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Velloso 2008 ciberespaco_comoagoraeletronica

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Resumo

As interações humanas no ciberespaço revelam-no comoambiente constitutivo de uma ágora contemporânea, em que osgrandes debates públicos, ou as trocas simbólicas,processam-se, na era da informação, de formasignificativamente transformada. As múltiplas realizações noambiente virtual dão-se sob a égide de valores (e afinidades)culturais, com outras interfaces, compondo redes demobilização e troca que se sustentam pela sua diversidadeintrínseca e por seu dinamismo. Resultam, assim, asrealizações humanas em movimentos sociais tão antigos, nasua essência, quanto a própria humanidade, mas inovadoresna forma e na dinâmica que assumem, na instauração dacibercultura como marca da contemporaneidade.

Palavras-chave

Ciberespaço. Contemporaneidade. Interações humanas.Movimentos sociais. Cibercultura.

The cyberspace as an electronic agora in thecontemporaneous society

Abstract

The cyberspace is the contemporaneous agora for the humaninteractions, where great public debates or symbolicexchanges are significantly processed in the era ofinformation. The multiple achievements in the virtualenvironment are carried out under the aegis of cultural valuestogether with other interfaces making up nets of mobilizationand exchange which are supported by their intrinsic diversityand dynamism. The human achievements take place in socialmovements, ancient in their essence as humankind itself, butinnovating in the form and dynamics they are brought out inthe establishment of cyberculture as a mark ofcontemporaneousness.

Keywords

Cyberspace. Contemporaneity. Human interactions. Socialmovements. Cyberculture.

O ciberespaço como ágora eletrônicana sociedade contemporânea

Ricardo Viana VellosoMestrando em educação, cultura e organizações sociais, pelaUniversidade do Estado de Minas Gerais – UEMG.E-mail: [email protected]

INTRODUÇÃO

Este artigo tem por objetivo examinar o ciberespaço comoambiente que compõe a ágora eletrônica na cenacontemporânea, sob a égide de novas interfaces e dacibercultura, comprometidas por outras temporalidadese territorialidades.

Perceber o ciberespaço como ágora virtual enseja edemanda revisitar conceitos atinentes às esferas públicae privada, com lastro nos estudos de Arendt (2008), queresgata tais categorias nas suas origens na Grécia, bemcomo sua ressignificação na modernidade, quando suadistinção secular se torna tênue, favorecendo aemergência da esfera social.

Requer ainda, à guisa de contextualização da cenacontemporânea, a apropriação das considerações deHobsbawm (2006) acerca do “Breve século XX” e dasincertezas que advêm da insuficiência da ciência e datécnica para fazer frente aos desafios hodiernos, dentreos quais se destacam o demográfico e o ambiental.

Para subsidiar o presente estudo, é também relevanteretomar com Lévy (1993) categorias como espaço virtual,cibercultura, tecnologias da inteligência e ecologiascognitivas, que emergem no ambiente descentrado,atópico e desterritorializado da rede mundial deinter(ações) instaurada pelas tecnologias da informaçãoe da comunicação. Vale igualmente revisitar asconsiderações de Johnson (2001) sobre a cultura dainterface, que conferem mais amplas conotações àstecnologias na atualidade, em um contexto de interaçãoentre tecnologia, cultura e arte, assim como os estudosde Castells (2003) e Moraes (2001) acerca da Internetna sociedade hodierna.

Há de se ressaltar que o presente artigo cuidará de abordaro ciberespaço como ambiente das ações e interações dossujeitos sociais organizados, sob a percepção de que asredes que se compõem na sociedade não reinventam,na sua essência, os movimentos sociais, mas certamentelhes conferem outras dimensões culturais, sustentadaspela diversidade e amplitude das conexões ensejadas pelastecnologias da informação e da comunicação,determinantes para a instauração da (ciber)culturacontemporânea.

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DIMENSÕES PÚBLICA E PRIVADA DASINTERAÇÕES HUMANAS: ORIGENS ERESSIGNIFICAÇÃO

Retomando as origens da vida humana em sociedade, éimperativo reconhecer, inicialmente, duas esferas deinterações: a esfera privada, em cujo âmbito as realizaçõesse identificam com o atendimento a necessidadesbiológicas, quais sejam a sobrevivência e a perpetuaçãoda vida; e a esfera pública, lugar de interações queextrapolam essa condição natural mais imediata embusca da liberdade no próprio mundo, comum aoshomens que buscam, nessa seara, efetiva visibilidade.Tais instâncias, marcadas por f lagrante antinomia,remetem à consideração das categorias labor, trabalho eação, tratadas por Arendt em A condição humana1.

A autora situa o labor como atividade inerente à naturezahumana identificada com a necessidade de preservaçãoda vida. Assim é que, na divisão clássica da atividadehumana, ao homem é reservado o mister de prover oalimento e a segurança, enquanto à mulher se reserva areprodução. O trabalho, por sua vez, extrapolando acircunscrição do natural, coloca o homem no exercícioda criação de coisas artificiais, revelando o homo faber.Por fim, tem-se a ação, que é apresentada pela autoracomo outra atividade humana, cuja realização demanda(e enseja) um ambiente de interações com outroshomens, de forma contínua. Por seu carátereminentemente interacional, a ação pode então serdistinguida das categorias labor e trabalho em virtudede a primeira se comprometer com a esfera pública,enquanto as demais se situam originariamente, conformeesposado por Arendt (2008), na esfera privada.

Contrapondo características e funções, em virtude dasinterações perpetradas em seu âmbito e dos seusdiferentes componentes motivadores, as esferas públicae privada definem ambientes dicotômicos das realizaçõeshumanas.

Assim é que a esfera da casa (oikos) corresponde ao lugarda vida privada, comprometida com as demandas naturaisda existência humana. E, como observa Arendt (2008,p.40),

O fato de que a manutenção individual fosse a tarefado homem e a sobrevivência da espécie fosse a tarefada mulher era tido como óbvio; e ambas estas funçõesnaturais, o labor do homem no suprimento dealimentos e o labor da mulher no parto, eram sujeitasà mesma premência de vida.

Já a esfera pública, reconhecida como o lugar do comum,revela-se como o palco das interações e possível âmbitodo exercício da liberdade, levada a efeito na ágora grega,a praça dos debates e das manifestações públicas;liberdade que, na esfera privada, não se dá em virtudedas relações desiguais e do reino da necessidade e dascarências biológicas, já referidas. Nesse diapasão, a esferapública constitui o lugar dos cidadãos livres e iguais, noexercício da ação, para além do labor e do trabalho.Destaca Arendt (2008) que, na esfera do público,diferentemente do que se dá na esfera privada com orecurso à força, o que se tem é a hegemonia do discurso,da persuasão.

A busca pela visibilidade (e pela liberdade) na cenapública, que redimensiona a existência humana, balizadana ação, faz emergir, no curso da história, outra dimensãodas interações, qual seja, a esfera social. Esse fenômenose processa em um movimento de complexidade,trazendo a público temas até então adstritos ao ambienteprivado. O divisor de águas entre o público e o privado,instâncias até então circunscritas à antinomia de suasrelações, vai se fazendo tênue, o que promove orecrudescimento dessa esfera emergente, de cunho social.Trata-se de uma instância que, surgida no início da eramoderna, não equivale ao público nem ao privado.

O cenário que se desenha com a emergência da esferasocial reflete-se concomitantemente ao surgimento doestado nacional, revelando o setor público-estatal, o setorprivado e, de forma cada vez mais pronunciada, o terceirosetor2, com caráter também público, mas não-estatal,envolvendo a participação de voluntários em busca deprocessos e resultados identificados com o bem-estarsocial.

CONTEMPORANEIDADE E INCERTEZAS

A par da instauração das instâncias de realizaçõeshumanas, movidas ora pela necessidade, ora pelo desejode liberdade, sob a égide do labor, do trabalho e ou da1 ARENDT, Hannah. A condição humana. Tradução de Roberto Raposo.

Rio de Janeiro: Forense universitária, 2008. Publicada em 1958, aobra suscita muitas questões acerca das realizações humanas ao longoda história, sendo relevantes na presente abordagem as consideraçõesda autora sobre o público e o privado, bem como sua ressignificaçãona modernidade, esferas cuja apreciação demanda a apreensão dascategorias labor, trabalho e ação, constitutivas da existência humana.

2 Por decorrer da associação do caráter público (não estatal) aliado àiniciativa privada (sem fins lucrativos), esse setor ganha projeção erelevo progressivo por se inserir nos espaços ou lacunas gerados pelaineficiência ou ausência do Estado.

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ação, a sociedade se conduz e se redesenhahistoricamente, compondo, na modernidade, um cenáriode encantamento com a razão. A aventura humana,contudo, revela-se marcada por conquistas que sealternam com percalços, traduzindo-se em um flagranteparadoxo, cujo exercício de compreensão remete aosestudos de Hobsbawm (2006) acerca do “Breve séculoXX”, ou a Era dos Extremos um lapso de tempo entre1914 e 1991, intervalo histórico que abrigaconcomitantemente avanços científicos e tecnológicose guerras, destruição e desigualdade.

Hobsbawm (2006) identifica como “Era da Catástrofe”o período de 1914 até depois da Segunda Guerra Mundial.Essa fase é sucedida por “cerca de 25 ou 30 anos deextraordinário crescimento econômico e transformaçãosocial, anos que provavelmente mudaram de maneiramais profunda a sociedade humana que qualquer outroperíodo de brevidade comparável” (HOBSBAWM, 2006,p.15), constituindo-se na “Era do Ouro”. Sucedendo esserecorte temporal, a humanidade experimenta, segundoo autor, uma era de incertezas e crises.

O século XX, além de seus paradoxos, revela uma novatemporalidade, traduzida na ausência de nexosarticuladores com o passado e na falta de um sentidoprospectivo, instaurando-se, então, uma espécie de“presente contínuo”, que traz no bojo desse fenômeno amudança (ou perda) de paradigmas de relacionamentosocial e humano. A hipertrofia do sentido da razãoencontra, com relevo cada vez mais expressivo, umainsuficiência como resposta às angústias e às indagaçõesde seu tempo, em grande parte porque divorciadas dapercepção sensorial e do senso comum, com os quaisestabelece relação eminentemente dicotômica.

Pronuncia-se aí um novo desencantamento, a exemplodo que se deu com relação à fé, quando da transcendênciapara a modernidade.

O Breve Século XX acabou em problemas para osquais ninguém tinha, nem dizia ter, soluções.Enquanto tateavam o caminho para o terceiromilênio em meio ao nevoeiro global que os cercava,os cidadãos do fin-de-siècle só sabiam ao certo queacabara uma era da história. E muito pouco mais(HOBSBAWM, 2006, p. 537).

O século XX deixa, então, nessa perspectiva, o legado daincerteza.

Ademais, é o momento histórico que experimenta emmais larga escala, no bojo do progresso tecnológicoatinente aos transportes e às telecomunicações, oprocesso de globalização

cada vez mais acelerado e a incapacidade conjuntade as instituições públicas e de o comportamentocoletivo dos seres humanos se acomodarem a ele(HOBSBAWM, 2006, p. 24).

A aldeia global3 que se configura no contexto damodernidade não constitui, como se poderia supor, aquebra de fronteiras seguida de progressiva conquistada igualdade. Diferentemente disso, o que se tem, com aacentuação das desigualdades, é,

num mundo cada vez mais globalizado, o fato mesmode as ciências naturais falarem uma única línguauniversal e operarem sob uma única metodologia(HOBSBAWM, 2006, p.506)

Sobre o presente cenário, em que se dão movimentos demudialização sobretudo de cunho econômico, é Antônio(2002, p.100) quem observa que

a globalização não tem sentido verdadeiramentecosmopolita nem universalista: um vasto e poderosodomínio de capitais e mercados e de tecnologias deinformação e comunicação faz com que se beba omesmo refrigerante e se coma o mesmo sanduíche ese assista aos mesmos filmes e aos mesmos programastelevisivos e aos mesmos esquemas de marketing nosquatro cantos do mundo.

O fato é que os paradoxos e as incertezas presentes nacena contemporânea marcam-na com outrastemporalidades e territorialidades, potencializadas peloadvento das tecnologias da informação e dacomunicação, alavancadas pelo desenvolvimento dainformática, que enseja (e impõe) novas concepções ereferências à dinâmica do tempo e do espaço.

Relativamente ao redesenho do espaço das interaçõeshumanas, emergem teses identificadas com o fim dosterritórios, que, diferentemente de se confirmarem,revelam, antes, outras territorializações, as quais, segundoHaesbaert (2004), traduzem-se na redefinição dos

3 O termo é cunhado por Marshall Mc Luhan, sociólogo canadense,para se referir às novas configurações assumidas pelas interaçõesentre os diversos países (e culturas), superando a linearidade e oslimites territoriais e temporais clássicos, situação que, na tese doautor, colocaria o mundo no patamar de uma aldeia, no âmbito daqual perseveram as desigualdades.

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espaços, que passam a incorporar dimensões materiais eou simbólicas. Desse movimento, resultam territóriosfísicos, virtuais, políticos e culturais, dentre outros,possibilitando a vivência de multiterritorialidades, emum contexto em que se permite

(...) pela comunicação instantânea, contatar e mesmoagir sobre territórios completamente distintos donosso, sem a necessidade de mobilidade física. Trata-se de uma multiterritorialidade envolvida nosdiferentes graus daquilo que poderíamos denominarcomo sendo a conectividade e/ou vulnerabilidadeinformacional (ou virtual) dos territórios.(HAESBAERT, 2004, p.345)

As condutas e relações sociais e humanas que se dão nacircunscrição desses territórios emergentes, em particulardo território virtual, convidam ao exame de seusignificado e do caráter que assumem, bem como dasvariáveis com que estão imbricadas, para sua melhorcompreensão e, por extensão, para que se possa tratar asua ressituação no ciberespaço. Essa categoria, por suavez, reclama exame mais detido, de forma a favorecer acompreensão das interações humanas em seu âmbito,sob múltiplas configurações.

CIBERESPAÇO: OUTRO AMBIENTE DASREALIZAÇÕES HUMANAS

O espaço virtual, imbricado com outras temporalidadese outras territorialidades, destaca-se pela celeridade dasinformações hipertextuais, dispostas em rede, as quaispossibilitam leituras mais imediatistas pela associaçãoda expressão verbal a imagens e sons entre outros; masensejam também leituras extensivas, caminhosalternativos para o leitor que, valendo-se dos nós na redehipertextual não-linear, vê-se co-autor, em um exercícioautônomo de produção de sentido da malha textual. Emmuitas situações, as temporalidades são tambémredimensionadas por atualizações contínuas e quasesimultâneas aos fatos, às notícias, aos múltiplos registrosna Internet.

E, como observa Marcuschi (2005, p.13),

em certo sentido, pode-se dizer que, na atual sociedadeda informação, a Internet é uma espécie de protótipode novas formas de comportamento comunicativo.

Embora o autor se atenha às situações comunicativas, épossível estender o olhar às situações mais amplas derelações sociais, já que a comunicação constitui ato e

processo social que comporta relações de poder e trocassimbólicas de amplo espectro, insertas no cenárioconstitutivo de uma cibercultura.

Nesse contexto, novas territorialidades também serevelam, na medida em que os contornos têm seu focodescolado da materialidade, trazendo como marcaspreponderantes as dimensões simbólicas. Tem-se, então,outros territórios em que se processam novas experiências,imbricadas com múltiplas interfaces. Nesses territórios,as fronteiras se diluem, instaurando uma nova geografia.A ausência de marcos espaço-temporais rígidos,substituída por nós de conhecimento e de aglutinaçãomotivacional, ensejam contínua mobilidade ounomadismo, sobre o qual considera Lévy:

O espaço do novo nomadismo não é o territóriogeográfico nem o das instituições ou dos Estados,mas um espaço invisível dos conhecimentos, dossaberes, das forças de pensamento no seio da qual semanifestam e se alteram as qualidades do ser, osmodos de fazer sociedade. Não os organismos dopoder, nem as fronteiras disciplinares, nem asestatísticas dos mercados, mas sim o espaçoqualitativo, dinâmico, vivo, da humanidade que seinventa ao mesmo tempo que produz o seu mundo(LÉVY, 1997, p.17).

Desse movimento emergem territórios cognitivoscoletivizados, em que se inserem autores e leitoresinvestidos da condição de co-autores que produzempermanentemente sentidos na interação com as malhastextuais, compostas a partir dos hipertextos4, constitutivosdas ecologias cognitivas.

É fato que, de um lado, territórios se podem concebercom certo grau de anonimato, como se dá, por exemplo,nas diversas salas de bate-papo em que os interlocutoresusam apelidos, os nicks, que ora os revelam (e as suasintenções comunicativas), ora os ocultam. De outro,todavia, concebem-se ambientes de cooperação, comoas listas de discussão, os fóruns temáticos virtuais e outros,em que os interlocutores podem se inserir, em muitosdos casos, devidamente identificados, empreendendo ainteração e a colaboração.

4 Os hipertextos invocam uma concepção textual aberta, não-linear,que reclama novos comportamentos na sua produção de sentido, narelação com a autoria, portanto novos agenciamentos em rederelacional com outras configurações. Afinal, como esclarece Coscarelli,“o hipertexto é, grosso modo, um texto que traz conexões, chamadaslinks, com outros textos que, por sua vez, se conectam a outros, eassim por diante, formando uma grande rede de textos”(COSCARELLI, 2003, p.73).

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Nessas territorialidades em que se sobrepõem asdimensões simbólicas às materiais, situações antagônicastendem a se definir em territorializações que se processamsob a égide do relativo anonimato, ou da deliberadaidentificação dos sujeitos sociais que vivenciam acoletivização de seu pensar (e fazer) em cenários deinteração e ou cooperação, constituindo outras ecologiascognitivas. Trata-se de ambientes de relações que, paraalém da seara cognitiva, envolvem variáveis conceituais,axiológicas, estéticas e afetivas, dentre outras. Afinal,como observa Lévy,

A informática não intervém apenas na ecologiacognitiva, mas também nos processos de subjetivaçãoindividuais e coletivos. Algumas pessoas ou gruposconstruíram uma parte de suas vidas ao redor desistemas de troca de mensagens (BBS), de certosprogramas de ajuda à criação musical ou gráfica, daprogramação ou da pirataria nas redes. Mesmo semser pirata ou hacker, é possível que alguém se deixeseduzir pelos dispositivos de informática. Há todauma dimensão estética ou artística na concepção dasmáquinas ou dos programas, aquela que suscita oenvolvimento emocional, estimula o desejo deexplorar novos territórios existenciais e cognitivos,conecta o computador a movimentos culturais,revoltas, sonhos (LÉVY, 1993, p. 56).

Nesse contexto, pronunciam-se, no bojo de uma novacultura, ou da cibercultura, processos de interação e deinterlocução os quais compõem espaços (ou territórios)virtuais que trazem à cena conexões mais amplas e maiordinamismo, presentes nos movimentos sociais em rede,que se identificam, constituem-se e alimentam-se, dentreoutros, por valores culturais, revelando-se, inclusive,como registra Castells (2003 p.115), em militânciasambientais, feministas, pelos direitos humanos e dosativistas ligados a um sem-número de projetos culturaise causas políticas. Nessa perspectiva,

o ciberespaço tornou-se uma ágora eletrônica globalem que a diversidade da divergência humana explodeem uma cacofonia de sotaques.

CIBERCULTURA E OUTRAS INTERFACES

A relação entre o usuário e o computador implicainterfaces que se dão através de softwares que medeiamas interações entre ambos. Nesse exercício interativo,segundo Johnson (2001), instauram-se novos olhares,novas percepções e novas concepções para com o mundo,o que redunda em outras posturas e condutas humanas

ante os sujeitos e a sociedade propriamente dita, já que“a relação governada pela interface é uma relaçãosemântica, caracterizada por significado e expressão, nãopor força física.” (JOHNSON, 2001, p.17).

Apresentam-se as interfaces tão intrigantes quantosedutoras, possibilitando até a aproximação entrecategorias aparentemente antinômicas, como tecnologiae arte e, ainda com Johnson (2001, p. 174), é possívelasseverar que

Nossas interfaces são histórias que contamos paranós mesmos para afastar a falta de sentido, paláciosde memória construídos de silício e luz. Elas vãocontinuar a transformar o modo como imaginamosa informação, e ao fazê-lo irão nos transformartambém – para melhor e para pior.

Envolvidos nesse contexto de múltiplas interaçõescomprometidas com dimensões simbólicas, marcadaspela instantaneidade e transitoriedade, pelodescentramento e pela atopia, os sujeitos sociais se vêemconstituindo e vivenciando a cibercultura, cujo universo

não possui nem centro nem linha diretriz. É vazio,sem conteúdo particular. Ou antes, ele os aceita todos,pois se contenta em colocar em contato um pontoqualquer com qualquer outro, seja qual for a cargasemântica das entidades relacionadas. (LÉVY, 2005,p. 11).

O ambiente instaurado enseja a retomada de antigasinterações e mobilizações de atores e grupos sociais agoracom novos contornos temporais e territoriais, à medidaque as informações (e as trocas) se dão com maior volumee celeridade, além de prescindirem de contornosterritoriais físicos. Desse processo, emerge, de formaalternada, a sucessão de ações locais e globais, compondo,dentre outros, o movimento contemporâneo dacibermilitância, que se dá no bojo das organizações emrede. Segundo Castells,

os movimentos sociais do século XXI, ações coletivasdeliberadas que visam a transformação de valores einstituições da sociedade, manifestam-se na e pelaInternet. O mesmo pode ser dito do movimentoambiental, o movimento das mulheres, váriosmovimentos pelos direitos humanos, movimentos deidentidade étnica, movimentos religiosos,movimentos nacionalistas e dos defensores/proponentes de uma lista infindável de projetosculturais e causas políticas. (CASTELLS, 2003, p. 114).

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À guisa de exemplo, podem-se registrar com Moraes(2001) alguns segmentos da sociedade civil que,mobilizados por mais diversos temas e interesses,investem no ciberespaço como forma de ampliar suasarticulações e interlocuções e de dar visibilidade às suascausas, dentre eles, o Movimento dos TrabalhadoresRurais Sem-Terra (MST), a Central Única dosTrabalhadores (CUT), a Conferência Nacional dosBispos do Brasil (CNBB), a Ordem dos Advogados doBrasil (OAB), o Instituto Brasileiro de Defesa doConsumidor (IDEC) e o Médico Sem Fronteiras.

Nesse diapasão, as interações humanas e suas realizações,inicialmente movidas pelo labor, sob a ótica de Arendt,e em seguida pelo trabalho e finalmente pela ação,ganham novos contornos e uma dinâmica diferenciada.

O cenário virtual, ou o ciberespaço, passa a se constituirem importante território da esfera social, a ágora5

eletrônica contemporânea, que possibilita dar visibilidadeaos fatos da vida privada, tratar fatos e fenômenos daesfera pública e sobretudo redimensionar a esfera social.Por seu descentramento e atopia, como já referido, ensejadiluir as concentrações de poder e ampliar a participaçãodos atores sociais e a projeção dos diversos segmentos.Todavia, como adverte Castells,

na co-evolução da Internet e da sociedade, a dimensãopolítica de nossas vidas está sendo profundamentetransformada. O poder é exercido antes de tudo emtorno da produção e difusão de nós culturais econteúdos de informação. O controle sobre redes decomunicação torna-se a alavanca pela qual interessese valores são transformados em normas condutorasde comportamento humano. Esse movimento seprocessa, como em contextos históricos anteriores,de maneira contraditória. A Internet não é uminstrumento de liberdade, nem tampouco a arma dedominação unilateral (CASTELLS, 2003, p. 135).

Em síntese, o ciberespaço não se constitui, por si mesmo,em garantia de conquista de democracia, igualdade e ouliberdade. É inconteste que, não obstantes os novosparâmetros temporais e territoriais, persistem as desiguaiscorrelações de força; não apenas de caráter físico, comose viu na esfera privada na Grécia Antiga, nem tampoucode caráter retórico, como se assistiu na esfera públicaem que a palavra assumia o papel de se pôr a serviço da

persuasão; mas de caráter simbólico em uma acepçãomais ampla, uma vez que as interações se dão emambiente diverso do que historicamente se teve. Emcontrapartida, as interações em outra cena, com novasinterfaces e com carga simbólica redimensionada,colocam as realizações humanas diante de novos desafiose possibilidades.

CONSIDERAÇÕES FINAIS

É fato que as interações humanas, que se deramhistoricamente nas esferas do público e do privado,ganham novos contornos temporais e territoriaispossibilitados pelas tecnologias da informação e dacomunicação, que interconectam atores e segmentossociais de todos os cantos, na era da informação. Taisinterações envolvem, para além das referências materiaisclássicas, dimensões simbólicas, as quais são suscitadastanto pelas interfaces entre o homem e o computadorquanto pelas trocas virtuais entre as culturas geradorasde diferentes perspectivas, anseios e valores.

Como lembra Johnson (2003, p.24),

a interface já alterou o modo como usamoscomputadores e vai continuar a alterá-lo nos anosvindouros. Mas está fadada a mudar outros domíniosda experiência contemporânea de maneiras maisimprováveis, mais imprevisíveis.

As interações multiculturais, por sua vez, compondo acibercultura pelas trocas simbólicas no ciberespaço,resultam nos contornos da ágora eletrônica em que seprocessam as manifestações do público e do privado emúltiplos exercícios de expressão que dão visibilidadeaos sujeitos e segmentos sociais. Em um contexto dedescentramento, de atopia, flexibilidade e dinamismo,emergem múltiplas vozes, compondo a “cacofonia”referida por Castells (2003), como expressão do exercíciointeracionista na esfera social da contemporaneidade.

O cenário das interações ciberespaciais, ou a ágoraeletrônica, embora constituindo-se com novos contornostemporais e territoriais em que se processam as trocassimbólicas, não tem o condão de, por si só, instauraruma nova correlação de forças. Afinal, o que há de definirna ágora virtual, assim como se deu na ágora grega, asinterações humanas e seus rumos, é a correlação deforças, que, hodiernamente, para além do embateretórico referido por Arendt (2008), haverá de envolveras novas interfaces e as trocas simbólicas.

5 Sendo, na Antigüidade Clássica, a praça principal da polis grega, aágora é tomada aqui como o espaço das interações (virtuais) na esferapública, dos debates políticos, da convivência e da visibilidade, sendo,assim, o espaço da cidadania.

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O ciberespaço como ágora eletrônica na sociedade contemporânea

Por fim, ainda que repelindo a percepção ingênua deque a ágora eletrônica poderia reorientar as relações depoder e troca, é possível asseverar que o novo ambienteinstaurado suscita novos desafios e outras possibilidadespara as interações humanas e, em última análise, paraos sujeitos sociais.

Artigo submetido em 25/10/2008 e aceito em 22/12/2008.