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Patrícia Franconere Enquanto a Chuva Cai Por: Patrícia Franconere (São Paulo) 2013 Qualquer utilização da obra para montagem (com ou sem fins comerciais) 1

Enquanto a Chuva Cai

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Patrícia Franconere

Enquanto a

Chuva Cai

Por: Patrícia Franconere

(São Paulo)

2013

Qualquer utilização da obra para montagem (com ou sem fins comerciais)entrar em contato com a autora pelo facebook .

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Enquanto a Chuva Cai

A historia se passa em São Paulo, numa tarde chuvosa de verão.

Trilha sonora:

Tell me once again (Light Reflections)

Sempre não é todo dia (Zizi Possi)

Cenário:

Estacionamento de um shopping.

Duas portas de vidro da entrada do shopping.

Uma do lado direito do palco e outra no lado esquerdo. Sobre as portas um letreiro

com o nome:

Sky Shopping Bulevar.

Um automóvel, onde acontecerá a maior parte das cenas. Esse automóvel tem que

estar de frente para a platéia. A frente do automóvel ficará fechada até que as

personagens entrem. Quando estiverem dentro do veículo a frente terá que ficar

aberta para que a platéia possa ver a movimentação no Interior.

Personagens:

Julio Cesar – Médico de sessenta e dois anos. Inteligente, alegre e bem humorado.

Tem cabelos grisalhos, é clássico e elegante. Veste calça jeans, camisa de alfaiataria.

Está carregando uma pequena sacola de uma grife qualquer de jóias.

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Patrícia Franconere

Carolina – Mulher de quarenta e poucos anos. É triste e fala pouco. Tem

aproximadamente um metro e sessenta, cabelos e olhos claros. Veste calça jeans,

sapato fechado vermelho de salto e uma camisa de algodão branca de mangas

longas.Usa uma bolsa estilo carteiro transpassada no peito e um pen drive pendurado

no pescoço preso por um cordão .

Primeiro Ato

Cena um

Sons característicos de murmurinho de shopping. Sobrepondo esses sons, passos

femininos apressados em off que representam o estado de ansiedade de Carolina.

Abrem-se as portas de vidro do lado esquerdo do palco. Carolina sai em direção ao

carro. Está ventando muito e ouvem-se trovões a todo o momento, mas ainda não

chove. Toca o celular que está dentro da bolsa. Carolina para olha o número no visor,

revira os olhos como quem não quer atender, mas atende.

Os mesmos sons característicos de murmurinho de shopping. Sobrepondo esses sons

passos lentos masculinos em off que representam a calma e a serenidade de Júlio

César.

Júlio Cesar sai pela porta de vidro do lado direito do palco. Ele caminha na direção do

estacionamento. Ao ver Carolina ele a reconhece esboça um sorriso e passa observá-

la. A atração que sente por ela fica evidente.

Carolina (no celular) – Fala!

Carolina começa a chorar compulsivamente. Ela desliga o aparelho coloca dentro da

bolsa e sai apressada em direção ao carro.

Dentro do veículo Carolina apóia a cabeça no volante e continua a chorar.

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Enquanto a Chuva Cai

Julio César observa a cena. Em seguida caminha até o carro e bate no vidro do

motorista.

Júlio César (preocupado) – Ta tudo bem com você?

Carolina ignora.

Júlio Cesar – Posso fazer alguma coisa pra te ajudar?

Carolina olha, mas não dá importância.

Júlio César – Abre, por favor!

Carolina seca as lágrimas com as mãos.

Júlio Cesar da à volta, abre a porta do passageiro e entra.

Nesse momento a parte frontal do carro é aberta para que o público veja o que

acontece no seu interior.

Cena Dois

Dentro do carro

Júlio Cesar – (comenta enquanto entrega um lenço). Parece que você está tendo um

dia difícil.

Carolina - (enxugando as lágrimas com o lenço oferecido) É...Um pouco.

Julio César – Eu vi quando você atendeu o celular... Foi alguma notícia ruim?Alguém

doente?

Carolina volta a chorar.

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Patrícia Franconere

Julio Cesar – Por favor, não fique assim. Minha intenção não foi prolongar o seu

sofrimento.

Carolina (com a voz embargada) – Eu sei.

Silêncio

Julio Cesar – Às vezes existir dói.

Silêncio

Julio Cesar – Eu tava indo pro carro quando vi você... Você é a Carolina não é?

Carolina – Sou.

Julio Cesar – Eu a reconheci assim que pus os olhos em você. Acho que você não se

lembra de mim.

Carolina – Claro que me lembro. Você é o Julio César.

Silêncio

Julio César – Você tá precisando de alguma coisa?Se eu puder ajudar?

Carolina – Obrigada pela preocupação, mas eu não preciso de nada.

Julio Cesar – Eu to vendo a sua dor!

Carolina – A dor que eu to sentindo nem sua habilidade médica pode curar.

Julio Cesar – Mas desabafar com alguém às vezes alivia. E eu não to aqui como

médico, mas como uma pessoa que quer ajudar.

Silêncio

Cai um pé d’água.

Sons de chuva forte, trovoadas e clarões de relâmpago.

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Enquanto a Chuva Cai

Júlio Cesar – Há quanto tempo não nos vemos?

Carolina – (sem olhar para Júlio Cesar) Sei lá... Uns vinte anos.

Julio César (num tom otimista) – Puxa... Vinte anos... Parece que foi ontem. Você não

mudou nada. Os anos foram gentis com você.

Carolina – (nesse momento Carolina analisa Julio Cesar de cima a baixo e esboça um

tímido sorriso) - Você também continua ótimo.

Julio César – Não. Eu envelheci.

Carolina – Eu envelheci também.

Julio Cesar – Se me permite dizer, você continua tão bonita quanto antes.

Carolina – Como se beleza quisesse dizer alguma coisa.

Julio Cesar – Quanta amargura!

Carolina – Não é amargura. É constatação.

Julio Cesar – Pra mim você ta sempre bem.

Carolina – Sempre não é todo dia.

Silêncio

Mais sons de trovão e claridade de raios

Carolina – Preciso ir embora.

Júlio César – Eu não vou deixar você dirigir nesse estado.

Carolina – Eu to bem.

Júlio César – Não ta não.. Suas mãos estão tremendo. Sem falar no aguaceiro que ta

caindo. Não é seguro sair dirigindo nesse tempo. Deve ter alagamentos em vários

pontos da cidade.

Carolina – Novidade...

Carolina suspira agoniada.

Julio Cesar – (Olhando para fora como se estivesse apreciando a queda dos raios) Li

no jornal que ontem durante o temporal caíram 745 raios só aqui na cidade de São

Paulo.

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Patrícia Franconere

Carolina – Eu tenho medo de raios.

Júlio Cesar – Se você estiver em lugar seguro não há porque ter medo.

Carolina – Ouvi dizer que dentro do carro estamos seguros porque a borracha dos

pneus é isolante.

Julio César – O carro é seguro, mas não por esse motivo. É porque a estrutura metálica

funciona como uma gaiola de Faraday. Se for atingido por uma descarga elétrica,

protege tudo que ta no seu interior, porque conduz a corrente pra fora e descarrega

no solo.

Carolina – Eu não sabia disso...

Julio César – Tirei do meu acervo de cultura inútil.

Carolina sorri sem graça

Carolina - Eu queria de ter uma gaiola dessa para me proteger.

Julio César – Dos raios?

Carolina – Não, da vida.

Julio Cesar – Acho que ainda não inventaram nada pra isso... O cara que inventar vai

ficar milionário.

Carolina – É bem provável.

Silêncio

Carolina esboça um sorriso no canto dos lábios.

Julio Cesar – O que foi? Porque você ta sorrindo? Falei alguma besteira?

Carolina – Não.

Julio César – Então me conta o porquê do riso. Quero rir também.

Carolina – É que eu fiquei pensando: Imagine alguém que fica de plantão na janela

com uma caderneta na mão olhando para o céu só pra contar as faíscas.

Julio Cesar sorri.

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Júlio Cesar – Não é assim. Essa medição deve ser feita com balões meteorológicos

computadorizados.

Carolina – Eu sei... Só to te enchendo. Não sou tão burra assim.

Julio Cesar – Calma... Não precisa ficar brava comigo.Eu entendi.

Carolina – Eu não to brava.

(silêncio)

Carolina apesar de não chorar mais, continua triste e calada.

Julio Cesar – Esse seu jeito ta me deixando preocupado. Eu quero ressaltar que se você

quiser falar sobre o que está te afligindo...

Carolina – Já disse que não é nada. Mas obrigada assim mesmo.

Júlio César – Você continua com o mesmo ar de mistério de vinte anos atrás. Se abre

comigo. Eu quero ajudar.

Carolina – Eu não tenho nada pra contar. São problemas pessoais de foro íntimo,

entende?

Julio César – Claro. Desculpe se fui invasivo. Só queria explorar um pouco o teu

silêncio.

(Silêncio)

Júlio César - Algumas pessoas são criadas para acreditarem que deixar transparecer as

suas emoções ou falar demais sobre o que pensam é um sinal de fraqueza.

Carolina – Esse não é o meu caso.

Julio Cesar – Então qual é o seu caso?

Silêncio

Júlio César – Eu vim até o shopping comprar um presente pra minha filha. Ela ta

completando vinte anos. Fiquei mais de uma hora pra escolher. É muito difícil

presentear uma jovem. A gente nunca sabe o que dar nem como agradar. Quando essa

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Patrícia Franconere

jovem é filha, fica pior ainda...Parece que os jovens fazem questão de deixar claro que

os pais não entendem de nada. Acho que é uma maneira que encontraram de

conquistar seu espaço no mundo... Você quer dar uma olhada e me dizer o que acha?

Eu to um pouco inseguro. Uma opinião feminina é sempre bem vinda.

Carolina – Claro.

Julio Cesar tira uma pequena caixa preta aveludada da sacola e abre. Ele observa

Carolina para ver sua reação.

Carolina – Deixa eu ver.Que anel delicado! Adoro pedra azul...É algum tipo de topázio?

Julio Cesar – Pra falar a verdade não sei. Comprei por achar bonito. Não me interesso

muito por essas coisas.

Carolina – De qualquer maneira, você pode ficar despreocupado. Sua filha vai adorar.

Mulher adora presentes delicados.

Júlio Cesar - Obrigado. Você me deixou mais tranqüilo.

Julio Cesar devolve a caixa dentro da sacola.

Silêncio

Julio César – Eu senti a sua falta.

Carolina – O quê?

Júlio César –. Eu senti a sua falta.

Carolina – Como assim? Não to entendendo.

Júlio César – Quando eu fui transferido para outra clínica você ainda estava em

tratamento comigo. Eu senti a sua falta.

Silêncio

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Carolina (esfregando uma mão na outra demonstrando nervosismo e ansiedade) – Eu

também senti a sua falta.

Julio Cesar – Como?

Carolina – Também senti a sua falta... Foi difícil me adaptar com o médico que ocupou

o seu lugar. Me dava um aperto no coração quando eu passava pela porta do seu

antigo consultório e via a luz apagada e a mesa vazia. Eu podia sentir a sua presença

ali. Tudo ficou tão triste, sem sentido...

Júlio Cesar – Você só ta dizendo isso para ser gentil.

Carolina – Eu não preciso fazer média com você.

Júlio César (surpreso) – Eu não imaginava que você pudesse sentir minha falta. Você

sempre me pareceu tão distante... E eu era apenas mais um médico, entre tantos que

você já deve ter conhecido.

Carolina – Essa frase se encaixa melhor no meu texto. “Eu” era apenas mais uma

paciente. Você era “o” médico.

Júlio Cesar sorri constrangido.

Silêncio

Sons de chuva e trovoada. Clarões no céu.

Júlio Cesar – Pelo visto esse temporal vai longe...

Carolina – É.

Júlio Cesar – Porque você às vezes é tão econômica nas palavras?

Carolina – Talvez porque eu não tenha nada de interessante para dizer.

Júlio César – Não acredito nisso. Todo mundo tem sempre alguma coisa a dizer.

Carolina – Acabei de descobrir contornos de Freud em você.

Júlio César ri.

Um estrondo de trovão acompanhado de claridade. Carolina se assusta e faz o sinal

da cruz.

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Júlio César – Quando eu era menino minha mãe costumava pedir ajuda a Santa

Bárbara pra parar os relâmpagos.

Carolina – E a minha cobria todos os espelhos com um lençol. Ela dizia que os espelhos

atraiam os raios. Quer dizer... Os espelhos, as tesouras...as facas...tudo atraia os raios

na visão dela.

Julio Cesar observa Carolina com ternura. Intimidada ela olha pela janela lateral.

Silêncio

Julio César – Pessoas caladas, mentes barulhentas.

Carolina – O que é isso? Nome de filme underground?

Julio César – Não, é você.

Carolina – Eu não sou uma pessoa calada. Eu to conversando com você desde à hora

em que você decidiu entrar no meu carro.

Julio Cesar – Você não ta conversando... Ta respondendo as minhas perguntas. Uma

espécie de ping-pong eu diria.

Silêncio

Carolina - (olhando pela janela lateral) – Eu já me casei com você.

Júlio César – (surpreso) O que?

Carolina - Eu já me casei com você.

Júlio César – Você ta me deixando confuso. Como assim casou comigo? Você fez algum

tipo de regressão a vidas passadas?

Carolina - (com um sorriso tímido no canto dos lábios) Não, nas minhas fantasias.

Júlio César – ( ainda surpreso) Nossa! Você agora me tirou o ar!

Silêncio

Júlio César - Porque você nunca me disse nada?

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Carolina – Ah ta! Se eu fosse contar pra todo mundo minhas fantasias...

Júlio Cesar - Você além de me tirar o ar me roubou o chão...

Carolina – Você acabou de dizer que eu falo pouco que só sei responder perguntas.

Agora fica assustado porque eu consegui articular algumas palavras a mais?

Júlio César – Pera aí... Você não apenas articulou palavras. Você fez uma revelação.

Carolina – Foi você quem começou.

Silêncio

Júlio César – Eu nunca me casei com você. Mas já tive você em meus braços inúmeras

vezes.

Carolina olha surpresa para Julio Cesar.

Julio Cesar – Não me olhe assim. Eu também fantasio.

Carolina – Faz de conta que eu acredito.

Júlio César – É a mais pura verdade. Se for pra fazer revelações, então vamos a elas...

Me senti atraído por você desde sua primeira consulta. Você era tão jovem, tão bonita,

tão cheia de vida!Era tão bom quando eu abria a porta do consultório e dava de cara

com você na recepção.

Carolina – Até conhecer você eu não gostava de médicos. Achava que médicos

pertenciam a uma classe de pessoas não humanizadas.

Julio César ri.

Julio Cesar - Mas porque você pensava isso?

Carolina – Sei lá... Os médicos que eu conhecia sempre foram tão frios e distantes.

Sabe aquele tipo que só enxerga a doença e não o paciente?

Julio César – E você acha que eu sou diferente?

Carolina – Claro que é. Você é amoroso, dedicado. Você toca nos pacientes, você dá

atenção. Me lembro que cada vez que eu abria a boca pra falar alguma coisa você

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mesmo que estivesse ocupado preenchendo alguma ficha ou receituário médico você

largava a caneta na mesa pra me dar atenção.

Julio César – É que você falava tão pouco que quando isso acontecia de alguma forma

eu tinha que contemplar.

Carolina – Você agora ta tirando onda com a minha cara.

Julio Cesar – Não me interprete dessa maneira. Na realidade eu precisava ouvir a sua

voz. Eu tinha necessidade de saber o que tinha aí nesse coração...

Silêncio

Julio Cesar - Você sempre foi uma pessoa tão calada... Você fez tratamento comigo

durante quase um ano e mesmo assim eu não sabia nada a seu respeito. Mesmo

quando você tava sorrindo eu percebia uma tristeza no seu olhar... Eu sempre quis

saber o porquê.

Carolina – Por outro lado você sempre me pareceu tão seguro de si.

Julio Cesar – Eu sou um homem seguro na minha vida profissional. Pra isso tenho

minha formação técnica e muita experiência. Em relacionamentos pessoais também

não tenho problemas. Mas no campo afetivo sou tão inseguro como qualquer outra

pessoa... E já que você tocou nesse ponto, devo confessar que as vezes eu me sentia

um idiota por pensar em você.

Carolina – Idiota por quê?

Julio Cesar - Eu já tinha mais quarenta anos e você vinte e poucos.

Carolina – Nunca pensei na sua idade.

Julio César – E eu não parava de pensar na sua... E de certa maneira, sua juventude

trouxe o lúdico para a minha vida. Você pra mim era poesia.

Carolina – Que bonito isso que você ta dizendo. Isso é uma tática médica pra me tirar

desse baixo astral?

Julio César – Não. É o que eu sinto.

Silêncio

Júlio César – Você se lembra aquele domingo que nos reencontramos por acaso no

parque?

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Carolina – Claro que me lembro. Você tava com sua mulher e sua filha nos braços.

Júlio Cesar – E você com seu marido. Você tava lendo um livro lembra?

Carolina – Acho que sim. Se não me engano era”O velho e o mar”. Ernest Hemingway.

Você já leu?

Julio Cesar – Há muito tempo atrás. O texto fala basicamente do valor da persistência

e da solidão. Analisando agora acho que tem tudo a ver com você.

Carolina – Por que você acha isso?

Julio Cesar – Não se ofenda com que eu vou te dizer, mas sempre achei você uma

pessoa solitária.

Carolina – Eu não sou uma pessoa solitária. É que eu gosto de estar comigo mesma.Eu

aprecio o som do silêncio.

Silêncio

Julio Cesar – Você tava sempre usando óculos escuros, lembra?

Carolina – É que o sol incomodava quando eu dirigia.

Julio César – Você não dirigia dentro da clínica, muito menos batia sol lá dentro.

Carolina – Eu me esquecia de tirar.

Julio Cesar – Você se esquecia de tirar ou era uma maneira inconsciente de afastar

pessoas?

Carolina – Da pra tirar o Freud da nossa conversa?

Julio Cesar – Claro. Foi sem querer.

Silêncio

Carolina - Eu podia imaginar encontrar qualquer outra pessoa no parque, menos você.

Aliás, nunca imaginei encontrar você aqui também.

Júlio Cesar - Eu me senti muito mal naquele dia. Você me ignorou. Nem parou para me

cumprimentar. Nem um oi, nem um aceno. Confesso que fiquei mais de anos com isso

martelando na cabeça.

Carolina – Não... Eu não te ignorei. Por favor, não pense isso! Não sei o que aconteceu

comigo, mas eu não te reconheci!

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Júlio César – Como não me reconheceu. Não fazia nem quinze dias que eu tinha me

afastado da clínica?

Carolina – Eu to falando sério. Eu não te reconheci. Quando você passou do meu lado

e sorriu eu pensei: “Caramba!Eu conheço esse cara. Mas não me lembro de onde!” Eu

juro que fiz força pra lembrar. Quando finalmente me lembrei eu pensei: ”Carolina,

como você é idiota!” Tive vontade de dar meia volta e te procurar, mas a gafe já tinha

sido cometida. E se eu realmente fosse atrás de você o que sua mulher poderia

pensar... Ou meu marido?

Júlio Cesar – Eu achei que você tava aborrecida comigo por algum motivo... Me sinto

aliviado agora.

Silêncio

Carolina - E ainda não te contei o mais intrigante.

Júlio Cesar – O que foi?

Carolina – Eu tinha sonhado com você na noite anterior.

Júlio César – Você ta brincando comigo?

Carolina – To não.

Júlio César – E o que foi que você sonhou?

Carolina – (olhando novamente pelo vidro lateral do carro) No sonho eu trabalhava

na clínica. A mesma que você dava consultas. Era meu aniversário e as enfermeiras

haviam planejado uma festa pra mim. Você já tinha confirmado presença. Eu tava

ansiosa esperando sua chegada. O telefone tocou e uma das enfermeiras atendeu. Ao

desligar ela disse: “Ele não vem. A esposa não permitiu”.A comemoração tinha

acabado pra mim naquele momento.Eu fiquei triste com vontade de ir embora.De

repente,tocou a introdução de uma música.Instintivamente eu olhei para trás.Você

tava parado do lado da porta me observando.Naquele momento eu não vi mais

ninguém.Aliás,eu nunca via ninguém quando você tava por perto.Daí então, você

caminhou lentamente e me tirou pra dançar.E nós dançamos sob os olhares de

todos.Eu podia sentir seu toque,seu cheiro,sua respiração...depois eu acordei.Foi o

melhor sonho que já tive em toda a minha vida.Foi tão real.Até fechei os olhos na

tentativa de resgatar o sonho,mas foi em vão.Fiquei decepcionada quando voltei a

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realidade e me dei conta de que meu marido que não se importava comigo era quem

tava dormindo ao meu lado.

Julio Cesar – Mesmo com esse sonho tão detalhado, você não se lembrou de mim.

Como isso pôde acontecer?

Carolina – Sei lá. Explique você. O médico aqui não sou eu.

Julio César sorri divertido

Julio Cesar – Parece que foi uma premonição.

Carolina – Eu não acredito em premonições.

Julio Cesar – Alguns espíritas afirmam que durante o sono os espíritos saem do corpo e

se encontram com outros espíritos. Você acredita nisso?

Carolina – Claro que não. Foi apenas uma coincidência.

Julio Cesar – Coincidência nada mais é que o universo conspirando a nosso favor,

como agora por exemplo.

Carolina – Acho que o universo tem coisas mais importantes com que se preocupar.

Julio Cesar – Eu não penso assim. Eu sou importante. Você também é muito

importante.

Silêncio

Julio César – Que música estava tocando?

Carolina – Como assim?

Júlio Cesar – Que música nós dançamos no seu sonho?

Carolina - Vou te mostrar. Tenho aqui no CD.

Carolina coloca o CD no som do carro. Apagam-se as luzes que iluminam o carro.

Cena Três

Acende uma luz no centro do palco.

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Carolina está de pé com a fisionomia triste. Quando a introdução da música “Tell me

Once Again (Light Reflections)” começa a tocar ela olha para trás. Julio Cesar sorri, se

aproxima e a tira para dançar.A luz do palco se apaga,só o casal é iluminado dando a

sensação que só existem eles no universo.

Quando a música acaba as luzes se apagam. Quando ela acende novamente o casal

está de volta no carro.

Cena quatro

Julio César olha com ternura para Carolina e ela evita a troca de olhares.

Silêncio

Júlio César – Eu sempre gostei dessa música.

Carolina – Para mim era apenas mais uma música até o sonho. Eu era criança quando

ela fez sucesso.

Júlio César – E se não me engano eu fazia cursinho pré-vestibular quando ela explodiu

nas rádios... Tenho certeza que nunca mais vou me esquecer dessa música. E sempre

que ela tocar, vou me lembrar de você.

Carolina – Isso já acontece comigo em relação a você.

Silêncio

Julio Cesar – Vinte anos... Para mim parece que foi ontem a última vez que estivemos

juntos.

Carolina – Engraçado. Só agora é que me dei conta de que o tempo passou. Passou e

eu não percebi.

Júlio Cesar – Ninguém percebe o tempo passar. Ele simplesmente passa enquanto

você se distrai. O tempo que está dentro de mim não existe. Só existe o que está do

lado de fora.

Carolina – Às vezes eu tenho a sensação de que o mundo da voltas e a gente continua no

mesmo lugar.

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Enquanto a Chuva Cai

Júlio Cesar – E a prova disso é que estamos aqui vinte anos depois.

Carolina – Eu não tinha me dado conta disso.

Silêncio

Carolina – É sério essa história que você ficou com nosso encontro no parque durante

anos guardado na cabeça?

Julio Cesar – Claro. Ninguém gosta de ser rejeitado, principalmente quando a pessoa

que nos rejeita é uma pessoa que admiramos.

Carolina – Que bom que pude desfazer esse engano. Parece que tirei um peso do

coração. Acredite ou não esse episódio também não foi legal pra mim.

Julio Cesar observa Carolina com intensidade.

Silêncio

Carolina – Eu preciso ir embora e essa chuva não para de jeito nenhum.

Julio Cesar – Eu tenho uma cirurgia marcada pra daqui uma hora. Pela primeira vez na

minha vida não estou preocupado com atraso. Não é sempre que se tem uma

companhia tão especial.

Carolina – Na escala da gentileza você acaba de subir para o numero um do ranking.

Julio Cesar sorri.

Mais trovão seguido por clarões de relâmpagos.

Julio Cesar – Você foi apaixonada por mim?

Carolina – Como?

Julio Cesar – Você disse que fantasiou comigo, sonhou comigo, mas você não disse se

gostava de mim de verdade.

Carolina – E isso importa?

Julio César – Pra mim importa.

Carolina – Você como médico não deveria fazer esse tipo de pergunta.

Julio Cesar – Por que não?

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Patrícia Franconere

Carolina – Não tem aquele papo de transferência que vocês médicos costumam usar

quando percebe que um paciente ta envolvido emocionalmente com vocês?

Julio Cesar – Mas eu não sou mais seu médico. E nem pretendo ser.

Carolina – Obrigada pela parte que me toca.

Julio Cesar – Não foi isso que eu quis dizer.

Carolina – Não precisa dar explicações... Acho que entendi.

Silêncio

Carolina – Eu amava o meu marido. Eu sempre amei. Mas eu vivia um momento

conturbado no meu casamento. Sabe aquela fase em que você se torna invisível para o

parceiro?Aliado a isso um maldito tédio cotidiano. Casar precocemente não foi bom

pra mim nem pra ele. Muita responsabilidade antes da hora, nos torna maduros,

porém, nos endurece.E isso tudo não me permitia ser uma pessoa amorosa em casa.E

esses sentimentos represados tinham que ser liberados de alguma forma.Pensar em

você foi uma maneira inconsciente de liberar essas emoções contidas.

Julio César – Eu preferia que você deixasse a dissertação de lado e fosse mais objetiva.

Carolina – Da pra você se decidir? Hora você reclama que eu falo pouco noutra falo

demais...Assim não dá.

Julio Cesar – Não me enrola!

Carolina – Ninguém fantasia com outra pessoa sem envolvimento emocional.

Julio Cesar – Objetividade!

Carolina – Eu gostava... Mas nunca nutri nenhuma esperança. E mesmo que eu tivesse

a mais remota indicação do seu interesse por mim, meus valores não permitiriam que

eu demonstrasse meus sentimentos.Meu casamento era ruim,meu marido me

ignorava e, mesmo tendo duvidas com relação a fidelidade dele eu não tinha coragem

nem cabeça pra envolver com outra pessoa.

Julio Cesar – Se você tivesse me dado algum sinal talvez as coisas tivessem tomado

outro rumo.

Carolina – As coisas aconteceram como tinha que ser.

Julio Cesar – Acho que nossas energias foram mal direcionadas.

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Enquanto a Chuva Cai

Carolina – Você ainda não aprendeu que as coisas nem sempre saem do jeito que a

gente quer?

Julio Cesar – Você não tem idéia de quantas vezes tive vontade de te beijar no

consultório, de te acolher nos meus braços. Mas a ética profissional e o respeito que

eu tinha por você também me impediam de tomar qualquer atitude.

Carolina – Eu nunca percebi nada.

Julio Cesar – Não percebeu porque não quis. Essas coisas a gente pega no ar. Não é

possível que você não tenha percebido a atenção especial que eu te dava.

Carolina – Você era gentil com todos os seus pacientes. Eu me lembro muito bem que

você tratava todos com carinho. Você era o único médico da clínica que tirava a bunda

da cadeira pra chamar os pacientes e, sempre os recebia com carinho.

Julio César – Não o mesmo carinho que eu dedicava a você.

Carolina – Isso é você quem ta dizendo.

Silêncio

Julio Cesar – Muitos dos meus pacientes passaram a se consultar comigo na outra

clínica. Por que você não fez isso também?

Carolina – Alguma coisa dentro de mim dizia que eu tinha que me afastar de você e

achei que aquele foi o melhor momento pra que isso acontecesse.

Júlio Cesar – Mas se afastar por quê?

Carolina – Porque eu estava passando pela fase do prazer negativo da dependência.

Julio Cesar – Como assim?

Carolina – Eu só me sentia bem quando tava do seu lado.

Julio Cesar – E isso era ruim?

Carolina – Naquele momento da minha vida era. Bem ou mal eu tinha um marido e

você uma mulher. E eu não era nenhuma menina inconseqüente como muitos

supunham. Ah...é novinha não deve ter nenhum juizo! Ah é novinha isso...é novinha

aquilo...

Silêncio

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Patrícia Franconere

Julio Cesar – Meu casamento não durou muito tempo. Seis meses depois eu tava

separado. Aquele passeio no parque foi uma das inúmeras tentativas de reconciliação.

Carolina – Eu não sabia.

Julio Cesar – Você não era a única que tinha um casamento conturbado. A sua

aparição naquele momento só me fez enxergar o óbvio.

Carolina – Não é fácil a gente se dedicar tanto tempo a uma pessoa e ver tudo de uma

hora pra outra desmoronar. Da uma sensação de vazio e de impotência.

O barulho de chuva e os trovões vão cessando aos poucos.

Carolina – Você se casou novamente?

Júlio Cesar – Tive ao longo desses anos vários relacionamentos. Mas nenhum deles

deu certo. Acho que o ser humano tem o direito de experimentar mesmo que seja só

pra saber que não é aquilo o que ele quer pra sua vida.

Silêncio

Julio Cesar – Engraçado... Agora olhando pra você e depois de tudo o que você me

contou, fico me perguntando.. O que você viu em mim?

Carolina – O mesmo que eu to vendo agora.

Julio Cesar – E o que é que você ainda consegue ver num velho como eu?

Carolina – Vida.

Silêncio

Carolina – Eu adoro a tua ansiedade... Esse seu jeito prolixo de falar. O teu sorriso

debochado, sua alegria... Esse teu cabelo liso meio que despenteado caindo na testa.

Julio César – Uau! Fala mais.

Carolina – Não tenho mais nada pra falar.

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Enquanto a Chuva Cai

Julio Cesar – Exatamente como eu disse:.Pessoas caladas, mentes barulhentas. Acertei

em cheio a sua definição.

Silêncio

Julio Cesar – Eu queria tanto ter feito parte da sua vida pra saber mais sobre você.

Carolina – Não tem nada de interessante na minha vida. Acredite, você não perdeu

nada.

Julio Cesar – Quem é a Carolina?

Carolina – A Carolina é uma pessoa sonhadora, que ao acordar no silencio da madrugada, acha que tudo é mais fácil. Que pensa em todos os problemas e logo encontra uma solução. É aquela que decide que vai fazer e acontecer, faz planos e jura pra si mesma que vai concretizar, mas no raiar do sol, percebe que tudo não passou de blá..blá...blá...mental. E que acaba sempre se dando conta de que a coragem nunca realmente saiu debaixo do colchão.

Julio Cesar observa em silêncio.

Carolina – A chuvarada já passou. Preciso ir pra casa.

Julio Cesar – Infelizmente tenho que ir também. Um paciente me espera pra cirurgia.

Você vai ficar bem?

Carolina – Claro.

Julio Cesar – Posso confiar?

Carolina balança a cabeça afirmando que sim.

Julio Cesar – Você não vai bater o carro em nenhum poste, se atirar de nenhuma

ponte, vai?

Carolina dá um tapa de leve no braço de Júlio Cesar.

Carolina – Eu não tenho pensamentos suicidas!

Júlio César – Foi só pra garantir.

Julio Cesar tira da carteira um cartão e entrega a Carolina.

Page 23: Enquanto a Chuva Cai

Patrícia Franconere

Julio Cesar – Aqui tem o telefone da clínica e do hospital em que trabalho. Você tem

uma caneta?

Carolina tira uma caneta da bolsa e entrega a Julio Cesar. Ele anota algo no verso do

cartão depois lhe entrega a caneta de volta e o cartão.

Julio Cesar – Eu anotei o número do meu celular. Me liga pra dizer se chegou bem.

Carolina ( enquanto coloca o cartão na bolsa) - Eu ligo.

Julio Cesar – Mas é pra me ligar mesmo!

Carolina – Ta.Eu ligo.

Julio Cesar olha insistente para Carolina depois tira outro cartão da carteira.

Julio Cesar – Me empresta novamente a sua caneta?

Carolina entrega.

Julio Cesar – Da última vez que pedi pra você me ligar pra me dizer o resultado de um

exame você não ligou.

Carolina – Não liguei porque você me abandonou.

Julio Cesar – Eu não te abandonei. Eu fui transferido de uma clínica pra outra... Vai

fala.

Carolina – Fala o quê?

Julio Cesar - O número do seu celular.

Carolina – Pra quê?

Julio Cesar – Se você não me ligar ligo eu pra você.

Carolina olha carinhosamente para Julio Cesar enquanto diz o número.

Carolina – Nove, oito meia três quatro, trinta e oito, quarenta.

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Page 24: Enquanto a Chuva Cai

Enquanto a Chuva Cai

Julio Cesar anota o numero no cartão,logo após tira o celular do bolso da camisa e

disca um número. O celular de Carolina começa a tocar dentro da bolsa. Ela pega ao

ver o número no visor olha para Julio Cesar.

Julio Cesar – Só pra me certificar.

Julio Cesar continua a mexer no celular.

Julio César – Pronto. Já gravei o número na minha agenda.

Cena cinco

Julio Cesar e Carolina saem do carro. Ela fica encostada na porta do carro e ele fica

parado a sua frente, bem próximo.

Carolina – Agora o sol aparece.

Júlio César – Você é o sol.

Carolina sorri.

Julio Cesar – Já vou. Mas antes me responde só uma coisa?

Carolina – Faça a pergunta. Se eu achar que devo responder eu respondo.

Julio Cesar – Porque você me confidenciou coisas tão íntimas?

Carolina – Sei lá... Me deu vontade. Acho que faz parte da maturidade a gente dizer

coisas que não conseguia dizer aos vinte anos.E não foi só eu quem fez confidências

aqui.Uma coisa levou a outra.

Júlio Cesar olha com ternura para Carolina.

Julio Cesar – Posso te dar um abraço?

Carolina – Por favor!

Julio Cesar abraça Carolina com intensidade e carinho. Eles permanecem abraçados

por um longo tempo como se não quisessem mais se afastar um do outro. Julio Cesar

faz mais uma pergunta, essa ao pé do ouvido.

Julio Cesar – Por que você estava chorando daquela maneira?

Page 25: Enquanto a Chuva Cai

Patrícia Franconere

Carolina – Sussurra algo no ouvido de Julio Cesar.

Julio César abraça Carolina com mais intensidade.

Toca a Música Sempre não é todo dia(Oswaldo Montenegro com Zizi Possi).

Apagam-se as luzes.

Fim

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