4
DEIXE O PÁSSARO VOAR Por João Victor Soares O pequeno pássaro que o menino tinha capturado se debatia na gaiola como quem se debate em uma gaiola. É óbvio, pra quem nunca ficou preso. Assim que o estranho se aproximou para ver aquela ave com penas amarelas ao redor do rosto, logo notou o que precisava não ser. – Deixe o pássaro voar. O menino olhou com estranha estranheza para os olhos curiosos do mais novo protetor da natureza do condomínio. Não respondeu. Virou sua cabeça para baixo, novamente, e continuou a observar o comportamento do pássaro. – Você vai mata-lo, menino. Novamente olhou. Não respondeu. Virou a cabeça para baixo. – Ele é bonito. Quem sabe assim… Novamente olhou. Não respondeu. Virou… Dessa vez a pausa se estendeu por um tempo a mais. Ninguém que estivesse vendo a cena de perto saberia se foi porque o sujeito estava pensando em uma nova maneira de ser respondido ou porque o pássaro começou a fazer novas acrobacias. O fato é que demorou um pouco mais. Demorou. Um pouco. Mais. – Por que você não me responde? Novamente olhou não respondeu virou a cabeça. – Ele está doente?

Deixe o pássaro voar

Embed Size (px)

Citation preview

Page 1: Deixe o pássaro voar

DEIXE O PÁSSARO VOAR

Por João Victor Soares

O pequeno pássaro que o menino tinha capturado se debatia na gaiola

como quem se debate em uma gaiola. É óbvio, pra quem nunca ficou preso.

Assim que o estranho se aproximou para ver aquela ave com penas amarelas

ao redor do rosto, logo notou o que precisava não ser.

            – Deixe o pássaro voar.

            O menino olhou com estranha estranheza para os olhos curiosos do

mais novo protetor da natureza do condomínio. Não respondeu. Virou sua

cabeça para baixo, novamente, e continuou a observar o comportamento do

pássaro.

            – Você vai mata-lo, menino.

            Novamente olhou. Não respondeu. Virou a cabeça para baixo.

            – Ele é bonito.

            Quem sabe assim… Novamente olhou. Não respondeu. Virou… Dessa

vez a pausa se estendeu por um tempo a mais. Ninguém que estivesse vendo

a cena de perto saberia se foi porque o sujeito estava pensando em uma nova

maneira de ser respondido ou porque o pássaro começou a fazer novas

acrobacias. O fato é que demorou um pouco mais. Demorou. Um pouco. Mais.

            – Por que você não me responde?

            Novamente olhou não respondeu virou a cabeça.

            – Ele está doente?

            Cinco segundos milimétricamente cronometrados no relógio mais

sofisticado e que dê a mais exata noção de tempo em toda a atmosfera

terrestre.

            – Está.

            Um a zero para o sujeito.

            – O que houve?

            Agora o diálogo parecia fluir como se o gelo nunca houvesse existido.

            – Eu não sei. Achei ele desse jeito na porta da minha casa hoje de

manhã.

            Não que o tempo seja importante, mas o relógio marcava exatas onze

horas e vinte e cinco minutos. No relógio mais sofisticado.

Page 2: Deixe o pássaro voar

            – Por que você não o deixa voar? Assim ele encontrará o ninho dele e a

família dele irá tratar de curá-lo.

            – Ele não tem família.

            Tampouco o sujeito estranho.

            – Como sabe?

            – Senão ele não teria vindo pedir ajuda na minha casa.

            O estranho sorriu, contemplando por um momento a ingenuidade do

menino. Tão bobo ele era ao pensar que um pássaro poderia pedir ajuda a

alguém.

            – Provavelmente ele tenha se perdido. Agora só quer voltar pra casa.

            – Então eu tenho que leva-lo para casa.

            – Ele sabe voar.

            – Mas não sabe onde está. Se ele me dissesse ao menos o nome da

rua que ele mora… Eu poderia leva-lo.

            – Ele não deve morar em nenhuma rua. A casa dele deve ser em

alguma árvore perto daqui.

            – Ele não mora por aqui.

            O pássaro continuava sua dança em brasa dentro da gaiola.

            – Como sabe?

            – Ele não teria se perdido.

            – Os pássaros se perdem o tempo todo.

            – Eu preciso ajuda-lo.

            – Você só pode ajuda-lo se você o deixar voar.

            – Por que ele não pode ficar na gaiola? É mais seguro.

            Por um lado, era mesmo mais seguro permanecer na gaiola. Mesmo

quando não se tem espaço suficiente para dançar com os pés descalços em

uma chapa de ferro quente.

            – Os pássaros precisam ser livres. Todos nós precisamos. Se você

deixa-lo na gaiola, ele irá morrer. Você tirará dele a chance de encontrar sua

família e se curar.

            – Isso é triste.

            – Deixe-o voar, garoto! Deixe-o ser livre!

            O menino receou. Novamente olhou. Não respondeu. Virou a cabeça

para baixo. Abriu a gaiola. Dessa vez não houve pausa, foi rápido e direto. Não

Page 3: Deixe o pássaro voar

havia tempo para pensar, o barulho que o pássaro fazia enquanto se contorcia

e batia seu corpo nas grades não permitia silêncio.

             O pássaro voou cinquenta metros e caiu. Morto. No meio da rua.

Quase na esquina. O menino olhou por um segundo, tomado por angústia

instantânea, nos olhos do sujeito estranho e correu ao encontro do cadáver. O

sujeito não se importou, deu as costas e continuou seu caminho em direção a

lugar algum. Como quem não tivesse tirado nada daquela criança. Virou a rua

e seguiu. Livre.