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Patativa do Assare O voo do centenario mestre da poesia 47 O Que é Literatura de Cordel? 06 A Criação de Brasília 34 A Arca de Noé 41 A Filosofia nos folhetos de Cordel 18

Revista Cordel

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Revista Brasileira de Literatura de Cordel - Projeto Gráfico e diagramação.

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Page 1: Revista Cordel

Patativa do AssareO voo do centenario mestre da poesia 47

O Que é Literatura de Cordel?06

A Criação de Brasília34

A Arca de Noé41

A Filosofia nos folhetos de Cordel18

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A nossa Literatura De Cordel, apelidada,Tem raiz em PortugalMas aqui foi recriada.A de lá ficou mofina,Diante da nordestinaA de lá não vale nada!

Aqui, folhetos, canções,Romances e gemedeira,ABCs, moirões, pelejas,Capa talhada em madeira,Normas rígidas, pauta vária...É uma escola literáriaDa cultura brasileira!

Desde o maior teatrólogo,Músico, pintor e escritorTodos vão beber na fonteDos versos do cantador.Se os produtos derivados São muito valorizados,A matriz tem mais valor.

Cordel não é só Folclore, Folheto e xilogravura,É Filosofia e estilo,É arte e LiteraturaÉ luta, dor e alegriaÉ a mais pura poesia...A mãe da nossa cultura!

Crispiniano NetoCordelistaE

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Uma escola literaria

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rio

06.O que é Literatura de Cordel?

38.A História da Ciência nos Versos de Gonçalo Ferreira

14.A Popu-laridade e Atualidade do Cordel

41.A Arca de Noé

30.Regras da Poética Cordeliana

28.O Brasil de Pindorama Fala Tupi Guarani

Editorial

rEvista BrasilEira dE litEratura dE CordEl

dirEtoria ExECu-tiva Editorial

Editora imEph

rEdação

Crispiniano nEto

ProjEto GráfiCo E diaGramação

mayara Carol araújo

Page 4: Revista Cordel

36.5 Séculos de Luta e Aventur, Desem-prego, Racismo e Violência

34.Criação de Brasília

18.A Filosofia nos Folhetos de Cordel

44.De Repente...

27.Soletrando

Capa

47.O Vôo de centenário mestre da Poesia

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O QUE Ée LITERATURA DE CORDEL

“Que Literatura é esta, cujos temas são aproveitados pelo cinema, pelo teatro,

pela música, televisão e até mesmo pelos poetas e escritores eruditos?O que é isto que está chamando a atenção dos professores universitários e universidades do mundo todo, sendo su-jeito de muitas teses de pós-graduação, de doutoramento e de estudos, como na França Estados Unidos, Japão, Rússia e outros países?Seria ela um traço do nordestino que desceu para o Sul do país, com os “paus-de-arara”, estendendo a sua influência cultural?Afinal, o que é Literatura de Cordel que, no Nordeste, é somente conhecida por folhetos, abecês, romances e cantorias?”MACHADO, Franklin. O que é Literatura de Cordel? / Rio de Janeiro. Editora Co-decri, 1980. P.11.

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Literatura de Cordel

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Quando Portugal colonizou o Brasil, a maioria da população portuguesa era analfabeta e as gráficas, mesmo na Europa eram de um tecnologia muito atrasa-da, pois ainda não fazia muito tempo que Gutemberg tinha in-ventado a imprensa e as máqui-nas impressoras eram extrema-mente rústicas. Não havia sequer a eletricidade para permitir a fabricação de máquinas mais modernas, como as tipográficas de alta velocidade e muito me-nos as off-sets. Imprimir um livro grande, como a Bíblia Sagrada, Os Lusíadas era uma tarefa de anos, para não demorar demais as tiragens de livros grandes não passavam de dez exem-plares. Então, uma comunicação mais rápida, uma literatura que permitisse tiragens maiores tinha que ser através de impressão de “folhas soltas” e de pequenos folhetos, os quais eram vendidos em Portugal, pendurados em cordões (cordéis) nas feiras e nas ruas mais movimentadas, através de cegos cantadores, autoriza-dos pelo Rei, como forma de gerar emprego e renda para os deficientes visuais que tinham dotes artísticos.

Trovadores, jograis, menes-tréis e cantadores tinham grande influência na difusão cultural da época, pois, sendo a população analfabeta, como já dissemos, uma literatura rimada permitia melhor compreensão e facilitava demais a memorização. Can-tadores populares eram figuras indispensáveis em todas as vilas por-tuguesas da época, animando feiras e

festas num tempo em que não havia rádio nem televisão.. Eles acompanhavam os poemas can-tados, com violas ou rabecas, o que aprenderam com os ‘medajs’ árabes que trouxeram o alaúde para a região, quando domina-ram por cerca de oito séculos, a Espanha, vizinha de Portugal e que, por um tempo foi reino unido do país que nos colonizou.

Chegando ao Brasil, os folhetos contando histórias de princesas, bruxas, príncipes valentes e princesas encantadas, monstros e sábios encontrou um povo ansioso por estes mistérios e encantos, formado dos três sangues que formam a etnia brasileira, o próprio português com toda esta carga cultural, o índio que costumava sentar ao redor da fogueira e ouvir o pajé contar histórias mirabolantes que preenchiam o imaginário de todos, com idealizações, lendas, medos, milagres e heroísmos; o negro africano, um pouco mais adiantado culturalmente que o nosso índio, também vinha de uma cultura de muita imagina-ção, lenda, temores e lutas. Es-tava formado o ambiente fértil para nascer uma nova expressão cultural.

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Os primeiros folhetosOs primeiros folhetos vieram de Portugal, nas caravelas juntos com

os colonizadores, nem sempre eram escritos em versos, mas eram a principal fonte de leitura dos primeiros séculos do Brasil. Antes de entrarem nas caravelas tinham que passar pela rigorosa cen-sura da Santa inquisição. Na Casada Torre do Tombo, em Lisboa, eram selecionados os que podiam ser lidos nas colônias e os que não podiam vir para o Brasil, Açores, Guiné, Moçambique, Algarves.

Surge a ‘Cantoria de Viola’ na Serra do Teixeira, ParaíbaNa primeira metade do século dezenove, por volta da década de

1840 surgem as primeiras cantorias de viola, organizadas, estrutura-das como um espetáculo de produção poética sob o ritmo da viola com os versos sendo feitos no calor do improviso.Era uma evolução dos aboios dos vaqueiros que fizeram a povoação dos sertões nordestinos a casco de cavalo e além de chamar e tanger o gado através do grito mágico do aboio, quando no descanso, pega-vam da viola e improvisavam versos relatando suas próprias aventuras e contando histórias do “arco da velha” que decoravam dos livrinhos que chegaram através das caravelas. A cultura que brota em torno da pecuária em todas as partes é sempre muito cantante.Os primeiros cantadores, considerados os pais da Cantoria de Viola Nordestina, são Ugolino do Sabugi, Romano do Teixeira, Silvino Pi-rauá de Lima e outros que deram forma ao espetáculo, definiram os primeiros gêneros poéticos a serem cantados, como as quadras, sextil-has, glosas, romances, etc.

Nasce a Literatura de Cordel NordestinaNo final do século XIX surgiram os primeiros folhetos impressos,

produzidos por poetas nordestinos e impressos em gráficas da região. O primeiro que se tem notícia História do Capitão do Navio, de autoria de Silvino Pirauá de Lima.

Começaram surgir as gráficas no interior do Nordeste e a litera-tura de folhetos e romances populares ganhou fôlego, formando-se uma verdadeira indústria, com tipografia dedicadas exclusivamente a publicar folhetos. Em torno destas tipografias desenvolveu-se uma rede de distribuição dos folhetos, através de “folheteiros”, que saiam Sertão a fora, de feira em feira, cantando e vendendo o produto, bem como dos cantadores repentistas que iam fazer usas cantorias e aproveita-vam para também faturar um pouco mais com a venda de folhetos que eram por eles cantados e depois vendidos, independente de serem da própria autoria ou não. Num determinado da cantoria paravam de fazer improvisos e iam cantar os versos feitos dos folhetos e romances que traziam na mala.

Fonte: Apostilha CURSO DE INICIAÇÃO À POESIA – O Universo da Literatura de Cordel, de Crispiniano Neto

O primeiro que se tem noticia Historia doCapitao do Navio, de autoria de Silvino Piraua de Lima.

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Literatura de Cordel

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Universo tematico e propostas de classificacao da Literatura de Cordel

Claro que não é fácil diz-er por que tal ou qual tema foi, ou é, escolhi-

do. Suas razões nem sempre se podem fixar em definitivo, mas sem dúvida nenhuma se pode encontrar uma relação temática com a época em que surgem as temas. De fato, mesmo os romances tradicionais, e não os fatos circunstanciais estão rela-cionados a épocas históricas, a determinado momento, tendo em vista sua manifestação. Daí a diversidade com que os temas se apresentam. De um lado, figuras humanas, como herói ou anti-herói; de outro

lado, aspectos de vivência social: religiosidade, aventu-ras, casos de amor. E também as narrativas que envolvem animais, o que representa, de certo modo, a maneira como a respectiva população consid-era o animal: ora exaltando-o, como é em grande parte, o ciclo do gado no romance nordestino, ora criando-lhe uma lenda prejudicial ao homem.

De modo geral, se pode verificar por um estudo mais aprofundado dos temas, que a elaboração dos romances, tradicionais ou modernos se prendeu sempre à necessidade

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de fixar os acontecimentos, de registrar as figu-ras que dele participam, de anotar a maneira como decorreram, enfim tudo aquilo que, sem imprensa, sem jornais, sem rádio, as gerações mais antigas tiveram necessidade de gravar e transmitir através da história popular, para fazer a sua história. Daí haver sempre, - isto sobre tudo nos romances de fundo histórico, que narram guerras ou lutas realmente acontecidas, ou fixam figuras que efetivamente viveram, - no romanceiro não apenas a notícia como também o entretenimento.

Desta maneira, podemos desde logo evidenciar a existência, no romanceiro e hoje na literatura de cordel, de dois tipos fundamen-tais da temática: os temas tradicionais, vindos através do romanceiro, conservados inicialmente na memória e hoje transmitidos pelos próprios folhetos – e aí se situam as narrativas de Carlos Magno, dos Doze Pares de França, de Oliveiros, de Joana d’Arc, de Malasartes, etc.; e os temas circunstanciais, os acontecimentos contemporâ-neos ocorridos em dado instante e que tiveram repercussão na população respectiva – são enchentes que prejudicaram populações, são crimes perpetrados, são cangaceiros famosos que invadem cidades ou praticam assassínios,

são também hoje, com a facilidade das comu-nicações, certos fatos de repercussão interna-cional. Temos assim os temas tradicionais, de um lado; e de outro lado, os fatos circunstanciais, quando a literatura de cordel se transforma em jornal escrito e falado e em crônica ou fixação dos acontecimentos.

A variedade temática: tentativa de classificação

Muitas têm sido as classificações a respeito do romanceiro em especial do português, transladado para o Brasil, e aqui sofrendo as adaptações ou reformulações que adequaram os romances ao novo ambiente. Porque é real-mente este um dos aspectos mais salientes em um romanceiro quando estudado comparativamente: as modificações que cada povo realiza no tema. E realiza dentro de sua época, do momento histórico que vive.

Desta forma muitas têm sido as tenta-tivas de dar uma classificação ao romanceiro, ora seguindo a grande temática que envolve os romances, ora tendo em consideração as características que eles apresentam. Entretanto, menores têm sido as tentativas de classificação

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" Desta forma muitas tem sido as tentativas de dar uma classificacao ao romanceiro, ora seguindo a grande tematica que envolve os romances, oratendo em consideracao as caracteristicas que eles apresentam. "

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de nossa literatura de cordel; a temática aí tem sido menos explorada no sentido de identificá-la em torno de determina-dos assuntos.

Fora do Brasil, podemos lembrar duas sugestões de classificação da literatura de cordel: a de Júlio Caro Baroja, na Espanha, e a de Robert Mandrou, na França.

No caso do Brasil, a respeito da classificação da litera-tura popular em versos, além da tentativa de Leonardo Mota, aí por 1921, em Cantadores, e possivelmente outras, podemos registrar duas mais recentes. Uma a que se deve à Casa de Rui Barbosa, feita por um grupo sob a orientação de Caval-canti Proença; foi fundamentalmente desse saudoso especial-ista o esquema inicial, que, afinal, predominou. É realmente um quadro amplo, entrando em pormenorização bastante expres-siva para um melhor conhecimento da produção de literatura de cordel.

Orígenes Lessa, partindo da observação de que a temática dos romances populares é muito variada, assinala que essa temática é riquíssima (9); contudo, para classificá-la registra uma série de temas permanentes e outros que con-sidera tipos que, em geral, passam, não se reproduzindo os folhetos.

No primeiro caso, situa os seguintes temas: O desafio, real ou imaginário: histórias tradicionais; can-

gaço; Antônio Silvino, Lampião, Maria Bonita; seca e retirantes; vaqueiros e vaquejadas; mística; histórias bíblicas; profecias; milagres; festa religiosas; beatas e santos do sertão; Padre Cícero; sobrenatural; o diabo; romances de amor, de aven-turas, trágicos; no segundo caso, incluem-se casos da época; crimes, desastre, acontecimentos policiais, revoluções; campan-has eleitorais; fatos políticos; luta ideológica (guerra da Coré-ia, Hitler, etc.); miséria do povo; eleições; Getúlio e sua morte; crítica de costumes; sátira política e social (crises, preços, falta de luz, etc.).

Outra é a que propõe Ariano Suassuna (10); é mais sintética, procura situar a sistematização da literatura de cordel em limites mais definidos a partir dos dois grandes gru-pos – o tradicional e o de “acontecido”:

1. Poesia improvisada; 2. Poesia de composição: a) ciclos heróico; do maravil-

hoso; religioso e de moralidade; cômico, satírico e picaresco; de circunstância de histórico; de amor e fidelidade; b) formas: romances; canções; pelejas; abecês.

A classificação adotada pela casa de Rui Barbosa, basicamente elaborada por Cavalcanti Proença: assim pode ser apresentada, conforme se vê no volume do catálogo da Literatura Popular (11):

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I – Herói Humano: 1. Herói Singular; 2. Herói Casal; 3. Re-portagem (crimes, desastres, etc.); 4. Política;

II – Herói Animal; III – Herói Sobrenatural; IV – Herói Metamorfoseado; V – Natureza: 1. Regiões; 2.

Fenômenos; VI – Religião; VII – Ética: 1. Sátira Social –

Humorismo; 2. Sátira Econômica; 3. Exaltação; 4. Moralizante;

VIII – Pelejas; IX – Ciclo: 1. Carlos Magno; 2.

Antônio Silvino; 3. Padre Cícero; 4. Getúlio; 5. Lampião; 6. Valentes; 7. Anti-Heróis; 8. Boi e Cavalos;

X – Miscelânea: 1. Lírica; 2. Guerra; 3. Crônica – Descrições.

Recentemente Roberto Câmara Benjamin em inter-essante estudo sobre os temas de religião apresentados em folhetos (12), sugere uma classificação deste, levando em conta seus objetivos; seriam distribuídos em três gru-pos; 1. Folhetos informativos, os que registram fatos “de época”, ou de “acontecimento”, isto é, acontecimentos atuais, fixando-os para conhecimento de grande público; 2. Romances, são as narrativas tradicionais destinadas a entreter e distrair; 3. Opinião, são os que incluem crítica social. A estes três grupos o próprio escritor acrescenta, a seguir, um outro conjunto de folhetos: os que narram “ca-sos”, os folhetos de “exemplo”, onde se arrolam aconteci-mentos sem explicação para o povo, mas que constituem exemplos a serem observados.

A nosso ver é possível chegarmos a uma síntese das duas classificações brasileiras antes citadas: a de Proença e a de Suassuna. A nossa preocupação é a de apresentar a temática da literatura de cordel; e tam-bém assentar aqueles temas que são constantes ou per-manentes nesta literatura, e isto sob duplo aspecto: de um lado quais são estes temas, como são expostos, por que existem; e de outro lado, como o cantador ou tro-vador populares consideram estes como os interpretam, o que seria, por assim dizer, a sua cosmovisão. Ou seja: como, no quadro de sua cultura, compreendem o fato tradicional ou o acontecido em face da sociedade em que vive. O que representa, de certo modo, o próprio sentimento desta sociedade.

Daí procuramos harmonizar, de maneira mais singela – e sobretudo exemplificativa – o que existe nas diferentes manifestações populares em torno de determinado assuntos, constantes, senão permanentes, na literatura de cordel. Chegamos assim a uma simplifi-cação do que sugerem Cavalcanti Proença e Suassuna, procurando indicar, em suas linhas gerais os assuntos da literatura de cordel.

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1. Temas Tradicionais

a) Romances e novelas: Leandro Gomes de Barros – Batalha de Oliveiros com Fer-rabrás; João Martins de Ataíde – Roldão no Leão de Ouro; José Bernardo da Silva (ed. prop). – História da Donzela Teodora.b) Contos Maravilhosos: Leandro Gomes de Barros – História de Maria e Alonso; João José da Silva – Aladim e a Princesa de Bagdá; Antônio Alves da Silva – Os últimos dias de Pompéia.c) Estórias de animais: Leandro Gomes de Barros – O boi misterioso; Luís da Costa – História do papagaio misterioso; José

Exe

mplificacao

dos d

iversos temas Costa Leite – A vaca misteriosa que falou

profetizando.d) Anti-heróis: Leandro Gomes de Barros – A vida completa de João Lezo; - Fran-cisco Sales – As presepadas de Pedro Malasarte; João Martins de Ataíde – As proezas de João Grilo. e) Tradição Religiosa: - Manuel d’Almeida Filho – História de Jesus e o Mestre dos Mestres; José João dos Santos (Azulão) – O milagre de Jesus e o ferreiro orgulhoso; José Soares – Os milagres da VirgemConceição.

2. Fatos circunstanciais ou acontecidosa) Manifestações de natureza física: José Bernardo da Silva – Os horrores do Nor-deste; Delarme Monteiro – A seca, flagelo do sertão; João José da Silva – As cheias do interior e as inundações do Recife.b) Fatos de repercussão social: Rodolfo Coelho Cavalcante – A morte de Zé Arigó, o famoso médium de Minas Gerais; Severino Paulino da Silva – A tragédia de Garanhuns ou a morte do Bispo; Antônio Batista – A guerra de Juazeiro; Joaquim Batista de Sena – A vitória do Marechal Castelo Branco e a derrota dos corruptos; Manoel d’Almeida filho – Brasil, tricampeão do mundo; José Soares – O homem na lua; Joaquim Batista de Sena – História da nove-la de Antônio Maria em versos de cordel.c) Cidade e vida urbana: Leandro Gomes de Barros – O Recife novo; João Carlos

– Feira de Santana, princesa do sertão; Manoel Camilo dos Santos – Descrição da Capital João Pessoa.d) Crítica e sátira: Erotildes Miranda – Os horrores da devassidão; Expedito Se-bastião da Silva – A marcha dos cabelos e os usos de hoje em dia; Minelvino F. Silva – ABC dos tubarões.e) Elemento humano: João Florêncio da Costa – História de Getúlio Vargas; Arinos de Belém – História de Antônio Conselheiro; João Martins de Ataíde – A morte de Padre Cícero Romão; José Costa Leite – A voz de Frei Damião; Francisco das Cha-gas Batista – A história de Antônio Silvino; Antônio Francisco da Silva – As bravuras e morte de Lampião; Ivo Luís Silva – O rei dos vaqueiros; Severino Borges da Silva – Bravuras de sertanejo.

Classificação de Franklin MaxadoDe época ou de Ocasião, Históricos, Didáticos ou educativos, Biográficos, De

louvor ou homenagens, De propaganda política ou comercial, Promoção pessoal e anonimato, Pasquim ou de intriga, De safadeza ou putaria, Maliciosos ou de cachor-rada, Cômicos ou de gracejos, De bichos ou infantisReligiosos ou místicos, De profecias ou eras, De conselhos ou exemplos, De fenômenos ou de casos, Maravilhosos ou mágicos, Fantásticos ou sobrenaturais, De amor ou de romance amoroso, De bravura ou heróicos, Vaquejadas, De presepadas ou dos anti-heróis, De pelejas ou desafios e De discussão ou encontros.

Fontes: Literatura de Cordel Antologia – Banco do Nordeste, organizado por Ribamar Lopes e O Que É Litera-

tura de Cordel, Franklin Maxado, Editora Codecri – Rio de Janeiro.

Materia | 13Revista Brasileira de Literatura de Cordel

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Da Popularidade e atualidade Da Literatura de Cordel.

Com mais de cem anos de publicações inin-terruptas, a Literatura Popular em Versos Escrita ou “Versos de feira”, ou, ainda,

“romances e folhetos”, conhecida nos meios intelec-tuais como Literatura de Cordel - nomenclatura herdada de Portugal, onde os folhetos eram vendi-dos nas feiras, pendurados em barbantes (cordões ou cordéis) – já teve sua morte anunciada várias vezes, mas resistiu a todas elas. Achavam que ela sucumbiria à penetração dos jornais no interior; depois foi a era do rádio, com grande penetração nos sertões e mais uma vez falou alto o prenúncio trágico. Com a chegada da televisão ao interior, se previu de novo a derrocada do velho “cor-reio do Sertão”. E agora se fala que a internet irá acabar a literatura popular nordestina... Tudo balela. O “cordel” resiste, por mais que lhe es-tiquem a corda. E tem conseguido até se aliar a cada um destes concorrentes, poderosos instrumen-tos de comunicação de massas.

Artigo | 14Revista Brasileira de Literatura de Cordel

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Artigo | 15Revista Brasileira de Literatura de Cordel

Em pleno século XXI o fol-heto poético permanece firme e forte, lépido e fagueiro, cruzando veredas e animando alpendres nas comunidades rurais dos minifúndios anti-econômicos, latifúndios improd-utivos, fazendas modernas de irrigação e assentamentos de reforma agrária.

Ameaça deverasmente forte foi o êxodo rural. Mas, em vez de morrer ele acompanhou o seu leitor. Veio para as perife-rias das cidades e chegou às metrópoles, não só do Nor-deste como Recife, Fortaleza e Salvador, mas também ao Rio de Janeiro, São Paulo e todas as cidades satélites de Brasília. Chegou também às universi-

ao Brasil serviu de inspiração para a publicação de cerca de cinqüenta títulos cordelianos. A morte de Tancredo Neves provocou dezenas de publica-ções, a morte de Luiz Gonzaga também motivou uma enxur-rada de poemas publicados. Por último tivemos a derrubada das torres gêmeas, em Nova Yorque. Poucos dias depois, vários folhetos estavam sendo vendidos nas feiras do Nor-deste e dos grandes centros do Sudeste, com Osama bin Laden na capa. Hoje, o fol-heto jornalístico não leva mais novidades aos seus leitores cativos. O rádio, o jornal, e a TV chegam primeiro, mas a publicação da mesma notícia

" O radio, o jornal, e a TV chegam primeiro, mas a publicacao da mesma noticia em folhetos de cordel da mais credibilidade e desperta mais interesse ao acontecido. "

dades e escolas de todos os recantos do Norte, Nordeste e do Sudeste. O maior prob-lema foi o fechamento das tipografias de Literatura de Cordel, que foram 42. Mas elas estão ressurgindo. Agora em off-set, que os tempos são outros. Através de enti-dades de apoio à cultura ou, até mesmo, com fins comerci-ais, editam-se folhetos, o que garante a volta do vigor de mercado do folheto.

Quando se pensava que esta literatura tinha sucum-bido, eis que morreu Frei Damião e mais de setenta títulos foram publicados sobre o fato. A primeira vinda do papa João Paulo II

Page 15: Revista Cordel

publicadas duzentas mil cópias. Mais recentemente, a Secretaria da Cidadania de Mossoró me encomendou 15 títulos sobre temas da saúde. De cada um, foram publicados cinco mil exemplares, com perspectiva de novas edições.

Folhetos sobre DST/AIDS, contra o alcoolismo, contra o Tabag-ismo, em prol da economia da água, em defesa da ecologia, contra a dengue, em defesa da escola pública, dos direitos da criança, da mulher, dos animais, do plantio do caju, da criação de capri-nos e ovinos, enfim, em qualquer assunto que se queira falar com o povo na sua linguagem, recorre-se à poesia cordelista. Como dizia o mestre Paulo Freire, “não se chega à cabeça do homem do povo, sem passar pelo coração”. O uso da Literatura de Cordel em cam-panhas educativas está abrindo um novo ciclo, como os Cômicos ou de gracejos, Religiosos ou místicos, de Profecias ou eras, de Consel-hos ou exemplos, de Lampião, de Padre Cícero e tantos outros que foram catalogados por Ariano Suassuna, Liedo Maranhão de Souza, Franklin Maxado e Orígenes Lessa.

em “folhetos de cordel” dá mais credibilidade e desperta mais inter-esse ao acontecido. “Saiu até um folheto sobre esse assunto”, essa é a marca registrada da credibilidade conferida a uma notícia para as pessoas do povo que têm nessa literatura, na Bíblia Sagrada e nos almanaques populares anuais, suas maiores referências culturais impressas. Esta força imorredoura e crescente, é que faz com que os folhetos de Literatura de Cordel sejam hoje tão utilizados em cam-panhas educativas e no marketing comercial ou político. Quando Cristóvão Buarque criou a Bolsa-Escola no Distrito Federal, por volta de 1995, seu governo me encomendou um poema para divulgar o programa entre os migrantes que moram em Brasília. Dele foram

Isabela Nardoni, João Hélio e até o presidente Lula já se tornaram temas de cordéis

Artigo | 16Revista Brasileira de Literatura de Cordel

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O Caso Isabella, a morte da menina que foi jogada provavelmente pelos pais do sexto andar de um edifício em São Paulo, o Caso de João Hélio, o menino que morreu arrastado em um carro por marginais no Rio de Janeiro, tudo vira folheto de Cordel com uma velocidade impressio-nante.

Estamos na praça com a segunda edição do livro Lula na Literatura de Cordel. São mais de duzentos folhetos que falam direta ou indire-tamente em Lula, um presidente que ainda está governando. No livro catalogamos nada menos que 110 deles, de vários estados do Brasil. As editoras estão trabalhando uma nova fase da Literatura de Cordel, trata-se do Cordelivro, que se constitui na edição de folhetos de Cordel em forma de livros, ilustrados, muitas vezes até com um belíssimo casa-

As formas poeticas do cordel e

do repente nordestinos vao

surgindo em novos estilos musicais,

enriquecendo o rap, o rock, o hip hop, a

MPB

mento entre Cordel e Quadrin-hos, um antigo sonho do pes-quisador José Maria Luythen que começa a se concretizar. Dezenas de projetos que levam a Literatura de Cordel à sal de aula podem ser encontrados em todos os estados nordestinos, e ainda em São Paulo, Rio de Janeiro, Distrito Federal, Goiás, estados do Norte para onde milhões de nordestinos migra-ram arrastando a saudade da terrinha “sofrida, mas boa”. As formas poéticas do cordel e do repente nordestinos vão surgindo em novos estilos music-ais, enriquecendo o rap, o rock, o hip hop, a MPB; o cordel tem

hoje uma presença marcante no Teatro, na Literatura, no Cinema e nas artes visuais, inclusive um peso fortíssimo dos versos, das toadas e das xilogravuras no marketing.

A agregação de valor ao produto “poema de cordel” cresce a cada dia, além do cordelivro, há uma forte indús-tria de produção e venda de CDs, de DVDs, de caixinhas de cordéis, de displays com coleções para venda ou servin-do de mostruário, camisetas com versos e xilogravuras, livros com coletâneas de poemas e poetas. E há uma impressionante produção de monografias e te-

ses acadêmicas sobre a Litera-tura de Cordel.

A publicação de folhetos acelerou nos últimos cinco anos com o surgimento de editoras como A Tupinankyn em For-taleza, a Queima-bucha em Mossoró, a Casa do Cordel em Natal, um Sebo em João Pessoa, Manoel Monteiro na Paraíba, a Coqueiro e a Unicordel em Recife, a ABLC No Rio de Ja-neiro, a volta da Editora Luzeiro e a chegada da Editora Novo Horizonte em São Paulo, além de várias editoras empresariais que estão entrando no ramo do Cordel por verem nele um nicho promissor.

Artigo | 17Revista Brasileira de Literatura de Cordel

Page 17: Revista Cordel

A Filosofia nos folhetos de Cordel

Por Francisco José da Silva Prof. Mestre em Filosofia (UFC)

Questões pertinentes em relação à Filosofia e a literatura de Cordel

Quando fui convidado para falar sobre o tema a Filosofia nos folhetos de cordel, me senti desafiado, pois qualquer pessoa diante disto poderia se perguntar: Qual relação há entre filosofia e literatura de cordel? Seria o que há de filosofia no cordel? Ou seria

o que há de cordel na filosofia? O titulo diz muito sobre a questão a qual nos propomos desenvolver, pois poderia ser ‘Filosofia

em Cordel’, ou, ‘Cordel e Filosofia’, ‘Filosofia no Cordel’, ou, ‘Cordel na Filosofia’ e ainda ‘Filosofia do Cordel’.

Diante destas questões eu me alinho às duas últimas como mote a partir do qual iniciaremos nossa reflexão de hoje, ou seja, até onde é possível falar de uma filosofia presente na literatura de cordel, e ainda, é possível falar de uma veia poética na filosofia, ainda mais uma poética popular?

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A filosofia é, pois, uma forma de saber que tem como fundamento a busca da ver-dade através da razão, desta forma a reflexão filosófica nos permite pensar a realidade de forma critica e a partir do todo. Lembramos que o grande expoente da filosofia e modelo de atitude filosófica foi o filosofo grego Sócrates, que através de suas perguntas levava as pessoas a pensarem por si mesmas.

Começaremos então por uma frase que para mim ser-viria de inspiradora a partir da qual refletiremos sobre a filo-sofia nos folhetos de cordel. A frase é “A poesia é filosofia em versos, a filosofia é a poesia em prosa”.

A poesia na origem da Filosofia

Já que ao falar de litera-tura de cordel estamos falando em poesia, podemos perceber que na Filosofia há um pouco de cordel, pois na sua origem a Filosofia era expressa na forma de poesia, com versos. Desde tempos imemoriais a poesia tem sido a forma mais utilizada para se expressar, especial-mente na carência de uma literatura escrita, enquanto ela é uma forma de mnemotécnica, ou seja, uma técnica de memo-rização eficaz, além é claro do caráter estético que nela se apresenta que lhe dava uma aura de divina.

Um exemplo deste caráter divino da poesia pode ser constatado na invocação das

musas, rotina sempre presente na literatura de cordel, mas que remonta a Homero, na Ilíada e Odisséia, e Hesíodo, na Teogonia e em Os Trabalhos e os Dias. As primeiras grandes obras poéticas da tradição ocidental que tem sua origem na Grécia antiga.

No Canto I da Ilíada lemos:“Canta ó musa, a ira de

Aquiles filho de Peleu...”. As musas são as filhas de

Zeus e Mnemosyne (Memória), as quais presidem as criações artísticas e conduzem os poetas à contemplação daquilo que os deuses querem revelar através da poesia, da tragédia, da música, da dança, etc. O poeta é como que o arauto dos de-uses, aquele que em seu canto revela a palavra dos deuses, não muito distante é a concep-ção bíblica da profecia, pois os grandes profetas (neviim), são os portadores da palavra de Deus, e muitos deles como Isaias e Jeremias eram consid-erados grandes poetas, sem esquecer do repentista hebreu David, que deliciava os ouvidos de Saul ao “cantar seus Salmos pelos ares”, como diria Raul Seixas. Desse modo, podemos dizer que existe uma relação estreita entre a poesia e a divindade, aquele que revela os segredos da natureza, da vida humana, etc. Esse caráter revelador da poesia ultrapassa o âmbito estritamente religioso, ele é reconhecido inclusive na filosofia.

Em relação à importância da expressão poética na anti-guidade e sua relação com a

Desse modo, podemos dizer que existe uma relacao estreita

entre a poesia e a divindade, aquele

que revela os segredos da

natureza, da vida humana

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Filosofia nos diz Aristóteles, em sua Poética:“Entretanto nada de comum existe entre Homero

(poeta) e Empédocles (filósofo) salvo a presença do verso.” (Aristóteles, Arte Poética, I, 11).

A partir deste texto, percebemos que o verso era a linguagem comum tanto da poesia quanto da filosofia, e ao contrário do que diria Platão, o qual rejeita a poesia em sua Republica (vale res-saltar que o próprio Platão era poeta, o que nos leva a questionar sobre sua posição), Aristóteles, ao contrário, exalta o caráter racional e universal da poesia, quando diz:

“Por tal motivo a Po-esia é mais filosófica e de caráter mais elevado que a História, porque a Poesia permanece no universal e a História no particular.” (op.cit, IX, 3).

Com isso vemos clara-mente que há algo que aproxima a racionalidade filosófica da poesia e vice-versa, é isto que faz com que o cordel, enquanto poética popular carregue em si os germes da reflexão filosófica na sua busca de expressar o real em sua complexidade.

Podemos dizer que os grandes poetas marcam com suas obras a geniali-dade do pensamento, entre

eles destacam-se ainda mais aqueles que poetica-mente filosofam. Entre os grandes ‘poetas-filósofos’ podemos citar Homero, Hesíodo, Sófocles, Esquilo, Eurípedes, Virgilio, Camões, Goethe, Schiller, Hölderlin, Fernando Pessoa, Augusto dos Anjos, e por que não acrescentar a estes grandes poetas clássicos, os grandes poetas da literatura de cordel como Leandro Gomes de Barros, Manoel Camilo dos Santos, Patativa do Assaré, Klevisson Viana, Manoel Monteiro, Mestre Azulão, Rouxinol do Rinaré e tantos outros (?), os quais com sua poesia levantam questões das mais perti-nentes sobre a existência humana, sobre a morte, sobre a vida feliz, sobre o certo e o errado, sobre o mal, sobre o conhecimento, sobre nossa cultura.

Não podemos subestimar nem a poesia clássica nem muito menos a poesia popu-lar, como o cordel, no que diz respeito à forma de expressão ou ao conteúdo. A poesia é uma das primei-ras manifestações artísticas da humanidade e carrega toda genialidade do espíri-to humano e, como pensa o filosofo alemão Hegel (1770-1831) na sua obra Lições sobre a Estética, é a forma de arte mais espiritu-al e mais completa, aquela que mais se aproxima da religião em sua manifesta-ção do absoluto.

Por tal motivo a Poesia e mais filosofica e de carater mais elevado que a Historia, porque a Poesia permanece no universal e a Historia no particular.

Aristoteles.

Artigo | 20Revista Brasileira de Literatura de Cordel

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Cordeis sobre Filosofos

Diógenes, o cínico, consid-erado o mais despojado, o mais irreverente dos filósofos gregos, que usava o sarcasmo, a ironia e literalmente ‘mordia’ aqueles que ele considerava reprováveis.

Como exemplo, citemos trechos do cordel Diógenes, o cínico:

Deus quando criou o homemFacultou-lhe liberdadePra pensar e investigarDeixou bem à vontadeDo amor a sabedoriaNasceu a FilosofiaComo busca da verdade

Do grego, Filos, amigo.Sabedoria é SofiaA mãe de toda ciência Da mente que tudo criaDeus Pai, Primeiro Motor.Poeta superiorDa divina poesiaComo vemos de forma simples

Além da possibilidade de levantar estas questões funda-mentais, devemos lembrar da tarefa levada a cabo por al-guns cordelistas, a de escrever sobre a vida dos grandes filó-sofos da humanidade. Entre es-tes cordelistas citamos Gonçalo Ferreira que escreveu sobre Pitágoras, Sócrates, Platão e Aristóteles, vejamos este trecho o cordel sobre Platão:

Os vultos primaciaisLivres de contestaçãoDa filosofia gregaInegavelmente sãoOs inexcedíveis SócratesAristóteles e Platão.

Foram eles realmenteOs construtores da féIluminando os caminhosDo cristianismo atéA doce eclosão do CristoEm Jesus de Nazaré.

Artigo | 21Revista Brasileira de Literatura de Cordel

Vemos nestes versos uma concepção que alia as idéias cristãs ao pensamento dos filósofos gregos, o qual foi na verdade a base para o desen-volvimento da teologia cristã posterior.

Recentemente Rouxinol do Rinaré escreveu conosco um cordel sobre o filósofo grego

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e concisa o poeta expressa o signifi-cado da palavra ‘filosofia’(amigo da sabedoria), e sintetiza todo seu con-teúdo e ainda traduz uma concepção de racionalidade oriunda da divindade que o conduz ao conhecimento de sua mais elevada aspiração. Além disso, o poeta trata dos conceitos mais fundamentais da filosofia, tais como liberdade, amor, sabedoria, verdade, interpõe o conceito de deus cristão (Pai) e aristotélico (o primeiro motor) e relaciona o criador (poietes, em grego) e a criação (poema) com a produção poética (poesia).

Pode-se encontrar maior profundi-dade em tão poucos versos?

Podemos dizer ainda que se faz necessário e é importante a produção de cordéis biográficos sobre os grandes filósofos, tarefa a qual tem se dedicado Gonzalo Ferreira, mas isto não é a regra para que se possa filosofar com cordéis, ao contrário do que têm feito alguns cordelistas que escrevem cordéis sobre gramática, matemática, geografia, etc, pois para isto basta que se escrevam cordéis, os quais devem ser ‘investigados’ e neles se encontre todas estas disci-plinas incluídas em seu conteúdo, seja num cordel de gracejo, seja biográfico, seja romance.

Como filosofar com Cordéis?

Diante disso tudo e sabendo que a poesia tem uma ligação com a filosofia e pode expressar idéias e reflexões filosó-ficas, podemos nos perguntar: Já que a filosofia agora se tornou obrigatória em todas as escolas do país, seria possível ensinar filosofia com cordéis? Uma vez dispondo de uma biblioteca de cor-déis na escola poderia o professor de filosofia utilizar-se dos cordéis e levar os alunos à reflexão por meio deles?

Nada melhor que citar alguns trechos de cordéis que levantem questões filosó-

ficas (morais, éticas, políticas, episte-mológicas, metafísicas, etc.) e permi-tam entrever não só ao admirador, mas ao pesquisador, ao professor em geral, e ao filósofo em particular, toda a riqueza filosófica que pode se encontrar nesses modestos folhetos de literatura popular, muitas vezes subestimados pela grande maioria das pessoas.

Vejamos este trecho do cordel Viagem a São Saruê de Manuel Camilo, o qual relata uma viagem fantástica a um lugar onde há tudo em fartura:

O povo em São Saruê

cordel que trata de uma sociedade plena de fartura se contrapormos a realidade do povo nordestino que nos períodos mais agudos da seca sofrem a privação das coisas mais básicas?

Outro ponto digno de nota é

Tudo tem felicidadePassa bem anda decenteNão há contrariedadeNão precisa trabalharE tem dinheiro à vontadeLá os tijolos das casasSão de cristal e marfimAs portas barras de prataFechaduras de ‘rubim’As telhas folhas de ouroE o piso de sitim

(...)Tudo lá é bom e fácilNão precisa se comprarNão há fome nem doençaO povo vive a gozarTem tudo e não falta nadaSem precisar trabalhar O que pensar diante de um

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Page 22: Revista Cordel

a concepção de que nesta sociedade utópica as pessoas não precisam tra-balhar, uma clara referência a vida no jardim do Éden, onde após o pecado original o homem é condenado ao trabalho penoso. Esta visão do trabalho traz os ecos da visão de mundo antiga e medieval, para os gregos, por exemplo, o trabalho era reservado apenas aos escravos, enquanto os livres cuidavam das questões do pensamento. Também relacionado a isso podemos dizer que

esta critica ao trabalho é endereçada não ao trabalho enquanto tal, mas pode ser uma alusão às condições de trabalho do homem do campo, explorado e espo-liado pelos grandes latifundiários, que gozam da fartura sem mover uma palha.

Também é interessante notarmos o contraste entre amor e honra no cordel Entre o amor e a espada de José Cam-elo de Melo, autor do famoso Pavão Misterioso:

cia e é mais importante, o amor ou honra? Seria a honra mais nobre que o amor? Por que seria a honra a coroa do amor, e não o contrar-io? Teria o amor que estar sempre amparado pela honra?

Com certeza estes versos do cordel supracitado trazem a marca de uma época, na qual a honra era um dos bens mais importantes para as pessoas, mas será que poderíamos dizer que a honra seria tão valorizada nos dias de hoje? O poeta pretende ligar o amor e a honra de uma forma tão perfeita, mas deixa entrever uma valoriza-ção da honra mesmo em detrimento do amor. Em nossos dias podemos encontrar manifestações de honra, mas talvez não tão freqüentes como outrora, ou mesmo em outras culturas, como por exemplo, a oriental onde a honra ocupa um lugar privilegiado, talvez mesmo acima do amor. Até que ponto as pessoas não confundem a honra com uma alta consideração de si mesmo derivada do egoísmo, o qual leva muitos a cometerem os crimes mais horrendos em nome de uma pretensa ‘hon-ra’? Seriam os crimes passionais resultado do amor ou da honra?

Por essas reflexões iniciais percebemos o quanto estes versos do cordel podem nos conduzir para questões complexas de ordem ética e

O amor quando se albergaNo peito do rico ou pobreSe torna logo um guerreiroCom capacete de cobreE só obedece a honraPorque a honra é mais nobre

Se o amor é soberanoA honra é sua coroaPortanto o amor sem honraÉ como um barco sem proaÉ como um rei destronadoNo mundo vagando a toa

A árvore é como o amante

Seus frutos são o amorAs raízes são a honraQue de incógnito frescorDão vida e beleza a árvoreE a seus frutos sabor

Colhem-se os frutos da árvore E ela não esmoreceMas cortando-lhe as raízesLigeiramente emurcheceDa mesma forma é a honra Ferida, o dono entristece.Qual dos dois tem proeminên-

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moral, que vão muito além de uma mera consideração do senso comum.

São também muito interessantes estes versos de Rouxinol do Rinaré tirados do cordel O Justiceiro do Norte:

O homem valente e justoDo berço já traz o tinoE tendo fibra e coragem Traça seu próprio destinoComo se deu nas andanças Do herói Pedro Justino.

Pedro Justino é o personagem do cordel de Rouxinol do Rinaré que narra as aventuras de um sertanejo que vai além do sertão se embr-enhando nas regiões do Norte do Brasil. Mas para além do óbvio podemos encontrar nestas aventuras um misto de construção de um des-tino, o qual aponta para uma con-cepção de liberdade, enquanto uma autonomia do sujeito face às circun-stâncias, e de destino traçado, onde o homem é o resultado de uma serie de eventos previamente estabeleci-dos que o conduzem a uma missão predestinada. Há um conflito entre a liberdade do homem ser o que ele escolheu e o fatalismo que leva o individuo a uma passividade di-ante de uma vida traçada por Deus.

Este mesmo conceito é reforçado pelo próprio autor nos versos inici-ais do Cordel Violação, a trágica historia de Renato e Maria (uma adaptação da novela homônima de

Rodolfo Teófilo):

O homem na vida sonhaFaz planos, mas na verdadeO desfecho do destinoSó pertence à DivindadeSem ao menos pressentirQualquer um pode cairNa cruel fatalidade!

Somos fruto do que escolhemos ou há um destino traçado para todos? O homem é livre ou é um joguete aos caprichos da divin-dade? Será que Deus pode traçar um destino contrario aquele que eu me propus? Com que finalidade?

No verso do cordel supracitado o autor propõe que apesar do homem planejar sua vida, preparar todo o terreno para realizar seus sonhos, é a divindade que de forma mis-teriosa conduz seu destino, ou seja, o desfecho de sua vida não lhe pertence, mas é resultado de uma escolha de Deus. Esta visão fatalista do destino encontra eco na filosofia estóica dos gregos e na teologia cristã, onde o homem está submeti-do aos desígnios de Deus, e mesmo os maus estão sob sua vontade. Di-ziam os estóicos “suporta o que não depende de ti”, e buscavam agir segundo a razão e a natureza.

Totalmente diversa é a visão existencialista, que vê a escolha como a única forma

Artigo | 24Revista Brasileira de

Literatura de Cordel

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autêntica do homem ser, para os existencialistas ateus crer em um destino traçado por Deus seria negar sua autonomia e liberdade de escolha, ou como diz Sartre, estamos condenados a ser livres, pois mesmo quando não escolhemos estamos fazendo uma escolha, a de não escolher (!).

Outro exemplo que podemos utilizar para demonstrar que o cordel não é mera reprodução do que se diz, mesmo quando se trata de ciência, é aquele tirado do cordel de Fernando Paixão A historia do começo do mundo – a teoria do Big Beng, nele o autor assim se expressa:

Então me ponho a pensarNa suprema criaçãoO que esta por traz da vidaE das leis da evoluçãoAlguns pensam que é “acaso”Eu penso em intervenção

Porque disse um cientistaQue a sublime existênciaÉ a obra de um acasoMas na minha consciênciaTudo é obra e criaçãoDa Suprema Inteligência

Mesmo aceitando a leis da teoria da

evolução o au-tor suspeita

que haja

algo mais por traz de tantas coin-cidências, o autor contrapõe acaso e intervenção, se posicionando ao lado desta ultima como explicação mais adequada e viável para a re-sposta do grande mistério da vida. Para ele, o universo é resultado da vontade de uma Inteligência Supe-rior e não mero resultado do acaso e na seqüência do cordel apresenta uma serie de argumentos para justi-ficar sua tese e arremata com essa brilhante estrofe:

“Matéria sem consciênciaDo universo é ruína”Pois o homem, ser pensanteNo universo predominaLegitima a criaçãoSeu destino determina.

Seria o universo um projeto que tem como meta a produção de uma consciência capaz de conhecê-lo? Estaria a matéria trazendo em si a busca de auto-conhecimento?

A visão proposta pelo autor no trecho acima citado é denominada ponto de vista antrópico, ou seja, o homem devido a sua condição supe-rior de racionalidade interpreta o sen-tido do universo como sendo um pro-cesso que conduziria necessariamente ao seu surgimento, como se a matéria contivesse em si os germes necessários ao surgimento da consciência.

Como podemos perceber até agora, estas e outras questões po-dem ser encontradas, investigadas

Artigo | 25Revista Brasileira de Literatura de Cordel

Page 25: Revista Cordel

e discutidas a partir da leitura de folhetos de cordel, o que requer do leitor (professor) uma curiosidade e preparação para tratar destes temas de forma lúdica e instigante.

Do que foi dito até aqui está claro que os folhetos de cordel trazem uma imensa gama de questões a serem elaboradas e desenvolvidas num espaço co-letivo de reflexão, ou como diria o filósofo Matthew Lipman, numa comunidade de investigação, a qual permitiria aos educandos um espaço democrático de debate e investigação das implicações contidas nas narrativas estudadas. O cordel é uma ferramenta incrível para levar o educando ao conhecimento da nossa cultura nordestina, de nossas raízes, mas pode ser mais que isso, ele pode levar-nos a uma reflexão critica de nossas idéias e ideais, de nossos costumes, das concepções e ideologias presentes em nossa formação e do pensamento do homem simples que expressa em seus poemas as realidades mais compl-exas da condição humana. Não devemos esquecer também o papel estético que os folhetos ocupam em nossa realidade, o qual acaba sendo obscurecido por aqueles que o querem manter numa cúpula, como um objeto de museu, mas que na verdade não percebem o quanto o cordel é versátil e capaz de se reinventar em sua linguagem e se atualizar em seus conteúdos.

Mas para que o mesmo cumpra este papel é necessário da parte do professor um conhecimento das raízes de nossa cultura, ou seja, de sua própria identidade, para não se tornar um mero reprodutor das idéias advindas de outros lugares com a preten-são de serem universais, o professor precisa de tempo e condições mínimas para não se tornar cativo de uma estrutura que o nega a possibilidade de cumprir seu papel de forma mínima, isto é, a de ser um capacita-dor, um orientador, um motivador do aprendizado que leve os indivíduos a pensarem por si mesmos, a serem cidadãos autônomos. Não cabe aqui nenhuma critica ao professor enquanto tal, mas aos gestores públi-cos desse intrincado processo, os quais sabemos que propositalmente trabalham com o intuito de manter as pessoas sobre controle, dóceis e passivos, cristalizando um tipo de sociedade excludente e individualista.

Por isso, consideramos que a Filosofia pode e deve ter no cordel, especialmente aqui no Ceará e em todo o Nordeste, mais um aliado em seu trabalho incan-sável de levar os homens ao conhecimento de si e a

problematização das falsas ver-dades e certezas impostas pelo neoliberalismo, pela tradição e pelos meios de comunicação de massa. Só assim estaremos trans-formando nossos concidadãos de meros zumbis teleguiados e dependentes de celulares e outras parafernálias modernas em pessoas capazes de pensar por si, de investigar o mundo que os cerca, de criticar as falsas verdades impostas, de denunciar os desmandos da política, de se manifestar e transformar a realidade!

Artigo | 26Revista Brasileira de

Literatura de Cordel

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SoletrandoNo ma-ti-nala me-ren-dare-co-men-daser só fru-galpas-ta den-talde es-co-varde-ve la-varcom co-li-peno ga-lo-peda bei-ra-mar

Não dei-xeo in-tes-ti-nofi-car fi-noque só fei-xeco-ma pei-xeno pa-la-darum ca-la-mares-ca-lo-peno ga-lo-peda bei-ra-mar

Um ex-em-plode gi-gan-teru-mi-nan-teum ca-me-lopa-ta pe-loru-di-men-tarpa-ra ma-tarse-re-le-peno ga-lo-peda bei-ra-mar

Es-car-la-tetan-ge-ri-na

vi-ta-mi-nano to-ma-tea-ba-ca-tever-de po-marpo-de cor-tartos-se gri-peno ga-lo-peda bei-ra-mar

Um re-gi-mede ver-da-deli-ber-da-deé seu ti-meé su-bli-meser po-pu-larpar-la-men-tarpar-ti-ci-peno ga-lo-peda bei-ra-mar

Galope Beira Mar (Fragmentos soletrados)Compositores: Xangai e Ivanildo Dias

CD: Xangai - Qué qui tu tem Canário

Soletrando | 27Revista Brasileira de Literatura de Cordel

Page 27: Revista Cordel

O Brasil de PindoramaFalou Tupi-GuaraniRaimundo Caetano e Waldir Teles

Cabeceira é IacangaTerra antiga – IbiporãEstaca – IbirapoãMel vermelho – IrapirangaTerra roxa – IbipitangaPoço fundo – ItapuíRio dos Índios – AvaíMastro ou poste é IbiramaO Brasil de Pindorama Falou Tupi-Guarani

A Várzea é IbipetubaNariz de Pedra - ItatinaDescavado – IbiapinaPedregulho – ItaitubaMel amarelo – IrajubaClareira é BaiapendiCoisa verde é BatoviCascatas é IturamaO Brasil de Pindorama Falou Tupi-Guarani

A fonte é ItororóLagoa branca – IpatingaTerra branca é IpitingaBica d’água é IteróCasca amarga é IperóRio dos ventos – ButuíDe lei, é CamaçariRio dos musgos IguatamaO Brasil de Pindorama Falou Tupi-Guarani

Cordel | 28Revista Brasileira de Literatura de Cordel

Page 28: Revista Cordel

Pedra redonda - ItanguáRio torto é IamparaLuz da lua é IaciaraNinho de abelhas - IrajáNavio é IngaratáRio do Leite - IcamburiDelegado é CanapiBem estar é CatuamaO Brasil de Pindorama Falou Tupi-Guarani

Pedra angular – ItatemaVão estreito – ItacambiroRio de pedra - ItaciroRio imprestável - Ipanema Pau d’alho - ImbiraremaRio doente é IngaciFonte verde é ImpuíCanteiro é IbotiramaO Brasil de Pindorama Falou Tupi-Guarani

Charco se chama IpuçabaAldeia negra – ItabunaSerra negra - IbiturunaCordilheira – IbiapabaPorto é IgarequiçabaPedra verde é ItaobíAreia é IbicuíBica d’água é TorotamaO Brasil de Pindorama Falou Tupi-Guarani

Água boa é IcatuPomar se chama - IpotibaAbundância – ImbiritibaÁrvore grande - ImbiraçuCasa de vespa é InchuAlameda - Imbiraci,Pedra agulha é ItabiPedra erguida - ItapoamaO Brasil de Pindorama Falou Tupi-Guarani

Laje branca é Itapetim,Montanha é IbitiuraÁgua que brota é ImburaFlor é chamada ImbotimFonte funda é InhapimPonta de pedra ItapiRio dos musgos IguaíOssada é CanguaretamaO Brasil de Pindorama Falou Tupi-Guarani

Pedras soltas – ItaqueraDepois da fonte – InharéRio das Frutas - ImbaréTerra antiga é IbiqueraCepo é IbirapueraAngelim – AracuíFlor de arara – ArapotiUmbuzais - UmburetamaO Brasil de Pindorama Falou Tupi-Guarani

Casa de pedra - ItaiocaPedra amarela – ItaiubaCerradão é CatandubaConstrução quer dizer MocaFenda ou rasgo – VossorocaA lua é sempre JaciO sol é CoaraciE apiário é IretamaO Brasil de Pindorama Falou Tupi-Guarani

Rio doente Ingaci

Fonte verde Impui

Canteiro IbotiramaO Brasil

de Pindorama Falou

Tupi Guarani

Cordel | 29Revista Brasileira de Literatura de Cordel

Page 29: Revista Cordel

Artigo | 30Revista Brasileira de Literatura de Cordel

Regras(O que é e o que não é Literatura de Cordel)

Não é qualquer folheto de 11cm X 16 cm que pode ser considerado Literatu-ra de Cordel. Além do formato com as

medidas indicadas, para que se possa consid-erar Literatura de Cordel, é preciso observar, em primeiro lugar, o aspecto literário.

A Literatura de Cordel Portuguesa, não é bem literatura, pois o que definiu mesmo o formato do folheto foi a tecnologia gráfica precária da época, mas os folhetos tanto po-diam trazer poemas, como escritos em prosa, da forma que poderiam tratar de receitas de

bolo, tábuas de marés, fases da lua, horóscopo, etc.

Aqui no Nordeste brasileiro, é que ela se tornou forma de Literatura mesmo, ao definir-se, não só a forma dos folhetos, como também a temática, as regras poéticas, o fato de serem todos em poesia, a criatividade, fantasiosidade das histórias descritas. Enfim, todas as car-acterísticas de um segmento de arte literária.

Diferenças entre a Literatura de Cordel Por-tuguesa e a Literatura de Folhetos dita Litera-tura de Cordel Nordestina

Regras da poéetica cordeliana

Page 30: Revista Cordel

Artigo | 31Revista Brasileira de Literatura de Cordel

Portuguesa

a. Dirigida a todos os públicosb. Gênero literário, teatral, informativo e outros.c. Verso, Prosa e Receituáriosd. Postura ideológica de conciliação de classese. Vendida em ruas pendurados em barbantes (cordéis)

Litera-tura de Cordel e Canto-ria im-provisada

A imensa maioria das apos-tilhas e livros que “ensinam” da fazer Literatura de Cordel con-fundem a cantoria improvisada com a Literatura de Cordel. Somente Ariano Suassuna fez a divisão correta. Até mesmo os grandes estudiosos do Folclore confundiram estes dois universos da poesia popular nordestina.

A Literatura de Cordel é composta por toda a parte escrita e impressa da poesia popular divulgada em formato de folhetos (08 e 16 páginas) romances (de 24 páginas em diante, saltando de oito em oito por ser o que comporta uma folha de papel ofício dobrada em quatro partes e impressa frente e verso), as folhas soltas, com poemas, canções e em-boladas. Esse é o gigantesco mundo da Literatura de Cordel. Já a cantoria improvisada, o repente de viola é outro uni-verso gigantesco, com mais de cem estilos poéticos, como a

própria sextilha, que comum aos folhetos e os repentes, a toada de sete linhas, as déci-mas, mas também diversos tipos de quadrões, de mourões, a Gemedeira, o Gemido de Dois, Treze por Doze ou numerado, o Galope à Beira-mar, os diver-sos tipos de martelos e os esti-los de fantasia, Brasil caboclo, o Brasil de Pai Tomás, o Boi da Cajarana, Mulher Teimosa ou Rojão Pernambucano. Enfim, um mundo de mais de cem estilos, cada um deles com sua própria estrutura de rimas, de métrica e uma lógica na oração a ser desenvolvida, além de uma melodia e um ritmo próprios.

A intersecção entre cantoria e Literatura de Cordel se dá, na cantoria quando os repen-tistas cantam canções e poemas ou mesmo folhetos e romances decorados e da Literatura de Cordel quando em pelejas e discussões são usados diversos estilos de cantoria

Nordestina

a. Dirigida ao meio popularb. Gênero estritamente literário e informativoc. Definição pela poesia (exceto os almanaques)d. postura ideológica denunciadora e crítica dos opressorese. Vendida de mão em mão. Nas feiras é vendida em rodas, e expostos em mala aberta ou em pequenas bancas no meio da roda.

Page 31: Revista Cordel

Artigo | 10

As regras do mestre Rodolfo Coelho Caval-canti para a po-esia popular im-pressa.

Márcia Abreu em Histórias de Cordéis e Folhetos, Mer-cado das Letras, 1999 traz as normas que eram definidas por Rodolfo Coelho Cavalcanti, mestre baiano da Literatura de Cordel sobre a forma de se produzir esta Literatura. Rod-olfo dá as cartas sobre técni-cas de versificação usadas na Literatura e Cordel e sobre a própria maneira de se diagra-mar e de se compor, do ponto de vista gráfica, um folheto.

Quanto às regras, podemos lembrar basicamente:

1. As histórias/estórias têm que ser descritas em versos;

2. As estrofes devem ser de seis versos (sextilhas1), de sete versos (Sete linhas2), de dez ver-sos (décimas ou glosas3);

3. Os versos, devem ser de sete sílabas (heptassílabo ou re-dondilha maior) ou de dez sílabas( decassílabos ou martelos);

4. Cada página deve ter de quatro a cinco estrofes (quatro, quando se trata de estrofes de sete linhas e até cinco, quando se trata de sextilhas. No caso espe-cífico de ser em décimas, ficam apenas duas ou, no máximo três estrofes numa página;

5. Os folhetos são montados no tamanho 11cm X 16 cm, o que representa ¼ de uma folha de tamanho ofício, dobrada ao meio e novamente dobrada, de modo que, ao dobrar duas vezes uma folha tamanho ofício, ficam oito páginas de 11cm X 16cm. Assim

sendo, os folhetos e romances são todos montados com números de páginas múltiplos de 8. Sendo, portanto, de 8, 16, 24, 32, 40, 48 ou 64 páginas.

6. Os de oito e até 16 pági-nas são chamados de folhetos;

7. Os de 24 páginas em diante são chamados de romances, independente do assunto.

8. As capas devem ser feitas de papel de cor e as páginas in-ternas (miolo), normalmente é feito de papel jornal;

9. A ilustração da capa pode ser feita de xilogravura, fotogra-fia ou desenho. Sendo que o mais recomendável é o uso da xilogra-vura.

10. Os títulos, de preferên-cia, devem ser metrificados. Ex. O Soldado Jogador (sete sílabas), As proezas de João Grilo (sete sílabas) História de Mariquinha e José de Souza Leão (dois versos de sete sílabas).

Artigo | 32Revista Brasileira de Literatura de Cordel

Page 32: Revista Cordel

Artigo | 33Revista Brasileira de Literatura de Cordel

Obs. Os demais estilos que normalmente são apresentados em apostilhas de Literatura de Cordel como sendo próprios da poesia escrita, só são usados na composição de folhetos e romances, como Brasil Caboclo, Martelo a Desafio, Ge-medeira, Mourão Voltado, Quadrão Perguntado, Galope à Beira-mar ne outros, são estilos de cantoria improvisada, só sendo usados na Literatura de Cordel, quando se trata de pelejas e discussões. Estes outros estilos serão descritos nos próximos números desta revista, com acompanhamento de um CD para que se possa ter uma dimensão aproximada do universo da cantoria improvisada e da Literatura de Cordel.

Sextilhas

São estrofes de seis versos de sete sílabas

As rimas devem ser postas na seqüência AB-CBDB.

Em alguns casos a primeira rima (A) a pode rimar com a última da estrofe anterior, como normalmente se faz na cantoria improvisada. Na Literatura de Cordel não é obrigatória a “deixa” porque e é usada na cantoria improvisada para dificultar a prática que alguns poetas têm de levar estrofes decoradas. Há também as sextilhas em decassílabos, mas ra-ramente ela é usada nos folhetos de cordel, sendo mais apropriada para o improviso.

Sete linhas

São estrofes de sete versos de sete sílabas, com rimas postas na seqüência ABCBDDB.

Trata-se de um estilo poético pouco usado no início da Literatura de Cordel Nordestina, mas que depois passou a ser adotada em poemas como A Chegada de Lampião no Inferno.

O estilo Sete Linhas é muito usado na cantoria improvisada por permitir melodias muito boni-tas. É tão musical que é chamado na cantoria de “Toada de Sete Linhas”.

Os cordelistas mod-ernos usam bastante o estilo Sete Linhas.

Décimas ou glosas

As décimas são estrofes de dez versos de sete sílabas, com a posição das rimas obe-decendo, na maioria dos casos, a seqüência AB-BAACCDDC. Trata-se de uma forma poética mais usada para glosar motes em pelejas e discussões, mas também pode ser usada para a com-posição completa de um folheto, como é o caso da Batalha de Oliveiros e Ferrabrás, de Leandro Gomes de Barros.

Há também o chama-do “estilo de Assu” em que as rimas obedecem a seqüência ABBAC-CDEED. As décimas em decassílabos são usadas em poemas e pelejas.

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A Criação de BrasíliaChico Diassis

Brasília, cidade lindaÉ a musa do CerradoTeu céu azul, estrelado,Tem belezas mais de milTua miscigenaçãoNo Distrito FederalFaz do Planalto centralO coração do Brasil.

Joaquim José da SilvaXavier, o Tiradentes,Ele e os inconfidentesQueriam teu esplendorAo pedirem que o PaísTransferisse a capitalDo imenso litoralPara o vasto interior.

Com o Padre João Ribeiro,Hipólito José da CostaA mudança era proposta E ganhava repercussãoEra século dezenoveNo ano de vinte e doisQuando Dom Pedro propôs Sua denominação.

Francisco Adolfo, Visconde De Porto Seguro, fazUma viagem a GoiásBerço das grandes baciasE entre Trás Lagoas, notaO local apropriadoPra que seja sediadoO poder de nossos dias.

Cordel | 34Revista Brasileira de Literatura de Cordel

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O deputado NogueiraParanaguá autorizaA demarcação precisaNo ano 92.E Floriano PeixotoA Comissão Cruz envia Pra demarcação sadia Ser concluída depois

Fez-se o Quadrilátero CruzEm muitos mapas, presenteO governo de Prudente No ano 96Mil novecentos e cincoNa campanha mudancistaSenador e jornalistaTocam o assunto outra vez

Dia sete de setembroData por nós consagrada,Em 22 foi lançadaA pedra fundamental.O Epitácio PessoaComemorando a essênciaCem anos de independência Da nossa pátria natal.

O senador CavalcantiApresentou ao SenadoUm projeto baseadoNa viagem do Visconde,Cento e oito anos antes Da fundação da cidade,A sua localidadeJá era sabida onde.

No ano de oitenta e trêsDom Bosco, salesiano,Sonhou com um altiplanoOnde a terra prometidaEstava à beira de um lagoConforme a antevisãoNova civilização,Novo tempo e nova vida.

Foi proclamada a República E sua constituição Previa a demarcação Do Distrito Federal.Virgílio Damásio e MullerDois distintos senadoresDo terceiro artigo, autores, Lembraram da capital.

Após trinta e quatro anosJuscelino entra em açãoInicia a construção Consolidando a propostaContando com paisagistaArquiteto e engenheiroFaz com Israel Pinheiro, Niemeyer e Lúcio Costa

Em 21 de abril De 60 foi fundadaA cidade projetadaPra sediar o governo.As maiores decisõesDe Brasília estão partindoE hoje estamos assistindo Nossa capital crescer.

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Literatura de Cordel

Cinco seculos de luta e aventura,Desemprego, racismo e violencia

SEVERINO DIONÍSIOEu não vejo porque comemorarCinco séculos de vida do Brasil,Deveria passar o mês de abrilSem ninguém desta data se lembrarSe o índio não tem onde morar,Prostituta não tem a assistênciaO político não usa coerênciaPouca coisa mudou da ditaduraCinco séculos de luta e aventura,Desemprego, racismo e violência!

EDVALDO ZUZUNão se pode esquecer o pelourinho,O porão do navio e a senzalaO quilombo que tanto o povo falaOnde o negro sofreu sem ter padrinho,Conselheiro e Zumbi neste caminhoForam mártires da mesma penitênciaSuportaram castigos sem clemênciaNão tiveram da lei a coberturaCinco séculos de luta e aventura,Desemprego, racismo e violência!

SEVERINO DIONÍSIODescobriram o Brasil, mas foi em vão.Não deviam jamais ter descobertoQue se o branco não tem chegado pertoSó os índios mandavam nesse chão,Sem políticos corruptos na nação,Sem a droga gerando delinqüência,Não havia república nem regênciaNem ninguém criticando a pele escuraCinco séculos de luta e aventura,Desemprego, racismo e violência!

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EDVALDO ZUZUEste monstro cruel capitalismoNão aceita o regime igualitárioSufocou o poder do operárioColocou nossa pátria no abismoAfogou de uma vez o comunismoAmparado na voz da prepotência Onde o fraco não ganha concorrênciaPra um regime cruel de linha duraCinco séculos de luta e aventura,Desemprego, racismo e violência!

SEVERINO DIONÍSIOEste nosso Brasil é bom demaisPra quem tem uma vida bem feliz,Quem desvia o dinheiro do paísVive entre os maiores marajás,Quem explora as riquezas naturais,Quem jamais examina a consciênciaQuem não tem um fiapo de exigênciaGrita viva ao Brasil em toda alturaCinco séculos de luta e aventura,Desemprego, racismo e violência!

EDVALDO ZUZUVera Cruz, Santa Cruz, Monte Pascoal,Pindorama e Brasil até agoraQuando a classe burguesa comemoraA pobreza se sente muito mal.Uma grave injustiça socialVem trazendo terrível conseqüênciaAs esmolas das frentes de emergênciaHumilhando os que estão na agriculturaCinco séculos de luta e aventura,Desemprego, racismo e violência

SEVERINO DIONÍSIOSão quinhentos janeiros de poderConcentrados nas mãos dos oligarcas,Que sufocam, castigam e deixam mar-

casOnde o pobre não para de sofrer,Os mendigos não têm o que comer,Os Sem Terra encontram resistência,Os Sem Teto caçando residênciaE os doentes na rua da amarguraCinco séculos de luta e aventura,Desemprego, racismo e violência!

EDVALDO ZUZUNosso povo inda deve estar lembradoDo que houve em Olinda sempre praia,Buriti Cristalino e AraguaiaE o massacre no chão de EldoradoQuebra-quilos, Praieira, Contestado,Quando vítimas não teve Inconfidência?Bater palmas pra sua independênciaÉ juntar fanatismo com loucuraCinco séculos de luta e aventura,Desemprego, racismo e violência

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A história da

Ciência nos versos de

Gonçalo Ferreira

Gonçalo Ferreira, nascido em Ipu, no Ceará, reside no Rio de Janeiro, onde é presidente da ABLC – Academia Brasileira de Literatura de Cordel.

Autor de mais de 300 folhetos abrangendo os mais diversos assuntos, Gonçalo Fer-reira dedicou-se a contar em versos cordelianos as vidas de alguns mais afamados cientistas do mundo.

Pode se contra mais de

três dezenas de biografias de cientistas produzidas em Cordel por este primoroso poeta popular que, além de cordel-ista é também contista e en-saísta, sendo um dos escritores de grande referência na área do cangaço.

Pesquisador incansável, traz para seus poemas dados fundamentais para a com-preensão da vida e da obra destes grandes benfeitores da

humanidade.Vários outros poetas tam-

bém se dedicaram a cantar as vidas dos cientistas e te-mas científicos, mas a obra de Gonçalo Ferreira é a melhor referência para qualquer pro-fessor que se disponha a usar a Literatura de Cordel como fer-ramenta didático-pedagógica no ensino de Ciências.

Desde Aristóteles, so-bre quem escreveu o folheto “Aristóteles Vida e Obra” até Câmara Cascudo, mesmo tendo a marca de maior folclorista do

Brasil, também enveredou por pesquisas científicas especial-mente nas áreas de Antropolo-gia e Etnografia.

Sobre Aristóteles, Gonçalo Ferreira descreve:

Quando Tales de Mileto,Da Grécia, o primeiro guia,As cortinas do saber Carinhosamente abriaMostrava o florescimento Da grega sabedoria.

Deus tem planos para todosPorém cabe a nós, humanos,

Rigorosa obediênciaAs conselhos soberanosPara que sejamos dignosDesses celestiais planos

Aristóteles reuniuMais do que dignidade;Pois ele, Platão e SócratesFormaram a grande trin-

dadeDos mais notáveis filósofosDa Grécia da antiguidade.

Gonçalo continua descreven-do a vida de Aristóteles, consa-grado como filósofo, ma tam-

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bém reconhecido cientista e mostra que Platão, o mestre, não lhe passou o bastão deixando a todos surpresos e ainda levando a Aristóteles cuidar de pesquisas científicas para so-mente depois voltar à Filosofia.

Com a morte de PlatãoCertamente caberia A Aristóteles dirigirOs rumos da Academia,Mas Platão, frustrando a todosNão lhe deu a honraria.

Aproveitando o momentoO aluno genialPercorreu o mundo gregoE cumprindo o idealEstudou BiologiaE Filosofia natural.

O poeta descreve as andanças, os trabalhos exercidos por Aristóte-les e, de modo especial suas grandes descobertas.

Aristóteles empregouO tempo e o pensamentoComo um observadorMeticuloso e atentoEstudando, do organismo,O seu desenvolvimento.

Se nos domínios da FísicaPouco se aprofundariaNoutras áreas do saberO seu prestígio cresciaSobretudo na acimaDitada Biologia.

Gonçalo continua descrevendo a vida e a obra de Aristóteles, a influência que exerceu sobre o pensamento da humanidade ao longo da história, o desaparecimento dos seus escritos e a redescoberta destes, impactando o saber de épocas diferentes. Por fim, fecha o folheto Aristóteles Vida e Obra, registrando a morte do grande Aristóteles:

O poeta descreve as andancas, os trabalhos exercidos por Aristoteles e, de modo especial suas grandes descobertas.

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Em Cálcis, na ilha egéia,Em luminosa manhãMorreu o grande filósofoCom a consciência sãCerca de trezentos anosAntes da era cristã.

Gonçalo Ferreira relata em poemas de cordel as vidas de vários outros grande sábios da humanidade. Gente do porte de Demócrito, Pitágoras, Sócrates, Hipócrates, Tales de Mileto, Copérnico, Leonardo Da Vinci, Isaac Newton, Kepler, Galileu Galilei, Charles Dar-win, Johan Gutenberg, Laplace, Santos Dumont, Einstein e Albert Sabin.

Sobre o brasileiro Santos Du-mont, Gonçalo diz:

Tinha o homem pelos céusUma paixão milenarMas não dispondo de órgãosAdequados pra voarVia com inveja os pássarosVoando livres no ar.

E vendo nos passarinhosOra a suave levezaOra planando no arOra exibindo destrezaTinha no coração mágoaSecreta da natureza.

Santos Dumont enviadoPela santa providênciaDisse: - Deus não me deu asasPorém deu-me inteligênciaPara que voemos livresCom as asas da Ciência

O inventor brasileiroSatisfez a milenarPaixão que a humanidadeTinha em conquistar o arProporcionando ao homemA sensação de voar.

Todos os folhetos de Gon-çalo Ferreira sobre a temática científica e outras temáticas, como a política, a vida no sertão, o cangaço, a vida da cidade grande e toda uma gama de assuntos que ex-plora em seus mais d trezentos folhetos podem ser encontra-dos na Academia Brasileira de Literatura de Cordel, onde ele é presidente e reside, na rua Leopoldo Fróes, 37, bairro Santa Tereza, Rio de Janeiro, atendendo pelo telefone (21) 2232-4801, e-mail: [email protected]. O site da ABLC que tem um variada riqueza de informações sobre Literatura de Cordel é: www.ablc.com.br

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Todo mundo ouviu falarDo dilúvio universal,Da Arca que Noé fez,E colocou um casal.De todos seres que tinhaDentro do reino animal.

Tem muitos que acreditamNessa bela narração,Outros dizem, é mentiraNão passa de invençãoDe uma mente dotadaDe muita imaginação.

Eu sei que tudo é verdadeSei aonde está a Arca,O cachimbo e o chinelo,De Noé o patriarca.E porque até agora,Ninguém encontrou a barca.

Quem me contou essa históriaFoi Dedé de Macabêu,Lá na lagoa das garças,Ele pescando mais euContou tin-tin por tin-tinComo tudo aconteceu.

Ele disse que NoéCansado de trabalhar,Quando o machado cegouEle invés de amolar,Colocou madeira brutaNa barca sem descascar

A arca de NoéDe Antonio Francisco

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E botou numa sacolaUm casal de embuáUm casal de rato brancoE um casal de preáE mandou uma das filhasIr deixar no Ceará.

Depois colocou num sacoUm casal de gaviãoOutro de tatu canastraBotou num carro de mãoE ele mesmo foi deixarEm Codó do Maranhão.

No Rio Grande do norteNoé botou pouca fé,Mandou deixar em Natal.Um casal de caboréDois casais de caranguejosE um de bicho de pé.No Goiás Noé deixouUm casal de boi zebú,No Mato Grosso botouUm casal de tuiuiúE aonde hoje é BrasíliaUm casal de guabiru. Agora eu deixo NoéEsse grande patriarcaPra falar sobre os cupinsQue viajaram na Arca,E o que eles fizeramCom a madeira da barca.

Quando o tempo adormeceuAs garras do temporal.Que Noé tirou da barcaPra terra o ultimo casalOs cupins abriram as asasPara o vôo nupcial.

E ali ficaram sozinhos Na barca se divertindo,Na gangorra da farturaUm descendo, outro subindoMatando o tempo comendoBebendo, amando e dormindo.

E quando ele fez a jaulaDo casal de guaxinimDo lado esquerdo da gradeFoi um casal de cupimEntre o miolo e a cascaDe um galho de alecrim.

Guardou a jaula na arcaE foi buscar o casal,De tatu-bola, que tinhaNo fundo do seu quintal,Quando o céu mudou de corE caiu um temporal.

Toda terra escureceu,Começou a trovejar,O céu abriu as torneirasSeis semanas sem pararDeixando somente a “Arca”Dividindo o céu do mar. Enquanto Noé lá foraEnfrentava o tempo ruim,Dentro da barca uma festaPara o casal de cupim,Brincando de esconde, es-

condeNa casca do alecrim.

Quando houve uma estia-gem

Noé, subiu ao convés,Abriu uma das gaiolas.E soltou dois caborés,Que voltaram com 6 diasCom lama presa nos pés.Com seis semanas depois,A grande barca chegou,No sul da grande Bahia,Noé desceu e pegou,Um caroço de cacauFez uma cova e plantou.

Depois disse pra famíliaAgora vamos soltarOs animais que trouxemos Do sertão até o marDe acordo com a flora,E o clima do lugar.

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Mas quando um dia acord-aram

Daquele sonho douradoTodo Nordeste da arcaTinha sido mastigadoAté na ponta do lemeTinha cupim pendurado.

Ficaram desesperadosCom tanta devastação,E decidiram fazerUma grande expediçãoPra saberem como estavaO resto da embarcação.

E percorreram essa ArcaDo sul até o oeste,E voltaram estarrecidosDepois que fizeram o teste,Quase toda barca estava,Como as tábuas do Nordeste.

Se reuniram de novoE passaram a tarde inteiraAtrás de uma saída,Procurando uma maneiraPois só no norte da ArcaAinda tinha madeira.

E, como o norte era a baseResolveram preservar,Porque se comessem a baseA Arca ia afundarE com ela todos elesIam pro fundo do mar. Promulgaram a lei do norte,Recrutaram um batalhãoE em cada canto da base,Colocaram um pelotão,Pra defender com a vidaO fundo da embarcação.

Mas cupim guardar madeiraTinha muito o que falar!Quando a fome bateu neles,Começaram devagar.Comendo a casca por cimaPra barca não afundar.

Mas tinha uns mais gulososQue mastigavam a madeiraTransformavam ela em póE atravessavam a fronteiraE traficavam com elaNos cupins da arca inteira.

O tráfico foi aumentandoA barca não suportou,Partiu-se em quatro pedaços,Na mesma hora afundou,Levando todos os cupinsSó um casal escapou.

Diz Dedé que os dois cupinsTinham aprendido a lição,Estavam agora no norteDefendendo a regiãoComo se o norte fosseO fundo da embarcação.

Mas cupim guardar madeiraEu mesmo não tenho féVão fazer o que fizeramCom a Arca de Noé,Logo, logo, a AmazôniaNão vai ter um pau em pé.

E quando nada restar!Nem mesmo marcas no chãoVão dizer a AmazôniaNão passa de invençãoDe uma mente dotadaDe muita imaginação.

Nesse tempo os JaponesesEstão fabricando ar,De semente de melão,E o Brasil vai comprar.Pra desdobrar e vender,Quem for vivo vai saberO quanto custa respirar.

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De Repente.. .

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Os repentistas têm tiradas geniais reg-istradas na memória

coletiva de todo o Nordeste brasileiro, mesmo que cantem repentes submetidos a regras extremamente rígidas de Rima, Métrica, oração, Ritmo e melodia.

Para produzir uma sextilha de improviso dispõem de, no máximo quinze segundos e ainda têm que iniciar a primeira linha da estrofe pegando “na deixa” ou seja com a mesma rima, de preferência sem repetir a palavra como no caso dos improvisadores sulistas. Há poetas que conseguem fazer uma sextilha com apenas nove ou dez segundos.

Mas vamos lembrar uma sex-tilha que ficou na memória cole-tiva do Nordeste Brasileiro: é do poeta Antonio Pereira de Pernam-buco, conhecido como “O poeta da saudade”:

Saudade é um parafusoQue dentro da rosca cai,Que tem que entrar torcendoPorque batendo não vaiDepois que enferruja dentroNem destorcendo não sai!

É ele também o provável autor de outros dos mais belos improvi-sos de todos os tempos:

Há entre o homem e o tempoContradições bem fataisO homem não faz mas dizO tempo não diz, mas fazO homem traz mas não levaO tempo leva e não traz!

Já o poeta paraibano que viveu no Ceará há décadas, ficou

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imortalizado com várias estro-fes, mas essa é considerada um clássico do repente nordestino. Diante do mote A Terra caiu no Chão que lhe foi dado por um advogado que estava incomo-dado porque um cantador sem diploma chamava mais a aten-ção do povo que ele, Bentivi improvisou de forma genial:

Eu plantei um pé de uvaDentro de uma panelaEm cima de uma janelaNa casa de uma viúvaUm dia veio uma chuvaCom relâmpago e trovão Veio um vento furacãoQue arrebentou a janela,Esbagaçou a panelaE A TERRA CAIU NO CHÃO

O poeta piauiense Domingos da Fonseca foi outro monstro do improviso. Num dos seus momentos de glória, assim de-screveu em quinze segundos a essência da escravidão negra no Brasil.

Quando era injusto o BrasilOs negros se cativaram.O choro dos filhos brancosAs mães negras consolaramE o leite dos filhos pretosOs filhos brancos tomaram!

Diniz Vitorino, pernambu-cano ainda vivo e atuante na profissão de violeiro há anos já colocava um cheiro de preo-cupação com o meio ambiente em seus improvisos, como o fez nessa estrofe magistral:

Não atiro num Vem-vemNem posso matar um grilo

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Pois se eu atirar neleO bosque chora intranqüiloE a mata se banha em

prantoPor não poder mais ouvi-lo!

Já o poeta Ercílio Pinheiro, norte-riograndense que fez profissão no Ceará saudou as-sim o mestre folclorista Luis da Câmara Cascudo:

Eis o Doutor Cascudinho,Que prestimoso tesouro.O meu Sertão também temCascudo, grilo e besouro...Os de lá não valem nada,Mas esse aqui vale ouro!

E Fabião das Queimadas, poeta escravo que comprou sua alforria com o ganho dos seus improvisos feitos ainda em qua-dras e ao som de uma rabeca, deixou esta quadrinha genial para a posteridade:

A minha alma de velhoAnda agora remoçadaQ’a paixão é como o sono Chega sem ser esperada!

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O vôo centenário do

mestre da poesiaPor Gilmar de Carvalho

O que levaria um menino nascido no meio do mato, longe dos grandes centros e cego de um olho, aos

quatro anos e com poucos meses de escola formal, a se transformar num dos nomes mais vigorosos da poesia brasileira? Antônio Gonçalves da Silva, nascido a 5 de março de 1909, na Serra de Santana, a 18 Km de As-saré, a oito léguas do Crato e a mais de 500 Km de Fortaleza, é prova da superação das adversidades na construção de um destino que não é traçado por um Deus determinista, mas enfrentado no dia-a dia por todos nós.

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O menino poderia ter o mesmo destino de tantos outros “severinos” ou de tantos po-etas/ violeiros obscuros que se perderam pelas veredas e atalhos de um sertão cáustico. Antônio leu muito e isso deu a ele um diferencial. Era aquele menino a quem os letrados de sua cidade emprestavam um livro sabendo que ele seria bem digerido. Essas leituras não o colocaram numa torre de marfim e se revezavam com a lida da terra nos alqueires que seu pai deixou ao morrer quando Antônio contava com oito anos de idade. A educa-ção formal foi de poucos meses, mas ficou a dívida ao antigo e limitado mestre.

Ouviu poetas e violeiros cantando na serra, e a leitura de um cordel deu a ele a dimensão da poesia da voz. Intuía que um dia poderia também compor. Aos 16 anos, convenceu a mãe a vender uma ovelha para comprar uma viola. Agradou aos “serranos” e passou a se apresentar quando havia festa.

Um parente que vivia na Amazônia ouviu seu canto e quis levá-lo consigo. A mãe relutou, mas cedeu quando teve a promessa de que o filho trovador estaria de volta pouco tempo depois. Em Belém, Antônio ganhou de José Car-valho de Brito, escritor cearense que também cumpria tempo-rada paraense, o epíteto de Patativa, pela maviosidade do canto. Surgiram outros Patati-vas, ele colocou seu topônimo como diferencial e passou a ser

Patativa do Assaré.Durante mais de 25 anos,

trabalhou a terra e cantou ao som da viola. Compôs a maior parte de seu repertório longe dos holofotes da mídia. Casou, em 1936, com Belarmina Paes Cidrão, a dona Belinha, com-panheira de uma vida inteira, com quem teve cinco filhos (Afonso, Geraldo, João, Pedro e Raimundo) e quatro filhas (Maria Maroni, Mirian, Inês e Lúcia).

O cuidado com o verso o levou à leitura do “Tratado de Versificação” de Olavo Bilac e Guimarães Passos. Esse zelo pela forma não o engessou nos cânones do parnasianismo, an-tes, sinalizou as possibilidades da voz. A voz chegou à es-crita, nos torneios de viola que largou, fazendo uma poesia que não era apenas maviosa, mas contundente, quando o traço mais marcante é sua conotação política.

Patativa fez poema de amor, de gracejo, eróticos alguns (que ele nunca publicou), telúricos, sobre as desigual-dades sociais e a necessidade

da Reforma Agrária. Nunca fez uma poesia fora de lugar, parafraseando um grande crítico. Tampouco fez uma po-esia fora do tempo. Tudo nele estava absolutamente sinton-izado.

Assim, falou das mídias (xingou a televisão no poema “Presente disagradave”), dos meninos em situação de rua, do progresso como elemento de dissolução de formas de socia-bilidade (da lida nas casas de farinha, dos engenhos de ferro, da desativação da linha fér-rea) e do MST como o grande movimento social organizado do país. O poeta, a seu modo, cristalizou a história do século XX. Esteve no centro de momen-tos cruciais da vida brasileira. A repressão, que não o fez calar, ainda que tenha sido intimado para depor, em 1967, por conta de sua ligação com lideranças estudantis do Cariri e do poema “Poeta Roceiro”. Foi um ser político, na exata acepção dessa expressão.

O primeiro livro veio em 1956 e deveu-se ao rádio a difusão de sua poesia. Todo dia de feira no Crato, ele vinha vender parte de sua produção, fazer compras e reencontrar os amigos. Em 1951, foi inau-gurada a Rádio Araripe do Crato, a primeira emissora do interior cearense. O poeta foi convidado a dizer poemas no programa apresentado pela radialista Teresinha Siebra. Patativa ganhou fãs. Um deles foi o filólogo José Arraes de Alencar, cratense radicado no Rio de Janeiro e funcionário do

Ouviu poetas e violeiros cantando na serra, e a leitura de um cordel deu a ele a dimensao da poesia da voz. Intuia que um dia poderia tambem compor.

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Banco do Brasil. Arraes estava de férias,

visitando a família, quando foi surpreendido pela voz do po-eta declamando um poema ao microfone. Pediu que ele viesse vê-lo. Propôs a publicação de um livro. Patativa alegou que não tinha como pagar. Ficou acertado que pagaria com a venda dos exemplares. Os poemas seriam ditados por Patativa, datilografados por Moacir, filho do folclorista Leonardo Mota, organizados por Arraes e publicados, com o título de “Inspiração Nordes-tina”, por Borsoi Editor, do Rio de Janeiro.

Interessante a influência do rádio na vida e na trajetória do poeta. Ele chegou ao vinil por conta de Luiz Gonzaga ter ouvido, no rádio do carro, numa viagem que fazia pelo interior da Paraíba, um violeiro entoar a “Triste Partida”. Ele quis saber quem era o autor e foi visitar Patativa no Crato. Quis comprar os direitos da obra. Patativa concordou com a gravação, desde que fosse mantida sua autoria. Assim se fez, e ele estreou no disco em 1964.

Vieram outros livros (“Novos Poemas Comentados”, “Cante lá que eu canto cá”, “Ispinho e Fulo”, “Balceiro”, “Aqui tem coisa”, “Cordéis” e “Ao pé da mesa”, esse último em parce-ria com o sobrinho Geraldo Gonçalves de Alencar) e discos (“Poemas e Canções”, “A terra é natura”, “Canto Nordestino”, “85 anos de Poesia” e “Patati-va do Assaré”). A preocupação

dele com a preservação do registro, com a fixação de sua poética, estava sendo feita.

Durante anos, ele se exer-citou com a viola. Enfrentava viagens no lombo de burro, vestia o paletó, usava gravata, empunhava a viola e fazia a festa quando disputava com o algoz. Aos poucos, foi se afa-stando das cordas e pode-se pensar no poeta como o vio-leiro à capela. A voz é indisso-ciável de sua poética.

Patativa queria o livro e descartava o folheto de cordel. Chamava os cordelistas de es-crevinhadores, dizia não querer fazer comércio de sua lira e não se afastou de sua terra, até os 70 anos, quando Dona Belinha o convenceu a viver na cidade do Assaré, ao lado da Igreja Matriz.

Com sua casa sempre aberta aos visitantes, Antônio Gonçalves da Silva se destacou pela coerência e pela fluidez de sua fala, maviosa como o cantar da patativa. Fazendo poesia, trabalhando o chão, com suas mãos calejadas, can-

tando o mundo, foi intérprete de sua gente e porta-voz dos excluídos de todos os tempos. Pretendia ter o alcance e a grandeza de um Castro Alves atualizado: conseguiu. A mídia nunca o mascarou. Nunca posou de celebridade e nunca aban-donou sua cidade. As viagens para receber comendas, títulos de cidadania e shows tinham bilhetes de ida e volta.

Foi sempre o poeta-cam-ponês. Isso, apesar de ter estado no lugar certo, na hora certa: nos jornais alternati-vos que vicejaram depois do golpe de 1964, no palanque da Anistia, das “Diretas-Já” ou nos torneios verbais na Serra de Santana. Em 1986, subiu, espontaneamente, no palanque de Tasso Jereissati, candidato ao governo do Ceará. Acredi-tou na idéia de mudança, anun-ciada pelo jovem empresário que estreava na política. O apoio lhe rendeu, depois, cobranças, mas ele manteve a amizade com Tasso, sem perder a liberdade de declarar o voto em Lula para presidente nas eleições de 1989, 1994 e 1998.

Patativa esteve nas pelícu-las e nos vídeos, deixou o registro de sua voz, escreveu livros e tem sido cada vez mais objeto de teses, dissertações, monografias, artigos e ensaios. Foi Doutor Honoris Causa de três Universidades cearenses (URCA, UECE e UFC), cidadão de muitos municípios e Esta-dos, ganhou prêmios, mas o que mais o emocionava era a recepção calorosa pelas ruas,

Patativa esteve nas peliculas e nos videos, deixou o registro de sua voz, escreveu livros e tem sido cada vez mais objeto de teses, dissertacoes, monografias, artigos e ensaios.

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praças e auditórios. Era o instante da performance, quando seu corpo pequeno de 1,50 m se agigantava, os gestos se tornavam eloqüentes e ele dizia as verdades que vinham do fundo do tempo e se atualizavam no instante presente.

Nunca se falou tanto de um poeta de extração popular ser-taneja. Por quê? Pela excelência de seu verso e pela manutenção de suas raízes, cantando o mundo a partir de sua aldeia. Patativa é a mais perfeita tradução de um clássico construído pelo povo e voltado para o povo. Viveu da terra. Criava e não precisava de álibis para fazer uma poesia tensa e sonora, como as cordas da viola de cego que nunca foi, apesar de ter perdido as duas vistas. Ele enxergou sempre longe e muito bem. Anteviu, no sentido de que a voz poética é profecia. Mais que um poeta, foi um cidadão, pleno no exercício de seus direitos e cumpridor de seus deveres.

Sua altivez era respeitada pelos seus contemporâneos, pelos que tiveram o privilégio de conhecê-lo ou pelos que o descobrem pela leitura de seus poemas, pela audição dos versos que ele disse ou pelas imagens em movimento que nos dão apenas uma pálida idéia do monumento que ele foi. Sua história de vida é história de luta, dele e de todos os camponeses, nascidos sob a égide da poesia da voz, ouvindo trancoso, pegando no cabo da enxada, esperando pelas chuvas, mas capazes de abrir caminhos, inscrever seus anseios, expectativas e sonhos num fundo comum e incorporar suas lutas numa luta maior, que é luta de todos nós por uma sociedade mais justa, menos competitiva e desigual.

Quando completou 90 anos, Patativa do Assaré ganhou um me-morial, localizado num antigo sobrado, que reúne objetos pessoais do poeta, livros, discos, vídeos. A iniciativa era de criar um espaço de pesquisa e um lugar para o cultivo de sua poesia como visão de mundo. Patativa fez a sua parte, deixou a sua marca. Sua poesia está aí para transformar o mundo. Ela tem esse poder encantatório, pela força das verdades que enuncia. As bibliotecas armazenam seus livros. A parafernália tecnológica nos possibilita recuperar sua voz. As tevês estão sempre a reprisar essa personagem de docu-mentários e perfis. Assim, graças às mídias, o poeta pássaro estará sempre entre nós.

Patativa é um exemplo de superação de dificuldades de toda ordem para a poesia se fazer presente e interferir na realidade contraditória e diversa. Quando ele completaria 100 anos, é a hora e a vez dos cidadãos brasileiros, de todos os tempos e de todos os lugares, o saudarem, em alto e bom som, e engendrarem uma polifonia rascante a partir de seus poemas.

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