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Andréa de O Tourinho A Arquitetura e a Geografia Urbana na construção do Urbanismo moderno e contemporâneo
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IX SEMINÁRIO DE HISTÓRIA DA CIDADE E DO URBANISMO SÃO PAULO, 4 a 6 de SETEMBRO DE 2006
A Arquitetura e a Geografia Urbana na construção do Urbanismo
moderno e contemporâneo:
em busca de uma identidade.
Andréa de Oliveira Tourinho1
Este trabalho aborda a relação entre as disciplinas da Arquitetura e da Geografia Urbana na
construção do Urbanismo moderno e contemporâneo, a partir do momento em que o Urbanismo
se distância da Arquitetura, em finais do século XIX, buscando parâmetros conceituais em outros
campos do conhecimento, como na Geografia e Sociologia Urbanas.
1. Arquitetura e Urbanismo: um vínculo que se rompe
O arquiteto italiano e historiador da arquitetura Manfredo Tafuri sustenta que é no período da
Ilustração que começa a crise do conceito tradicional de “forma” e a revisão dos princípios
formais, justamente no momento em que se toma consciência da cidade como sistema autônomo
de comunicações. Esta crise está indissociavelmente vinculada “à nova cidade, que se prepara
para converter-se no espaço institucional da moderna sociedade burguesa” (Tafuri, 1972:31).
Ainda segundo Tafuri, a revisão dos princípios formais - que dará lugar, no urbano, ao que o
filósofo Gianni Vattimo (1986) chama de desarraigo das formas dado pela modernidade - conduz a
uma aguda crise de valores que se verá agravada, no século XIX, pelas novas dimensões que
apresentam os problemas da cidade industrial, culminando na dissociação entre a arte e o urbano.
Neste processo, a cidade perde seu caráter simbólico e função representativa, convertendo-se em
lugar da máxima acumulação da riqueza e intensidade da economia e provoca o abandono das
formas de fazer cidade que vinham sendo dadas pelas operações de composição formal com
ênfase nos aspetos artísticos e estéticos típicos da visão beaux arts do século XIX. Até então,
fazer arquitetura tinha sido, em grande medida, fazer cidade e a cidade era fundamentalmente o
resultado de fazer arquitetura (Terán, 1984).
1 Secretaria Municipal de Cultura de São Paulo - Departamento do Patrimônio Histórico.
e-mail: [email protected], [email protected].
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A arquitetura, por sua vez, perde o seu papel reitor na construção da cidade e passa a participar
de um projeto com vistas a reorganizar a produção, a distribuição e o consumo do capital na
cidade moderna.
Neste contexto, a arquitetura deve mudar de escala ao passar a fazer parte das estruturas da
cidade burguesa, convertendo-se em técnica de organização: "renunciando a um papel simbólico,
no sentido tradicional ao menos, a arquitetura descobre sua própria vocação científica, para evitar
destruir-se a si mesma" (Tafuri, 1972:22).
O arquiteto espanhol Fernando de Terán (1984) afirma que a história da Arquitetura
contemporânea é caracterizada pela perda de sua identidade e aos esforços por recuperá-la,
enquanto a história do Urbanismo moderno é a história da busca de sua própria identidade, por
parte de uma nova disciplina, que se torna independente da Arquitetura.
Desta forma, na passagem entre os séculos XIX e XX, o Urbanismo passa por um processo de
reformulação em que se distancia de suas origens formais para buscar um fundamento científico:
o espaço urbano entendido como espaço geométrico, intimamente relacionado com a Arquitetura,
dentro de uma visão da cidade como entidade global, unitária e coerente, cede lugar à
compreensão do espaço urbano como espaço geográfico, espaço econômico e espaço social
(Terán, 1984).
2. Urbanismo moderno e suas relações com a Biologia
Muitos dos conceitos utilizados nos estudos das cidades são resultado de uma longa construção
no tempo, para os quais contribuíram uma série de elementos de vários campos do conhecimento,
alguns dos quais surgiram como disciplina apenas no século XIX - como o próprio Urbanismo, a
Geografia, a Sociologia2 e a Biologia (que se dissocia da Zoologia no início daquele século) - ou
que adquirem, então, um status de ciência moderna, como a Fisiologia. Além disso, dentro destas
ciências também vão surgindo novos ramos, como a Geografia Humana ou a Ecologia, num
momento em que o conhecimento científico amplia-se e ganha um grande impulso, sobretudo na
segunda metade daquele século, provocando o surgimento de novas ciências ou aprofundando
suas bases científicas. Todo este movimento é resultado de uma crescente especialização do
conhecimento.
Uma das grandes inovações nas ciências sociais, no século XIX, segundo Hobsbawm, foi a
introdução e influência sobre as ciências do que este autor chamou de “despertar histórico”:
2 O termo sociologia foi criado por Augusto Comte, por volta de 1830, considerado o fundador desta disciplina (Hobsbawm, 1979).
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as ciências sociais também tiveram algo inteiramente novo e original a seu crédito, que por
sua vez fertilizou as ciências biológicas e até mesmo as físicas, como no caso da geologia.
Foi a descoberta da história como um processo de evolução lógica, e não simplesmente
como uma sucessão cronológica de acontecimentos (Hobsbawm, 1979:308).
Nesta direção, o problema histórico passa a fazer parte do questionamento dos diversos campos
científicos. Se para a Geologia, o problema era explicar a evolução da terra, para a Biologia,
passa a ser o de explicar a formação da vida e a evolução das espécies (Hobsbawm, 1979).
É um momento em que novos problemas e exigências são colocados para o conhecimento,
ditados, tanto pelos acontecimentos sociais - acarretados, segundo Hobsbawm, pelo recente
triunfo da indústria capitalista e da sociedade burguesa liberal -, como por suas próprias
necessidades internas enquanto disciplinas constituídas ou em processo de constituição. Desta
forma, assiste-se a uma busca de parâmetros entre os distintos campos do conhecimento na
tentativa de melhor compreender os problemas que então se colocavam.
Estes parâmetros, muitas vezes, foram traduzidos em forma de analogias. Hobsbawm afirma que
determinados padrões poderiam ser apreendidos das transformações sociais para serem
utilizados de forma análoga - diretamente ou através de outra ciência - pelos cientistas,
introduzindo, desta maneira, maior dinamismo a conceitos até então estáticos:
assim, o conceito da Revolução Industrial, fundamental para a história e para a maior parte
da economia moderna, foi introduzido na década de 1820 como algo análogo ao de
Revolução Francesa. Charles Darwin deduziu o mecanismo da ‘seleção natural’ por
analogia com o modelo da competição capitalista, que tomou de Malthus (a ‘luta pela
existência’). A voga de teorias catastróficas em geologia (1790-1830) também pôde dever-
se em parte à familiaridade daquela geração com as violentas convulsões da sociedade.
(Hobsbawm, 1979:317).
No sentido contrário, muitas questões sociais que buscavam explicações para as diferenças
sociais entre os homens passaram a ser pensadas em termos de meio ambiente e evolução.
Verifica-se, nesta direção, que a ascendência da Biologia sobre outras disciplinas foi
particularmente impactante.
Apesar das analogias entre as formas arquitetônicas e o corpo humano já serem utilizadas desde
a Antiguidade, sendo as metáforas orgânicas estendidas à cidade no Renascimento, Gunn e
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Correia (1998) ressaltam a ampliação deste procedimento3 com o surgimento da Biologia como
disciplina:
este estreitamento dos vínculos entre biologia e cidade evidencia mais um dos
avassaladores impactos causados pelas descobertas e debates travados no campo da
biologia sobre as mentalidades no século XIX. A ascensão das pesquisas e descobertas
científicas no campo da biologia foi correlata à origem de novas disciplinas e áreas de
especialização. A própria biologia surge no início do século XIX após se dissociar da
zoologia, num movimento que originaria em seguida áreas como a frenologia - estudo do
cérebro. Neste contexto, o século XIX chegou a ser definido - sem exagero, nos parece -
como o ‘Século da Biologia’ (Gunn & Correia, 1998:5).
Estes autores afirmam que as analogias biológicas nas representações da cidade são mais usuais
nos estudos sobre as grandes cidades que, a partir do século XIX, se ampliam com uma
complexidade e dinâmica até então desconhecidas. Isto explicaria porque disciplinas as mais
diversas - como a Estatística, a Geografia, a Sociologia, a História, a Economia e o Uurbanismo -,
empreendendo um enorme esforço na compreensão deste novo fenômeno, recorrem
freqüentemente à biologia, cujas descobertas pareciam extremamente reveladoras naquele
momento, favorecendo uma compreensão mais ponderada do processo orgânico e da
organização biológica.
A Biologia, sobretudo no último quartel do século XIX, foi profundamente marcada pela discussão
em torno das teorias evolucionistas, que, apesar das críticas sofridas, difundiu-se rapidamente,
influenciando o conhecimento através dos mais diversos campos científicos e fazendo surgir,
imediatamente, novos ramos, como a Ecologia4 e a Eugenia.
O Urbanismo e a Geografia Urbana, que também surgem como disciplinas modernas neste
período, vão incorporar o enfoque evolucionista, que se prolifera sob a forma de estudos sobre a
evolução das cidades, tão característicos da primeira metade do século XX, abrangendo tanto
obras clássicas de autores como o escocês Patrick Geddes (Cities in Evolution, 1915),
considerado o pai do planejamento regional - biólogo de formação e cujo interesse pelo urbanismo
teve grande influência dos geógrafos franceses e da sociologia de Le Play - assim como as
3 A ampliação do uso de analogias entre a cidade e os organismos vivos no século XIX se traduz em três procedimentos básicos: no prosseguimento – porém de forma bem mais ampla – do uso de metáforas orgânicas na descrição da forma urbana; no emprego destas metáforas também para equiparar cidades com corpos doentes ou anômalos; e no estabelecimento de paralelos entre os métodos de análise e intervenção do médico e do urbanista (Gunn & Correia, 1998). 4 A Ecologia teve um papel particularmente importante em diversos campos disciplinares, que se encontravam em um momento de afirmação, buscando identificar e marcar os seus procedimentos e conteúdos.
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monografias urbanas de geógrafos como Raoul Blanchard (Grenoble, étude de geographie
urbaine, 1911) ou, ainda, os capítulos dedicados a este tema em obras da Geografia Urbana
francesa, como as de Georges Chabot (Les Villes, 1948) e Pierre Lavedan (Géographie des Villes,
1936).
3. A Geografia Urbana e a busca de uma interpretação das cidades
Tendo surgido no final do século XIX, a Geografia Urbana produziu importantes estudos sobre as
cidades, sobretudo no período compreendido entre os anos 20 e o final dos anos 60 do século XX.
No momento em que surgiu, a Geografia Urbana constituía a vertente mais recente da Geografia
Humana, então incipiente ramo da Geografia que, por sua vez, tinha se institucionalizado como
disciplina universitária por volta de 1870.
Esta ciência moderna aparece na Alemanha com Friedrich Ratzel, Otto Schlüter e Karl Hassert.
Deste primeiro período, duas obras são fundamentais: Antropogéographie (1882, 18915), de
autoria de Ratzel, que dedicava vários capítulos à geografia das cidades; e, Die Städte
geographisch betrachtet (1907), de Hassert, sendo a primeira obra a tratar do conjunto da
Geografia Urbana.
Para o geógrafo alemão, a antropogeografia deveria constituir uma nova ciência empírica do
homem, de concepção ecológica, centrada na questão da influência que as condições naturais
exercem sobre os homens. É considerado, desta forma, o precursor da Geografia Humana e,
dentro desta linha, um dos primeiros geógrafos a se preocupar pelo tema das cidades.
Do ponto de vista regional, Ratzel afirmou que a cidade é “uma aglomeração densa de homens e
casas, cobrindo um espaço de notável extensão, situada nos nós de estradas importantes” (Ratzel
apud Vasconcelos, 1999:124). Vinculado a esta idéia, desenvolveu os conceitos de situação
(posição geral da cidade no conjunto da região) e sítio (condições locais), que serão incorporados
à grande parte das análises geográficas6, procurando demonstrar a sua influência na evolução
das cidades e o seu caráter nodal, de encruzilhada.
Como conseqüência, multiplicaram-se os estudos sobre a evolução das vias de comunicação e o
papel que tiveram na consolidação das cidades como pontos de referência territoriais (cf. Abreu,
1994).
5 Foi publicado originalmente em 1882 e republicado, com pequenas alterações e acrescentando um segundo volume, em 1891. 6 É a partir destes conceitos que, segundo Abreu, a cidade entra no temário geográfico moderno (Abreu, 1994:201).
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De acordo com os geógrafos franceses Beaujeu-Garnier & Chabot (1963), Ratzel formulou os
principais fundamentos teóricos, referentes à definição das cidades, desenvolvidos posteriormente
pela Geografia Urbana.
Além da influência da tradição do pensamento geográfico, através de Ritter, Ratzel era graduado
em Zoologia, Geologia e Anatomia Comparada, tendo sido profundamente influenciado pelos
conhecimentos então adquiridos. Particularmente no campo da Zoologia, Ratzel foi aluno de
Haeckel na Universidade de Berlim, que foi um dos introdutores do evolucionismo na Alemanha e
o propositor, em 1873, do rótulo de Ecologia para o estudo da associação dos organismos em um
determinado meio. As idéias ecológicas de Haeckel foram acrescentadas às idéias de Ratzel,
influenciadas pela teoria da adaptação de Lamark, de quem era um profundo admirador (Moraes
& Fernandes org., 1990).
Jean Baptiste Lamark foi um cientista francês, que defendeu uma teoria da evolução antes de
Darwin. Em 1809, um pouco antes das idéias de Darwin se tornarem conhecidas, Lamark propôs
a idéia de que mudanças no meio ambiente eram capazes de modificar os organismos para que
se adaptassem às novas condições, e que essas mudanças poderiam ser transmitidas às futuras
gerações.
O conceito de função penetra nos estudos geográficos através justamente da teoria da adaptação
de Lamark. Tal conceito de função, segundo o arquiteto Aldo Rossi, “tomado da fisiologia, assimila
a forma a um órgão para o qual as funções são as que justificam sua formação e seu
desenvolvimento e as alterações da função implicam uma alteração da forma” (Rossi, 1982:81-
82).
O geógrafo francês Georges Chabot considera que, a partir de Ratzel, percebeu-se que o
elemento essencial da definição da cidade estava na atividade exercida no seu interior, ainda que
não houvesse um consenso sobre a importância de cada uma das atividades na caracterização de
uma cidade. Desta forma, o geógrafo alemão teria exercido uma profunda influência sobre os
estudos geográficos da cidade ao introduzir, na Geografia, o conceito de “função” (Chabot, 1958).
Ainda assim, é importante lembrar que as atividades às quais Chabot se referia tinham as mais
variadas origens: comerciais, industriais, de serviços ou, ainda, culturais. A função urbana, neste
contexto, foi assumida como uma expressão que comunica uma finalidade, considerando que
todas as coisas humanas foram criadas para servir a um objetivo determinado, quase sempre de
caráter utilitário. Esta finalidade, segundo Chabot, afetaria à forma urbana.
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À este período formacional da Geografia tradicional, que se inicia na Alemanha no final do século
XIX, segue um outro de maior criatividade teórica e abrangência conceitual marcado pela
influência preponderante dos autores franceses.
Embora pouco tenha escrito sobre as cidades, o geógrafo Vidal de la Blache, através sobretudo
da obra Principes de Géographie Humaine (1922), dá a orientação geral dos estudos deste
período, impondo uma visão naturalista ao estudo geográfico das cidades, expressa na
preponderância do fator físico como elemento conceitual do estudo urbano (cf. Abreu, 1994). Esta
naturalização da problemática está intimamente relacionada com os debates da época, quando as
investigações no campo da biologia exerciam um grande impacto sobre o conhecimento em geral.
La Blache, um dos principais expoentes da geografia humana deste período, combateu a
chamada tese determinista difundida por Ratzel, baseada na idéia de uma influência direta e
determinante dos aspectos físicos sobre o homem7. La Blache, ao contrário, alegou que a
paisagem é o resultado, ao longo da história, das relações entre as necessidades humanas e os
dados naturais, havendo um processo de trocas mútuas entre o homem e a natureza. Esta
corrente de pensamento tomou o nome de possibilista, devido ao fato da natureza ser vista como
possibilidade para a ação humana8. A maior importância de La Blache foi a introdução e ênfase
dada aos fatores históricos, que será um marco da geografia francesa.
Mesmo dentro da corrente possibilista, que prevaleceu no pensamento francês, os conceitos de
situação e sítio, introduzidos por Ratzel, foram absorvidos nas análises urbanas, que se
apropriaram dos conceitos da geografia regional para o estudo das cidades, através da
transferência dos métodos e critérios dos estudos regionais para os de Geografia Urbana, com a
cidade ou o bairro tomando o lugar da região. Com efeito, alguns geógrafos defendiam
explicitamente - como foi o caso do belga Paul Michotte já na década de 30 - que o estudo da
Geografia Urbana deveria seguir as regras da geografia regional, correspondendo os bairros, no
plano da cidade, a regiões com características e fisionomia própria9.
7 Atualmente, revisões do pensamento de Ratzel levaram a alguns autores a afirmarem que o chamado determinismo de Ratzel foi fruto de leituras absolutamente simplificadas das idéias do geógrafo alemão (cf. Moraes, 2002). 8 De acordo com Moares, a geografia na França desenvolveu-se com o apoio deliberado do estado francês: “esta disciplina foi colocada em todas as séries do ensino básico, na reforma efetuada pela Terceira República. Foram criadas, nesta época, as cátedras e os institutos de Geografia. Todos estes fatos demonstram o intuito do Estado no sentido de desenvolver esses estudos. Tal interesse advém de conseqüências da própria guerra. Uma frase de Thiers, primeiro-ministro da França, bem o demonstra: ‘a guerra foi ganha pelos instrutores alemães’. A guerra havia colocado, para a classe dominante francesa, a necessidade de pensar o espaço, de fazer uma Geografia que deslegitimasse a reflexão geográfica alemã e, ao mesmo tempo, fornecesse fundamentos para o expansionismo francês. (...) O pensamento geográfico francês nasceu com esta tarefa. Por isso, foi, antes de tudo, um diálogo com Ratzel. O principal artífice desta empresa foi Vidal de la Blache” (Moraes, 2002:64). 9 Michotte defendeu esta posição na comunicação “Histoire et géographir urbaines. Question de méthode” apresentada em 1931 no primeiro Congresso Internacional de Geografia Histórica em Bruxelas. A este respeito, ver Vasconcelos, 1999:123-125.
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Maximilien Sorre, outro dos grandes geógrafos do período em questão, foi um dos propagadores
das idéias de Ratzel na França. Já em 1929, Sorre escrevera dois influentes textos sobre a
Geografia Urbana: Le rôle des influences historiques en géographie urbaine e Les conditions
générales de développement urbain. O primeiro texto evidencia a relação estreita entre a
geografia e a história, que vai se consolidando no meio francês. Nos dois textos, Sorre começa a
desenvolver o conceito de “vida de relações”, que encontraremos posteriormente em geógrafos
brasileiros, como em Azevedo e Petrone, no trabalho Pinheiros. Estudos geográficos de um bairro
paulistano (1963), e em Maria Adélia de Souza, na sua tese São Paulo ville-région. Propositions
méthodologiques (1975). No segundo texto, Sorre fala sobre a nodalidade, enfatizando as
relações entre a cidade e a estrada, afirmando, neste sentido, que toda cidade é um centro de
irradiação de estradas10.
Em 1922, Raoul Blanchard sistematiza, por primeira vez, os procedimentos metodológicos da
Geografia Urbana francesa, no seu clássico e influente texto “Une méthode de géographie
urbaine”, publicado na revista La Vie Urbaine, dirigida por Marcel Poëte.
Neste artigo, o geógrafo francês começa afirmando que a Geografia Urbana estava na moda e
que as destruições da guerra tinham chamado a atenção para os problemas das cidades. Do
ponto de vista metodológico, propõe o estudo das cidades através de três categorias: (1) os
fatores geográficos, a partir dos conceitos de situação e sítio, e humanos que tiveram influência na
fixação da cidade; (2) a evolução urbana, analisando os eventos históricos associados à cidade e
os fatores geográficos e humanos; e, (3) a cidade atual, que incluía o estudo comparativo dos
planos existentes da cidade, a utilização de censos, dados sobre os meios de comunicação,
estatísticas dos serviços públicos, entrevista pessoal e observação direta.
Com relação aos objetos do estudo, Blanchard indicou a função das cidades e o estudo das
“regiões naturais da cidade”, ou seja, seus bairros, com sua fisionomia, sua população, suas ruas,
praças e circulação. Por último, coloca a questão da cidade dentro da região.
Este texto irá pautar a produção geográfica francesa, sob a forma da monografia urbana, estudo
padrão deste período, que também será seguida pelos geógrafos brasileiros, que irão receber a
influência do pensamento francês.
A monografia urbana era, em síntese, “o resultado da aplicação do método da geografia regional à
cidade. Era, na realidade, uma monografia regional, só que a região, neste caso, era a cidade”
10 Também, Henri Pirenne, historiador belga, argumentou que a origem das cidades na Baixa Idade Média devia ser entendida como resultado dos nós de caminhos ou de “vias”, aonde o comércio centralizava as suas trocas de produtos, configurando, assim, um nó de fluxo de intercâmbios. Ver Pirenne (1971), especialmente o Capítulo 6, sobre a formação das cidades e da burguesia (pp. 87-109).
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(Abreu, 1994:208). O método geográfico estabelecia que, a partir da observação, de pesquisas de
campo, levantamentos de dados e análises de documentos e plantas, a cidade deveria ser
estudada nos seguintes aspectos: sítio, posição, evolução histórica, fisionomia e estrutura
(morfologia), funções urbanas e área de influência.
Tanto os objetos, como os métodos especificados por Blanchard neste texto, já tinham sido por
ele aplicados no seu clássico estudo de 1911, Grenoble, étude de geographie urbaine. Além de
Grenoble, realizou monografias urbanas sobre Annecy, Nice, Lille, Nancy, Nantes e, também,
sobre as canadenses Quebec e Montreal. Moraes afirma que o livro sobre Grenoble tornou-se
modelo para os estudos posteriores de Levainville (Rouen), Arbos (Clermont-Ferrand), de Lespès
(Alger e Oran), de Demangeon (Paris) e de mais 20 outros estudos monográficos (cf. Moraes,
2002:78).
Os elementos de análise dos estudos geográficos mostram claramente uma concepção orgânico-
funcional de cidade, construída através de um arcabouço teórico que constantemente recorre à
terminologia da biologia. Com efeito, utilizando amplamente as metáforas orgânicas, concebem a
cidade como um organismo unitário cujo ótimo desempenho depende de que cada parte
desenvolva plenamente sua função, permitindo a perfeita articulação entre elas.
Como os seres humanos, a cidade tem, para aqueles geógrafos, uma história evolutiva, um papel
funcional, uma estrutura interna, uma determinada fisionomia e uma alma própria (“la psychologie
des villes”11), que se apresentam através de constantes analogias entre os organismos vivos e a
cidade.
Pierre Monbeig elaborou o primeiro trabalho metodológico da Geografia Urbana no Brasil no seu
texto “O estudo geográfico das cidades”, de 1941, divulgando a metodologia francesa do estudo
das cidades através de exemplos de cidades brasileiras (Tourinho, 2004)12.
Monbeig enfatizava, ainda, o fato de que “todo trabalho geográfico supõe o estabelecimento de
mapas; a representação cartográfica continua a ser o melhor meio de esquematizar e dar
realidade a uma representação a um tempo exata e eloqüente” (Monbeig, 1957:36-37). Neste
sentido, o geógrafo deveria mapear as informações referentes à distribuição das densidades,
população, atividades, profissões, classes sociais, mobilidade, entre outras. Além disto, para que
a análise da evolução urbana tivesse êxito era fundamental
11 Conforme expressão de Chabot (1948�1958: 172). 12 Sobre a Geografia Urbana paulistana e suas relações com o Urbanismo, ver Tourinho (2004), onde este tema foi amplamente abordado, bem como as suas relações com a Sociologia Urbana.
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reunir um bom número de plantas da cidade em épocas diferentes, escolher em seguida as
mais características, por exemplo as que, separadas por intervalos de tempo nem muito
curtos nem muito longos, foram estabelecidas em datas críticas no passado da cidade e,
finalmente, analisar essas plantas” (Monbeig, 1957:45).
Este estudo seria essencial para entender a morfologia da cidade no momento da sua análise.
5. Geografia, Urbanismo e os historiadores do urbanismo
Normalmente se atribui aos historiadores do urbanismo francês, como Marcel Poëte13 e Pierre
Lavedan14, o papel de serem os pioneiros na ênfase da história no estudo das cidades, assim
como do estudo comparativo dos planos urbanos. Sem pretender menosprezar o papel de Poëte e
Lavedan - que, seguramente, foi fundamental nos estudos urbanos -, notemos, contudo, que as
mais importantes obras destes autores - Poëte: Une vie de Cité; Paris de sa naissance à nos jours
(1924-1931) e Introduction à l’Urbanisme (1929); Lavedan: Qu’est-ce que l’Urbanisme? (1926),
Histoire de l’Urbanisme (1926-1952), Géographie des Villes (1936) - são posteriores aos estudos
de Blanchard (1911, 1922), que também defendia a relevância do estudo comparativo de planos
da cidade e dos fatores históricos na evolução urbana.
Lavedan tinha uma relação estreita com a Geografia, escrevendo, inclusive, um livro intitulado
Géographie des Villes (1936), embora não possa ser considerada uma obra típica da Geografia
Urbana, uma vez que nela discutiu e refutou certas premissas geográficas, como aquela que ele
chamou de “fatalismo geográfico”15. Para Lavedan, a cidade se faz, cada vez mais, fora da - e
mesmo contra a - natureza, devido aos progressos técnicos que permitem todas as temeridades16.
13 Em realidade, Poëte (1866-1950) só passou a ser considerado historiador do urbanismo posteriormente, uma vez que era arquivista-paleógrafo. Devido a Poëte, a historiografia urbana teve um grande desenvolvimento na França. Em 1904, criou a Bibliothèque de Travaux Historiques de la Ville de Paris, um curso sobre a história da cidade de Paris, que se transformou, em 1914, na cátedra de história de Paris na École Pratique des Hautes Études, que o próprio Poëte irá ocupar até 1948. Criou e dirigiu o Institut d’Histoire, de Géographie et d’Economie Urbaines a partir de 1916, considerando que a cidade não podia ser estudada a partir de uma só dimensão (a história), mas que devia englobar outros estudos, como os de geografia e economia. Em 1919, fundou a revista La Vie Urbaine. A seu respeito, afirma Paolo Sica: “no decorrer de sua longa atividade de investigação, Marcel Poëte elabora um método de indagação histórica fundado na observação dos fatos e numa atitude filosófica não muito distante, em certos aspectos, da orientação marcada por Patrick Geddes, mas no qual o evolucionismo biológico aparece integrado com a lição de Bergson, orientado em direção ao descobrimento das inter-relações entre os dados físico-ambientais e o élan vital da sociedade humana” (Sica, 1981:189). Suas obras clássicas são: Une vie de cité: Paris de as naissance à nos jours (Paris, 1924-31); Introduction à l’urbanisme (Paris, 1929); Paris et son évolution créatrice (Paris, 1939). 14 A obra de Lavedan contém elementos de análise extraídos tanto da Geografia como da História (pelo qual Aldo Rossi a considerou uma das contribuições mais completas para o estudo da cidade). Ofereceu uma grande contribuição à historiografia urbana - a partir da influência desta linha de análise introduzida por Poëte no começo do século XX -, tendo escrito vários volumes, no período de 1926 a 1952, sobre a história do urbanismo. 15 Contudo, Lavedan reconhecia que a escola francesa não era tão absoluta como a alemã com relação à influência da natureza sobre o homem. 16 Para o autor, são três os elementos que determinam a evolução das cidades: a geografia (cuja influência vai se atenuando com o progresso técnico); o indivíduo (que, obedecendo a reflexos psicológicos, instala-se onde encontra segurança, conforto e meios de ganhar a vida mais facilmente); e, o Estado (papel crescente neste processo, atuando em nome do interesse coletivo que, necessariamente, não coincide com o interesse individual).
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No prólogo da edição de 1959 de seu livro Géographie des Villes, o autor comenta que, entre as
críticas que recebeu na ocasião da primeira edição do livro, em 1936, estava a de ter introduzido o
plano da cidade em suas análises, pois se considerava, naquele momento, que a Geografia
deveria limitar-se a estudar o traçado das estradas e dos caminhos de ferro, ignorando o das ruas
de uma cidade17. Para Lavedan, as críticas recebidas traziam em seu bojo a idéia de que
urbanistas e geógrafos trabalhavam sobre matérias diferentes, conforme um dos seus críticos
manifestou de forma explícita. A esta idéia, o autor se opôs enfaticamente: “nós pensamos
justamente o contrário: o Urbanismo é o campo de aplicação da Geografia” (Lavedan,
1959:prólogo)18.
O livro de Lavedan guarda muitos aspectos em comum com a clássica obra do geógrafo francês
Georges Chabot, Les Villes (1948: 1958), considerada uma obra importante por expor os objetos,
procedimentos e definições correntes da Geografia Urbana e por difundir o tema da função
urbana. Obra constantemente citada pelos geógrafos franceses, tais como Maximilien Sorre, Jean
Tricart, Pierre Monbeig, Pierre George que tanto influenciaram os geógrafos paulistas.
Lavedan e Chabot preocuparam-se em definir a cidade, procurando entender os elementos que a
constituem e a organizam funcional e espacialmente.
A clássica obra de Lavedan divide o estudo da cidade em três partes: sua evolução, sua estrutura
e a vida urbana. Quanto à evolução das cidades, Lavedan aborda as suas origens, discutindo
quais os aspectos levam os homens a se aglomerarem e ressaltando que um “capítulo de
geografia é um capítulo de história” (Lavedan, 1936�1959:60).
Com relação à estrutura da cidade, analisa os seguintes aspectos: o clima, a localização, o plano
da cidade, seus espaços livres e suas edificações, abordando, assim, aspectos físicos,
morfológicos e tipológicos da cidade.
A análise da vida urbana, realizada por Lavedan, comporta o estudo do crescimento da população
urbana, as distinções funcionais e de fisionomia entre os bairros de uma cidade e também da sua
banlieue, os deslocamentos e os transportes, a circulação urbana e os aspectos da vida material e
do equipamento urbano (abastecimento, água, esgoto, etc.).
17 Curioso estes comentários de Lavedan sobre as críticas que recebeu em 1936, pois o geógrafo Blanchard já tinha, nas décadas de 10 e 20, conforme vimos mais acima, introduzido o uso de planos das cidades nas análises urbanas. 18 Lavedan considerava positivo o fato de que, em 1959, o Instituto de Urbanismo da Universidade de Paris contasse com três professores de Geografia Urbana, lamentando, contudo, que as comissões oficiais de ordenação do território, na França, não aproveitassem melhor os geógrafos, ao contrário do que já ocorria em outros países (Lavedan, 1936�1959). Após a Segunda Guerra Mundial, o perfil profissional do geógrafo vai sofrer mudanças com a sua maior participação nas tarefas do planejamento territorial, diminuindo a distância entre o acadêmico e o técnico, o que não ocorria anteriormente.
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De uma forma geral, muitos dos elementos de análise que aparecem em Lavedan também podem
ser encontrados em Chabot, ainda que a ênfase conferida a determinados aspectos seja distinta.
Neste sentido, os dois autores abordam temas como o plano das cidades, as funções e fisionomia
dos bairros, as construções urbanas, a população, a circulação urbana e os serviços e
equipamentos urbanos.
Segundo Chabot, todos os trabalhos de Geografia Urbana relacionam-se por trazer à luz os
diversos elementos geográficos que interessam a uma cidade: a posição geral da cidade, seu sítio
particular, sua história, seu aspecto, suas funções, sua vida (Chabot, 1958).
Considerando insuficientes os critérios estabelecidos pela Geografia Urbana para definir a cidade,
baseados em padrões estatísticos (tamanho da população) ou administrativos (diferenciações
administrativas entre campo, cidade e vila) e, criticando, ainda, as concepções que enfatizam os
aspectos econômicos das cidades, Chabot afirma que a definição da cidade é a expressão de
uma civilização e a que melhor corresponde a nossa civilização atual é a de que a cidade é o
habitat de pessoas que não cultivam a terra ou que não fazem disto a sua principal ocupação.
Introduz, assim, o conceito de “genre de vie”, segundo o qual existem formas de vida próprias à
cidade e outras próprias ao campo.
Partindo desta questão sobre o que é uma cidade, Chabot desenvolve a idéia de que a sua razão
de ser é a sua função urbana - ainda que este aspecto não seja suficiente para definir a cidade,
pois sempre guarda algo de impreciso -, que corresponde ao papel que ela desempenha dentro
do conjunto territorial ao qual pertence. O autor classifica as funções urbanas e passa a
caracterizá-las.
Por outro lado, considera que a cidade também deve ser estudada do ponto de vista de sua vida e
organização internas. Neste sentido, aborda os temas referentes ao seu quadro geral, que
engloba aspectos relativos ao sítio, ao plano, aos tipos de edificações e à estética urbana, e, por
outro lado, o tema da vida comunitária, que abrange o estudo da demografia urbana, a circulação,
o abastecimento e os serviços urbanos (a manutenção das suas ruas, a construção dos seus
imóveis ou, ainda, os serviços de água e eletricidade) e, finalmente, a “alma da cidade”.
Uma terceira análise, realizada por Chabot, refere-se ao âmbito da cidade inserida dentro de uma
região: a cidade como centro regional, suas zonas de influência, a rede de cidades e sua
hierarquia. Conceitos que, mais tarde, sobretudo a partir da década de 50, serão utilizados e
reformulados dentro da teoria do “sistema de cidades”, como nos estudos de Rochefort.
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A Geografia francesa enriqueceu, com as análises acima referidas, o enfoque que priorizava os
conceitos de situação e sítio, cujos estudos foram ganhando uma maior complexidade, ao
considerar os aspectos de forma e estruturação interna da cidade:
a cidade, considerada como uma imagem global e unitária na superfície da terra, como
todos os outros acidentes geográficos, tem dois aspectos associados. O primeiro é a
posição ou situação; o segundo é a forma e a estrutura interna. (...) a cidade como uma
imagem com estrutura própria, e a cidade como uma imagem com estrutura interna, ou, em
outras palavras, a cidade na área e a cidade como área (Carter, 1974:16).
5. Geografia e Sociologia Urbanas: demarcando seus limites
Este período clássico da Geografia Urbana foi, sem nenhuma dúvida, uma etapa de busca de
afirmação, procurando diferenciar-se de outros campos científicos, como a Sociologia, que desde
as décadas de 10-20, através da Ecologia Humana da Escola de Chicago, propunha uma nova
abordagem do estudo urbano. Neste sentido, neste período, a monografia urbana impõe-se como
estudo padrão de cidades procurando uma forma de demarcar o estudo geográfico entre aqueles
realizados por outros profissionais (cf. Abreu, 1994).
Além disso, é preocupação constante dos geógrafos, em geral, a discussão de formas de
representação cartográfica das cidades: sua localização, importância, número de habitantes,
densidade, distribuição funcional e zona de influência, entre outros aspectos (ver Beaujeu-Garnier
& Chabot, 1963:36-40).
A utilização das análises cartográficas era um dos temas que produzia certas divergências entre a
geografia e a sociologia.
Já na virada do século, ficaram famosas na Europa as polêmicas entre Vidal de La Blache e
Durkheim acerca dos limites entre a Geografia e a Sociologia (Abreu, 1994), que envolviam, entre
outras questões, a sua relação com a Ecologia Humana. Sobre estas polêmicas, contestadas
dentro da própria Geografia, o geógrafo francês Maximilen Sorre afirmou que se tratava de uma
disputa por território, uma vez que ambos campos, embora com distintas disposições,
trabalhavam sobre um fundo comum (Sorre, 1957).
Pode se dizer que ambas disciplinas reclamavam a Ecologia (no caso da Sociologia, sobretudo a
norte-americana) como seu fundamento não como doutrina no sentido propriamente dito (isto é
como conjunto de princípios nos quais um sistema se baseia), mas como explicação circunstancial
do universo vivo. Sociólogos norte-americanos, como Amos Hawley (1950), afirmavam que,
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enquanto os geógrafos deixavam de lado as relações entre os homens, os sociólogos tratavam da
organização dos homens nos processos de adaptação ao seu meio, concluindo, assim, que a
Ecologia era eminentemente sociológica. Por sua vez, os geógrafos reivindicavam o caráter
ecológico de toda a Geografia Humana, argumentando que seu objeto de estudo residia,
justamente, na relação entre o meio e os seres vivos através de suas formas e funções19 (Sorre,
1957).
Uma das grandes críticas que se fez ao período da tradicional Geografia Urbana consistia no fato
de que os estudos então realizados procuravam mostrar a cidade no que ela tinha de particular,
ou seja, as características que a faziam ser o que era, ao invés de buscar o que as cidades tinham
em comum, como fizeram os sociólogos da escola de Chicago, cujo paradigma era o esquema de
crescimento concêntrico de Burgess, que foi aplicado para diversas situações como tentativa de
explicar a estrutura geral de uso do solo urbano.
Ao contrário, para o geógrafo francês Maximilien Sorre, os esquemas estruturais realizados nos
estudos de ecologia urbana norte-americana são simplistas, não correspondendo à realidade,
apenas de forma muito geral. A principal crítica dos geógrafos franceses aos sociólogos norte-
americanos era o fato de terem “ignorado deliberadamente” - segundo palavras de Sorre
(1952:332) - os trabalhos dos historiadores do urbanismo. O que, de forma nenhuma, ocorreu com
os estudos de Geografia Urbana francesa, que, nesta direção, seguiram os ensinamentos de
Pierre Lavedan e Marcel Poëte, o que lhes garantiu uma maior densidade nos estudos evolutivos
das cidades.
Os conceitos e métodos desenvolvidos na Sociologia e na Geografia, não raras vezes,
transbordaram os seus próprios campos disciplinares, sendo absorvidos de um para o outro. No
caso da Geografia paulistana, é esclarecedor o depoimento do geógrafo Aziz Ab’Sáber sobre os
conhecimentos produzidos na área de Geografia, tanto na Faculdade de Filosofia, quanto na
Associação dos Geógrafos Brasileiros e na Escola Livre de Sociologia e Política (Tourinho, 2004):
tínhamos uma vantagem em terrenos (sic) de épocas culturais dos anos 40 em São Paulo:
recebemos os ensinamentos de Monbeig sobre as abordagens geográficas para estudar
uma cidade e podíamos incorporar a elas os princípios e fundamentos criados pelos
sociólogos da Escola de Chicago, introduzidos em boa hora por Donald Pierson em suas
aulas e livros na Escola de Sociologia e Política. A fusão sobre esses dois feixes de
19 Na década de 50, considerando que estas discussões, aproximadamente 50 anos depois do seu início, ainda eram alimentadas pelas imprecisas definições daquelas disciplinas, Maximilien Sorre escreveu Rencontres de la Géographie et de la Sociologie (1957), com o objetivo de analisar os pontos em comum e as diferenças entre a Geografia e a Sociologia.
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metodologia foi um trabalho à parte, feito por nós mesmos, com grande enriquecimento para
a compreensão da organização interna dos organismos urbanos (Ab’Sáber, 1994:227).
6. A tradicional Geografia Urbana: um caminho interrompido
A pesquisa de inspiração marxista que, a partir dos anos 70, se impõe como tendência dominante
nos estudos urbanos, passa a considerar como convencionais as abordagens então vigentes da
Geografia, Sociologia e Economia Urbanas, atacando-as no seu princípio fundamental, o da
autonomia do espaço, e proclamando, assim, a necessidade de superá-las.
Os geógrafos estabeleceram uma periodização referente aos estudos sobre a cidade, definindo
três etapas caracterizadas por temas e métodos predominantes em cada uma delas: a Geografia
tradicional ou clássica - que na sua origem era a chamada “Geografia moderna” -, de cunho
positivista; a Geografia quantitativa, de caráter neopositivista; e, a Geografia crítica, na linha do
materialismo dialético (Carlos, Vasconcelos e Abreu in Carlos org.:1994).
O questionamento da Geografia tradicional por parte da Geografia quantitativa, desenvolveu-se
sobretudo nos Estados Unidos e Reino Unido, refutando o caráter não científico daquela.
Defendia, por um lado, a necessidade da Geografia de se inserir na vertente teórico-metodológica
então em voga nas demais ciências sociais, que era o método neopositivista, baseado em
modelos, quantificações e métodos estatísticos cada vez mais sofisticados; e, por outro lado,
propugnava sua participação nas atividades de planejamento, cujas exigências no pós-guerra
levaram a uma mudança no perfil profissional do geógrafo que se refletirá nos estudos
acadêmicos, com a vinculação entre o pesquisador e o organismo de planificação. Na seqüência,
grande parte da crítica marxista focalizou sua atenção sobre a chamada geografia quantitativa
que, a partir da década de 50, passou a predominar como o novo paradigma da Geografia Urbana
(cf. Carlos, Vasconcelos e Abreu in Carlos org.:1994).
Desta forma, neste processo de superação, primeiramente da Geografia tradicional pela
quantitativa e, depois, dos chamados paradigmas convencionais pela interpretação marxista, os
estudos da tradicional Geografia Urbana, desenvolvidos, em geral, na primeira metade do século
XX até finais da década de 50, no caso europeu, e até finais da década de 60 no caso brasileiro,
foram, então, relegados ao ostracismo, perdendo-se de vista a sua influência na conformação de
conceitos utilizados nos estudos urbanos, como aqueles relacionados à idéia de nodalidade nas
definições de centro e centralidade urbana ou à ênfase dos estudos morfológicos como uma das
ferramentas essenciais para a compreensão dos problemas espaciais. Conceitos, estes, que
encontramos, ainda hoje, na base de boa parte do pensamento sobre a cidade, ainda que tenham
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sofrido maiores ou menores modificações nos seus significados originais, dependendo da ótica
das diferentes disciplinas que as adotaram como próprias20.
Este movimento geral também se deu no contexto dos estudos brasileiros, causando o rechaço de
grande parte do trabalho realizado por gerações mais velhas de geógrafos (Abreu, 1994).
Não se trata, aqui, evidentemente, de menosprezar a vertente marxista, responsável pela
desmontagem da geografia quantitativa, pois, incontestavelmente trouxe grandes avanços para a
pesquisa urbana, mas apenas indicar que no seu processo de afirmação, toda uma linha de
pensamento foi interrompida, com o agravante de que grande parte do patrimônio conceitual
acumulado foi propositalmente esquecido, dificultando a identificação dos elementos conceituais
que conformaram determinados caminhos.
7. Arquitetura, Geografia e Urbanismo: uma relação que se recompõe
A partir dos anos 80 do século XX, a Arquitetura e o Urbanismo voltam a se encontrar a partir da
grande influência que a teoria dos fatos urbanos do arquiteto italiano Aldo Rossi (1966) passou a
ter, ditando os critérios de intervenção na cidade existente nas duas últimas décadas.
Paradoxalmente, sua teoria fundamenta-se em teses de campos disciplinares alheios à
Arquitetura, bebendo, sobretudo, da fonte da tradicional Geografia Urbana francesa.
A partir de finais da década de 60, a principal crítica à Geografia Urbana neopositivista era a de
que priorizava a classificação descritiva como o principal enfoque dos estudos urbanos, sem
conseguir enxergar que a organização funcional é um produto social não de lugares, mas dos
poderes institucionalmente estabelecidos.
Contudo, esta produção geográfica pouco ou nada guarda relação com os estudos do período da
chamada geografia tradicional.
Com efeito, as idéias de expoentes da tradicional Geografia francesa, como Maximilien Sorre,
Pierre Monbeig, Georges Chabot, Jean Tricart - que tanta influência tiveram na tradicional
Geografia brasileira - ou de historiadores do urbanismo, tais como Pierre Lavedan e Marcel Poëte,
já não são mais discutidas atualmente.
Uma das raras exceções neste sentido é a teoria dos fatos urbanos desenvolvida na exemplar
obra A Arquitetura da Cidade, do arquiteto italiano Aldo Rossi, que se fundamenta em muitas das
idéias daqueles autores e que tem tido uma influência ímpar nos estudos urbanos das últimas
20 Como é, por exemplo, o caso da tradicional Geografia francesa revitalizada pela Arquitetura no pensamento de Aldo Rossi, conforme veremos mais adiante.
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décadas, ainda que estes, em geral, não façam referências às origens das idéias veiculadas mais
recentemente21.
A própria expressão fato urbano foi, inicialmente, definida por Poëte, em 1929: “o fato a observar é
o que eu chamaria de fato urbano, quer dizer, o fato revelador do estado do organismo urbano. E
a observação deve ser o mais direta possível” (Poëte, 1967:2). Geógrafos como Sorre, Tricart e
Pierre George, entre outros, utilizaram e difundiram aquela expressão. Deve-se dizer, inclusive,
que muitas das idéias do pensamento de Poëte e Lavedan foram divulgadas pelos geógrafos
urbanos franceses, tal como a preocupação com a história como instrumento de conhecimento.
Os geógrafos urbanos franceses trilharam os mesmos caminhos de Lavedan e Poëte, utilizando-
se de mapas antigos das cidades como instrumento de análise. Sorre afirmava, neste sentido, que
tal análise cartográfica era importante para verificar que, mesmo com o crescimento das cidades,
os velhos traçados estruturais permaneciam visíveis nas partes mais antigas: “le foyer est
demeuré permanent” (Sorre, 1952:322).
O conceito de permanência é essencial para entender a teoria de Rossi e é por ele apropriado a
partir das formulações iniciais de Poëte e Lavedan:
o conceito de persistência é fundamental na teoria de Poëte; inspirará a análise de Lavedan
que, pela sua mescla de elementos deduzidos da geografia e da história da arquitetura,
pode ser considerada uma das análises mais completas de que dispomos. Em Lavedan, a
persistência torna-se geratriz do plano; esta geratriz é o objetivo principal da pesquisa
urbana, pois é a partir da sua compreensão que se pode remontar à formação espacial da
cidade; na geratriz está compreendido o conceito de persistência que se estende também
aos edifícios físicos, às ruas, aos monumentos urbanos. Junto com alguns geógrafos que
citei, como Chabot e Tricart, a de Poëte e Lavedan está entre as contribuições mais
elevadas da escola francesa à teoria urbana. (Rossi, 1982:38)
Apesar de criticar o enfoque funcionalista22 da Geografia, Rossi acredita que os expoentes da
tradicional Geografia francesa, como Chabot, foram além da questão funcional, tratando de outros
temas e utilizando-se de conceitos que, segundo Rossi, foram fundamentais para a formulação de
21 Ainda que a edição original de La arquitectura de la ciudad seja de 1966, a sua repercussão internacional só foi efetiva na década de 80, tendo sido traduzido, por exemplo, ao francês no começo daquela década. 22 Cabe observar que Rossi, ao criticar o “funcionalismo ingênuo”, refere-se às posições conceituais que tentam explicar os fatos urbanos através, apenas, de sua função, o que levaria a uma desconsideração da forma, do tipo e da própria arquitetura na formação e complexidade dos fatos urbanos. Contudo, ressalva o arquiteto, o aspecto funcional deve ser considerado, sendo um instrumento de análise tão possível como tantos outros, como, por exemplo, a morfologia urbana.
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sua própria teoria. Neste sentido, destaca o conceito de “alma da cidade” desenvolvido por
Chabot:
o primeiro argumento considerado foi deduzido dos geógrafos da escola francesa. Eu disse
que estes, depois de criarem um bom sistema descritivo, detêm-se diante da análise da
estrutura da cidade. Referia-me em particular à obra de Georges Chabot, para quem a
cidade é uma totalidade que se constrói por si mesma e em que todos os elementos
contribuem para formar a ‘âme de la cité’. Considero que este é um dos mais importantes
pontos de chegada no estudo da cidade, ponto que se deve ter em mente para examinar
concretamente a estrutura do fato urbano. (Rossi, 1982:94)
Monbeig, geógrafo francês que, durante a sua estadia no Brasil, tanto influenciou os geógrafos
paulistas, afirmava que conhecer a alma da cidade era o que se desejava com o estudo das
cidades. Neste sentido, chamava a atenção para o risco de desumanização que se percebia
sobretudos nos trabalhos estatísticos e na Sociologia que, segundo ele, “acredita exprimir o real,
enquadrando-o em equações” (Monbeig, 1957:53).
Para o desenvolvimento de sua teoria, Rossi assinalou, ainda, a importância da Geografia Social
de Tricart:
da análise de Tricart, eu quis pôr em evidência a importância do estudo da cidade quando
este parte do conteúdo social; o estudo do conteúdo social permite evidenciar o significado
da evolução urbana de modo concreto. (Rossi, 1982:94)23
Rossi acredita que os temas e conceitos desenvolvidos pelos geógrafos franceses se
aproximavam da compreensão da estrutura e da complexidade dos fatos urbanos a partir da
análise do bairro, que Rossi prefere chamar de parte ou pedaço da cidade:
destes estudos manteremos firme, então, o conceito da cidade como totalidade e da
possibilidade de nos acercarmos à compreensão desta totalidade mediante o estudo de
suas diversas manifestações, de seu comportamento. (Rossi, 1982:94)
Ou seja, assim como os geógrafos, Rossi propõe o estudo da cidade através de suas partes, seus
fragmentos, afirmando que estas podem ser individualizadas como bairros ou partes do conjunto
23 Em Tricart (1951), a paisagem começa a ser explicada através da estrutura sócio-econômica. Para este geógrafo, “todos os fenômenos do habitat urbano são comandados pela dinâmica social, fundada sobre a diferenciação de classes e das lutas entre elas” (Tricart, 1951:90). Um pouco antes dele, George (1949) já vinha utilizando um vocabulário de origem marxista, falando em luta e consciência de classes, em periferia proletária e revolucionária, as contradições do capitalismo, precedendo em quase 20 anos a geografia crítica dos anos 70. A este respeito, ver Vasconcelos, 1999:218-220; 222-225.
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urbano que emergiram em diferentes momentos de crescimento e diferenciação, adquirindo
caráter próprio.
Desta forma, invocando a Tricart, Rossi afirma que cada parte é uma unidade morfológica e
estrutural, caracterizada por uma certa paisagem urbana, certo conteúdo social e uma função
própria (Rossi, 1982:118). Como fica evidente, os termos utilizados por Rossi são próprios do
vocabulário geográfico. De acordo com Tricart, a noção de bairro é muito mais complexa do que a
entidade administrativa à qual pertence e constitui a base da estrutura urbana. São os seguintes
os critérios que permitem definir e delimitar os bairros:
- a função: lugar do bairro no organismo urbano (residência, produção, administração,
organização militar, etc.); - a morfologia: tipos de casas, disposição das ruas, idade e estilo
das construções, etc.; - a estrutura social: nível e modo de vida de seus habitantes (Tricart,
1951:141)24.
Dos estudos e definições que tentaram estabelecer relações entre as partes da cidade, Rossi
considera que os mais ricos e complexos são aqueles realizados por grande parte dos geógrafos,
contrastando com as análises demasiado simplistas e reducionistas dos sociólogos urbanos como
Burgess.
Rossi empreende um estudo profundo da tradicional Geografia francesa, recuperando conceitos e
temas esquecidos, fugindo da crítica fácil e simplista que muitos fizeram à tradicional Geografia
francesa, rechaçando-a sobre o epíteto de funcionalista. O desafio de um trabalho teórico, tal
como se propôs, abriu ao arquiteto italiano outros caminhos, na sua busca de vincular o estudo da
cidade e a arquitetura, a análise e o projeto:
vi-me obrigado a raramente citar a arquitetos, e sim em muitas ocasiões a estudiosos de
outras disciplinas, a partir dos geógrafos e historiadores (...) Esta posição pode parecer
estranha, a assunção de teses de campos disciplinares alheios à arquitetura, precisamente
por parte de quem se preocupa em definir os limites do corpus dos estudos arquitetônicos.
Em realidade, nunca falei de uma autonomia absoluta da arquitetura ou de uma arquitetura
an sich, como alguns pretendem atribuir-me. (Rossi, 1982:47)
Ao pretender elaborar um trabalho teórico, diz Rossi, esbarrou com o problema da relação entre
teoria e prática que os arquitetos raramente conseguem superar em sua atividade. Neste sentido,
24 Tricart afirma que, tendo como objetivo definir e explicar a paisagem urbana, a morfologia urbana é uma preocupação típica da geografia humana. Contudo, continua o geógrafo, os urbanistas consideram a morfologia como domínio próprio e a utilizam para outros fins, não como instrumento para o estudo de casos concretos, mas seu ponto de vista é mais abstrato, conduzido por considerações estéticas, vinculadas a dados técnicos e teorias arquitetônicas (Tricart, 1951:4).
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argumenta que a história é utilizada pelos arquitetos simplesmente como ato historiográfico, ou
seja, como conhecimento do passado, sem abrir para o futuro nenhuma perspectiva de
conhecimento. Por outro lado, aponta para a insuficiência das concepções teóricas correntes e
para a fragilidade da arquitetura contemporânea.
Desta forma, Rossi recorre a outras disciplinas, como a História e a Geografia. Sobre esta última,
afirma que teve um interesse notável para a sua teoria, utilizando-se dos textos geográficos como
materiais de construção das suas formulações.
A partir de sua teoria sobre as cidades, além da notável influência de Rossi na aproximação entre
análise da cidade e projeto urbano, ditando os critérios de intervenção na cidade existente nas
últimas décadas, o arquiteto italiano passou a ser freqüentemente citado, de acordo com Pierre
Merlin, como um dos fundadores da recente corrente morfologista.
Merlin afirma que o conceito de morfologia apareceu, inicialmente, com os geógrafos alemães e
franceses, sendo desenvolvido, sobretudo, no período entre guerras e retomado pelos arquitetos
italianos na década de 6025: “da Itália, o movimento morfologista ganhou os outros países
europeus e os Estados Unidos, ao ponto de tornar-se uma moda” (Merlin in Merlin & Choay dir.
2000:527).
Entre as causas desta retomada encontrava-se, por um lado, uma reação contra os abusos do
movimento moderno, que pregava uma transformação completa da cidade antiga, confirmando a
ruptura entre a cidade e o passado e ignorando os estudos sobre a forma urbana. E, por outro
lado, esta retomada estava vinculada à reintrodução da dimensão espacial nos estudos urbanos,
em oposição às interpretações marxistas que refutavam toda e qualquer autonomia do objeto
urbano como espaço (cf. Merlin in Merlin & Choay dir. 2000:527-528).
25 Ainda de acordo com Merlin, Vittorio Gregotti distingue duas correntes do movimento morfologista, ambas desenvolvidas a partir das conceituações dos geógrafos: a primeira, como complemento e oposição à noção de tipologia, formulada pelas escolas de Roma e Veneza, de Muratori (Studi per una operante studia urbana di Venezia, 1959) a Rossi (L’architettura della città, 1966); a segunda, vinculada aos conceitos de sítio e situação dos geógrafos, aplicados ao conhecimento arquitetônico, foi desenvolvida em Milão e depois em Veneza, de Samona (L’urbanistica e l’avvenire della città negli stati europei, 1959) a Gregotti (Il territorio dell’architettura, 1966). A este respeito, ver Merlin in Merlin & Choay dir., 2000:527.
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