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Alice no pais das maravilhas & atraves d lewis carroll

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Passados quase 150 anos da publicação original, a clássica história de uma menina chamada Alice, que entra em uma toca atrás de um coelho falante e cai em um mundo de fantasia, continua popular, ilustrações originais de John Tenniel, reúne Aventuras de Alice no País das Maravilhas e sua continuação, Através do espelho e o que Alice encontrou por lá.

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Lewis Carroll

Lewis Carroll

Autorretrato de Lewis Carroll

Nome completo Charles Lutwidge Dodgson

Nascimento 27 de Janeiro de 1832Daresbury, Inglaterra

 Reino Unido

Morte 14 de janeiro de 1898 (65 anos)Guildford, Inglaterra

 Reino Unido

Ocupação romancista, poeta e matemático

Principais trabalhos •• Alice no país das maravilhas•• Alice Através do Espelho

Movimento estético poesia moderna

Charles Lutwidge Dodgson, mais conhecido pelo seu pseudônimo Lewis Carroll (Daresbury, 27 de janeiro de1832 — Guildford, 14 de Janeiro de 1898), foi um romancista, poeta e matemático britânico. Lecionava matemáticano Christ College, em Oxford, e é mundialmente famoso por ser o autor do clássico livro Alice no País dasMaravilhas e os poemas presentes neste livro, além de outros poemas escritos em estilo nonsense ao longo de suacarreira literária, são considerados por críticos, em função das fusões e da disposição espacial das palavras, comoprecursores da poesia de vanguarda.

Tudo tem uma moral: é só encontrá-la.

— Lewis Carroll

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VidaDesde criança, Lewis Carroll recebeu de seu pai uma educação religiosa, pois tencionava vê-lo seguir essa carreira.Carroll desviou-se de vez da carreira sonhada pelo pai em Janeiro de 1851 quando ingressou na Universidade deOxford. Durante o tempo em que estudou na Universidade de Oxford, ele sempre se mostrou bastante interessado eesforçado, tanto que chegou a ganhar uma medalha de honra ao mérito. Devido o seu desempenho como matemático,ao acabar o seu curso, foi convidado pela universidade para trabalhar lá como professor de matemática

HobbiesQuando criança Carroll brincava com marionetes e prestidigitação (também chamado magia ou ilusionismo), edurante a sua vida gostou de fazer passes de mágica, especialmente para as crianças. Gostava de modelar umcamundongo com um lenço e em seguida fazê-lo pular misteriosamente com a mão. Ensinava as crianças a fazerbarquinhos de papel e também pistolas de papel que estalavam ao serem vibradas no ar. Interessou-se pela fotografiaquando esta arte mal havia surgido, especializando-se em retratos de crianças e pessoas famosas e compondo suasimagens com notável habilidade e bom gosto.Carroll era apaixonado por vários tipos de jogos, tanto que inventou um grande número de enigmas, jogosmatemáticos e de lógica; gostava de teatro e era frequentador de ópera, e manteve uma amizade por toda a vida coma atriz Ellen Terry.

Alice

Alice Liddell (foto) foi a inspiração de Carrollpara criar Alice no País das Maravilhas.

A história de Alice no País das Maravilhas originou-se em 1862,quando Carroll fazia um passeio de barco no rio Tâmisa com suaamiga Alice Pleasance Liddell (com 10 anos na época) e as suas duasirmãs, sendo as três filhas do reitor da Christ Church. Ele começou acontar uma história que deu origem à atual, sobre uma meninachamada Alice que ia parar a um mundo fantástico após cair numa tocade um coelho. A Alice da vida real gostou tanto da história que pediuque Carroll a escrevesse.

Dodgson atendeu ao pedido e em 1864 surpreendeu-a com ummanuscrito chamado Alice's Adventures Underground, ou AsAventuras de Alice Embaixo da Terra, em português. Mais tarde eledecidiu publicar o livro e mudou a versão original, aumentando de 18mil palavras para 35 mil, notavelmente acrescentando as cenas do Gatode Cheshire e do Chapeleiro Louco (ou Chapeleiro Maluco).

A tiragem inicial de dois mil exemplares de 1865 foi removida dasprateleiras, devido a reclamações do ilustrador John Tenniel sobre aqualidade da impressão. A segunda tiragem esgotou-se nas vendas rapidamente, e a obra se tornou um grandesucesso, tendo sido lida por Oscar Wilde e pela rainha Vitória e tendo sido traduzida para mais de 50 línguas.

Em 1998, a primeira impressão do livro (que fora rejeitada) foi leiloada por 1,5 milhão de dólares americanos.

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EnigmasAmbos os livros infantis de Carroll contêm inúmeros problemas de matemática e lógica ocultos no seu texto. EmAlice no país das maravilhas, a personagem Alice entra em uma toca atrás de um coelho falante e cai em um mundofantástico e fantasioso. Muitos enigmas contidos em suas obras são quase que imperceptíveis para os leitores atuais,principalmente os não-anglófonos, pois continham referências da época, piadas locais e trocadilhos que só fazemsentido na língua inglesa.

PolêmicaUma de suas frases mais marcantes era "Gosto de crianças (exceto meninos)". Quando tinha oportunidade gostava dedesenhar ou fotografar meninas seminuas, com a permissão da mãe. "Se eu tivesse a criança mais linda do mundopara desenhar e fotografar", escreveu, "e descobrisse nela um ligeiro acanhamento (por mais ligeiro e facilmentesuperável que fosse) de ser retratada nua, eu sentia ser um dever solene para com Deus abandonar por completo asolicitação".Por temor que estas imagens desnudas criassem embaraços para as meninas mais tarde, pediu que após a sua mortefossem destruídas ou devolvidas às crianças ou a seus pais. Quatro ou cinco fotos ainda sobrevivem. Uma delas épossível encontrar no livro "Pleasures Taken - Performances of Sexuality and Loss in Victorian Photographs" daautora Carol Mavor. Na página 12 do livro é possível encontrar a foto da menina Evelyn Hatch, 1878 (fotografadatotalmente nua) como também referências ao trabalho fotográfico de Lewis Carroll.Em outro livro intitulado "Cartas às suas amiguinhas" da editora Sette Letras, o conteúdo das cartas de Lewis Carrollàs meninas com quem ele se relacionou é analisado de forma fria e racional e revela uma intimidade fora do comumentre Lewis e as meninas que ele fotografou.

FalecimentoFaleceu em Guildford em 14 de janeiro de 1898. Encontra-se sepultado no Cemitério de Guildford, Guildford,Surrey na Inglaterra.[1]

EdiçõesEdições brasileiras das obras de Carroll são: Alice no país das maravilhas (1865) e Alice no país do espelho (Alicedo outro lado do espelho, no título mais conhecido em Portugal) (1872), Algumas Aventuras de Silvia e Bruno,Rimas do país das maravilhas, A caça ao turpente e Obras escolhidas.

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John Tenniel

Tradução:

Maria Luiza X. de A. Borges

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Inclui ilustrações originais de:

LEWIS CARROLL

NO PAÍS DAS MARAVILHAS&

ATRAVÉS DO ESPELHOE O QUE ALICE ENCONTROU POR LÁ

AVENTURAS DE ALICE

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Sumário

Aventuras de Aliceno País das Maravilhas

Através do Espelhoe o que Alice encontrou por lá

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Aventuras de Aliceno País das Maravilhas

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JUNTOS NAQUELA TARDE DOURADADeslizávamos em doce vagar,

Pois eram braços pequenos,ineptos,

Que iam os remos a manobrar,Enquanto mãozinhas fingiamapenas

O percurso do barco determinar.Ah, cruéis Três! Naquele preguiçar,

Sob um tempo ameno, estival,Implorar uma história, e de tão levealento

Que sequer uma pluma pudessesoprar!Mas que pode uma pobre voz

Contra três línguas a trabalhar?Imperiosa, Prima estabelece:

“Começar já”; enquantoSecunda,Mais brandamente, encarece:

“Que não tenha pé nem cabeça!”E Tertia um ror de palpites oferece,

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Mas só um a cada minuto.Depois, por súbito silênciotomadas,

Vão em fantasia perseguindoA criança-sonho em sua jornada

Por uma terra nova e encantada,A tagarelar com bichos pela estrada

— Ouvem crédulas, extasiadas.E sempre que a história esgotava

Os poços da fantasia,E debilmente eu ousava insinuar,

Na busca de o encanto quebrar:“O resto, para depois…” “Mas já édepois!”

Ouvia as três vozes alegres agritar.Foi assim que, bem devagar,

O País das Maravilhas foi urdido,Um episódio vindo a outro se ligar—

E agora a história está pronta,

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Desvie o barco, comandante! Paracasa!

O sol declina, já vai se retirar.Alice! Recebe este conto de fadas

E guarda-o, com mão delicada,Como a um sonho de primavera

Que à teia da memória seentretece,Como a guirlanda de floresmurchas que

A cabeça dos peregrinosguarnece.

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CAPÍTULO 1

Pela toca do Coelho

ALICE ESTAVA COMEÇANDO a ficar muito cansada deestar sentada ao lado da irmã na ribanceira,e de não ter nada que fazer; espiara uma ouduas vezes o livro que estava lendo, mas nãotinha figuras nem diálogos, “e de que serveum livro”, pensou Alice, “sem figuras nemdiálogos?”.

Assim, refletia com seus botões (tantoquanto podia, porque o calor a fazia se sen-tir sonolenta e burra) se o prazer de fazeruma guirlanda de margaridas valeria o es-forço de se levantar e colher as flores,

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quando de repente um Coelho Branco deolhos cor-de-rosa passou correndo por ela.

Não havia nada de tão extraordinárionisso; nem Alice achou assim tão esquisitoouvir o Coelho dizer consigo mesmo: “Ai, ai!Ai, ai! Vou chegar atrasado demais!”(quando pensou sobre isso mais tarde,ocorreu-lhe que deveria ter ficado es-pantada, mas na hora tudo pareceu muitonatural); mas quando viu o Coelho tirar umrelógio do bolso do colete e olhar as horas, edepois sair em disparada, Alice se levantounum pulo, porque constatou subitamenteque nunca tinha visto antes um coelho combolso de colete, nem com relógio para tirarde lá, e, ardendo de curiosidade, correu pelacampina atrás dele, ainda a tempo de vê-lose meter a toda a pressa numa grande tocade coelho debaixo da cerca.

No instante seguinte, lá estava Alice seenfiando na toca atrás dele, sem nem pensarde que jeito conseguiria sair depois.

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Por um trecho, a toca de coelho seguiana horizontal, como um túnel, depois seafundava de repente, tão de repente queAlice não teve um segundo para pensar emparar antes de se ver despencando num poçomuito fundo.

Ou o poço era muito fundo, ou ela caíamuito devagar, porque enquanto caía tevetempo de sobra para olhar à sua volta e ima-ginar o que iria acontecer em seguida.Primeiro, tentou olhar para baixo e ter umaideia do que a esperava, mas estava escurodemais para se ver alguma coisa; depois ol-hou para as paredes do poço, e reparou queestavam forradas de guarda-louças e est-antes de livros; aqui e ali, viu mapas e figur-as pendurados em pregos. Ao passar, tirouum pote de uma das prateleiras; o rótulodizia “GELEIA DE LARANJA”, mas para seu grandedesapontamento estava vazio: como nãoqueria soltar o pote por medo de matar

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alguém, deu um jeito de metê-lo num dosguarda-louças por que passou na queda.

“Bem!” pensou Alice, “depois de umaqueda desta, não vou me importar nada delevar um trambolhão na escada! Como vãome achar corajosa lá em casa! Ora, eu nãodiria nadinha, mesmo que caísse do topo dacasa!” (O que muito provavelmente eraverdade.)

Caindo, caindo, caindo. A queda não ter-minaria nunca? “Quantos quilômetros seráque já caí até agora?” disse em voz alta.“Devo estar chegando perto do centro daTerra. Deixe-me ver: isso seria a uns seis mile quinhentos quilômetros de profundidade,acho…” (pois, como você vê, Alice apren-dera várias coisas desse tipo na escola e, em-bora essa não fosse uma oportunidade muitoboa de exibir seu conhecimento, já que nãohavia ninguém para escutá-la, era semprebom repassar) “…sim, a distância certa émais ou menos essa… mas, além disso, para

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que Latitude ou Longitude será que estouindo?” (Alice não tinha a menor ideia doque fosse Latitude, nem do que fosse Longit-ude, mas lhe pareciam palavras imponentespara se dizer.)

Logo recomeçou. “Gostaria de saber sevou cair direto através da Terra! Como vaiser engraçado sair no meio daquela genteque anda de cabeça para baixo! Os antipa-tias, acho…” (desta vez estava muito satis-feita por não haver ninguém escutando, poisaquela não parecia mesmo ser a palavracerta) “…mas vou ter de perguntar a eles onome do país. Por favor, senhora, aqui é aNova Zelândia? Ou a Austrália?” (e tentoufazer uma mesura enquanto falava… ima-gine fazer mesura quando se está despen-cando no ar! Você acha que conseguiria?) “Eque menininha ignorante ela vai achar quesou! Não, não convém perguntar nada:talvez eu veja o nome escrito em algumlugar.”

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Caindo, caindo, caindo. Como não haviamais nada a fazer, Alice logo começou afalar de novo. “Tenho a impressão de queDinah vai sentir muita falta de mim estanoite!” (Dinah era a gata.) “Espero que selembrem de seu pires de leite na hora dochá. Dinah, minha querida! Queria que vocêestivesse aqui embaixo comigo! Pena quenão haja nenhum camundongo no ar, masvocê poderia apanhar um morcego, é muitoparecido com camundongo. Mas será quegatos comem morcegos?” E aqui Alicecomeçou a ficar com muito sono, e continu-ou a dizer para si mesma, como num sonho:“Gatos comem morcegos? Gatos comemmorcegos?” e às vezes “Morcegos comem ga-tos?”, pois, como não sabia responder a nen-huma das perguntas, o jeito como as fazianão tinha muita importância. Sentiu que es-tava cochilando e tinha começado a sonharque estava andando de mãos dadas com Di-nah, dizendo a ela, muito séria: “Vamos,

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Dinah, conte-me a verdade: algum dia vocêjá comeu um morcego?” quando subita-mente, bum! bum! caiu sobre um monte degravetos e folhas secas: a queda terminara.

Alice não ficou nem um pouco machu-cada, e num piscar de olhos estava de pé.Olhou para cima, mas lá estava tudo escuro;diante dela havia um outro corredor com-prido e o Coelho Branco ainda estava àvista, andando ligeiro por ele. Não havia umsegundo a perder; lá se foi Alice como umraio, tendo tempo apenas de ouvi-lo dizer,ao dobrar uma esquina: “Por minhas orelhase bigodes, como está ficando tarde!” Ela es-tava bem rente a ele, mas quando dobrou aesquina não havia mais sinal do CoelhoBranco: viu-se num salão comprido e baixo,iluminado por uma fileira de lâmpadas pen-duradas do teto.

Havia portas ao redor do salão inteiro,mas estavam todas trancadas; depois de per-correr todo um lado e voltar pelo outro,

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experimentando cada porta, caminhou des-olada até o meio, pensando como haveria desair dali.

De repente topou com uma mesinha detrês pernas, feita de vidro maciço; sobre elanão havia nada, a não ser uma minúsculachave de ouro, e a primeira ideia de Alicefoi que devia pertencer a uma das portas dosalão; mas, que pena! ou as fechaduras eramgrandes demais, ou a chave era pequena de-mais, de qualquer maneira não abria nen-huma delas. No entanto, na segunda rodada,deu com uma cortina baixa que não havianotado antes; atrás dela havia uma portinhade uns quarenta centímetros de altura: ex-perimentou a chavezinha de ouro, que, parasua grande alegria, serviu!

Abriu a porta e descobriu que dava parauma pequena passagem, não muito maiorque um buraco de rato: ajoelhou-se e av-istou, do outro lado do buraco, o jardimmais encantador que já se viu. Como

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desejava sair daquele salão escuro e passearentre aqueles canteiros de flores radiantes eaquelas fontes de água fresca! Mas não eracapaz nem de enfiar a cabeça pelo vão daporta, “e mesmo que conseguisse enfiar acabeça”, pensou a pobre Alice, “isso de pou-co adiantaria sem meus ombros. Ah, comogostaria de poder me fechar como umtelescópio! Acho que conseguiria, sesoubesse pelo menos começar.” Pois, vejambem, havia acontecido tanta coisa esquisitaultimamente que Alice tinha começado apensar que raríssimas coisas eram realmenteimpossíveis.

Como ficar esperando junto da portinhaparecia não adiantar muito, voltou até amesa com uma ponta de esperança de con-seguir achar outra chave sobre ela, ou pelomenos um manual com regras para encolherpessoas como telescópios; dessa vez achou láuma garrafinha (“que com certeza não es-tava aqui antes”, pensou Alice), em cujo

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gargalo estava enrolado um rótulo de papelcom as palavras “BEBA-ME” graciosamente im-pressas em letras graúdas.

Era muito fácil dizer “Beba-me”, mas aajuizada pequena Alice não iria fazer isso as-sim às pressas. “Não, primeiro vou olhar”,disse, “e ver se está escrito ‘veneno’ ou não”;pois lera muitas historinhas divertidas sobrecrianças que tinham ficado queimadas e sidocomidas por animais selvagens e outrascoisas desagradáveis, tudo porque não selembravam das regrinhas simples que seusamigos lhes haviam ensinado: que umatiçador em brasa acaba queimando suamão se você insistir em segurá-lo por muitotempo; quando você corta o dedo muitofundo com uma faca, geralmente sai sangue;e ela nunca esquecera que, se você bebemuito de uma garrafa em que está escrito“veneno”, é quase certo que vai se sentirmal, mais cedo ou mais tarde.

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Como porém nessa garrafa não estava es-crito “veneno”, Alice se arriscou a provar e,achando o gosto muito bom (na verdade, erauma espécie de sabor misto de torta decereja, creme, abacaxi, peru assado, puxa-puxa e torrada quente com manteiga), deucabo dela num instante.

“Que sensação estranha!” disse Alice; “devoestar encolhendo como um telescópio!”

E estava mesmo: agora só tinha vinte ecinco centímetros de altura e seu rosto se

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iluminou à ideia de que chegara ao tamanhocerto para passar pela portinha e chegaràquele jardim encantador. Primeiro, no ent-anto, esperou alguns minutos para ver se iaencolher ainda mais: a ideia a deixou umpouco nervosa; “pois isso poderia acabar”,disse Alice consigo mesma, “me fazendosumir completamente, como uma vela.Nesse caso, como eu seria?” E tentou ima-ginar como é a chama de uma vela depoisque a vela se apaga, pois não conseguia selembrar de jamais ter visto tal coisa.

Um pouco depois, descobrindo que nadamais acontecera, decidiu ir imediatamentepara o jardim; mas, ai da pobre Alice!quando chegou à porta, viu que tinha esque-cido a chavezinha de ouro e, quando voltouà mesa para pegá-la, constatou que nãoconseguia alcançá-la: podia vê-la muito bematravés do vidro, e fez o que pôde paratentar subir por uma das pernas da mesa,mas era escorregadia demais; tendo se

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cansado de tentar, a pobre criaturinha sen-tou no chão e chorou.

“Vamos, não adianta nada chorar assim!”disse Alice para si mesma, num tom umtanto áspero, “eu a aconselho a parar já!”Em geral dava conselhos muito bons para simesma (embora raramente os seguisse),repreendendo-se de vez em quando tão sev-eramente que ficava com lágrimas nos olhos;certa vez teve a ideia de esbofetear as pró-prias orelhas por ter trapaceado num jogo decroqué que estava jogando contra si mesma,pois essa curiosa criança gostava muito defingir ser duas pessoas. “Mas agora”, pensoua pobre Alice, “não adianta nada fingir serduas pessoas! Ora, mal sobra alguma coisade mim para fazer uma pessoaapresentável!”

Pouco depois deu com os olhos numacaixinha de vidro debaixo da mesa: abriu-a,e encontrou dentro um bolo muito pequeno,com as palavras “COMA-ME” lindamente escritas

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com passas sobre ele. “Bem, vou comê-lo”,disse Alice; “se me fizer crescer, posso al-cançar a chave; se me fizer diminuir, possome esgueirar por baixo da porta; assim, deuma maneira ou de outra vou conseguirchegar ao jardim; para mim tanto faz!”

Comeu um pedacinho, e disse para simesma, aflita, “Para cima ou para baixo?Para cima ou para baixo?”, com a mão sobrea cabeça para sentir em que direção estavaindo, ficando muito surpresa ao verificarque continuava do mesmo tamanho: não hádúvida de que isso geralmente acontecequando se come bolo, mas Alice tinha seacostumado tanto a esperar só coisas esquis-itas acontecerem que lhe parecia muito semgraça e maçante que a vida seguisse damaneira habitual.

Assim, pôs mãos à obra e, num segundo,deu cabo do bolo.

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CAPÍTULO 2

A lagoa de lágrimas

“CADA VEZ MAIS ESTRANHÍSSIMO!” exclamou Alice (asurpresa fora tanta que por um instante real-mente esqueceu como se fala direito).“Agora estou espichando como o maiortelescópio que já existiu! Adeus, pés!” (pois,quando olhou para eles, pareciam quase forado alcance de sua vista, de tão distantes).“Oh, meus pobres pezinhos, quem será quevai calçar meias e sapatos em vocês agora,queridos? Com certeza, eu é que não vouconseguir! Vou estar longe demais para meincomodar com vocês: arranjem-se como

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puderem… Mas preciso ser gentil com eles”,pensou Alice, “ou quem sabe não vão andarno rumo que quero! Deixe-me ver. Vou darum par de botinas novas para eles todoNatal.”

E continuou planejando com seus botõescomo faria isso. “Vão ter de ir pelo correio”,pensou; “e que engraçado vai ser, mandarpresentes para os próprios pés! E como o en-dereço vai parecer estranho!

Exmo Sr. Pé Direito da Alice,Tapete junto à lareira

Perto do guarda-fogo,(Com o amor da Alice).

Ai, ai, quanto disparate estou dizendo!”Exatamente nesse momento sua cabeça

bateu no teto do salão: de fato, agora estavacom quase três metros; agarrou

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imediatamente a chavezinha de ouro e foi li-geiro para a porta do jardim.

Pobre Alice! O máximo que conseguiu,deitada de lado, foi olhar para o jardim comum olho só; chegar lá estava mais impossívelque nunca: sentou-se e começou a chorar denovo.

“Devia ter vergonha”, disse Alice, “umamenina grande como você” (podia bem dizerisso), “chorando dessa maneira! Pare já, já,estou mandando!” Mesmo assim continuou,

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derramando galões de lágrimas, até que àsua volta se formou uma grande lagoa, comcerca de meio palmo de profundidade e seestendendo até a metade do salão.

Passado algum tempo, ouviu uns passin-hos à distância e enxugou as lágrimas maisque depressa para ver o que estavachegando. Era o Coelho Branco de volta,esplendidamente vestido, com um par deluvas brancas de pelica em uma das mãos eum grande leque na outra: vinha a toda apressa, muito afobado, murmurando con-sigo: “Oh, a Duquesa, a Duquesa! Oh! Comovai ficar furiosa se eu a tiver feito esperar!”Alice estava tão desesperada que se sentiadisposta a pedir ajuda a qualquer um; assim,quando o Coelho Branco se aproximou,começou, com uma vozinha baixa, tímida:“Por gentileza, Sir…” O Coelho teve umforte sobressalto, deixou cair as luvas bran-cas de pelica e o leque, e escapuliu para aescuridão o mais depressa que pôde.

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Alice apanhou o leque e as luvas, e,como fazia muito calor no salão, ficou seabanando sem parar enquanto falava: “Ai,ai! Como tudo está esquisito hoje! E ontemas coisas aconteciam exatamente como decostume. Será que fui trocada durante anoite? Deixe-me pensar: eu era a mesmaquando me levantei esta manhã? Tenho umaligeira lembrança de que me senti um bo-cadinho diferente. Mas, se não sou a mesma,a próxima pergunta é: ‘Afinal de contasquem sou eu?’ Ah, este é o grande enigma!”E começou a pensar em todas as crianças dasua idade que conhecia, para ver se poderiater sido trocada por alguma delas.

“Ada com certeza não sou”, disse,“porque o cabelo dela tem cachos bem lon-gos, e o meu não tem cacho nenhum; é claroque não posso ser Mabel, pois sei todo tipode coisas e ela, oh! sabe tão pouquinho!Além disso, ela é ela, e eu sou eu, e… ai, ai,que confusão é isto tudo! Vou experimentar

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para ver se sei tudo que sabia antes. Deixe-me ver: quatro vezes cinco é doze, e quatrovezes seis é treze, e quatro vezes sete é… ai,ai! deste jeito nunca vou chegar a vinte! Masa Tabuada de Multiplicar não conta; vamostentar Geografia. Londres é a capital de Par-is, e Paris é a capital de Roma, e Roma…não, está tudo errado, eu sei! Devo ter sidotrocada pela Mabel! Vou tentar recitar‘Como pode…’”, e de mãos cruzadas no colo,como se estivesse dando lição, começou arecitar, mas sua voz soava rouca e estranhae as palavras não vieram como costumavam:

Como pode o crocodiloFazer sua cauda luzir,

Borrifando a água do NiloQue dourada vem cair?

Sorriso largo, vai nadando,E de manso, enquanto nada,

Os peixinhos vai papando

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31Co’a bocarra escancarada!

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“Tenho certeza de que estas não são aspalavras certas”, disse a pobre Alice, e seusolhos se encheram de lágrimas de novo en-quanto continuava. “Afinal de contas, devoser Mabel, e vou ter de ir morar naquela cas-inha apertada, e não ter quase nenhum brin-quedo com que brincar, e oh! muitíssimaslições para aprender! Não, minha decisão es-tá tomada; se sou Mabel, vou ficar aqui! Nãovai adiantar nada eles encostarem suascabeças no chão e pedirem ‘Volte para cá,querida!’ Vou simplesmente olhar para cimae dizer ‘Então quem sou eu? Primeiro me di-gam; aí, se eu gostar de ser essa pessoa, eusubo; se não, fico aqui embaixo até ser al-guma outra pessoa’… Mas, ai, ai!” exclamouAlice numa súbita explosão de lágrimas,“queria muito que encostassem a cabeça nochão! Estou tão cansada de ficar assim soz-inha aqui!”

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Ao dizer isto, olhou para as suas mãos eteve a surpresa de ver que calçara uma dasluvinhas brancas de pelica do Coelho en-quanto falava. “Como posso ter feito isso?”pensou. “Devo estar ficando pequena denovo.” Levantou-se, foi até a mesa para semedir por ela e descobriu que, tanto quantopodia calcular, estava agora com uns ses-senta centímetros, continuando a encolherrapidamente: logo descobriu que a causa erao leque que estava segurando e jogou-obruscamente no chão, escapando por poucode encolher até sumir de vez.

“Foi por um triz!” disse Alice, bastanteapavorada com a mudança repentina, masmuito satisfeita por ainda estar existindo. “Eagora, para o jardim!” e correu a toda devolta à portinha — mas, que pena! aportinha se fechara de novo e a chavezinhade ouro continuava sobre a mesa comoantes; “as coisas estão piores que nunca”,pensou a pobre criança, “pois nunca fui tão

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pequena assim antes, nunca! Eu garanto, istoé muito ruim, de verdade!”

Quando dizia essas palavras, pisou emfalso e, num instante, tchibum! estava comágua salgada até o queixo. A primeira ideiaque lhe ocorreu foi que, de alguma maneira,caíra no mar, “e nesse caso posso voltar detrem”, disse de si para si. (Alice tinha estadoà beira-mar uma vez na vida, e chegara àconclusão geral de que, onde quer que se váno litoral da Inglaterra, encontram-se umaporção de máquinas de banho no mar, algu-mas crianças escavando a areia com pás demadeira, uma fileira de hospedarias e, atrásdelas, uma estação ferroviária.) Contudo,logo se deu conta de que estava na lagoa delágrimas que chorara quando tinha quasetrês metros.

“Gostaria de não ter chorado tanto!”disse Alice, enquanto nadava de um ladopara outro, tentando encontrar uma saída.“Parece que vou ser castigada por isso

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agora, afogando-me nas minhas próprias lá-grimas! Vai ser uma coisa esquisita, lá issovai! Mas está tudo esquisito hoje.”

Nesse instante, ouviu alguma coisa es-padanando água na lagoa um pouco adiantee se aproximou a nado para ver o que era:de início pensou que devia ser uma morsaou um hipopótamo, mas então se lembroudo quão pequena estava agora e logo se deuconta de que era só um camundongo quetambém escorregara na água.

“Será que adiantaria alguma coisa,agora,” pensou Alice, “falar com este camun-dongo? É tudo tão estranho aqui embaixo

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que é bem capaz de ele saber falar; dequalquer modo, não custa tentar.” Assim,começou: “Ó Camundongo, sabe como se fazpara sair desta lagoa? Estou muito cansadade ficar nadando para todo lado, ó Camun-dongo!” (Alice achava que essa devia ser amaneira correta de se dirigir a um camun-dongo; nunca fizera isso antes, mas se lem-brava de ter visto na Gramática Latina doirmão: “Um camundongo… de um camun-dongo… para um camundongo… umcamundongo… ó camundongo!”) OCamundongo lançou-lhe um olhar um tantoinquisitivo, pareceu piscar um olho, mas nãodisse nada.

“Talvez não entenda inglês”, pensouAlice. “Aposto que é um camundongofrancês, que veio com Guilherme, o Con-quistador.” (Pois, com todo o seu conheci-mento de história, Alice não tinha uma ideialá muito clara de há quanto tempo qualquercoisa tinha acontecido.) Assim, recomeçou:

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“Où est ma chatte?” que era a primeira frasedo seu livro de francês. O Camundongo pu-lou fora d’água e pareceu estremecer todode medo. “Oh, desculpe-me!” Alice se apres-sou em exclamar, temendo ter magoado ossentimentos do pobre animal. “Esqueci com-pletamente que você não gostava de gatos.”

“Não gostar de gatos!” gritou o Camun-dongo com uma voz estridente, exaltada.“Você gostaria, se fosse eu?”

“Bem, talvez não”, respondeu Alice numtom apaziguador. “Não se zangue com isso.Mesmo assim, gostaria de poder lhe mostrarnossa gata Dinah: acho que começaria a teruma quedinha por gatos se ao menospudesse vê-la. É uma coisinha tranquila, tãoquerida”, Alice continuou, falando mais parasi mesma, enquanto nadava lentamente pelalagoa, “se senta ronronando tão bonitinhojunto da lareira, lambendo as patas elimpando o rosto… é um bichinho tão maciopara se ninar… e é tão formidável para

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pegar camundongos… oh, desculpe-me!” ex-clamou de novo, porque desta vez o Camun-dongo estava ficando todo arrepiado, o quelhe deu a certeza de que devia estar real-mente ofendido. “Nós não falaremos maissobre ela, se você prefere.”

“Nós, é claro!” gritou o Camundongo,que agora tremia até a ponta do rabo.“Como se eu fosse falar de um assuntodesse! Nossa família sempre detestou gatos:criaturas nojentas, baixas, vulgares! Não mefaça ouvir esse nome de novo!”

“Pode estar certo que não!” disse Alice,aflita por mudar o rumo da conversa. “Poracaso você… gosta… de… de cachorros?”Como o Camundongo não respondeu, Alicecontinuou, animada: “Há um cachorrinhotão lindo perto da nossa casa, gostaria de lhemostrar! Um terrier pequenino, de olhos es-pertos, sabe, com oh! um pelo marrom tãoencaracolado! E ele apanha as coisas quandoa gente joga, e se senta e pede o seu jantar,

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essas coisas todas… Não consigo me lembrarde metade delas… e o dono dele, umfazendeiro, sabe, diz que ele é tão útil quevale uma centena de libras! Diz que mata to-dos os ratos… ai, ai!” exclamou Alice, con-doída. “Acho que o ofendi de novo!” Pois oCamundongo estava se afastando dela anado o mais rápido que podia, causando umverdadeiro rebuliço na lagoa.

Então ela o chamou bem de mansinho:“Querido Camundongo! Volte aqui, e nãofalaremos mais de gatos nem tampouco decachorros, se não gosta deles!” Ao ouvir isso,o Camundongo deu meia-volta e veionadando devagar em direção a ela: tinha orosto pálido (de emoção, pensou Alice), edisse com voz baixa e trêmula: “Vamos paraa margem. Lá eu lhe contarei minha históriae você vai compreender por que odeio gatose cachorros.”

Era mais do que hora de ir, pois a lagoaestava ficando apinhada de aves e animais

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que tinham caído nela: havia um Pato e umDodô, um Papagaio e uma Aguieta, além devárias outras criaturas curiosas. Alice tomoua dianteira e o grupo todo nadou para amargem.

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CAPÍTULO 3

Uma corrida em comitê e umahistória comprida

PARECIA MESMO UM GRUPO ESTRAMBÓTICO o que se re-uniu na margem: as aves com as penasenxovalhadas, os animais com o pelogrudado no corpo, e todos ensopados, mal-humorados e indispostos.

A primeira questão, claro, era como seenxugar: confabularam sobre isso e, após al-guns minutos, pareceu muito natural a Alicever-se conversando intimamente com eles,

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como se os tivesse conhecido a vida toda. Naverdade, teve uma discussão bastante longacom o Papagaio, que acabou se zangando esó dizia: “Sou mais velho que você e devosaber mais”; isso Alice se recusava a admitir,sem saber quantos anos ele tinha, e, como oPapagaio se negou categoricamente a rev-elar sua idade, não havia mais nada a dizer.

Finalmente o Camundongo, que pareciaser uma autoridade entre eles, bradou:“Sentem-se, vocês todos, e ouçam-me! Voudeixá-los bem secos logo, logo!” Todos sesentaram imediatamente num grande cír-culo, com o Camundongo no meio. Aliceficou de olhos pregados nele, ansiosa, poistinha certeza de que pegaria uma gripe feiase não secasse rápido.

“Ham!” fez o Camundongo com ar im-portante. “Estão todos prontos? Esta é acoisa mais seca que eu conheço. Silêncio doprincípio ao fim, por favor! ‘Guilherme, oConquistador, cuja causa era apoiada pelo

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papa, logo se rendeu aos ingleses, que queri-am líderes, e andavam ultimamente muitoacostumados com usurpação e conquista.Edwin e Morcar, condes da Mércia e daNortúmbria…’”

“Arre!” soltou o Papagaio, com umarrepio.

“Perdão!” falou o Camundongo,fechando a cara, mas muito polido: “Dissealguma coisa?”

“Eu não!” o Papagaio se apressou emresponder.

“Pensei que tinha”, disse o Camundongo.“Continuando: ‘Edwin e Morcar, condes daMércia e da Nortúmbria, proclamaram seuapoio a ele e até Stigand, o patriótico ar-cebispo de Canterbury, achando issooportuno…’”

“Achando o quê?” indagou o Pato.

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“Achando isso”, respondeu o Camun-dongo, bastante irritado. “Suponho quesaiba o que ‘isso’ significa.”

“Sei muito bem o que ‘isso’ significaquando eu acho uma coisa”, disse o Pato.“Em geral é uma rã ou uma minhoca. Aquestão é: o que foi que o arcebispo achou?”

Sem tomar conhecimento da pergunta, oCamundongo se apressou em continuar:“‘…achando isso oportuno, foi com EdgarAtheling ao encontro de Guilherme e lheofereceu a coroa. De início a conduta deGuilherme foi moderada. Mas a insolênciade seus normandos…’. Como está se sen-tindo agora, meu bem?” continuou, olhandopara Alice enquanto falava.

“Mais molhada do que nunca”, re-spondeu Alice, desgostosa. “Isso não pareceme secar nadinha.”

“Nesse caso”, disse o Dodô solenemente,ficando de pé, “proponho que a assembleia

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seja adiada para a adoção imediata de remé-dios mais drásticos…”

“Fale inglês!” exclamou a Aguieta. “Nãosei o sentido de metade dessas palavras com-pridas e, o que é pior, nem acredito que vo-cê saiba!” E baixou a cabeça para dissimularum sorriso; algumas das outras aves sol-taram risadinhas audíveis.

“O que eu ia dizer”, disse o Dodô numtom ofendido, “é que a melhor coisa paranos secar seria uma corrida em comitê.”

“O que é uma corrida em comitê?” per-guntou Alice; não que quisesse muito saber,mas o Dodô tinha feito uma pausa como seachasse que alguém devia falar, e mais nin-guém parecia inclinado a dizer coisaalguma.

“Ora”, disse o Dodô, “a melhor maneirade explicar é fazer.” (E, como você podequerer experimentar a coisa por conta

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própria, num dia de inverno, vou lhe contarcomo o Dodô a organizou.)

Primeiro traçou uma pista de corrida,uma espécie de círculo (“a forma exata nãotem importância”, ele disse) e depois todo ogrupo foi espalhado pela pista, aqui e ali.Não houve “Um, dois, três e já”: começarama correr quando bem entenderam e pararamtambém quando bem entenderam, de modoque não foi fácil saber quando a corridahavia terminado. Contudo, quando estavamcorrendo já havia uma meia hora, e com-pletamente secos de novo, o Dodô de re-pente anunciou: “A corrida terminou!” e to-dos se juntaram em torno dele, perguntandoesbaforidos: “Mas quem ganhou?”

O Dodô não pôde responder a essa per-gunta sem antes pensar muito, e ficou sen-tado um longo tempo com um dedo es-petado na testa (a posição em que você ger-almente vê Shakespeare, nas imagens dele),enquanto o resto esperava em silêncio.

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Finalmente o Dodô declarou: “Todo mundoganhou, e todos devem ganhar prêmios.”

“Mas quem vai dar os prêmios?” um ver-dadeiro coro de vozes perguntou.

“Ora, ela, é claro”, disse o Dodô, apont-ando o dedo para Alice; e o grupo todo seamontoou em torno dela, numa gritaria con-fusa: “Prêmios! Prêmios!”

Alice não tinha a menor ideia do quefazer e, no seu desespero, enfiou a mão nobolso, tirou uma caixinha de confeitos (feliz-mente não entrara água salgada nela) edistribuiu-os como prêmios. Havia exata-mente um para cada um.

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“Mas ela também deve ganhar umprêmio!” exclamou o Camundongo.

“Claro”, respondeu o Dodô, muito grave-mente. “Que mais você tem no bolso?”continuou, voltando-se para Alice.

“Só um dedal”, disse Alice, tristonha.“Pois dê cá esse dedal”, disse o Dodô.Em seguida todos se juntaram em torno

dela de novo, enquanto o Dodô a presen-teava solenemente com o dedal, dizendo:

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“Humildemente lhe pedimos que aceite esteelegante dedal”; e, quando encerrou essebreve discurso, todos aplaudiram.

Alice achou aquilo tudo muito absurdo,mas todos pareciam tão sérios que não ou-sou rir; como não lhe ocorreu nada paradizer, simplesmente fez uma reverência epegou o dedal, com o ar mais solene quearranjou.

Depois veio a hora de comer os confeitos;isso provocou algum barulho e confusão,com as aves grandes se queixando de quenão conseguiam sentir o gosto dos seus, e asmenores engasgando e tendo de levarpalmadas nas costas. Mas finalmente tudoterminou e eles se sentaram de novo numcírculo e pediram ao Camundongo que lhescontasse mais alguma coisa.

“Prometeu me contar a sua história,lembra?” perguntou-lhe Alice. “E por quedetesta… G e C”, acrescentou num sussurro,com medo de que se ofendesse de novo.

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“Todo o rosário, de cabo a rabo? Ele écomprido e triste”, disse o Camundongo,virando-se para Alice e suspirando.

“Comprido ele é, sem dúvida”, disseAlice, olhando assombrada o rabo doCamundongo; “mas por que diz que étriste?” E ficou ruminando a questão en-quanto o Camundongo falava, de modo quea ideia que fez da história foi mais ou menosassim:

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“Você não está prestando atenção!” disseo Camundongo severamente a Alice. “Emque está pensando?”

“Peço desculpa”, disse Alice, muito hu-milde. “Nós tínhamos chegado à quintavolta, não é?”

“Nós, não!” gritou o Camundongo, muitobrusco e zangado.

“Nós!” exclamou Alice, sempreprestativa, olhando ansiosa ao seu redor.“Oh, deixe-me ajudar a desatá-los!”

“Não vou fazer nada disso”, disse oCamundongo pondo-se de pé e se afastando.“Você me insulta falando tanto disparate!”

“Foi sem querer!” protestou a pobreAlice. “Mas como você se ofende à toa!”

A resposta do Camundongo foi só umresmungo.

“Por favor, volte e termine a suahistória!” Alice chamou-o; e todos os outrosfizeram coro com ela. “Sim, por favor,

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volte!” mas o Camundongo apenas sacudiu acabeça, impaciente, e apertou o passo umpouquinho.

“Que pena ele não ficar!” suspirou oPapagaio, assim que o Camundongo sumiude vista; e uma velha Carangueja aproveitoua oportunidade para dizer à filha: “Ah,minha querida! Que isto lhe sirva de lição:nunca perca a sua calma!” Ao que a jovemCarangueja respondeu, um tantinho in-solente: “Bico calado, mamãe! Com você atéuma ostra perde a paciência!”

“Quem me dera que a nossa Dinah est-ivesse aqui, quem me dera!” Alice disse alto,sem se dirigir a ninguém em particular.“Num instante ela o traria de volta!”

“E quem é Dinah, se é que posso me atre-ver a perguntar?” disse o Papagaio.

Alice respondeu com entusiasmo, pois es-tava sempre disposta a falar sobre suabichana: “Dinah é a nossa gata. Vocês não

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imaginam como é formidável para apanharcamundongos! E, oh! gostaria que pudessemvê-la atrás das aves! Ah! Mal vê um passar-inho, e ele já está no papo.”

Essa fala causou especial comoção entreo grupo. Algumas das aves saíram correndoimediatamente; uma velha gralha começou ase agasalhar com muito cuidado, coment-ando: “Realmente preciso ir para casa; o ser-eno não convém à minha garganta!” E umCanário chamou os filhos numa voz trêmula:“Vamos embora, meus queridos! Já estámais do que na hora de estarem todos nacama!” Sob pretextos variados, todos seafastaram e Alice logo se viu só.

“Não devia ter mencionado a Dinah!”disse tristemente com seus botões. “Pareceque ninguém gosta dela aqui embaixo, etenho certeza de que é a melhor gata domundo! Oh, minha Dinahzinha, será quevou vê-la outra vez?” E aqui a pobre Alicecomeçou a chorar de novo, sentindo-se

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muito sozinha e acabrunhada. Dali a pouco,no entanto, voltou a ouvir um barulhinho depassos à distância e levantou os olhos ansio-sa, com uma ponta de esperança de que oCamundongo tivesse mudado de ideia eresolvido voltar para terminar a sua história.

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CAPÍTULO 4

Bill paga o pato

ERA O COELHO BRANCO caminhando de volta, de-vagar, olhando ansioso para todos os ladoscomo se tivesse perdido alguma coisa; e elao ouviu murmurar consigo mesmo: “ADuquesa! A Duquesa! Oh, minhas patasqueridas! Oh, meu pelo e meus bigodes! Vaimandar me executar, tão certo quanto don-inhas são doninhas! Onde posso tê-los deix-ado cair? me pergunto!” Alice adivinhou nomesmo instante que estava procurando o le-que e o par de luvas brancas de pelica e,muito amavelmente, começou também a

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buscá-los aqui e ali, mas não conseguiuavistá-los em lugar algum… tudo parecia termudado desde seu nado na lagoa, e o grandesalão, com a mesa de vidro e a portinha, de-saparecera por completo.

Logo, logo o Coelho se deu conta dapresença de Alice, enquanto ela procuravapor todos os lados, e chamou-a com voz ir-ritada: “Ora essa, Mary Ann, que estáfazendo aqui? Corra já até em casa e metraga um par de luvas e um leque! Rápido,vá!” Alice ficou tão amedrontada que correuimediatamente na direção que ele apontou,sem nem tentar lhe explicar o engano.

“Ele me confundiu com a sua criada”,disse consigo enquanto corria. “Como vaificar surpreso quando descobrir quem eusou! Mas é melhor lhe trazer o leque e asluvas… isto é, se eu conseguir achá-los.” Aodizer isso, topou com uma casa pequenina ejeitosa; na porta, uma placa de bronze traziao nome “COELHO B.” gravado. Entrou sem bater

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e correu escada acima, com muito medo dedar de cara com a verdadeira Mary Ann eser expulsa da casa antes de achar o leque eas luvas.

“Como parece esquisito”, disse Alice con-sigo mesma, “receber incumbências de umcoelho! Logo, logo a Dinah vai estar medando ordens!” E começou a imaginar quetipo de coisa iria acontecer: “SenhoritaAlice! Venha imediatamente e apronte-separa sua caminhada!” “Estou indo num se-gundo, ama! Mas tenho de ficar tomandoconta para o camundongo não sair.” “Só quenão acho”, Alice continuou, “que eles deix-ariam a Dinah ficar lá em casa se elacomeçasse a dar ordens às pessoas dessejeito!”

A essa altura havia entrado numquartinho bem-arrumado, com uma mesa àjanela e, sobre ela (como esperara), um le-que e dois ou três pares de minúsculas luvasbrancas de pelica. Pegou o leque e um par

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de luvas e estava prestes a sair do quartoquando bateu o olho numa garrafinha pou-sada junto do espelho. Desta vez não havianenhum rótulo com a palavra “BEBA-ME”, masmesmo assim ela a desarrolhou e levou aoslábios. “Sei que alguma coisa interessantesempre acontece”, pensou, “cada vez quecomo ou tomo qualquer coisa; então vou sóver o que é que esta garrafa faz. Espero queme faça crescer de novo, porque estou real-mente cansada de ser esta coisinha tãopequenininha.”

Foi o que aconteceu, e bem mais de-pressa do que Alice esperara: antes de tomara metade da garrafa, sentiu a cabeçaforçando o teto e teve de se abaixar paranão quebrar o pescoço. Pousou a garrafarápido, dizendo para si: “É mais do que obastante… Espero não crescer ainda mais…Do jeito que está, já não passo pela porta…Não devia ter bebido tanto!”

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Que pena! Era tarde para se lamentar!Continuou crescendo, crescendo, e dali apouco teve de se ajoelhar no chão; mais uminstante e não havia mais espaço para tal;tentou então o artifício de se deitar com umcotovelo contra a porta e o outro braço en-rolado em volta da cabeça. Mas ainda con-tinuou crescendo, e, como último recurso,enfiou um braço pela janela afora e um pépela chaminé acima, murmurando: “Agoranão posso fazer mais nada, aconteça o queacontecer. O que vai ser de mim?”

Para sorte de Alice, a garrafinha mágicajá tivera seu pleno efeito e ela não ficoumaior. Mesmo assim, aquilo estava muitodesconfortável, e, como parecia não ter amenor possibilidade de sair do quarto, nãoadmira que se sentisse infeliz.

“Era muito mais agradável lá em casa”,pensou a pobre Alice, “lá não se ficavasempre crescendo e diminuindo, e re-cebendo ordens aqui e acolá de

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camundongos e coelhos. Chego quase adesejar não ter descido por aquela toca decoelho… no entanto… no entanto… ébastante interessante este tipo de vida! Real-mente me pergunto o que pode ter aconte-cido comigo! Quando lia contos de fadas, euimaginava que aquelas coisas nunca aconte-ciam, e agora cá estou no meio de uma!Deveria haver um livro escrito sobre mim,ah isso deveria! E quando eu for grande, vouescrever um… mas sou grande agora”, acres-centou num tom pesaroso. “Pelo menos aquinão há mais espaço para crescer mais.”

“Mas nesse caso”, pensou Alice, “seráque nunca vou ficar mais velha do que souagora? Não deixa de ser um consolo… nuncaficar uma velha… mas por outro lado…sempre ter lições para estudar! Oh! Eu nãoiria gostar disso!”

“Oh, Alice, sua tola!”, respondeu a simesma. “Como vai poder estudar as lições

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aqui? Ora, mal há lugar para você, que dirápara os livros!”

E assim continuou, tomando primeiro umlado e depois o outro, e transformandoaquilo numa conversa completa. Passadosalguns momentos, porém, ouviu uma voz láfora e parou para escutar.

“Mary Ann! Mary Ann!” disse a voz.“Pegue minhas luvas já!” Depois ouviu osom de passinhos na escada. Alice sabia queera o Coelho à sua procura, e tremeu atéfazer a casa sacudir, completamente esque-cida de que agora era umas mil vezes maior

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do que o Coelho e não tinha razão algumapara temê-lo.

Logo o Coelho chegou à porta e tentouabri-la, mas, como abria para dentro e ocotovelo de Alice estava comprimido contraela, a tentativa revelou-se um fracasso. Aliceouviu-o murmurar: “Neste caso, vou dar avolta e entrar pela janela.”

“Isso é que não”, pensou Alice, e, apósesperar até ter a impressão de ouvir oCoelho ao pé da janela, abriu de repente amão e fez um gesto de agarrar algo no ar.Não agarrou coisa alguma, mas ouviu umpequeno guincho, uma queda e um ruído devidro quebrado, do que concluiu que pos-sivelmente ele caíra numa estufa de pepinos,ou algo do gênero.

Em seguida veio uma voz furiosa — a doCoelho: “Pat! Pat! Onde está você?” E depoisuma voz que ela nunca ouvira antes. “Comcerteza estou aqui! Escavando maçãs, voss’excelença.”

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“Escavando maçãs, pois sim!” disse oCoelho, irritado. “Aqui! Venha me ajudar asair disto!” (Mais sons de vidro quebrado.)

“Agora me diga, Pat. Que é aquilo najanela?”

“Com certeza é um braço, voss’ ex-celença!” (Pronunciava brass.)

“Que braço, seu pateta! Quem já viubraço daquele tamanho? Como! Ocupa ajanela inteira!”

“Com certeza enche, voss’ excelença; masnão deixa de ser um braço.”

“Bem, seja como for, ele não tem nadaque fazer ali. Vá e suma com ele!”

Em seguida fez-se um longo silêncio, eAlice pôde ouvir apenas uns cochichos vezpor outra, como: “Com certeza não gostodisso, voss’ excelença, nada, nada!” “Faça oque estou mandando, seu covarde”, e porfim ela abriu a mão de novo, fazendo outrogesto de agarrar algo no ar. Desta vez houve

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dois guinchos, e mais sons de vidroquebrado. “Quantas estufas de pepino!” pen-sou Alice. “O que será que vão fazer agora?Quanto a me puxar pela janela, eu bemqueria que pudessem! Tenho certeza de quenão quero ficar aqui nem mais um minuto.”

Esperou algum tempo sem ouvir maisnada; finalmente escutou um rangido derodinhas de carroça e o som de uma porçãode vozes, todas falando ao mesmo tempo.Conseguiu entender as palavras: “Onde estáa outra escada?” “Ora, eu só tinha de trazeruma; o Bill pegou a outra.” “Bill! Traga issoaqui rapaz!” “Ponha as duas de pé nestecanto.” “Não, primeiro amarre uma naoutra… mesmo assim não vão chegar nem àmetade da altura.” “Oh! Vão dar muito bem,não seja tão meticuloso.” “Aqui, Bill! Segureesta corda.” “Será que o teto aguenta?”“Cuidado com aquela telha solta.” “Opa! Lávem ela! Abaixem a cabeça!” (ruído de coisase espatifando). “Ora essa, quem fez isso?”

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“Foi o Bill, eu acho.” “Quem vai descer pelachaminé?” “Eu é que não! Você desce!”“Então também não desço!” “O Bill é quetem de descer.” “Ei, Bill! O patrão estádizendo que é para você descer pelachaminé!”

“Ah! Então é o Bill que tem de descerpela chaminé, não é?”, disse Alice consigomesma. “Que vergonha, parece que jogamtudo em cima do Bill! Não queria estar nolugar do Bill por nada. Esta lareira é estreita,é verdade; mas acho que consigo dar unsbons pontapés!”

Afundou o pé o mais que pôde na cham-iné, e esperou até ouvir um bichinho (nãoconseguiu adivinhar de que tipo era) arran-hando e trepando na base da chaminé acimadela. Então, dizendo consigo “É o Bill”, deuum forte pontapé e esperou para ver o queiria acontecer.

A primeira coisa que ouviu foi um corogeral, “Lá vai o Bill!”, depois a voz do

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Coelho sobressaiu: “Levantem-no, vocês aíperto da cerca!”; depois silêncio e entãooutra confusão de vozes: “Ergam a cabeçadele.” “Um gole de conhaque.” “Não ofaçam engasgar.” “Como foi isso, compan-heiro? Que foi que lhe aconteceu? Conte-nostudo.”

Por fim veio uma vozinha fraca, esgan-içada (“É o Bill”, pensou Alice): “Bem, eumesmo não sei… Chega, obrigado; estoumelhor agora… mas estou um pouco atar-antado demais para lhes contar… O que eusei é que uma coisa bateu em mim, comoum boneco saltando de uma caixa de sur-presa, e voei como um foguete!”

“Voou mesmo, companheiro!” disseramos outros.

“Temos de botar fogo na casa!” ouviu-sea voz do Coelho; e Alice berrou o mais altoque pôde: “Se fizerem isso, solto a Dinah emcima de vocês!”

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Um silêncio profundo baixou no mesmoinstante, e Alice matutou: “Gostaria de sabero que vão fazer agora! Se raciocinassem umpouquinho, arrancariam o telhado fora.” De-pois de um ou dois minutos, eles começarama se agitar de novo, e Alice ouviu o Coelhodizer: “Um carrinho de mão cheio está bom,para começar.”

“Um carrinho de mão cheio de quê?”pensou Alice; mas não teve muito tempopara conjeturar, porque no segundo seguinteuma chuva de pedrinhas começou a pipocarna janela e algumas a atingiram no rosto.“Vou acabar com isto”, disse consigomesma, e gritou: “Melhor não repetiremisso!” o que produziu outro silêncioprofundo.

Alice notou, com alguma surpresa, que aspedrinhas espalhadas no chão estavam todasvirando bolinhos, e uma ideia luminosa lheveio à cabeça. “Se eu comer um destes bolin-hos”, pensou, “ele com certeza vai produzir

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alguma mudança no meu tamanho; e, comonão é possível ele me aumentar, só pode mediminuir, suponho.”

Assim, devorou um dos bolos e ficou sat-isfeitíssima ao ver que começou a diminuirimediatamente. Assim que ficou pequena obastante para passar pela porta, correu parafora da casa e encontrou um bando de ani-maizinhos e aves esperando. O pobrelagarto, Bill, estava no meio, sustentado pordois porquinhos-da-índia que lhe davam al-guma coisa de uma garrafa. Todosavançaram para Alice no instante em queela apareceu; mas ela correu o mais rápidoque pôde e logo se viu a salvo num densobosque.

“A primeira coisa que tenho de fazer”,disse Alice para si mesma enquanto vagavapelo bosque, “é voltar para o meu tamanhode novo; e a segunda é chegar àquele jardimencantador. Acho que este é o melhorplano.”

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Parecia um plano excelente, sem dúvida,e arranjado com muita ordem e simplicid-ade; o único problema era que ela não tinhaa menor ideia de por onde começar; e en-quanto, muito aflita, espreitava atentamenteentre as árvores, um latidinho agudo logoacima da sua cabeça a fez erguer os olhosnum átimo.

Um enorme filhote de cachorro olhavapara ela com seus olhos redondos e graúdos,esticando debilmente uma pata, tentandotocá-la. “Pobre bichinho!” disse Alice, comcarinho, e fez um grande esforço para asso-biar para ele; mas o tempo todo estava sesentindo terrivelmente amedrontada com aideia de que ele podia estar com fome, casoem que muito provavelmente iria comê-la,apesar de todos os seus afagos.

Mal sabendo o que fazia, apanhou umgraveto e o estendeu para o cachorrinho; di-ante disso o filhote saltou no ar, todas as pa-tas de uma vez, com um latido de deleite, e

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avançou contra o graveto, fingindo ter medodele; depois Alice se esquivou atrás de umgrande cardo para não ser atropelada; assimque apareceu do outro lado, o cachorrinhofez outra investida contra o graveto e deuuma cambalhota na afobação de agarrá-lo;então Alice, achando que aquilo era muitoparecido com brincar com um cavalinho, eesperando ser pisoteada por ele a qualquermomento, correu de novo para trás docardo; em seguida o filhote iniciou umasérie de breves investidas para o graveto,correndo cada vez bem pouquinho para afrente e muito para trás, arquejando, a lín-gua pendendo da boca, os olhos enormessemicerrados.

Aquela pareceu a Alice uma boa opor-tunidade para fugir; assim, partiu imediata-mente, correndo até ficar realmente cansadae sem fôlego, até o latido do cachorrinhosoar muito fraco à distância.

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“Ainda assim, que cachorro engraçad-inho!” disse Alice, encostando-se num botão-de-ouro para descansar e se abanando comuma das folhas: “Teria gostado muito de en-sinar alguns truques a ele… se pelo menosestivesse do tamanho certo para isso! Ai, ai!Tinha quase me esquecido de que precisocrescer de novo! Deixe-me ver… como possoconseguir isso? Suponho que teria de comerou beber uma coisa ou outra; mas a grandequestão é: o quê?”

A grande questão era, certamente, “oquê?”. Alice olhou para as flores e a relvaque a cercavam por todos os lados, mas nãoviu nada que parecesse a coisa certa para secomer ou beber naquelas circunstâncias.Havia perto dela um cogumelo grande,quase da sua altura; depois de olhar em-baixo dele, e dos dois lados, e atrás, ocorreu-lhe que não seria má ideia espiar o quehavia em cima dele.

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Esticou-se na ponta dos pés e espiousobre a borda do cogumelo e seu olhar en-controu imediatamente o de uma grandelagarta azul, sentada no topo, de braçoscruzados, fumando tranquilamente um com-prido narguilé, sem dar a mínima atenção aela ou a qualquer outra coisa.

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CAPÍTULO 5

Conselho de uma Lagarta

A LAGARTA E ALICE ficaram olhando uma para aoutra algum tempo em silêncio. Finalmentea Lagarta tirou o narguilé da boca e se diri-giu a ela numa voz lânguida, sonolenta.

“Quem é você?” perguntou a Lagarta.Não era um começo de conversa muito

animador. Alice respondeu, meio encabu-lada: “Eu… eu mal sei, Sir, neste exato mo-mento… pelo menos sei quem eu era quandome levantei esta manhã, mas acho que jápassei por várias mudanças desde então.”

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“Que quer dizer com isso?” esbravejou aLagarta. “Explique-se!”

“Receio não poder me explicar”, re-spondeu Alice, “porque não sou eu mesma,entende?”

“Não entendo”, disse a Lagarta.“Receio não poder ser mais clara”, Alice

respondeu com muita polidez, “pois eumesma não consigo entender, para começar;e ser de tantos tamanhos diferentes num diaé muito perturbador.”

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“Não é”, disse a Lagarta.“Bem, talvez ainda não tenha descoberto

isso”, disse Alice; “mas quando tiver de viraruma crisálida… vai acontecer um dia,sabe… e mais tarde uma borboleta, diria

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que vai achar isso um pouco esquisito, nãovai?”

“Nem um pouquinho”, disse a Lagarta.“Bem, talvez seus sentimentos sejam

diferentes”, concordou Alice; “tudo que sei éque para mim isso pareceria muitoesquisito.”

“Você!” desdenhou a Lagarta. “Quem évocê?”

O que as levou de novo para o início daconversa. Alice, um pouco irritada com oscomentários tão breves da Lagarta,empertigou-se e disse, muito gravemente:“Acho que primeiro você deveria me dizerquem é.”

“Por quê?” indagou a Lagarta.Aqui estava outra pergunta desconcer-

tante; e como não pudesse atinar com nen-huma boa razão, e a Lagarta parecesse estarnuma disposição de ânimo muito de-sagradável, Alice deu meia-volta.

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“Volte!” chamou a Lagarta. “Tenho umacoisa importante para dizer!”

Isso parecia promissor, sem dúvida; Alicese virou e voltou.

“Controle-se”, disse a Lagarta.“Isso é tudo?” quis saber Alice, engolindo

a raiva o melhor que podia.“Não”, respondeu a Lagarta.Alice pensou que podia muito bem esper-

ar, já que não tinha mais nada a fazer etalvez, afinal, ela dissesse alguma coisa quevalesse a pena ouvir. Por alguns minutos aLagarta soltou baforadas sem falar, mas porfim descruzou os braços, tirou o narguilé daboca de novo e disse: “Então acha que estámudada, não é?”

“Receio que sim, Sir”, disse Alice. “Nãoconsigo me lembrar das coisas como antes…e não fico do mesmo tamanho por dezminutos seguidos!”

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“Não consegue se lembrar de quecoisas?” perguntou a Lagarta.

“Bem, tentei recitar ‘Como pode a abelh-inha atarefada’, mas saiu tudo diferente!”Alice respondeu com voz tristonha.

“Recite ‘Está velho, Pai William’”, disse aLagarta.

Alice juntou as mãos e começou:“Está velho, Pai William”,

Disse o moço admirado.“Como é que ainda faz

Cabriola em seu estado?”“Fosse eu moço, meu rapaz,

Podia os miolos afrouxar;Mas agora já estão moles,

Para que me preocupar?”“Está velho”, disse o moço,

“E gordo como uma pipa;Mas o vi numa cambalhota…

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Não teme dar nó na tripa?”“Quando moço”, disse o sábio,

“Fui sempre muito ágil; usava estapomada:

É só um xelim a caixa, nãoNão quer dar uma experimentada?”

“Está velho”, disse o moço,“Seus dois dentes já estão bambos,

Mas gosta de chupar cana,Como então não caem ambos?”

“Quando moço”, disse o pai,“Sempre evitei mastigar.

Foi assim que estes dois dentesConsegui economizar.”

“Está velho”, disse o moço,“Já não enxerga de dia,

Como então inda equilibraNo seu nariz uma enguia?”

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“Já respondi a três perguntas,Parece mais que o bastante,

Suma já ou eu lhe mostroQuem aqui é o importante.”

“Isso não está correto”, falou a Lagarta.“Não completamente, acho”, disse Alice;

“algumas palavras foram alteradas.”“Está errado do princípio ao fim”, de-

clarou a Lagarta, peremptória. E seguiram-sealguns minutos de silêncio.

A Lagarta foi a primeira a falar.“De que tamanho você quer ser?”

perguntou.“Oh, não faço questão de um tamanho

certo”, Alice se apressou a responder; “sóque ninguém gosta de ficar mudando todahora, sabe.”

“Eu não sei”, disse a Lagarta.

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Alice não disse nada: nunca fora tão con-testada em sua vida e sentiu que estava per-dendo a paciência.

“Está satisfeita agora?” perguntou aLagarta.

“Bem, gostaria de ser pouco maior, Sir, senão se importasse”, disse Alice. “Oito centí-metros é uma altura tão insignificante parase ter.”

“Pois é uma altura muito boa!” disse aLagarta encolerizada, empinando-se en-quanto falava (tinha exatamente oito centí-metros de altura).

“Mas não estou acostumada a isso!”defendeu-se a pobre Alice num tom que in-spirava pena. E pensou: “Como gostaria queas criaturas não se ofendessem tãofacilmente!”

“Com o tempo você se acostuma”, disse aLagarta; pôs o narguilé na boca e começou afumar de novo.

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Desta vez Alice esperou pacientementeaté que ela resolvesse falar de novo. Depoisde um ou dois minutos, a Lagarta tirou onarguilé da boca, bocejou uma ou duasvezes e se sacudiu. Em seguida desceu docogumelo e foi rastejando pela relva, observ-ando simplesmente, de passagem: “Um ladoa fará crescer, e o outro a fará diminuir.”

“Um lado do quê? O outro lado do quê?”Alice se perguntou.

“Do cogumelo”, foi a resposta da Lagarta,exatamente como se ela tivesse perguntadoem voz alta; mais um instante, e a Lagartatinha sumido de vista.

Alice ficou olhando para o cogumelo porum minuto, pensativa, tentando identificarquais eram seus dois lados; como era perfeit-amente redondo, aquela lhe pareceu umaquestão muito difícil. No entanto, por fimesticou o máximo que podia os braços emvolta dele e quebrou um pedacinho da bordacom cada mão.

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“E agora, qual é qual?” perguntou-se, emordiscou uma ponta do pedaço da mãodireita para experimentar o efeito: num in-stante sentiu uma pancada violenta sob oqueixo: ele batera no seu pé!

Ficou bastante assustada com essamudança súbita, mas lhe parecia que nãohavia tempo a perder, pois estava encol-hendo rapidamente; assim, tratou logo decomer um pouco do outro pedaço. Seuqueixo estava tão comprimido contra seu péque mal tinha como abrir a boca; mas final-mente a abriu, conseguindo engolir um ticodo pedaço da mão esquerda.

“Viva! Até que enfim minha cabeça estálivre”, disse Alice com um prazer que numinstante se transformou em susto, quandodescobriu que não achava seus ombros emlugar algum: tudo o que conseguia ver,quando olhava para baixo, era uma imensaextensão de pescoço, que parecia se erguer

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como um talo de um mar de folhas verdesque se estendia lá longe, debaixo dela.

“O que pode ser toda aquela coisaverde?” disse Alice. “E onde foram pararmeus ombros? Oh! Minhas mãozinhas, porque será que não consigo mais vê-las?”Estava mexendo as mãos enquanto falava,mas isso não parecia produzir nenhumefeito, exceto uma sacudidela das distantesfolhas verdes.

Como parecia não haver nenhuma pos-sibilidade de erguer as mãos até a cabeça,tentou abaixar a cabeça até elas, ficandomaravilhada ao descobrir que seu pescoçopodia se curvar facilmente em qualquerdireção, como uma cobra. Acabara deconseguir curvá-lo num gracioso zigue-zague, e ia mergulhar entre as folhas — quedescobriu serem apenas as copas das árvoressob as quais estivera perambulando —quando um assobio agudo a fez recuar de-pressa: uma grande pomba tinha voado até o

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seu rosto e estava batendo nela violenta-mente com suas asas.

“Cobra!” arrulhou a Pomba.“Não sou uma cobra!” disse Alice,

indignada. “Deixe-me em paz!”“Cobra, eu insisto!” repetiu a Pomba,

mas num tom mais comedido, e acrescentoucom uma espécie de soluço: “Já tentei de to-das as maneiras, e nada parece contentá-las!”

“Não faço ideia do que está falando”,disse Alice.

“Tentei as raízes das árvores, tentei asribanceiras e tentei cercas vivas”, continuoua Pomba, sem lhe prestar atenção; “mas es-sas cobras! Não há como agradá-las!”

Alice estava cada vez mais perplexa, masachou que não adiantava dizer nada até quea Pomba terminasse.

“Como se não fosse bastante ter de cho-car os ovos”, disse a Pomba, “tenho de ficar

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de sentinela, vigiando as cobras noite e dia!Ora, faz três semanas que não prego o olho!”

“Sinto muito que tenha se aborrecido”,disse Alice, que estava começando a en-tender o que ela queria dizer.

“E justamente quando escolhi a árvoremais alta do bosque”, continuou a Pomba,elevando a voz a um guincho, “justamentequando estava pensando que finalmente meveria livre delas, elas têm de descer do céuse retorcendo! Arre, Cobra!”

“Mas não sou uma cobra, estou lhedizendo!” insistiu Alice. “Sou uma… uma…”

“Ora essa! Você é o quê?” perguntou aPomba. “Aposto que está tentando inventaralguma coisa!”

“Eu… eu sou uma menininha”, re-spondeu Alice, bastante insegura,lembrando-se do número de mudanças quesofrera aquele dia.

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“Realmente uma história muitoplausível!” disse a Pomba num tom do maisprofundo desprezo. “Vi muitas menininhasno meu tempo, mas nunca uma com umpescoço desse! Não, não! Você é uma cobra;e não adianta negar. Suponho que agora vaime dizer que nunca provou um ovo!”

“Provei ovos, sem dúvida”, disse Alice,que era uma criança muito sincera; “masmeninas comem quase tantos ovos quanto ascobras, sabe.”

“Não acredito nisso”, declarou a Pomba;“mas, se comem, então são uma espécie decobra, é só o que posso dizer.”

Era uma ideia tão nova para ela queAlice ficou em silêncio absoluto por um oudois minutos, o que deu à Pomba oportunid-ade para acrescentar: “Você está procurandoovos, isso eu sei muito bem; o que me im-porta se é uma menininha ou uma cobra?”

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“Pois a mim, me importa muito”, Aliceretrucou rápido; “mas não estou procurandoovos; e, se estivesse, não iria querer os seus:não gosto de ovo cru.”

“Bem, então dê o fora!” disse a Pombanum tom amuado, enquanto se acomodavade novo em seu ninho. Alice se agachouentre as árvores como pôde, pois seupescoço ficava se enganchando entre os gal-hos e, vez por outra, tinha de parar edesembaraçá-lo. Passado algum tempo,lembrou-se de que ainda tinha pedaços docogumelo nas mãos, e pôs-se ao trabalhocom muita aplicação, mordiscando primeiroum e depois o outro, ficando às vezes maisalta e às vezes mais baixa, até conseguir seajustar à sua altura normal.

Fazia tanto tempo que nem se aproxim-ava do tamanho certo que, no começo,aquilo pareceu bastante estranho; mas seacostumou e, alguns minutos depois,começou a conversar consigo mesma como

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de hábito. “Pronto, metade do meu plano es-tá cumprida! Como todas essas mudançasdesorientam! Nunca sei ao certo o que vouser de um minuto para outro! Seja como for,voltei para o meu tamanho; o próximo passoé ir àquele bonito jardim… como será quevou conseguir isso?” Ao dizer essas palavras,chegou de repente a um lugar aberto, comuma casinha de cerca de um metro e vintecentímetros de altura. “Seja lá quem moreaqui”, pensou Alice, “não convém me aprox-imar deles com este tamanho; que susto iri-am levar!” Assim, começou a mordiscar dopedacinho da mão direita de novo e não seaventurou a chegar perto da casa antes deconseguir se reduzir a vinte e dois centímet-ros de altura.

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CAPÍTULO 6

Porco e pimenta

POR UM OU DOIS MINUTOS, ela ficou olhando para acasa e pensando o que fazer em seguida,quando, de repente, um lacaio de libré saiucorrendo do bosque (supôs que era um la-caio porque estava de libré; não fosse porisso, a julgar apenas pelo rosto, teria ditoque era um peixe) e bateu na porta ruid-osamente com os nós dos dedos. A porta foiaberta por um outro lacaio de libré, de rostoredondo e olhos grandes como um sapo; e osdois lacaios, Alice notou, tinham cabeleirasencaracoladas e empoadas à volta de toda a

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cabeça. Sentiu muita curiosidade de saber oque era aquilo e, furtivamente, saiu umpouquinho do bosque para ouvir.

O Lacaio-Peixe começou por tirar de de-baixo do braço uma grande carta, quase dotamanho dele, que entregou para o outro,dizendo com solenidade: “Para a Duquesa.Um convite da Rainha para jogar croqué.” OLacaio-Sapo repetiu, com igual solenidade,só trocando um pouquinho a ordem das pa-lavras: “Da Rainha. Um convite à Duquesapara jogar croqué.”

Depois ambos fizeram uma profundamesura, e os cachos dos dois seembaraçaram.

Alice riu tanto disso que teve de correrde volta para o bosque, de medo que aouvissem, e, na primeira espiada que deu, oLacaio-Peixe tinha desaparecido e o outroestava sentado no chão perto da porta, ol-hando aparvalhado para o céu.

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Alice foi timidamente até a porta ebateu.

“Não adianta nada bater”, disse o Lacaio,“e isto por duas razões. Primeiro, porque es-tou do mesmo lado da porta que você; se-gundo, porque estão fazendo tanto barulholá dentro que ninguém pode ouvi-la.” Erealmente estava-se fazendo uma barulheiradescomunal lá dentro: berros e espirros con-stantes e volta e meia um grande estrépito,como se uma travessa ou uma chaleirativesse sido estilhaçada.

“Nesse caso, por favor”, disse Alice,“como faço para entrar?”

“Poderia haver algum sentido em vocêbater”, continuou o Lacaio sem lhe daratenção, “se tivéssemos a porta entre nós.Por exemplo, se você estivesse dentro, poder-ia bater e eu poderia lhe deixar sair, claro.”Enquanto falava, ele olhava o tempo todopara o céu, o que pareceu a Alice franca-mente descortês. “Mas talvez ele não possa

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evitar”, disse consigo mesma; “tem os olhostão perto do cocuruto. Mesmo assim, podiaresponder a perguntas. “Como faço para en-trar?” repetiu, alto.

“Vou ficar sentado aqui”, observou o La-caio, “até amanhã…”

Nesse instante a porta da casa se abriu eum pratarraz saiu zunindo, bem na direçãoda cabeça do Lacaio: pegou lhe o nariz deraspão e foi se espatifar numa das árvoresque havia atrás.

“…ou depois de amanhã, quem sabe”,continuou o Lacaio no mesmo tom, como seabsolutamente nada tivesse acontecido.

“Como faço para entrar?” Alice pergun-tou de novo, mais alto.

“Mas, afinal, você deve entrar?” disse oLacaio. “Esta é a primeira pergunta.”

Era, sem dúvida: só que Alice não gostouque lhe dissessem isso. “É realmente espan-toso”, murmurou consigo, “como todas as

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criaturas brigam. É de levar a gente àloucura!”

O Lacaio pareceu ver nisso uma boaoportunidade para repetir seu comentário,com variações. “Vou ficar sentado aqui”,disse, “ora sim, ora não, por dias e dias”.

“Mas o que devo fazer?” perguntou Alice.“O que quiser”, respondeu o Lacaio, e

começou a assobiar.“Oh! Não adianta falar com ele”, disse

Alice, desesperada, “é completamente idi-ota!” E abriu a porta e entrou.

A porta dava diretamente para uma co-zinha ampla, enfumaçada de ponta a ponta:a Duquesa estava sentada no meio, numtamborete de três pés, ninando um bebê; acozinheira estava debruçada sobre o fogo,mexendo um caldeirão enorme que pareciacheio de sopa.

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“Com certeza há pimenta demais naquelasopa!” Alice disse consigo, tanto quanto po-dia julgar por seus espirros.

No ar, sem dúvida havia muita. Até aDuquesa espirrava de vez em quando;quanto ao bebê, espirrava e berrava sem umminuto de trégua. As duas únicas criaturasque não espirravam na cozinha eram a co-zinheira e um gato grande que estava deit-ado junto ao forno, sorrindo de orelha aorelha.

“Por favor, poderia me dizer”, perguntouAlice um pouco tímida, pois não sabia se erade bom-tom falar em primeiro lugar, “porque seu gato tanto sorri?”

“É um gato de Cheshire”, disse aDuquesa, “é por isso. Porco!”

Disse a última palavra com tão súbita vi-olência que Alice deu um pulo; mas num in-stante viu que era dirigida ao bebê, não a si.Diante disso, tomou coragem e continuou:

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“Não sabia que os gatos de Cheshiresempre sorriem; na verdade, não sabia quegatos podiam sorrir.”

“Todos podem”, disse a Duquesa, “e amaioria o faz.”

“Não conheço nenhum que sorria”, de-clarou Alice, com muita polidez, sentindo-semuito contente por ter entabulado umaconversa.

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“Você não sabe grande coisa”, observoua Duquesa; “e isto é um fato.”

Alice não gostou nada do tom dessa ob-servação e pensou que seria melhor in-troduzir algum outro assunto. Enquantotentava escolher um, a cozinheira tirou ocaldeirão de sopa do fogo e se pôs imediata-mente a atirar tudo que estava a seu alcancena Duquesa e no bebê: primeiro foram osatiçadores; depois uma chuva de caçarolas,travessas e pratos. A Duquesa não tomavaconhecimento deles, nem quando a at-ingiam; o bebê já estava berrando tanto queera quase impossível dizer se os golpes omachucavam ou não.

“Oh! Por favor, veja o que está fazendo!”gritou Alice, levantando-se de um salto, ater-rorizada. “Oh! Lá se vai o mimoso narizinhodele”; pois uma enorme caçarola passourente e quase o arrancou fora.

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“Se cada um cuidasse da própria vida”,disse a Duquesa num resmungo rouco, “omundo giraria bem mais depressa.”

“O que não seria uma vantagem”,emendou Alice, muito satisfeita por ter umaoportunidade de exibir um pouco da suasabedoria. “Pense só no que seria feito dodia e da noite! Veja, a Terra leva vinte equatro horas para completar suarevolução…”

“Por falar em revolução”, disse aDuquesa, “cortem-lhe a cabeça!”

Bastante aflita, Alice deu uma olhada desoslaio para a cozinheira para ver se ela iaaproveitar a deixa; mas estava ocupada mex-endo a sopa e parecia não ter ouvido. Assim,recomeçou: “Vinte e quatro horas, eu acho;ou serão doze? Eu…”

“Ora, não me aborreça”, disse a Duquesa;“nunca pude suportar números!” E com issocomeçou a acalentar o filho de novo,

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enquanto cantava uma espécie de cantiga deninar, dando-lhe fortes sacudidas ao fim decada verso:

Fale grosso com seu bebezinho,E espanque-o quando espirrar:

Porque ele é bem malandrinho,Só o faz para azucrinar.

REFRÃO

(Com a participação da cozinheira e dobebê):

Oba! Oba! Oba!Enquanto cantava a segunda estrofe da

canção, a Duquesa jogava o bebê brusca-mente para cima e para baixo, e a pobre cri-aturinha berrava tanto que Alice mal con-seguiu ouvir as palavras:

Falo bravo com meu garoto,Bato nele quando espirra

Pois só assim toma gosto

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Por pimenta e não faz birra.REFRÃO

Oba! Oba! Oba!“Tome! Pode niná-lo um pouquinho, se

quiser!” disse a Duquesa a Alice, jogando-lheo bebê. “Preciso me aprontar para jogarcroqué com a Rainha”, e se retirou apres-sada. Quando saía, a cozinheira lhe atirouuma frigideira, mas errou a pontaria.

Alice agarrou o bebê com certa di-ficuldade, pois a criaturinha tinha umaforma estranha, com braços e pernas estica-dos em todas as direções, “igualzinho a umaestrela-do-mar”, pensou Alice. O pobrezinhobufava como uma locomotiva quando ela opegou, dobrando-se e se esticando semparar, de tal modo que, por um ou doisminutos, tudo que ela conseguiu fazer foisegurá-lo.

Assim que descobriu a maneira adequadade acalentá-lo (que era torcê-lo numa

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espécie de nó, depois agarrar firme suaorelha direita e o pé esquerdo, evitando as-sim que se desatasse), ela o levou para o arlivre. “Se eu não levar esta criança comigo”,pensou Alice, “com certeza vão matá-laqualquer dia desses: não seria umassassinato deixá-la para trás?” Disse estasúltimas palavras em voz alta, e a criaturinhagrunhiu em resposta (a essa altura parara deespirrar). “Pare de grunhir”, disse Alice;“não é em absoluto uma maneira apropriadade se expressar.”

O bebê grunhiu de novo, e Alice, muitoinquieta, examinou seu rosto para ver o quehavia de errado com ele. Não havia a menordúvida de que tinha um nariz muito arrebit-ado; além disso, os olhos eram um tantomiúdos para um bebê: no todo, Alice nãogostou da aparência da criatura. “Mas talvezele estivesse só soluçando”, pensou, e olhoude novo os olhos dele para ver se havialágrimas.

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Não, não havia lágrimas. “Se você vaivirar um porco, meu querido”, disse Aliceseriamente, “não vou mais querer saber devocê. Preste atenção!” O coitadinho soluçoude novo (ou grunhiu, era impossível distin-guir), e os dois ficaram em silêncio por al-gum tempo.

Alice estava começando a pensar “Eagora? Que vou fazer com esta criaturaquando for para casa?” quando ele grunhiude novo com tanta fúria que ela olhou parao seu rosto um tanto alarmada. Desta veznão havia engano possível: era nem maisnem menos que um porco, e lhe pareceu queseria totalmente absurdo continuarcarregando-o.

Assim, colocou a criaturinha no chão e sesentiu muito aliviada ao vê-la caminharcalmamente para o bosque. “Se tivesse cres-cido”, disse ela para si mesma, “teria sidouma criança horrorosa; mas como porco ébem jeitozinho, eu acho.” E começou a

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pensar sobre outras crianças que conheciaque ficariam muito bem como porcos, e bemna hora em que estava pensando “se aomenos alguém soubesse a maneira corretade transformá-las” teve um ligeiro sobres-salto ao ver o Gato de Cheshire sentado nogalho de uma árvore a alguns metros dedistância.

Ao ver Alice, o Gato só sorriu. Pareciaamigável, ela pensou; ainda assim, tinhagarras muito longas e um número enorme dedentes, de modo que achou que devia tratá-lo com respeito.

“Bichano de Cheshire”, começou, muitotímida, pois não estava nada certa de queesse nome iria agradá-lo; mas ele só abriuum pouco mais o sorriso. “Bom, até agoraele está satisfeito”, pensou e continuou: “Po-deria me dizer, por favor, que caminho devotomar para ir embora daqui?”

“Depende bastante de para onde quer ir”,respondeu o Gato.

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“Não me importa muito para onde”, disseAlice.

“Então não importa que caminho tome”,disse o Gato.

“Contanto que eu chegue a algum lugar”,Alice acrescentou à guisa de explicação.

“Oh, isso você certamente vai conseguir”,afirmou o Gato, “desde que ande obastante.”

Como isso lhe pareceu irrefutável, Alicetentou uma outra pergunta. “Que espécie degente vive por aqui?”

“Naquela direção”, explicou o Gato,acenando com a pata direita, “vive umChapeleiro; e naquela direção”, acenandocom a outra pata, “vive uma Lebre deMarço. Visite qual deles quiser: os dois sãoloucos.”

“Mas não quero me meter com gente lou-ca”, Alice observou.

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“Oh! É inevitável”, disse o Gato; “somostodos loucos aqui. Eu sou louco. Você élouca.”

“Como sabe que sou louca?” perguntouAlice.

“Só pode ser”, respondeu o Gato, “ou nãoteria vindo parar aqui.”

Alice não achava que isso provasse coisaalguma; apesar disso, continuou: “E comosabe que você é louco?”

“Para começar”, disse o Gato, “um ca-chorro não é louco. Admite isso?”

“Suponho que sim”, disse Alice.“Pois bem”, continuou o Gato, “você

sabe, um cachorro rosna quando estázangado e abana a cauda quando está con-tente. Ora, eu rosno quando estou contente eabano a cauda quando estou zangado. Port-anto sou louco.”

“Chamo isso ronronar, não rosnar”, disseAlice.

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“Chame como quiser”, disse o Gato. “Vaijogar croqué com a Rainha hoje?”

“Gostaria muito”, admitiu Alice, “masainda não fui convidada.”

“Encontre-me lá”, disse o Gato, edesapareceu.

Alice não ficou muito surpresa com isso,tão acostumada estava ficando a ver coisasesquisitas acontecerem.

Ainda estava olhando para o lugar ondeo vira quando ele apareceu de novo derepente.

“A propósito, o que foi feito do bebê?”quis saber o Gato. “Ia me esquecendo deperguntar.”

“Virou um porco”, Alice respondeu tran-quilamente, como se o Gato tivesse voltadode uma maneira natural.

“Eu achava que iria virar”, disse o Gato,e desapareceu de novo.

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Alice esperou um pouco, com certa es-perança de vê-lo de novo, mas ele nãoapareceu e, depois de um ou dois minutos,ela caminhou na direção em que, pelo quelhe fora dito, morava a Lebre de Março. “Vilebres antes”, pensou; “a Lebre de Março vaiser interessantíssima, e talvez, como estamosem maio, não esteja freneticamente louca…pelo menos não tão louca quanto emmarço.” Enquanto assim pensava, ergueu osolhos e lá estava o Gato de novo, sentado nogalho de uma árvore.

“Você disse porco ou corpo?” o Gatoperguntou.

“Disse porco”, respondeu Alice; “egostaria que não ficasse aparecendo e sum-indo tão de repente: deixa a gente comvertigem.”

“Está bem”, disse o Gato; e dessa vez de-sapareceu bem devagar, começando pelaponta da cauda e terminando com o sorriso,

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que persistiu algum tempo depois que oresto de si fora embora.

“Bem! Já vi muitas vezes um gato semsorriso”, pensou Alice; “mas um sorriso semgato! É a coisa mais curiosa que já vi naminha vida!”

Não tinha ido muito longe quando av-istou a casa da Lebre de Março: pensou quea casa era aquela porque as chaminés tin-ham forma de orelhas e o telhado era depelo. Era uma casa tão grande que não quischegar mais perto antes de lambiscar maisum pouquinho do pedaço de cogumelo damão esquerda e crescer até uns sessentacentímetros de altura. Mesmo assim avançoubastante timidamente, dizendo para simesma: “E se no fim das contas ela estiverfreneticamente louca? Chego quase a desejarter ido visitar o Chapeleiro!”

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CAPÍTULO 7

Um chá maluco

EM FRENTE À CASA HAVIA UMA MESA posta sob umaárvore, e a Lebre de Março e o Chapeleiroestavam tomando chá; entre eles estava sen-tado um Caxinguelê, que dormia a sonosolto, e os dois o usavam como almofada,descansando os cotovelos sobre ele e con-versando por sobre sua cabeça. “Muitodesconfortável para o Caxinguelê”, pensouAlice; “só que, como está dormindo,suponho que não se importa.”

Era uma mesa grande, mas os três es-tavam espremidos numa ponta: “Não há

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lugar! Não há lugar!” gritaram ao ver Alicese aproximando. “Há lugar de sobra!” disseAlice, indignada, e sentou-se numa grandepoltrona à cabeceira.

“Tome um pouco de vinho”, disse aLebre de Março num tom animador.

Alice correu os olhos pela mesa toda,mas ali não havia nada além de chá. “Nãovejo nenhum vinho”, observou.

“Não há nenhum”, confirmou a Lebre deMarço.

“Então não foi muito polido da sua parteoferecer”, irritou-se Alice.

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“Não foi muito polido da sua partesentar-se sem ser convidada”, retrucou aLebre de Março.

“Não sabia que a mesa era sua”, declarouAlice; “está posta para muito mais do quetrês pessoas.”

“Seu cabelo está precisando de umcorte”, disse o Chapeleiro. Fazia algumtempo que olhava para Alice com muitacuriosidade, e essas foram suas primeiraspalavras.

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“Devia aprender a não fazer comentáriospessoais”, disse Alice com alguma severid-ade; “é muito indelicado.”

O Chapeleiro arregalou os olhos ao ouvirisso; mas disse apenas: “Por que um corvo separece com uma escrivaninha?”

“Oba, vou me divertir um pouco agora!”pensou Alice. “Que bom que tenhamcomeçado a propor adivinhações.” E acres-centou em voz alta: “Acho que posso mataresta.”

“Está sugerindo que pode achar a res-posta?” perguntou a Lebre de Março.

“Exatamente isso”, declarou Alice.“Então deveria dizer o que pensa”, a

Lebre de Março continuou.“Eu digo”, Alice respondeu apressada-

mente; “pelo menos… pelo menos eu pensoo que digo… é a mesma coisa, não?”

“Nem de longe a mesma coisa!” disse oChapeleiro. “Seria como dizer que ‘vejo o

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que como’ é a mesma coisa que ‘como o quevejo’!”

“Ou o mesmo que dizer”, acrescentou aLebre de Março, “que ‘aprecio o que tenho’ éa mesma coisa que ‘tenho o que aprecio’!”

“Ou o mesmo que dizer”, acrescentou oCaxinguelê, que parecia estar falando dor-mindo, “que ‘respiro quando durmo’ é amesma coisa que ‘durmo quando respiro’!”

“É a mesma coisa no seu caso”, disse oChapeleiro, e neste ponto a conversa arrefe-ceu, e o grupo ficou sentado em silêncio porum minuto, enquanto Alice refletia sobretudo de que conseguia se lembrar sobre cor-vos e escrivaninhas, o que não era muito.

O Chapeleiro foi o primeiro a quebrar osilêncio. “Que dia do mês é hoje?” disse,voltando-se para Alice. Tinha tirado seurelógio da algibeira e estava olhando paraele com apreensão, dando-lhe umas sacu-didelas vez por outra e levando-o ao ouvido.

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Alice pensou um pouco e disse: “Diaquatro.”

“Dois dias de atraso!” suspirou oChapeleiro. “Eu lhe disse que manteiga nãoia fazer bem para o maquinismo!” acres-centou, olhando furioso para a Lebre deMarço.

“Era manteiga da melhor qualidade”, re-spondeu humildemente a Lebre de Março.

“Sim, mas deve ter entrado um pouco defarelo”, o Chapeleiro rosnou. “Você não de-via ter usado a faca de pão.”

A Lebre de Março pegou o relógio econtemplou-o melancolicamente. Depoismergulhou-o na sua xícara de chá e fitou-ode novo. Mas não conseguiu encontrar nadamelhor para dizer que seu primeirocomentário: “Era manteiga da melhorqualidade.”

Alice estivera olhando por cima do om-bro dela com certa curiosidade. “Que relógio

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engraçado!” observou. “Marca o dia do mês,e não marca a hora!”

“Por que deveria?” resmungou oChapeleiro. “Por acaso o seu relógio marca oano?”

“Claro que não”, Alice respondeu maisque depressa, “mas é porque continua sendoo mesmo ano por muito tempo seguido.”

“O que é exatamente o caso do meu”,disse o Chapeleiro.

Alice ficou terrivelmente espantada. Aobservação do Chapeleiro lhe parecia nãofazer nenhum tipo de sentido, embora, semdúvida, os dois estivessem falando a mesmalíngua. “Não o entendo bem”, disse, o maispolidamente que pôde.

“O Caxinguelê está dormindo de novo”,disse o Chapeleiro, e derramou um pouco dechá quente sobre o nariz dele.

O Caxinguelê jogou a cabeça para tráscom impaciência e disse, sem abrir os olhos:

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“É claro, é claro; é precisamente isso que euia observar.”

“Já decifrou o enigma?”, indagou oChapeleiro, voltando-se de novo para Alice.

“Não, desisto”, Alice respondeu. “Qual éa resposta?”

“Não tenho a menor ideia”, disse oChapeleiro.

“Nem eu”, disse a Lebre de Março.Alice suspirou, entediada. “Acho que vo-

cês poderiam fazer alguma coisa melhorcom o tempo”, disse, “do que gastá-lo comadivinhações que não têm resposta.”

“Se você conhecesse o Tempo tão bemquanto eu”, disse o Chapeleiro, “falaria delecom mais respeito.”

“Não sei o que quer dizer”, disse Alice.“Claro que não!” desdenhou o

Chapeleiro, jogando a cabeça para trás.

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“Atrevo-me a dizer que você nunca chegou afalar com o Tempo!”

“Talvez não”, respondeu Alice, cautelosa,“mas sei que tenho de bater o tempo quandoestudo música.”

“Ah! Isso explica tudo”, disse oChapeleiro. “Ele não suporta apanhar. Mas,se você e ele vivessem em boa paz, ele fariapraticamente tudo o que você quisesse como relógio. Por exemplo, suponha que fossemnove horas da manhã, hora de estudar aslições; bastaria um cochicho para o Tempo,e o relógio giraria num piscar de olhos! Umae meia, hora do almoço!”

(“Só queria que fosse mesmo”, a Lebre deMarço sussurrou para si mesma.)

“Seria formidável, sem dúvida”, disseAlice, pensativa. “Mas nesse caso eu não es-taria com fome, não é?”

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“Não a princípio, talvez”, disse oChapeleiro; “mas você poderia mantê-lo emuma e meia até quando quisesse.”

“É assim que você faz?” perguntou Alice.O Chapeleiro sacudiu a cabeça, pesaroso.

“Eu não!” respondeu. “Brigamos em marçopassado… pouco antes de ela enlouquecer,sabe… (apontando a Lebre de Março comsua colher de chá); foi no grande concertodado pela Rainha de Copas, e eu tinha decantar

Pisca, pisca, ó morcego!Que eu aqui quero sossego!Você conhece a canção, talvez?”“Já ouvi alguma coisa parecida”, disse

Alice.“Ela continua, sabe”, prosseguiu a Lebre,

“assim:Por sobre o mundo você adejaQual chá numa grande bandeja

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Pisca, pisca…”Nessa altura o Caxinguelê se sacudiu e

começou a cantar dormindo “Pisca, pisca,pisca, pisca…”, e continuou por tanto tempoque tiveram de lhe dar um beliscão parafazê-lo parar.

“Bem, eu mal acabara a primeira estro-fe”, disse o Chapeleiro, “quando a Rainhadeu um pulo e berrou: ‘Ele está assassinandoo tempo! Cortem-lhe a cabeça!’”

“Terrivelmente cruel!” exclamou Alice.“E desde aquele momento”, continuou o

Chapeleiro, desolado, “ele não faz o quepeço! Agora, são sempre seis horas.”

Alice teve uma ideia luminosa. “É porisso que há tanta louça de chá na mesa?”perguntou.

“É, é por isso”, suspirou o Chapeleiro; “ésempre hora do chá, e não temos tempo delavar a louça nos intervalos.”

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“Então ficam mudando de um lugar paraoutro em círculos, não é?” disse Alice.

“Exatamente”, concordou o Chapeleiro,“à medida que a louça se suja.”

“Mas o que acontece quando chegam denovo ao começo?” Alice se aventurou aperguntar.

“Que tal mudar de assunto?” inter-rompeu a Lebre de Março, bocejando. “Estouficando cansada disto. Proponho que estasenhorita nos conte uma história.”

“Temo não saber nenhuma”, disse Alice,bastante alarmada.

“Sendo assim, o Caxinguelê vai contar!”gritaram os dois. “Acorde, Caxinguelê!” e obeliscaram dos dois lados ao mesmo tempo.

O Caxinguelê abriu os olhos lentamente.“Não estava dormindo”, disse com voz roucae débil. “Ouvi cada palavra que estavamdizendo.”

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“Conte-nos uma história!” disse a Lebrede Março.

“Conte, por favor!” implorou Alice.“E trate de ser rápido”, acrescentou o

Chapeleiro, “ou vai dormir de novo antes determiná-la.”

“Era uma vez três irmãzinhas”, começouo Caxinguelê, muito afobado; “e elas sechamavam Elsie, Lacie e Tillie; e moravamno fundo de um poço…”

“O que elas comiam?” perguntou Alice,sempre muito interessada no que dizia re-speito a comer e beber.

“Comiam melado”, respondeu oCaxinguelê, depois de pensar um ou doisminutos.

“Não pode ser”, Alice observou gentil-mente; “teriam ficado doentes.”

“E ficaram”, disse o Caxinguelê; “muitodoentes.”

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Alice tentou imaginar como seria viverdessa maneira tão extraordinária, mas isso adeixou confusa demais, e ela foi adiante:“Mas por que moravam no fundo de umpoço?”

“Tome mais um pouco de chá”, a Lebrede Março disse a Alice, de maneira muitosincera.

“Como ainda não tomei nenhum”, Alicerespondeu num tom ofendido, “não posso to-mar mais.”

“Você quer dizer que não pode tomarmenos”, falou o Chapeleiro; “é muito fácil to-mar mais do que nada.”

“Ninguém pediu a sua opinião”, disseAlice.

“Quem está fazendo comentários pess-oais agora?” perguntou o Chapeleiro,triunfante.

Como não soube muito bem o que re-sponder a isso, Alice se serviu de um pouco

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de chá e pão com manteiga, em seguidavirou-se para o Caxinguelê e repetiu sua per-gunta: “Por que moravam no fundo de umpoço?”

Mais uma vez o Caxinguelê levou um oudois minutos pensando e depois disse: “Eraum poço de melado.”

“Isso não existe!” Alice estavacomeçando a dizer, muito irritada, mas oChapeleiro e a Lebre de Março fizeram“psss! psss!” e o Caxinguelê observouamuado: “Se não pode ser educada, é mel-hor você mesma terminar a história.”

“Não, por favor continue!” Alice dissemuito humildemente. “Não vou interromperde novo. Vou fazer de conta que existe um.”

“Um, francamente!” disse o Caxinguelê,indignado. Mesmo assim, consentiu em con-tinuar. “Então essas três irmãzinhas… elasestavam aprendendo a tirar, entendem…”

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“Atirar no quê?”, perguntou Alice, com-pletamente esquecida de sua promessa.

“A tirar melado”, disse o Caxinguelê,desta vez sem pestanejar.

“Quero uma xícara limpa”, interrompeuo Chapeleiro; “vamos avançar um lugar.”

Enquanto falava, passou para a cadeiraseguinte e o Caxinguelê o acompanhou; aLebre de Março passou para o lugar doCaxinguelê, e Alice, muito a contragosto,tomou o lugar da Lebre de Março. OChapeleiro foi o único que tirou algum pro-veito da mudança e Alice ficou bem pior queantes, pois a Lebre de Março tinha acabadode virar a leiteira no seu prato.

Como não queria ofender o Caxinguelêde novo, Alice começou com muita cautela:“Não consigo entender. De onde tiravammelado?”

“Pode-se tirar água de um poço d’água”,disse o Chapeleiro; “portanto você deveria

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admitir que se pode tirar melado de umpoço de melado… não, sua burra?”

“Mas elas estavam dentro do poço”, disseAlice ao Caxinguelê, preferindo desconsider-ar essa última observação.

“Claro que estavam”, disse o Caxinguelê,“bem no fundo.”

Esta resposta confundiu tanto a pobreAlice que ela deixou o Caxinguelê continuarpor algum tempo sem o interromper.

“Elas estavam aprendendo a tirar”,prosseguiu o Caxinguelê, bocejando e es-fregando os olhos, pois estava ficando commuito sono; “e tiravam todo tipo de coisa…todo tipo de coisa que começa com M…”

“Por que com M?” perguntou Alice.“Por que não?” quis saber a Lebre de

Março.Alice se calou.

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A essa altura o Caxinguelê fechara os ol-hos e estava começando a cochilar; mas, aum beliscão do Chapeleiro, despertou comum guinchinho e continuou: “…que começacom M, como maçaricos, e maçanetas, ememória e mesmice… como quando se diz‘anda tudo uma mesmice’… já viu coisaparecida com tirar uma mesmice?”

“Ora, agora você me pergunta”, disseAlice, confusíssima. “Não penso…”

“Nesse caso não deveria falar”, disse oChapeleiro.

Essa grosseria foi mais do que Alice po-dia suportar: levantou-se revoltadíssima efoi embora; o Caxinguelê adormeceu nomesmo instante, e nenhum dos outros tomouo menor conhecimento da sua saída, emboraela tenha olhado para trás uma ou duasvezes, com uma ponta de esperança de que achamassem de volta; a última vez que osviu, estavam tentando enfiar o Caxinguelêno bule de chá.

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“Seja como for, lá é que não volto nuncamais!” exclamou Alice enquanto avançavacom cuidado pelo bosque. “Foi o chá maisidiota de que participei em toda a minhavida!”

Exatamente quando dizia isso, percebeuque uma das árvores tinha uma porta, dandopara seu interior. “Isto é muito curioso!”pensou. “Mas hoje tudo é curioso. Por quenão dar uma entradinha?” E foi o que fez.

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Viu-se novamente no salão comprido,perto da mesinha de vidro. “Desta vez voume sair melhor”, disse para si mesma, ecomeçou por pegar a chavezinha de ouro edestrancar a porta que dava para o jardim.Em seguida tratou de mordiscar o cogumelo(tinha guardado um pedaço no bolso) atéficar com uns trinta centímetros; depoisseguiu pela pequena passagem; e então…encontrou-se finalmente no jardim encanta-dor, entre as fontes de água fresca.

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CAPÍTULO 8

O campo de croqué da Rainha

UMA GRANDE ROSEIRA CRESCIA junto à entrada dojardim; suas flores eram brancas, mas trêsjardineiros estavam à sua volta, pintando-asde vermelho. Alice achou aquilo curi-osíssimo e se aproximou para observá-los;quando ia chegando, ouviu um deles dizer:“Veja lá, Cinco! Pare de me salpicar todo detinta desse jeito!”

“Não pude evitar”, disse o Cinco, mal-humorado; “o Sete deu um safanão no meucotovelo.”

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Ao que o Sete ergueu os olhos e ironizou:“Isso mesmo, Cinco! Jogue sempre a culpanos outros!”

“Era melhor você ficar calado!” devolveuo Cinco. “Ainda ontem ouvi a Rainha falarque você merecia ser decapitado!”

“Por quê?” quis saber o que falaraprimeiro.

“Não é da sua conta, Dois!” foi a respostado Sete.

“É sim, é da conta dele”, disse o Cinco, “evou contar para ele… é porque levou bulbosde tulipa para a cozinheira em vez decebolas.”

O Sete jogou seu pincel no chão e iacomeçando a dizer “Bem, de todas as in-justiças…” quando bateu por acaso o olhoem Alice, parada ali observando-os, e secalou de repente. Os outros também ol-haram em volta, e todos fizeram reverênciasprofundas.

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“Poderiam me dizer”, perguntou Alice,um pouco tímida, “por que estão pintandoessas rosas?”

O Cinco e o Sete nada responderam, masolharam para o Dois. Este começou, falandobaixo: “Ora, o fato, Senhorita, é que aqui de-via ter sido plantada uma roseira de rosasvermelhas, e plantamos uma de rosas brancaspor engano; se a Rainha descobrir, todos nósteremos nossas cabeças cortadas. Assim, sen-horita, estamos nos virando como podemos,antes que ela chegue, para…” Nesse mo-mento, o Cinco, que estivera olhando aflitopelo jardim, exclamou: “A Rainha! ARainha!” e imediatamente os três jardineirosse jogaram de bruços no chão. Ouviu-se osom de muitos passos, e Alice olhou emvolta, ansiosa por ver a Rainha.

Primeiro vieram dez soldados carregandopaus; tinham todos o mesmo formato dostrês jardineiros, eram alongados e chatos,com as mãos e os pés nos cantos. Em

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seguida, os dez cortesãos; estes estavam en-feitados com losangos vermelhos da cabeçaaos pés e caminhavam dois a dois, tal comoos soldados. Atrás vieram os infantes reais;eram dez, e os queridinhos vinham salti-tando alegremente de mãos dadas, aospares: estavam todos enfeitados com cor-ações. Depois vinham os convidados, namaioria Reis e Rainhas, e entre eles Alice re-conheceu o Coelho Branco: falava depressa,nervosamente, sorria de tudo que era dito epassou sem a notar. Seguia-os o Valete deCopas, transportando a coroa do Rei numaalmofada de veludo vermelho; e por fim,fechando esse grande cortejo, VIERAM O REI E A

RAINHA DE COPAS.

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Alice teve muita dúvida quanto à con-veniência de se deitar de bruços como ostrês jardineiros, mas não conseguiu se lem-brar de jamais ter ouvido falar de uma regradessas em cortejos; “aliás, de que serviriaum cortejo”, pensou, “se todos tivessem deficar de bruços, sem poder vê-lo?” Assim,continuou onde estava, e esperou.

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Quando o cortejo passou diante de Alice,todos pararam e a fitaram, e a Rainha dissenum tom severo: “Quem é essa?” A perguntafoi dirigida ao Valete de Copas, que, em res-posta, apenas se curvou e sorriu.

“Idiota!” disse a Rainha, jogando acabeça para trás com impaciência; evoltando-se para Alice, continuou: “Qual é oseu nome, criança?”

“Meu nome é Alice, para servir a VossaMajestade”, disse Alice, muito polidamente;mas acrescentou com seus botões: “Ora! Nãopassam de um baralho. Não preciso termedo deles!”

“E quem são esses?” quis saber a Rainhaapontando os três jardineiros deitados emvolta da roseira; pois, como estavam debruços e tinham nas costas o mesmo padrãoque o resto do baralho, ela não tinha comosaber se eram jardineiros, soldados,cortesãos ou três dos seus próprios filhos.

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“Como eu poderia saber?” disse Alice,surpresa com a própria coragem. “Isso não éda minha conta.”

A Rainha ficou rubra de fúria, e depoisde fuzilá-la com os olhos por um momentocomo uma fera selvagem gritou: “Cortem-lhea cabeça! Cortem…”

“Disparate!” disse Alice decidida, alto ebom som, e a Rainha se calou.

O Rei pôs a mão em seu ombro e dissetimidamente: “Pense bem, minha cara; éapenas uma criança!”

A Rainha se esquivou, enraivecida, edisse ao Valete: “Vire-os para cima!”

O Valete assim fez, muito cuida-dosamente, com um pé.

“Levantem-se!” disse a Rainha em vozalta e esganiçada, e instantaneamente os trêsjardineiros pularam de pé e começaram afazer mesuras para o Rei, a Rainha, os in-fantes reais e todos os demais.

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“Parem com isso!” berrou a Rainha.“Estão me deixando tonta”; e, voltando-separa a roseira: “O que andaram fazendoaqui?”

“Que seja do agrado de Vossa Majest-ade”, disse o Dois num tom muito humilde,pondo um joelho no chão enquanto falava;“estávamos tentando…”

“Entendo!” disse a Rainha, que nessemeio-tempo estivera examinando as rosas.“Cortem-lhes as cabeças!” e o cortejo foi adi-ante, três dos soldados ficando para tráspara executar os desventurados jardineiros,que correram para Alice em busca deproteção.

“Vocês não serão decapitados!” disseAlice, e os enfiou num grande vaso de floresque estava ali perto. Os três soldados an-daram ao léu por um ou dois minutos, à pro-cura deles, e em seguida saíram tranquila-mente atrás dos outros.

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“Cortaram-lhes as cabeças?” gritou aRainha.

“As cabeças rolaram, para o deleite deVossa Majestade!” os soldados gritaram emresposta.

“Muito bem!” gritou a Rainha. “Sabe jog-ar croqué?”

Os soldados ficaram em silêncio e ol-haram para Alice, pois evidentemente a per-gunta era para ela.

“Sei!” gritou Alice.“Então venha!” urrou a Rainha, e Alice

se juntou ao cortejo, muito curiosa do queiria acontecer em seguida.

“É… é um lindo dia!” disse uma voztímida ao seu lado. Ela estava caminhadojunto do Coelho Branco, que espiava seurosto com ansiedade.

“Lindo”, concordou Alice. “Onde está aDuquesa?”

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“Psss! Psss!” disse o Coelho falando de-pressa e baixinho. Olhou aflito por sobre oombro enquanto falava; depois, na pontados pés, a boca junto à orelha de Alice,cochichou: “Foi condenada à morte.”

“Por quê?” disse Alice.“Você disse ‘Que pena?’”, o Coelho

perguntou.“Não, não disse”, respondeu Alice. “Não

acho que isso seja uma pena. Disse ‘Porquê?’”

“Deu um sopapo nas orelhas daRainha…”, o Coelho começou. Alice soltouum gritinho de riso. “Oh, psss!” sussurrou oCoelho, amedrontado. “A Rainha vai ouvir!Sabe, ela chegou muito atrasada, e a Rainhadisse…”

“Todos para os seus lugares!” esbravejoua Rainha, e foi um corre-corre de gente paratodo lado, uns tropeçando nos outros; emum ou dois minutos, porém, estavam a

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postos, e o jogo começou. Alice pensou quenunca vira um campo de croqué tão curiosona sua vida; era cheio de saliências e bura-cos; as bolas eram ouriços vivos, os malhosflamingos vivos, e os soldados tinham de sedobrar e se equilibrar sobre as mãos e os péspara formar os arcos.

A maior dificuldade, Alice achou aprincípio, era manobrar seu flamingo; con-seguiu aninhar o corpo dele bastante con-fortavelmente debaixo do braço, com as per-nas penduradas para fora, mas, a maioria

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das vezes, justamente quando tinhaconseguido fazê-lo retesar bem o pescoço eia dar uma tacada no ouriço com a cabeçadele, ele se revirava todo e a fitava com umaexpressão tão perplexa que ela não con-seguia deixar de cair na gargalhada; e,quando tinha conseguido fazê-lo baixar acabeça e ia tentar de novo, era exasperanteconstatar que o ouriço se desenroscara e es-tava se arrastando para longe. Afora tudoisso, geralmente havia uma saliência ou umburaco na direção em que queria lançar oouriço, e, como os soldados dobrados es-tavam a todo instante se levantando e cam-inhando para outras partes do campo, Alicelogo chegou à conclusão de que aquele erarealmente um jogo muito difícil.

Os jogadores jogavam todos ao mesmotempo, sem esperar pela sua vez, discutindosem parar e disputando os ouriços; a Rainhalogo ficou enfurecida, indo de um lado paraoutro batendo o pé e gritando “Cortem a

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cabeça dele!” ou “Cortem a cabeça dela!” aintervalos de cerca de um minuto.

Alice começou a se sentir muito apreens-iva. Era verdade que até agora não tiveranenhum conflito com a Rainha, mas sabiaque isso podia acontecer a qualquer in-stante; “e nesse caso”, pensou, “que seria demim? Eles são horrivelmente chegados a de-capitar as pessoas aqui; o que me admira éque ainda sobre alguém vivo!”

Estava olhando em volta, procurando ummeio de fugir e pensando se conseguiria es-capar sem ser vista, quando notou uma curi-osa aparição no ar: de início ficou muito in-trigada, mas, depois de observar por um oudois minutos, concluiu que era um sorriso, edisse para si mesma: “É o Gato de Cheshire;agora vou ter com quem conversar.”

“Como vai passando?” disse o Gato, as-sim que teve boca suficiente para falar.

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Depois de esperar até os olhos aparecer-em, Alice fez um aceno de cabeça. (“Nãoadianta falar com ele”, pensou, “antes que asorelhas apareçam, pelo menos uma delas.”)Mais um minuto, e a cabeça toda surgiu.Alice pôs seu flamingo no chão e começou adescrever o jogo, muito contente por ter al-guém para ouvi-la. O Gato, ao que parecia,achou que já havia o bastante de si à vista emais nada apareceu.

“Não acho que joguem nada limpo”,Alice começou, num tom bastante queixoso,“e todos brigam tão horrivelmente que nãose consegue ouvir a própria voz… e parecemnão ter nenhuma regra em particular; pelomenos, se têm, ninguém as segue… e depoistodas as coisas são vivas, e você não fazideia da confusão que isso dá; por exemplo,o arco que eu tinha de transpor em seguidaestava lá do outro lado do campo… e bemna hora que joguei meu ouriço contra o da

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Rainha, o ouriço dela saiu correndo ao ver omeu chegando!”

“O que acha da Rainha?” perguntou oGato em voz baixa.

“Não acho nada”, disse Alice. “É tão ex-tremamente…” — nesse instante percebeuque a Rainha estava logo atrás dela, ou-vindo; então continuou: “…provável que elavença, que mal vale a pena terminar o jogo.”

A Rainha sorriu e se afastou.“Com quem está falando?” indagou o Rei,

aproximando-se de Alice e olhando para acabeça do Gato com muita curiosidade.

“É um amigo meu… um Gato deCheshire”, disse Alice. “Permita-me que lheapresente.”

“Não gosto nada da cara dele”, falou oRei; “contudo, ele pode me beijar a mão sequiser.”

“Prefiro não”, observou o Gato.

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“Não seja impertinente”, disse o Rei, “enão me olhe desse jeito!” Pôs-se atrás deAlice enquanto falava.

“Um gato pode olhar para um rei”, disseAlice. “Li isso em algum livro, mas não melembro qual.”

“Bem, ele deve ser banido”, decidiu o Reicom muita firmeza, e chamou a Rainha, queestava passando nesse momento: “Minhacara! Quero que mande banir este gato!”

A Rainha só tinha uma maneira de re-solver todas as dificuldades, grandes oupequenas. “Cortem-lhe a cabeça!” ordenou,sem pestanejar.

“Eu mesmo vou buscar o carrasco”,propôs o Rei, impaciente, e saiu correndo.

Alice achou que não era má ideia voltare ver como ia o jogo, quando ouviu a voz daRainha à distância, gritando com furor. Já aouvira sentenciar três jogadores à execuçãopor terem perdido a vez, e não gostou nada

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da aparência das coisas, pois o jogo estavanuma tal balbúrdia que nunca sabia se eraou não a sua vez. Resolveu ir procurar o seuouriço.

O ouriço estava envolvido numa lutacom outro ouriço, o que pareceu a Aliceuma excelente oportunidade para lançar umcontra o outro com seu malho. A única di-ficuldade era que seu flamingo tinha idopara o outro lado do jardim, onde podia vê-lo fazendo tentativas bastante desajeitadasde voar para uma árvore.

Quando agarrou o flamingo e o levou devolta, a luta acabara e os dois ouriços tin-ham sumido de vista; “mas não tem muitaimportância”, pensou Alice, “já que todos osarcos saíram deste lado do campo.” Meteuseu flamingo debaixo do braço para que nãoescapasse de novo e voltou para mais doisdedos de prosa com seu amigo.

Ao se aproximar do Gato de Cheshire,teve a surpresa de encontrar uma multidão

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em torno dele: o carrasco, o Rei e Rainha es-tavam discutindo, todos falando ao mesmotempo, enquanto os demais guardavam ab-soluto silêncio e pareciam muitoapreensivos.

Assim que Alice apareceu, todos três re-correram a ela para resolver a questão, erepetiram-lhe seus pontos de vista, embora,como falavam todos ao mesmo tempo, lhetenha parecido realmente muito difícil en-tender ao certo o que estavam dizendo.

O ponto de vista do carrasco era que nãose podia cortar uma cabeça fora a menosque houvesse um corpo do qual cortá-la; quenunca tinha feito coisa parecida antes e nãoia começar naquela altura da sua vida.

O ponto de vista do Rei era que tudo quetinha cabeça podia ser decapitado, e que oresto era despautério.

O ponto de vista da Rainha era que, senão se tomasse uma medida a respeito

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imediatamente, mandaria executar todomundo, sem exceção. (Foi esta última obser-vação que deixou todo o grupo tão sério epreocupado.)

A única coisa que ocorreu a Alice foidizer: “Ele pertence à Duquesa; deveriamperguntar a ela.”

“Ela está na prisão”, disse a Rainha aocarrasco; “traga-a aqui.” E o carrasco partiucomo uma flecha.

A cabeça do Gato começou a sumir assimque o carrasco se foi e, quando ele chegoude volta com a Duquesa, já sumira por com-pleto; diante disso o Rei e o carrascopuseram-se a correr freneticamente paracima e para baixo à procura dela, enquantoo resto do grupo voltava ao jogo.

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CAPÍTULO 9

A história da Tartaruga Falsa

“NÃO IMAGINA QUE PRAZER é vê-la de novo, meubenzinho!” disse a Duquesa, enquanto en-fiava o braço afetuosamente sob o de Alice esaíam caminhando juntas.

Alice ficou muito satisfeita por encontrá-la em disposição tão afável e pensou quetalvez tivesse sido só a pimenta que a torn-ara tão furibunda naquele encontro nacozinha.

“Quando eu for uma duquesa”, disse parasi mesma (é verdade que num tom não

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muito esperançoso), “não vou ter nenhumapimenta na minha cozinha. Uma sopa podemuito bem ficar boa sem pimenta… Talvezseja sempre a pimenta que torna as pessoasesquentadas”, continuou, muito contente deter encontrado um novo tipo de regra, “e ovinagre que as torna azedas… e a camomilaque as torna amargas… e… o caramelo e es-sas coisas que tornam as crianças suaves. Sóqueria que as pessoas soubessem disto: nãoseriam tão sovinas com bombons…”

A essa altura, esquecera por completo aDuquesa, e teve um ligeiro sobressalto aoouvir-lhe a voz junto ao ouvido. “Você estápensando em alguma coisa, minha cara, eisso a faz esquecer de falar. Neste instantenão posso lhe dizer qual é a moral disso,mas vou me lembrar daqui a pouquinho.”

“Talvez não tenha nenhuma”, Aliceatreveu-se a observar.

“Ora, vamos, criança!” disse a Duquesa.“Tudo tem uma moral, é questão de saber

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encontrá-la.” E enquanto falava se achegoumais a Alice.

Alice não gostou muito de ficar tão pertodela: primeiro, porque a Duquesa era muitofeia; e segundo porque tinha a altura certapara apoiar o queixo sobre o seu ombro eera um queixo desconfortavelmente pon-tudo. No entanto, como não queria ser indel-icada, suportou aquilo o melhor que pôde.

“O jogo está bem melhor agora”, disse,para alimentar um pouco a conversa.

“É mesmo”, concordou a Duquesa, “e amoral disso é… ‘Oh, é o amor, é o amor quefaz o mundo girar’.”

“Alguém disse”, Alice murmurou, “queele gira quando cada um trata do que é dasua conta.”

“Ah, bem! O significado é quase omesmo”, disse a Duquesa, fincando o queix-inho pontudo no ombro de Alice enquanto

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acrescentava: “e a moral disto é… ‘Cuide dosentido, que os sons cuidarão de si’.”

“Como gosta de achar moral nas coisas!”Alice pensou consigo mesma.

“Aposto que está pensando por que nãopasso o braço pela sua cintura”, disse aDuquesa após uma pausa; “a razão é que es-tou incerta quanto ao temperamento do seuflamingo. Devo fazer uma experiência?”

“Ele pode bicar”, Alice respondeu comcautela, não se sentindo nem um pouco ansi-osa por ver a experiência feita.

“É a pura verdade”, disse a Duquesa,“flamingos e mostarda picam. E a moraldisso é… ‘Aves da mesma plumagem voamjuntas’.”

“Só que mostarda não é ave”, Aliceobservou.

“Certo, como sempre”, disse a Duquesa;“que maneira clara você tem de expressar ascoisas!”

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“É um mineral, eu acho”, disse Alice.“Mas é claro”, disse a Duquesa, que pare-

cia pronta a concordar com tudo que Alicedizia; “há uma grande mina de mostardaaqui perto. E a moral disso é… ‘Quanto maiseu ganho, mais você perde’.”

“Oh, eu sei!” exclamou Alice, que nãoprestara atenção a este último comentário.“É um vegetal. Não parece, mas é.”

“Concordo plenamente com você”, dissea Duquesa; “e a moral disso é ‘Seja o que vo-cê parece ser’… ou, trocando em miúdos,‘Nunca imagine que você mesma não é outracoisa senão o que poderia parecer a outrosdo que o que você fosse ou poderia ter sidonão fosse senão o que você tivesse sido teriaparecido a eles ser de outra maneira’.”

“Acho que entenderia isso melhor”, disseAlice, muito polidamente, “se o visse por es-crito; assim ouvindo, não consigo acompan-har muito bem.”

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“Isso não é nada perto do que eu poderiadizer, se quisesse”, respondeu a Duquesa,encantada.

“Por favor, não se dê ao trabalho dedizer nada mais longo”, disse Alice.

“Ora, trabalho algum!” disse a Duquesa.“Dou-lhe de presente tudo que disse atéagora.”

“Que presente barato!” pensou Alice.“Ainda bem que não se dão presentes deaniversário desse tipo!” Mas não se arriscoua dizer isso.

“Pensando de novo?” perguntou aDuquesa, com nova fincada do seu queix-inho pontudo.

“Tenho o direito de pensar”, Alice re-spondeu bruscamente, pois estavacomeçando a ficar um pouco preocupada.

“Tanto direito”, disse a Duquesa, “quantoos porcos têm de voar; e a mo…”

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Mas nesse ponto, para grande surpresade Alice, a voz da Duquesa sumiu bem nomeio de sua palavra favorita, “moral”, e obraço que estava ligado ao dela começou atremer. Alice levantou os olhos, e lá estava aRainha diante delas, de braços cruzados,com uma carranca de arrepiar.

“Que belo dia, Majestade!” começou aDuquesa, a voz baixa e fraca.

“Ouça, estou lhe avisando”, gritou aRainha, batendo o pé no chão enquanto fa-lava; “ou você ou a sua cabeça devem desa-parecer, e já! Faça sua escolha!”

A Duquesa fez a sua escolha, desapare-cendo num instante.

“Vamos continuar com o jogo”, disse aRainha; Alice, apavorada demais para abrira boca, acompanhou-a lentamente de voltaao campo de croqué.

Os outros convidados tinham aproveit-ado a ausência da Rainha para descansar na

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sombra; assim que a viram, porém, correramde volta para o jogo, tendo a Rainhasimplesmente observado que um segundo deatraso lhes custaria a vida.

Durante todo o tempo em que jogaram, aRainha não parou de brigar com os outrosjogadores e de gritar: “Cortem a cabeçadele!” ou “Cortem a cabeça dela!” Os senten-ciados ficavam sob a guarda de soldados,que, é claro, para isso tinham de deixar deser arcos, de modo que, ao fim de uma meiahora, não sobrava nenhum arco, e todos osjogadores, exceto o Rei, a Rainha e Alice, es-tavam detidos e condenados à execução.

Então a Rainha parou de jogar, com-pletamente esbaforida, e perguntou a Alice:“Já esteve com a Tartaruga Falsa?”

“Não”, respondeu Alice. “Nem sei o que éuma Tartaruga Falsa.”

“É aquilo de que se faz a Sopa de Tar-taruga Falsa”, explicou a Rainha.

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“Nunca vi, nem ouvi falar disso”, disseAlice.

“Então venha”, chamou a Rainha, “e lhecontarei a história dela.”

Enquanto se afastavam juntas, Aliceouviu o Rei dizer baixinho ao grupo todo:“Estão todos perdoados.” “Opa! Isso é muitobom!”, disse consigo mesma, pois se sentiramuito infeliz com o número de execuçõesque a Rainha ordenara.

Logo toparam com um Grifo, dormindo asono solto ao sol. (Se você não souber o queé um Grifo, olhe a ilustração na página 65).“De pé, preguiçoso!” disse a Rainha. “E leveesta senhorita para ver a Tartaruga Falsa eouvir a história dela. Tenho de voltar paracuidar de algumas execuções que ordenei”; epartiu, deixando Alice sozinha com o Grifo.Alice não gostou muito da aparência da cri-atura, mas, tendo concluído que era tão se-guro ficar com ela quanto acompanharaquela Rainha cruel, esperou.

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O Grifo se sentou e esfregou os olhos; de-pois fitou a Rainha até que ela sumiu devista; em seguida disse com um risinho satis-feito, meio para si mesmo, meio para Alice:“Que engraçado!”

“Onde está a graça?” perguntou Alice.“Ora, nela”, disse o Grifo. “É tudo fantas-

ia dela: nunca executam ninguém. Vamos!”“Todo mundo aqui diz ‘vamos!’”, pensou

Alice enquanto o seguia devagar. “Nunca re-cebi tanta ordem em toda a minha vida,nunca!”

Não tinham ido muito longe quando av-istaram a Tartaruga Falsa a distância, sen-tada triste e solitária na saliência de umapedra, e, ao se aproximarem, Alice pôdeouvi-la suspirar, como se tivesse o coraçãopartido. Sentiu muita pena. “Qual é o prob-lema dela?” perguntou. O Grifo respondeu,quase com as mesmas palavras de antes: “É

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tudo fantasia dela: não tem problema nen-hum. Vamos!”

Aproximaram-se então da TartarugaFalsa, que os fitou com grandes olhos mare-jados de lágrimas, mas não disse nada.

“Esta senhorita aqui”, disse o Grifo, “pre-cisa conhecer sua história, precisa mesmo.”

“Eu lhe contarei”, disse a Tartaruga Falsanuma voz profunda, cavernosa, “sentem-seos dois, e não digam uma palavra até euterminar.”

Sentaram-se então, e ninguém falou poralguns minutos. Alice pensou consigo: “Nãovejo como ela pode terminar, se nem sequercomeça.” Mas esperou pacientemente.

“Antigamente”, disse a Tartaruga Falsacom um suspiro profundo, “eu era uma Tar-taruga de verdade.”

Essas palavras foram seguidas por umsilêncio muito longo, quebrado apenas poruma exclamação ocasional — “Hjcrrh!” —

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do Grifo e o soluçar constante e fundo daTartaruga Falsa. Alice estava a ponto de selevantar e dizer “Muito obrigada, Sir, porsua interessante história”, mas, como nãoconseguia deixar de acreditar que tinha devir mais alguma coisa, ficou quieta e nãodisse nada.

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“Quando éramos pequenos”, a TartarugaFalsa finalmente recomeçou, mais calma,embora ainda soluçando um pouquinho vezpor outra, “íamos à escola no mar. O mestreera um Cágado velho… nós o chamávamosde Tartarruga.”

“Por que o chamavam de Tartarruga, seele não era uma?” Alice perguntou.

“Nós o chamávamos de Tartarrugaporque tinha… tanta ruga!” respondeu aTartaruga, irritada; “realmente você é muitobronca!”

“Devia ter vergonha de fazer uma per-gunta tão simples”, acrescentou o Grifo; eem seguida os dois ficaram em silêncio, ol-hando para a pobre Alice, que teve vontadede se enfiar embaixo da terra. Por fim oGrifo disse à Tartaruga Falsa: “Adiante, com-panheira. Não vamos passar o dia inteironisso!” e ela prosseguiu com estas palavras:

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“Sim, íamos à escola no mar, embora vo-cê talvez não acredite…”

“Nunca disse isso!” interrompeu Alice.“Disse”, a Tartaruga Falsa respondeu.“Cale a boca!” acrescentou o Grifo antes

que Alice pudesse abri-la de novo. A Tar-taruga Falsa continuou.

“Tínhamos a melhor educação… de fato,íamos à escola todo dia…”

“Eu também ia à escola”, disse Alice;“não precisa ficar tão orgulhosa por isso.”

“Com extras?” perguntou a TartarugaFalsa, um pouquinho ansiosa.

“É”, disse Alice, “tínhamos aulas defrancês e música.”

“E de lavanderia?” insistiu a TartarugaFalsa.

“Claro que não!” indignou-se Alice.“Ah! Então a sua escola não era real-

mente boa”, disse a Tartaruga Falsa num

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tom de grande alívio. “Pois na nossa vinhaao pé da conta ‘Francês, música e lavanderia— extras’.”

“Com certeza não precisava muito disso”,Alice observou, “vivendo no fundo do mar.”

“Não pude me dar ao luxo de estudaressa matéria”, disse a Tartaruga Falsa comum suspiro. “Só fiz o curso regular.”

“E como era?” quis saber Alice.“Lentura e Estrita, é claro, para

começar”, respondeu a Tartaruga Falsa; “edepois os diferentes ramos da Aritmética:Ambição, Subversão, Desembelezação eDistração.”

“Nunca ouvi falar de ‘Desembelezação’”,Alice se atreveu a dizer. “O que é?”

O Grifo levantou as duas patas de sur-presa. “Como? Nunca ouviu falar dedesembelezação?” exclamou. “Sabe o que éembelezar, suponho?”

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“Sei”, disse Alice sem muita convicção;“significa… tornar… alguma coisa… maisbela.”

“Nesse caso”, continuou o Grifo, “se nãosabe o que é desembelezar, você é umabobalhona.”

Não se sentindo estimulada a fazer maisnenhuma pergunta sobre aquilo, Alice sevirou para a Tartaruga Falsa e disse: “Quemais tinha de estudar?”

“Bem, tínhamos Histeria”, respondeu aTartaruga Falsa, contando as matérias naspatas, “Histeria antiga e moderna, comMarografia; depois Desdém… o professor deDesdém era um congro velho, que ia lá umavez por semana: ele nos ensinava a Desden-har, Embolsar e Pingar a Alho.”

“Como era isso?” perguntou Alice.“Bem, não posso lhe mostrar pessoal-

mente”, disse a Tartaruga Falsa; “estou

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muito enferrujada. E o Grifo nuncaaprendeu.”

“Não tive tempo”, disse o Grifo, “Mas fizo curso clássico. O professor era um bag-rinho, ah, se era.”

“Nunca estudei com ele…”, comentou aTartaruga Falsa com um suspiro; “ensinavaLatido e Emprego, pelo que diziam.”

“É verdade, é verdade”, foi a vez de oGrifo suspirar; e as duas criaturas escond-eram a cara nas patas.

“E quantas horas de aula você tinha pordia?” indagou Alice, aflita para mudar deassunto.

“Dez horas no primeiro dia”, disse a Tar-taruga Falsa, “nove no seguinte, e assim pordiante.”

“Que programa curioso!” exclamou Alice.“Só assim você se prepara para uma car-

reira: aulas mais rápidas a cada dia”, obser-vou o Grifo.

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A ideia era inteiramente nova para Alicee ela refletiu um pouco a respeito antes defazer mais uma observação: “Nesse caso, nodécimo primeiro dia era feriado?”

“Claro que era”, disse a Tartaruga Falsa.“E como se arranjavam no décimo se-

gundo?” Alice insistiu, sôfrega.“Chega de falar sobre aulas”, o Grifo in-

terrompeu num tom decidido. “Agora contea ela alguma coisa sobre jogos.”

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CAPÍTULO 10

A Quadrilha da Lagosta

A TARTARUGA FALSA DEU UM SUSPIRO profundo e pas-sou o dorso de uma pata pelos olhos. Olhoupara Alice e tentou falar, mas, por umminuto ou dois, soluços lhe embargaram avoz. “Parece até que tem uma espinha nagarganta”, disse o Grifo, e pôs-se a sacudi-lae a esmurrá-la nas costas. Por fim a Tar-taruga Falsa recobrou a voz, e, com lágrimaslhe correndo pelas faces, recomeçou:

“Talvez você não tenha vivido muitotempo no mar…” (“Nunca”, disse Alice),“…e talvez nunca tenha sido apresentada a

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uma lagosta…” (Alice ia começando a dizer“Provei uma vez…”, mas engoliu a línguamais que depressa e disse: “Não, nunca”)“…então não pode imaginar que coisa deli-ciosa é uma Quadrilha da Lagosta!”

“Realmente, não”, disse Alice. “Que es-pécie de dança é essa?”

“Ora”, disse o Grifo, “primeiro se formauma fila ao longo da praia…”

“Duas filas!” exclamou a Tartaruga Falsa.“Focas, tartarugas, salmões e assim por di-ante; depois, quando você tiver acabado deremover toda a água-viva…”

“O que geralmente leva tempo”, inter-rompeu o Grifo.

“…dá dois passos à frente…”“Cada um de par com uma lagosta!” ex-

clamou o Grifo.“É claro”, disse a Tartaruga Falsa. “Dois

passos à frente, balancê…”

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“…troque de lagosta e se afaste namesma ordem”, continuou o Grifo.

“Depois, sabe”, continuou a TartarugaFalsa, “você joga…”

“As lagostas!” gritou o Grifo, dando umapirueta no ar.

“…no mar, o mais longe que puder…”“Nada atrás delas!” berrou o Grifo.“Dá um salto-mortal no mar!” exclamou

a Tartaruga Falsa, cabriolandofreneticamente.

“Troca de lagosta de novo!” esgoelou-seo Grifo.

“Volta à terra de novo, e a primeirafigura está terminada”, disse a TartarugaFalsa, abaixando a voz de repente; as duascriaturas, que tinham estado ali pulandocomo loucas aquele tempo todo, se sentaramde novo, tristonhas e cabisbaixas, e olharampara Alice.

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“Deve ser uma dança muito bonita”,disse Alice timidamente.

“Gostaria de ver um pouquinho dela?”,perguntou a Tartaruga Falsa.

“Sim, gostaria muito”, disse Alice.“Venha, vamos tentar a primeira figura!”

disse a Tartaruga Falsa ao Grifo. “Podemosdispensar as lagostas. Quem vai cantar?”

“Oh, você canta”, disse o Grifo. “Esquecia letra.”

Então começaram a dançar solenemente,dando voltas e voltas em torno de Alice, vezpor outra lhe pisando os pés quando pas-savam perto demais, e acenando com as pa-tas dianteiras para marcar o compasso, en-quanto a Tartaruga Falsa cantava, muitolenta e tristemente:

“Quer andar mais ligeirinho?” disse a merluzaao caracol.

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“Atrás de mim há um delfim, afobado prafestança.

Lampreias, linguados e lulas bailam alegres sob osol.

Na praia já nos esperam! Quer me dar estacontradança?

Você quer, ou não quer, quer ou não quer hojecomigo dançar?

Você quer, ou não quer, quer ou não quer hojecomigo dançar?

Ah, meu bem, você nem sonha que maravilhaserá,

Quando, com as lagostas, nos lançarem lá longeno mar!”

Respondeu o caracol, não sem certo mal-estar:“Jogado assim tão distante, receio que vá me

afogar”,Agradecia à merluza, mas iria declinar seu con-

vite pra dançar.Não iria, não podia, não iria, não podia hoje

com ela dançar.

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Não iria, não podia, não iria, não podia hojecom ela dançar.

“E daí que seja longe?” sua escamosa amigarespondeu.

“Existe outra praia, você não sabia?… Logo dolado de lá.

Se a Inglaterra some de vista… é que a Françaapareceu!

Sacuda esse medo, meu caracolzinho, e venhacomigo dançar.

Você quer, ou não quer, quer ou não quer hojecomigo dançar?

Você quer, ou não quer, quer ou não quer hojecomigo dançar?”

“Obrigada, é uma dança muito interess-ante de se ver”, disse Alice, feliz por veraquilo finalmente terminado; “e como gosteidessa curiosa canção sobre a merluza!”

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“Oh, quanto a merluzas”, disse a Tar-taruga Falsa, “elas… naturalmente já as viu,não?”

“Já”, disse Alice. “Vi merluzas váriasvezes no jant…” engoliu a língua rápido.

“Não sei onde Jant pode ser”, disse aTartaruga Falsa, “mas se já as viu tantasvezes, claro que sabe como são.”

“Acredito que sim”, Alice respondeu pon-deradamente. “Têm a cauda na boca… e sãotodas recobertas de farinha de rosca.”

“Está enganada quanto à farinha de ro-sca”, disse a Tartaruga Falsa. “A farinhasairia toda no mar. Mas elas têm a cauda naboca; e a razão é…” Aqui a Tartaruga Falsabocejou e fechou os olhos. “Conte a elasobre a razão e tudo o mais”, disse ao Grifo.

“A razão é”, disse o Grifo, “que elasqueriam ir com as lagostas para a dança.Então foram jogadas no mar. Então sofreramuma queda muito longa. Então prenderam a

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cauda firme na boca. Então não conseguirammais tirá-las de lá. É isto.”

“Muito obrigada”, Alice agradeceu, “émuito interessante. Nunca aprendi tantosobre merluzas antes.”

“Posso lhe contar mais ainda, se quiser”,sugeriu o Grifo. “Sabe por que se chamammerluzas?”

“Nunca pensei sobre isso”, admitiu Alice.“Por quê?”

“Porque servem para merlustrar botas esapatos”, o Grifo respondeu muitosolenemente.

Alice ficou inteiramente pasma. “Merlus-trar botas e sapatos”, repetiu num tom deperplexidade.

“Ora, o que você faz com seus sapatos?”quis saber o Grifo. “Quero dizer, para deixá-los tão lustrosos?”

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Alice baixou os olhos para eles e pensouum pouco antes de responder. “São lustra-dos, eu creio.”

“Pois no fundo do mar”, continuou oGrifo com voz grave, “eles são merlustradospara ficar merluzentes. Agora você sabe.”

“E de que eles são feitos?” Alice pergun-tou, muito curiosa.

“De linguado, e amarrados com enguias,é claro”, o Grifo respondeu bastante impa-ciente; “como até um tatuí teria podido lheinformar.”

“Se eu fosse a merluza”, disse Alice, cu-jos pensamentos continuavam presos à can-ção, “teria dito ao delfim: ‘Fique longe, porfavor: não o queremos conosco!’”

“Tinham de aceitar a companhia dele”,disse a Tartaruga Falsa; “nenhum peixe dejuízo vai a qualquer lugar sem um delfim.”

“É mesmo?” espantou-se Alice.

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“Claro que não”, disse a Tartaruga Falsa.“Ora, se um peixe viesse me contar que es-tava saindo de viagem, eu diria: ‘Com quedelfim?’”

“Não quer dizer ‘com que fim’?” pergun-tou Alice.

“Quero dizer o que digo”, respondeu aTartaruga Falsa num tom melindrado. E oGrifo acrescentou: “Vamos, agora conte-nosalgumas das suas aventuras.”

“Eu poderia lhes contar minhas aventur-as… começando por esta manhã”, disseAlice um pouco tímida; “mas não adiantavoltar a ontem, porque eu era uma pessoadiferente.”

“Explique isso tudo”, disse a TartarugaFalsa.

“Não, não! Primeiro as aventuras!”impacientou-se o Grifo. “Explicações tomamum tempo medonho.”

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Assim, Alice começou a lhes contar suasaventuras desde o momento em que viu oCoelho Branco pela primeira vez. No começoaquilo a deixou um pouco nervosa — asduas criaturas estavam tão perto dela, umade cada lado, e abriam tanto os olhos e asbocas —, mas à medida que contava ganhoucoragem. Seus ouvintes ficaram imóveis atéela chegar à parte em que recitara “Estávelho, Pai William” para a Lagarta e as palav-ras tinham saído todas diferentes; nesseponto a Tartaruga Falsa respirou fundo e de-clarou: “Isso é muito curioso.”

“Eu diria que mais curioso não poderiaser”, disse o Grifo.

“Saiu tudo diferente”, a Tartaruga Falsarepetiu, pensativa. “Gostaria de ouvi-la recit-ando alguma coisa agora. Mande-acomeçar.” Olhou para o Grifo, como seachasse que ele tinha algum tipo de autorid-ade sobre Alice.

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“Levante-se e recite ‘Esta é a voz dopreguiçoso’”, ordenou o Grifo.

“Como as criaturas dão ordens à gente enos fazem decorar lições!” pensou Alice. “Écomo se eu estivesse na escola neste mo-mento.” Contudo, levantou-se e começou arecitar, mas tinha a cabeça tão cheia daQuadrilha da Lagosta que mal sabia o queestava dizendo, e as palavras saíram real-mente muito esquisitas:

Esta é a voz da Lagosta; eu a ouvi declarar:“Você me torrou no forno e me deixou sapecar.”Graciosa, elegante, com a fuça, e de través,Dá laços, se abotoa e separa as pontas dos pés.

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Quando a areia está seca, ela exulta comoninguém,

E fala de todo tipo de peixe com muito desdém.Mas quando é maré cheia, e o tubarão se

aproxima,Ela perde a tramontana, e já não acha mais

rima.

“Isso é diferente do que eu costumava re-citar quando criança”, comentou o Grifo.

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“Bem, eu nunca ouvi isso antes”, disse aTartaruga Falsa; “mas parece um disparatedescomunal.”

Alice não disse nada; sentara-se com acabeça nas mãos, perguntando a si mesma sealgum dia alguma coisa voltaria a acontecerde maneira natural.

“Gostaria que me explicasse isso”, pediua Tartaruga Falsa.

“Ela não tem como explicar”,impacientou-se o Grifo. “Continue com overso seguinte.”

“Mas e aquilo sobre as pontas dos pés?Entende? Como ela podia separar as pontasdos pés com a fuça?”

“É a primeira posição no balé”, ensinouAlice; mas estava terrivelmente desorientadacom aquilo tudo e só queria mudar deassunto.

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“Continue com o próximo verso”, repetiuo Grifo, impaciente; “começa com ‘passeipelo seu jardim’.”

Alice não ousou desobedecer e, emborativesse certeza de que ia sair tudo errado,continuou, com uma voz trêmula:

Passei pelo seu jardim e notei que atrás da portaA Coruja e a Pantera dividiam uma torta.A Pantera, bem gulosa, comia massa e recheio,Enquanto para a Coruja sobravam os caroços do

meio.Quando a torta acabou, a Coruja não pôde

sequerTer por recompensa uma lambida na colher.Enquanto isso a Pantera com a faca e o garfo

ficou,E arrematou o banquete…

“De que adianta recitar toda essa lenga-lenga”, interrompeu a Tartaruga Falsa, “se

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você não vai explicando a cada passo? É delonge a coisa mais atrapalhada que já ouvi!”

“É, acho melhor você parar”, disse oGrifo — o que Alice fez com muito prazer.

“Vamos tentar mais uma figura da Quad-rilha da Lagosta?” propôs o Grifo. “Ou vocêpreferiria que a Tartaruga Falsa cantasseuma canção?”

“Oh, uma canção, por favor, se a Tar-taruga Falsa quiser nos fazer essa gentileza”,Alice respondeu, tão sôfrega que o Grifocomentou, num tom bastante ofendido:“Hum! Gosto não se discute! Cante a ‘Sopade Tartaruga’ para ela, certo, companheira?”

A Tartaruga Falsa suspirou profunda-mente, e começou a cantar, numa voz entre-meada por soluços:

Que bela Sopa, suculenta e trigueira,Espera por nós na quente sopeira!Quem por ela não suspira, não diz opa?

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Sopa da noite, que bela Sopa!Sopa da noite, que bela Sopa!Ooooó… Bela Sooo… paa!Ooooó… Bela Sooo… paa!Sooo… paa da nooo… iii… teee,Bela, bela Sopa!Que bela Sopa! Quem quer saber de pastel,Assado ou outro pitéu?Uma sopinha fumegando no prato,Não é de se tirar o chapéu?Ooooó… Bela Sooo… paa!Ooooó… Bela Sooo… paa!Sooo… paa da nooo… iii… teee,Ooooó BEEELA SOOPA!

“O refrão de novo!” gritou o Grifo, e aTartaruga Falsa estava começando a repeti-lo quando se ouviu um brado à distância: “Ojulgamento está começando!”

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“Vamos!” gritou o Grifo, e, tomandoAlice pela mão, saiu correndo, sem esperarpelo fim da canção.

“Que julgamento é esse?” perguntouAlice, ofegante, enquanto corria; mas o Griforespondeu apenas: “Vamos!” e correu aindamais depressa, enquanto, cada vez maistenuemente, carregadas pela brisa que osseguia, lhes chegavam as palavrasmelancólicas:

Sooo… paa da nooo… iii… teee,Bela, bela Sopa!

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CAPÍTULO 11

Quem roubou as tortas?

QUANDO CHEGARAM, o Rei e a Rainha de Copasestavam sentados em seus tronos, com umamultidão reunida à sua volta — toda sortede avezinhas e animaizinhos, bem como obaralho completo: o Valete estava postadodiante deles, agrilhoado, com um soldado decada lado para vigiá-lo; perto do rei estava oCoelho Branco, uma corneta numa das mãose um rolo de pergaminho na outra. Exata-mente no centro do tribunal havia umamesa, com uma grande travessa de tortassobre ela: pareciam tão boas que Alice ficou

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com água na boca. “Gostaria que já tivessemencerrado o julgamento”, pensou, “e passas-sem aos comes e bebes!” Mas como issoparecia de todo improvável, começou a ob-servar tudo à sua volta, para matar o tempo.

Alice nunca estivera num tribunal antes,mas lera sobre eles em livros, ficando muitosatisfeita ao descobrir que sabia o nome dequase tudo ali. “Aquele é o juiz”, disse con-sigo, “por causa da sua enorme peruca.”

Aliás, o juiz era o Rei; e, como usava acoroa por cima da peruca (olhe antes doSumário, se quiser saber como fazia), nãoparecia muito à vontade e com certezaaquilo não lhe era apropriado.

“E ali está a banca dos jurados”, pensouAlice, “e aquelas doze criaturas…” (era obri-gada a dizer “criaturas”, porque algumaseram animais e algumas eram aves)“suponho que sejam os jurados.” Repetiu es-ta última palavra duas ou três vezes para simesma, com muito orgulho: pois achava,

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com razão, que muito poucas menininhas dasua idade sabiam o significado daquilo tudo.Mas “membros do júri” estaria igualmentecerto.

Os doze jurados estavam todos muito at-arefados, escrevendo em suas lousas. “O queestão fazendo?” Alice sussurrou ao Grifo.“Não podem ter nada para escrever antesque o julgamento comece.”

“Estão escrevendo seus nomes”, o Grifosussurrou em resposta, “por medo deesquecê-los antes do fim do julgamento.”

“Que tolos!” Alice começou num tomalto, indignado, mas parou de imediato,porque o Coelho Branco disse em altos bra-dos: “Silêncio no tribunal!” e o Rei pôs osóculos, olhando em volta para descobrir sehavia alguém falando.

Alice conseguiu ver, tão bem como se es-tivesse espiando sobre os ombros deles, quetodos os jurados estavam escrevendo “que

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tolos!” em suas lousas, e pôde perceber atéque um deles não sabia escrever “tolos” eteve de perguntar ao vizinho. “Que bela em-brulhada vão aprontar em suas lousas antesque o julgamento termine!” pensou Alice.

Um dos jurados tinha um giz que rangia.Isso, claro, Alice não podia suportar. Deu avolta no tribunal, plantou-se atrás dele elogo achou uma oportunidade de passar amão no giz. Fez isso com tal rapidez que opobre juradozinho (era Bill, o Lagarto) nãoconseguiu entender o que fora feito dele; as-sim, após procurar à sua volta, viu-se obri-gado a escrever com um dedo pelo resto dodia — o que de pouco adiantava, já que nãoficava marca nenhuma na lousa.

“Arauto, leia a acusação!” disse o Rei.

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A isso o Coelho Branco deu três soprosna corneta, desenrolou o pergaminho e leu:

A Rainha de Copas fez várias tortasTodas numa só fornada.

O Valete de Copas furtou as tortasE não deixou sobrar nada!

“Pronunciem seu veredito”, o Rei disseao júri.

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“Ainda não, ainda não”, interrompeu oCoelho, afobado. “Há muito que fazer antesdisso!”

“Convoque a primeira testemunha”, disseo Rei; e o Coelho Branco, depois de trêstoques de corneta, bradou: “Primeiratestemunha!”

A primeira testemunha era o Chapeleiro.Chegou com uma xícara de chá numa dasmãos e um pedaço de pão com manteiga naoutra. “Perdoe-me, Majestade”, começou,“por trazer isto, mas ainda não tinha ter-minado meu chá quando fui convocado.”

“Pois devia ter terminado”, disse o Rei.“Quando começou?”

O Chapeleiro olhou para a Lebre deMarço, que o havia acompanhado aotribunal, de braço dado com o Caxinguelê.“Dia catorze de março, penso eu.”

“Quinze”, corrigiu a Lebre de Março.“Dezesseis”, acrescentou o Caxinguelê.

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“Anotem isto”, o Rei disse ao júri, e osjurados anotaram animadamente as trêsdatas nas suas lousas e em seguida assomaram, convertendo o resultado em xelinse pence.

“Tire o chapéu”, disse o Rei aoChapeleiro.

“Não é meu”, disse o Chapeleiro.“Roubado!” exclamou o rei, voltando-se

para os jurados, que instantaneamente fizer-am um apontamento do fato.

“São todos para vender”, acrescentou oChapeleiro à guisa de explicação; “nenhumme pertence. Sou um chapeleiro.”

Aqui a Rainha pôs os óculos e cravou osolhos no Chapeleiro, que se tornou pálido eirrequieto.

“Preste o seu depoimento”, disse o Rei;“e não fique nervoso, ou vou ter de mandarexecutá-lo no mesmo instante.”

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Isso não pareceu encorajar muito atestemunha: ficou de pernas bambas, ol-hando apreensivo para a Rainha, e na suaconfusão arrancou fora com uma mordidaum bom naco da xícara em vez do pão commanteiga.

Nesse exato momento Alice teve umasensação curiosíssima, que a deixou muitointrigada até entender o que era: estavacomeçando a crescer de novo. A princípioachou que teria de se levantar e sair dotribunal; pensando melhor, porém, decidiu

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ficar onde estava enquanto houvesse espaçopara ela.

“Gostaria que não me apertasse tanto”,disse o Caxinguelê, que estava sentado aolado dela. “Mal posso respirar.”

“Não posso evitar”, respondeu Alicemuito docilmente. “Estou crescendo.”

“Você não tem o direito de crescer aqui”,avisou o Caxinguelê.

“Não diga tolice”, disse Alice, mais atre-vida; “não sabe que também estácrescendo?”

“É, mas cresço num ritmo razoável”, pon-derou o Caxinguelê, “não dessa maneira ab-surda.” E levantou-se, muito amuado, indosentar-se do outro lado do tribunal.

Durante todo esse tempo a Rainha nãoparara de olhar fixo para o Chapeleiro e,justo quando o Caxinguelê estava atravess-ando o tribunal, disse a um dos esbirros:“Traga-me a lista dos cantores no último

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concerto!”, ao que o desditado Chapeleirotremeu tanto que jogou longe os doissapatos.

“Preste seu depoimento”, repetiu o Rei,irritado, “ou o mando executar, estejanervoso ou não.”

“Sou um pobre coitado, Majestade”,começou o Chapeleiro, numa voz trêmula,“e ainda não tinha começado o meu chá…não faz mais de uma semana… e como opão com manteiga estava rareando tanto… eo cintilar da bandeja…”

“Sem tirar do quê?” perguntou o Rei.“Cin-ti-lar”, o Chapeleiro corrigiu.“Claro, sem tirar o chá do lar!” disse o

Rei rispidamente. “Pensa que sou um asno?Adiante!”

“Sou um pobre coitado”, o Chapeleirocontinuou, “e quase tudo ficou cintilandodepois disso… só que a Lebre de Marçodisse…”

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“Eu não!” a Lebre de Março se apressou ainterromper.

“Disse sim!” insistiu o Chapeleiro.“Eu nego!” disse a Lebre de Março.“Ela nega”, disse o Rei; “omitam essa

parte.”“Bem, seja como for, o Caxinguelê

disse…”, continuou o Chapeleiro, olhandoansioso à sua volta para ver se também oCaxinguelê ia negar aquilo; mas ele não ne-gou nada, pois dormia a sono solto.

“Em seguida”, continuou o Chapeleiro,“cortei mais um pedaço de pão commanteiga…”

“Mas o que disse o Caxinguelê?” um dosjurados perguntou.

“Disso eu não me lembro”, respondeu oChapeleiro.

“Tem de se lembrar”, observou o Rei, “oumando executá-lo.”

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O infeliz Chapeleiro deixou cair sua xí-cara de chá e o pão com manteiga e se pôssobre um joelho. “Sou um pobre coitado,Majestade”, começou.

“É um pobre orador!” disse o Rei.Aqui um dos porquinhos-da-índia

aplaudiu e sua manifestação foi imediata-mente sufocada pelos esbirros. (Vou explicarcomo isso foi feito, para que entendam bemo que a palavra quer dizer: eles tinham umgrande saco de cânhamo; enfiaram o por-quinho dentro, de cabeça para baixo, amar-raram a boca com barbantes e se sentaramem cima.)

“Gostei de ver isso”, pensou Alice. “Litantas vezes nos jornais, no fim dos julga-mentos: ‘Houve algumas tentativas deaplaudir, mas foram imediatamente sufoca-das pelos esbirros’, e até agora nunca tinhaentendido o que queria dizer.”

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“Se isso é tudo que tem a dizer, podedescer”, prosseguiu o Rei.

“Não posso descer mais”, disse oChapeleiro; “estou no chão, como pode ver.”

“Então pode se sentar!” o Rei respondeu.Neste ponto o outro porquinho-da-índia

aplaudiu, e sua manifestação foi sufocada.“Pronto, acabaram-se os porquinhos-da-

índia”, pensou Alice. “Agora as coisas vãocorrer melhor.”

“Eu mal tinha terminado o meu chá”,disse o Chapeleiro, com uma expressão ansi-osa, para a Rainha, que estava lendo a listade cantores.

“Está dispensado”, disse o Rei, e oChapeleiro chispou do tribunal, sem se dartempo nem para calçar os sapatos.

“…e corte-lhe a cabeça lá fora”, a Rainhaacrescentou para um dos esbirros. Mas antesque este pudesse chegar à porta oChapeleiro já sumira de vista.

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“Convoque a próxima testemunha!” disseo Rei.

A testemunha seguinte era a cozinheirada Duquesa. Trazia a pimenteira na mão, eAlice adivinhou quem era antes mesmo queela entrasse no tribunal, quando viu pessoasque estavam perto da porta começarem to-das a espirrar ao mesmo tempo.

“Preste seu depoimento”, disse o Rei.“Não presto”, disse a cozinheira.O Rei lançou um olhar aflito para o

Coelho Branco, que disse baixinho: “Deve in-terrogar rigorosamente esta testemunha,Majestade.”

“Bem, se devo, devo”, disse o Rei, comum ar tristonho, e, após cruzar os braços equase dar um nó na cara de tanto amarrá-lapara a cozinheira, perguntou com uma vozcavernosa: “De que são feitas as tortas?”

“Pimenta, principalmente”, respondeu acozinheira.

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“Melado”, disse uma voz sonolenta atrásdela.

“Prendam esse Caxinguelê”, a Rainhaguinchou. “Decapitem esse Caxinguelê! Re-tirem esse Caxinguelê do Tribunal!Sufoquem-no! Torturem-no! Arranquem-lheos bigodes!”

Por alguns minutos o tribunal inteirovirou um pandemônio, todos tentando ex-pulsar o Caxinguelê, e, quando finalmentesossegaram, a cozinheira tinha desaparecido.

“Não faz mal!” disse o Rei, aparentandogrande alívio. “Convoque a próximatestemunha.” E acrescentou em voz maisbaixa para a Rainha: “Francamente, minhacara, você deve inquirir a próximatestemunha. Isso me dá dor na testa!”

Alice observou o Coelho Branco en-quanto ele revirava a lista, muito curiosapara saber quem seria a próximatestemunha, “…pois ainda não reuniram

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muitas provas”, disse para si mesma. Qualnão foi sua surpresa quando o CoelhoBranco leu, forçando ao máximo sua voz-inha esganiçada, o nome “Alice”!

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Marcos
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CAPÍTULO 12

O depoimento de Alice

“AQUI!” GRITOU ALICE, esquecendo por completo,na excitação do momento, o quanto tinhacrescido nos últimos minutos, e se levantoucom tal afobação que derrubou a banca dosjurados com a barra da saia, jogando todoseles sobre as cabeças da assistência, em-baixo, e lá ficaram eles estatelados, lem-brando muito a Alice um aquário de peixin-hos dourados que derrubara por acidente nasemana anterior.

“Oh, mil perdões!” exclamou com grandeconsternação, e começou a recolhê-los o

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mais depressa que podia, pois não conseguiatirar da cabeça o acidente dos peixinhosdourados; alguma coisa lhe dizia que, se nãofossem reunidos imediatamente e postos devolta na banca dos jurados, morreriam.

“O julgamento não pode prosseguir”,disse o Rei numa voz muito grave, “até quetodos os jurados tenham retornado a seusdevidos lugares… todos”, repetiu com muitaênfase, lançando um olhar bravo para Alice.

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Alice olhou para a banca dos jurados eviu que, na sua pressa, colocara o Lagarto decabeça para baixo, e o pobre bichinho estavaabanando a cauda, muito triste, completa-mente incapaz de se mexer. Apressou-se apegá-lo de novo, e desvirou-o; “não que isso

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signifique muito”, disse para si mesma;“tenho a impressão de que vai ser tão útil nojulgamento de cabeça para cima quanto parabaixo.”

Assim que se recobraram um pouco dochoque do tombo e suas lousas e gizes foramencontrados e devolvidos, os juradospuseram-se a trabalhar com muita diligênciana redação da história do acidente, com aúnica exceção do Lagarto, que parecia tran-stornado demais para fazer alguma coisaalém de ficar lá de boca aberta, fitando oteto do tribunal.

“O que você sabe sobre este caso?” per-guntou o Rei a Alice.

“Nada”, respondeu Alice.“Absolutamente nada?” insistiu o Rei.“Absolutamente nada”, confirmou Alice.“Isto é muito importante”, disse o Rei,

voltando-se para os jurados. Eles mal es-tavam começando a escrever isso em suas

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lousas quando o Coelho Branco inter-rompeu: “Desimportante, Vossa Majestadequer dizer, é claro”, disse em tom muito re-speitoso, mas franzindo o cenho e fazendocaretas para ele enquanto falava.

“Desimportante, é claro, eu quis dizer”, orei apressou-se a dizer, e continuou para simesmo, mais baixo, “importante… desim-portante… desimportante… importante…”,como se estivesse experimentando para verqual das palavras soava melhor.

Alguns membros do júri anotaram “im-portante”, e alguns, “desimportante”. Alicepôde ver isso, pois estava perto o bastantepara espiar suas lousas. “Mas isso não tem omenor propósito”, refletiu.

Nesse momento o Rei, que por algumtempo estivera escrevendo atarefado em seubloco de anotações, gritou: “Silêncio!” e leude seu bloco: “Regra Quarenta e Dois. Todasas pessoas com mais de um quilômetro e meiode altura devem se retirar do tribunal.”

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Todos olharam para Alice.“Não tenho um quilômetro e meio de al-

tura”, disse ela.“Tem sim”, disse o Rei.“Tem quase três quilômetros”, acres-

centou a Rainha.“Bem, seja como for, não vou sair”, disse

Alice; “aliás, essa regra não é válida: vocêacaba de inventá-la.”

“É a regra mais antiga do livro”, obser-vou o Rei.

“Então deveria ser a Número Um”, disseAlice.

O Rei ficou pálido e fechou seu blocorapidamente. “Pronunciem seu veredito”,disse ao júri numa voz baixa e trêmula.

“Se me permite, Majestade, há mais indí-cios a examinar”, disse o Coelho Branco,muito afobado, dando um pulo para a

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frente: “Este documento acaba de serapreendido.”

“O que há nele?” indagou a Rainha.“Ainda não o abri”, respondeu o Coelho

Branco, “mas parece ser uma carta, escritapelo prisioneiro para… para alguém.”

“Disso não há dúvida”, disse o Rei, “amenos que tivesse sido escrita para nin-guém, o que não é comum, como sabe.”

“A quem está endereçada?” inquiriu umdos jurados.

“Simplesmente não está endereçada”,disse o Coelho Branco; “de fato, não há nadaescrito do lado de fora.” Desdobrou o papelenquanto falava, e acrescentou: “Afinal decontas, não é uma carta. É um conjunto deversos.”

“Estão escritos com a letra do pri-sioneiro?” perguntou outro dos jurados.

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“Não, não estão”, disse o Coelho Branco,“e isso é o que têm de mais esquisito.” (Todoo júri parecia pasmo.)

“Ele deve ter imitado a letra de outrapessoa”, disse o Rei. (Todo o júri se ilumin-ou de novo.)

“Por favor, Majestade”, apelou o Valete,“não escrevi isso e não podem provar queescrevi: não há nenhuma assinatura no fim.”

“Se você não assinou isso”, disse o Rei,“as coisas só pioram. Só podia ter má in-tenção, ou teria assinado, como um homemde bem.”

A isto se seguiram aplausos gerais: era aprimeira coisa realmente sagaz que o Reidissera aquele dia.

“Isso prova a culpa dele”, disse a Rainha.“Não prova coisa alguma!” exclamou

Alice. “Ora, nem sabem do que tratam osversos!”

“Leia-os”, disse o Rei.

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O Coelho Branco pôs os óculos. “Poronde devo começar, por favor, Majestade?”perguntou.

“Comece pelo começo,” disse o Reigravemente, “e prossiga até chegar ao fim;então pare.”

Fez-se um silêncio de morte no tribunalenquanto o Coelho Branco lia estes versos:

Soube que de mim com ela falasteE com ele foste me intrigar,

Ela disse que tenho engenho e arte,Só é pena que não sei nadar.

Ele mandou dizer que eu partira(Sabemos que tinha razão).

Se ela descobrisse a mentira,Qual seria tua situação?

Dei uma pra ela, pra ele dei três;Tu nos deste cinco ou mais.

Todas voltaram dele outra vez

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Mas a mim não chegaram jamais.Se acaso em toda essa questão

Ela ou eu andássemos metidos,Ele sabe que os livraria da prisão

Plenamente absolvidos.Sabe, eu andava desconfiado

(Antes do teu ataque)Que tu trocavas de lado

Entre ele, eu e nós a cada baque.Não lhe contes que ela lhes deu sua

aprovação,Pois este sempre será

Um segredo, guardado no coração,Entre ti e teu amigo cá.

“É o depoimento mais importante queouvimos”, disse o Rei, esfregando as mãos;“portanto agora deixemos o júri…”

“Se alguém conseguir explicar esses ver-sos”, disse Alice (crescera tanto nos últimos

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minutos que não sentia nem um pouquinhode medo de interrompê-lo), “dou-lhe seispence. Eu não acredito que haja um átomode sentido nele.”

Os jurados em peso anotaram em suaslousas: “Ela não acredita que haja um átomode sentido neles”, mas nenhum tentou expli-car o documento.

“Se não há nenhum sentido neles”, disseo Rei, “isso nos poupa um bocado de tra-balho, não é mesmo, pois não precisamostentar encontrar nenhum. No entanto, nãoestou bem certo”, prosseguiu, abrindo osversos sobre os joelhos e olhando para elesde rabo de olho; “tenho a impressão de quevejo algum sentido neles, afinal de contas.‘Só é pena que não sei nadar…’ Você não sabenadar, não é?” acrescentou, voltando-se parao Valete.

O Valete sacudiu a cabeça tristemente.“Pareço saber?” disse. (O que certamentenão parecia, sendo todo feito de papelão.)

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“Até aqui, tudo certo”, disse o Rei, e foiadiante, murmurando os versos para simesmo: “‘Sabemos que tinha razão’ — issosão os jurados, é claro… ‘Se ela descobrisse amentira!’ — deve ser a Rainha… ‘Qual seriatua situação?’ — Seria mesmo… ‘Dei uma praela, pra ele dei três…’ — ora, isso só pode sero que ele fez com as tortas…”

“Mas continua: ‘Todas voltaram dele outravez’”, disse Alice.

“Veja, cá estão elas!” disse o Rei, triun-fante, apontando as tortas sobre a mesa.“Nada pode ser mais claro que isso. Depoisde novo… ‘Antes do teu ataque…’ você nuncasofreu ataques, não é minha cara?” pergun-tou à Rainha.

“Nunca!” disse a Rainha, furiosa,jogando um tinteiro no Lagarto enquanto fa-lava. (O pobrezinho do Bill parara de escre-ver na lousa com um dedo ao descobrir quenão ficava marca alguma; mas agora seapressara a começar de novo, usando a tinta,

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que lhe escorria pela cara abaixo, enquantoela durou.)

“Então ninguém pode lhe fazer esseataque”, disse o Rei, passando os olhos pelotribunal com um sorriso. Fez-se um silêncioabsoluto.

“É um trocadilho!” o Rei acrescentounum tom ofendido, e todos riram. “Que ojúri pronuncie seu veredito”, disse, mais oumenos pela vigésima vez naquele dia.

“Não, não!” disse a Rainha. “Primeiro asentença… depois o veredito.”

“Mas que absurdo!” Alice disse alto.“Que ideia, ter a sentença primeiro!”

“Cale a boca!” disse a Rainha, virandoum pimentão.

“Não calo!” disse Alice.“Cortem-lhe a cabeça!” berrou a Rainha.

Ninguém se mexeu.

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“Quem se importa com vocês?”, disseAlice (a essa altura, tinha chegado a seutamanho normal). “Não passam de umbaralho!”

A essas palavras o baralho inteiro se er-gueu no ar e veio voando para cima dela:Alice deu um gritinho, um pouco de medo eum pouco de raiva, tentou repeli-los e se viudeitada na ribanceira, a cabeça no colo dairmã, que afastava delicadamente algumasfolhas secas que haviam voejado das árvoresaté seu rosto.

“Acorde, Alice querida!” disse sua irmã.“Mas que sono comprido você dormiu!”

“Ah, tive um sonho tão curioso!” disseAlice, e contou à irmã, tanto quanto podiase lembrar delas, todas aquelas estranhasaventuras que tivera e que você acabou deler; quando terminou, a irmã a beijou edisse: “Sem dúvida foi um sonho curioso,minha querida; agora vá correndo tomar oseu chá, está ficando tarde.” Alice então se

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levantou e saiu correndo, pensando, en-quanto corria o mais rápido que podia, quesonho maravilhoso tinha sido aquele.

Mas sua irmã continuou sentada quandoela partiu, a cabeça pousada na mão, con-templando o pôr do sol e pensando napequena Alice e em todas aquelas suas aven-turas maravilhosas, até que também elacomeçou de certo modo a sonhar, e este foio seu sonho:

Primeiro, sonhou com a própria Alice, emais uma vez as mãozinhas dela lhe aper-tavam o joelho, e os olhos brilhantes e impa-cientes olhavam os seus… podia ouvir até asentonações da voz dela, e ver aquele seujeitinho de jogar a cabeça para afastar o ca-belo desgarrado que sempre lhe caía nos ol-hos… e enquanto ouvia, ou parecia ouvir, olugar inteiro à sua volta ganhou vida com asestranhas criaturas do sonho da irmã.

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A relva crescida farfalhou aos seus pésquando o Coelho Branco passou correndo…o Camundongo apavorado espadanou águaao cruzar a lagoa vizinha… pôde ouvir otilintar das xícaras vendo a Lebre de Março e

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seus amigos partilharem sua interminávelrefeição, e a voz estridente da Rainha con-denando seus pobres convidados à ex-ecução… mais uma vez o bebê-porco estavaespirrando no colo da Duquesa, enquantotravessas e pratos se espatifavam à voltadele… mais uma vez o guincho do Grifo, orangido do giz do Lagarto e a sufocação dosporquinhos-da-índia enchiam o ar, mistura-dos aos soluços distantes da infeliz Tar-taruga Falsa.

Ficou ali sentada, os olhos fechados, equase acreditou estar no País das Maravil-has, embora soubesse que bastaria abri-los etudo se transformaria em insípida realid-ade… a relva só farfalharia ao vento, e aságuas da lagoa só se encrespariam ao ondu-lar dos juncos… as xícaras de chá tilintantesse transformariam no tinir dos sinos dasovelhas, e os gritos agudos da Rainha na vozdo pastorzinho… e os espirros do bebê, oguincho do Grifo, e todos os outros barulhos

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esquisitos se converteriam (ela sabia) noalarido do movimentado terreiro dafazenda… enquanto os mugidos do gado àdistância iriam tomar o lugar dos soluçostristes da Tartaruga Falsa.

Por fim, imaginou como seria essamesma irmãzinha quando, no futuro, fosseuma mulher adulta; e como conservaria, emseus anos maduros, o coração simples eamoroso de sua infância; e como iria reuniroutras criancinhas à sua volta e tornar os ol-hos delas brilhantes e impacientes commuitas histórias estranhas, talvez até com osonho do País das Maravilhas de tantotempo atrás; e como iria sofrer com todas asmágoas simples dessas crianças, e encontrarprazer em todas as alegrias simples delas,lembrando sua própria vida de criança, e osdias felizes de verão.

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Através do Espelhoe o que Alice encontrou por lá

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VERMELHAS

BRANCAS

O PEÃO BRANCO (ALICE) VAI JOGARE VENCER EM ONZE LANCES

1. Alice encon-tra Rainha V.

1. RainhaV. passaà 4a casa

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da Torredo Rei

2. Alice at-ravessa 3acasa daRainha (detrem) e chegaà 4a casa daRainha(Tweedledume Tweedledee)

2. RainhaB. passa à4a casado BispodaRainha(em buscado xale)

3. Alice encon-tra Rainha B.(de xale)

3. RainhaB. passa à5a casado BispodaRainha(viraovelha)

4. Alice passa à5a casa da

4. RainhaB. passa à

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Rainha (loja,rio, loja)

8a casado Bispodo Rei(deixaovo naprateleira)

5. Alice passa à6a casa daRainha(HumptyDumpty)

5. RainhaB. passa à8a casado BispodaRainha(fugindodo Ca-valeiroV.)

6. Alice passa à7a casa daRainha(floresta)

6. CavaleiroV. passaà 2a casado Rei(xeque)

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7. Cavaleiro B.toma Ca-valeiro V.*

7. CavaleiroB. passa à5a casado Bispodo Rei

8. Alice passa à8a casa daRainha(coroação)

8. RainhaV. passaà casa doRei(exame)

9. Alice torna-se Rainha

9. As Rain-hasrocam

10. Alice roca(banquete)

10. RainhaB. passa à6a casada TorredaRainha(sopa)

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11. Alice tomaRainha V. evence

*Vale ressaltar que Knight, em inglês, designatanto “cavaleiro” como o “cavalo”, peça dojogo de xadrez. (N.T.)

CRIANÇA DA FRONTE PURA ELÍMPIDA

E olhos sonhadores de pasmo!Por mais que o tempo voe e ainda

Que meia vida nos separe,Irás por certo acolher encantada

O presente de um conto defadas.Não vi teu rosto ensolarado,

Nem ouvi tua risada argentina:Lugar algum por certo me serádado

Doravante em tua jovem vida…

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Basta que agora consintas sem maisnada

Em ouvir este meu conto defadas.Um conto iniciado outrora,

Sob o sol tépido do verão —Mera cantiga, que apenas marcava

O ritmo de nossa embarcação —Cujos ecos na memória persistem

E ao desafio dos anos resistem.Vem ouvir, antes que uma vozinevitável,

Portadora de amargo presságioVenha chamar para o leitoindesejável

Uma donzela contristada!Somos só crianças crescidas,querida,

Inquietas, até que o sono nos dêguarida.Fora, o gelo, a neve ofuscante,

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A loucura soturna datempestade…Dentro, o calor do fogo crepitante,

Que a infância alegre aconchega.As palavras mágicas vão logo tetomar:

Não darás ouvido ao vento auivar.E ainda que um suspiro saudoso

Venha perpassar esta históriaPor “dias felizes de verão” e por

Sua glória agora extinta —Decerto não tornará ofuscada

A alegria de nosso conto defadas.

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CAPÍTULO 1

A Casa do Espelho

UMA COISA ERA CERTA: a gatinha branca nadativera a ver com aquilo; a culpa fora toda dagatinha preta. Pois no último quarto de horaa cara da gatinha branca estivera sendolavada pela gata velha (o que, apesar detudo, ela suportara bastante bem); como vo-cê vê, ela não teria podido meter sua patinhana travessura.

Era assim que Dinah lavava a cara dosfilhotes: primeiro, erguia o pobre bichanopela orelha com uma pata, depois, com aoutra, esfregava-lhe a cara toda ao

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contrário, começando pelo focinho; e, nestemomento mesmo, como disse, estava muitoatarefada com a gatinha branca, que semantinha bastante sossegada e tentandoronronar — sem dúvida sentindo que aquilotudo era para o seu bem.

Mas a faxina da gatinha preta terminaramais cedo aquela tarde, e assim, enquantoAlice enroscava-se num canto da poltronagrande, meio conversando consigo mesma emeio dormindo, ela se esbaldava com a bolade lã que Alice tentara enovelar, rolando-apara cima e para baixo até desmanchá-latoda de novo; e lá estava a lã, espalhadasobre o tapete, cheia de nós e emaranhados,com a gatinha correndo no meio atrás dopróprio rabo.

“Oh, sua coisinha travessa!” exclamouAlice, agarrando-a e dando-lhe um beijinhopara fazê-la compreender que estava frita.“Francamente, a Dinah devia ter lhe en-sinado maneiras melhores! Você devia,

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Dinah, sabe que devia!” acrescentou, comum olhar de censura para a gata velha efalando no tom mais zangado de que eracapaz… Em seguida escalou de novo a pol-trona, levando a gatinha e a lã consigo, epôs-se a enrolar a bola de novo. Mas o tra-balho não rendia muito, pois conversava otempo todo, às vezes com a gatinha, às vezesconsigo mesma. Kitty ficou sentada muitorecatadamente em seu joelho, fingindoacompanhar o progresso do enovelamento, ede vez em quando esticando uma pata etocando delicadamente a bola, como a dizerque teria prazer em ajudar, se pudesse.

“Sabe que dia é amanhã, Kitty?”começou Alice. “Você adivinharia, se tivesseficado na janela comigo… só que a Dinah es-tava fazendo sua toalete, por isso você nãopôde. Fiquei olhando os meninos cataremgravetos para a fogueira — e é preciso muitograveto, Kitty! Só que ficou tão frio, enevava tanto, que eles tiveram de parar. Não

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faz mal, Kitty, nós vamos ver a fogueiraamanhã.” Nesse ponto Alice passou duas outrês voltas da lã em torno do pescoço da gat-inha, só para ver como ficaria: isso provocouuma balbúrdia, pois o novelo rolou para ochão e metros e metros dele se desenrolaramde novo.

“Sabe, fiquei tão zangada, Kitty”, Alicecontinuou assim que estavam confortavel-mente instaladas de novo, “quando vi toda atravessura que você aprontou que estive aponto de abrir a janela e jogá-la na neve! Eteria sido merecido, minha traquinasquerida! Que tem a dizer em sua defesa?Agora não me interrompa!” continuou, dedoem riste. “Vou lhe dizer todas as suas faltas.Número um: reclamou duas vezes enquantoa Dinah estava lavando seu rosto esta man-hã. Ora, isso você não pode negar, Kitty: euouvi! Que está dizendo?” (fingindo que agatinha estava falando). “A pata dela entrouno seu olho? Bem, a culpa é sua, por ficar de

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olhos abertos: se os fechasse, apertandobem, isso não teria acontecido. Não, não mevenha com outras desculpas, ouça! Númerodois: você puxou Snowdrop pelo rabo bemna hora que eu tinha posto o pires de leitediante dela! Ah, você estava com sede, é?Como sabe que ela não estava com sedetambém? Agora, número três: você desenrol-ou a lã inteirinha quando eu não estavaolhando!”

“São três faltas, Kitty, e você não foi cas-tigada por nenhuma delas. Sabe que estouacumulando todos os seus castigos para da-qui a duas quartas-feiras… Imagine setivessem acumulado todos os meus castigos!”ela continuou, mais para si mesma que paraa gatinha. “Qual seria o resultado no fim deum ano? Seria mandada para a prisão,suponho, quando o dia chegasse. Ou…deixe-me ver… se cada castigo fosse ficarsem um jantar, então, quando o dia terrívelchegasse, eu teria de ficar sem cinquenta

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jantares de uma vez! Bem, não me importar-ia tanto! Antes passar sem eles que comê-los!”

“Está ouvindo a neve contra as vidraças,Kitty? Soa tão agradável e suave! Como sealguém estivesse beijando a janela toda dolado de fora. Será que a neve ama as árvorese os campos que beija tão docemente? De-pois ela os agasalha, sabe, com um mantobranco; e talvez diga: ‘Durmam, meusqueridos, até o verão voltar.’ E quando elesdespertam no verão, Kitty, se vestem todosde verde, e dançam… onde quer que o ventosopre… oh, isso é muito lindo!” exclamouAlice, soltando o novelo da lã para bater pal-mas. “E eu gostaria tanto que fosse verdade!O que sei é que os bosques parecem sonolen-tos no outono, quando as folhas estão fic-ando castanhas.”

“Sabe jogar xadrez, Kitty? Não, não sor-ria, meu bem, estou perguntando a sério.Porque, quando estávamos jogando há

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pouco, você observou exatamente como seentendesse; e quando eu disse ‘Xeque!’ vocêronronou! Bem, foi um belo xeque, Kitty, eeu realmente poderia ter ganho, não tivessesido por aquele cavaleiro desagradável, queveio se insinuar ziguezagueando entre min-has peças. Kitty, querida, vamos fazer decon…” E aqui eu gostaria de ser capaz delhe contar a metade das coisas que Alice cos-tumava dizer a partir da sua expressão fa-vorita: “vamos fazer de conta”. Ela tiverauma discussão bastante longa com a irmãainda na véspera, tudo porque começaracom “Vamos fazer de conta que somos reis erainhas”; e a irmã, que gostava de ser muitoprecisa, retrucara que isso não era possívelporque eram só duas, até que Alice final-mente se vira forçada a dizer: “Bem, vocêpode ser só um deles, eu serei todos os out-ros.” E certa vez assustara realmente suavelha governanta, gritando-lhe de repenteao pé do ouvido: “Vamos fazer de conta que

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eu sou uma hiena faminta e você é umacarcaça!”

Mas isto está nos desviando da fala deAlice para a gatinha. “Vamos fazer de contaque você é a Rainha Vermelha, Kitty! Sabe,acho que se você sentasse e cruzasse osbraços ficaria igualzinha a ela. Vamos, tente,minha fofura!” E Alice pegou a Rainha Ver-melha da mesa e a pôs em frente à gatinhacomo um modelo. Porém a coisa não deucerto — sobretudo, Alice disse, porque a gat-inha não cruzava os braços direito. Assim,para puni-la, segurou-a diante do Espelho,para que visse o quanto estava intratável…“e se não consertar essa cara já”, acres-centou, “eu lhe faço atravessar para a Casado Espelho. O que acharia disso?”

“Bem, se você ficar só ouvindo, sem falartanto, vou lhe contar todas as minhas ideiassobre a Casa do Espelho. Primeiro, há a salaque você pode ver através do espelho, sóque as coisas trocam de lado. Posso ver a

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sala toda quando subo numa cadeira… forao pedacinho atrás da lareira. Oh! Gostariatanto de poder ver esse pedacinho! Gostariatanto de saber se eles têm um fogo aceso noinverno: a gente nunca pode saber, a menosque o nosso fogo lance fumaça, e a fumaçachegue a essa sala também… mas pode sersó fingimento, só para dar a impressão deque têm um fogo. Agora, os livros são maisou menos como os nossos, só que as palavrasestão ao contrário; sei porque segurei umdos nossos livros diante do espelho e eles se-guraram um na outra sala.”

“O que você acharia de morar na Casa doEspelho, Kitty? Será que lhe dariam leite lá?Talvez o leite do Espelho não seja gostoso…mas, oh, Kitty! agora chegamos ao corredor.Só se consegue dar uma espiadinha nocorredor da Casa do Espelho deixando aporta da nossa sala de estar escancarada: émuito parecido com o nosso corredor, atéonde se pode ver, só que adiante pode ser

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completamente diferente. Oh, Kitty, comoseria bom se pudéssemos atravessar para aCasa do Espelho! Tenho certeza de que nela,oh! há tantas coisas bonitas! Vamos fazer deconta que é possível atravessar para lá de al-guma maneira, Kitty. Vamos fazer de contaque o espelho ficou todo macio, como gaze,para podermos atravessá-lo. Ora veja, ele es-tá virando uma espécie de bruma agora, estásim! Vai ser bem fácil atravessar…” Estavade pé sobre o console da lareira enquantodizia isso, embora não tivesse a menor ideiade como fora parar lá. E sem dúvida o es-pelho estava começando a se desfazer lenta-mente, como se fosse uma névoa prateada eluminosa.

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No instante seguinte Alice atravessara oespelho e saltara lepidamente na sala daCasa do Espelho. A primeira coisa que fezfoi verificar se havia fogo na lareira, e ficoumuito satisfeita ao constatar que havia umfogo de verdade, crepitando tão alegrementequanto o que deixara para trás. “Assim vouficar tão aquecida aqui quanto estava lá nasala”, pensou; “ou mais aquecida, porqueaqui não vai haver ninguém mandando queeu me afaste do fogo. Oh, como vai ser

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engraçado quando me virem aqui, atravésdo espelho, e não puderem me alcançar!”

Em seguida começou a olhar em volta enotou que o que podia ser visto da sala an-terior era bastante banal e desinteressante,mas todo o resto era tão diferente quantopossível. Por exemplo, os quadros na paredeperto da lareira pareciam todos vivos, e opróprio relógio sobre o console (você sabeque só pode ver o fundo dele no espelho)tinha o rosto de um velhinho, e sorria paraela.

“Esta sala não é tão arrumada como aoutra”, Alice pensou, ao notar várias peçasdo jogo de xadrez caídas no chão entre ascinzas; mas no instante seguinte, com umpequeno “Oh!” de surpresa, estava degatinhas, observando-as. As peças do xadrezestavam andando, duas a duas!

“Aqui estão o Rei Vermelho e a RainhaVermelha”, Alice disse (num sussurro, commedo de assustá-los), “e ali estão o Rei

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Branco e a Rainha Branca, sentados naborda da pá da lareira… e aqui vão duasTorres, andando de braço dado… Acho quenão podem me escutar”, continuou, baixan-do mais a cabeça, “e tenho quase certeza deque não podem me ver. Alguma coisa me dizque estou invisível…”

Nessa altura algo começou a guinchar namesa atrás de Alice e a fez virar a cabeçabem a tempo de ver um dos Peões Brancoscair e começar a espernear. Observou-o,muito curiosa para saber o que iria aconte-cer em seguida.

“É a voz da minha filha!” exclamou aRainha Branca passando pelo Rei, apressadae com tanto ímpeto que o derrubou entre ascinzas. “Minha preciosa Lily! Minha gatinhaimperial!” e começou a escalar frenetica-mente um lado do guarda-fogo.

“Desatino imperial!” disse o Rei, es-fregando o nariz, que machucara na queda.Tinha direito a estar um bocadinho

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aborrecido com a Rainha, pois estavacoberto de cinzas da cabeça aos pés.

Alice estava ansiosa por ser útil e,quando a pobrezinha da Lily estava a pontode ter um ataque de tanto berrar, passou amão na Rainha rapidamente e a depositousobre a mesa junto de sua escandalosafilhinha.

A Rainha se sentou, arquejante: a rápidaviagem pelo ar lhe tirara o fôlego por com-pleto e por um minuto ou dois nada pôdefazer senão abraçar a pequenina Lily emsilêncio. Assim que recobrou um pouquinhode alento, gritou para o Rei Branco, que es-tava sentado entre as cinzas, mal-humorado:“Cuidado com o vulcão!”

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“Que vulcão?” perguntou o Rei, olhandoaflito para a lareira, como se julgasse aqueleo lugar mais provável para encontrar um.

“Ele… me… expeliu”, arquejou a Rainha,que ainda estava um pouco sem ar. “Tratede subir… da maneira normal… não sedeixe expelir!”

Alice observou o Rei Branco transporlenta e laboriosamente obstáculo por ob-stáculo, até que finalmente disse: “Ora,nesse ritmo você vai levar horas e horaspara chegar em cima da mesa. Seria muito

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melhor eu ajudá-lo, não é?” Mas o Rei nãotomou conhecimento da pergunta: estavaperfeitamente claro que não a podia ouvirnem ver.

Diante disso Alice o apanhou com muitadelicadeza e o ergueu muito mais lenta-mente do que erguera a Rainha, tentandonão lhe tirar o fôlego. Mas, antes de o pôr namesa, pensou que não seria má ideia dar-lheuma espanadinha, tão coberto de cinzasestava.

Mais tarde, contou que nunca em todasua vida vira uma cara como a que o Rei fezao se ver erguido e espanado no ar por umamão invisível. Ele ficou espantado demaispara gritar, mas seus olhos e sua boca foramficando cada vez maiores, e cada vez maisredondos, até que a mão de Alice tremeutanto com a gargalhada que ele quase caiuno chão.

“Oh! Por favor, não faça essas caretas,meu caro!” gritou, esquecendo por completo

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que o Rei não a podia ouvir. “Você me fezrir tanto que mal consigo segurá-lo! E nãofique com a boca tão escancarada! As cinzasvão entrar todas nela… pronto, agora achoque está apresentável!” acrescentou, en-quanto lhe ajeitava o cabelo e o punha sobrea mesa ao lado da Rainha.

O Rei tombou de costas imediatamente eassim ficou, absolutamente estático. Umpouco alarmada com o que fizera, Alice saiupela sala para ver se conseguia encontrar umpouco de água para borrifar nele. Mas nãoachou nada, a não ser um tinteiro, e quandochegou de volta com ele viu que o Rei se re-cuperara e conversava com a Rainha em sus-surros aterrorizados… tão baixinho queAlice mal pôde ouvir o que falavam.

O Rei dizia: “Eu lhe asseguro, minhacara, fiquei gelado até as pontas das minhassuíças!”

Ao que a Rainha respondeu: “Você nãousa suíças.”

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“O horror daquele momento”, continuouo Rei, “eu nunca, nunca vou esquecer!”

“Vai sim”, a Rainha disse, “a menos quefaça uma anotação.”

Alice ficou observando com grande in-teresse o Rei tirar um enorme bloco de anot-ações do bolso e começar a escrever.Ocorreu-lhe uma ideia de repente e seguroua ponta do lápis, que ultrapassava de algummodo o ombro do Rei, e começou a escreverpor ele.

O pobre Rei pareceu confuso e infeliz,lutando com o lápis por algum tempo semdizer nada; mas Alice era forte demais paraele, que finalmente disse, resfolegando:“Minha cara! Realmente preciso arranjar umlápis mais fino. Não estou tendo o menorcontrole sobre este; escreve todo tipo decoisas que não pretendo…”

“Que tipo de coisas?” perguntou aRainha, dando uma espiada no bloco (em

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que Alice escrevera: “O Cavaleiro Branco estáescorregando pelo atiçador. Equilibra-se muitomal.”). “Isto não é uma anotação das suassensações!”

Havia um livro sobre a mesa, perto deAlice, e, enquanto observava o Rei Branco(pois ainda estava um pouco apreensiva comrelação a ele, e pronta a lhe jogar a tinta,caso voltasse a desmaiar), folheou suas pági-nas, encontrando um trecho que não con-seguia ler — “é todo em alguma língua quenão sei”, disse para si mesma.

Era assim:

Quebrou a cabeça por algum tempo, maspor fim lhe ocorreu uma ideia luminosa.“Ora, este é um livro do Espelho, claro! E seeu o segurar diante de um espelho as

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palavras vão aparecer todas na direção certade novo.”

Este foi o poema que Alice leu:PARGARÁVIO

Solumbrava, e os lubriciosos touvosEm vertigiros persondavam as verdentes;

Trisciturnos calavam-se os gaiolouvosE os porverdidos estriguilavam fientes.

“Cuidado, ó filho, com o Pargarávio prisco!Os dentes que mordem, as garras que fincam!

Evita o pássaro Júbaro e foge qual coriscoDo frumioso Capturandam.”

O moço pegou da sua espada vorpeira:Por delongado tempo o feragonista buscou.

Repousou então à sombra da tuntumeira,E em lúmbrios reflaneios mergulhou.

Assim, em turbulosos pensamentos quedava

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Quando o Pargarávio, os olhos a raisluscar,Veio flamiscuspindo por entre a mata brava.

E borbulhava ao chegar!

Um, dois! Um, dois! E inteira, até o punho,A espada vorpeira foi por fim cravada!

Deixou-o lá morto e, em seu rocim catunho,Tornou galorfante à morada.

“Mataste então o Pargarávio? Bravo!Te estreito no peito, meu Resplendoroso!

Ó gloriandei! Hosana! Estás salvo!”E na sua alegria ele riu, puro gozo.

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Solumbrava, e os lubriciosos touvosEm vertigiros persondavam as verdentes;

Trisciturnos calavam-se os gaiolouvos

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E os porverdidos estriguilavam fientes.

“Parece muito bonito”, disse quando ter-minou, “mas é um pouco difícil de entender!”(Como você vê, não queria confessar nempara si mesma que não entendera patavina.)“Seja como for, parece encher minha cabeçade ideias… só que não sei exatamente queideias são. De todo modo, alguém matou al-guma coisa: isto está claro, pelo menos…”

“Mas, oh!” pensou Alice dando um pulode repente, “se não me apressar vou ter depassar pelo espelho de volta sem ter vistocomo é o resto da casa! Vou dar uma olhadano jardim primeiro.” Saiu da sala como umraio e correu escada abaixo — ou melhor,não se tratava exatamente de correr, mas deuma nova invenção dela para descer escadasde maneira rápida e fácil, como dizia para simesma: mantinha apenas as pontas dos de-dos sobre o corrimão e descia flutuandosuavemente, sem sequer roçar os pés nos

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degraus. Atravessou o vestíbulo ainda flutu-ando, e teria saído porta afora do mesmojeito se não tivesse se agarrado ao umbral.Estava ficando um pouco tonta com tantaflutuação, e sentiu-se bastante satisfeita aose ver andando de novo da maneira natural.

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CAPÍTULO 2

O jardim das flores vivas

“EU VERIA O JARDIM MUITO MELHOR”, disse Alice parasi mesma, “se pudesse chegar ao topodaquele morro, e cá está uma trilha que levadireto para lá… pelo menos — não, não tãodireto…” (depois de seguir a trilha por al-guns metros e dar várias viradas bruscas)“mas suponho que por fim chega lá. É in-teressante como se enrosca! Mais parece umsaca-rolha que um caminho! Bem, esta voltavai dar no morro, suponho… não vai! Vaidar direto na casa de novo! Bem, neste casovou tentar na direção contrária.”

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E assim fez: ziguezagueando para cima epara baixo, e tentando volta após volta, massempre voltando para a casa, fizesse o quefizesse. Na verdade, certa vez, quando deuuma virada bem mais rápido que de cos-tume, não pôde evitar uma trombada nela.

“É inútil falar sobre isso”, disse Alice, ol-hando para a casa e fingindo estar dis-cutindo com ela. “Não vou entrar ainda. Seique deveria atravessar o espelho de novo…de volta à sala… e seria o fim de todas asminhas aventuras!”

Assim, dando as costas para a casa comdeterminação, lá se foi mais uma vez pelatrilha, decidida a avançar sem trégua atéchegar ao morro. Por alguns minutos tudocorreu bem e ela acabava de dizer “Destavez realmente vou conseguir…” quando atrilha deu uma guinada repentina, chacoal-hou (segundo a descrição que fez maistarde), e no instante seguinte ela se viu defato entrando porta adentro.

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“Oh, mas que azar. Nunca vi casa tão in-trometida! Nunca!”

No entanto, lá estava o morro, bem àvista, de modo que não havia outra coisa afazer senão começar de novo. Dessa vez to-pou com um grande canteiro, orlado de mar-garidas, e um salgueiro crescendo no meio.

“Ó Lírio-tigre!” chamou Alice, dirigindo-se a um que ondulava graciosamente aovento, “gostaria que pudesse falar!”

“Pois podemos”, falou o Lírio-tigre,“quando há alguém com quem valha a penaconversar.”

Alice ficou tão espantada que perdeu avoz por um minuto; quase pôs o coraçãopela boca. Por fim, como o Lírio-tigre apenascontinuava a balançar, falou de novo, numavoz tímida… quase um sussurro: “E todas asflores podem falar?”

“Tão bem quanto você”, respondeu oLírio-tigre. “E bem mais alto.”

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“Seria pouco delicado da nossa partecomeçar, sabe”, disse a Rosa, “e eu real-mente estava me perguntando quando vocêfalaria! Disse comigo: ‘O semblante dela mediz alguma coisa, embora não seja uma coisainteligente!’ Apesar de tudo, você tem a corcerta, e isso já é meio caminho andado.”

“Não me importo com a cor”, observou oLírio-tigre. “Se pelo menos suas pétalas seencrespassem um pouco mais, tudo estariabem com ela.”

Não gostando de se ver criticada, Alicecomeçou a fazer perguntas: “Não sentemmedo às vezes de ficar plantados aqui fora,sem ninguém para cuidar de vocês?”

“Há a árvore no meio”, disse a Rosa.“Para que mais ela serve?”

“Mas o que poderia ela fazer se surgissealgum perigo?” perguntou Alice.

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“Abrir o berreiro!” gritou uma Margar-ida. “É por isso que os salgueiros são chama-dos chorões!”

“Você não sabia disso?” espantou-seoutra Margarida, e então todas começaram agritar ao mesmo tempo, até que o ar pareceurepleto de vozes esganiçadas. “Silêncio, to-das vocês!” gritou o Lírio-tigre agitando-searrebatadamente de um lado para outro,com frêmitos de excitação. “Sabem que nãoposso alcançá-las!” disse entre arquejos, in-clinando a cabeça trêmula para Alice, “ounão se atreveriam a fazer isso.”

“Não faz mal!” Alice disse num tomapaziguador; e curvando-se para as margari-das, que estavam recomeçando naquele in-stante, sussurrou: “Se não calarem a boca,eu as colho!”

O silêncio foi imediato, e várias dasmargaridas cor-de-rosa ficaram brancas.

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“Muito bem”, falou o Lírio-tigre. “Asmargaridas são as piores. Quando uma fala,começam todas ao mesmo tempo, fazendoum alarido que deixa qualquer um murcho.”

“Como é possível que vocês todos pos-sam falar tão bem?” disse Alice, na esper-ança de melhorar o humor dele com umelogio. “Estive em muitos jardins antes, masnenhuma flor podia falar.”

“Ponha a mão na terra e sinta”, disse oLírio-tigre. “Assim vai saber por quê.”

Alice obedeceu. “É muito dura”, obser-vou, “mas não sei o que uma coisa tem a vercom a outra.”

“Na maioria dos jardins”, explicou oLírio-tigre, “fazem os canteiros fofos de-mais… por isso as flores estão sempredormindo.”

Parecia uma excelente razão, e Alicegostou muito de ouvi-la. “Nunca penseinisso antes!” disse.

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“Na minha opinião, você nunca pensa emcoisa alguma”, disse a Rosa num tombastante ríspido.

“Nunca vi ninguém com ar mais bronco”,comentou uma Violeta, tão de repente queAlice deu um pulo, pois ela não tinha faladoantes.

“Dobre sua língua!” exclamou o Lírio-tigre. “Como se você já tivesse visto alguém!Enfia a cabeça sob as folhas e fica lá ron-cando, até saber tão pouco do que se passano mundo quanto um botão!”

“Há mais pessoas no jardim além demim?” Alice perguntou, preferindo não levarem conta a última observação da Rosa.

“Há uma outra flor no jardim que écapaz de andar como você”, disse a Rosa.“Pergunto-me como fazem isso… (“Você es-tá sempre se espantando”, interrompeu oLírio-tigre), “mas ela é mais folhuda quevocê.”

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“É parecida comigo?” Alice perguntouansiosa, pois lhe ocorrera a ideia: “Há umaoutra menininha em algum canto dojardim!”

“Bem, tem a mesma forma desajeitadaque você”, a Rosa disse, “mas é mais ver-melha… e tem as pétalas mais curtas, acho.”

“Tem as pétalas mais próximas, quasecomo uma dália”, o Lírio-tigre interrompeu;“não descaídas em redor como as suas.”

“Mas isso não é culpa sua”, a Rosa acres-centou delicadamente. “Você estácomeçando a fenecer, sabe… e nesse caso éimpossível evitar que nossas pétalas fiquemum pouco desalinhadas.”

Alice não gostou nada dessa ideia; assim,para mudar de assunto, perguntou: “Ela vemaqui de vez em quando?”

“Provavelmente logo a verá”, disse aRosa. “É do tipo que tem nove espigas.”

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“Onde as usa?” Alice perguntou comcerta curiosidade.

“Ora, em volta da cabeça, é claro”, re-spondeu a Rosa. “O que me admirou foi quevocê não tivesse algumas também. Penseique fosse a norma geral.”

“Lá vem ela!” gritou a Esporinha. “Estououvindo os passos dela, chump, chump,chump, no cascalho!”

Alice olhou em volta aflita e descobriuque era a Rainha Vermelha. “Como ela cres-ceu!” foi sua primeira observação. De fato:quando Alice a encontrara entre as cinzas,tinha só sete centímetros de altura… e cá es-tava, meia cabeça mais alta do que elaprópria!

“É o ar fresco que faz isso”, disse a Rosa,“temos um ar maravilhosamente puro aquifora.”

“Acho que vou ao encontro dela”, disseAlice, pois, embora as flores fossem bastante

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interessantes, sentiu que seria muito maissensacional ter uma conversa com umaRainha de verdade.

“Isso você não vai conseguir”, disse aRosa. “Eu a aconselharia a ir ao contrário.”

Como isso lhe soou absurdo, Alice nãodisse nada e partiu imediatamente emdireção à Rainha Vermelha. Para sua sur-presa, num instante a perdeu de vista e seviu entrando pela porta da frente de novo.

Um pouco irritada, recuou e, depois deolhar para todos os lados à procura daRainha (que finalmente avistou, bem longedali), pensou que daquela vez podia tentar oestratagema de caminhar na direção oposta.

Sucesso total. Não andara nem umminuto quando se viu cara a cara com aRainha Vermelha, com o morro que tantodesejara alcançar bem à vista.

“De onde vem?” perguntou a Rainha Ver-melha. “E para onde vai? Levante os olhos,

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fale direito e não fique girando os dedos otempo todo.”

Alice obedeceu a todas essas instruções eexplicou, o melhor que pôde, que perderaseu caminho.

“Não sei o que você quer dizer com seucaminho”, disse a Rainha; “todos os camin-hos aqui pertencem a mim… mas afinal, porque veio até aqui?” acrescentou num tommais afável. “Enquanto pensa no que dizer,faça reverências, poupa tempo.”

Alice ficou um pouco surpresa comaquilo, mas estava fascinada demais pelaRainha para duvidar dela. “Vou tentarquando voltar para casa”, pensou, “da próx-ima vez que estiver atrasada para o jantar.”

“Já está na hora de você responder”,disse a Rainha, olhando seu relógio; “abraum pouco mais a boca quando fala, e digasempre ‘Vossa Majestade’.”

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“Só queria ver como era o jardim, VossaMajestade…”

“Está bem”, disse a Rainha, dando-lhetapinhas na cabeça, do que Alice não gostounada, “se bem que, quando você diz‘jardim’… já vi jardins que fariam este pare-cer um matagal.”

Alice não se atreveu a contestar e con-tinuou: “…e pensei em tentar chegar até oalto daquele morro…”

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“Quando você diz ‘morro’”, a Rainha in-terrompeu, “eu poderia lhe mostrar morrosque a fariam chamar esse de vale.”

“Não, não fariam”, disse Alice, surpresapor finalmente tê-la contestado: “um morronão pode ser um vale. Isso seria umabsurdo…”

A Rainha Vermelha sacudiu a cabeça.“Pode chamar de ‘absurdo’ se quiser”, disse,“mas já ouvi absurdos que fariam este pare-cer tão sensato quanto um dicionário!”

Alice fez mais uma reverência, poistemia, pelo tom da Rainha, que estivesse um

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pouco ofendida. E as duas saíram andandoem silêncio até chegar ao alto do pequenomorro.

Por alguns minutos Alice ficou sem falar,olhando a região em todas as direções… eque região curiosa era aquela. Havia umaquantidade de riachinhos minúsculoscortando-a de lado a lado, e o terreno entreeles era dividido por uma porção de pequen-as cercas verdes, que iam de riacho a riacho.

“Veja só! Está demarcado exatamentecomo um grande tabuleiro de xadrez!” Alicedisse por fim. “Deve haver algumas peças semexendo em algum lugar… ah, lá estão!”acrescentou encantada, e seu coraçãocomeçou a disparar de entusiasmo enquantocontinuava. “É uma partida de xadrezfabulosa que está sendo jogada… no mundotodo… se é que isso é o mundo. Oh, como édivertido! Como eu gostaria de ser um deles.Não me importaria de ser um Peão, contanto

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que pudesse participar… se bem que, éclaro, preferiria ser uma Rainha.”

Ao dizer isso, olhou de rabo de olho, umtanto acanhada, para a verdadeira Rainha,mas sua companheira apenas sorriu amavel-mente e observou: “É fácil arranjar isso.Você pode ser o Peão da Rainha Branca, sequiser, pois Lily é muito novinha para jogar;você está na Segunda Casa; quando chegar àOitava Casa, será uma Rainha…” Exata-mente nesse instante, sabe-se lá por quê, asduas começaram a correr.

Alice nunca conseguiu entender direito,refletindo sobre isso mais tarde, como tin-ham começado: tudo que lembrava é que es-tavam correndo de mãos dadas, e a Rainhacorria tão depressa que ela mal conseguiaacompanhá-la. Mesmo assim, a Rainha nãoparava de gritar “Mais rápido! Maisrápido!”, mas Alice sentia que não podia irmais rápido, embora não lhe sobrasse fôlegopara dizer isso.

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O mais curioso nisso tudo era que asárvores e as outras coisas em volta delasnunca mudavam de lugar: por mais depressaque ela e a Rainha corressem, não pareciamultrapassar nada. “Será que todas as coisasestão se movendo conosco?” pensou, atôn-ita, a pobre Alice. E a Rainha pareceu lheadivinhar os pensamentos, pois gritou “Maisrápido! Não tente falar!”.

Não que Alice tivesse a menor intençãode fazer isso. Tinha a impressão de quenunca conseguiria falar de novo, tão semfôlego estava ficando; mesmo assim, aRainha gritava “Mais rápido! Mais rápido!”e a arrastava consigo. “Estamos chegando?”Alice conseguiu arquejar finalmente.

“Chegando!” a Rainha repetiu. “Ora, pas-samos por lá dez minutos atrás! Maisrápido!” E correram em silêncio por algumtempo, o vento assobiando nos ouvidos deAlice e, imaginou, quase lhe arrancando foraos cabelos.

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“Vamos! Vamos!” gritou a Rainha. “Maisrápido! Mais rápido!” E correram tão de-pressa que por fim pareciam deslizar pelo ar,mal roçando o chão com os pés, até que derepente, bem quando Alice estava ficandocompletamente exausta, pararam, e ela seviu sentada no chão, esbaforida e tonta.

A Rainha a recostou contra uma árvore edisse gentilmente: “Pode descansar um pou-co agora.”

Alice olhou ao seu redor muito surpresa.“Ora, eu diria que ficamos sob esta árvore otempo todo! Tudo está exatamente comoera!”

“Claro que está”, disse a Rainha, “esper-ava outra coisa?”

“Bem, na nossa terra”, disse Alice, aindaarfando um pouco, “geralmente vocêchegaria a algum outro lugar… se corressemuito rápido por um longo tempo, comofizemos.”

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“Que terra mais pachorrenta!” comentoua Rainha. “Pois aqui, como vê, você tem decorrer o mais que pode para continuar nomesmo lugar. Se quiser ir a alguma outraparte, tem de correr no mínimo duas vezesmais rápido!”

“Prefiro não tentar, por favor!” suplicouAlice. “Estou muito satisfeita de estar aqui…só que estou com tanto calor e com tantasede!”

“Sei do que você gostaria!” disse a Rainhabondosamente, tirando uma caixinha dobolso. “Aceita um biscoito?”

Alice achou que seria pouco educadodizer “Não”, embora aquilo não fosse nemde longe o que queria. Pegou o biscoito e fezo possível para comê-lo: era sequíssimo, epensou que nunca ficara tão engasgada emtoda a sua vida.

“Enquanto você se revigora”, disse aRainha, “vou tirando as medidas.” E sacou

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uma fita métrica do bolso e pôs-se a medir oterreno e a fincar pequenas estacas aqui eali.

“Ao fim de dois metros”, disse, cravandouma estaca para marcar a distância, “eu lhedarei suas instruções… aceita mais umbiscoito?”

“Não, obrigada”, recusou Alice; “um foi obastante!”

“Matou a sede, espero”, disse a Rainha.Alice não soube o que responder, mas fe-

lizmente a Rainha não esperou resposta,continuando: “Ao fim de três metros vourepeti-las… para o caso de você as ter esque-cido. Ao fim de quatro, vou dizer adeus. E aofim de cinco, vou-me embora!”

A essa altura tinha fincado todas as es-tacas, e Alice olhou-a com muito interesseenquanto ela voltava para a árvore e emseguida começava a caminhar lentamente aolongo da fila.

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Junto à estaca dos dois metros a Rainhavirou o rosto e disse: “Um peão avança duascasas em seu primeiro movimento, como vo-cê sabe. Assim, você vai avançar muitorápido para a Terceira Casa… de trem, euacho… e num instante vai se ver na QuartaCasa. Bem, essa casa pertence a Tweedledume Tweedledee… a Quinta é quase só água…a Sexta pertence a Humpty Dumpty… Masvocê não faz nenhum comentário?”

“Eu… eu não sabia que devia fazer al-gum… bem nesse ponto”, Alice gaguejou.

“Devia ter dito”, prosseguiu a Rainha emtom de grave censura, “‘é extremamentegentil da sua parte me falar tudo isto’… masvamos supor que isso foi dito… a SétimaCasa é toda no bosque… contudo, um dosCavaleiros lhe mostrará o caminho… e naOitava Casa, nós, as Rainhas, estaremos jun-tas; é tudo festa e diversão!” Alice se levan-tou, fez uma reverência e se sentou de novo.

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Na estaca seguinte a Rainha se virou e,desta vez, disse: “Fale em francês quando apalavra em inglês para alguma coisa não lheocorrer… ande com as pontas dos pés parafora… e lembre-se de quem você é.” Não es-perou que Alice fizesse uma reverência dessavez, caminhando rápido para a outra estaca,onde se virou por um instante para dizer“Adeus” e correu para a seguinte.

Como aquilo aconteceu, Alice nuncasoube, mas exatamente ao chegar à últimaestaca, a Rainha desapareceu. Se sumiu noar ou se correu veloz para o bosque (“e ela écapaz de correr muito rápido!” pensouAlice), não havia como saber, e Alicecomeçou a se lembrar de que era um Peão ede que logo seria hora de se mover.

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CAPÍTULO 3

Insetos do Espelho

EVIDENTEMENTE A PRIMEIRA COISA A FAZER era um levan-tamento completo da região que iria atraves-sar. “É muito parecido com estudar geo-grafia”, pensou Alice, erguendo-se nas pon-tas dos pés na esperança de conseguir verum pouco mais longe. “Rios principais… nãohá nenhum. Montanhas principais… estouem cima da única, mas não me parece quetenha nome. Cidades principais… ora, o quesão aquelas criaturas fazendo mel ali? Abel-has não podem ser… quem já enxergou abel-has a um quilômetro de distância?” E ficou

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em silêncio por algum tempo, observandouma delas que se alvoroçava entre as flores,fincando-lhes o probóscide, “exatamentecomo uma abelha comum”, pensou Alice.

No entanto, aquilo era tudo menos umaabelha comum: na verdade era um ele-fante… como Alice logo descobriu, emborade início a ideia a tenha deixado completa-mente sem fôlego. “E que flores enormes de-vem ser aquelas!” foi o que pensou emseguida. “Como se fossem cabanas sem tetoe com hastes… e que quantidade de mel de-vem produzir! Acho que vou descer e… não,ainda não”, continuou, contendo-se quandojá começava a correr morro abaixo, tentandoarranjar alguma desculpa para ficar tãoprecavida de repente. “Não vai adiantarnada descer até eles sem um galho jeitoso,comprido, para tangê-los… e como vai serengraçado quando me perguntarem se gosteido meu passeio. Vou dizer: ‘Ah, gosteimuito…’” (aqui deu sua sacudidela de

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cabeça favorita), “‘só que estava tão quente epoeirento, e os elefantes incomodavamtanto!’”

“Acho que vou descer pelo outro lado”,disse após uma pausa; “e talvez possa visitaros elefantes mais tarde. Além disso, querotanto chegar à Terceira Casa!”

Com essa desculpa, desceu o morro cor-rendo e saltou por sobre o primeiro dos seisriachinhos.

“Passagens, por favor!” disse o Guarda,enfiando a cabeça pela janela. Num instantetodos estavam empunhando passagens: erammais ou menos do tamanho das pessoas epareciam encher completamente o vagão.

“Vamos lá! Mostre sua passagem, cri-ança!” prosseguiu o Guarda, olhando irrit-ado para Alice. E uma porção de vozes ex-clamou ao mesmo tempo (“como o refrão deuma canção”, pensou Alice): “Não o faça

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esperar, criança! Ora, o tempo dele vale millibras o minuto!”

“Sinto muito, mas não tenho passagem”,Alice disse, atemorizada; “não havia guichêlá de onde vim.” E o coro de vozes re-começou: “Não havia lugar para uma pessoalá de onde ela veio. A terra lá vale mil libraso centímetro!”

“Não me venha com desculpas”, disse oGuarda; “devia ter comprado uma do ma-quinista.” E de novo o coro de vozes se er-gueu com: “Com o maquinista. Ora, só a fu-maça vale mil libras a baforada!”

Alice pensou consigo: “Se é assim, nãoadianta nada falar.” Dessa vez as vozes não aacompanharam, já que ela não falara, mas,para sua grande surpresa, todas pensaram emcoro (espero que você entenda o que signi-fica pensar em coro… porque devo confessarque eu não entendo): “Melhor não dizernada. A fala vale mil libras a palavra!”

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“Vou sonhar com mil libras esta noite,tenho certeza!” pensou Alice.

Durante todo esse tempo o Guarda estavaolhando para ela, primeiro através de umtelescópio, depois com um microscópio e de-pois com um binóculo. Finalmente disse:“Você está na direção errada”, fechou ajanela e foi embora.

“Uma criança tão pequena”, disse ocavalheiro sentado diante dela (a roupa deleera de papel branco), “deveria saber em quedireção está indo, mesmo que não saiba opróprio nome!”

Uma Cabra, que estava sentada junto aocavalheiro de branco, fechou os olhos e dissealto: “Ela devia saber como chegar aoguichê, mesmo que não saiba o bê-á-bá.”

Havia um Besouro sentado perto daCabra (tratava-se de um vagão com pas-sageiros muito esquisitos), e, como a regraparecia ser que cada um falasse de uma vez,

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ele continuou com: “Ela vai ter de ser des-pachada de volta como bagagem.”

Alice não podia ver quem estava sentadona frente do Besouro, mas em seguida umavoz rouca falou, num tom grosseiro: “Trocarde locomotivas…” — e nesse ponto en-gasgou e foi obrigado a parar.

“Parece que é um cavalo”, Alice pensou.E um fiozinho de voz disse, perto do seuouvido: “Você podia fazer uma piada sobre isso… algosobre ‘cavalo’ e ‘cavalice’, não é?”

Depois uma voz muito meiga disse à dis-tância: “Será preciso lhe pregar umaetiqueta ‘Mocinha. Cuidado, é frágil’.”

Depois dessa, outras vozes se fizeramouvir (“Quanta gente neste vagão!” pensouAlice), dizendo: “Deve ir pelo correio, poisestá selada…” “Deve ser enviada como umamensagem pelo telégrafo…” “Deve puxar otrem ela própria pelo resto da viagem…” eassim por diante.

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Mas o cavalheiro vestido de papel brancocurvou-se e lhe sussurrou no ouvido: “Nãoligue para o que estão dizendo, minha cara,mas compre uma passagem de volta cadavez que o trem parar.”

“De jeito nenhum!” disse Alice, um tantoimpaciente. “Nem sei o que estou fazendonesta viagem de trem… agora mesmo estavanum bosque… e gostaria de poder voltarpara lá!”

“Você poderia fazer uma piada com isso”, disse avozinha ao pé do seu ouvido; “algo como ‘queriasmas não podias’, não é?”

“Pare de caçoar assim”, disse Alice, ol-hando em volta sem conseguir descobrir deonde vinha a voz; “se está tão aflito por umapiada, por que você mesmo não faz uma?”

A vozinha deu um suspiro profundo.Estava muito infeliz, evidentemente, e Alicelhe teria dito uma palavra de consolo, “sepelo menos suspirasse como as outras

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pessoas!” ela pensou. Mas aquele foi um sus-piro tão assombrosamente pequenininho quenem o teria escutado se não tivesse sidodado bem junto do seu ouvido. A consequên-cia foi que sentiu muita cócega no ouvido, ea infelicidade da pobre criaturinha desapare-ceu da sua cabeça.

“Sei que você é uma amiga”, a vozinha continu-ou: “uma amiga querida e uma velha amiga. E você nãovai me ferir, embora eu seja um inseto.”

“Que tipo de inseto?”, Alice indagou umpouco apreensiva. O que realmente queriasaber era se picava ou não, mas lhe pareceuque essa não seria uma pergunta muitopolida.

“Ora, então você não…”, começou a vozinha,quando foi abafada por um apito estridenteda locomotiva, e todos deram um pulo desusto, inclusive Alice.

O Cavalo, que tinha posto a cabeça parafora da janela, recolheu-a calmamente e

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disse: “É só um riacho que temos de saltar.”Todos pareceram satisfeitos com a ex-plicação, embora Alice tenha se sentido umpouco nervosa à simples ideia de trenssaltando. “De todo modo, ele vai nos levarpara a Quarta Casa, já é um consolo!” dissepara si mesma. Um instante depois sentiuque o vagão estava subindo pelos ares e, noseu pavor, agarrou o que estava mais pertoda sua mão, que calhou ser a barba daCabra.

Mas a barba pareceu se dissolver quandoela a tocou, e Alice se viu sentada tranquila-mente sob uma árvore… enquanto o Mos-quito (pois esse era o inseto com quem est-ivera conversando) se balançava num ramobem em cima da sua cabeça e a abanavacom as asas.

Era certamente um Mosquito muitogrande: “mais ou menos do tamanho de umagalinha”, Alice pensou. Mesmo assim, não

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podia se sentir nervosa com ele, depois deterem estado conversando por tanto tempo.

“…então não gosta de todos os insetos?”continuou o Mosquito, tranquilo como senada tivesse acontecido.

“Gosto deles quando sabem falar”, disseAlice. “Lá de onde eu venho, nenhum delesjamais falou.”

“Que tipo de inseto lhe agrada mais, láde onde você vem?” o Mosquito indagou.

“Insetos não me agradam”, Alice ex-plicou, “porque tenho bastante medo deles…pelo menos dos grandes. Mas posso lhe dizeros nomes de alguns.”

“Claro que eles atendem pelo nome, nãoé?” o Mosquito comentou irrefletidamente.

“Nunca soube que o fizessem.”“De que serve terem nomes”, disse o

Mosquito, “se não atendem por eles?”

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“Não serve de nada para eles”, disseAlice, “mas é útil para as pessoas que lhesdão nomes, suponho. Senão, para que afinalas coisas têm nome?”

“Isso eu não sei”, respondeu o Mosquito.“Lá longe, no bosque, elas não têm nomenenhum… seja como for, diga lá sua lista deinsetos — está perdendo tempo.”

“Bem, tem a mosca”, Alice começou,contando os nomes nos dedos.

“Certo”, disse o Mosquito, “no meiodaquele arbusto ali você vai ver uma ‘mo-scavalo’, se olhar bem. Não sossega, passa odia se balançando de galho em galho.”

“Ela come o quê?” Alice perguntou comgrande curiosidade.

“Seiva e serragem”, disse o Mosquito.“Prossiga com a lista.”

Alice olhou para a moscavalo, muito in-teressada, e concluiu que tinha acabado de

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ser repintada, tão reluzente e pegajosa pare-cia; e continuou.

“Há também a libélula.”

“Olhe para o galho em cima da suacabeça”, disse o Mosquito, “e vai ver umaLibélula-de-natal. Seu corpo é de pudim depassas, as asas de azevinho, e a cabeça éuma passa flambada ao conhaque.”

“E ela come o quê?” perguntou Alice,como antes.

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“Manjar-branco e pastel de carne”, oMosquito respondeu; “e faz seu ninho naárvore de Natal.”

“Então há a Borboleta, Alice continuou,depois de ter dado uma boa olhada no insetocom a cabeça em chamas e pensado consigomesma: “Desconfio que é por isso que os in-setos gostam tanto de voar para as velas…vontade de virar libélulas-de-natal!”

“Rastejando aos seus pés”, disse o Mos-quito (Alice encolheu os pés um tanto as-sustada), “você pode observar uma Bor-boleteiga. Suas asas são fatias finas de pãocom manteiga, o corpo é de casca de pão, acabeça é um torrão de açúcar.”

“E o que ela come?”“Chá fraco com creme.”Uma nova dificuldade surgiu na cabeça

de Alice: “E se ela não conseguisse encontrarnenhum?” sugeriu.

“Nesse caso morreria, é claro.”

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“Mas isso deve acontecer com muita fre-quência”, Alice observou, pensativa.

“Sempre acontece”, disse o Mosquito.Depois disso, Alice ficou em silêncio por

um minuto ou dois, refletindo. Nesse meio-tempo o Mosquito se divertia dando voltas evoltas em torno da cabeça dela, zumbindo.Finalmente sossegou e fez um comentário:“Você não quer perder o seu nome, não é?”

“Não, de jeito nenhum”, disse Alice, umpouco agoniada.

“No entanto, não sei”, continuou o Mos-quito num tom displicente: “pense só comoseria conveniente se você conseguisse ir paracasa sem ele! Por exemplo, se a governantaquisesse chamá-la para estudar, ela diria‘venha cá…’ e teria de parar por aí, porquenão teria nenhum nome para chamá-la — e,é claro, você não teria de ir, entendeu?”

“Isso nunca daria certo, tenho certeza”,disse Alice. “Nunca passaria pela cabeça da

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governanta me dispensar do estudo porcausa disso. Se ela não lembrasse do meunome, me chamaria de ‘Senhora!’, como asgovernantas fazem.”

“Bem, se ela dissesse só ‘Senhora’”, oMosquito observou, “você diria que está semhora e não iria estudar… É uma piadinha.Gostaria que você a tivesse feito.”

“Por que desejaria que eu a tivessefeito?” Alice perguntou. “É um trocadilhoinfame.”

O Mosquito limitou-se a suspirar pro-fundamente, enquanto duas grossas lágrimaslhe rolavam pelas faces.

“Não devia fazer piadas”, disse Alice, “seisso o deixa tão infeliz.”

Seguiu-se mais um daqueles suspirozin-hos tristonhos, e dessa vez o pobre Mosquitopareceu realmente ter-se desfeito em lágrim-as, porque quando Alice levantou os olhosnão encontrou mais nada no galho e, como

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já estava sentindo um pouco de frio por ficartanto tempo sentada quieta, levantou-se esaiu andando.

Logo chegou a um campo aberto, comum bosque do outro lado; parecia maisescuro que o último bosque e Alice sentiuum pouco de medo de entrar nele. Refletindomelhor, no entanto, resolveu ir em frente,“pois para trás é que não vou, com certeza”,pensou, e aquele era o único caminho para aOitava Casa.

“Este deve ser o bosque”, disse pensativa-mente, “em que as coisas não têm nomes. Oque será que vai ser do meu nome quando euentrar nele? Não gostaria nada de perdê-lo…porque teriam de me dar outro, e é quasecerto que seria um nome feio. Mas, nessecaso, o engraçado seria tentar encontrar acriatura que ficou com meu antigo nome!Igualzinho àqueles anúncios, sabe, quandoas pessoas perdem cachorros: ‘Responde pelonome ‘Dash’; usava uma coleira de latão…’

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Imagine ficar chamando todas as coisas queeu encontrasse de ‘Alice’ até que uma delasrespondesse! Só que elas não responderiamnada, se fossem espertas.”

Assim divagava quando chegou aobosque: parecia muito fresco e sombrio.“Bem, de todo modo é um grande alívio”,disse ao entrar sob as árvores, “depois desentir tanto calor, entrar sob… o quê?” con-tinuou, bastante surpresa de não conseguirlembrar a palavra. “Quero dizer entrar sob…sob as… sob isto, entende!” pondo a mão notronco da árvore. “Como é que isto sechama, afinal? Acredito que não temnome… ora, com certeza não tem!”

Ficou em silêncio um minuto, pensando.Depois, de repente, recomeçou. “Então, nofim das contas a coisa realmente aconteceu!E agora, quem sou eu? Vou me lembrar, sepuder! Estou decidida!” Mas estar decididanão ajudou muito, e tudo que conseguiu

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dizer, depois de quebrar muito a cabeça, foi:“L, eu sei que começa com L!”

Nesse instante apareceu uma Corça vag-ando por ali; olhou para Alice com seus ol-hos grandes e meigos, mas não se assustounadinha. “Venha cá! Venha cá!” disse Alice,esticando a mão e tentando afagá-la; mas aCorça só recuou um pouco e voltou a olharpara Alice.

“Como você se chama?” finalmente aCorça perguntou. Que voz doce e suavetinha!

“Quem me dera saber!” pensou a pobreAlice. Respondeu, um tanto acabrunhada:“Nada, por enquanto.”

“Pense bem”, a Corça disse, “esse nãoserve.”

Alice pensou, mas não adiantou coisa al-guma. “Por favor, poderia me dizer como vo-cê se chama?” disse timidamente. “Acho queisso poderia ajudar um pouco.”

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“Vou lhe dizer se vier um pouco adiantecomigo”, disse a Corça. “Aqui não consigome lembrar.”

Assim, saíram caminhando juntas pelobosque, Alice abraçando afetuosamente opescoço macio da Corça, até que chegaram aum outro campo aberto; então a Corça deuum súbito pinote no ar e se desvencilhoudos braços de Alice. “Sou uma Corça!” grit-ou radiante, “e, oh! você é uma criança hu-mana!” Uma expressão de susto tomou derepente seus bonitos olhos castanhos e no in-stante seguinte ela fugiu como um raio.

Alice ficou procurando-a, prestes a chor-ar de frustração por ter perdido sua queridacompanheira de viagem tão de repente. “Detodo modo, agora sei meu nome”, disse, “éalgum consolo. Alice… Alice… não vou es-quecer de novo. E agora, qual dessas setasdevo seguir?”

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Não era uma pergunta muito difícil, jáque uma única estrada atravessava o bosque,e as duas setas apontavam para ela. “Vou re-solver a questão”, disse Alice consigo,“quando a estrada se dividir e elas apontar-em rumos diferentes.”

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Mas isso não parecia provável. Andou eandou por um longo tempo, mas sempre quea estrada se dividia lá estavam as duas setas,apontando a mesma direção, uma com osdizeres “POR AQUI — CASA DE TWEEDLEDUM” e a outra“CASA DE TWEEDLEDEE — POR AQUI”.

“Desconfio,” disse Alice por fim, “queeles moram na mesma casa! Não sei comonão pensei nisso antes… Mas não posso ficarmuito tempo lá. Vou só dar uma chegad-inha, dizer ‘olá, como vão?’ e lhes perguntaro caminho para sair do bosque. Se pelomenos eu chegar à Oitava Casa antes doanoitecer!” Assim foi divagando, falandoconsigo mesma enquanto caminhava, atéque, numa curva fechada, deu de encontrocom dois homenzinhos gordos, tão de re-pente que não pôde evitar dar um salto paratrás, mas logo se recobrou, certa de que sópodiam ser.

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CAPÍTULO 4

Tweedledum e Tweedledee

“ESTAVAM DE PÉ SOB UMA ÁRVORE, um abraçando opescoço do outro, e Alice soube no mesmoinstante qual era qual porque um deles tinha“DUM” bordado na gola e o outro, “DEE”. “Ima-gino que ambos têm “TWEEDLE” escrito naparte de trás da gola”, disse para si mesma.

Estavam tão quietos que ela esqueceupor completo que estavam vivos e, justa-mente quando ia espichando o olho para verse havia a palavra “TWEEDLE” escrita na partede trás das duas golas, teve um sobressalto

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ao ouvir uma voz vindo do que tinha amarca “DUM”.

“Se pensa que somos bonecos de cera”,ele disse, “devia pagar ingresso, não é?Bonecos de cera não são feitos para seremvistos de graça, de maneira alguma!”

“Ao contrário”, acrescentou o que tinha amarca “DEE”, “se acha que somos vivos, deviafalar.”

“Lamento muito, acreditem”, foi tudoque Alice conseguiu dizer; pois as palavrasda velha canção insistiam em ecoar na suacabeça como o tique-taque de um relógio, emal conseguiu evitar repeti-la em voz alta:

Tweedledum e TweedledeeAndam em grande ralho;

Pois, disse Tweedledum, TweedledeeDesafinara seu chocalho.

Iam os dois se engalfinhar,

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Quando um corvo imenso, escuro,Veio nossos heróis espantar,

E os dois fugiram, em grande apuro.

“Sei no que está pensando”, disseTweedledum; “mas não é isso, de maneiraalguma.”

“Ao contrário”, continuou Tweedledee,“se era assim, podia ser; e se fosse assim,seria; mas como não é, não é. Isto é lógico.”

“Estava pensando”, disse Alice muitocortês, “qual será o melhor caminho parasair deste bosque; está ficando tão escuro!Poderiam me dizer, por favor?”

Mas os homenzinhos gordos apenas seentreolharam e sorriram.

Pareciam tão exatamente um par de cole-giais balofos que Alice não pôde evitar apon-tar o dedo para Tweedledum e dizer: “OPrimeiro da Classe!”

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“De maneira alguma!” Tweedledum ex-clamou rapidamente, e fechou a boca denovo com um estalo.

“O Segundo!” disse Alice passando paraTweedledee, embora tivesse certeza de queele iria apenas gritar “Ao contrário!”, e foi oque fez.

“Você fez tudo errado!” exclamouTweedledum. “A primeira coisa numa visitaé dizer ‘Como vai?’ e dar um aperto demão!” E aqui os dois irmãos se deram umabraço e estenderam as duas mãos que tin-ham livres para ela apertar.

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Alice não queria apertar a mão dequalquer dos dois em primeiro lugar, tem-erosa de ferir os sentimentos do outro; as-sim, a melhor saída lhe pareceu apertar am-bas as mãos ao mesmo tempo; um instantedepois eles estavam dançando em círculo.Isso pareceu perfeitamente natural (ela lem-brou depois), e não ficou surpresa nemquando ouviu uma música: parecia vir daárvore sob a qual dançavam, e era produz-ida (pelo que pôde entender) pelos galhos seesfregando uns contra os outros, comorabecas e arcos.

“Mas sem dúvida foi divertido” (Alicedisse mais tarde, quando estava contandotoda esta história à irmã) “me ver cantando‘Ciranda, cirandinha’. Não sei quando come-cei, mas a minha impressão era que estavacantando aquilo havia muito tempo!”

Os outros dois dançarinos eram gordos elogo ficaram sem fôlego.

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“Quatro voltas é o bastante para umadança”, bufou Tweedledum, e pararam dedançar tão de repente quanto haviamcomeçado. A música cessou no mesmoinstante.

Soltaram as mãos de Alice e ficaram umminuto olhando para ela; foi uma pausa umtanto contrafeita, pois Alice não sabia comoentabular uma conversa com pessoas comquem acabara de dançar. “Não caberia dizer‘Como vai você?’ agora”, pensou com seusbotões; “de algum modo, parece que fomosalém desse ponto.”

“Espero que não estejam muito cansad-os!” disse por fim.

“De maneira alguma. E muito obrigadopor perguntar”, disse Tweedledum.

“Gratíssimo!” acrescentou Tweedledee.“Gosta de poesia?”

“Gosto, bastante… de algumas poesias,”Alice respondeu hesitante. “Poderiam me

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dizer que estrada tomar para sair dobosque?”

“Que posso recitar para ela?” disseTweedledee, voltando para Tweedledum unsolhos arregalados e solenes, sem fazer casoda pergunta de Alice.

“‘A Morsa e o Carpinteiro’ é a mais com-prida”, Tweedledum respondeu, dando umafetuoso abraço no irmão.

Tweedledee começou imediatamente:

O sol brilhava…

Nesse ponto Alice arriscou interrompê-lo.“Se é muito comprida”, disse o mais polida-mente que pôde, “poderiam, por favor, medizer primeiro qual é a estrada…”

Tweedledee sorriu gentilmente, erecomeçou:

O sol brilhava sobre o mar,

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Com raios certeiros, pujantes.Aplicava sua melhor arte

A tornar as ondas coruscantes.E isso era estranho porque

Batera meia-noite pouco antes.

A lua brilhava mofina,Porque pensava que o sol,

Depois que o dia termina,Devia se retirar.

“É muita indelicadeza”, dizia,“Vir aqui me ofuscar.”

O mar estava molhado; mais não podia estar.A areia estava seca a não poder mais secar.

Nuvem, não se via uma só, porqueNão havia nenhuma no céu a flutuar.

Nenhum pássaro cortava os ares…Pois não havia pássaros para voar.

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A Morsa e o CarpinteiroCaminhavam lado a lado.

Choravam copiosamente ao verO chão assim, tão de areia forrado:

“Se ao menos fizessem uma faxina,” diziam,“Isto poderia ficar em bom estado!”

“Se sete criadas com sete esfregõesPor um ano isto aqui esfregassem,

Acha possível”, a Morsa perguntou,“Que toda esta areia limpassem?”

“Duvido”, disse o CarpinteiroE uma lágrima sentida derramou.

“Ó Ostras, venham fazer um passeio!”Disse a Morsa suplicante.

“Uma boa conversa, um belo recreio,Pelas praias verdejantes:

Mas apenas quatro em cada volteioPara as mãos lhes dar adiante.”

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A Ostra mais velha o relanceouMas a boca não disse palavra.

Deu apenas uma piscadela,E a pesada cabeça meneou…

A sugerir: “Deixar a ostreiraPara flanar? Ai, isso não vou.”

Quatro ostrinhas, porém, acorreram,Muito sôfregas pelo regalo:

Vestidinho limpo, rosto lavado,Sapatos nos trinques e rabo de cavalo.

E isso era estranho, se bem pesado,Porque tinham o coco rapado.

Quatro outras Ostras as seguiramE depois mais, de par em par.

Por fim aos bandos chegaram,E foi um não mais acabar.

Todas saltando na espuma das ondas,E voltando à praia a bracejar.

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A Morsa e o CarpinteiroAndaram um bom estirão.

Depois descansaram numa pedraJeitosa que havia no chão.

Então as ostrinhas todasPuseram-se em fila, de prontidão.

“É chegada a hora”, disse a Morsa,“De falar de muitas coisas:

De sapatos… e barcos… e vazas…De repolhos… e reis… e lousas…

E por que o mar tanto ferveE se os porcos têm asas.”

“Só um minutinho”, as Ostras gritaram,“Antes da nossa conversa;

Estamos tão esbaforidas,Viemos em tal correria!”

“Temos tempo!” disse o Carpinteiro,Rindo, num gesto de galhardia.

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“Um naco de pão”, a Morsa disse,“É o que vem a calhar;

Depois pimenta e vinagreNão são de se dispensar…

Já estão prontas, Ostrinhas queridas?Vamos dar início ao jantar.”

“Mas não vão nos jantar!” as Ostras gritaram,Perdendo um pouquinho a cor.

“Após tanta gentileza,Oh, é tão desolador!”

“É uma bela noite”, disse a Morsa,“Apreciam esta beleza?”

“Foram tão gentis conosco!Não criaram um só embaraço!”

O Carpinteiro disse apenas:“Corte-me mais um pedaço!

Minha fome é tamanhaQue todo este pão hoje eu traço.”

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“É uma vergonha”, a Morsa disse,“Lhes fazer uma falseta dessa,

Depois que as trouxemos tão longeE as fizemos andar tão depressa!”

O Carpinteiro disse só:“Vamos à primeira remessa!”

“Choro por vocês”, a Morsa disse.“Tenho o coração contristado.”

E entre soluços e lágrimas, foiPuxando as graúdas p’ro seu lado.

Depois, levou o lenço aos olhos,Que ainda estavam marejados.

“Ó Ostras”, disse o Carpinteiro.“Fizeram uma bela corrida!

Que tal correr de volta pra casa?”Mas nenhuma resposta foi ouvida…

E não era de estranhar, porqueOstra por ostra tinha sido comida.

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“Gosto mais da Morsa”, disse Alice.“Porque, veja, ela teve um pouco de penadas pobres ostras.”

“Mas comeu mais que o Carpinteiro”,disse Tweedledee. “Repare, ela segurou olenço na sua frente, para o Carpinteiro nãopoder contar quantas comia: ao contrário.”

“Isso foi mesquinho!” Alice exclamou in-dignada. “Se é assim gosto mais do Carpin-teiro… se é que não comeu tantas quanto aMorsa.”

“Mas ele comeu o mais que pôde”, disseTweedledee.

Aquilo era perturbador. Depois de umapausa, Alice começou: “Bem! Eram ambos ti-pos muito desagradáveis…” Neste pontocalou-se, um tanto assustada, ao ouvir algoque lhe lembrava o resfolegar de uma loco-motiva a vapor perto deles no bosque, em-bora temesse que, mais provavelmente, fosse

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um animal selvagem. “Há leões ou tigres poraqui?” perguntou timidamente.

“É só o Rei Vermelho roncando”, disseTweedledee.

“Venha ver!” gritaram os irmãos. Cadaum pegou uma das mãos de Alice e alevaram até onde o Rei dormia.

“Não é uma visão encantadora?” disseTweedledum.

Para ser sincera, Alice não podia con-cordar. O Rei usava uma touca de dormirvermelha e alta, com um pompom, estavaencolhido como uma trouxa mal-ajambradae roncando alto… “Esse ronco é capaz de lhearrancar a cabeça fora!” comentouTweedledum.

“Receio que pegue um resfriado, deitadoassim no capim úmido”, disse Alice, que erauma menininha muito atenciosa.

“Agora está sonhando”, observouTweedledee. “Com que acha que ele sonha?”

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Alice disse: “Isso ninguém pode saber.”“Ora, com você!” Tweedledee exclamou,

batendo palmas, triunfante. “E se parasse desonhar com você, onde acha que vocêestaria?”

“Onde estou agora, é claro,” respondeuAlice.

“Não, não!” Tweedledee retrucou, desd-enhoso. “Não estaria em lugar algum. Ora,você é só uma espécie de coisa no sonhodele!”

“Se o Rei acordasse”, acrescentouTweedledum, “você sumiria… puf!… exata-mente como uma vela!”

“Não sumiria!” Alice exclamou indig-nada. “Além disso, se sou só uma espécie decoisa no sonho dele, gostaria de saber o quevocês são?”

“Idem”, disse Tweedledum.“Idem, ibidem”, gritou Tweedledee.

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E gritou tão alto que Alice não pôde seimpedir de dizer: “Psss! Receio que váacordá-lo se fizer tanto barulho.”

“Bem, não adianta você falar sobreacordá-lo”, disse Tweedledum, “quando nãopassa de uma das coisas do sonho dele. Vocêsabe muito bem que não é real.”

“Eu sou real!” disse Alice e começou achorar.

“Não vai ficar nem um pingo mais realchorando”, observou Tweedledee. “Não hámotivo para choro.”

“Se eu não fosse real”, disse Alice —meio rindo por entre as lágrimas, tão ab-surdo aquilo tudo parecia —, “não con-seguiria chorar.”

“Espero que não imagine que suas lágri-mas são reais!” Tweedledum interrompeu-a,num tom de profundo desdém.

“Sei que estão falando absurdos”, Alicepensou consigo, “e é tolice chorar por causa

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disso.” Assim, enxugou as lágrimas e con-tinuou, no tom mais alegre que pôde. “Sejacomo for, tenho de ir embora do bosque,pois está ficando muito escuro. Acham quevai chover?”

Tweedledum, que abriu um enormeguarda-chuva sobre ele e o irmão, olhoupara cima e disse: “Não, não acho que vai.Pelo menos… não aqui embaixo. De maneiraalguma.”

“Mas será que pode chover aqui fora?”“Pode… se escolher”, disse Tweedledee;

“não fazemos nenhuma objeção. Aocontrário.”

“Criaturas egoístas!” pensou Alice, e já iadizer “Boa noite” e deixá-los quandoTweedledum saltou fora do guarda-chuva ea agarrou pelo pulso.

“Está vendo aquilo?” perguntou, numavoz embargada pela emoção, e seus olhosficaram grandes e amarelos de repente,

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enquanto apontava um dedo trêmulo parauma coisinha branca caída sob a árvore.

“É só um chocalho”, disse Alice, apóscuidadoso exame da coisinha branca. “E nãoestá na ponta do rabo de nenhuma cascavel,sabe?” deu-se pressa em acrescentar,achando que ele estava apavorado. “Só umchocalho velho… bem velho e quebrado.”

“Sabia que era!” exclamou Tweedledum,começando a bater o pé furiosamente paratodos os lados e a puxar o cabelo. “Está es-tragado, é claro!” Aqui olhou paraTweedledee, que imediatamente se sentouno chão e tentou se esconder debaixo doguarda-chuva.

Alice pousou a mão no seu braço e disseem tom apaziguador: “Não precisa ficar tãozangado por causa de um chocalho velho.”

“Mas não é velho!” gritou Tweedledum,mais furioso que nunca. “É novo, estou lhedizendo… comprei-o ontem… meu lindo

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CHOCALHO NOVO!” e sua voz se elevou numverdadeiro guincho.

Todo esse tempo, Tweedledee estavafazendo o que podia para fechar o guarda-chuva consigo dentro: o que era uma proezatão extraordinária que desviou completa-mente a atenção de Alice do irmão enraive-cido. Mas não teve sucesso e acabou caindo,enrolado no guarda-chuva, só a cabeça defora: e lá ficou, abrindo e fechando a boca eos olhos graúdos… “mais parecendo umpeixe que qualquer outra coisa”, Alicepensou.

“Naturalmente você concorda com umabatalha?” indagou Tweedledum num tommais calmo.

“Acho que sim”, respondeu o outro,amuado, rastejando para fora do guarda-chuva; “só que ela tem de ajudar a nosvestir.”

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E lá se foram os dois irmãos de mãos da-das pelo bosque, e num minuto estavam devolta com os braços carregados de coisas…como travesseiros, cobertores, tapetes, toal-has de mesa, abafadores e baldes de carvão.“Espero que você tenha uma boa mão paraalfinetar e dar laços!” Tweedledum obser-vou. “É preciso encaixar cada uma destascoisas, de um jeito ou de outro.”

Alice contou mais tarde que nunca viratanto barulho feito por nada em toda a suavida: o alvoroço daqueles dois… e a quan-tidade de coisas que puseram sobre si… e atrabalheira que lhe deram para amarrarcordões e abotoar… “Realmente, quandoficarem prontos vão estar mais parecidoscom trouxas de roupa velha que comqualquer outra coisa!” disse consigo mesma,enquanto ajeitava uma almofada roliça emvolta do pescoço de Tweedledee, “paraevitar que sua cabeça fosse cortada fora”,como ele disse.

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“Sabe”, ele acrescentou muito grave-mente, “essa é uma das coisas mais gravesque podem acontecer numa batalha… ter acabeça cortada fora.”

Alice não conseguiu conter o riso, masdeu um jeito de transformá-lo numa tosse,receando ferir-lhe os sentimentos.

“Estou muito pálido?” perguntouTweedledum, aproximando-se para que seuelmo fosse preso. (Ele chamava aquilo deelmo, embora certamente mais parecesseuma caçarola.)

“Bem… está… um pouco”, Alice re-spondeu gentilmente.

“Sou muito corajoso em geral”, ele con-tinuou em voz baixa; “só que logo hoje estoucom dor de cabeça.”

“E eu com dor de dente!” disseTweedledee, que conseguira ouvir ocomentário. “Estou muito pior que você!”

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“Nesse caso não deveriam lutar hoje”,disse Alice, vendo ali um bom pretexto paraas pazes.

“Temos de lutar um pouquinho, mas nãofaço questão de uma luta muito demorada”,disse Tweedledum. “Que horas são agora?”

Tweedledee consultou seu relógio edisse: “Quatro e meia.”

“Vamos lutar até as seis, e depois jantar”,disse Tweedledum.

“Muito bem”, o outro concordou, umtanto cabisbaixo. “E ela pode assistir… sónão deve chegar muito perto”, acrescentou;“costumo acertar tudo que vejo pelafrente… quando fico realmente empolgado.”

“E eu acerto tudo que está ao meu al-cance”, exclamou Tweedledum, “quer possavê-lo ou não!”

Alice riu. “Imagino que acertem asárvores com muita frequência”, disse.

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Tweedledum olhou à sua volta com umsorriso satisfeito. “Tenho a impressão”,disse, “de que não vai sobrar uma só de pé,por todo este trecho, quando a batalha tiverterminado!”

“E tudo por causa de um chocalho!”espantou-se Alice, ainda com esperança dedeixá-los um pouco envergonhados de lutar-em por tal bagatela.

“Eu não teria me importado tanto”, disseTweedledum, “se não fosse um chocalhonovo.”

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“Gostaria que o corvo monstruosochegasse!” pensou Alice.

“Há só uma espada, você sabe”, disseTweedledum ao irmão. “Mas você pode usaro guarda-chuva… é quase tão pontudoquanto ela. Só que temos de começar rápido.Está escurecendo a olhos vistos.”

“E a olhos fechados”, disse Tweedledee.Estava escurecendo tão de repente que

Alice achou que uma tempestade devia estarchegando. “Que nuvem grossa e negraaquela!” disse. “E como vem depressa! Ui,parece que tem asas!”

“É o corvo!” Tweedledum gritou comuma voz estridente de susto. E os doisirmãos saíram em disparada e num instantetinham sumido de vista.

Alice correu um pouco mais para dentrodo bosque e parou debaixo de uma grandeárvore. “Aqui ele nunca vai me pegar”, pen-sou, “é grande demais para se espremer

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entre as árvores. Mas gostaria que nãobatesse tanto as asas… provoca um ver-dadeiro furacão no bosque — olha, ali vai oxale de alguém, soprado pelo vento!”

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CAPÍTULO 5

Lã e água

ALICE AGARROU O XALE ENQUANTO FALAVA e olhou emvolta à procura da dona; um instante depoisa Rainha Branca apareceu correndo frenet-icamente pelo bosque, os dois braços abertostotalmente esticados, como se estivessevoando, e Alice, muito polidamente, foi aoencontro dela com o xale.

“Foi uma sorte eu estar no caminho”,disse, enquanto a ajudava a pôr o xale denovo.

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A Rainha Branca olhou-a com uma ex-pressão de incontrolável pavor e ficou repet-indo para si mesma, num sussurro, algo quesoava como “pão com manteiga, pão commanteiga”, e Alice percebeu que, se era parahaver alguma conversa, ela mesma tinha dese encarregar disso. Assim, começou,bastante tímida: “Estou me endereçando àRainha Branca?”

“Bem, sim, se você chama isto deadereçar”, a Rainha disse. “Não é a minhaideia da coisa, em absoluto.”

Alice, pensando que não convinha dis-cutir logo no início da conversa, sorriu edisse: “Se Vossa Majestade tiver a bondadede me dizer qual é a maneira certa decomeçar, farei isso da melhor maneira.”

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“Mas não quero que seja feito de maneiraalguma!” gemeu a pobre Rainha. “Faz duashoras que estou me desadereçando.”

Teria sido muito melhor, pareceu a Alice,se ela tivesse trazido uma outra pessoa paraadereçá-la, tão terrivelmente desalinhada es-tava. “Todos os adereços estão tortos”, Alicepensou, “e tudo está pregado com alfine-te!… Posso endireitar seu xale?” acrescentouem voz alta.

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“Não sei o que há de errado com ele!”lamentou a Rainha. “Está de mau humor,acho. Eu o preguei com alfinete aqui e ali,mas nada o contenta!”

“Ele não pode ficar direito se o prende to-do de um lado só”, disse Alice, enquanto oendireitava gentilmente para ela, “e, nossa!,em que estado está o seu cabelo!”

“A escova ficou enganchada nele”, sus-pirou a Rainha. “Perdi o pente ontem!”

Alice desprendeu cuidadosamente aescova e fez o que podia para lhe ajeitar ocabelo. “Veja, está com uma aparênciamuito melhor agora!” disse após mudar amaior parte dos alfinetes de lugar. “Masrealmente devia ter uma criada de quarto!”

“Eu contrataria você com prazer!” propôsa Rainha. “Dois pence por semana e geleiaem dias alternados.”

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Alice não pôde deixar de rir, enquantodizia: “Não quero que me contrate… e nãogosto muito de geleia.”

“É uma geleia muito boa”, disse aRainha.

“Bem, de todo modo, não quero nen-huma hoje.”

“Mesmo que quisesse, não poderia ter”,disse a Rainha. “A regra é: geleia amanhã egeleia ontem… mas nunca geleia hoje.”

“Isso só pode acabar levando às vezes a‘geleia hoje’”, Alice objetou.

“Não, não pode”, disse a Rainha. “Égeleia no outro dia: hoje nunca é outro dia,entende?”

“Não a entendo”, disse Alice. “É horrivel-mente confuso!”

“É isso que dá viver às avessas”, disse aRainha com doçura: “sempre deixa a genteum pouco tonta no começo…”

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“Viver às avessas!” Alice repetiu emgrande assombro. “Nunca ouvi falar de talcoisa!”

“…mas há uma grande vantagem nisso: anossa memória funciona nos dois sentidos.”

“Tenho certeza de que a minha só fun-ciona em um”, Alice observou. “Não possolembrar coisas antes que elas aconteçam.”

“É uma mísera memória, essa sua, que sófunciona para trás”, a Rainha observou.

“De que tipo de coisas você se lembramelhor?” Alice se atreveu a perguntar.

“Oh, das que aconteceram daqui a duassemanas”, a Rainha respondeu num tom dis-plicente. “Por exemplo, agora”, ela continu-ou, enrolando uma larga atadura no dedoenquanto falava, “há o Mensageiro do Rei.Está na prisão agora, sendo punido, e o jul-gamento não vai nem começar até quarta-feira que vem, e, é claro, o crime vem porúltimo.”

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“E se ele nunca cometer o crime?” disseAlice.

“Tanto melhor, não é?” a Rainha retru-cou, prendendo a atadura em volta do dedocom um pedacinho de fita.

Alice achou que isso era inegável. “Claroque seria muito melhor”, disse, “mas nãoseria muito melhor para ele ser punido.”

“Nisso você está completamente errada”,disse a Rainha. “Já foi punida alguma vez?”

“Só pelo que fiz de errado”, respondeuAlice.

“E isso só lhe fez bem, eu sei!” disse aRainha, triunfante.

“Sim, mas eu tinha feito as coisas pelasquais fui punida”, disse Alice, “isso faz todaa diferença.”

“Mas se não as tivesse feito”, continuou aRainha, “teria sido melhor ainda; melhor emelhor e melhor!” Sua voz foi ficando mais

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aguda a cada “melhor”, até que por fim setransformou num guincho.

Alice ia dizendo “Há alguma coisa er-rada…”, quando a Rainha começou a guin-char tão alto que ela teve de deixar a fraseincompleta. “Ai, ai, ai!” gritava ela,sacudindo a mão como se quisesse fazê-lavoar fora. “Meu dedo está sangrando! Ai, ai,ai, ai!”

Seus guinchos eram tão exatamenteiguais ao apito de uma locomotiva que Aliceteve de tapar os ouvidos com as duas mãos.

“O que aconteceu?” quis saber, assim queteve uma chance de se fazer ouvir. “Furou odedo?”

“Não ainda,” a Rainha disse, “mas voufurar logo, logo… ai, ai, ai!”

“Quando espera fazer isso?” Alice per-guntou, com muita vontade de rir.

“Quando prender meu xale de novo!” apobre Rainha gemeu; “o broche vai se abrir

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já. Ai, ai!” Enquanto dizia isso o broche seabriu e a Rainha o agarrou desvairada-mente, tentando fechá-lo de novo.

“Cuidado!” exclamou Alice. “Você estásegurando o broche todo torto!” E o agar-rou; mas era tarde demais: o alfinete escor-regara e a Rainha furara o dedo.

“Isso explica o sangramento, vê?” disseela a Alice com um sorriso. “Agora você en-tende como as coisas acontecem aqui.”

“Mas por que não grita agora?” Alice per-guntou, com as mãos em posição para taparos ouvidos de novo.

“Ora, já gritei o que tinha de gritar”,disse a Rainha. “Qual seria o proveito de re-petir tudo?”

A essa altura, estava clareando. “Achoque o corvo deve ter voado para longe”,disse Alice. “Estou tão contente que tenhaido embora. Pensei que era a noitechegando.”

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“Gostaria… de conseguir ficar contente!”a Rainha disse. “Só que nunca lembro a re-gra. Você deve ser muito feliz, vivendo nestebosque e ficando contente quando lheapraz!”

“Só que isto aqui é tão solitário!” disseAlice, melancólica; e à ideia de sua solidãoduas grossas lágrimas lhe rolaram pelasfaces.

“Oh, não fique assim!” exclamou a pobreRainha, torcendo as mãos em desespero.“Considere a menina grande que você é.Considere a longa distância que percorreuhoje. Considere que horas são. Considerequalquer coisa, mas não chore!”

Alice não pôde deixar de rir disso,mesmo em meio às suas lágrimas. “Vocêconsegue parar de chorar fazendo consider-ações?” perguntou.

“É assim que se faz”, disse a Rainha commuita decisão; “ninguém pode fazer duas

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coisas ao mesmo tempo, não é? Paracomeçar, vamos considerar a sua idade…quantos anos tem?”

“Exatamente sete anos e meio.”“Não precisa dizer ‘exatualmente’”, a

Rainha observou. “Posso acreditar sem isso.Agora vou lhe dar uma coisa em que acredit-ar. Tenho precisamente cento e um anos,cinco meses e um dia.”

“Não posso acreditar nisso!” disse Alice.“Não?” disse a Rainha, com muita pena.

“Tente de novo: respire fundo e feche osolhos.”

Alice riu. “Não adianta tentar”, disse;“não se pode acreditar em coisasimpossíveis.”

“Com certeza não tem muita prática”,disse a Rainha. “Quando eu era da sua id-ade, sempre praticava meia hora por dia.Ora, algumas vezes cheguei a acreditar em

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até seis coisas impossíveis antes do café damanhã. Lá se vai meu xale de novo!”

O broche se abrira enquanto ela falava, euma súbita lufada de vento carregara o xaleda Rainha para a outra margem de umpequeno riacho. A Rainha abriu os braços denovo, e saiu voando em busca dele, dessavez conseguindo agarrá-lo por si mesma.“Peguei-o!” gritou num tom triunfante.“Agora você vai me ver prendê-lo de novo,sozinha!”

“Nesse caso, seu dedo está melhor agora,não é?” Alice disse muito polidamente, en-quanto saltava o riachinho atrás da Rainha.

“Oh, muito melhor!” gritou a Rainha, avoz se elevando a um guincho à medida quefalava. “Muito me-lhor! Me-lhor! Me-e-e-elhor! Me-e-é!” A última palavra terminounum longo balido, tão parecido com o deuma ovelha que Alice realmente levou umsusto.

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Olhou para a Rainha, que parecia ter seenrolado em lã de repente. Esfregou os olhose olhou de novo. Não conseguia entendernada do que tinha acontecido. Estaria numaloja? E era mesmo… era mesmo uma ovelhaque estava sentada do outro lado do balcão?Por mais que esfregasse os olhos, tudo queconseguia entender era: estava numa lojinhaescura, com os cotovelos apoiados no bal-cão, e diante de si estava uma velha Ovelha,sentada numa poltrona tricotando, e vez poroutra parando para fitá-la através de umgrande par de óculos.

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“O que deseja comprar?” perguntou aOvelha, erguendo os olhos do seu tricô porum instante.

“Ainda não sei muito bem”, Alice re-spondeu, muito gentilmente. “Gostaria de

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dar uma olhada em tudo à minha voltaprimeiro, se me permite.”

“Pode olhar para a sua frente, e para osdois lados, se quiser”, disse a Ovelha, “masnão pode olhar para tudo à sua volta… amenos que tenha olhos na nuca.”

Acontece que isso Alice não tinha; assim,contentou-se em dar um giro, olhando asprateleiras enquanto as percorria.

A loja parecia cheia de toda sorte decoisas curiosas… mas o mais estranho detudo era que, cada vez que fixava os olhosem alguma prateleira para distinguir o quehavia nela, essa prateleira específica estavasempre completamente vazia, embora asoutras em torno estivessem completamenteabarrotadas.

“As coisas aqui são tão fugidias!”comentou por fim num tom queixoso, depoisde ter passado cerca de um minutoperseguindo em vão uma coisa grande e

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lustrosa, que às vezes parecia uma boneca eoutras vezes uma caixa de costura, e sempreestava na prateleira acima da que estava ol-hando. “E isto é o mais irritante de tudo…mas vou lhe mostrar…”, acrescentou, as-saltada por um súbito pensamento. “Vousegui-la até a prateleira mais alta de todas.Vai se ver em apuros para atravessar o teto,imagino!”

Mas até esse plano malogrou: a “coisa”atravessou o teto na maior tranquilidadepossível, como se estivesse muito acos-tumada a isso.

“Você é uma criança ou um pião?” dissea Ovelha enquanto pegava outro par deagulhas. “Vai me deixar tonta já, já, se con-tinuar girando desse jeito.” Agora estava tra-balhando com catorze pares de agulha aomesmo tempo e Alice não conseguia de-spregar os olhos dela, espantadíssima.

“Como consegue tricotar com tantas?”pensou a atônita criança consigo mesma. “A

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cada minuto ela se parece mais e mais comum porco-espinho!”

“Sabe remar?” a Ovelha perguntou,estendendo-lhe um par de agulhas de tricôenquanto falava.

“Sei, um pouco… mas não no seco… enão com agulhas…” Alice estava começandoa dizer, quando, de repente, as agulhas vir-aram remos em suas mãos e ela descobriuque estavam num barquinho, deslizandoentre ribanceiras — de modo que só lherestava remar o melhor que podia.

“Nivelar!” gritou a Ovelha, pegando umoutro par de agulhas.

Como esta observação não pareciarequerer nenhuma resposta, Alice nada dissee continuou remando. Havia algo de muitoestranho na água, ela pensou, pois volta emeia os remos emperravam e só a custosaíam da água.

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“Nivelar! Nivelar!” a Ovelha gritou denovo, pegando mais duas agulhas. “Já, já vaiacabar enforcando o remo.”

“Por que faria isso?” pensou Alice. “Tãocruel.”

“Não me ouviu dizer ‘Nivelar?’” gritou aOvelha, furiosa, pegando um punhado deagulhas.

“Ouvi, de fato”, admitiu Alice: “disse issovárias vezes… e muito alto. Por favor, comose enforcam remos?”

“Com corda, é claro!” disse a Ovelha, es-petando algumas das agulhas na lã, pois jánão cabiam nas mãos. “Nivelar, estoudizendo!”

“Por que fica dizendo ‘nivelar’ o tempotodo?” Alice finalmente perguntou, um tantoirritada. “Não estou desnivelada!”

“Está, sim”, disse a Ovelha, “você é umapatinha pateta.”

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Como isso deixou Alice um pouco ofen-dida, não houve mais conversa por umminuto ou dois, enquanto elas deslizavamsuavemente, às vezes entre ilhas de algas(que faziam os remos resistirem ainda maisà água), e às vezes sob árvores, mas semprecom as mesmas ribanceiras sobre suascabeças.

“Ah, por favor! Há uns juncos perfuma-dos!” Alice exclamou, subitamente enlevada.“Há mesmo… e são tão lindos!”

“Não precisa me dizer ‘por favor’ porcausa disso”, a Ovelha respondeu sem tiraros olhos do seu tricô. “Não fui eu quem ospus ali, não sou eu quem vou tirá-los.”

“Não, mas o que eu quis dizer foi, por fa-vor, podemos esperar e colher alguns?”Alice suplicou. “Se não se importa de pararo barco por um minuto.”

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“Como posso eu pará-lo?” perguntou aOvelha. “Se você parar de remar, ele parapor si mesmo.”

Assim deixou-se o barco seguir peloribeirão ao seu bel-prazer, até que deslizousuavemente para o meio dos juncos oscil-antes. Então as manguinhas foram cuida-dosamente arregaçadas, e os bracinhos mer-gulhados até os cotovelos para pegar os jun-cos bem mais abaixo antes de quebrá-los… epor algum tempo a Ovelha e seu tricô sum-iram da cabeça de Alice, enquanto ela sedebruçava sobre a borda do barco, só aspontas dos cabelos emaranhados mergul-hando na água… e, com olhos faiscantes esôfregos, apanhava feixe após feixe dos en-cantadores juncos perfumados.

“Espero que o barco não vire!” disse parasi mesma. “Oh, que lindo é aquele. Só quenão consegui alcançá-lo.” E certamente pare-cia um pouco enervante (“quase como sefosse de propósito”, ela pensou) que, embora

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conseguisse colher quantidades de lindosjuncos à medida que o bote deslizava,houvesse sempre um mais lindo que não po-dia alcançar.

“Os mais bonitos estão sempre maislonge!” disse por fim, com um suspiro ante ateimosia dos juncos em crescerem tão afasta-dos, enquanto, faces afogueadas e cabelo emãos pingando, tentava voltar a seu lugar ecomeçava a arrumar seus recém-descobertostesouros.

Que lhe importava naquele momento queos juncos tivessem começado a murchar e aperder seu perfume e beleza, desde o mo-mento em que os colhera? Até juncos per-fumados reais, como você sabe, duram sópor pouco tempo… e esses, sendo juncos desonho, derretiam quase como neve enquantorepousavam em feixes aos pés dela… masAlice mal percebeu isso, tantas outras coisascuriosas tinha para pensar.

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Não tinham ido muito longe quando a páde um dos remos emperrou firme na água ese recusou a sair (assim Alice explicou issomais tarde); e a consequência foi que opunho dele acertou-a sob o queixo, e, apesarde uma série de “ai, ai, ai” da pobre Alice,derrubou-a do assento e a afundou no montede juncos.

Mas ela não se machucou nadinha e logoestava de pé de novo. Enquanto isso aOvelha continuava com seu tricô, como senada tivesse acontecido. “Que belo remo vo-cê enforcou!” ela observou, quando Alicevoltava ao seu lugar, bastante aliviada porainda estar no barco.

“Enforquei? Nesse caso foi sem querer”,disse Alice espiando a água escura sobre aborda do barco cautelosamente. “Espero quenão tenha sofrido muito, não gosto de enfor-car nada!” Mas a Ovelha só riu com desdéme continuou tricotando.

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“Há muitos remos enforcados aqui?” per-guntou Alice.

“Remos enforcados e todo tipo decoisas”, disse a Ovelha. “Coisas para todogosto, é só decidir. Diga-me, o que você quercomprar?”

“Comprar!” Alice repetiu num tom entreespantado e aterrorizado — pois os remos, obarco, o rio, haviam todos desaparecidonum instante, e ela estava de novo nalojinha escura.

“Gostaria de comprar um ovo, por gen-tileza”, disse timidamente. “Como osvende?”

“Cinco pence por um… Dois pence pordois”, a Ovelha respondeu.

“Então dois custam menos que um?” per-guntou Alice surpresa, pegando a bolsa.

“Só que, se comprar dois, tem de comê-los”, disse a Ovelha.

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“Nesse caso quero um, por favor”, disseAlice, pondo o dinheiro no balcão. Pois pen-sou consigo mesma: “Os dois não devem sergrande coisa.”

A Ovelha pegou o dinheiro e o guardounuma caixa. Depois disse: “Eu nunca ponhocoisas nas mãos das pessoas… não é con-veniente… você mesma terá de pegá-lo.” Eassim dizendo foi para o outro canto da lojae pôs um ovo em pé numa prateleira.

“Pergunto-me por que seria inconveni-ente?” pensou Alice, enquanto tentava sedeslocar por entre as mesas e cadeiras, poiso fundo da loja era muito escuro. “Quantomais ando em direção ao ovo, mais longe eleparece ficar. Deixe-me ver… isto é uma ca-deira? Ui! Ela tem galhos, tem sim! Como éestranho ter árvores crescendo aqui! E defato aqui está um pequeno riacho! Bem, estaé a loja mais esquisita que já vi!”

Assim foi ela, espantando-se mais e maisa cada passo, pois todas as coisas viravam

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árvore tão logo as alcançava, e ela estavacerta de que o ovo faria o mesmo.

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CAPÍTULO 6

Humpty Dumpty

O OVO, PORÉM, FOI SÓ FICANDO cada vez maior, ecada vez mais humano. Quando chegou a al-guns metros dele, Alice viu que tinha olhos,nariz e boca. E quando chegou bem perto,viu claramente que era HUMPTY DUMPTY * empessoa. “Não pode ser mais ninguém!” dissepara si mesma. “Tenho tanta certeza quantose ele tivesse o nome escrito na cara.”

Teria sido possível escrevê-lo uma cen-tena de vezes, facilmente, naquela caraenorme. Humpty Dumpty estava sentado, depernas cruzadas como um turco, em cima de

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um muro alto — tão estreito que Alice seperguntou assombrada como conseguiamanter o equilíbrio — e, como ele mantinhaos olhos fixos na direção oposta, não to-mando conhecimento dela, pensou que, afi-nal, devia ser um presunçoso.

“Parece um ovo sem tirar nem pôr!”disse alto, com as mãos prontas para segurá-lo, pois temia que caísse a qualquermomento.

“É muito irritante”, Humpty Dumptydisse após um longo silêncio, sem olhar paraAlice enquanto falava, “ser chamado deovo… muito!”

“Disse que parecia um ovo, Sir”, Alice ex-plicou gentilmente. “E há ovos muito boni-tos, sabe”, acrescentou, na esperança detransformar seu comentário numa espécie deelogio.

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“Certas pessoas”, disse Humpty Dumpty,desviando os olhos dela como sempre,“parecem não ter mais juízo que um bebê!”

Alice não soube responder. Aquilo não separecia nada com uma conversa, pensou,pois ele nunca dizia nada para ela; na ver-dade, seu último comentário foi evidente-mente dirigido a uma árvore — assim, ficouquieta e repetiu suavemente para si mesma:

Humpty Dumpty num muro se aboletou,Humpty Dumpty lá de cima despencou.Todos os cavalos e os homens do Rei a arfarNão conseguiram de novo lá para cima o içar.

“Este último verso parece longo demaispara o poema”, acrescentou, quase em vozalta, esquecendo que Humpty Dumpty aouviria.

“Não fique aí falando sozinha dessejeito”, Humpty Dumpty disse, olhando para

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ela pela primeira vez, “melhor me dizer seunome e atividade.”

“Meu nome é Alice, mas…”“Um nome bem bobo!” Humpty Dumpty

a interrompeu com impaciência. “O quesignifica?”

“Um nome deve significar alguma coisa?”Alice perguntou ambiguamente.

“Claro que deve”, Humpty Dumpty re-spondeu com uma risada curta. “Meu nomesignifica meu formato… aliás um belo form-ato. Com um nome como o seu, você poder-ia ter praticamente qualquer formato.”

“Por que fica sentado aqui sozinho?”disse Alice, não querendo iniciar umadiscussão.

“Ora, porque não há ninguém aquicomigo!” exclamou Humpty Dumpty. “Pen-sou que não teria resposta para isso? Per-gunte outra.”

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“Não acha que ficaria mais seguro nochão?” Alice continuou, não com qualquerideia de propor um outro enigma, masmovida pela simples ansiedade benévola quea estranha criatura despertava nela. “Essemuro é tão estreitinho!”

“Que enigmas absurdamente fáceis vocêpropõe!” Humpty Dumpty resmungou.“Claro que não acho! Se por acaso eu caísse— o que não tem a menor chance de aconte-cer — mas se eu caísse…” Aqui franziu os lá-bios e pareceu tão solene e majestático queAlice mal pôde conter o riso. “Se eu caísse”,continuou, “o Rei me prometeu… ah, podeempalidecer, se quiser! Não esperava que eufosse dizer isto, esperava? O Rei me promet-eu… da sua própria boca… que… que…”

“Mandaria todos os seus cavalos e todosos seus homens”, Alice interrompeu, demaneira muito imprudente.

“Francamente, isto é horrível!” HumptyDumpty gritou, lançando-se numa fúria

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repentina. “Andou escutando atrás dasportas… e atrás das árvores… e pelas cham-inés… ou não poderia saber disso!”

“Não andei, verdade!” Alice disse muitogentilmente. “Está num livro.”

“Ah, bem! Podem escrever coisas assimnum livro”, disse Humpty Dumpty num tommais calmo. “É o que vocês chamam umaHistória da Inglaterra, é isso. Ora, olhe bempara mim! Sou um daqueles que falou comum Rei, eu sou: pode ser que você nuncaveja outro. E para lhe mostrar que não souorgulhoso, pode apertar a minha mão!”Abriu um sorriso quase de uma orelha àoutra enquanto estendia a mão (e por umtriz não caiu do muro ao fazê-lo) e a ofere-cia a Alice. Ela olhou para ele um pouco afl-ita enquanto a apertava. “Se abrisse mais osorriso os cantos da sua boca poderiam seencontrar atrás”, pensou, “e nesse caso nãosei o que aconteceria com a sua cabeça. Ser-ia capaz de saltar fora!”

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“Sim, todos os seus homens e todos osseus cavalos”, Humpty Dumpty continuou.“Eles me levantariam de novo num segundo,levantariam sim! Mas esta conversa estáavançando um pouco depressa demais.Vamos voltar para sua penúltimaobservação.”

“Temo não poder lembrar qual foi”, disseAlice, muito polidamente.

“Neste caso, vamos recomeçar do zero”,disse Humpty Dumpty, “e é minha vez deescolher o assunto…” (“Ele fala exatamentecom se fosse um jogo!” pensou Alice.) “Port-anto, aqui está uma pergunta para você.Quantos anos disse que tinha?”

Alice fez um rápido cálculo e respondeu:“Sete anos e seis meses.”

“Errado!” Humpty Dumpty exclamou, tri-unfante. “Você nunca disse tais palavras!”

“Pensei que queria dizer ‘Quantos anosvocê tem?’” Alice explicou.

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“Se tivesse querido dizer isso, teria ditoisso”, disse Humpty Dumpty.

Não querendo começar outra discussão,Alice não disse nada.

“Sete anos e seis meses!” HumptyDumpty repetiu, pensativo. “Uma idademuito incômoda. Se tivesse pedido o meuconselho, eu teria dito: ‘pare nos sete’… masagora é tarde.”

“Nunca peço conselho sobre cresci-mento”, Alice disse indignada.

“Orgulhosa demais?” o outro perguntou.Essa sugestão deixou Alice ainda mais in-

dignada. “Quero dizer que uma pessoa nãopode evitar ficar mais velha.”

“Uma não pode, talvez”, disse HumptyDumpty, “mas duas podem. Com a devidaassistência, você teria podido parar emsete.”

“Que cinto bonito o seu!” Alice observoude repente. (Já tinham falado mais que o

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bastante sobre idade, ela pensou; e se real-mente iam revezar na escolha de assuntos,agora era a sua vez.) “Pelo menos”, corrigiu-se, após pensar melhor, “uma bela gravata,eu devia ter dito… não, um cinto… querodizer… perdoe-me!” acrescentou as-sustadíssima, pois Humpty Dumpty pareciaextremamente ofendido e ela começou adesejar não ter escolhido aquele assunto. “Seeu pelo menos soubesse”, pensou consigo, “oque é pescoço e o que é cintura!”

Era evidente que Humpty Dumpty estavamuito zangado, embora não tenha dito nadapor um minuto ou dois. Quando falou denovo, foi num rosnado rouco.

“É uma… coisa extremamente… irritante”,disse por fim, “que uma pessoa não saibadistinguir uma gravata de um cinto!”

“Sei que é muita ignorância minha”,disse Alice, num tom tão humilde queHumpty Dumpty abrandou.

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“É uma gravata, criança, e uma belagravata, como você diz. Foi um presente doRei e da Rainha Brancos. Que me dizagora?”

“Foi mesmo?” perguntou Alice, muitocontente ao ver que tinha escolhido um bomassunto afinal de contas.

“Deram-me a gravata”, Humpty Dumptycontinuou, pensativo, enquanto cruzava osjoelhos e punha as mãos em volta deles,“deram-me… como um presente dedesaniversário.”

“Perdão?” Alice perguntou, perplexa.“Não estou ofendido”, disse Humpty

Dumpty.“Quero dizer, o que é um presente de

desaniversário?”“Um presente dado quando não é seu

aniversário, é claro.”

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Alice refletiu um pouco. “Gosto mais depresentes de aniversário”, declaroufinalmente.

“Não sabe do que está falando!” exclam-ou Humpty Dumpty. “Quantos dias há noano?”

“Trezentos e sessenta e cinco”, disseAlice.

“E quantos aniversários você faz?”“Um.”“E se diminui um de trezentos e sessenta

e cinco, resta quanto?”“Trezentos e sessenta e quatro, claro.”Humpty Dumpty pareceu duvidar.

“Preferiria ver essa conta no papel”, disse.Alice não pôde conter um sorriso en-

quanto pegava sua caderneta e armava asubtração para ele.

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Humpty Dumpty pegou a caderneta eexaminou-a atentamente. “Parece estar cor-reto…” começou.

“Está segurando de cabeça para baixo!”Alice interrompeu.

“Claro que estava!” Humpty Dumptydisse jovialmente, enquanto ela a desviravapara ele. “Pareceu-me um pouco estranho.Como eu ia dizendo, parece estar correto —embora eu não tenha tido tempo deexaminá-la a fundo neste instante — e issomostra que há trezentos e sessenta e quatrodias em que você poderia ganhar presentesde desaniversário…”

“Sem dúvida”, disse Alice.“E só um para ganhar presentes de

aniversário, vê? É a glória para você!”

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“Não sei o que quer dizer com ‘glória’”,disse Alice.

Humpty Dumpty sorriu, desdenhoso.“Claro que não sabe… até que eu lhe diga.Quero dizer ‘é um belo e demolidor argu-mento para você!’”

“Mas ‘glória’ não significa ‘um belo e de-molidor argumento’”, Alice objetou.

“Quando eu uso uma palavra”, disseHumpty Dumpty num tom bastante desden-hoso, “ela significa exatamente o que queroque signifique: nem mais nem menos.”

“A questão é”, disse Alice, “se pode fazeras palavras significarem tantas coisasdiferentes.”

“A questão”, disse Humpty Dumpty, “ésaber quem vai mandar — só isto.”

Alice estava perturbada demais paradizer o que quer que fosse, de modo que,após um minuto, Humpty Dumpty re-começou. “São temperamentais, algumas…

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em particular os verbos, são os mais orgul-hosos… com os adjetivos pode-se fazerqualquer coisa, mas não com os verbos…contudo, sei manobrar o bando todo! Impen-etrabilidade! É o que eu digo!”

“Poderia me dizer, por favor”, disseAlice, “o que isso significa?”

“Agora está falando como uma criançasensata”, disse Humpty Dumpty, parecendomuito satisfeito. “Quero dizer com ‘impenet-rabilidade’ que já nos fartamos deste assuntoe que seria muito bom se você mencionasseo que pretende fazer em seguida, já que pre-sumo que não pretende ficar aqui pelo restoda sua vida.”

“É um bocado para fazer uma palavrasignificar”, disse Alice, pensativa.

“Quando faço uma palavra trabalhartanto assim”, disse Humpty Dumpty,“sempre lhe pago um adicional.”

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“Oh!” disse Alice. Estava perplexa de-mais para fazer qualquer outra observação.

“Ah, precisava vê-las vindo me visitarnum sábado à noite”, Humpty Dumpty con-tinuou, balançando a cabeça gravemente deum lado para outro, “para receber seussalários, sabe?”

(Alice não se atreveu a perguntar comque as pagava; por isso, como vê, não possolhe contar.)

“Parece muito habilidoso para explicarpalavras, Sir”, disse Alice. “Faria a gentilezade me dizer o significado do poema cha-mado ‘Pargarávio’?”

“Vamos ouvi-lo”, disse Humpty Dumpty.“Posso explicar todos os poemas que já fo-ram inventados — e muitos que ainda não oforam.”

Como isso soava muito auspicioso, Alicerepetiu a primeira estrofe:

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Solumbrava, e os lubriciosos touvosEm vertigiros persondavam as verdentes;

Trisciturnos calavam-se os gaiolouvosE os porverdidos estriguilavam fientes.

“Isso basta para começar”, HumptyDumpty interrompeu-a, “há um bocado depalavras difíceis aí. ‘Solumbrava’ quer dizerque a tarde caía: é aquela hora em que o solvai baixando e as sombras se alongam.”

“Isto explica direitinho”, disse Alice. “Elubriciosos?”

“Bem, ‘lubriciosos’ significa lúbricos, queé o mesmo que escorregadios, e operosos,ágeis. Entende, é uma palavra-valise… hádois sentidos embalados numa palavra só.”

“Agora entendo”, Alice comentou pens-ativa; “e que são ‘touvos’?”

“Bem, os ‘touvos’ são um tanto parecidoscom os texugos… têm um pouco de lagar-tos… e lembram muito um saca-rolha.”

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“Devem ser criaturas de aspecto muitoestranho.”

“E são”, disse Humpty Dumpty, “alémdisso, fazem seus ninhos sob relógios desol… ah, e se alimentam de queijo.”

“E que é ‘vertigiros’ e ‘persondavam’?”“‘Vertigiro’ é o giro vertiginosamente

rápido de uma verruma. ‘Persondar’ é perfur-ar perscrutando.”

“E ‘verdentes’ são os canteiros de gramaem volta de um relógio de sol, não é?” disseAlice, surpresa com a própria sagacidade.

“Mas é claro. Chamam-se assim porqueali os gafanhotos cortam a verde grama…”

“Com os dentes”, Alice acrescentou.“Exatamente. Depois, ‘trisciturno’ é triste,

taciturno e noturnal (mais uma palavra-valise para você). E ‘gaiolouvo’ é uma avemagricela de aspecto andrajoso com as pen-as espetadas para todo lado… lembra muitoum esfregão vivo.”

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“E os ‘porverdidos’?” perguntou Alice.“Receio estar lhe dando um trabalhão.”

“Bem, ‘porverdidos’ são porcos verdes queperderam o caminho de casa.”

“E que significa ‘estriguilavam’?”“Ora, ‘estriguilar’ é algo entre estridular,

guinchar, cricrilar, estrilar e assobiar, comuma espécie de espirro no meio — mas vocêterá oportunidade de ouvir isso, talvez… láno bosque distante… e quando tiver ouvidouma vez vai ficar completamente satisfeita.Quem andou recitando esta coisa com-plicada para você?”

“Li num livro”, disse Alice. “Mas an-daram recitando para mim um pouco depoesia, bem mais fácil que esta… foi oTweedledee, acho.”

“Por falar em poesia, sabe”, disseHumpty Dumpty, estendendo uma de suasgrandes mãos, “posso recitar poesia melhorque ninguém…”

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“Oh! Não tenho a menor dúvida!” Alicedisse mais que depressa, na esperança dedetê-lo.

“A peça que vou recitar”, ele continuousem notar esta última observação, “foi in-teiramente escrita para seu divertimento.”

Achando que, nesse caso, devia realmenteouvi-la, Alice se sentou e disse um “Obri-gada” desconsolado.

No inverno, quando tudo é alvo como leite,Canto esta canção só para o seu deleite…

“Só que não estou cantando”, acres-centou, à guisa de explicação.

“Estou vendo”, disse Alice.“Se consegue ver se estou cantando ou

não, tem olhos mais penetrantes que amaioria das pessoas”, Humpty Dumptyobservou severamente. Alice ficou calada.

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Na primavera, quando os bosques verdejam,Tentarei lhe dizer o que estes versos ensejam.

“Muito obrigada”, disse Alice.

No verão, quando é tão longo o dia,Talvez você entenda esta melodia;

No outono, estando as folhas a tombar,Trate de tudo isto no papel registrar.

“Vou registrar, se conseguir me lembraraté lá”, disse Alice.

“Não precisa ficar fazendo comentáriosdesse tipo”, disse Humpty Dumpty, “não têmcabimento e me confundem.”

Uma mensagem aos peixes fiz chegar;Expressando-lhes meu desejar.

E os peixinhos do marA resposta me deram sem tardar

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Era isto que tinham a dizer:“Isto não podemos, Sir, porque…”

“Acho que não estou entendendo muitobem”, disse Alice.

“Depois fica mais fácil”, Humpty Dumptyrespondeu.

De novo mandei lhes dizer:“Que tratassem de obedecer.”

A resposta chegou, insolente:“Ora vejam! Que gênio mais quente!”

Disse-lhes uma, disse-lhe duas vezesMas empacaram como reses.

Então uma chaleira nova pegueiPrópria para um fim que engenhei.

Meu coração pela boca quis sair

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Quando a chaleira até a borda enchi.

Alguém então me disse, sorrindo:“Psss! Os peixinhos estão dormindo!”

Respondi alto, sem pestanejar:“Ah é? Pois trate de os acordar.”

Falei bem claro, com voz de trovão,E ele ficou ali, como pregado no chão.

Humpty Dumpty elevou a voz quase numberro enquanto recitava esta estrofe, e Alicepensou com um arrepio: “Eu não teria sido omensageiro por nada neste mundo!”

Depois, emproado e atrevido,Exclamou: “Não me arrebente o ouvido!”

Tão petulante ele era, que disse:“Certo, vou acordá-los, se…”

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Num saca-rolha então passei a mãoE fui eu mesmo acordá-los com decisão.

Encontrei porém a porta trancada,Girei a maçaneta, mas nada…

Fez-se uma longa pausa.“Acabou?” Alice perguntou timidamente.“Acabou”, disse Humpty Dumpty. “Até

logo.”Aquilo era muito brusco, Alice pensou;

mas depois de uma insinuação tão forte deque devia ir embora sentiu que não seriapolido ficar. Assim, levantou-se e estendeu amão. “Adeus, até a próxima!” disse no tommais jovial que pôde.

“Eu não a reconheceria se nós nos encon-trássemos”, Humpty Dumpty respondeu numtom desgostoso, dando-lhe um de seus dedospara apertar: “você é tão exatamente igualàs outras pessoas.”

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“Em geral é o rosto que conta”, Aliceobservou, pensativa.

“É justamente do que me queixo”, disseHumpty Dumpty. “Seu rosto é igual ao detodo mundo… os dois olhos, tão…” (mar-cando o lugar deles no ar com o polegar)“nariz no meio, boca embaixo. É sempre amesma coisa. Agora, se você tivesse os doisolhos do mesmo lado do nariz, por exem-plo… ou a boca no alto… isso seria de al-guma ajuda.”

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“Não ficaria bonito”, Alice objetou. MasHumpty Dumpty só fechou os olhos e disse:“Espere até experimentar.”

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Alice esperou um minuto para ver se elefalaria de novo, mas como não voltou a ab-rir os olhos nem tomou o menor conheci-mento dela, disse “Adeus” mais uma vez e,não obtendo nenhuma resposta, foi-se emsilêncio. Mas não pôde deixar de dizer parasi mesma ao partir: “De todas as pessoas in-satisfatórias…” (repetiu isto alto, pois eraum grande consolo ter uma palavra tão com-prida para dizer) “de todas as pessoas insat-isfatórias que já encontrei…” Nunca termin-ou a frase, porque nesse momento umenorme estrondo sacudiu o bosque de pontaa ponta.

* Em inglês, a expressão “Humpty-Dumpty” é usada comotermo ofensivo para alguém “baixinho e gordo”. Há váriasversões sobre a origem da expressão, entre elas: a) datariado final do século XVIII e viria do personagem da cantiga decrianças “Humpty-Dumpty”; b) seria um poderoso canhão

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usado na Guerra Civil inglesa (1642-49) para defender aIgreja de Colchester no cerco do verão de 1648 — o canhãofoi atingido e os homens do rei não conseguiram consertá-lo; c) a sonoridade aludiria a Ricardo III, que era corcunda emanco. Cercado de tropas inimigas e atacado, seu corpo foicortado em pedaços. (N.T.)

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CAPÍTULO 7

O Leão e o Unicórnio

UM INSTANTE DEPOIS surgiram soldados correndopelo bosque, de início em pares, ou em três,depois em bandos de dez ou vinte, e por fimem massas tão grandes que pareciam enchertoda a floresta. Alice se escondeu atrás deuma árvore, com medo de ser pisoteada, eficou vendo-os passar.

Pensou que em toda a sua vida nuncatinha visto soldados tão trôpegos:tropeçavam o tempo todo em uma coisa ououtra, e sempre que um caía vários outroscaíam sobre ele, de tal modo que o chão

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logo ficou coberto com montinhos dehomens.

Depois vieram os cavalos. Com quatropatas, saíam-se bem melhor que os soldados;mas até eles tropeçavam vez por outra; eparecia ser norma geral que, sempre que umcavalo tropeçava, o cavaleiro caía imediata-mente. A confusão piorava a cada momento,e Alice ficou feliz de sair do bosque para umdescampado, onde encontrou o Rei Brancosentado no chão tomando notas atarefada-mente em seu bloco de anotações.

“Mandei-os todos!” o Rei exclamou deli-ciado, ao ver Alice. “Por acaso encontrousoldados, minha cara, ao passar pelobosque?”

“Encontrei”, disse Alice, “vários mil-hares, eu diria.”

“Quatro mil duzentos e sete, é o númeroexato”, disse o Rei consultando o bloco.“Não pude mandar todos os cavalos, sabe,

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porque dois deles são necessários para ojogo. Também não mandei os doisMensageiros. Foram ambos à cidade. Dêuma olhada na estrada, e diga-me se podever algum deles.”

“Ninguém à vista”, disse Alice.“Só queria ter olhos como esses”, obser-

vou o Rei num tom irritado. “Ser capaz dever Ninguém! E à distância! Ora, o máximoque eu consigo é ver pessoas reais, com estaluz!”

Alice não ouviu nada disto, absorta queainda estava em olhar a estrada, protegendoos olhos com uma das mãos. “Estou vendoalguém agora!” exclamou finalmente. “Masvem muito devagar… e que maneiras curio-sas tem!” (Pois o Mensageiro saltitava e seretorcia como uma enguia o tempo todo en-quanto avançava, com suas grandes mãosabertas como leques de cada lado.)

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“Em absoluto”, disse o Rei. “É umMensageiro Anglo-Saxão… e essas são asmaneiras anglo-saxãs. Só as exibe quandoestá feliz. Seu nome é Haigha. (Pronunciou-o de modo a rimar com “mayor”.)

“Amo meu amor com um H,” Alice nãoresistiu a começar, “porque é Habilidoso.Detesto-o com um H porque é Horroroso.Alimento-o com… com… Hadoque com pão

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e Hortaliças. Seu nome é Haigha, e elemora…”

“Mora na Hospedaria”, observou o rei in-genuamente, sem a mínima ideia de que es-tava entrando no jogo, quando Alice aindahesitava entre nomes de cidade começandocom H. “O outro mensageiro chama-se Hatta.Preciso ter dois… para vir e ir. Um para vir eum para ir.”

“Perdão?” disse Alice.“Não há o que perdoar”, disse o Rei.“Só quis dizer que não tinha entendido”,

disse Alice. “Por que um para vir e outropara ir?”

“Não lhe disse?” o Rei repetiu, impa-ciente. “Tenho de ter dois: para trazer elevar. Um para trazer e um para levar.”

Nesse momento o Mensageiro chegou; es-tava esbaforido demais para dizer qualquercoisa, e só conseguia acenar as mãos e fazeras mais pavorosas caretas para o pobre Rei.

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“Esta senhorita o ama com um H”, o Reidisse, apresentando Alice na esperança dedesviar de si a atenção do Mensageiro —mas não adiantou… as maneiras anglo-saxãssó ficavam ainda mais estrambóticas a cadamomento, enquanto os grandes olhos ro-lavam freneticamente de um lado paraoutro.

“Está me assustando!” disse o Rei. “Achoque vou desmaiar… dê-me um hadoque!”

Ante o que o Mensageiro, para grande di-vertimento de Alice, abriu uma sacola quetrazia enrolada no pescoço e entregou umhadoque ao Rei, que o devorousofregamente.

“Mais um hadoque!”“Agora só sobraram hortaliças”, disse o

Mensageiro, espiando pela boca da sacola.“Hortaliças, então”, o Rei murmurou

num débil sussurro.

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Alice ficou satisfeitíssima ao ver queaquilo o revigorava muito. “Não há nadacomo comer hortaliças quando se está desfa-lecendo”, ele observou para ela, enquantomascava.

“Diria que lhe jogar um pouco de águafria seria melhor”, Alice sugeriu, “ou sais.”

“Não disse que não havia nada melhor”, oRei respondeu. “Disse que não há nada comoisso.” O que Alice não se aventurou a negar.

“Por quem passou na estrada?” continu-ou o Rei, esticando a mão para o Mensageiroa pedir mais hortaliças.

“Ninguém”, disse o Mensageiro.“Correto”, disse o Rei, “esta senhorita o

viu também. Nesse caso, evidentemente Nin-guém anda mais devagar que você.”

“Faço o que posso”, o Mensageiro re-spondeu, aborrecido. “Tenho certeza de queninguém anda muito mais depressa do queeu!”

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“Não pode andar”, disse o Rei, “ou teriachegado aqui primeiro. Mas agora você járecobrou o fôlego, pode nos contar o queaconteceu na cidade.”

“Vou cochichar”, disse o Mensageiro,pondo as mãos em concha sobre a boca ecurvando-se de modo a se aproximar doouvido do Rei. Alice ficou sentida, pois quer-ia ouvir as notícias também. Contudo, emvez de sussurrar, ele simplesmente gritou aplenos pulmões: “Começaram de novo!”

“Chama isso de cochichar?” exclamou opobre Rei, dando um pulo e estremecendo.“Se fizer tal coisa de novo, vou mandaramanteigá-lo! Abalou minha cabeça inteiracomo um terremoto!”

“Deve ter sido um terremoto bempequenininho!” pensou Alice. “Quemcomeçou de novo?” arriscou-se a perguntar.

“Ora, o Leão e o Unicórnio, é claro”,disse o Rei.

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“Lutando pela coroa?”“Sem dúvida”, disse o Rei; “e o melhor

da piada é que é sempre pela minha coroa!Vamos correr até lá para vê-los.” E lá se fo-ram, Alice repetindo para si mesma, en-quanto corria, as palavras da velha canção:

O Leão e o Unicórnio pela real coroa pelejaram:Deram um belo espetáculo para todos que

assistiram.Com pão branco, preto e bolo de passas os

regalaram.Até que, cansados, a toque de tambor os

expulsaram.

“Aquele… que… vence… fica com acoroa?” ela perguntou, o melhor que pôde,pois a corrida a estava deixando completa-mente sem fôlego.

“Ó céus, não!” exclamou o Rei. “Queideia!”

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“Vossa Majestade se importaria de pararum minuto… só para… recobrarmos umpouco o fôlego?”

“Não me importaria nada”, disse o Rei,“só não tenho força para tanto. Veja, umminuto passa tão terrivelmente rápido. Seriao mesmo que tentar parar umCapturandam!”

Como Alice já não tinha fôlego parafalar, seguiram correndo em silêncio, atéque avistaram uma grande multidão, nomeio da qual o Leão e o Unicórnio estavamlutando. Estavam envoltos por tal nuvem depoeira que, a princípio, Alice não pôde dis-tinguir qual era qual: mas logo conseguiuidentificar o Unicórnio, pelo chifre.

Puseram-se perto de Hatta, o outroMensageiro, que estava de pé assistindo àluta com uma xícara de chá numa das mãose o pedaço de pão com manteiga na outra.

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“Ele acabou de sair da prisão e não tinhaterminado seu chá quando o chamaram”,Haigha cochichou para Alice. “E lá eles sólhes dão conchas de ostras… por isso sentemmuita fome e sede. Como vai você, meuquerido?” continuou, abraçando afetu-osamente o pescoço de Hatta.

Hatta olhou em volta, assentiu com acabeça, e voltou ao seu pão com manteiga.

“Sentia-se feliz na prisão, meu querido?”perguntou Haigha.

Hatta olhou em volta de novo, e dessavez uma lágrima ou duas lhe rolaram pelasfaces; mas não disse uma palavra.

“Fale, não pode?” Haigha gritou, impa-ciente. Mas Hatta só continuou mastigando etomou mais um pouco de chá.

“Fale, vamos!” gritou o Rei. “Como elesestão se saindo na luta?”

Hatta fez um esforço desesperado e en-goliu um grande pedaço de pão com

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manteiga. “Estão se saindo muito bem”,disse numa voz engasgada. “Cada um foiderrubado cerca de oitenta e sete vezes.”

“Então, suponho que logo vão trazer opão branco e o preto?” Alice se atreveu aobservar.

“O pão está à espera deles agora”, disseHatta. “É um pedacinho dele que estoucomendo.”

Exatamente nesse momento houve umapausa na luta, e o Leão e o Unicórniosentaram-se, arfando, enquanto o Rei pro-clamava “Dez minutos para a merenda!”.Haigha e Hatta puseram mãos à obra imedi-atamente, trazendo bandejas redondas chei-as de pão branco e preto. Alice pegou umpedaço para experimentar, mas era muitoseco.

“Acho que não vão lutar mais hoje”, oRei disse a Hatta. “Vá e mande que os

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tambores comecem.” E lá se foi Hatta, salti-tando como um gafanhoto.

Por um minuto ou dois, Alice ficoucalada, observando-o. De repente, iluminou-se: “Vejam, vejam!” exclamou, apontandoanimada: “Lá vai a Rainha Branca, correndopelos campos! Veio voando daquelebosque… Como essas Rainhas correm rápido!

“Há algum inimigo em seu encalço, cer-tamente”, disse o Rei, sem nem mesmo olharem volta. “Esse bosque está cheio deles.”

“Mas não vai correr para ajudá-la?” Aliceperguntou, muito surpresa com a calma quemantinha.

“É inútil, inútil!” disse o Rei. “Ela correterrivelmente depressa. Seria o mesmo quetentar agarrar um Capturandam! Mas voufazer uma anotação sobre ela, se você quis-er… É uma boa e querida pessoa”, repetiusuavemente para si mesmo, enquanto abria

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seu bloco de anotações. “‘Pessoa’ se escrevecom cedilha?”

Nesse momento o Unicórnio passou per-ambulando por eles, as mãos nos bolsos.“Levei a melhor desta vez?” perguntou eleao Rei, lançando-lhe só um olhar de relance.

“Um pouco… um pouco”, o Rei re-spondeu, bastante nervoso. “Mas não deviatê-lo atravessado com seu chifre.”

“Não o machucou”, disse o Unicórnio,negligentemente, e estava se afastandoquando deu com os olhos em Alice: fezmeia-volta no mesmo instante e ficou ol-hando para ela um longo tempo, aparent-ando o mais profundo desagrado.

“O que… é… isso?” disse finalmente.“Isto é uma criança!” Haigha respondeu

animadamente, passando à frente de Alicepara apresentá-la e esticando as duas mãosbem abertas em direção a ela com suasmaneiras anglo-saxãs. “Nós só a

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encontramos hoje: tamanho real e duasvezes mais natural.”

“Sempre achei que elas eram monstrosfabulosos!” disse o Unicórnio. “É viva?”

“Sabe falar”, disse Haigha, solenemente.O Unicórnio lançou para Alice um olhar

sonhador e disse: “Fale, criança.”Alice não conseguiu conter um sorriso ao

começar: “Sabe, sempre pensei que os Un-icórnios eram monstros fabulosos também!Nunca vi um vivo antes.”

“Bem, agora que nos vimos um ao outro”,disse o Unicórnio, “se acreditar em mim,vou acreditar em você. Feito?”

“Feito, se lhe agrada”, disse Alice.“Vamos, vá buscar o bolo de passas, meu

velho!” continuou o Unicórnio, voltando-separa o Rei. “Não me venha com pão preto!”

“Certamente… certamente!” murmurou oRei, e acenou para Haigha. “Abra a sacola!”

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sussurrou. “Rápido! Essa não… está cheia dehúmus.”

Haigha tirou um grande bolo de dentrodo saco e o deu a Alice para segurar, en-quanto tirava um prato e uma faca de trin-char. Como tudo aquilo pôde sair dali, Alicenão tinha a menor ideia. Era uma espécie demágica, pensou.

Nesse meio-tempo, o Leão se juntara aeles: parecia muito cansado e sonolento, etinha os olhos semicerrados. “O que é isso?”disse, lançando um olhar preguiçoso paraAlice e falando num tom cavernoso quesoava como o badalar de um grande sino.

“Ah, e então? O que é isso?” o Unicórnioexclamou, animado. “Nunca vai adivinhar!Eu não consegui.”

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O Leão olhou para Alice enfadado. “Vocêé animal… vegetal… ou mineral?” disse, bo-cejando entre uma palavra e outra.

“É um monstro fabuloso!” o Unicórniogritou, antes que Alice pudesse responder.

“Então sirva o bolo de passas, Monstro”,disse o Leão, deitando-se e pousando oqueixo sobre as patas. “E sentem-se, vocêsdois!” (para o Rei e o Unicórnio). “Jogolimpo com o bolo, veja lá!”

O Rei estava evidentemente bastanteconstrangido por ter de se sentar entre

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aquelas duas criaturas, mas não havia outrolugar para ele.

“Que luta poderíamos ter pela coroaagora!” disse o Unicórnio, olhando dissimu-ladamente para a coroa, que o pobre Rei, detanto que tremia, estava prestes a arremes-sar fora da cabeça.

“Eu venceria facilmente”, disse o Leão.“Não estou tão certo disso”, disse o

Unicórnio.“Ora, eu o bati pela cidade inteira, seu

frangote!” o Leão respondeu furioso, quasese erguendo ao falar.

Nessa altura o Rei os interrompeu, paraimpedir que a briga fosse adiante; estavamuito nervoso e sua voz tremia: “Por toda acidade?” disse. “É muito chão. Passarampela ponte velha, ou pelo mercado? A mel-hor vista é a que se tem da ponte velha.”

“Não tenho ideia”, rosnou o Leão,deitando-se de novo. “Havia poeira demais

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para se ver qualquer coisa. Mas quantotempo esse Monstro leva para cortar essebolo!”

Alice se sentara à margem de um riach-inho, com o grande prato sobre os joelhos, eserrava diligentemente com a faca. “Isso émuito irritante!” disse, em resposta ao Leão(estava ficando perfeitamente acostumada aser chamada de “o Monstro”). “Já corteivárias fatias, mas elas sempre se juntam denovo!”

“Você não sabe lidar com bolos doEspelho”, observou o Unicórnio. “Primeirosirva-o e depois corte-o.”

Parecia absurdo, mas Alice levantou-semuito obedientemente e passou o prato pelaroda, e quando o fez o bolo se dividiu a simesmo em três pedaços. “Agora corte-o”,disse o Leão quando ela voltou para o seulugar com o prato vazio.

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“Isso não foi justo!” gritou o Unicórnioquando Alice se sentava com a faca na mão,muito embaraçada quanto à maneira decomeçar. “O Monstro deu para o Leão duasvezes mais do que para mim!”

“De qualquer maneira, não guardou nadapara si mesma”, disse o Leão. “Gosta de bolode passas, Monstro?”

Mas antes que Alice pudesse responder-lhe, os tambores começaram.

De onde vinha o barulho, ela não con-seguia distinguir: o ar parecia repleto dele, eressoava em toda a sua cabeça até deixá-lacompletamente surda. Aterrorizada,levantou-se de um pulo e saltou o riachinho,e só teve tempo de ver o Leão e o Unicórniose levantarem, parecendo furiosos por teremseu banquete interrompido, antes de cair dejoelhos e tapar os ouvidos com as mãos,tentando em vão calar a medonhabarulheira.

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“Se esse ‘toque de tambor’ não os ex-pulsar da cidade”, pensou consigo mesma,“nada o fará!”

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CAPÍTULO 8

“É uma invenção minha”

APÓS CERTO TEMPO o barulho pareceu desapare-cer pouco a pouco, até que tudo mergulhouem profundo silêncio, e Alice levantou acabeça, um pouco assustada. Não havia nin-guém à vista e seu primeiro pensamento foique devia ter estado sonhando com o Leão eo Unicórnio e aqueles esquisitosMensageiros Anglo-Saxões. No entanto, oenorme prato em que havia tentado cortar obolo de passas ainda estava a seus pés.“Então eu não estava sonhando, afinal decontas”, disse para si mesma, “a menos… a

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menos que sejamos todos parte do mesmosonho. Só espero que o sonho seja meu, enão do Rei Vermelho! Não gosto de perten-cer ao sonho de outra pessoa”, continuou,num tom bastante queixoso. “Sinto umaenorme vontade de ir acordá-lo e ver o queacontece!”

Nesse instante seus pensamentos foraminterrompidos por um grito alto de “Olá!Olá! Xeque!” e um Cavaleiro envergandouma armadura carmesim veio galopando nadireção dela, brandindo uma grande clava.Assim que a alcançou, o cavalo parou de re-pente. “Você é minha prisioneira!” o Ca-valeiro gritou, enquanto caía do cavalo.

Espantada como estava, Alice ficou commais medo por ele do que por si próprianaquele instante, e observou-o com certaaflição enquanto montava de novo. Assimque se instalou confortavelmente na sela, elerecomeçou: “Você é minha…” mas nessemomento uma outra voz se fez ouvir. “Olá!

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Olá! Xeque!” e Alice olhou em volta umtanto surpresa, à procura do novo inimigo.

Desta vez era o Cavaleiro Branco. Parouao lado de Alice, e caiu do cavalo exata-mente como o Cavaleiro Vermelho fizera;em seguida se levantou e os dois Cavaleirosficaram se olhando por algum tempo semfalar. Alice olhava de um para outro, umtanto atordoada.

“Ela é minha prisioneira, saiba!” dissepor fim o Cavaleiro Vermelho.

“Certo, mas nesse caso, eu vim e resgatei-a!” respondeu o Cavaleiro Branco.

“Bem, então temos de lutar por ela”,disse o Cavaleiro Vermelho, pegando o elmo(que estava pendurado na sela e cuja formalembrava a cabeça de um cavalo) eenfiando-o na cabeça.

“Vai respeitar as Regras de Batalha,não?” observou o Cavaleiro Branco, pondoseu elmo também.

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“Sempre respeito”, disse o Cavaleiro Ver-melho, e começaram a se bater com tal fúriaque Alice foi para trás de uma árvore paraescapar dos golpes.

“O que eu queria saber agora é quais sãoas Regras de Batalha”, disse para si mesmaenquanto observava a luta, espiando timida-mente do seu esconderijo. “Uma Regraparece ser que, se um Cavaleiro atinge ooutro, ele o derruba do seu cavalo, e, se errao golpe, ele mesmo cai… e outra Regraparece ser que seguram as clavas com osbraços, como se fossem marionetes… Que

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barulho fazem quando caem! Parece que to-dos os atiçadores estão caindo de uma vezsobre o guarda-fogo! E como os cavalos sãomansos! Deixam que montem e desmontemcomo se fossem mesas!”

Outra Regra de Batalha, que Alice nãopercebera, parecia ser que sempre caíam decabeça, e a batalha terminou com amboscaindo dessa maneira, lado a lado. Quandose levantaram, apertaram-se as mãos e emseguida o Cavaleiro Vermelho montou e par-tiu a galope.

“Foi uma vitória gloriosa, não?” disse oCavaleiro Branco, aproximando-se ofegante.

“Não sei”, disse Alice, hesitante. “Nãoquero ser prisioneira de ninguém. Quero seruma Rainha.”

“E será, quando tiver transposto o próx-imo riacho”, disse o Cavaleiro Branco. “Voulevá-la em segurança até a orla do bosque…

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e depois tenho de voltar. É o fim do meumovimento.”

“Muito obrigada”, disse Alice. “Possoajudá-lo a tirar o elmo?” Evidentementeaquilo era demais para ele fazer sozinho;mas finalmente ela conseguiu livrá-lo doapetrecho.

“Assim fica mais fácil respirar”, disse oCavaleiro, jogando seu cabelo desgrenhadopara trás com as duas mãos e voltando paraAlice seu rosto bondoso e seus olhos grandese meigos. Ela pensou que nunca tinha vistoum soldado tão estranho em toda a sua vida.

Ele vestia uma armadura de lata, queparecia lhe servir muito mal, e trazia presaentre os ombros uma caixinha de pinho deformato esquisito, de cabeça para baixo ecom a tampa pendendo, aberta. Alice olhou-a com grande curiosidade.

“Vejo que está admirando minha caix-inha”, disse o Cavaleiro em tom amistoso. “É

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uma invenção minha… para guardar roupase sanduíches. Como vê, carrego-a de cabeçapara baixo, assim não entra chuva.”

“Mas as coisas podem sair”, Alice obser-vou gentilmente. “Sabe que a tampa estáaberta?”

“Não sabia”, disse o Cavaleiro, o aborre-cimento lhe anuviando o rosto. “Nesse caso,todas as coisas devem ter caído. E a caixa éinútil sem elas.” Desprendeu-a enquanto fa-lava e estava prestes a jogá-la entre asmoitas quando, parecendo ter sido assaltadopor uma súbita ideia, pendurou-a cuida-dosamente numa árvore. “Consegue adivin-har por que fiz isso?” perguntou a Alice.

Ela sacudiu a cabeça.“Na esperança de que abelhas possam

fazer sua colmeia aí… nesse caso eu teria omel.”

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“Mas o senhor já tem uma colmeia… oucoisa parecida… pendurada na sela”, disseAlice.

“É verdade, é uma ótima colmeia”, disseo Cavaleiro num tom desgostoso, “da melhorqualidade. Mas até agora nem uma únicaabelha chegou perto dela. E a outra coisa éuma ratoeira. Suponho que os ratos afu-gentam as abelhas… ou são as abelhas queafugentam os ratos, não sei qual dos dois.”

“Eu estava pensando para que servia aratoeira”, disse Alice. “Não é muito provávelaparecer algum rato no dorso de umcavalo.”

“Não muito provável, talvez”, disse o Ca-valeiro; “mas, se aparecerem, prefiro quenão fiquem correndo para todo lado.”

“Sabe”, continuou, após uma pausa, “omelhor é estar preparado para tudo. É porisso que o cavalo tem todos esses grilhõesem volta das patas.”

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“Mas para que servem?” Alice perguntoucom grande curiosidade.

“Para proteger contra mordidas detubarões”, o Cavaleiro respondeu. “É umainvenção minha. E agora ajude-me a montar.Vou com você até o fim do bosque… Paraque é o prato?”

“Era para um bolo de passas”, respondeuAlice.

“Melhor levá-lo conosco”, disse o Ca-valeiro. “Virá a calhar se encontrarmos al-gum bolo de passas. Ajude-me a metê-loneste saco.”

Essa operação exigiu um longo tempo,embora Alice segurasse o saco aberto commuito cuidado, tal foi a atrapalhação do Ca-valeiro para enfiar nele o prato: nas primeir-as duas ou três vezes em que tentou, elepróprio caiu no saco. “Ficou bastante aper-tado, como vê”, ele disse quando finalmenteconseguiram colocar o prato dentro. “Há

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uma quantidade tão grande de castiçais nosaco.” E pendurou-o na sela, que já estavacarregada com molhos de cenouras,atiçadores e muitas outras coisas.

“Espero que seu cabelo esteja muito bempreso”, ele continuou ao partirem.

“Apenas como o uso sempre”, Alice disse,sorrindo.

“Isso não vai ser suficiente”, ele disse,aflito. “Sabe, o vento é muito forte aqui. Éforte como sopa.”

“Inventou algum truque para impedir ocabelo de esvoaçar?” Alice perguntou.

“Ainda não”, disse o Cavaleiro. “Mastenho um truque para impedir que caia.”

“Gostaria de ouvi-lo, muito mesmo.”“Primeiro você pega uma vara reta”,

disse o Cavaleiro. “Depois faz o seu cabelo irtrepando por ela acima, como uma árvorefrutífera. Ora, os cabelos caem porque estãopendurados para baixo… as coisas nunca

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caem para cima, sabe? O método é uma in-venção minha. Pode experimentar, sequiser.”

Não parecia muito conveniente, pensouAlice, e por alguns minutos caminhou emsilêncio, ruminando a ideia, e parando vezpor outra para ajudar o pobre Cavaleiro,cujo forte com certeza não era a equitação.

Sempre que o cavalo empacava (o quefazia com muita frequência), ele caía para afrente; e sempre que recomeçava a andar (oque em geral fazia de maneira bastantebrusca), ele caía para trás. Afora isso, caval-gava bastante bem, não fosse pelo hábitoque tinha de cair de lado de vez em quando,e como geralmente era para o lado em queAlice estava andando, ela logo descobriuque o melhor método era não andar muitoperto do cavalo.

“Parece-me que não tem muita prática decavalgar”, arriscou-se a dizer, enquanto oajudava a se levantar do seu quinto tombo.

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O Cavaleiro pareceu surpresíssimo e umpouco ofendido com a observação. “Por quediz isso?” perguntou ao se aboletar de novona sela, agarrando o cabelo de Alice comuma mão para evitar cair para o outro lado.

“Porque as pessoas não caem tantoquando têm muita prática.”

“Tenho bastante prática”, disse o Ca-valeiro, muito gravemente, “bastanteprática!”

Alice não achou nada melhor para dizerque “É mesmo?”, mas o fez da maneira maisentusiástica que pôde. Depois disso seguiramem silêncio por um pequeno trecho, o Ca-valeiro com os olhos fechados, resmungandoconsigo mesmo, e Alice aflita, alerta para opróximo tombo.

“A nobre arte da equitação”, começou oCavaleiro de repente, falando alto, acenandoo braço direito enquanto o fazia, “está emmanter…” Aqui a frase terminou, tão

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subitamente quanto começara, pois o Ca-valeiro desabou de cabeça pesadamente bemna trilha em que Alice estava andando.Dessa vez ela ficou muito apavorada, e dissenum tom agoniado, enquanto o erguia: “Es-pero que não tenha quebrado nenhum osso!”

“Nenhum que valha a pena mencionar”,disse o Cavaleiro, como se não se importassede quebrar uns dois ou três. “A nobre arteda equitação, como eu ia dizendo, está… emmanter o equilíbrio adequadamente. Assim,sabe…”

Soltou a rédea e estendeu os dois braçospara mostrar a Alice o que tinha em mente,e dessa vez caiu de costas, bem debaixo daspatas do cavalo.

“Bastante prática!” continuou repetindo,durante todo o tempo em que Alice tentavapô-lo novamente de pé. “Bastante prática!”

“É absurdo demais!” exclamou Alice, per-dendo toda a paciência dessa vez. “Deveria

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ter um cavalo de pau, com rodinhas, issosim!”

“Esse tipo tem uma andadura suave?” oCavaleiro perguntou com grande interesse,abraçando o pescoço do cavalo enquanto fa-lava, justo a tempo de escapar de mais umtrambolhão.

“Muito mais suave que a de um cavalovivo”, disse Alice, soltando uma risadinhaapesar de todo o seu esforço para contê-la.

“Vou arranjar um”, disse o Cavaleiropensativamente para si mesmo. “Um oudois… vários.”

Em seguida fez-se um breve silêncio e de-pois o Cavaleiro recomeçou. “Tenho muitopendor para inventar coisas. Certamente vo-cê percebeu, da última vez que me levantou,que eu parecia bastante pensativo, não?”

“Estava um pouco sério”, disse Alice.“Bem, exatamente naquele instante es-

tava inventando uma nova maneira de

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passar por cima de uma porteira… gostariade ouvi-la?”

“Gostaria sim, muito”, disse Alice compolidez.

“Vou lhe contar como a ideia me ocor-reu”, disse o Cavaleiro. “Sabe, disse paramim mesmo: ‘A única dificuldade é com ospés, pois a cabeça já está numa altura sufi-ciente.’ Ora, primeiro ponho a cabeça sobrea porteira — então a cabeça já está numa al-tura suficiente — depois planto uma ba-naneira — assim os pés chegam a uma al-tura suficiente — aí já estou do outro lado.”

“Sim, suponho que estaria do outro ladodepois disso”, disse Alice, pensativa, “masnão acha que seria um pouco difícil?”

“Como ainda não experimentei”, dissegravemente o Cavaleiro, “não posso lhedizer ao certo… mas temo que seria umpouquinho difícil.”

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Pareceu tão contrariado com a ideia queAlice mudou de assunto rapidamente. “Queelmo curioso, o seu!” disse alegremente. “Éinvenção sua também?”

Com orgulho, o Cavaleiro olhou para seuelmo, pendurado na sela. “É”, respondeu,“mas inventei um melhor que este… pare-cido com um pão de açúcar. Quando ousava, se caía do cavalo ele tocava o chãonum instante. Assim eu tinha uma quedamuito curta, entende… Mas havia o perigode cair dentro dele, sem dúvida. Isso meaconteceu uma vez… e o pior da história foique, antes que eu conseguisse sair dali, ooutro Cavaleiro Branco chegou e pôs o elmona cabeça. Pensou que fosse o dele.”

O Cavaleiro falava daquilo com tantasolenidade que Alice não se atreveu a rir.“Receio que o tenha machucado”, dissenuma voz trêmula, “ficando no cocurutodele”.

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“Tive de chutá-lo, é claro”, disse o Ca-valeiro, muito sério. “Então ele tirou o elmode novo… mas levaram horas e horas parame tirar. Eu estava engasgado lá como setivesse um osso na garganta.”

“Mas são dois tipos diferentes de en-gasgo”, Alice objetou.

O Cavaleiro sacudiu a cabeça. “Comigo,eram engasgos de todo tipo, posso lhegarantir!” disse. Ergueu as mãos num certoarrebatamento ao dizer isso, e instantanea-mente rolou da sela e caiu de cabeça numfosso fundo.

Alice correu para a borda do fosso paraprocurá-lo. Estava muito espantada com aqueda, pois por algum tempo ele se saíramuito bem, e temia que dessa vez estivesserealmente machucado. Contudo, embora sópudesse ver as solas dos seus sapatos, ficoumuito aliviada ao ouvi-lo falar no tom ha-bitual: “Todos os tipos de engasgo”, ele re-petiu, “mas foi negligência dele pôr o elmo

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de outro homem… com o homem dentro,ainda por cima.”

“Como consegue continuar falando tãocalmamente de cabeça para baixo?” Aliceperguntou, enquanto o puxava pelos pés e odeitava num monte na borda do fosso.

O Cavaleiro pareceu surpreso com a per-gunta. “Que me importa onde está o meucorpo?” disse. “Minha mente continua tra-balhando do mesmo jeito. Na verdade,quanto mais de cabeça para baixo estou,mais invento coisas novas.”

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“Veja, a coisa mais engenhosa desse tipoque já fiz”, continuou após uma pausa, “foiinventar um novo pudim enquanto a carneestava sendo servida.”

“A tempo de tê-lo assado para ser o pratoseguinte?” disse Alice. “Puxa, foi um tra-balho rápido, com certeza.”

“Bem, não para ser o prato seguinte”,disse o Cavaleiro numa voz lenta, pensativa;“não, certamente não para ser o pratoseguinte.”

“Nesse caso, teria de ser para o diaseguinte. Suponho que não comeria doispudins num jantar só?”

“Bem, não para o dia seguinte”, o Ca-valeiro repetiu como antes; “não para o diaseguinte. Na verdade”, continuou, mantendoa cabeça baixa e com uma voz cada vez maisfraca, “não acredito que o pudim tenha sidoalgum dia assado! Na verdade, não acredito

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que o pudim vá ser assado algum dia! E noentanto foi uma invenção muito engenhosa.”

“De que ele seria feito?” Alice perguntouna esperança de animá-lo, pois o pobre Ca-valeiro parecia abatido com aquilo.

“Começava com mata-borrão”, o Ca-valeiro respondeu com um gemido.

“Temo que isso não seja muitogostoso…”

“Não muito gostoso sozinho”, ele inter-rompeu, muito impaciente. “Mas não fazideia da diferença que faz se misturado comoutras coisas… como pólvora e lacre. Eneste ponto devo deixá-la.” Tinham acabadode chegar à orla do bosque.

Alice só pôde ficar perplexa; estavapensando no pudim.

“Parece triste”, disse o Cavaleiro, aflito.“Deixe-me cantar uma canção para consolá-la.”

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“É muito comprida?” Alice perguntou,porque já tinha ouvido um bocado de poesiaaquele dia.

“É comprida”, disse o Cavaleiro, “masmuito, muito bonita. Todos os que me ouvemcantá-la… ficam com lágrimas nos olhos,ou…”

“Ou o quê?” quis saber Alice, pois o Ca-valeiro fizera uma súbita pausa.

“Ou não, é claro. O nome da canção échamado ‘Olhos de hadoque’.”

“Oh, esse é o nome da canção, não é?”disse Alice, tentando se interessar.

“Não, você não entendeu”, disse o Ca-valeiro, um pouco irritado. “É assim que onome é chamado. O nome na verdade é ‘Ovelho homem velho’.”

“Nesse caso eu devia ter perguntado: ‘Éassim que a canção é chamada?’” corrigiu-seAlice.

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“Não, não devia: isso é completamentediferente! A canção é chamada ‘Modos emeios’, mas isso é só como é chamada,entende?”

“Bem, então qual é a canção?” perguntouAlice, que a essa altura estava completa-mente atordoada.

“Estava chegando lá”, disse o Cavaleiro.“A canção é realmente ‘Sentado na porteira’:e a melodia é uma invenção minha.”

Assim dizendo, parou seu cavalo e soltouas rédeas sobre o pescoço dele; depois, mar-cando o compasso lentamente com a mão, ecom um sorriso bobo iluminando-lhe o rostobondoso e amalucado, como se gostasse damúsica de sua canção, começou.

De todas as coisas estranhas que Aliceviu em sua viagem através do Espelho, estafoi a de que sempre se lembraria mais niti-damente. Anos depois seria capaz de evocartoda a cena, como se tivesse acontecido na

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véspera: os meigos olhos azuis e o sorrisogentil do Cavaleiro… a luz do poente cintil-ando através do cabelo dele, e iluminando-lhe a armadura num esplendor de luz que adeixava inteiramente ofuscada… o cavaloandando calmamente em volta, com asrédeas pendendo soltas do pescoço, mordis-cando o capim a seus pés… e as sombrasnegras do bosque ao fundo… Tudo isso elaabsorveu como um quadro, quando, comuma mão protegendo os olhos, encostou-senuma árvore, observando o estranho par eouvindo, como num sonho, a música tristeda canção.

“Mas a melodia não é invenção dele”,disse para si mesma, “é ‘Eu lhe darei tudo,mais não posso dar’.” Ficou quieta e ouviu,com muita atenção, mas nenhuma lágrimalhe veio aos olhos.

Nada vou lhe esconder,Não há muito a ser contado.

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Vi um dia um ancião,Numa porteira sentado.

“Quem é você, meu bom velho?”Eu disse, “E como fatura um trocado?”

Mas à resposta não dei ouvidos,Em outros pensamentos ocupado.

Ele disse, “Caço as borboletasQue dormem no meio do trigo,

Com elas faço costeletas,Que vendo depois aos gritos.

Vendo-as para os estafetas,Sempre a correr afobados

E assim ganho o meu pão…Pois nunca vendo fiado.”

Mas eu pensava então num planoDe pintar de verde minhas suíças,

Depois, usar sempre um abano

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Pra impedir que fossem vistas.Assim, não tendo resposta

Para o que o velho dizia, gritei:“E como fatura um trocado?”

E uma paulada no coco lhe dei.

Com voz suave, ele retomou seu relato,Disse: “Sou um homem muito teimoso,

E quando acaso encontro um regato,Boto-lhe fogo no ato;

Com isso fazem uma pomada,Óleo de Macássar de Rowland é chamada…

Mas para mim, no arranjo todo,Sobram dois pence e mais nada.”

Enquanto isso eu pensava como se poderiaViver só comendo grude,

E ir assim, dia a dia,Ganhando peso e saúde.

Dei um sacolejo no velho, de lado a lado,

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Até vê-lo ficar com o rosto azulado:“Então, como fatura um trocado?”

Gritei, “Vamos, dê seu recado!”

Ele disse: “Caço olhos de hadoqueNo meio do brejo ventoso,

Deles faço botões de fraque,À noite, quando tudo é silencioso.

E esses não vendo por prataTampouco por ouro lustroso,

Mas por meio pêni de cobre,A dúzia, se está curioso.”

“Às vezes escavo à busca de bolachas,Ou uso visco para pegar caranguejos;

Às vezes examino colinas baixasEm busca de rodas, bancos e molejos.

E é assim” (piscou um olho)“Que minha fortuna provejo…

E muito prazer teria em brindar

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À sua saúde e ao seu bem-estar.”

Dessa vez eu o ouvi, pois meu plano,Eu já o terminara inteirinho:

Como proteger pontes da ferrugemFerventando-as no vinho.

Agradeci-lhe muito por me contarSua maneira de fortuna acumular.

Mas sobretudo pelo desejo expressadoDe beber ao meu bom estado.

E agora, se por acaso no grudeEnfio o meu dedo

Ou loucamente meto um péDireito num sapato esquerdo,

Ou se por outra razão meAtrapalho ou me excedo,

Choro, pois isso me faz lembrarAquele velhinho e seus segredos.

Cujo rosto era brando e a fala mansa,

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Cuja cabeça era como a neve mais branca,Que lembrava uma gralha e uma criança,Que tinha olhos de brasa, incandescentes,Que parecia sofrido após suas andanças,Que balançava o corpo, indolente,E murmurava baixinho, dentes serrados,Como se tivesse a boca cheia de melado,Que resfolegava como um cão danado…Naquela tarde de verão, tão fagueira,

Sentado numa porteira.

Ao cantar as últimas palavras da balada,o Cavaleiro empunhou as rédeas e virou acabeça do seu cavalo para a estrada pelaqual tinham vindo. “Você só precisa andaralguns metros”, disse, “morro abaixo etranspor aquele riachinho, e então será umaRainha… Mas antes vai ficar e me verpartir?” acrescentou, quando Alice se viroumuito animada para a direção que ele apon-tara. “Não vou demorar. Vai esperar e

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acenar com seu lenço quando eu chegaràquela curva da estrada? Acho que isso medaria coragem, sabe.”

“Claro que vou esperar”, disse Alice, “emuito obrigada por ter vindo tão longe… epela canção… gostei muito dela.”

“Espero”, disse o Cavaleiro, sem muitaconvicção. “Mas não chorou tanto quantopensei que choraria.”

Assim, apertaram-se as mãos e emseguida o Cavaleiro rumou lentamente parao interior do bosque. “Não vou demorarmuito para vê-lo cair, tenho certeza”, Alicedisse de si para si. “Pronto! Bem de ponta-cabeça, como de costume! No entanto,monta de novo com muita facilidade… issoporque tem tantas coisas penduradas emtorno do cavalo…” Assim ficou, falando con-sigo mesma, enquanto olhava o cavalo amarchar pachorrento pela estrada e o Ca-valeiro a levar trambolhões, primeiro de umlado, depois do outro. Após o quarto ou

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quinto tombo ele chegou à curva, e entãoela lhe acenou com seu lenço e esperou atéque sumisse de vista.

“Espero que isso o tenha encorajado”,disse, enquanto se virava para correr morroabaixo. “E agora para o último riacho, e seruma Rainha! Como soa grandioso!” Algunspoucos passos a levaram à beira do riacho.“Finalmente a Oitava Casa!” gritou, en-quanto o transpunha num salto, e se jogoupara descansar num gramado macio comomusgo, com pequenos canteiros de floressalpicados aqui e ali. “Oh, como estou con-tente por estar aqui! E o que é isso na minhacabeça?” exclamou assombrada ao erguer asmãos e pegar algo muito pesado e bemajustado em volta da sua cabeça.

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“Mas como isso pode ter vindo parar aquisem que eu percebesse?” perguntou-se, en-quanto a erguia e a punha no colo paratentar entender como aquilo fora possível.

Era uma coroa de ouro.

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CAPÍTULO 9

Rainha Alice

“BEM, ISTO É MAGNÍFICO!” exclamou Alice. “Nuncaesperei ser uma Rainha tão cedo… e, voulhe dizer uma coisa, Majestade”, continuounum tom severo (sempre gostava muito deralhar consigo mesma), “não convém demaneira alguma você estar esparramada nagrama desse jeito! Rainhas devem terdignidade!”

Assim, levantou-se e andou por ali —muito empertigada a princípio, como setemesse que a coroa pudesse cair; mastranquilizou-se com a ideia de que não havia

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ninguém para vê-la, “e se sou realmenteuma Rainha”, disse ao se sentar de novo,“serei capaz de conduzir isso muito bemcom o tempo.”

Tudo estava acontecendo de maneira tãoesquisita que Alice não ficou nem umpouquinho surpresa ao se deparar com aRainha Vermelha e a Rainha Branca senta-das perto dela, uma de cada lado: teriagostado muito de lhes perguntar como tin-ham chegado ali, mas receou que isso nãofosse muito cortês. Mas não haveria nenhummal, pensou, em perguntar se o jogo termin-ara. “Por favor, poderia me dizer…”começou, olhando timidamente para aRainha Vermelha.

“Fale quando lhe falarem!” a Rainhaatalhou-a rispidamente.

“Mas se todo mundo obedecesse a essaregra”, disse Alice, sempre pronta para umapequena discussão, “e se você só falassequando lhe falassem, e a outra pessoa

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sempre esperasse você começar, veja, nin-guém nunca diria nada, de modo que…”

“Absurdo!” gritou a Rainha. “Ora, vocênão entende, criança…” aqui ela fez umapausa com uma careta e, após pensar umminuto, mudou bruscamente de assunto. “Oque quer dizer com ‘Se sou realmente umaRainha’? Que direito tem de se chamar as-sim? Não pode ser uma Rainha até ter pas-sado pelos exames apropriados. E quantomais cedo começarmos isso, melhor.”

“Eu só disse ‘se’!” defendeu-se a pobreAlice num tom que dava dó.

As duas Rainhas se entreolharam, e aRainha Vermelha comentou, com umpequeno arrepio: “Ela diz que só disse ‘se’…”

“Mas disse muito mais que isso!” res-mungou a Rainha Branca, torcendo as mãos.“Oh, tão mais que isso!”

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“De fato”, a Rainha Vermelha disse aAlice. “Fale sempre a verdade… pense antesde falar… e depois escreva o que falou.”

“Tenho certeza de que não quis dizer…”Alice ia começando, mas a Rainha Vermelhainterrompeu-a com impaciência.

“É exatamente disso que me queixo! De-via ter querido! De que acha que serviriauma criança que não quer dizer nada? Atéuma piada tem de querer dizer algumacoisa… e uma criança é mais importante queuma piada, espero. Você não conseguirianegar isso, nem que tentasse com as duasmãos.”

“Não nego coisas com minhas mãos”,Alice objetou.

“Ninguém disse isso”, observou a RainhaVermelha. “Eu disse que não conseguiria setentasse.”

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“Ela está naquele estado de espírito”,disse a Rainha Branca, “em que quer negaralguma coisa… só que não sabe o quê!”

“Um temperamento desagradável, vi-cioso”, observou a Rainha Vermelha; seguiu-se um silêncio incômodo por um ou doisminutos.

A Rainha Vermelha quebrou o silênciodizendo à Rainha Branca: “Eu a convidopara o jantar de Alice esta tarde.”

A Rainha Branca sorriu debilmente edisse: “E eu a convido.”

“Não tinha a menor ideia de que haveriaum jantar”, disse Alice; “mas se vai haverum, acho que eu deveria chamar osconvidados.”

“Nós lhe demos oportunidade para isso”,observou a Rainha Vermelha; “mas estoucerta de que você não teve muitas aulas deboas maneiras, não é?”

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“Boas maneiras não se ensinam emaulas”, disse Alice. “Aulas ensinam a fazercontas de somar, e coisas desse tipo.”

“E sabe Adição?” perguntou a RainhaBranca. “Quanto é um mais um mais ummais um mais um mais um mais um maisum mais um mais um?”

“Não sei”, disse Alice. “Perdi a conta.”“Não sabe Adição”, a Rainha Vermelha

interrompeu. “Sabe fazer Subtração? Sub-traia nove de oito.”

“Nove de oito não posso”, Alice re-spondeu muito rapidamente; “mas…”

“Não sabe Subtração”, disse a RainhaBranca. “Sabe fazer Divisão? Divida um pãopor uma faca: qual é o resultado disso?”

“Suponho…” Alice estava começando,mas a Rainha Vermelha respondeu por ela.“Pão com manteiga, é claro. Tente outraSubtração. Tire um osso de um cachorro;resta o quê?”

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Alice refletiu. “O osso não restaria, éclaro, se o tirei… e o cachorro não restaria:viria me morder… e tenho certeza de que eunão restaria!”

“Então acha que não restaria nada?”disse a Rainha Vermelha.

“Acho que essa é a resposta.”“Errada como de costume”, disse a

Rainha; “restaria a fúria do cachorro.”“Mas não entendo como…”“Ora, olhe aqui!” gritou a Rainha Ver-

melha. “O cachorro teria um ataque defúria, não teria?”

“Talvez tivesse”, respondeu Alice,cautelosa.

“Então se o cachorro desaparecesse, afúria restaria!” a Rainha exclamou,triunfante.

Com a maior gravidade que pôde, Alicedisse: “Poderiam seguir caminhos

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diferentes.” Mas não pôde deixar de pensarcom seus botões: “Que terríveis absurdos es-tamos dizendo!”

“Ela não sabe nadinha de aritmética!” asRainhas disseram juntas, com grande ênfase.

“E você sabe?” Alice falou, virando-se derepente para a Rainha Branca, pois nãogostava de ser tão criticada.

A Rainha respirou fundo e fechou os ol-hos. “Eu sei Adição”, disse, “se você me deralgum tempo… mas não sei subtrair sob nen-huma circunstância.”

“Naturalmente sabe o ABC?” perguntou aRainha Vermelha.

“Mas é claro”, disse Alice.“Eu também”, sussurrou a Rainha

Branca, “costumamos recitá-lo todinho jun-tas, minha cara. E vou lhe contar um se-gredo: sei ler palavras de uma letra só! Issonão é impressionante? Mas não desanime,com o tempo você chega lá.”

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Nesse momento a Rainha Vermelha re-começou. “Sabe responder a perguntasúteis?” disse. “De que é feito o pão?”

“Isso eu sei!” Alice exclamou, animada.“Pega-se um pouco de farinha…”

“Onde se colhe a farinha?” perguntou aRainha Branca. “Num jardim, ou nas cercasvivas?”

“Bem, ela não é colhida”, Alice explicou;“é moída…”

“De pancada?” disse a Rainha Branca.“Não devia omitir tantas coisas.”

“Abane-lhe a cabeça!” interrompeu aflitaa Rainha Vermelha. “Vai ficar com febre de-pois de tanta reflexão!” Não perderamtempo e a abanaram com tufos de folhas atéela ter de implorar que parassem, tanto oseu cabelo esvoaçava.

“Agora ela está bem de novo”, disse aRainha Vermelha. “Sabe línguas? Como éfiddle-de-dee em francês?”

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“Fiddle-de-dee não é inglês”, Alice re-spondeu gravemente.

“Mas quem disse que era?” retrucou aRainha Vermelha.

Alice achou que dessa vez tinha umamaneira de se safar do aperto. “Se me disser-em de que língua ‘fiddle-de-dee’ é, eu lhesdirei a palavra em francês para isso!” ex-clamou triunfante.

Mas a Rainha Vermelha empertigou-setoda e disse: “Rainhas nunca barganham.”

“Gostaria que Rainhas nunca fizessemperguntas”, Alice pensou consigo.

“Não vamos discutir”, disse a RainhaBranca, aflita. “Qual é a causa dorelâmpago?”

“A causa do relâmpago”, Alice respondeumuito decidida, pois dessa vez se sentiatotalmente segura, “é o trovão… não, não!”emendou-se rapidamente. “Quis dizer ocontrário.”

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“É tarde demais para corrigir”, disse aRainha Vermelha; “depois que se diz umacoisa, ela está dita, e você tem de arcar comas consequências.”

“Isso me lembra…” disse a RainhaBranca baixando os olhos e apertando esoltando as mãos nervosamente, “que tive-mos tal tempestade terça-feira passada…quero dizer, uma da última série de terças-feiras.”

Alice ficou pasma. “No nosso país”,comentou, “os dias da semana vêm um decada vez.”

A Rainha Vermelha disse: “É umamaneira lastimável de fazer as coisas. Aqui,geralmente os dias e as noites vêm em doisou três por vez, e no inverno de vez emquando temos até cinco noites juntas… paraaquecer mais, sabe.”

“Então cinco noites são mais quentes queuma?” Alice se arriscou a perguntar.

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“Cinco vezes mais quentes, é claro.”“Mas deviam ser cinco vezes mais frias,

pela mesma regra…”“Precisamente!” exclamou a Rainha Ver-

melha. “Cinco vezes mais quentes e cincovezes mais frias… assim como eu sou cincovezes mais rica que você e cinco vezes maisinteligente!”

Alice suspirou e desistiu. “É exatamentecomo um enigma sem resposta!” pensou.

“Humpty Dumpty viu isso também”, aRainha Branca continuou em voz baixa,mais como se estivesse falando consigomesma. “Ele veio até a minha porta, comum saca-rolha na mão…”

“O que queria?” indagou a RainhaVermelha.

“Disse que iria entrar”, a Rainha Brancacontinuou, “porque estava procurando umhipopótamo. Ora, acontece que não havia talcoisa na casa, naquela manhã.”

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“Geralmente há?” Alice perguntou,espantada.

“Bem, só nas quintas-feiras”, disse aRainha.

“Sei para que ele foi”, disse Alice; “quer-ia castigar o peixe porque…”

Nessa altura a Rainha Branca recomeçou:“Foi uma tal tempestade, ninguém poderiaimaginar!” (“Ela nunca conseguiu, sabe?”disse a Rainha Vermelha.) “E parte do tel-hado desabou, e caíram tantos trovões ládentro… e ficaram rolando pela sala aosborbotões… e batendo nas mesas e nascoisas… até que fiquei com tanto medo quenão conseguia lembrar meu próprio nome!”

Alice pensou consigo: “Nunca tentarialembrar meu nome no meio de um acidente!De que adiantaria?” mas não falou isso alto,temendo ferir os sentimentos da pobreRainha.

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“Deve desculpá-la, Majestade”, a RainhaVermelha disse a Alice, tomando uma dasmãos da Rainha Branca na sua e dando-lhepalmadinhas gentis: “ela tem boa intenção,mas não consegue deixar de dizer tolices, demodo geral.”

A Rainha Branca olhou timidamente paraAlice, que sentiu que devia dizer algumacoisa delicada, mas realmente não conseguiupensar em nada na hora.

“Ela nunca teve realmente uma boa edu-cação”, a Rainha Vermelha prosseguiu, “mastem um bom gênio espantoso! Dê-lhe unstapinhas na cabeça, e veja como gosta!” MasAlice não tinha coragem para tanto.

“Um pequeno agrado… e prender-lhe oscabelos em papelotes… isso faz maravilhascom ela…”

A Rainha Branca deu um suspiro pro-fundo e pousou a cabeça no ombro de Alice.“Estou com tanto sono!” gemeu.

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“Está cansada, coitadinha!” disse aRainha Vermelha. “Alise seus cabelos…empreste-lhe sua touca de dormir… e cante-lhe uma cantiga de ninar relaxante.”

“Não tenho uma touca de dormircomigo”, disse Alice, tentando obedecer àprimeira instrução; “e não sei nenhuma can-tiga de ninar relaxante.”

“Nesse caso, eu mesma tenho de fazê-lo”,disse a Rainha Vermelha, e começou:

Dorme, dorme, senhora, sua boa sesta,Há tempo de sobra até a hora da festa.Depois as três Rainhas irão se esbaldarE pela noite adentro alegres bailar!

“Agora você já sabe a letra”, acrescentou,pousando a cabeça no outro ombro de Alice.“Cante-a toda para mim agora. Estou ficandocom sono também.” E num instante as duas

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Rainhas estavam dormindo profundamente,e roncando alto.

“O que posso fazer?” exclamou Alice, ol-hando em volta atônita, quando primeirouma cabeça redonda, depois a outra rolaramdos seus ombros e pousaram como um blocopesado no seu colo. “Acho que jamaisaconteceu antes de alguém ter de tomar con-ta de duas Rainhas adormecidas ao mesmotempo! Não, não em toda a História daInglaterra… não teria sido possível, porquenunca houve mais de uma Rainha ao mesmotempo. Levantem-se, suas coisas pesadas!”,continuou, num tom impaciente; mas só re-cebeu por resposta um ronco suave.

O ronco tornava-se mais distinto a cadaminuto, soando cada vez mais como umamelodia. Por fim ela conseguiu entender atéas palavras, e ouviu tão sofregamente que,quando as duas grandes cabeças sumiram doseu colo, mal deu por falta delas.

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Estava parada diante de uma porta emarco, sobre a qual se liam as palavras RAINHA

ALICE em letras grandes, e de cada lado doarco havia uma campainha; numa estava es-crito “Campainha das Visitas” e na outra,“Campainha dos Criados”.

“Vou esperar que a canção termine”,pensou Alice, “e depois tocar a… que cam-painha devo tocar?” continuou, muito con-fusa com os nomes. “Não sou uma visita, enão sou uma criada. Deveria haver uma coma inscrição ‘Rainha’…”

Nesse exato momento a porta se abriuum pouquinho; uma criatura com um bicocomprido pôs a cabeça de fora por um in-stante e disse: “Não se pode entrar até a se-mana após a próxima!” — e fechou nova-mente a porta, com estrondo.

Alice bateu e tocou em vão por um longotempo, mas finalmente um Sapo muitovelho, que estava sentado sob uma árvore,

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levantou-se e veio coxeando na sua direção:usava uma roupa de um amarelo vivo ecalçava botas enormes.

“Qual é o problema agora?” perguntou oSapo num sussurro rouco e cavernoso.

Alice virou-se, pronta para criticar meiomundo. “Onde está o criado cuja obrigaçãoé atender à porta?”, começou, zangada.

“Que porta?” perguntou o Sapo.Alice quase sapateou de irritação com a

voz arrastada com que ele falava. “Estaporta, é claro.”

O Sapo contemplou a porta com seus ol-hos grandes e lerdos por um minuto, depoischegou mais perto e esfregou-a com o poleg-ar, como se estivesse experimentando paraver se a tinta iria sair; depois olhou paraAlice.

“Atender à porta?” disse. “Ela vempedindo o quê?” Era tão rouco que Alice malpodia ouvi-lo.

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“Não sei o que quer dizer”, falou.

“Eu falar inglês, não falar?” o Sapo con-tinuou. “Ou você é surda? O que a porta lhepediu?”

“Nada!” disse Alice, impaciente. “Andeibatendo nela!”

“Não devia ter feito isso… não devia…”murmurou o Sapo. “Ela se irrita, sabe.”Adiantou-se então e deu um chute na porta

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com um de seus grandes pés. “Deixe ela empaz”, disse ofegante, enquanto coxeava devolta para sua árvore, “e ela deixará você empaz.”

Nesse instante a porta se abriu com viol-ência e ouviu-se uma voz estridentecantando:

Ao mundo do Espelho Alice então proclamou:Coroa na cabeça e cetro na mão, agora convidoTodas as criaturas que o Espelho jamais espelhouA cear com a Rainha Vermelha, a Branca, e comigo!

E centenas de vozes se uniram no refrão:

Encham pois suas taças, duas se preciso for,Salpiquem a mesa toda com flores a desabrochar,Ponham gatos no café, camundongos no licor,E trinta vezes três vivas à Rainha Alice vamos dar!

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Seguiu-se um alarido de congratulações,e Alice pensou: “Trinta vezes três sãonoventa. Será que alguém está contando?”Um minuto depois fez-se silêncio nova-mente, e a mesma voz aguda cantou outraestrofe:

“Ó criaturas do Espelho”, Alice chama, “venham cá!É uma honra, uma graça que a sorte lhes concedeu,Este privilégio ímpar de jantar e tomar cháCom a Rainha Vermelha, a Branca… e eu!”

Então o coro recomeçou:

De melado, tinta e grude encham todos os coposOu de qualquer outra delícia que lhes agradar,À cidra misturem areia, farofa ou lã em flocos,E noventa vezes nove vivas à Rainha Alice vamosdar.

“Noventa vezes nove!” Alice repetiu, de-salentada. “Oh, isso não vai acabar nunca!

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Eu devia entrar logo…” e fez-se um silênciopesado no instante em que ela apareceu.

Alice deu uma olhada nervosamente paraa mesa, enquanto penetrava no grandesalão, e percebeu que havia cerca de cin-quenta convidados, de todos os tipos: algunseram animais, outros aves, e havia até algu-mas flores entre eles. “Fico contente que ten-ham vindo sem esperar convite”, pensou.“Eu nunca teria sabido quais eram as pess-oas certas a convidar!”

Havia três cadeiras na cabeceira da mesa;as Rainhas Vermelha e Branca já ocupavamduas delas, mas a do meio estava vazia.Alice sentou-se ali, bastante contrafeita como silêncio, e ansiosa para que alguémfalasse.

Por fim a Rainha Vermelha começou.“Perdeu a sopa e o peixe”, disse. “Sirvam oassado!” E os garçons puseram uma perna decarneiro diante de Alice, que a contemplou

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bastante aflita, pois nunca tivera de trincharuma perna de carneiro antes.

“Parece um pouquinho embaraçada; per-mita que lhe apresente esta perna decarneiro”, disse a Rainha Vermelha. “Alice…Carneiro; Carneiro… Alice.” A perna decarneiro se levantou no prato e fez umapequena mesura para Alice, que a retribuiu,sem saber se ficava com medo ou achavagraça.

“Posso lhes servir uma fatia?” perguntou,pegando a faca e o garfo e olhando de umaRainha para a outra.

“É claro que não”, respondeu a RainhaVermelha, peremptória. “Fere a etiqueta cor-tar alguém a quem você foi apresentada.Levem o assado!” E os garçons o levaram etrouxeram um grande pudim de passas nolugar.

“Não quero ser apresentada ao pudim,por favor”, Alice se apressou a dizer, “ou

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não vamos ter nada para jantar. Posso lhesservir um pouco?”

Mas a Rainha Vermelha pareceu aborre-cida e resmungou: “Pudim… Alice; Alice…Pudim. Levem o pudim!” e os garçons olevaram tão depressa que Alice não pôde re-tribuir sua mesura.

Seja como for, não entendia por que aRainha Vermelha devia ser a única a dar or-dens, e assim, para fazer um teste, chamou“Garçom! Traga o pudim de volta!” e numsegundo lá estava ele de novo, como numpasse de mágica. Era tão grande que nãopôde deixar de se sentir um pouco em-baraçada com ele, como havia ficado com ocarneiro. Contudo, venceu seu embaraço e,com grande esforço, cortou uma fatia e aserviu à Rainha Vermelha.

“Que impertinência!” disse o Pudim.“Será que gostaria se eu cortasse uma fatiade você, sua criatura?”

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Falava com uma voz grossa, untuosa, eAlice não teve o que dizer em resposta. Sóconseguiu ficar imóvel e olhar para eleboquiaberta.

“Faça um comentário!” disse a RainhaVermelha. “É absurdo deixar toda a con-versa nas mãos do pudim!”

“Sabe, recitaram-me tanta poesia hoje”,Alice começou, um pouco amedrontada aoconstatar que, no instante em que abrira oslábios, fizera-se silêncio absoluto, e todos osolhos haviam se fixado nela, “e é uma coisamuito curiosa, acho… todos os poemastratavam de peixes de algum modo. Sabepor que gostam tanto de peixes por aqui?”

Dirigiu-se à Rainha Vermelha, cuja res-posta fugiu um pouco à questão. “Quantoaos peixes”, disse ela, de maneira muitolenta e solene, pondo a boca junto ao ouvidode Alice, “Sua Majestade Branca sabe umalinda adivinhação… toda em versos… todasobre peixes. Quer que ela a recite?”

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“Sua Majestade Vermelha é muito gentilao mencionar isso”, a Rainha Branca mur-murou no outro ouvido de Alice, numa vozque parecia o arrulho de um pombo. “Seriaum prazer tão grande! Posso?”

“Por favor”, disse Alice, muitopolidamente.

A Rainha Branca riu encantada e deu umtapinha na bochecha de Alice. Em seguidacomeçou:

“Primeiro é preciso o peixe pescar.”É fácil: até um bebê, acho, poderia apanhá-

lo.“Depois é preciso o peixe comprar.”

É fácil: um pêni, acho, poderia comprá-lo.“Agora, trate de o peixe cozinhar!”

É fácil, e só vai levar dois instantes.“Ponha-o numa travessa circular!”

É fácil, porque lá já estava antes.“Traga-o cá, deixe-me provar!”

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É fácil pôr tal prato sobre a mesa.“Queira o prato destapar!”

Ah, não sou capaz de tamanha proeza!Porque como cola a tampa ele segura:

Está agarrada ao prato, não quer sedesentalar

Qual seria a tarefa menos dura,Destampar o peixe ou o enigma decifrar?“Pense um minuto, depois tente adivin-

har”, disse a Rainha Vermelha. “Enquantoisso, vamos beber à sua saúde… à saúde daRainha Alice!” gritou a plenos pulmões, e to-dos os convidados começaram a beber ime-diatamente, e de maneira muito esquisita:alguns punham os copos sobre as cabeçascomo apagadores, e bebiam tudo que lhesescorria pelo rosto… outros emborcavam asgarrafas e tomavam o vinho que escorriapelas beiradas da mesa… e três deles (quepareciam cangurus) passaram a mão noprato de carneiro assado e começaram a

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lamber avidamente o molho, “exatamentecomo porcos num cocho!” pensou Alice!

“Deve agradecer os cumprimentos comum discurso caprichado”, disse a RainhaVermelha, franzindo o cenho para Alice.

“Temos de apoiá-la, a Rainha Brancacochichou quando Alice se levantava parafazê-lo, muito obedientemente, mas um pou-co amedrontada.

“Muito obrigada”, ela sussurrou de volta,“mas posso me sair muito bem sem isso.”

“Isso não seria o correto em absoluto”,disse a Rainha Vermelha, muito categorica-mente. Assim, Alice tentou se submeteràquilo de bom grado.

(“E elas empurraram tanto!” ela dissemais tarde, quando contava para a irmã ahistória do banquete. “Parecia que queriamme achatar!”)

De fato, foi bastante difícil para Alice semanter em seu lugar enquanto fazia seu

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discurso: as duas Rainhas a empurravamtanto, uma de cada lado, que quase a fizer-am subir pelos ares. “Ergo-me para agrade-cer…” Alice começou — e realmente se er-gueu enquanto falava, vários centímetros,mas se segurou na beirada da mesa e con-seguiu se puxar para baixo de novo.

“Tome muito cuidado!” berrou a RainhaBranca, agarrando o cabelo de Alice comambas as mãos. “Alguma coisa vaiacontecer!”

Então (como Alice descreveu mais tarde)todo tipo de coisas aconteceu ao mesmotempo. As velas cresceram todas até o teto,parecendo um canteiro de juncos com fogosde artifício na ponta. Quanto às garrafas,cada uma se apossou de um par de pratos,ajeitando-os rapidamente como se fossem as-as, e assim, usando garfos como pernas,saíram esvoaçando para todo lado — “e separeciam muito com pássaros”, Alice pensouconsigo mesma, tanto quanto isso era

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possível na terrível confusão que se estavaarmando.

Nesse momento ela ouviu uma risadarouca ao seu lado e virou-se para ver o queestava se passando com a Rainha Branca;mas em vez da Rainha Branca viu a perna decarneiro sentada na cadeira. “Aqui estou!”gritou uma voz da terrina de sopa, e Alice sevirou de novo a tempo só de ver o rostolargo e bonachão da Rainha sorrindo paraela por um segundo sobre a borda da ter-rina, antes que ela desaparecesse na sopa.

Não havia um minuto a perder. Váriosconvidados já estavam estendidos nospratos, e a concha da sopa estava camin-hando pela mesa em direção à cadeira deAlice, acenando-lhe impacientemente paraque saísse do seu caminho.

“Não posso mais suportar isto!” ela grit-ou, dando um pulo e agarrando a toalha damesa com as duas mãos: um bom puxão, etravessas, pratos, convidados e velas vieram

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abaixo num estrondo e se amontoaram nochão.

“Quanto a você”, ela continuou, virando-se enfurecida para a Rainha Vermelha, aquem considerava a causa de todo aqueletranstorno — mas a Rainha já não estava aoseu lado: reduzira-se subitamente aotamanho de uma bonequinha, e agora estavasobre a mesa, correndo alegremente emvoltas e mais voltas à procura do seu xale,que se arrastava atrás dela.

Em qualquer outra ocasião Alice teria fic-ado surpresa com isso, mas agora estavaalvoroçada demais para se surpreender comqualquer coisa. “Quanto a você”, repetiu,agarrando a criaturinha como se saltassesobre uma garrafa que acabara de aparecersobre a mesa, “vou sacudi-la até que vireuma gatinha, ah, se vou!”

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CAPÍTULO 10

Sacudida

ARRANCOU-A DA MESA ENQUANTO FALAVA e sacudiu-apara trás e para a frente com toda a força.

A Rainha Vermelha não ofereceu nen-huma resistência; só seu rosto foi ficandomuito pequeno, e os olhos ficando grandes everdes, e cada vez mais, enquanto Alice con-tinuava a sacudi-la, ia ficando menor… emais gordinha… e mais macia… e mais re-donda… e…

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CAPÍTULO 11

Despertar

…e afinal de contas era mesmo uma gatinha.

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CAPÍTULO 12

Quem sonhou?

“VOSSA VERMELHA MAJESTADE não devia ronronartão alto”, disse Alice, esfregando os olhos edirigindo-se à gatinha de maneira respeitosa,mas com certa severidade. “Você me acor-dou de um… oh, um sonho tão lindo! E es-teve junto comigo, Kitty… por todo omundo do Espelho. Sabia disso, querida?”

Os gatinhos têm o hábito muito incon-veniente (Alice comentara uma vez) desempre ronronar, seja o que for que se lhesdiga. “Se pelo menos só ronronassem paradizer ‘sim’ e miassem para dizer ‘não’, ou

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alguma regra desse gênero”, ela dissera,“seria possível manter uma conversa! Mascomo se pode conversar com uma pessoa seela diz sempre a mesma coisa?”

Nessa ocasião a gatinha só ronronou — eera impossível saber se isso significava “sim”ou “não”.

Em seguida Alice procurou entre as peçasde xadrez sobre a mesa até encontrar aRainha Vermelha. Então ajoelhou-se no ta-pete junto à lareira, e pôs a gatinha e aRainha face a face. “Agora, Kitty!” exclamoutriunfante, batendo palmas: “Confesse quefoi nela que você se transformou!”

(“Mas ela não olhava para a Rainha”,disse, quando estava explicando a coisa maistarde para sua irmã; “virara a cabeça paraoutro lado, e fingia que não a via: mas pare-ceu um pouco envergonhada, de modo queacho que ela deve ter sido a RainhaVermelha.”)

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“Aprume-se um pouco mais, querida!”Alice exclamou com uma risada alegre. “Efaça uma reverência enquanto pensa noque… no que ronronar. Poupa tempo,lembre-se!” E levantou a gatinha e deu-lheum beijinho, “só em honra ao fato de tersido uma Rainha Vermelha”.

“Snowdrop, minha bichinha!” continuou,olhando por sobre o ombro para a GatinhaBranca, que ainda estava se submetendo pa-cientemente à sua toalete, “quando será quea Dinah vai terminar o banho de VossaBranca Majestade? Devia haver algumarazão para você estar tão desmazelada nomeu sonho… Dinah! Sabe que está es-fregando uma Rainha Branca? Realmente,que falta de respeito da sua parte!”

“E que será que a Dinah virou?” ia elatagarelando, espichando-se confortavel-mente no chão, um cotovelo no tapete e oqueixo na mão, para observar os gatinhos.“Diga-me, Dinah, você virou Humpty

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Dumpty? Acho que sim… mas não devemencionar isso com seus amigos por en-quanto, porque não tenho certeza.”

“A propósito, Kitty, se você tivesse es-tado realmente comigo no meu sonho, deuma coisa teria gostado muito: recitarampara mim uma quantidade tão grande depoesia, todas sobre peixes! Amanhã de man-hã você vai ter um verdadeiro regalo. Dur-ante todo o tempo em que estiver tomandoseu café da manhã, vou recitar ‘A Morsa e oCarpinteiro’; assim você poderá fazer deconta que está comendo ostras, querida!”

“Agora, Kitty, vamos pensar bem quemfoi que sonhou tudo isso. É uma questãoséria, minha querida, e você não devia ficarlambendo a pata desse jeito… Como se a Di-nah não tivesse lhe dado banho esta manhã!Veja bem, Kitty, ou fui eu ou foi o Rei Ver-melho. Ele fez parte do meu sonho, é claro…mas nesse caso eu fiz parte do sonho deletambém! Terá sido o Rei Vermelho, Kitty?

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Você era a mulher dele, minha cara, port-anto deveria saber… Oh, Kitty, me ajude aresolver isto! Tenho certeza de que sua patapode esperar!” Mas a implicante gatinha sófez começar com a outra pata, fingindo nãoter ouvido a pergunta.

Quem você pensa que sonhou?

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SOBRE CARROLL E TENNIEL

LEWIS CARROLL é o pseudônimo de CharlesLutwidge Dodgson, nascido em 27 de janeirode 1832 em Cheshire, Inglaterra. Suas obrasmais famosas são Aventuras de Alice no Paísdas Maravilhas — publicada em 1865 e es-crita para Alice Liddell, filha do deão doChrist Church — e sua continuação, Atravésdo Espelho, publicada em 1872. Carroll mor-reu em 14 de julho de 1898, em decorrênciade uma bronquite.JOHN TENNIEL nasceu em Londres em 1820.Cego de um olho e com uma memória foto-gráfica prodigiosa, desenhava sem modelos.Entre 1850 e 1901 colaborou com a revistasatírica Punch, para a qual produziu mais de2.000 ilustrações e caricaturas. Ilustrou tam-bém vários livros, incluindo uma edição de1848 das fábulas de Esopo, porém seus tra-balhos mais importantes foram em Aventuras

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de Alice no País das Maravilhas e Através doEspelho. John Tenniel morreu em 1914.

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Grafia atualizada respeitando o novo Acordo Ortográfico daLíngua Portuguesa

Capa: Rafael Nobre

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