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MAYOMBE (PEPETELA) LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA Profa. Dra. Maria Geralda de Miranda

Mayombe, Pepetela

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MAYOMBE (PEPETELA)

LITERATURAS AFRICANAS DE LÍNGUA PORTUGUESA

Profa. Dra. Maria Geralda de Miranda

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Literaturas Africanas de Língua Portuguesa Mayombe/ Pepetela

O romance Mayombe, do escritor angolano Arthur Pestana (Pepetela) foi escrito entre em 1970 e 1971, em Cabinda, Angola, e publicado em 1980. Diz o autor: “Tudo começou com um comunicado de guerra. Eu escrevi o comunicado e...o comunicado pareceu-me muito frio, coisa para jornalista, e eu continuei o comunicado de guerra para mim, assim nasceu o livro." (Pepetela). Se outras obras têm o ir buscar à história a explicação para problemas diversos, Mayombe conta história. É um livro de construção da história. É também um documento social, pois, apesar de ficção, é escrito no momento de vivência do autor, em que o escritor, o militante e o cientista social se relacionam para, por meio da obra, captarem a realidade histórica angolana.

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No conteúdo de Mayombe, Pepetela trabalha com um legado cultural bem interessante. A dedicatória do livro revela isso: “A ogum o prometeu africano”.

Ogum é uma divindade Yoruba e veio para o Brasil na rota dos

escravos, em Angola não é conhecido. Mayombe é uma espécie de epopeia, a épica dos guerrilheiros do

Movimento de Libertação de Angola (MPLA). Alguns críticos dizem que tal romance relembra alguns escritores

franceses que escreveram sobre a guerrilha da Indochina, especialmente " A condição Humana" de André Malraux.

Mayombe é a primeira obra angolana que dessacraliza os heróis.

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"É uma obra também contra o dogmatismo, o personagem Sem-Medo é um Anarquista (...) A obra tem já uma série de advertências sobre o partido único, mas a grande contribuição do Sem-Medo foi a da religião à política." (Pepetela)

Este romance de Pepetela explicita as contradições relacionadas sobretudo à diversidade cultural e étnica dos “soldados” que compunham o Exército de Liberação Nacional do MPLA.

É narrado por uma multiplicidade de vozes, representando as

pessoas que participaram da guerrilha na floresta do Mayombe, (Floresta tropical em Cabinda, Angola, constituindo a 2ª Região político-militar do MPLA).

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Pergunta feita a Pepetela: – Por que então escolheste a ficção quando poderias ter elaborado uma outra forma de melhor objetivar os problemas?

Resposta: – É porque realmente eu sou um ficcionista, não tinha nenhum objetivo. Eu escrevi não para publicar. Escrevi porque tinha necessidade de

escrever. Estava em cima de uma realidade que quase exigia que eu escrevesse. Escrevendo eu compreendia melhor essa realidade; escrevendo eu atuaria também melhor sobre a própria realidade. Não quanto à obra escrita, mas pela minha atuação militante para melhor compreensão dos fenômenos que se passaram.

Mas escrevia também para compreender melhor esses fenômenos. Claro

que podia fazê-lo com um ensaio acadêmico,não era essa a minha intenção. Eu vejo a coisa como ficcionista.

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FRAGMENTOS DO ROMANCE

Capítulo I - A Missão

O rio Lombe brilhava na vegetação densa. Vinte vezes o tinham

atravessado. Teoria, o professor, tinha escorregado numa pedra e esfolara profundamente o joelho. O Comandante dissera a Teoria para voltar à Base, acompanhado de um guerrilheiro. O professor,

fazendo uma careta, respondera: -- Somos dezasseis. Ficaremos catorze. Matemática simples que resolvera a questão: era difícil conseguir-se

um efectivo suficiente. De mau grado, o Comandante deu ordem de avançar. Vinha por vezes juntar-se a Teoria, que caminhava em penúltima posição, para saber como se sentia. O professor escondia o sofrimento. E sorria sem ânimo.

à hora de acampar, alguns combatentes foram procurar lenha seca, enquanto o Comando se reunia. Pangu Akitina, o enfermeiro, aplicou um penso no ferimento do professor. O joelho estava muito inchado e só com grande esforço ele podia avançar.

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Eu, O Narrador, Sou Teoria. Nasci na Gabela, na terra do café. Da terra recebi a cor escura de café, vinda da mãe, misturada ao branco defunto do meu pai, comerciante português. Trago em mim o inconciliável e é este o meu motor. Num Universo de sim ou não, branco ou negro, eu represento o talvez. Talvez é na, para quem quer ouvir sim e significa sim para quem espera ouvir não. A culpa será minha se os homens exigem a pureza e recusam as combinações? Sou eu que devo tornar-me em sim ou em não? Ou são os homens que devem aceitar a talvez? Face a este problema capital, as pessoas dividem-se aos meus olhos em dois grupos: os maniqueístas e os outros. É bom esclarecer que raros são os outros, o Mundo é geralmente maniqueísta.

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Eu, o Narrador, Sou Milagre. Nasci em Quibaxe, região kimbundo, como o Comissário e o Chefe de OperaçÕes, que são dali próximo. Bazukeiro, gosto de ver os camiÕes carregados de tropa serem travados pelo meu tiro certeiro. Penso que na vida não pode haver maior prazer. A minha terra é rica em café, mas o meu pai sempre foi um pobre camponês. E eu só fiz a Primeira Classe, o resto aprendi aqui, na Revolução. Era miado na altura de 1961. Mas lembro-me ainda das cenas de crianças atiradas contra as árvores, de homens enterrados até ao pescoço, cabeça de fora, e o tractor passando, cortando as cabeças com a lâmina feita para abrir terra, para dar riqueza aos homens. Com que prazer destruí há bocado o buldozer! Era parecido com aquele que arrancou a cabeça do meu pai. O buldozer não tem culpa, depende de quem o guia, é como a arma que se empunha. Mas eu não posso deixar de odiar os tractores, desculpem-me.

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E eu fugi de Angola com a mãe. Era um miado. Fui para Kinshasa. Depois vim para o MPLA, chamado pelo meu tio, que era dirigente. Na altura! Hoje não é, foi expulso.

O MPLA expulsa os melhores, só porque eles se não deixam dominar pelos kikongos que o invadiram. Pobre MPLA! Só na Primeira Região ele ainda é o mesmo, o movimento de vanguarda. E nós, os da Primeira Região, forçados a fazer a guerra aqui, numa região alheia, onde não falam a nossa língua, onde o povo é contra-revolucionário, e nós que fazemos aqui? Pobre MPLA, longe da nossa Região, não pode dar nada!

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A Base O Mayombe tinha aceitado os golpes dos machados, que nele

abriram uma clareira. Clareira invisível do alto, dos aviões que esquadrinhavam a mata, tentando localizar nela a presença dos guerrilheiros.

As casas tinham sido levantadas nessa clareira e as árvores, alegremente, formaram uma abóbada de ramos e folhas para as encobrir. Os paus serviram para as paredes. O capim do tecto foi transportado de longe, de perto do Lombe. Um montículo foi lateralmente escavado e tornou-se forno para o pão. Os paus mortos das paredes criaram raízes e agarraram-se à terra e as cabanas tornaram-se fortalezas.

E os homens, vestidos de verde, tornaram-se verdes como as folhas e castanhos como os troncos colossais. A folhagem da abóbada não deixava penetrar o Sol e o capim não cresceu em baixo, no terreiro limpo que ligava as casas. Ligava, não: separava com amarelo, pois a ligação era feita pelo verde.

Assim foi parida pelo Mayombe a base guerrilheira.

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A comida faltava e a mata criou as «comunas«, frutos secos, grandes amêndoas, cujo caroço era partido à faca e se comia natural ou assado. As «comunas« eram alimentícias, tinham óleo e proteínas, davam energia, por isso se chamavam «comunas«. E o sítio onde os frutos eram armazenados e assados recebeu o nome de «Casa do Partido«. O «comunismo« fez engordar os homens, fê-los restabelecer dos sete dias de marchas forçadas e de emoções. O Mayombe tinha criado o fruto, mas não se dignou mostrá-lo aos homens: encarregou os gorilas de o fazer, que deixaram os caroços partidos perto da Base, misturados com as suas pegadas. E os guerrilheiros perceberam então que o deus-Mayombe lhes indicava assim que ali estava o seu tributo à coragem dos que o desafiavam: Zeus vergado a Prometeu, Zeus preocupado com a salvaguarda de Prometeu, arrependido de o ter agrilhoado, enviando agora a águia, não para lhe furar o fígado, mas para o socorrer. (Terá sido Zeus que agrilhoou Prometeu, ou o contrário?)

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A mata criou cordas nos pés dos homens, criou cobras à frente dos homens, a mata gerou montanhas intransponíveis, feras, aguaceiros, rios caudalosos, lama, escuridão, Medo. A mata abriu valas camufladas de folhas sob os pés dos homens, barulhos imensos no silêncio da noite, derrubou árvores sobre os homens. E os homens avançaram. E os homens tornaram-se verdes, e dos seus braços folhas brotaram, e flores, e a mata curvou-se em abóbada, e a mata estendeu-lhes a sombra protectora, e os frutos. Zeus ajoelhado diante de Prometeu. E Prometeu dava impunemente o fogo aos homens, e a inteligência. E os homens compreendiam que Zeus, afinal, não era invencível, que Zeus se vergava à coragem, graças a Prometeu que lhes dá a inteligência e a força de se afirmarem homens em oposição aos deuses. Tal é o atributo do herói, o de levar os homens a desafiarem os deuses. Assim é Ogun, o Prometeu africano. (p. 41)

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Eu, o Narrador, Sou Mundo Novo

Recuso-me a acreditar no que diz Sem Medo. Lá está ele, ali, no meio dos jovens, rasgando-se nas raízes da mata,

rastejando, triturando os ombros contra o solo duro, putrefacto e húmido do Mayombe, enrouquecendo com os gritos e imprecaçÕes que blasfema, emasculando-se no sémen da floresta, no sémen gerador de gigantes, suando a lama que sai da casca das arvores, beliscando-se nos frutos escondidos por baixo das folhas caldas, lá está ele, ali, no meio dos jovens, ensinando o que sabe, totalmente, entregando-se aos alunos, abrindo-se como as coxas duras dama virgem, e ele, que está ali, diz que o faz interesseiramente.

Sem Medo é um desinteressado, a terceira camisa que tinha

ofereceu-a ao guia, que acabou por fugir com ela, entregando-se aos tugas.

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Epílogo

O Narrador Sou Eu, O Comissário Político. A morte de Sem Medo constituiu para mim a mudança de pele dos

vinte e cinco anos, a metamorfose. Dolorosa, como toda metamorfose.

Só me apercebi do que perdera (talvez o meu reflexo dez anos

projectado à frente), quando o inevitável se deu. Sem Medo resolveu o seu problema fundamental: para se manter

ele próprio, teria de ficar ali, no Mayombe. Terá nascido demasiado cedo ou demasiado tarde? Em todo o caso, fora do seu tempo, como qualquer herói de tragédia.

Eu evoluo e construo uma nova pele. Há os que precisam de

escrever para despir a pele que lhes não cabe já. Outros mudam de país. Outros de amante. Outros de nome ou de penteado. Eu perdi o amigo.

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Do coração do Bié, a mil quilómetros do Mayombe, depois de uma marcha de um mês, rodeado de amigos novos, onde vim ocupar o lugar que ele não ocupou, contemplo o passado e o futuro. E vejo quão irrisória é a existência do indivíduo. É, no entanto, ela que marca o avanço no tempo. Penso, como ele, que a fronteira entre a verdade e a mentira é um caminho no deserto. Os homens dividem-se dos dois lados da fronteira. Quantos há que sabem onde se encontra esse caminho de areia no meio da areia? Existem, no entanto, e eu sou um deles. Sem Medo também o sabia. Mas insistia em que era um caminho no deserto. Por isso se ria dos que diziam que era um trilho cortando, nítido, o verde do Mayombe. Hoje sei que não há trilhos amarelos no meio do verde. Tal é o destino de Ogun, o Prometeu africano.

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Referências PEPETELA. Mayombe. São Paulo: Ática, 1981 CHAVES, Rita. Pepetela: romance e utopia na história de Angola. São Paulo: Via Atlântica. Disponível em http://www.revistas.usp.br/viaatlantica/article/viewFile/48795/52871. Acesso 10 fev 2016.