comandante qual carapuça, aqui somos ambos soldados. A guerra é isto. Venha cá, quero falar consigo.” E levou-o, tirando-o das vistas dos seus soldados, levando-o para as nossas costas.

“- Ouve lá minha menina.” – E deu-lhe um chapo com raiva, como quem dá a um filho, mas que não deixa de gostar dele…

“- Um homem não chora e muito menos quando está numa situação de comando.” – Enquanto o ajudava a levantar-se tal a violência da chapada, continuou…

“- Entendeu nosso furriel? Aqui somos todos soldados e não o quero mais ver nesse estado e muito menos na frente dos seus homens.” Disse-o com rispidez, como era seu timbre quando estava zangado, mas era um homem bom e todos gostávamos dele.”

“- Agora vamos ver o que se passa, pois já mandei vir apoio aéreo para se evacuar quem deve ser evacuado.”

“- Enquanto isso que avance o Chaveco com a tralha para tratar destes amigos.”

1 Foi no dia 23 de Maio de 2008 (dia dos Pára-quedistas portugueses) que em Tancos, soube da triste notícia. O meu camarada Vasques tinha sucumbido a uma overdose. A guerra não o derrotou, Foi a maldita droga onde ele afogava os traumas da guerra, que o levou

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Avançou o enfermeiro Chaveco, e avançámos todos, para um tufo de árvores onde acantonadamente encontrámos o pessoal. Um horror o que se deparava aos nossos olhos: cinco mortos e entre eles o enfermeiro e o Alferes miliciano que comandava este pelotão. Percebeu-se nesse instante o estado lastimoso do Furriel. Tinha sido levado a comandar sem estrutura psicológica suficiente e adequada, e por isso, se fora abaixo. Havia meia dúzia de feridos, um deles em estado muito grave.

Enquanto se tentava amenizar o sofrimento de outros feridos menos graves e onde, o nosso enfermeiro, O Cigano Chaveco desunhou-se para acorrer ao mais grave, livrando-o da morte. Com garrotes, soros e injecções tentava impedir que se esvaísse em sangue, uma vez que tinha uma perna praticamente decepada, mais precisamente, logo a seguir ao cano da bota, onde o sangue jorrava aos borbotões. Tinha que ser estancado rapidamente. As peles apresentavam-se em fiapos, músculos, veias e artérias como se tivessem sido serrilhados. Sangue e mais sangue…dor e mais dor…

Foi preciso sinalizar um local ali bem perto para os helicópteros aterrarem em segurança. À catanada desbastaram-se algumas árvores e montou-se um perímetro de segurança de forma a que pudéssemos evacuar todos aqueles feridos, levar os mortos, e tratar dos vivos que viveram este imenso trauma de guerra onde viram os companheiros caírem para sempre, outros serem esventrados por balas assassinas.

Vieram mais enfermeiros e mais material nos Pumas. Era pousar, carregar e zarpar dali rapidamente. Via-se o heli-canhão no ar a sobrevoar a zona e volta e meia, saíam dali disparos para a mata, sinal de que ainda andavam guerrilheiros meio perdidos no capim e havia que lhes dar caça.

Nós ainda íamos bater melhor a zona juntamente com alguns militares do exército, dos que restavam em condições psicológicas para nos acompanhar, tentar limpá-la na sua totalidade para maior tranquilidade dos civis e da tropa aquartelada nela. Para o fim do dia, seríamos evacuados e ainda iríamos dormir a Marimba.

Infelizmente, não havia ambiente para confraternizar com o meu amigo e patrício Viegas.

O quartel estava em choque, pela forma como aqueles bravos rapazes tinham sido “apanhados” nesta guerra e pela forma inglória como foram chacinados nesta mortífera operação… pagaram com a própria vida. Chamo-lhes, bravos rapazes, pois é mesmo de bravura que se trata. Foram despachados para a guerra, impreparados, para serem plantados em quartéis no meio do mato, longe da civilização e rodeados por populações nativas, que embora aparentemente não hostis, abrigavam e protegiam os guerrilheiros na sua luta de libertação.

Se já o pensava, confirmei-o quando a tropa do exército nos acompanhou na perseguição aos guerrilheiros. Estes, por incrível que pareça, acabaram por se esvaecer na savana, apesar de ser uma zona plana cuja vegetação predominante é o

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capim, salpicado por algumas árvores dispersas e arbustos isolados ou em pequenos grupos.

Não respeitavam as mais elementares regras de progressão. Neste tipo de guerra o inimigo pode surgir a cada momento dos locais mais inóspitos. Atrás de uma árvore, no capim… a uma dezena de metros, poderíamos ser emboscados, pois estávamos no terreno que lhes era familiar.

Encontrar uma mina numa picada era o «Pai-Nosso» de cada dia, e tínhamos que as evitar a todo o custo.

Um ruído estranho propagar-se-ia por quilómetros e isso levaria a que fôssemos automaticamente detectados e emboscados. Um cigarro aceso de noite, era como um farol que não lançava a luz sobre si mesmo, mas sim, sobre a imensidão, que iluminaria o caminho e os levaria até nós.

Tudo isso era visível no comportamento daqueles militares. Para eles o melhor que lhes pode acontecer foi termos progredido em conjunto, naquelas poucas horas, e constatarem a forma como estávamos habituados e superiormente treinados para nunca pormos em causa a operação e muito menos a vida de cada um.

No quartel onde chegámos nos Pumas à noitinha, o médico e o pessoal de enfermagem, não tiveram mãos a medir. Os mortos, foram directamente para Luanda, para serem “empacotados” e enviados às famílias juntamente com os militares que tinham a comissão de serviço de 24 meses terminada. Chegavam sempre em levas cada vez maiores, centenas e centenas de jovens, por mar e ar e regressavam quase outros tantos, vivos, estropiados ou mesmo encaixotados, sem honra e glória

Os feridos mais graves, depois dos primeiros tratamentos foram evacuados para um hospital próximo e os menos graves ficavam no quartel a recuperar e fazendo trabalhos menores

O Tenente-médico era nem mais nem menos que o hoje conhecidíssimo e reputado escritor António Lobo Antunes onde parte da sua actividade clínica foi feita na guerra.

Dizia ele mais tarde:“Quando fui para África, ainda que contasse com pouca experiência cirúrgica,

tinha de fazer amputações, tinha que fazer essas coisas tramadas que há a fazer em tempo de guerra… Então, levava o tratado de cirurgia, o furriel enfermeiro, que não podia ver sangue, ia-me lendo aquilo tudo, os procedimentos, e eu ia operando. Felizmente nunca nos morreu ninguém assim. Portanto, a minha relação com a medicina era essa."

Regressámos a Malange por estrada de terra batida, em camiões civis de caixa aberta, que funcionavam em colunas de reabastecimento das tropas portuguesas aquarteladas no mato. Eram compostas por viaturas civis, conduzidos por motoristas civis contratados pelo Exército para esse fim. Muitos camionistas foram vítimas da guerra nas picadas de Angola.

Felizmente a viagem apesar de perigosa e muito cansativa, e de termos os ossos num feixe, pois fôramos acomodados nuns bancos de madeira laterais e alguns mesmo sentados no chão, sempre aos saltos, por cada solavanco através das picadas… a saída de Marimba, correu bem e chegámos bem.

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No aeroporto de Malange, enganámos o estômago com umas conservas e umas bolachas, sentados na pista e outros num monte de pedras que por lá havia, até que embarcámos no Noratlas, nosso bem conhecido, mas desta vez… de portas fechadas sem aquele ruído ensurdecedor dos motores que abalavam o mais pintado e afoito.

E assim, regressámos ao aeroporto de Luanda, onde nos esperavam as nossas viaturas que nos transportaram para o quartel.

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As Zungueiras

“- Zééééé, ouvi o meu nome ecoar no meio do matraquear da fiação da Fábrica

de Boinas CEDEMI onde já trabalhava, vem a casa depressa que o pai está a bater na mãe….”

Eram palavras simples, inocentes mas, de revolta que brotavam dos lábios de uma criança pobre e indefesa que gritava desesperada por ajuda.

A violência contra as mulheres são geradas e promovidas pelas relações de supremacia masculina e provêm dos primórdios da humanidade, e ainda hoje se manifestando-se em certos países e sempre com roupagens diversas consoante o país onde se situa, no terceiro ou quarto mundo. É o uso de todo o tipo de burkas que proliferam em regiões de modos e costumes ancestrais, onde a mulher é escrava do homem, não tendo direitos e apenas deveres. Não pode sair à rua sem ser acompanhada por um membro masculino da família, não tem acesso à educação nem à escolha do homem que um dia será seu marido. Não tem direito a voto nem opina sobre o que quer que seja…Apenas todo o trabalho do lar lhe é permitido.

Noutros países é a trabalhadora dos campos que, com o filho às costas, labuta nas safras do nascer ao pôr-do-sol. Ao chegar a casa tem que fazer os trabalhos inerentes à vida quotidiana, enquanto o homem descansa à sombra de uma árvore. A mulher é vendida e a riqueza do homem é contada pelo número de mulheres que possui e que trabalham para ele…

Ou como por cá, que a mulher trabalha nos campos de sol a sol e depois… ainda labuta em casa a tratar da família, onde consome o resto do tempo, não lhe sobrando algum para seu próprio proveito.

Estes pensamentos vieram-me à memória quando deparei com um negro que insultava a mulher próximo do Hospital Maria Pia em Luanda.

Ao ser espectador involuntário de tal cena peguei no negro por um braço e, de forma brusca, dando-lhe sinal claro de autoridade ameacei-o, dizendo-lhe que o prendia, se não parasse imediatamente com as agressões à pobre mulher zungueira, apesar de não ter poder para tanto.

A mulher estava sentada no chão a tentar vender alguma fruta à porta do hospital. Eu estava uniformizado com a imponente farda azul com o brevete e crachá e outros adereços obrigatórios, onde a boina verde impunha respeito e admiração entre os civis. Quando o ameacei, só isso fez com que o negro parasse imediatamente e não concretizasse os seus intentos, que eram mesmo surrar a pobre mulher, Acabei por comprar alguma fruta para ajudar a coitada mulher pois não necessitava dela uma vez que não iria visitar qualquer doente. Encontrava-me naquela localidade porque ia visitar um tio da minha namorada que era enfermeiro mas, que eu nem conhecia.

Estando neste país de África desenraizado da família e dos amigos de infância, um familiar distante que pouco ou nada me diria numa situação normal, aqui tinha um

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outro valor. Tudo aqui era diferente. Tinha necessidade de o procurar, mesmo sem saber quem era. Apenas me fora referido que coxeava de forma acentuada … pelo que não me seria muito difícil encontrá-lo.

Viam-se zungueiras de olhar humilde e determinado que percorriam as ruas da cidade de Luanda, fizesse sol ou chuva. Algumas carregavam os filhos às costas, ao mesmo tempo que suportavam o peso da mercadoria que vendiam: fruta doce como a fruta-pinha, a manga perfumada ou o abacate da cor da esperança. Caminhavam o dia todo, sob um sol escaldante. Era absolutamente incrível a capacidade das zungueiras em equilibrarem sobre as cabeças os balaios, os sacos, os cestos, as bacias e sacolas onde transportavam as mercadorias para vender, trazendo ainda como carregamento os filhos pequenos, que transportavam às costas suportados por panos que amarram, na frente, à altura do peito.

Desafiavam as leis da física, equilibrando-se perante vários obstáculos com que se iam deparando nas ruas e calçadas. Tudo isto me fez recordar meia dúzia de anos atrás quando, o meu irmão com dez anitos e acompanhado de um amigo foi pedir-me ajuda à fábrica, onde eu trabalhava.

“- , Zééééé, anda a casa que o pai está a bater na mãe.” Este grito de ajuda ainda hoje me martela os ouvidos e irá ecoar por toda a

minha vida, pela violência de tal apelo. Era uma criança que, desesperadamente, pedia socorro ao irmão mais velho, ainda adolescente mas já trabalhador feito homem, roubado à meninice pela necessidade de ganhar uns míseros tostões para ajudar em casa a matar a fome. Trabalhava numa fábrica, embora ainda criança, mas feito homem à pressa.

“ Anda a casa porque o pai está a bater na mãe.”Sem perda de tempo saí correndo em direcção a casa, sendo seguido pelo meu

irmão e pelo amigo de tenra idade que o acompanhava. Era Inverno e chovia bastante mas, nem isso me fez hesitar um segundo

sequer. A invernia batia-me no rosto. Soprava forte o vento na zona desprotegida do barracão dos touros, onde hoje é o parque da cidade e a praia fluvial. Chegámos a casa todos ensopados e também envergonhados pelos factos da vida com que esta nos presenteava.

Hoje é ainda uma imagem que me marca de forma indelével. Expulsar o meu próprio pai de casa, mas tive que o fazer…

Pai, não é pai, só porque verteu na companheira a sua masculinidade. O meu pai não foi o herói que eu merecia e que, qualquer filho quer ver no seu progenitor.

Esta minha passagem pelo hospital, tornou-se inesquecível pela observação do comportamento do nativo que iria sovar a mulher, e não pelo familiar da namorada com quem me encontraria e que pouco ou nada me dizia.

Dizem os entendidos que a violência não é natural. É um comportamento aprendido. Quando um menino apanha na escola de outro menino e ele em sua casa

recebe uma mensagem semelhante a esta: “- Amanhã, você vai lá e morde ou bate nele também”.

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Estamos a incutir na criança uma cultura de violência. A violência fica tão banalizada, que determinadas atitudes violentas passam a ser interiorizadas como habituais e generalizadas.

Com o acto de expulsar o meu pai, quis cortar com a violência, proteger a minha mãe e mostrar perante aquelas duas crianças a protecção que um homem deve dar a uma mulher e não deixar que tal comportamento viesse algum dia a servir de exemplo a seguir por elas as duas.

A violência doméstica contra a mulher prejudica toda a família. Sofrem os filhos, as filhas, os parentes próximos e até mesmo o autor da violência que neste caso, acabou sozinho para os lados da capital, sem amor, sem carinho, sem as mais elementares condições de uma vida justa. Paz à sua alma.

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