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O ENSINO FUNDAMENTAL DE NOVE ANOS COMO UMA POLÍTICA PÚBLICA PARA A EDUCAÇÃO RONSONI, Marcelo Luis – UFSM [email protected] Área Temática: Educação: Políticas Públicas e Gestão da Educação Agência Financiadora: Não contou com financiamento Resumo O presente trabalho propõe discutir as implicações e desafios pedagógicos decorrentes da obrigatoriedade da matrícula de crianças de seis anos no Ensino Fundamental, a partir da Lei nº. 11.274, de 06 de fevereiro de 2006. Este trabalho analisa o Ensino Fundamental de Nove Anos como uma política pública para a educação, voltada essencialmente para a inclusão social e para recuperar perdas históricas no que se refere ao processo de alfabetização. Objetivando contribuir nessa discussão, o presente projeto visa compreender e analisar como a proposta de ampliação do Ensino Fundamental chegou às escolas e que mudanças provocou no seu cotidiano. Ou melhor: ela chegou às escolas e provocou alguma mudança? Além destas, devem ser consideradas questões adicionais, que vão interferir significativamente no trabalho realizado em cada escola, como, qual professor deve assumir este trabalho, o da Educação Infantil, que já tem certo conhecimento da clientela a ser atendida, ou o do Ensino Fundamental, habituado a trabalhar com o processo de alfabetização? Para compreender a complexidade das medidas de obrigatoriedade da matrícula de crianças de seis anos no Ensino Fundamental e as relações dessas com o contexto escolar, utilizarei uma abordagem qualitativa de caráter etnográfico. Pretendo apontar como resultado desta pesquisa, que a obrigatoriedade da matrícula de crianças de seis anos no Ensino Fundamental implica, necessariamente, em repensar e reelaborar toda a proposta pedagógica da escola e não só a do Primeiro Ano, o que se constitui numa tarefa e em um compromisso para todos os segmentos da comunidade escolar, conforme previsto na atual LDB, Lei nº. 9394/96, em especial em seus artigos 12 a 14, sendo que a inclusão das crianças de seis anos no Primeiro Ano requer um diálogo institucional e pedagógico entre os diversos níveis de ensino, sobretudo entre a Educação Infantil e o Ensino Fundamental. Palavras-chave: Políticas públicas; Ensino Fundamental de nove anos; Práticas pedagógicas. Introdução O presente trabalho apresenta, a partir da nova redação dada à Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB – Brasil, 1996) no que se refere à idade mínima obrigatória de ingresso no Ensino Fundamental, tendo este a duração de nove anos, alguns desafios para o alcance de uma educação de qualidade nesta etapa de ensino.

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O ENSINO FUNDAMENTAL DE NOVE ANOS COMO UMA POLÍTICA

PÚBLICA PARA A EDUCAÇÃO

RONSONI, Marcelo Luis – UFSM [email protected]

Área Temática: Educação: Políticas Públicas e Gestão da Educação

Agência Financiadora: Não contou com financiamento Resumo O presente trabalho propõe discutir as implicações e desafios pedagógicos decorrentes da obrigatoriedade da matrícula de crianças de seis anos no Ensino Fundamental, a partir da Lei nº. 11.274, de 06 de fevereiro de 2006. Este trabalho analisa o Ensino Fundamental de Nove Anos como uma política pública para a educação, voltada essencialmente para a inclusão social e para recuperar perdas históricas no que se refere ao processo de alfabetização. Objetivando contribuir nessa discussão, o presente projeto visa compreender e analisar como a proposta de ampliação do Ensino Fundamental chegou às escolas e que mudanças provocou no seu cotidiano. Ou melhor: ela chegou às escolas e provocou alguma mudança? Além destas, devem ser consideradas questões adicionais, que vão interferir significativamente no trabalho realizado em cada escola, como, qual professor deve assumir este trabalho, o da Educação Infantil, que já tem certo conhecimento da clientela a ser atendida, ou o do Ensino Fundamental, habituado a trabalhar com o processo de alfabetização? Para compreender a complexidade das medidas de obrigatoriedade da matrícula de crianças de seis anos no Ensino Fundamental e as relações dessas com o contexto escolar, utilizarei uma abordagem qualitativa de caráter etnográfico. Pretendo apontar como resultado desta pesquisa, que a obrigatoriedade da matrícula de crianças de seis anos no Ensino Fundamental implica, necessariamente, em repensar e reelaborar toda a proposta pedagógica da escola e não só a do Primeiro Ano, o que se constitui numa tarefa e em um compromisso para todos os segmentos da comunidade escolar, conforme previsto na atual LDB, Lei nº. 9394/96, em especial em seus artigos 12 a 14, sendo que a inclusão das crianças de seis anos no Primeiro Ano requer um diálogo institucional e pedagógico entre os diversos níveis de ensino, sobretudo entre a Educação Infantil e o Ensino Fundamental. Palavras-chave: Políticas públicas; Ensino Fundamental de nove anos; Práticas pedagógicas.

Introdução

O presente trabalho apresenta, a partir da nova redação dada à Lei de Diretrizes e

Bases da Educação Nacional (LDB – Brasil, 1996) no que se refere à idade mínima

obrigatória de ingresso no Ensino Fundamental, tendo este a duração de nove anos, alguns

desafios para o alcance de uma educação de qualidade nesta etapa de ensino.

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Ao longo do texto dialogaremos com questões afetas à Educação Infantil. Isto se deve,

sobretudo, ao fato de que a nova organização do Ensino Fundamental com duração de nove

anos absorverá as crianças com seis anos de idade, as quais estavam, até o momento, inseridas

na “lógica” de funcionamento da Educação Infantil, com suas normalizações e orientações

pedagógicas específicas. Nesse sentido, abordaremos a questão da cultura escolar como um

conjunto de saberes e práticas presentes nas escolas, os quais exercem grande influência em

uma proposta de mudança educacional, como é o caso da alteração proposta pelo Ensino

Fundamental de nove anos.

Para as discussões aqui pretendidas, foram analisados materiais publicados pelo MEC,

os documentos de orientação, legislação, relatórios do programa, e o livro Ensino

Fundamental de Nove Anos: orientações para a inclusão da criança de seis anos de idade: + 1

ano é fundamental. Este último é considerado como um manual que prescreve formas de

como desenvolver a prática pedagógica em sala de aula, regulando e controlando a ação

docente, mas ao mesmo tempo permitindo um efetivo governamento da aula a ser dada e da

população infantil que se encontra nas escolas fundamentais.

Na seqüência, são apresentadas considerações acerca de outros aspectos julgados

relevantes para o equacionamento de um atendimento com o mínimo de qualidade e, como

item final, são apresentadas indagações com o intuito de destacar a necessária atenção a ser

dirigida à organização do Ensino Fundamental, para que aquilo que poderia representar um

ganho – mais um ano de escolaridade obrigatória -, não se transforme em prejuízo. Ressalte-

se que o momento parece bastante propício para que a atual estrutura e funcionamento da

escola de Ensino Fundamental, bem como toda a sua organização didático-pedagógica, sejam

reavaliados de modo a que consigamos garantir o que aqui entendemos por uma completa

democratização desse nível de ensino, ou seja, acesso, permanência e qualidade. Isto porque,

apesar da ampliação no número de vagas oferecidas, nossa escola de Ensino Fundamental

segue com grandes dificuldades para cumprir minimamente sua tarefa, mesmo que nos

refiramos apenas aos seus objetivos mais básicos, quais sejam os de ensinar nossas crianças a

lerem, escreverem e contarem. Assim, se ao longo do texto nortearemos nossa argumentação

tomando como referência principalmente os direitos da criança de seis anos de idade e as

necessárias alterações no Ensino Fundamental para que eles sejam minimamente atendidos, o

fato é que tais direitos, na verdade, não se limitam – ou não deveriam se limitar – a crianças

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dessa idade, mas, antes, eles dizem respeito a todas aquelas que freqüentam o primeiro ciclo

do Ensino Fundamental, ou seja, as de sete, oito, nove e dez anos.

Ensino Fundamental de Nove Anos

No Brasil, historicamente, a idade mínima para o ingresso na escolarização foi de sete

anos de idade. Nos últimos tempos, há um interesse crescente em ampliar este ingresso para

as crianças de seis anos e aumentar o período de duração do ensino obrigatório de oito para

nove anos. Esta intencionalidade pode ser constatada por meio das sucessivas leis que

amparam a educação brasileira: a Lei nº. 4.024/1961, que estabelece a obrigatoriedade do

ensino para quatro anos; o Acordo de Punta Del Este e Santiago/1970, que estende para seis

anos o ensino para todos os brasileiros; a Lei nº. 5.692/1971, que distende a obrigatoriedade

para oito anos; a Lei nº. 9.394/1996, que sinaliza para um Ensino Fundamental obrigatório de

nove anos, a iniciar-se aos seis anos de idade; a Lei nº. 11.114/2005, que altera a 9.394/1996 e

tornou obrigatório o início do Ensino Fundamental aos seis anos de idade, e, por fim, a Lei nº.

11.274/2006, que institui o Ensino Fundamental de nove anos de duração com a inclusão das

crianças de seis anos de idade.

O Ensino Fundamental de nove anos é uma política pública afirmativa de equidade

social implementada pelo Governo Federal. Esta política educacional inclui a criança a partir

de seis anos no Ensino Fundamental, altera a sua duração de oito para nove anos de idade e

estipula o prazo até 2010 para que todos os estados e municípios brasileiros implantem o novo

sistema. Tal implantação exigirá mudanças na proposta pedagógica, no material didático, na

formação de professor, bem como nas concepções de espaço-tempo escolar, currículo,

avaliação, infância, aluno, professor, metodologias... A ampliação em mais um ano de estudo

no Ensino Fundamental pode produzir um salto na qualidade da educação: inclusão de todas

as crianças de seis anos, menor vulnerabilidade a situações de risco, permanência na escola,

sucesso no aprendizado e aumento da escolaridade dos alunos.

Segundo o Plano Nacional da Educação (PNE, 2001), implantar progressivamente o

Ensino Fundamental de nove anos, pela inclusão das crianças de seis anos de idade, tem duas

intenções:“oferecer maiores oportunidades de aprendizagem no período da escolarização

obrigatória e assegurar que, ingressando mais cedo no sistema de ensino, as crianças

prossigam nos estudos, alcançando maior nível de escolaridade”. Em outras palavras, o

objetivo desta política pública afirmativa de equidade social é assegurar a todas as crianças

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um tempo mais longo de convívio escolar, maiores oportunidades de aprender e, com isso,

uma aprendizagem mais ampla. No que se refere à questão de direito, objetiva a

democratização da educação e a eqüidade social no acesso e na continuidade dos estudos. No

que tange a questão pedagógica, tem por fim a democratização do conhecimento e do acesso

até aos níveis escolares mais elevados, assim como mais tempo para aprender e respeito aos

diferentes tempos, ritmos e formas de aprender dos alunos.

Os indicadores nacionais apontam que, atualmente, das crianças em idade escolar,

3,6% ainda não estão matriculadas. Entre aquelas que estão na escola, 21,7% estão repetindo

a mesma série e apenas 51% concluirão o Ensino Fundamental, fazendo-o em 10,2 anos em

média. Acrescenta-se, ainda, que em torno de 2,8 milhões de crianças de sete a 14 anos estão

trabalhando, cerca de 800 mil dessas crianças estão envolvidas em formas degradantes de

trabalho, inclusive a prostituição infantil (MEC, 2004). Esses dados reforçam o propósito de

ampliação do Ensino Fundamental para nove anos, uma vez que permite aumentar o número

de crianças incluídas no sistema educacional. Os setores populares deverão ser os mais

beneficiados, visto que as crianças de seis anos das classes favorecidas já se encontram

majoritariamente incorporadas ao sistema de ensino – na pré-escola ou na primeira série do

Ensino Fundamental.

A opção pela faixa etária dos seis aos 14 e não dos sete aos 15 anos para o Ensino

Fundamental de nove anos segue a tendência das famílias e dos sistemas de ensino de inserir

progressivamente as crianças de seis anos na rede escolar. Entretanto, esta inserção não se

traduz em transferir para estas crianças os conteúdos e atividades da tradicional primeira série,

mas sim conceber uma nova estrutura de organização dos conteúdos, considerando o perfil de

seus alunos; tampouco não pode constituir-se em medida meramente administrativa. O

cuidado na seqüência do processo de desenvolvimento e aprendizagem destas crianças

implica o conhecimento e a atenção às suas características etárias, sociais e psicológicas. As

orientações pedagógicas, por sua vez, deverão estar atentas a essas características para que as

elas sejam respeitadas como sujeitos do aprendizado.

Muito nos preocupa, de fato, a concepção que os professores e as escolas têm desse

novo Primeiro Ano. A situação que tínhamos anterior à nova lei, era de uma Educação

Infantil que se via tomada, contaminada pelas atividades, conteúdos e objetivos da antiga 1ª

série, ou seja, a Educação Infantil estava perdendo seu espaço de ludicidade, de brincadeira,

de livre expressão, para passar a ser um ambiente alfabetizar muitas vezes, ou pré-

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alfabetizador, atividade que não consta em suas atribuições. A cultura escolar das séries do

Ensino Fundamental estava invadindo o espaço da Educação Infantil, modificando sua forma

de atuação, sua cultura.

Cultura Escolar

Quando entramos em uma escola estamos em um lugar bem conhecido. Um local que

freqüentamos por longos anos e do qual temos muitas recordações. Ali as coisas têm mudado

muito pouco. Nós conhecemos bem a organização deste espaço físico, o tipo dos móveis, as

diferentes disposições do ambiente e a forma de sua edificação e não nos causam surpresas

seus padrões de relacionamento e convivência social, suas expectativas de comportamento,

seus ritos, sua disciplina, seus horários de trabalho e lazer e seus procedimentos pedagógico-

didáticos. Tudo isso se instituiu numa cultura específica, que se organizou em práticas e

hábitos de natureza burocrática e conservadora.

A cultura escolar predominante nas nossas escolas se revela como "engessada", pouco

permeável ao contexto em que se insere, aos universos culturais das crianças e jovens a que se

dirige e a multiculturalidade das nossas sociedades. Como afirma Vera Candau (2008, on-

line),

Parece que o sistema público de ensino, nascido no contexto da modernidade, assentado no ideal de uma escola básica a que todos têm direito e que garanta o acesso a todos dos conhecimentos sistematizados de caráter considerado "universal", além de estar longe de garantir a democratização efetiva do direito à educação e ao conhecimento sistematizado, terminou por criar uma cultura escolar padronizada, ritualística, formal, pouco dinâmica, que enfatiza processos de mera transferência de conhecimentos, quando esta de fato acontece, e está referida à cultura de determinados atores sociais, brancos, de classe média, de extrato burguês e configurado pela cultura ocidental, considerada como universal.

A dinâmica cristalizada na cultura escolar apresenta uma enorme dificuldade de

incorporar os avanços do desenvolvimento científico e tecnológico, as diferentes formas de

aquisição de conhecimentos, as diversas linguagens e expressões culturais e as novas

sensibilidades presentes de modo especial nas novas gerações e nos diferentes grupos

culturais. Os processos de aquisição-construção-desconstrução-reconstrução do

conhecimento, em profunda crise na sociedade atual, onde caminhos e linguagens

diversificadas se impõem, aparecem no dia a dia das salas de aula de modo homogêneo e

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repetitivo, através de formas estereotipadas, na grande maioria das situações. Chama atenção

quando se convive com o cotidiano de diferentes escolas, como são homogêneos os rituais, os

símbolos, a organização do espaço e dos tempos, as comemorações de datas cívicas, as festas,

as expressões corporais, etc. Mudam as culturas sociais de referência, mas a cultura da escola

parece gozar de uma capacidade de se auto-construir independentemente e sem interagir com

estes universos. É possível detectar um "congelamento" da cultura da escola que, na maioria

dos casos, a torna "estranha" aos seus habitantes.

Essa cultura escolar, tão cristalizada e enraizada em padrões culturais

homogeneizadores, pode fazer com que a alteração prática do Ensino Fundamental de oito

para nove anos venha a se constituir de modo arbitrário, ou seja, o Primeiro Ano seja

responsável pelas mesmas atividades da 1ª série, em decorrência de ser o mesmo professor, e

muitas vezes, o mesmo espaço físico ocupado pela aquela turma.

Colocar o aluno/criança de camadas populares na escola do Ensino Fundamental aos

seis anos (pois são estes os que estão fora do atendimento e longe de intervenções

qualificadas), sem uma proposta pedagógica qualificada significa apenas antecipar o fracasso

escolar. É preciso analisar e compreender os princípios e conceitos deste paradigma, pois sem

essa compreensão, corre-se o risco de perpetuar o fracasso, a reprovação, a não aprendizagem.

É preciso pensar e refletir a própria prática pedagógica sob este novo olhar: O QUE SE FAZ

E COM QUAIS OBJETIVOS SE FAZ, ou seja, como estamos e o que precisamos mudar,

pois ninguém muda se não tem consciência do que precisa mudar, planejar e melhorar.

Orientações do Ministério da Educação

Em maio de 2006, o MEC, por meio de sua Secretaria de Educação Básica, publica o

terceiro relatório com orientações para a organização do Ensino Fundamental de nove anos

assim intitulado: “Ampliação do ensino fundamental para nove anos: 3º relatório do

programa”. (BRASIL, 2006).

Do conteúdo desse documento, gostaríamos de destacar alguns aspectos. Em primeiro

lugar, é preciso reconhecer o esforço, por parte do MEC, em levantar experiências que já

vinham se dando pelo país a fim de conhecer e divulgar possibilidades para a organização

dessa nova organização do Ensino Fundamental; bem como em elaborar orientações

específicas visando a dirimir dúvidas e a auxiliar os sistemas a se estruturarem de modo a

atenderem a lei sem, contudo, incorrer em erros administrativos e pedagógicos que pudessem

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redundar em maiores prejuízos à qualidade da educação. Em que pese esse reconhecimento,

todavia, é preciso problematizar algumas das orientações oferecidas, não tanto pela sua

natureza, embora em alguns aspectos também por isto, mas principalmente pelas suas reais

possibilidades de interferir na realidade de cada sistema, uma vez que, além de outras razões,

tais orientações não possuem caráter mandatório.

Com relação às implicações pedagógicas, o documento afirma a necessidade de que

haja:

[...] com base em estudos e debates no âmbito de cada sistema de ensino, a re-elaboração da proposta pedagógica das Secretarias de Educação e dos projetos pedagógicos das escolas, de modo que se assegure às crianças de 6 anos de idade seu pleno desenvolvimento em seus aspectos físico, psicológico, intelectual, social e cognitivo. (BRASIL, 2006, p.9)

Observe-se a preocupação em garantir o que estava contido na LDB (Brasil, 1996) em

relação à Educação Infantil no que se refere às crianças de seis anos de idade, ou seja, o

direito a um desenvolvimento integral. Além disso, observa-se uma preocupação para que

tanto os sistemas, por meio de suas Secretarias de Educação, quanto as escolas, re-elaborem

seus projetos pedagógicos a fim de atender o objetivo acima mencionado; todavia, alerta-se

para a necessidade de que tal re-elaboração ocorra mediante “estudos e debates”. O que a

experiência até aqui observada tem evidenciado, com algumas exceções, é que boa parte das

escolas tem elaborado seus projetos pedagógicos apenas para serem enviados às Secretarias

onde, por sua vez, são apenas carimbados e burocraticamente homologados; em ambas as

instâncias trata-se, em geral, de um cumprimento meramente formal das exigências legais em

vigor. Além disso, o que se tem constatado é que, em função do Fundo de Manutenção e

Desenvolvimento do Ensino Fundamental e de Valorização do Magistério (FUNDEF), muitos

sistemas já vinham matriculando crianças de seis anos no Ensino Fundamental sem, contudo,

realizar qualquer debate, fosse no âmbito do próprio sistema, fosse no da escola. No momento

em que escrevemos este artigo, por força da lei, muitos sistemas já elaboraram sua ordenação

legal própria para que em 2007 tivesse início o funcionamento do Ensino Fundamental de

nove anos e, até onde temos acompanhado, a preocupação centrou-se muito mais em questões

formais do novo sistema de atendimento do que em sua organização didático-pedagógica.

Assim, embora o MEC tenha se preocupado com a questão, os sistemas parecem não ter

condições – ou vontade política – para uma preparação de sua estrutura que preveja um

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mínimo de qualidade antes que a implantação do Ensino Fundamental de nove anos ocorra.

Aliás, deve-se lembrar que esta parece ser uma regra em nosso sistema educacional: primeiro

sanciona-se a lei, depois se corre atrás de sua viabilização e, enquanto isso, alunos e

professores são, em geral, os que mais sofrem durante os períodos de “transição”.

Quanto ao item destinado ao currículo, o documento destaca pontos importantes.

Primeiro, enfatiza que:

O primeiro ano do ensino fundamental de nove anos não se destina exclusivamente à alfabetização. [...] É importante que o trabalho pedagógico implementado possibilite ao aluno o desenvolvimento das diversas expressões e o acesso ao conhecimento nas suas diferentes áreas. (BRASIL, 2006, p.9)

Em seguida, afirma-se que: “Faz-se necessário elaborar uma nova proposta curricular

coerente com as especificidades não só da criança de 6 anos, mas também das demais crianças

de 7, 8, 9 e 10 anos, que constituem os cinco anos iniciais do Ensino Fundamental.”

(BRASIL, 2006, p.9)

Cumpre observar o mérito do documento ao chamar a atenção para o fato de que

mudanças curriculares são necessárias não apenas em função das crianças de seis anos, mas

em função do conjunto de crianças que freqüentam o primeiro ciclo – os anos iniciais – do

Ensino Fundamental. Entretanto, dada a realidade encontrada na maioria dos sistemas e

escolas, não é possível abandonar certo ceticismo, pois se o trabalho do MEC, bem como do

governo em suas diferentes esferas, se limitar a orientações, sem um forte e claro

investimento formativo – o que implica em recursos financeiros – é de se esperar poucas

alterações, ao menos no curto prazo. Como afirma Antônio Nóvoa (1995): “não há ensino de

qualidade, nem reforma educativa, nem inovação pedagógica, sem uma adequada formação

de professores”.

Ainda em relação ao item destinado ao currículo, o documento do MEC enfatiza:

Quanto à avaliação da aprendizagem no 1º ano do ensino fundamental de nove anos, faz-se necessário assumir como princípio que a escola deva assegurar aprendizagem de qualidade a todos; assumir a avaliação como princípio processual, diagnóstico, participativo, formativo, com o objetivo de redimensionar a ação pedagógica; elaborar instrumentos e procedimentos de observação, de registro e de reflexão constante do processo de ensino-aprendizagem; romper com a prática tradicional de avaliação limitada a resultados finais traduzidos em notas; e romper, também, com o caráter meramente classificatório. (BRASIL, 2006, p.10)

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Não seria mais fácil, e mais corajoso, preconizar, de modo claro, a não retenção, ao

menos no primeiro ano do Ensino Fundamental de nove anos, para não dizer em todos os anos

iniciais dessa etapa? A preocupação parece ser tanta que o texto chega a ser redundante

quanto à definição do que seria um princípio “adequado” de avaliação: “processual,

diagnóstico, participativo, formativo e com o objetivo de redimensionar a ação pedagógica”.

De fato, a questão da avaliação e do sistema de fluxo entre as séries iniciais do Ensino

Fundamental merece destaque, pois a prevalecer a lógica dominante, teremos uma grande

probabilidade de que os índices de retenção sejam ampliados, atingindo um grande

contingente de crianças antes dos sete anos de idade.

Algumas Problematizações Referentes ao Ensino Fundamental de Nove Anos

O que deduzo dessa política pública é que certamente propostas educacionais de

acordo com o período histórico foram configuradas, procuraram conformar um tipo

específico, não só de docente e de aluno, mas também de uma metodologia de trabalho. O

Ensino Fundamental de Nove Anos traz sua proposta, e ele também projeta o seu ideal de

cidadão com tais normatizações. E para que ele constitua um cidadão crítico, que possa

intervir em sua realidade, emanam da proposta de inclusão das crianças de seis anos,

sugestões, técnicas e procedimentos que governam a aula a ser dada, mas, sobretudo,

procuram levar os sujeitos alunos a uma adequação “desde o início à regra de relação tanto

com os outros como com um determinado tipo de percurso” (Ó, 2007, p.43).

A escola, mais uma vez, é colocada como a melhor possibilidade de melhoria de vida,

não só no campo intelectual e profissional, mas ela também vem revestida de uma

responsabilidade cada vem mais investida do social. Ao apresentar o Ensino Fundamental

como a melhor opção para as crianças de seis anos, privilegia-se um formato escolar,

reconhecidamente institucional, que desde seu surgimento foi atrelado à transmissão do

conhecimento e da cultura mundial acumulados. Sujeitos auto-regulados e auto-confiantes,

que possam gerir suas vidas, são sujeitos econômicos para uma racionalidade política

neoliberal. Por isso, não basta somente ser alfabetizado, mas é preciso ser letrado, ser um

sujeito proficiente, que saiba resolver seus problemas e interagir em sociedade, o que justifica

o investimento em escolarizar também o letramento, assim como ocorreu com a alfabetização.

Vejo nessa proposta a regularização do governamento da ação do professor em sala de

aula, pois ele é responsável por construir estratégias para a superação das dificuldades de seus

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alunos, então ele precisa saber conduzir adequadamente sua ação pedagógica para que exista

um bom rendimento em aula. Ao que parece, se algo não ocorrer como deveria, a

responsabilidade pela modificação é do professor, principalmente porque é sobre o terreno da

subjetividade que os documentos falam. É necessário que se trabalhe com a auto-estima do

aluno.

Dessa forma, ao investir em sua subjetividade e sujeitá-lo a uma forma particular de

ver o mundo, ele sentir-se-á integrado a realidade escolar. Com isso se valida não só o

discurso que sustenta a inclusão da criança de seis anos no Ensino Fundamental, como se

obtém a produção de um sujeito que pense criticamente sobre sua condição social. Ao ser

esclarecido sobre as condições que o tornam um sujeito excluído, esse futuro cidadão

trabalhador procurará aprender formas para que ele mesmo consiga sair de uma margem de

risco social. Tornar-se sujeito prudente, parece-me uma lógica muito presente nas orientações

do Ensino Fundamental de Nove Anos. Segundo Garcia, “a utilização calculada do tempo

escolar submete os corpos e suas ações, o pensamento e suas operações” (2002, p.99), mas

para que este tempo seja organizado produtivamente e os alunos aprendam a se auto-

regularem e tornarem-se sujeitos produtivos para uma racionalidade neoliberal, é importante a

ação condutora dos docentes. A utilização dos termos auto-estima e autoconfiança se dá no

sentido de estabelecer “algum tipo de relação do sujeito consigo” (LARROSA, 1994, p.38).

Alunos motivados e interessados, certamente terão melhores condições de concluir

exitosamente o Ensino Fundamental.

É interessante destacar que agora os professores devem ver a criança de seis anos

como um aluno, um sujeito que se encontra cognitivamente em um momento de passagem

para um ensino formal, vindo ou não da Educação Infantil. Agora a legislação posiciona esse

aluno em um outro nível, como se a forma de viver a infância se alterasse de forma positiva e

qualitativa para esse aluno, por meio de uma medida legal. Isso me leva a pensar que por

meio das “políticas curriculares e de regulação da educação, no cotidiano da escola, são

validados discursos pedagógicos que mudam histórica e culturalmente” (TRAVERSINI;

BALEM; COSTA, 2007, p.4).

Neste momento o professor precisa identificar-se com a idéia de que o aluno de seis

anos é responsabilidade do Ensino Fundamental e que cabe à escola a tarefa de educar,

escolarizar, alfabetizar e letrar esse aluno. Existe um investimento, nas orientações do MEC,

para mobilizar os professores a assumirem um determinado modo de agir em relação à sua

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prática. O Ensino Fundamental de Nove Anos não se configura somente como uma política

pública do âmbito legal, ele procura administrar os docentes da educação, prescrevendo e

ensinando como trabalhar em sala de aula.

A busca pela melhoria da qualidade do ensino e da alfabetização em nosso país é

histórica, embora, como lembra Marzola (2003), diferentes períodos defenderam propostas

que prometiam o salto qualitativo, a erradicação do analfabetismo e a melhoria na

aprendizagem do aluno. De forma resumida, é possível apontar alguns movimentos que se

destacaram na educação nacional como, a educação popular na década de 80, a pedagogia

crítico social dos conteúdos (conteudistas) e as idéias construtivistas (de forte influência

psicológica) na década de 90. Mas, como a autora argumenta, “apesar das boas intenções

dessas pedagogias, que se propuseram a reinventar e revolucionar a escola, os resultados desta

em termos de ensino efetivo, foram insignificantes” (MARZOLA, 2003, p. 15). É possível

ver, como já demonstrado, que a busca pela melhoria dos índices da educação nacional ainda

é objetivamente perseguida pelo Estado, ou seja, ainda não os alcançamos. Isto me faz pensar

que ainda se busca a ponta do novelo de lã, o que não significa que chegaremos algum dia até

ela.

Considerações Finais

A obrigatoriedade da matrícula de crianças de seis anos no Ensino Fundamental

implica, necessariamente, em repensar e reelaborar toda a proposta pedagógica da escola e

não só a do Primeiro Ano, o que se constitui numa tarefa e em um compromisso para todos os

segmentos da comunidade escolar, conforme previsto na atual LDB, Lei nº. 9394/96, em

especial em seus artigos 12 a 14, sendo que a inclusão das crianças de seis anos no Primeiro

Ano requer um diálogo institucional e pedagógico entre os diversos níveis de ensino,

sobretudo entre a Educação Infantil e o Ensino Fundamental. Não é fácil mudar certos

paradigmas, e uma reorganização do trabalho pedagógico necessita passar também por um

processo de capacitação e formação continuada do corpo docente, bem como de

conscientização da comunidade escolar. Dessa maneira, acreditamos que a matrícula

obrigatória das crianças de seis anos no Ensino Fundamental possa possibilitar acesso

universal ao direito subjetivo das crianças à escolarização e oportunidade de um processo

mais efetivo de alfabetização que não tem início com a entrada na escola e tampouco culmina

nesta etapa inicial da primeira série, agora ampliada para Primeiro e Segundo Anos.

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A obrigatoriedade da matrícula das crianças com seis anos no Ensino Fundamental de

nove anos, instituída no Brasil pela Lei Federal de nº. 11.274, de 06 de fevereiro de 2006, não

é, obviamente, a “solução mágica” para a questão educacional brasileira, mas pode, como

uma política afirmativa, no conjunto de outras ações políticas e pedagógicas, colaborar na

qualidade do ensino, especialmente o público. Não sem um amplo e irrestrito debate sobre o

conjunto da Educação Básica no Brasil. Não sem antes procurarmos responder a velhas, mas

sempre pertinentes questões: Qual escola? Qual infância? Qual currículo? Quais capacidades

a serem desenvolvidas? Quais materiais? Qual avaliação? Qual alfabetização? Qual formação

docente? Quais articulações políticas? Essas questões encontram-se impregnadas em uma

cultura escolar definida e presente em nossas escolas. A cultura escolar parece-nos ser o cerne

da questão quando discutimos o sistema de ensino, visto que uma mudança precisa ser

incorporada pela cultura já existente, moldada a partir dos seus interesses, para poder fazer

parte dela.

REFERÊNCIAS

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