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Marcada pelo Passado (Prairie Bride) Julianne MacLean Kansas, 1882 UM SEGREDO DO PASSADO AMEAÇAVA O AMOR DE MADELLEINE Jedidiah sabia que sobreviver naquela região inóspita era tarefa difícil, principalmente para uma mulher. Esperava, porém, que sua esposa fosse tão forte quanto ele. Mas o que o levava a acreditar que uma jovem que ele acabara de conhecer pudesse ajudá-lo a salvar um sonho?

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Marcada pelo Passado(Prairie Bride)

Julianne MacLean

Kansas, 1882UM SEGREDO DO PASSADO AMEAÇAVA O AMOR DE MADELLEINE

Jedidiah sabia que sobreviver naquela região inóspita era tarefa difícil, principalmente para uma mulher. Esperava, porém, que sua esposa fosse tão forte quanto ele. Mas o que o levava a acreditar que uma jovem que ele acabara de conhecer pudesse ajudá-lo a salvar um sonho?

O casamento por correspondência com Sr. Brigman caíra do céu para Madelleine MacFarland. Ela apenas esperava que aquele fazendeiro calado fosse tão honesto quanto aparentava ser, pois seu passado já ocultava mentiras e escândalos suficientes para o resto da vida!

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CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean

Digitalização: PolyRevisão: Edna Fiquer

Copyright © 2000 by Julianne MacLeanPublicado originalmente em 2000 pela Harlequin Books, Toronto, Canadá.

Todos os direitos reservados, inclusive o direito de reprodução total ou parcial, sob qualquer forma.

Esta edição é publicada por acordo com a Harlequin Enterprises B.V.Todos os personagens desta obra, salvo os históricos, são fictícios. Qualquer outra

semelhança com pessoas vivas ou mortas terá sido mera coincidência.

Título original: Prairie Bride

Tradução: Sulamita PenEditor: Janice Florido

Chefe de Arte: Ana Suely S. DobónPaginador: Nair Fernandes da Silva

EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.Rua Paes Leme, 524 - 10e andar CEP 05424-010 - São Paulo - Brasil

Copyright para a língua portuguesa: 2001 EDITORA NOVA CULTURAL LTDA.Fotocomposição: Editora Nova Cultural Ltda.

Impressão e acabamento: Gráfica Círculo.

CAPÍTULO I

Kansas, 1882

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Mary Hellen MacFarland estava exausta e tinha certeza de que não dormiria durante as próximas horas. Inclinou-se para a frente e espiou pela janela do trem.

A fumaça soprava, incômoda e sibilante. As rodas de ferro chiavam, fazendo ruídos abruptos e explosivos de descarga sob a sola de seus pés, com a mesma velocidade das batidas de seu coração.

Naquela noite ela iria perder a virgindade. Pela segunda vez.Mary Hellen afundou na poltrona e massageou as têmporas. Rezou em silêncio,

para que tudo desse certo e para haver tomado a atitude correta, vindo para o Oeste.Inquieta, procurou assegurar-se do acerto de sua decisão. Puxou o cordão de sua

bolsa preta para abri-la e tirou o anúncio de jornal. Leu:"Beauregard Brigman, fazendeiro, procura esposa calma e gentil para

compartilhar uma vida simples nas pradarias do Kansas. Que não se importe em trabalhar arduamente todos os dias nas tarefas do campo, além de cuidar da casa."

Casamento e uma existência tranqüila. Isso era tudo o que sempre desejara, Mary Hellen lembrou a si mesma, observando duas crianças alegres que corriam uma atrás da outra no corredor, gritando e gargalhando.

Um remorso perturbador a fez estremecer. Nem em sonhos imaginara algum dia ter de recorrer a uma fraude para casar-se. Mas, na realidade, não tivera alternativa.

Dobrou o pedaço de papel amassado e passou os dedos pelo vinco. Se ao menos soubesse o que esperar do futuro marido... Se ao menos tivesse idéia de como era a aparência dele...

Enfiou a folha de novo na bolsa e, sem querer, encostou o cotovelo na mulher que dormia a seu lado.

Decidida, refletiu que o aspecto físico de um homem não tinha a menor importância. Já aprendera sua lição em Boston. Dessa vez, estava convicta de que agira com a razão.

Pela janela descortinava-se um verdadeiro oceano de campos dourados. A imensidão de terras ondulantes estendia-se a perder de vista e colidia com o céu sem nuvens.

Uma pessoa poderia, com toda a facilidade, desaparecer no meio daquela pradaria.

Encostou a cabeça para trás, no espaldar do assento, fechou os olhos cansados e imaginou como seria seu novo companheiro. Quem sabe se Beauregard a esperaria com uma daquelas carruagens pretas e leves de quatro rodas, puxada por um belo cavalo também negro...

Assim que se encontrassem, ele tocaria a aba do chapéu para cumprimentá-la. Mary Hellen anteviu-o usando um traje novo de casamento combinado com um chapéu de feltro, tudo em cor cinza, parecido com o que o pai dela usava para ir à igreja aos domingos. Será que Beauregard estaria com o rosto barbeado?

Ou usaria barba? Seu pai sempre ostentara um largo bigode de pêlos eriçados,

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que terminava em pontas recurvadas. E óculos de aros dourados.Sorriu ao lembrar-se de como ele costumava fumar um cachimbo aos sábados,

depois do jantar. Talvez Beauregard tivesse o mesmo costume.De novo a sensação de culpa invadiu Mary Hellen e interrompeu seus devaneios.

Não fora muito honesta com Beauregard, o futuro marido. Escondera dele muitos fatos.

Viera até ali à procura de algo bem mais importante que um simples lar. Mary Hellen tinha por objetivo conseguir segurança física e emocional. Precisava de um refúgio. Queria que a esquecessem.

Na parte de trás do trem, um bebê começou a chorar. Mary Hellen ergueu as pálpebras. Esperava que Beauregard nunca soubesse como sua noiva estava longe do pedestal de virtudes, tão acalentado por seu pai. Rezava para que o futuro cônjuge a perdoasse por enganá-lo no dia do matrimônio.

— Ainda acho que está cometendo um grande erro! — George Brigman afirmou, perscrutando a parte interna escura e úmida da casa feita de torrões de barro ainda com relva, construção comum nas grandes planícies do Oeste central norte-americano.

Beauregard Brigman, muitíssimo irritado, fitou o irmão, que limpava a superfície de uma caixa de madeira antes de sentar-se.

Que Deus o perdoasse, George refletiu, se viesse a estragar a roupa nova durante o tempo em que ficava ali, conversando com Beauregard e externando suas opiniões.

Beauregard tentou ignorar os conselhos de George e olhou para dentro da habitação de um cômodo.

A chuva do dia anterior infiltrara-se nas paredes e chegava ao interior. A lama pingava do teto em um enfadonho taque-taque. O cheiro de terra molhada vinha de todas as fendas, e a umidade penetrava por debaixo da roupa.

Uma grande desordem aguardava a chegada de sua nova esposa.— Você ainda não esqueceu Isabelle. — George esmagou um gafanhoto com o

pé, afundando-o no chão de barro. Limpou as botas brilhantes com o dorso da mão.Beauregard encolheu os ombros dentro do casaco franjado de pele de veado e

estremeceu ao ouvir o nome de Isabelle. Esperava que, a partir daquele dia, não ter de ouvi-lo mais.

Procurou com o olhar o "esconderijo" de suas luvas gastas de couro. Deu três passos e apanhou-as de cima do barrilete, que ficava ao lado da porta. Bateu-as de encontro às coxas.

Pensou se não deveria ter feito a barba. Paciência... Não dava mais tempo. Estivera trabalhando nos campos de milho desde o alvorecer, e não recordara aquele detalhe.

— Você não está me escutando, Beauregard. Faz apenas três meses, e ainda nem está em condições para assumir uma nova mulher.

— Claro que estou! Tenho terras e uma casa. — Abriu os braços, e as franjas das 4

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mangas balançaram. — O que mais eu poderia querer?— E chama isto de casa?! — George foi até a parede feita de blocos de terra e

arrancou um pouco da grama murcha e marrom. — Você pôs anúncio em jornal que circula na cidade e espera que ela viva aqui?

Beauregard cerrou os maxilares diante do que considerou um insulto. Estava muito orgulhoso do que conseguira amealhar durante o ano que passara. Comprara aquele rancho e havia plantado milho, trigo e outros grãos. Assim que a ceifeira chegasse, obteria um belo lucro proveniente do trigo e do centeio.

— Fui bastante direto ao declarar que procurava por alguém que se dispusesse a trabalhar na lavoura, George. Já que esse alguém respondeu, não há o que falar sobre o assunto. Necessito de ajuda, assim como de uma esposa. Tenho sido tão solitário quanto o ermitão que dizem que me tornei, na tentativa de esquecer...

Sem coragem de pronunciar o nome, Beauregard coçou a nuca, debaixo do manto espesso de cabelos que lhe iam até os ombros.

— Você nunca se incomodou com a opinião de quem quer que fosse. — Com isso, George só fez aumentar a irritação de Beauregard.

Ele respirou fundo, tentando se acalmar. Só teve sucesso ao inteirar-se mais uma vez do cheiro sempre presente de relva e barro. Tudo estava terrivelmente úmido.

— Não me importo mais com Isabelle, George. Fiquei furioso por ela ter me tomado por um idiota e rompido nosso compromisso.

Beauregard virou-se de costas para o irmão. Não queria pensar no assunto. Tinham uma longa jornada pela frente, e devia se concentrar no juramento matrimonial que estava para fazer. Afinal, e mesmo que George o criticasse, sabia muito bem da seriedade da atitude que iria assumir.

— Olhe para você — George ironizou. — Todo coberto de poeira. Parece mesmo que acabou de chegar do campo. Por que, pelo menos, não se lembrou de pedir emprestado um de meus ternos?

Beauregard espiou a calça bege desbotada e as botas de couro já gastas.— Mas eu acabei de chegar da plantação de milho! É desse jeito que me visto, e

você também sabe que seus ternos não me servem.— Poderíamos fazer uma parada no armarinho... Beauregard ergueu uma sobrancelha e desejou que George parasse de fazer

sugestões sobre seu traje de núpcias. Não pretendia fazer da cerimônia um acontecimento mais importante do que era. Uma mera formalidade legal.

Beauregard atirou uma manta cinzenta e velha sobre a cama estreita e afofou o único travesseiro. De repente, sentiu um frio no estômago. Estava habituado a morar sozinho. Logo mais estaria dormindo naquele leito com uma... estranha!

— Beauregard, acho que não precisa casar-se com ela hoje. Você nem sabe como a moça é.

— Não me importa nem um pouco o aspecto físico, George. Na verdade, um rosto bonito empana o raciocínio de um homem. Preciso de uma jovem capaz, que não

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esteja preocupada com chapéus, roupas bonitas e tudo o mais que elas usam.Beauregard afastou alguns fios de cabelo da testa.— Ela vai morar aqui, muito longe da cidade, e acenderá o fogo com estrume

seco de vaca.George lançou um olhar depreciativo ao recinto e empurrou os óculos de aro

dourado para cima do nariz.— Ainda há tempo de mudar de idéia, Beauregard. Poderia até conhecê-la

primeiro e cortejá-la um pouco, antes de dar o passo definitivo.— Não tenho tempo a perder. Estou com trinta anos. Por outro lado, se eu

gostasse de namorar, o faria com uma garota aqui do Kansas. Não precisaria trazê-la lá de... — Beauregard franziu o cenho, sem se lembrar de onde era o jornal ao qual ela respondera.

— Boston! — George terminou por ele. — Você mandou-a vir de Boston!— Isso mesmo. De Boston. — Beauregard esfregou o queixo com a barba por

fazer. — Agora, vamos tratar de pegar a estrada. Se chegarmos tarde, minha noiva ficará perdida na estação, pensando haver desembarcado em lugar errado.

— Tenho certeza de que ela ficará perdida de qualquer maneira, ao ver onde terá de morar.

George passou primeiro pela porta estreita e baixou a cabeça para o chapéu de feltro não esbarrar no marco. Beauregard seguiu o irmão, e os dois saíram ao vento, em direção à carroça sem pintura e tão escura como uma nuvem negra de trovoada.

Beauregard subiu e sentou-se no assento duro. Pegou as rédeas, deu uma guinada para o outro lado e pôs o veículo em movimento rumo à cidade, levando o cavalo de George a reboque.

Suspirou. George estava certo. Talvez ele devesse ter esperado pelo menos até depois da colheita. Mas o que estava feito, estava feito. Havia assumido um compromisso, e não voltaria atrás com sua palavra.

A jovem insistira em viajar logo. Ela atravessara o país, e Beauregard lhe prometera uma certidão de casamento no mesmo dia de sua chegada.

Beauregard estreitou os olhos, espiou o céu azul, tirou o chapéu velho de aba larga e enxugou a testa com a manga do paletó.

Casamento... Nunca supusera que seria daquela forma. Todavia, ao recordar-se da primeira proposta que fizera, decidira que seria a melhor maneira.

Cometera um erro ao escolher Isabelle. Ela era inadequada para o tipo de vida que ele pretendia levar. Mas Beauregard ficara ofuscado com sua beleza e seu charme. Isabelle jamais poderia ser a esposa de um fazendeiro. Ele deveria ter notado e entendido isso desde o princípio.

Com certeza, fora para seu bem, Beauregard pensou, distraído, enquanto dirigia a carroça através de um vale profundo.

Não podia negar que sofrerá quando Isabelle o deixara. A cólera não o abandonara durante muitos dias. Porém, a raiva era mais de si mesmo, por ter sido tão

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idiota. Na certa, perdera a capacidade de raciocinar, quando fizera a proposta a Isabelle.

Dessa vez não, refletiu, satisfeito, observando um dos cavalos abanar a cauda para afastar uma abelha.

Beauregard fora bem claro no anúncio, e um rosto bonito não estava entre os requisitos necessários. Nessas circunstâncias, o enlace seria alicerçado no respeito e no desejo mútuo de companheirismo, sentimentos que haviam se perdido ao longo dos anos.

A voz de George arrancou Beauregard de seus pensamentos:— Comprou um presente para sua noiva?— Presente? O fato de eu ter pago a passagem dela de Boston até aqui já não é

suficiente?George meneou a cabeça devagar, como era seu costume.— Uma mulher gosta de algo palpável. Alguma coisa que terá significado durante

uns vinte anos, pelo menos, toda vez que ela o tirar do armário. Por que não lhe dá o colar?

— Ficou louco, George?! E o que eu faria com a gravação do verso? Riscaria "Isabelle" e gravaria o outro nome na frente?

— Mary Hellen.— Eu sei o nome dela!— Seria interessante se o usasse no momento do primeiro encontro.— Pode ficar sossegado, eu não me esquecerei.— Também não quero vê-lo se queixar se a garota não for a coisinha mais linda

que você já viu. Sei que tem um fraco pelas moças bonitas, e por isso se apaixonou por Isabelle, apesar de ela não...

Beauregard fuzilou o irmão com o olhar.— Espero que minha esposa tenha quadris tão grandes como um celeiro e braços

mais fortes que os de um lutador. Ela precisará deles para trazer água do ribeirão, enquanto eu estiver fazendo meu trabalho nas plantações.

— E quando planeja fazer aquilo! Beauregard estalou a língua para os cavalos.— Quando houver condições.George não retrucou, e Beauregard sentiu a desaprovação dele.George era advogado e acostumado com a cidade. Nunca poderia entender o

quanto se trabalhava em uma fazenda. Ou como isso poderia ser gratificante.— Espero que seja amável com ela hoje.— Serei — Beauregard assentiu, na defensiva. — E não quero mais ouvir falar a

respeito.A carroça inclinou-se, ao passar por uma saliência na estrada.— Eia! — ele gritou para os cavalos, que lutavam para equilibrar-se, dando-lhes

uma pancada leve com as rédeas.

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Entendeu que, ao anoitecer, seria um homem casado.Pensou na estranha que se preparava para encontrá-lo e sentiu um aperto no

coração. Apesar de tudo, gostaria de saber o que o aguardava.

CAPÍTULO II

— Próxima parada: Dodge City! — o inspetor do trem anunciou, apoiando-se no encosto das poltronas, enquanto caminhava pelo corredor.

Mary Hellen arrepiou-se, com o medo que a invadia. Sentada na beira do assento, estava ansiosa para ver pela primeira vez o lugar que se tornaria seu lar.

Naquele momento, era uma realidade, e não mais uma fantasia. Passou as mãos nos cabelos castanhos, para ver se estavam arrumados e sem mechas soltas fora do lugar. Verificou se os botões não haviam escapado das casas e beliscou as faces, para dar-lhes cor.

— Você é linda — a mulher ao lado comentou. — Tenho certeza de que ele se apaixonará assim que a encontrar.

— Como é que sabe? — Mary Hellen forçou um sorriso.— Eu a vi lendo o anúncio, e não foi difícil adivinhar que estava nervosa. Não se

preocupe. Você é uma jovem muito atraente, e o rapaz ficará satisfeito. Pode acreditar.

Mary Hellen observou pela janela as construções de madeira cobertas de poeira.A locomotiva diminuiu a marcha ao aproximar-se de Dodge City e deixou escapar

os ruídos fortes de descarga.O passeio de tábuas envergadas rangia sob o torvelinho dos caubóis e dos

cidadãos. A larga rua principal, enlameada em virtude da chuva recente, mostrava marcas profundas dos cascos de cavalos e rastros das carroças.

A locomotiva deixou escapar um grito estridente e parou na estação, chiando seu cansaço. Uma multidão estava reunida na plataforma.

A maioria dos homens soltava bafos de fumaça de cachimbo sob a aba dos chapéus. Mary Hellen deu uma última e rápida mirada, engoliu a apreensão e pegou a valise.

Moveu-se pela passagem entre as poltronas, carregando a mala. Chegou aos degraus e semicerrou os olhos por causa da luz forte do sol, e ergueu uma das mãos em pala, para fazer sombra.

Procurou entre os rostos desconhecidos que a fitavam. Qual seria o homem que prometera vir a seu encontro, aquele que logo se tornaria seu marido?

Deu um passo incerto para baixo. Naquele exato momento, uma rajada de vento bateu-lhe no rosto e tirou-lhe o chapéu da cabeça. Ele deu um salto mortal, aterrissou no pátio enlameado da estação e virou-se para todos os lados, impelido pelo ar em movimento.

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— Oh, Deus! — Mary Hellen gritou, tentando segurar os cabelos amarrados no lugar.

Nisso, ela o viu. Seu noivo perseguia o chapéu dela. Mary Hellen animou-se. Tinha de ser ele. Adivinhava que seria. Usava óculos de aro dourado, terno cinza e chapéu de feltro, igualzinho ao que imaginara! Parecia-se muito com seu pai.

O rapaz apanhou o fugitivo e limpou-o com todo o cuidado com um lenço branco imaculado. Quando pareceu satisfeito com a limpeza, virou-se e caminhou direto para ela.

— Mary Hellen MacFarland? — perguntou, ao aproximar-se, tomando-lhe a valise pesada das mãos, ao mesmo tempo que lhe entregava o chapéu rebelde.

— Sim, sou. — Ela ajeitou-o de novo na cabeça e prendeu-o com o alfinete.— Por favor, por aqui. — Conduziu-se pela frente de um grupo de cavalheiros. —

Permita-me que me apresente. Sou George Brigman.Mary Hellen fitou-o, confusa.— George? Achei que o senhor fosse... Beauregard é o segundo nome?Ele parou, riu e estendeu-lhe a mão.— Receio que tenha se enganado. Sou George, irmão de Beauregard.Mary Hellen estava muito apreensiva.— Por favor, senhorita, a carroça está logo ali. George guiou-a até os fundos da estação ferroviária. Ao se ver caminhando com

ele de braço dado, MaryHellen perguntava-se por que Beauregard não viera buscá-la. Talvez fosse um

homem tímido.É, devia ser isso, procurou convencer-se, lutando contra os maus

pressentimentos. Por esse motivo procurara uma esposa por meio de um anúncio, em vez de cortejar alguma.

Bem, a vergonha seria bem apropriada para Mary Hellen. De fato, até preferia que assim fosse. Um marido simpático, gentil e reservado. Sim, seria agradabilíssimo.

— Ali está meu irmão. — George apontou a carroça, com um gesto de cabeça.Mary Hellen estacou. Viu apenas uma grande caixa velha sobre rodas, puxada

por dois cavalos com ares pré-históricos e cascos peludos.— Onde?Nisso, um rapaz de cabelos compridos saiu de detrás da parelha.Mary Hellen não conseguiu respirar por uns dois ou três segundos. A primeira

impressão foi de que ele precisava barbear-se e de um banho urgente. Será que Beauregard se esquecera de que era o dia de seu casamento? Usava um casaco marrom de pele de gamo, com mangas franjadas e balançantes e um colar feito de garras de animais. Não se parecia em nada com George.

Mary Hellen lutou contra a náusea súbita que a invadiu e deu um passo incerto à frente. Beauregard abaixou-se e examinou a pata de um dos animais.

— Acho que meu irmão ainda não nos viu — George afirmou, à guisa de

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desculpas.Na opinião dela, Beauregard estava mais preocupado com o cavalo do que com a

chegada da futura esposa. Mas aquele momento deu tempo para Mary Hellen controlar as emoções e reconsiderar a situação.

Não era certo julgá-lo pela aparência. Nem ainda lhe fora apresentada. Beauregard poderia ser um camarada muito educado.

Seu noivo largou a pata e olhou para cima. Mary Hellen fitou-lhe os olhos verdes da cor do mar e estremeceu. Beauregard pareceu desapontado, como se ela não correspondesse às expectativas.

O sol escondeu-se atrás de uma nuvem, e Beauregard aproximou-se, envolvido pela sombra. Alto e musculoso, movia-se com graça surpreendente.

— A senhorita é Mary Hellen MacFarland?Ela engoliu em seco, nervosa, e esforçou-se para manter a voz natural:— Sou, sim.— Mary Hellen — George interveio —, este é meu irmão, Beauregard.

Beauregard, esta é Mary Hellen.O fazendeiro de porte avantajado fitou-lhe o corpo e depois o chapéu grande,

emplumado e de cor púrpura.— Não posso imaginá-la carregando água — comentou, num murmúrio, com

George.— Eu posso fazer isso — Mary Hellen afirmou, embora sem muita ênfase, mas

nenhum dos dois pareceu escutá-la.George deu de ombros e fitou o irmão. Mary Hellen teve certeza de que ele

pretendia dizer: "Viu? Eu não lhe disse?".— Ponha a bagagem dela dentro da carroça e entre, George — Beauregard

ordenou.George entrou por trás, e Mary Hellen perguntou-se por que aquele rapaz um

tanto primitivo parecia tão aborrecido com ela, que tentara parecer agradável. Havia se arrumado com o maior cuidado e bom gosto, só para ficar bonita para ele.

— Vamos. — Beauregard subiu no veículo e sentou-se no banco alto. — As repartições municipais fecham às cinco.

Mary Hellen hesitou, e ele franziu o cenho. Ela sentiu-se corar até a raiz dos cabelos.

— A senhorita não vem?Algo lhe dizia para não ir e voltar correndo em direção às colinas. Que ridículo!

As montanhas estavam muito distantes dali.Mary Hellen permaneceu imóvel, observando a cidade plana e acariciada pelo

vento.O sol saiu de trás da nuvem. Mary Hellen teve de voltar a proteger a vista para

olhar a silhueta avantajada de Beauregard.Ele era bem menos gentil do que ela gostaria que fosse, mas não estava em

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condições de mudar nada. Seria melhor aproveitar a oportunidade de ficar ali a voltar para Boston e ter Garrison em seu encalço a qualquer momento. Se se casasse com Beauregard, tudo seria legalizado,.e Mary Hellen mudaria de nome.

Mesmo que o casamento não desse certo, sua pista se perderia com o passar do tempo. Garrison não poderia encontrá-la.

Era evidente que Mary Hellen esperava que tudo saísse conforme seus sonhos. Ela e Beauregard acabariam se conhecendo, no sentido bíblico do termo. E, juntos, desfrutariam uma existência agradável. Depois de ganhar sua confiança... poderia contar a verdade ao marido.

Mary Hellen ergueu a barra da saia e subiu, desajeitada, para acomodar-se no banco, ao lado dele.

— Eia! — Beauregard gritou e bateu as rédeas no dorso dos animais.Sem aviso, a carroça movimentou-se para a frente com um movimento súbito e

brusco. Mary Hellen não controlou a cabeça, que foi para trás, com um estalo, e teve de usar todo seu vigor para não acabar sentada no colo de Beauregard, quando ele virou a carroça em uma curva fechada, para entrar na rua larga.

Ele não disse uma única sílaba durante o trajeto.Mary Hellen refletiu, infeliz, se não havia escapado de uma situação horrível para

entrar, por vontade própria, no meio de outra.

CAPÍTULO III

Sentado ereto no banco deformado da carroça, Beauregard agarrava-se às rédeas gastas de couro, determinado a não tirar os olhos do caminho a sua frente. A tensão que não sentia havia meses fazia agora sua cabeça latejar.

Que grande confusão! Como pudera se meter com uma mulher tão linda? Precisava de alguém para apanhar do chão o combustível, limpar os estábulos e ordenhar as vacas!

Isso sem falar em ajuda na época da colheita e na da matança dos porcos. Fora todo o resto! Teria Mary Hellen entendido o anúncio? E quando visse a casa de terra onde teria de morar?

E o pior: Mary Hellen era do exato tipo de moça que Beauregard sempre achara atraente. Os cabelos escuros estavam presos em um coque frouxo no alto da cabeça. Seus olhos grandes e castanhos poderiam ser a perdição de qualquer um. A pele era clara, e os lábios, da cor das framboesas.

Não adiantava notar tudo isso, porém, pois, assim que ela visse a casa, pediria para voltar para Boston. Seria uma tolice imaginar o contrário.

Quando subiam a Railroad Avenue, a carroça bateu em uma pedra e desequilibrou-se. De novo, Mary Hellen foi sacudida e quase sentou-se no colo dele.

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— Desculpe-me — ela falou e endireitou-se.Beauregard enrijeceu por inteiro. Não era tarefa fácil ignorar a presença que o

fazia perder a razão, e a tensão que o invadia. Mary Hellen parecia uma borboleta delicada em meio a um vendaval.

George deslizou no estrado, do fundo para a frente, até ficar bem atrás deles.— Está cansada da viagem, srta. MacFarland? — o advogado perguntou.— Um pouco...A perna de Mary Hellen, em algum lugar debaixo daquelas saias de cor púrpura,

colidiu com a de Beauregard. Ela se afastou depressa e manteve-se a uma distância apropriada, para alívio dele.

— Bem, pode alegrar-se. — George sorriu. — Poderá descansar até amanhã. Depois, teremos um trajeto de seis horas até chegar ao nosso destino.

Beauregard virou-se.— Amanhã por quê? Será uma noite de lua cheia. Poderemos voltar esta tarde,

assim que o juiz conceder-nos a certidão.George tirou um lenço branco e assoou o nariz.— Bem, tomei a liberdade de reservar um quarto no Dodge House para hoje. É o

melhor da cidade. Pensei que seria um bom presente de casamento, após o longo caminho que a srta. MacFarland teve de enfrentar.

Beauregard não escondeu a irritação. Não era sua intenção fazer daquela cerimônia um evento romântico. Planejava estar no campo já ao amanhecer da manhã seguinte. Por causa da intervenção inoportuna de George, teria de desperdiçar as melhores horas do dia.

— Agradeço muito, sr. Brigman. — A alegria de Mary Hellen atingiu Beauregard como uma pedrada.

Ele voltou-se para ela e notou, pela primeira vez, como era maravilhoso seu sorriso. As pupilas dela cintilavam para George, e os dentes eram perfeitos e imaculados.

Não haveria nada de feio naquela mulher?!— Não há... por que, srta. MacFarland — o irmão de Beauregard gaguejou, como

um colegial. — Por favor, me chame de George.Beauregard balançou a cabeça, ao ouvir o tom meloso do irmão.Depois de rodar por alguns minutos, chegaram até uma construção de tijolos.Beauregard parou a carroça, amarrou as rédeas e apeou. Deu a volta na frente

dos dois cavalos e observou Mary Hellen mexer-se, desajeitada, para descer.Ela se agarrou na lateral lascada do veículo e, com a outra mão, segurou o

chapéu, para que não voasse. Ao tentar apanhar as saias, tudo ao mesmo tempo, franziu o nariz delicado.

Beauregard não se conformou com o espetáculo ridículo que Mary Hellen oferecia, até notar que George pulara da carroça para ajudá-la.

Muito bem, o irmão estava muito enganado se pensava que Beauregard o

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deixaria suplantá-lo!Beauregard apressou-se para alcançar a recém-chegada e estacou bem atrás do

traseiro oscilante. Fitou-a por um segundo. Um pé pequeno encostava no chão, e a outra perna estava dobrada em um ângulo impossível, com o outro pé ainda no piso do veículo.

— Pode vir para trás — ele instruiu. Beauregard pegou-a pela cintura estreita, ergueu o corpo delgado e colocou-a a

salvo, sobre o solo. Pôde comprovar o aroma de limpeza dos cabelos dela e o perfume de água de rosas de sua pele. Teve de lutar contra a inclinação de apreciar ambos.

— Obrigada, sr. Brigman. — Corada, Mary Hellen alisou a saia.Uma das coisas que o encantava era uma mulher fazendo aquele gesto, mas

Beauregard recusou-se a aceitar o fato.— Bem, não espere uma assistência como rotina. A senhorita terá de acostumar-

se com coisas bem difíceis.Mary Hellen o encarou boquiaberta, e Beauregard desejou ter guardado as

palavras para si. De qualquer forma, sua esposa teria de esquecer as tendências à vaidade, se pretendesse sobreviver nas planícies, com incêndios nas pradarias, tempestades de vento e gafanhotos.

Não tinha a mínima intenção de deixá-la despender horas preciosas em frente a um espelho, a preocupar-se com ninharias, como Isabelle sempre fizera.

Juntos, começaram a subir a escada, em direção à porta da frente.Beauregard sentiu o pânico avolumar-se aos poucos. Depois de toda a pregação

que fizera contra as garotas bonitas, o que ele pretendia fazer?

CAPÍTULO IV

Atordoada, Mary Hellen contemplou a grande construção de tijolos. No meio da escada, agarrou-se no corrimão.

Não podia continuar com aquilo. O homem a seu lado não se parecia nem de longe com o que imaginara ter de casar-se. Por que não podia ser alguém como George?

Entraram no edifício e subiram os degraus rangedores até o segundo pavimento. Aquela altura, Mary Hellen já estava apavorada.

Andaram até uma sala no final do corredor. Beauregard apressou-a para que entrasse. Mary Hellen aproximou-se do juiz, sentado atrás de uma mesa de mogno, e deu-se conta de que dera mais alguns passos rumo à concretização daquela loucura.

Mary Hellen escutou os passos de Beauregard atrás de si e notou sua presença avantajada, como se fosse uma rede prestes a ser jogada em cima dela.

Beauregard chegou até o lado da futura esposa, e Mary Hellen sentiu-se presa dentro de uma armadilha, naquela sala abafada.

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CHE 111 – Marcada pelo Passado – Julianne MacLean

Ela não conseguia respirar! Tinha de parar com aquilo. Ainda havia tempo, enquanto os papéis não fossem assinados.

Mary Hellen virou-se sobre o tapete oriental e tentou recuperar o fôlego. Beauregard estava parado, e ela teve a impressão de que se tratava de um muro enorme de pedra. Ele era ainda mais alto do que supusera.

Mary Hellen engoliu em seco e fitou o colar de garras de animais. O botão do colarinho da camisa branca de Beauregard estava aberto. Ela viu o pescoço desnudo dele e ficou com a boca seca.

Beauregard afastou os longos cabelos castanho-avermelhados para trás, e Mary Hellen admirou-se com a largura daqueles ombros cobertos pelo casaco de pele de gamo.

— Você está bem, Mary Hellen? Parece que precisa de um copo de água ou algo assim.

Ela anuiu e baixou o olhar. Queria estar em qualquer lugar do mundo, menos ali.— George, arranje alguma coisa para ela beber. Beauregard levou-a até o sofá

estofado, pôs as mãos nos ombros dela e a fez sentar-se. Ajoelhou-se a sua frente, apanhou algumas folhas de papel de cima da escrivaninha e abanou-a com delicadeza.

Mary Hellen ergueu a cabeça e fitou-o.Quem sabe se o dono daqueles olhos verdes não esconderia algum tipo de

bondade? Afinal, Mary Hellen achava que tomara uma decisão acertada. A toda hora, mulheres atravessavam o país rumo ao Oeste, para casar-se com homens desconhecidos.

Beauregard dissera no anúncio que precisava de uma que gostasse da vida simples do campo, e isso era exatamente o que Mary Hellen queria. Apenas não imaginara, em suas fantasias, que acabaria se casando com alguém tão rude quanto aquela terra ainda indômita.

George voltou apressado e estendeu-lhe um copo com água. Mary Hellen bebeu o líquido sem saber bem o que fazia. Apenas estava consciente dos homens que a fitavam, preocupados e à espera.

— Quem sabe um pouco de ar fresco possa fazer bem — o juiz sugeriu, abrindo uma janela.

O vento forte da pradaria entrou e derrubou alguns papéis de cima da mesa. As folhas brancas voaram e se viraram no ar, na frente de Mary Hellen, que sentiu-se tão tonta como se girasse junto com elas e caísse em um precipício escuro e desconhecido.

— Essa droga de vento nunca pára! — O juiz segurou os documentos restantes.Ainda ajoelhado na frente dela, Beauregard esperou Mary Hellen terminar de

tomar a água e pôs o copo vazio em cima da escrivaninha.Ela fitava a covinha do queixo quadrado e os cílios longos que pareciam um toldo

sobre os olhos verdes. Beauregard tinha lábios carnudos demais para um homem. Mary Hellen imaginou, com uma estranha excitação interior, qual seria o gosto de beijá-los.

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Beauregard tocou-lhe a testa com as costas da mão, e Mary Hellen recuou com brusquidão, num gesto instintivo. Ele hesitou e estreitou os olhos, questionando-a.

Mary Hellen surpreendeu-se com a própria reação, tentou relaxar e permitiu que o futuro marido a examinasse. Beauregard tornou a encostar em sua testa, com suavidade.

— Você está um pouco quente.— Deve ser o calor — ela murmurou.— Isso acontece sempre. — O juiz riu alto, caçoando dela. — Mas, em geral, com

o noivo. Algumas vezes eles desmaiam e caem de nariz neste tapete.George uniu-se ao riso do juiz, mas Beauregard continuou encarando Mary

Hellen.— Sente-se melhor? Ainda há tempo de mudar de idéia. Mary Hellen arrepiou-se inteira. Sentiu-se cuidada, protegida mesmo. Era uma

sensação esquecida desde a morte dos pais.Em decorrência dessa segurança, os batimentos cardíacos voltaram, aos poucos,

ao ritmo normal. Seu sexto sentido advertiu-a de que, sob a dura carapaça exterior, poderia esconder-se um homem decente, bondoso, que poderia tornar-se um marido adequado.

Era tudo de que Mary Hellen precisava para erguer-se do sofá.— Estou bem — ouviu-se dizer. — Podemos prosseguir.Beauregard estava em pé na frente do juiz Fraser e fitava as íris castanhas de

Mary Hellen. Estava surpreso com a própria falta de coragem. Ela permanecia sentada no sofá e observava-o de modo tão inocente, como se precisasse sobremaneira dele.

Isabelle nunca o olhara daquela maneira. Nem ela, nem ninguém. Beauregard sentiu uma necessidade imperiosa de tomá-la nos braços e dizer-lhe que tudo iria dar certo.

Voltou-se para o magistrado e lembrou-se de sua intenção de evitar aquele tipo de atração que sentira por Isabelle. Depois da terrível lição que aprendera, achava que não seria mais atraído por ninguém daquele modo.

Sendo assim, por que seu corpo o traía com aquela onda de tensão poderosa?O senhor idoso virou a página e tirou Beauregard da névoa dos pensamentos

íntimos e contraditórios. Recomendou-lhe para que não se esquecesse das palavras importantes e perpétuas.

— Repita comigo: eu, Beauregard John Brigman, aceito Mary Hellen Jane MacFarland...

Beauregard repetiu tudo, e terminou:— ...amar e respeitar, até que a morte nos separe. Por Deus, o que dissera?"Até que a morte nós separe!""Amar e respeitar!"Tentou lembrar-se da carta escrita por Mary Hellen algumas semanas atrás. Ela o

convencera de que seria a esposa ideal para ele. Mencionara a solidão depois da morte

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recente dos pais. Mesmo antes de conhecê-la, Beauregard pensara que Mary Hellen seria uma moça leal à família, coisa que Isabelle não era. Como é que confiava tanto nela?

Escutou Mary Hellen dizer, com voz trêmula, as mesmas frases que ele dissera. Sentiu-lhe a angústia, mas já não tinha como voltar atrás.

Enquanto deslizava a aliança no dedo esguio de Mary Hellen, Beauregard prometeu a si mesmo que construiria uma casa de fazenda decente, assim que vendesse a colheita. Com um pouco de sorte, eles se mudariam antes da primeira neve. Poderia, enfim, vender o colar que comprara para Isabelle. Dali para a frente, seus sonhos e esperanças pertenceriam a Mary Hellen.

O representante dá lei encerrou o evento, e Beauregard fitou a expressão de Mary Hellen, admirado. Os grandes olhos dela eram impenetráveis, embora as faces estivessem coradas como dois morangos.

Eram marido e mulher. Essa constatação fez o coração de Beauregard disparar, e ele cambaleou.

Sentiu que George o cutucava por trás. Olhou para o juiz e entendeu que os dois homens esperavam pelo beijo. Apavorou-se. Baixou a cabeça e fitou o semblante assustado de Mary Hellen. Como é que faria aquilo?

Suspirou, rezou para encontrar coragem suficiente, inclinou-se e beijou-a de leve.

Deus era testemunha de como teve de conter-se contra o desejo de investigar com a língua o interior daquela boca formosa.

Pretendia demorar-se mais no beijo. Afastou-se, todavia, ao sentir a resposta rápida de cada célula. Sabia que tais coisas deviam ser aproveitadas com privacidade.

Por sorte, o momento estava próximo. Imaginar a noite que os aguardava deixou-o de pernas bambas.

CAPÍTULO V

Mary Hellen mal conseguia engolir. Espiou o novo marido por sobre a pequena mesa redonda.

Queria que a noite de núpcias terminasse o mais rápido possível. Por outro lado, almejava adiá-la para sempre.

Na certa, quando Beauregard a procurasse no escuro do quarto, entenderia que não havia sido o primeiro. Garrison lhe dissera que os homens sempre sabiam desses detalhes.

Tinha de ser forte, advertiu-se. Teria de passar por isso. Talvez sua experiência anterior não fizesse diferença para Beauregard. Afinal, não havia amor entre eles. Ele

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estava apenas à procura de uma ajudante para trabalhar na fazenda.Ao redor, ouvia-se o tilintar dos talheres de prata de encontro aos pratos de

porcelana. Dos fundos, vinha o som de risadas e de murmúrios das conversas.Mary Hellen mexeu-se na cadeira e relanceou outro olhar para Beauregard.Será que ele notava o pouco que ela comia? Para sua surpresa, Mary Hellen

percebeu que a fitava por cima do vaso de petúnias.Eles se entreolharam. Por um segundo, Mary Hellen perguntou-se, em nome dos

céus, no que Beauregard estaria pensando.Depois, foi invadida por um súbito constrangimento. Baixou os cílios, pegou o

garfo e levou aos lábios um pouco de purê de batata com molho. Mastigou com energia e teve consciência de que ficara vermelha como um tomate maduro.

Beauregard decerto imaginaria ser aquele o comportamento típico de uma noiva ingênua em sua noite de núpcias.

Mas Mary Hellen sabia muito bem o que esperar de um marido. A agonia pela expectativa da chegada do momento fez um frio percorrer-lhe a espinha.

Depois do jantar, ela bebericou o café, sem vontade, enquanto trocavam idéias sobre assuntos tão interessantes quanto o tempo, a temperatura e sua longa viagem até ali. Não demorou muito e a conversa chegou a um fim sem remédio.

O café estava frio, e Mary Hellen entendeu que havia chegado sua hora. Respirou fundo, para acalmar o nervosismo que sentia.

Beauregard deslizou a cadeira no assoalho, para trás.— Já terminou?Mary Hellen engoliu o pânico crescente, deu um sorriso forçado e anuiu com um

gesto de cabeça.— Podemos ir? — Ele estendeu-lhe a mão.Ela a aceitou e se levantou. Caminharam de braço dado, subiram a escada e

foram até o quarto 21. Beauregard enfiou uma chave grande de metal na fechadura e empurrou a porta, que rangeu.

Mary Hellen permaneceu em pé no corredor, incapaz de dar um passo à frente. Só conseguiu estudar o interior do aposento.

A luz bruxuleante de uma lamparina a querosene deixava o ambiente semi-escurecido. Em cima de uma cômoda alta em pau-rosa encostada na parede oposta, via-se um conjunto de quarto azul e rosa. A cama de ferro forjado era a peça mais notável do mobiliário.

Por que uma mulher tinha de passar por aquilo para sacramentar o matrimônio?, refletiu, infeliz.

— Sinta-se em casa — Beauregard disse, com o braço estendido, e com certeza perguntando-se por que ela hesitava.

Depois de alguns segundos, Mary Hellen deu um passo grande e passou pela soleira. Uma vez dentro, virou-se, com as mãos unidas diante do peito.

O seu marido de aspecto rústico estava com um ombro encostado no marco da

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porta e tinha as mãos enfiadas nos bolsos do casaco. Observou-a de alto a baixo, com olhar sedutor. Depois, encarou-a.

Por que aquele formigamento na boca do estômago?, Mary Hellen questionou-se. Medo? Pavor? Ou alguma vibração indecente? Pareceu-lhe incompreensível que, àquela altura dos acontecimentos, pudesse sentir alguma coisa diferente da infelicidade.

— Você não vem? — Mary Hellen sentiu-se observada. Teve vontade de ver passar logo aquela noite, junto com a miscelânea inexplicável de emoções que experimentava.

Beauregard deu um passo atrás no corredor.— Ainda não. Acho que gostará de ficar um pouco sozinha depois de viajar por

tantas horas. Reservei a banheira do hotel para você. — Esfregou o queixo. — Também pensei em tomar um banho e fazer a barba. George está me esperando na casa dele, que fica a poucas quadras daqui.

Será que a agonia dela não teria fim? Mary Hellen suspirou.— Posso voltar daqui a uma hora, Mary Hellen? Ela assentiu, sem pensar em opções, e viu-o fechar a porta. Ofegante e com os

joelhos trêmulos, escutou os passos fortes do marido sumirem pouco a pouco. Então, o silêncio a aturdiu.

Mary Hellen deixou-se cair no leito e esfregou o rosto no acolchoado de flores cor-de-rosa. Curioso notar que aquela cama não havia estalado... Mas disse a si mesma que, afinal, não era de se estranhar fazer a comparação com o barulho embaraçoso que a outra fizera. Havia sido sons que ela não esqueceria tão cedo.

Beauregard permaneceu por alguns momentos do lado de fora do hotel, fitando o céu estrelado. Escutou o som do piano do saloon. A melodia metálica invadia a rua e envolveu-o, deixando-o com saudade do sibilar noturno, tão manso, da relva da pradaria.

Fizera tanta coisa para evitar mulheres belas, bem vestidas e com chapéus emplumados! Inalou o aroma de outono do fim de agosto.

Durante o jantar, observara a inquietação da esposa, que não parava de mexer-se no assento, como se fosse uma criança no banco da igreja. Mary Hellen não conseguira esconder sua grande apreensão.

Pobrezinha, estava nervosa por causa do que iria acontecer... Na verdade, devia estar apavorada, e não pudera controlar-se.

Beauregard admitiu que essa também era sua situação. Nunca estivera com uma jovem virgem.

De repente, uma incrível ansiedade tomou conta de Beauregard. Esperava que pudesse tornar tudo muito agradável para ela. Mesmo sabendo que provavelmente não conseguiria, não deixaria de esforçar-se para isso.

As mulheres, em geral, não gostavam da primeira vez. Pelo menos, era o que escutava dizer.

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Parou de olhar o manto de estrelas que cobria o céu e encaminhou-se em direção à residência de George. Talvez um bom banho o descontraísse um pouco. Rezou para que isso ocorresse.

CAPÍTULO VI

Mary Hellen sentou-se na cama. Vestia uma camisola de algodão cor-de-rosa abotoada até o pescoço.

"Deus Todo-Poderoso!", invocou o nome santo, sentindo-se sufocar.Lutou contra o temor gelado que inundava seu coração e esperou, naquele

silêncio vazio, à escuta de passos que viriam do final do corredor.As imagens do casamento toldavam-lhe os sentidos, enquanto brincava com o

cetim da gola. O traje de dormir fora presente de Garrison naquela noite horrível, e doía ter de vesti-la de novo. Mas o que poderia fazer? Esperar o marido, nua no leito? Claro que não.

Quando ouviu o som das botas que se aproximavam, Mary Hellen estava quase congelada. A chave estalou na fechadura, a maçaneta girou e a porta abriu-se devagar, com um rangido preguiçoso.

Chegara a hora. Ficaria sozinha com o novo marido.— Desculpe-me, eu me atrasei. — Beauregard olhou-a por um momento, virou-

se e tirou o casaco.Mary Hellen nada disse. Nem poderia. Continuou encostada nos travesseiros,

mordendo a unha do polegar e observando os detalhes da aparência dele, sob o reflexo da luz oscilante.

De costas para ela, Beauregard tirou o colar de garras pela cabeça e o pôs sobre a cômoda. Depois, desabotoou e tirou a camisa branca e folgada.

Sensações de admiração explodiram dentro dela, ao ver as costas musculosas e bronzeadas. Seu marido era grande e forte. Mais robusto que Garrison. Beauregard devia ser pesado. Quando se deitasse sobre ela... ficaria presa...

Afastou o olhar e estremeceu, recordando o que sucedera depois de Garrison ter tirado a camisa. Pelo menos dessa vez, sabia o que a esperava: desprazer. E quem sabe mais o quê, quando Beauregard descobrisse o que escondia dele?

Beauregard deu três passos vagarosos e abafados, rumo ao leito.— Não precisa ter receio. Você parece que vai direto para um cadafalso.Mary Hellen procurou as palavras certas, desesperada.— É que... nos mal... nos co... conhecemos — gaguejou.Beauregard aproximou-se, coçando a cabeça. Ele parecia diferente de quando a

fitara pela primeira vez, com insensibilidade evidente nas íris verdes. Naquele momento, a expressão dele era de comiseração, de alguém que procurava incutir confiança.

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Porém, nem uma montanha de compaixão poderia mudar o que Beauregard estava para fazer com ela.

— Tentarei ser gentil — afirmou com voz incerta, de quem não tinha certeza do sucesso.

Beauregard ergueu um joelho para alcançar o colchão e rastejou até deitar-se do outro lado. Mary Hellen sentiu um leve perfume almiscarado.

— Espero que amanhã nós nos conheçamos um pouco melhor — ele acrescentou, com suavidade. Acomodou-se melhor e acariciou-lhe o queixo com a mão grande. — Mary Hellen, posso beijá-la?

Ela fez um gesto afirmativo e cerrou as pálpebras, preparando-se para sentir os lábios dele sobre os seus. O coração disparou, sem controle, e Mary Hellen viu-se em uma expectativa horrível.

Beauregard passou os dedos na face da esposa, com toda a sutileza, afagou-lhe uma orelha e brincou com a uma mecha de cabelos ondulados que ela acabara de escovar. Mary Hellen sentiu-se menos apavorada e mais aquecida.

Depois ele a beijou com grande suavidade. Mary Hellen estremeceu em virtude da ternura, do sabor da boca de Beauregard e do inesperado desejo que sentia.

Beauregard afastou-lhe os lábios com os seus e perscrutou-lhe o interior com a língua ansiosa. Mary Hellen não pôde reprimir uma resposta pronta e sensual. Descontraiu-se, e seus músculos adquiriram vida própria.

Se ao menos as demais sensações fossem tão gratificantes como aquele beijo, que atingia a alma... Se ao menos não tivessem de prosseguir!

Beauregard afastou-se um pouco, sem soltar-lhe os cachos.— Isto foi bom, Mary Hellen. Gostaria que eu diminuísse a luminosidade? Ou

prefere ficar no claro?— Não — respondeu sem hesitar. — Acho que será melhor no escuro.Beauregard inclinou-se para o lado e baixou o pavio da lamparina. O quarto

escureceu, e Mary Hellen agradeceu aos céus porque seria poupada de ver a expressão dele quando à verdade viesse à tona.

Sentiu quando o marido ergueu o acolchoado e deitou-se por baixo. Deduziu, pelos movimentos, que Beauregard tirava a calça.

— Deite-se, Mary Hellen. Venha, ajeite-se debaixo das cobertas comigo.Ela procurou enxergar e sentou-se para a frente, enquanto Beauregard tirava os

travesseiros excedentes e atirava-os ao chão.Relutante, Mary Hellen deitou-se devagar. Durante um precioso momento, nada

aconteceu. Ela estava deitada de costas, e o marido, perto dela, sobre um cotovelo, e apoiava o rosto na palma da mão.

— O que há de errado? —perguntou, preocupada com a possibilidade de o marido descobrir o que ela escondia.

— Nada. Apenas queria olhar para você. Beauregard moveu-se com elegância para cima dela. Mary Hellen ficou ofegante de puro medo, mas relaxou quando

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Beauregard permaneceu parado, apenas brincando com os cabelos dela espalhados no travesseiro.

Após alguns segundos e depois de a pulsação dela voltar ao normal, Beauregard tornou a beijá-la. Ah, o beijo! Como Mary Hellen gostou...

Ele traçou uma trilha de leves beijinhos pela face e queixo de Mary Hellen, e depois mordiscou-lhe a pele sensível do pescoço. Ela arrepiou-se inteira, por fora e também por dentro. O que queria dizer tudo aquilo? Por que o marido estava adiando o inevitável?

Beauregard desamarrou as fitas da camisola e abriu os botões minúsculos de cima. Tocou-lhe as clavículas com os lábios, enquanto ela fitava o teto, no escuro.

— Experimente relaxar — ele sussurrou, puxando-lhe a camisola para baixo dos ombros. — Você está muito tensa.

Beauregard fitou-a, e Mary Hellen teve medo que ele pudesse ler sua alma e descobrir tudo.

— Quer que eu pare? — indagou, gentil. — Se acha que ainda não está pronta...— Não! Quer dizer, quero ser sua mulher. Não só no nome, como no corpo.Beauregard baixou a cabeça e beijou-a outra vez, procurando-lhe, ávido, o

interior da boca com a língua.Emoções contraditórias borbulhavam no interior de Mary Hellen, e seu sangue

circulou com incrível rapidez por suas veias.Beauregard sentou-se nos calcanhares e tirou a roupa de Mary Hellen. Em

seguida, suspirou e deitou-se sobre ela com cuidado, para não sufocá-la com o excesso de peso.

— Mary Hellen, estou contente que tenha vindo. De verdade, embora eu não pudesse imaginar que me sentiria assim.

Por um breve instante, a realidade concentrou-se no corpo e nas palavras dele, e ela compartilhou daquele sentimento.

Beauregard mudou de posição, e Mary Hellen pôde sentir a extremidade sedosa de encontro ao lugar que lhe trouxera tanta dor da última vez. Por instinto, apertou as pernas.

— Está tudo bem? — ele quis saber, e beijou-lhe os lábios.Mary Hellen não teve o que responder. Seus temores haviam voltado, com a

iminência do que estava para acontecer.— Estou apenas nervosa, é só isso. Beauregard lhe beijou a ponta do nariz.— Tudo certo, não se preocupe. Apenas procure descontrair-se.Mas como poderia fazer isso?Por fim, Beauregard penetrou-a, bem devagar.Os movimentos cessaram.Ele estava dentro dela.Os segundos escoavam-se. Mary Hellen abriu os olhos, apavorada. Ele já sabia?

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Ficaria irado?Logo, Beauregard começou a mover-se de modo ritmado, e ela ficou mais

aliviada. Disse a si mesma que o pior já havia passado e que poderia acalmar-se.Em seguida, Mary Hellen sentiu um prazer desconhecido. Os músculos já não

estavam mais retesados, e apenas formigavam. A pele de ambos pareceu fundir-se em uma só, enquanto faziam amor no escuro. Não foi nada parecido com a primeira vez, de jeito nenhum. Aliás, nunca sentira o prazer que experimentava naquele momento.

A cabeça de Mary Hellen parecia rodar. Fechou os olhos e começou a tremer, pelas sensações que a acometiam. Surpresa e confusa, sentiu Beauregard tenso em seus braços. Ele gemeu. Um som que ela inferiu ser de deleite. Beauregard vibrou no interior de Mary Hellen, que concluiu que haviam completado o ato matrimonial.

Beauregard descansou por cima dela, então mais pesado. Permaneceram deitados, quietos. Os corpos pareciam colados com o calor e a transpiração.

De repente, Mary Hellen sentiu-se desajeitada. Ela o abraçava, e seus dedos sentiam a quentura das costas lisas de Beauregard.

Ele continuava dentro, e ela não sabia o que dizer ou o que fazer. Então, a situação canhestra chegou ao fim. Beauregard ergueu-se, deixando-a exposta ao ar frio do dormitório.

Beauregard permaneceu deitado no escuro, escutando a respiração irregular de Mary Hellen, muito quieta ali a seu lado. Levou o punho aos olhos. E ele que pensara...

Nem saberia dizer no que tinha pensado. Afinal, por que estava tão surpreso? Não sabia nada acerca da mulher que permanecia estendida em sua cama.

Por que esperara que Mary Hellen fosse uma donzela? Ela nem se referira a isso na carta. Beauregard deduzira o fato por ter dito que freqüentava a igreja com regularidade e que morara com os pais até a morte deles. Além do olhar dela, do nervosismo que demonstrara ao ver o marido entrar no quarto um pouco antes... Parecera tão inocente!

Como um homem poderia antecipar a verdade sobre uma garota?, perguntou-se.

Não podia, e ponto final. Beauregard nunca deveria ter pressuposto nada sobre Mary Hellen. Devia aceitar o fato de que não fora o primeiro. Ela tivera um amante. Ou, talvez, até mais de um.

Sendo assim, por que todo aquele tremor? Teria sido fingimento? Ela pretendera enganá-lo?

Oh, ele não queria pensar sobre isso!Sentou-se no leito e sentiu o chão frio sob os pés. Agarrou as beiradas do

acolchoado. De onde viera aquela moça? Quem a tocara antes dele? Por que não pudera apenas possuí-la, sem nenhuma outra expectativa?

Beauregard sentiu uma mão em seu ombro e ficou tenso.— O que foi? — Mary Hellen indagou, com um tremor na voz, agora bem

compreensível. — Por que não está dormindo?

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Beauregard fixou o vazio, à procura do que dizer, sem, entretanto, encontrar. Só tinha certeza de uma coisa: jamais deveria ter baixado suas defesas.

CAPÍTULO VII

Mary Hellen virou-se e afundou no centro do colchão macio. Esforçou-se para enxergar Beauregard de maneira mais clara, apesar da falta de iluminação reinante.

Ele estava sentado na beira do leito, de costas para ela, com os cabelos desalinhados. Mary Hellen debateu-se em uma confusão de perguntas sem resposta. Beauregard teria descoberto? Isso fora importante para seu marido?

Cobriu-se com o acolchoado, puxando-o até o pescoço.— Está tudo bem, Beauregard?— Tudo — ele afirmou, com a entonação mais gelada que encontrou.— Então, por que não se deita?— Não quero.Beauregard ergueu-se, e a perfeição daquele físico deixou-a atônita, mesmo em

meio a sua terrível ansiedade. Braços fortes, ombros largos e coxas firmes que permitiram entrever os músculos que se contraíram quando ele apanhou a calça e vestiu-a.

— Não consigo dormir — Beauregard completou. Mary Hellen apoiou-se sobre o cotovelo, sabendo que era mentira. Recordou

como ele ficara imóvel no meio do ato de amor. Beauregard descobrira o segredo dela, e não conseguira mais ficar deitado ao lado da esposa.

— Beauregard, eu...— Por que não dorme? Você teve um longo dia.A situação modificou-se por completo. Ele queria mostrar-lhe que sabia. As

palavras secas eram para dar-lhe a entender que nada deveria falar e nem explicar. Beauregard não se mostrava disposto a ouvir. Nem naquele momento e, decerto, nem nunca.

Vestiu a camisa pela cabeça.— Vou dar uma volta — informou.As lágrimas ameaçavam explodir, mas Mary Hellen piscou duro para afastá-las.

Chorar no travesseiro não lhe traria benefícios. Tinha de ser forte, se pretendia solucionar o problema.

Deitada de costas, imaginou o que se seguiria. Beauregard movia-se como uma sombra pelo quarto, e ela entendeu que o marido não só desejava como também precisava ficar só.

Com um pouco de sorte, em algumas horas a raiva dele poderia ceder.Quando conseguisse raciocinar direito, Beauregard se lembraria de que o

namoro deles não passara de uma curta missiva. Se ele queria uma virgem para

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esposa, deveria ter mencionado isso, nem que fosse de maneira sutil, mas apenas frisara que queria uma mulher com disposição para o trabalho; item, aliás, no qual ela se enquadrava com perfeição.

Mary Hellen quis, do fundo do coração, que Beauregard passasse a ver a situação a partir dessa perspectiva. Sentou-se e observou-o pôr o casaco. Notou, aliviada, que o marido deixara o colar de garras sobre a cômoda. Pelo menos, planejava voltar.

— Tem certeza de que não quer que eu vá junto? — Mary Hellen agarrava-se ao fio de esperança de que ele não estivesse irritado.

— Tenho. Vá dormir.Beauregard saiu do quarto sem olhar para trás e fechou a porta.

Na manhã seguinte, Mary Hellen acordou com o sol forte que entrava pela cortina branca de renda e deixava salpicos brilhantes no acolchoado cor-de-rosa florido.

A exaustão dos dias sem fim dentro de um trem deixaram seus ossos e músculos doloridos. Esticou os braços para cima e mexeu os dedos, tentando recordar como era gostoso ver-se livre de dúvidas e receios.

Nisso alarmou-se ao ver que o lado da cama que deveria ser de seu marido estava vazio.

Mary Hellen sentou-se de um salto. Teria a raiva dele sido tão grande a ponto de tê-la abandonado?

Fitou de imediato a cômoda. O colar desaparecera.Jogou os lençóis finos no chão, levantou-se e foi direto até sua valise. Abriu-a e

tirou o que estava por cima: o vestido púrpura que usara na véspera. Tinha de achar Beauregard e reparar os erros. Queria que o casamento desse certo. Precisava disso!

Naquele exato momento, ouviu uma chave girar na fechadura de metal.Bom Deus! E se Beauregard a houvesse abandonado e o gerente do hotel tivesse

vindo para jogá-la na rua? Ainda nem estava vestida!Não daria tempo de enfiar o vestido, por mais que se apressasse.Agarrou a roupa e prendeu-a com força de encontro a si. Conseguiu esconder

tudo, menos os ombros.Escutou uma batida, mas o intruso empurrou a porta sem esperar por um

convite para entrar.Mary Hellen exalou um longo suspiro ao ver o casaco marrom de franjas e os

cabelos longos e castanhos. Sem dúvida, era seu marido.— A carroça está pronta. — Beauregard entrou e fechou a porta.Só então olhou-a, e com frieza, dos pés à cabeça, sob a aba do chapéu de caubói

também marrom. Depois a encarou.— Vista-se depressa. Quero estar logo na estrada. Beauregard acabou de dar a ordem e saiu, deixando Mary Hellen estática no

mesmo lugar. O coração dela palpitava com força.Olhou para si mesma, apertando sedas e rendas sobre o corpo. Só desejou voltar

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no tempo e desfazer o que havia feito.

Beauregard, ao lado da carroça, estava com uma das mãos na cintura e, com a outra, ajeitava os cabelos espessos.

Aborrecido, observou e zangou-se com um bando de cães no meio da rua, que latiam e ganiam em disputa uns com os outros. Desejou que os animais ficassem quietos por um minuto apenas. Assim, poderia refletir na maneira de continuar casado com a estranha que tomara por esposa.

Mesmo depois de tudo, ainda desejava estar enganado sobre o que descobrira na véspera. Adoraria ouvir uma explicação sobre o porquê daquele fingimento. Se não gostasse do que iria escutar, pararia de preocupar-se com o assunto. Já fizera isso uma vez, e poderia fazer de novo. Parar de importar-se. Aliás, para Beauregard, aquele nunca fora um assunto relevante.

Depois de dez minutos irritantes, Mary Hellen saiu do hotel, fazendo sombra nos olhos com a mão enluvada de branco e espiando a rua à procura do marido.

Beauregard ficou parado e deixou que ela o encontrasse. Por fim, Mary Hellen o viu e pareceu ficar contente. Ele notou que usava o mesmo vestido púrpura de renda do dia anterior. As anquinhas eram exageradas e, sem dúvida, se amassariam quando fosse ordenhar Maddie.

Beauregard tomou uma decisão, aproximou-se e pegou a alça da bagagem dela.— Deixe que eu levo isto. — Colocou o volume dentro da carroça e ajudou-a a

acomodar-se.— Vim o mais rápido possível, pois imaginei que você estivesse impaciente. —

Mary Hellen arrumou as saias ao redor de si.Beauregard fitou os olhos grandes e falsamente ingênuos. Sentiu uma

inexplicável punhalada de remorso. Por que tudo não transcorrera sem incidentes nem surpresas?

Notou que o olhar castanho mantinha o mesmo brilho doce que o encantara pela primeira vez que o vira. Odiou pensar que Mary Hellen apresentava aquele aspecto adorável de propósito, para conseguir manipulá-lo de algum modo. Ah, mas isso também era suspeitar demais!

— Tenho de devolver a chave — ele avisou. — Espere aqui.Beauregard voltou para dentro do hotel e parou na recepção. Não havia ninguém

por ali. Esperou, impaciente, cutucando o balcão com a ponta da bota e girando a chave de metal entre os dedos.

Observou o objeto com indiferença. Foi quando que uma idéia tomou vulto. Talvez devesse dar uma olhada no quarto mais uma vez, apenas para ter certeza.

Tentou não ficar muito esperançoso, o que poderia levá-lo a aumentar o desapontamento. Subiu a escada, caminhou pelo hall e enfiou a chave na fechadura. Abriu a porta e hesitou, com a cabeça e o coração palpitantes. Como se fosse um último recurso, fitou a cama e o acolchoado rosa que o intimidava, esticado sob os travesseiros.

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Era uma tolice, mas tinha de fazê-lo. Caminhou até o leito, respirou fundo e levantou as cobertas. Deparou com um lençol branquíssimo, sem nenhuma mácula.

A tênue esperança que tentara acalentar desmoronou diante dele.Mas o que esperava, no entanto? Estar enganado e encontrar a prova disso em

alguma mancha recente no lençol?Na noite que se passara, Beauregard caminhara por Dodge inteira, imaginando

se seria possível que não houvesse entendido o verdadeiro sentido da virgindade. Afinal, nunca estivera com nenhuma donzela antes. Quem sabe se não seria tão fácil assim identificar se uma mulher havia ou não...

Beauregard sacudiu a cabeça e sentiu-se traído. Não se preocupava com o que Mary Hellen pudesse ter feito antes. O passado dela não era de sua conta.

Porém, não podia entender, de jeito nenhum, por que fingira ser uma noiva nervosa e virginal.

CAPÍTULO VIII

Beauregard parou a carroça em meio ao vento da pradaria, onde o relvado sussurrava um milhão de contínuos segredos. Os arreios tilintaram um pouco quando os cavalos pararam e afugentaram as moscas de seus traseiros.

Ele teria parado para inspecionar alguma roda ou quem sabe o casco dos animais?, Mary Hellen imaginou, com o estômago revolto. Aquele mal-estar seria provocado por sua necessidade de justificar-se perante o marido?

Beauregard tirou o chapéu, passou a mão nos cabelos e pôs a peça de couro de novo sobre a cabeça. Estreitou os olhos mirando o leste e recostou-se no banco.

— Precisamos conversar.Mary Hellen teve a impressão de que lhe apertavam a garganta.— Acho que devemos conhecer-nos um pouco mais — ele continuou, com uma

inflexão acusatória na voz.— O que é que você quer saber?Beauregard fitou o zênite muito azul sem nuvens e franziu o cenho.— Sei que não é muito conveniente falar sobre certos assuntos, mas não gosto

de ficar matutando sobre eles, ainda mais quando se trata de um mal-entendido. Sabe como é, não consigo afastar um pensamento com facilidade.

— A que está se referindo? Beauregard encarou-a com severidade.— Quero saber por que parecia tão nervosa ontem à noite. Deixou-me achar que

você nunca... — Hesitou. — Não que isso tenha importância. O passado é problema seu, não meu. Mas por que estava tão tensa como se nunca houvesse feito aquilo antes? Por que tentou me enganar?

A entonação tranqüila e trivial teve o dom de acalmá-la.

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— Eu não estava tentando enganá-lo, Beauregard.— Se é assim, por que aquele nervosismo todo, quando fui para a cama?— Eu estava com medo.— Do quê?— Você sabe.— Por quê? A franqueza teria sido melhor do que iludir-me.— Não menti, Beauregard. Apenas não contei. O que queria que eu dissesse?Beauregard ponderou um instante, refletindo sobre a indagação.— Nada. Não precisava dizer nada mesmo. Você veio para cá, casou-se comigo e

agora vamos para casa.Antes que ele mexesse as rédeas, Mary Hellen pôs a mão sobre a manga do

casaco macio. Beauregard baixou as tiras e fitou-a.— Sinto muito por tê-lo aborrecido, Beauregard.Nunca pretendi fazê-lo de bobo.— Não me aborreceu, Mary Hellen. Estou um pouco desapontado. Só isso.Mary Hellen soltou-o e apertou o lenço branco que estava sobre seu colo.Desapontado. Era bem pior...— Diga-me uma coisa. — Beauregard bateu as rédeas, sem força, e soltou-as. —

Houve muitos?Mary Hellen suspeitou que ele pretendera feri-la.— Não, apenas um.— Hum... — Ficou em silêncio por alguns segundos e depois fez a pergunta que

não queria calar: — Você o amava?As palavras surpreenderam-na. Mary Hellen desejava que a situação entre os

dois melhorasse e que não tocassem mais no assunto. Acima de tudo, gostaria que Beauregard a respeitasse. Engoliu em seco, nervosa.

— Bem? Amava ou não, Mary Hellen?Qual seria a resposta certa? Não lhe parecia correto dizer a seu marido que

amara outro homem, mas também negar...— Sim — Beauregard concluiu, num sussurro. — Amava.Era verdade. Em toda sua inocência, Mary Hellen amara Garrison. Embora,

naquele momento, ela não estivesse muito certa sobre o significado daquele verbo.Beauregard bateu as rédeas com energia, e a parelha cavalgou mais rápido sobre

a estrada cheia de buracos.— Há quanto tempo não o vê?Mary Hellen fixou-se nas crinas longas dos animais, que moviam a cabeça para

cima e para baixo.— Acho que deve fazer umas duas semanas.— Duas semanas! — Beauregard freou os animais com violência, amarrou as

rédeas na trava e pulou do veículo.Parou a uns vinte passos, de costas para Mary Hellen, as mãos caídas ao longo do

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corpo."Oh, não! Ele vai me mandar embora", Mary Hellen concluiu, apavorada. "Vai

deixar-me no meio das ruas de Dodge City com minha mala e minhas recordações amargas..." Cerrou os olhos e tentou ser otimista.

Não haveria de ser de todo mau, decidiu, tentando consolar-se. Poderia trabalhar em um restaurante, afinal tinha experiência. E começaria uma nova vida. Sozinha. O sonho de casar-se e viver uma existência tranqüila em uma fazenda não passara de... um sonho.

Ergueu as pálpebras e viu Beauregard sentado no solo, apoiado em um dos braços esticado para trás.

Mary Hellen observou-o brincar com uma folha de grama. No mínimo, como ele dissera, estava desapontado. Era um sentimento justificado. Mas vê-lo daquela maneira, sentado sozinho no meio da imensidão da planície...

Ela desceu da carroça e alcançou o chão com um pulo. Tirou o alfinete do chapéu e o próprio, deixando-os no estrado do veículo.

O vento singrava através da relva ondulante, sibilando como uma cobra e soprando-lhe fios perdidos das mechas na face.

Mary Hellen entendeu que deveria dar a oportunidade de uma escolha para Beauregard. Se ele quisesse, poderia terminar com o casamento. Ela sabia a razão por que respondera tão rápido a um anúncio daqueles: precisava afastar-se de Garrison e começar uma nova vida.

Naquele momento, talvez Beauregard estivesse arrependido de haver sido tão apressado. Deveria dizer-lhe que a levasse de volta a Dodge e que concordaria com um divórcio? Seria tão ruim assim? Afinal, já estivera em situações piores.

Mary Hellen chegou perto dele e sentou-se. Esperou um pouco, observando o horizonte, na linha distante onde o céu se encontrava com a terra. Convicta, pigarreou, antes de falar:

— Perdoe-me por não haver contado antesMary Hellen sentiu o coração partir-se em dois. Estava a ponto de terminar a

união que mal começara, e só queria chorar.— Eu estava sozinha há quatro anos e...Beauregard largou a folha.— Você quer dizer quatro meses.— Como assim?— Quatro meses. Desde que seus pais morreram.— Não, quatro anos. — Mary Hellen franziu o cenho.— Você escreveu na carta que eram quatro meses. — Fuzilou-a com o olhar.— Não pode ser. Talvez minha letra não fosse muito...— Sua caligrafia é ótima.— Tem certeza de que...— Sem a menor dúvida.

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Pelo tom incisivo de Beauregard, Mary Hellen percebeu que ele não mentia. Ao lembrar-se da pressa com que escrevera e mandara a missiva, imaginou se não cometera mesmo um erro. Um erro horrível. Lamentável. Como pudera ser tão descuidada?

Ou podia ser que não se tratasse de engano nenhum, pensou, infeliz. Talvez sabendo que não seria correto casar-se com Beauregard, tivesse tentado solapar, de forma inconsciente; suas atitudes desesperadas. É... vai ver que era isso mesmo.

— Você morou em Boston sozinha por quatro anos, Mary Hellen?Ela anuiu, sem saber mais o que fazer.Beauregard arrancou mais uma folha fina e segurou-a entre os lábios pela ponta.

O silêncio dele era mais enervante que qualquer reprimenda.Mary Hellen não podia fazer nada mais além de ficar sentada no emaranhado

que cobria a terra e sofrer, sabendo o que o marido devia pensar a seu respeito: que mentira de propósito acerca de tudo!

— O que mais me contou? — ele indagou, com ironia.— Ah, sim! Que freqüentava a igreja. Suponho que irá dizer-me que a igreja da

vizinhança pegou fogo e que você não esteve presente aos trabalhos dominicais, digamos... por uns quatro anos?

— Não — Mary Hellen replicou, com firmeza. — Eu vou à igreja. Não mentiria sobre isso.

Beauregard continuou fitando as colinas distantes.— Mas o restante não passou de um amontoado de mentiras.Mary Hellen desviou o olhar, frustrada. Fora uma futilidade argumentar, como

também seria inútil querer que Beauregard acreditasse no que afirmava naquele momento. Ele estava muito irritado. Se lhe dissesse por que tivera de fugir de Garrison, Beauregard levá-la-ia até as autoridades, e ela poderia ser acusada pelo crime de Garrison.

Por outro lado, Mary Hellen bem sabia o que Garrison seria capaz de fazer se soubesse que ela confessara o delito para alguém. Garrison deixara esse ponto bem claro. Mary Hellen não poderia deixar Beauregard, e nem ela mesma, correr esse risco.

Beauregard ergueu o joelho e apoiou nele o punho.— Você ainda ama esse homem? A questão deixou-a muito aflita."Sim, eu o amei até duas semanas atrás, mas hoje não o amo mais."Mary Hellen tinha certeza de que Beauregard jamais acreditaria nisso. Ninguém

no mundo conseguiria. Contudo, depois do que acontecera, poderia jurar com a mão sobre a Bíblia.

Fechou os olhos, por causa do vento.— Não o amo. Espero nunca mais encontrá-lo.— O que espera para as duas próximas semanas? Ficar sozinha outra vez?

Pretende deixar-me e pular no leito de outro homem, e assim conseguir arrancar do coração de quem você realmente ama?

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Aquilo a atingiu em cheio. Sabia que merecia tal desprezo, mas isso não tornava mais fácil suportá-lo. Levantou-se e surpreendeu-se com a confiança que sentiu, apesar de tudo.

— Entenderei se estiver arrependido de haver me trazido para cá, Beauregard. Podemos voltar para a cidade e conseguir o divórcio. Não me oporei. Só lhe peço que me arrume um lugar para ficar, até eu decidir para onde ir.

Virou-se, com raiva de haver se metido em tamanha confusão e por envolver Beauregard em uma situação bastante delicada.

Tudo começara quando conhecera Garrison. Desejou ter dado ouvidos a seus instintos, na ocasião. Desde o começo, alguma coisa nele não a agradara, mas seu comportamento havia sido impecável. Irrepreensível demais.

Garrison dissera as coisas certas e tinha a aparência de um cavalheiro. Bonito e rico, cortejara-a com probidade e, por isso, arruinara-lhe a vida. Àquela altura, Beauregard supunha as piores coisas sobre ela e merecia livrar-se do embuste.

Mary Hellen voltou à carroça, certa de que Beauregard estava em pleno direito de julgá-la daquela maneira. E que importância tinha isso? O casamento terminara mesmo...

CAPÍTULO IX

Mary Hellen caminhou de volta para a carroça, segurando a barra da saia com as mãos trêmulas. As anáguas vinham roçando as gramíneas altas e hirsutas. Era como se o vento impelisse para longe de Beauregard, ao encontro de uma terra estranha. O céu a seu redor não lhe parecia nada mais de que um enorme círculo sufocante.

Alcançou o veículo e subiu com facilidade surpreendente. Mordeu o lábio e tentou não pensar sobre a vida que na véspera lhe parecera viável. Ela aceitaria seu destino com confiança e pensamentos positivos. Estava segura, longe de Boston. Talvez conseguisse viver com dignidade na cidade mais próxima.

Com o canto dos olhos, percebeu Beauregard aproximar-se, mas fingiu que não o via. Sentada muito ereta, Mary Hellen não se voltou. Ele subiu até o assento sacudindo a carroça, que rangeu e balançou.

"Beauregard vai levar-me de volta e tudo terá fim", ela refletiu, pesarosa.Mary Hellen agarrou-se na ripa lateral, preparada para a saída brusca, mas nada

aconteceu. Beauregard olhava para a frente, imerso em suas conjecturas, as rédeas entre as mãos largas e bronzeadas.

Mary Hellen esperou que ele estalasse a língua e virasse sua velha caixa de madeira de volta à cidade. Mas o marido nada disse e nem fez.

Havia pouco, ela mostrara-se forte e cheia de valentia. Para onde teriam ido esses sentimentos? Naquele exato instante, sentia-se incerta e um pouco intimidada. Nada mais poderia fazer, além de esperar pela decisão dele.

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Por fim, Beauregard chacoalhou as correias, e os cavalos se atiraram para adiante com estardalhaço. Eles mexiam as orelhas para a frente e para trás, enquanto Mary Hellen segurava-se no banco, à espera de que mudassem de direção e retornassem para o caminho pelo qual vieram. Entretanto, não alteraram o percurso. Seguiam pela estrada estreita, tinindo de leve os arreios.

— Nós fizemos um contrato, Mary Hellen. O que aconteceu em Boston é de sua conta, e prefiro não tomar conhecimento disso. Você me assegurou que sabe trabalhar e gosta de fazê-lo. Espero que pelo menos isto seja verídico. O resto não me diz respeito. Como eu já disse, temos um contrato, e pretendo levá-lo até o fim.

Surpresa e esperançosa, Mary Hellen relanceou um olhar para Beauregard. Desapontou-se ao não encontrar o mínimo traço de ternura naquele semblante. A palavra "contrato" tinha um encanto bem menor do que o sonho dela em casar-se. Mas já representava alguma coisa, mesmo que em proporções diminutas.

Era final de tarde, quando eles chegaram a uma propriedade rural. Mary Hellen viu um celeiro feito de torrões de relva e coberto de forragem seca, um galinheiro cheio de aves barulhentas, uma horta, uma grande extensão de terras com plantação exuberante de milho para o oeste. A leste, o mesmo tanto coberto com trigo viçoso. Mas não havia nenhuma casa.

Quem sabe, na próxima colina, imaginou, indagando-se por que alguém iria construir uma residência tão longe dos animais.

Aproximaram-se, e de dentro do depósito vieram sons abafados de mugidos, que se sobrepunham ao bramido do vento.

Mary Hellen inalou o cheiro de estrume fresco, e, para seu espanto, achou-o agradável. Entendeu que devia ser porque só estava acostumada a sentir os odores de esgoto e lixo decomposto da cidade grande.

Sentou-se na beira do banco, machucada e meio entrevada pelo longo trajeto em cima de uma ripa de madeira. Queria muito saber se aquele era seu novo lar, mas não ousou questionar, ao ver a carranca de Beauregard.

— Droga! — ele murmurou.Beauregard pulou do veículo. Um galo cacarejou e saiu do caminho batendo as

asas.— O que vocês estão fazendo aqui?! — perguntou a um porco.O suíno mordia a bainha de uma calça de trabalho pendurada em um varal

estendido no terreiro.— Como foi que isso aconteceu?!Mary Hellen esperou, sentada, enquanto Beauregard caminhava a passos largos

em direção à porta da construção de barro.— Droga de cachorro! — Beauregard abriu a tranca com um dedo. — Shadow!

Venha cá!Mary Hellen ficou preocupada ao imaginar o que ele faria ao pobre cão que havia

deixado o porco sair do cercado. Nisso, uma massa de pêlos passou como um furacão

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pela carroça e desembestou pelo pátio, em direção a Beauregard.Ele se ajoelhou para receber os cumprimentos de um golden retriever, que se

lançou sobre ele e quase o derrubou. O cão gemia e lambia o rosto e as mãos de Beauregard. Mary Hellen não pôde deixar de sorrir.

Então aquelas eram as terras de Beauregard.Mas onde estaria a casa?Mary Hellen desceu da "carruagem" e pisou em um monte de esterco fresco e

mole, que sujou a barra de sua anágua.— Ah... — Gemeu, erguendo a saia e examinando a sola da bota.— Por aqui, você terá de olhar por onde pisa — Beauregard comentou.Ele desapareceu no interior do galpão e voltou alguns minutos depois, com uma

cabra branca a reboque.— Pode esticar suas pernas, Gertrude, mas fique longe de minhas calças no varal.

— Largou-a no terreno.Mary Hellen esfregava a bota na terra seca, observando Beauregard voltar para

dentro. Escutou-o desculpar-se com alguém.— Perdoe-me, Maddie. Não achei que iria ficar fora a noite toda.Beauregard demorou-se lá dentro, e Mary Hellen imaginou o que ela deveria

fazer. Pegar a valise e sair à procura da residência? Esperar até que o marido lhe indicasse o caminho? Seria melhor. Não queria invadir o lar dele sem permissão.

Mas, afinal, era sua mulher. Assim, a casa também lhe pertencia.Inquieta, Mary Hellen perambulou pelo pátio e ouviu um som persistente de um

esguicho que vinha de dentro do recinto coberto de feno. Teve de passar por uma cerca para chegar à porta. Espiou o interior da construção de barro e viu Beauregard sentado em um banco pequeno, ordenhando uma vaca. Ele havia tirado o casaco, que estava jogado a um canto. A camisa branca e solta acompanhava os movimentos dos ombros largos.

Inclinado para a frente, Beauregard espremia e puxava as infelizes tetas. O leite espirrava em jatos finos e fortes.

Mary Hellen continuou olhando, encantada com os músculos das costas de Beauregard. Ora tensos, ora relaxados, eles trabalhavam em harmonia perfeita com o som forte do leite que enchia o balde de madeira. Surpresa, deu-se conta de que nunca vira ninguém ordenhar uma vaca.

De repente, um clarão castanho irrompeu no galpão e colidiu com ela. Cansada e menos alerta do que deveria estar, caiu sentada na lama. Sem reagir, sentiu as faces ardentes queimadas de sol serem lambidas com um entusiasmo incontido. O cachorro prosseguiu a "limpeza" em direção ao nariz dela.

— Não! — Mary Hellen gritou e tentou cobrir o rosto com as mãos ainda enfiadas nas luvas brancas.

— Shadow! — Beauregard chamou com energia, de dentro do estábulo. — Saia daí!

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O grande cão obedeceu, com as orelhas para trás e a cauda entre as pernas, enquanto o porco via o espetáculo com interesse.

— Desculpe-me, Mary Hellen. — Beauregard se aproximou e segurou o cotovelo de Mary Hellen com sua mão forte. — Veja o que ele fez.

Beauregard a ergueu depressa, mas ela perdeu o equilíbrio e caiu sobre um joelho, antes que o marido a levantasse de novo.

Mary Hellen lutou para conter a raiva. Tentou, em vão, retomar o fôlego. Todos os problemas pareciam ter vindo à tona de uma vez. Apanhou a saia com os dedos enlameados e trêmulos.

— O vestido que uso aos domingos... Todo coberto de lama! — Aquela era a menor de suas preocupações, mas a, única sobre a qual podia falar.

— É só um pouco de terra...— Um pouco de terra — ela repetiu, com ironia, sem querer aceitar o que mais

poderia estar misturado ao barro.— Bem, você terá de ir até o regato.— Regato? Não tem uma banheira?— Banheira?Será que Beauregard já ouvira essa palavra alguma vez?—Aqui, não. — Ele afastou-se e apontou. — O riacho é logo ali. O sabão está em

cima da rocha grande.Mary Hellen fitou o dedo estendido, desalentada, e desejou que o córrego

estivesse localizado depois da colina. Saiu do cercado, tentando não se desesperar por ter de lavar-se ao ar livre, junto com animais e insetos. Pelo menos Shadow seguira Beauregard para dentro, e não se constituía mais em uma ameaça.

Andou uns poucos metros pelo terreiro e, sem poupar resmungos e gemidos, arrancou a valise da carroça. Carregou-a até a direção que imaginava ser o caminho certo para a água.

Ao aproximar-se da pequena elevação, viu o riacho a distância. No mínimo, a uns oitocentos metros à frente. Não conseguiria carregar a bagagem até lá.

Murmurando uma imprecação, colocou a mala no chão, abriu-a e tirou de dentro uma saia e um corpete limpos. Fechou-a e deixou-a sobre o relvado. Com andar cansado e vacilante, fez o restante do trajeto.

Mary Hellen desceu a ribanceira, tropeçando até chegar na água e encontrou sabão dentro de uma gamela pequena e gasta.

Como é que faria aquilo?, se perguntou e virou-se para ter certeza de que ninguém a veria.

Claro que não. Não havia vivalma a quilômetros.Desamarrou as botas e descalçou-as. Tirou o vestido e a roupa de baixo. Sentiu

que se encontrava em um nível muito além da nudez. Estava ao ar livre e entraria em um riacho com sabe-se lá quantas criaturas nadando dentro dele.

Esforçou-se para afastar aqueles pensamentos de sua mente e pôs os pés na

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água. Abaixou-se e estremeceu com o choque do rio gelado na pele. Arrepiou-se inteira e resolveu despejar água na cabeça com o pequeno balde, de uma só vez.

O corpo logo acostumou-se com a temperatura fria, e Mary Hellen nadou em círculos, sentindo-se revigorada, mas sem pensar em como fazer para conseguir morar ali. Decerto Beauregard não esperava que ela fosse quebrar o gelo no inverno, para tomar banho. Deveria haver algum plano alternativo.

Mary Hellen batia as pernas para manter-se à tona e olhava em todas as direções. Nunca poderia imaginar que seria daquela forma. Não era possível que não houvesse fazendas vizinhas. Pensara em uma comunidade pequena com casas de campo charmosas e pintadas de amarelo, uma igreja e uma escola bem perto. Crianças rindo e brincando em grupos.

Sonhara com reuniões sociais de senhoras para fazer colchas para fins beneficentes, concursos e criação de abelhas com mel de floradas diferentes. Não tinha nada daquilo por ali, nem nas proximidades.

Apesar de tudo, e ela teve certeza de que muitos se surpreenderiam por isso, sentiu-se feliz e abençoada. Talvez não houvesse nenhuma obra assistencial, mas existia a esperança de um recomeço.

Encorajada, saiu do riacho, pegou o sabão e fez uma espuma fria entre as palmas. Lavou a cabeça, o rosto e o corpo. Mergulhou e nadou sob a superfície para enxaguar-se. Quando emergiu, deu uma olhada e gemeu. Sua roupa estava coberta de esterco.

Beauregard deu a volta por trás do lugar onde Maddie passava as noites e entrou em sua casa, carregando o balde com leite. Quando passou pela porta e desceu os cinco degraus, pela primeira vez teve noção das condições precárias em que vivera durante os últimos doze meses.

Uma mosca zuniu em sua orelha, ele afastou-a com a mão livre e pôs o recipiente em cima da mesa.

O que Mary Hellen diria ao entrar ali com suas luvas brancas e seu chapéu púrpura e extravagante? Beauregard espiou a cama estreita, arrepiou-se e voltou para a porta.

Ela teria de aceitar, e pronto! Mary Hellen não tinha muita escolha. Beauregard avisara que estava à procura de uma esposa para trabalhar em uma fazenda. Não pretendera uma jovem da cidade, frívola e vaidosa, que não conhecia um arreio, um arado ou um gafanhoto.

Se Mary Hellen não gostava daquele tipo de vida, a culpa era dela, por haver respondido ao anúncio com tanta presteza. Com Isabelle fora a mesma coisa. Ela se encontrara aflita para casar, não importando com quem, sem pensar nem um segundo no que iria enfrentar. Quando acabou por compreender o que a esperava, encantou-se com o primeiro indivíduo muito falante e bem-vestido que lhe prometera uma vida boa.

E Beauregard nem sonhara em impedi-la de ir embora.34

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Dessa vez não, decidiu, subindo os degraus.Lembrou-se de Mary Hellen na pradaria, no meio daquela imensidão, sugerindo

um divórcio. Um divórcio! Do mesmo modo como acontecera com Isabelle, ela queria fugir ao primeiro sinal de desentendimento. Bem, àquela altura dos acontecimentos, não iria embora com tanta facilidade.

Beauregard parou do lado de fora.Como Mary Hellen encararia os desafios que a esperavam? Esfregou a nuca

tensa pela longa viagem. Será que sua mulher pensaria na casa dele como um grande buraco escuro e úmido na terra? Como ele reagiria se Mary Hellen quisesse ir embora e exigisse que a levasse de volta a Dodge para divorciar-se?

Era só o que lhe faltava! Um outro escândalo daria origens a mais falatórios inconseqüentes, que se espalhariam com a rapidez do vento. A cidade inteira pensaria que ele era um amaldiçoado.

Aliás, era no que Beauregard começava a acreditar.Tratou de esquecer essas bobagens e achou que era hora de mostrar a

residência para a esposa. Quanto mais tempo passasse matutando, mais horas preciosas do dia ele perderia do preparo da colheita.

Com passadas largas, dirigiu-se até o regato e desceu o barranco. Ficou pasmo com o que viu. Mary Hellen estava de costas, abotoando uma saia floral azul-pálido. Os cabelos molhados e brilhantes caíam nas costas como uma cascata de cachos escuros, cujas pontas marejavam pingos na cintura estreita.

A admiração que sentiu pela mulher que trouxera para aquele local remoto e selvagem deixou-o atordoado. Ela não combinava com nada daquilo. Mary Hellen se destacava como uma rosa em um campo de neve.

Nisso, Mary Hellen virou-se, levantou a cabeça e estreitou os olhos. Cruzou rápido os braços ao redor de si.

— Beauregard, você tem o hábito inconveniente de surpreender-me quando não estou totalmente vestida.

Beauregard apoiou-se num pé, depois no outro.— Vim apenas lembrá-la de que há muito trabalho a ser feito. E, para mim, você

está muito mais do que vestida.Mary Hellen baixou os braços.— Que tipos de trabalho?— Tarefas cotidianas de uma fazenda. Não espera que irá banhar-se, enfeitar-se

e escovar os cabelos durante horas, enquanto fico aqui fazendo todo o serviço, não é?— E por que acha que eu faria isso?Beauregard hesitou, consciente de que não fora razoável. Tarde demais para

voltar atrás. Parecia que ele viera até ali para balbuciar uma porção de represálias.Mary Hellen empinou o queixo.— Eu li seu anúncio. Sei que o serviço pesado me espera, embora por algum

motivo você pense que não.

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Beauregard sentiu-se um pouco culpado por ter sido rude com ela. Aproximou-se de Mary Hellen e sentiu o cheiro do sabão de lixívia.

— Depois que você terminar de lavar o vestido, eu lhe mostrarei onde vamos morar.

— Obrigada.Beauregard cerrou os maxilares ao refletir, de novo, sobre o que Mary Hellen

pensaria ao ver a nova moradia. Em seguida, admoestou-se por estar preocupado, como se tivesse vergonha de sua própria casa.

Beauregard parou, antes de subir a pequena rampa, e apontou os trajes.— Eles são mais práticos fora daqui.Mary Hellen fitou a saia e o corpete simples de chita.— Se eu fosse você, Mary Hellen, guardaria mesmo aquela coisa púrpura para os

domingos.Ela jogou a cabeleira para um lado e torceu-a como se fosse uma toalha.— Muito bem, Beauregard. Agora, se me der licença, tenho de lavar roupa.Beauregard sentiu-se dispensado e resistiu à vontade de dar a última palavra. Ao

ver Mary Hellen apanhar o vestido e esfregá-lo com força suficiente para fazer nele um buraco, convenceu-se de que sua mulher não gostaria de ouvir nada do que ele teria a dizer.

CAPÍTULO X

Mary Hellen dobrou o vestido molhado, que pesava muito, sobre um braço e agarrou a barra da saia com a mão livre. Subiu a ribanceira quase correndo. Enfim, iria ver sua nova casa, o lugar que poderia limpar e arrumar a seu gosto.

Se o marido permitisse, é claro. Assim que ela pusesse mãos à obra, Beauregard Brigman não teria mais motivos de queixas.

Mary Hellen teve até pena dele. Lamuriar-se parecia ser a atividade favorita de Beauregard.

A volta, contudo, foi um pouco mais demorada. Mary Hellen não se lembrava de onde havia deixado a valise. Nem pensara em marcar o lugar. Deu várias voltas, até alcançar um local onde o capim amassado deu-lhe a impressão de ser onde colocara a mala.

Confusa, olhou ao redor, em direção ao estábulo. Talvez Beauregard a houvesse levado para casa. Pelo menos, era o que Mary Hellen esperava que tivesse acontecido. Senão, teria de voltar por ali mais tarde, o que daria mais um motivo para ele criticá-la.

Cruzou o terreno em direção ao galpão coberto, que pelo jeito servia de celeiro e estábulo. Beauregard estava em pé, com um ombro encostado no marco da soleira e os braços cruzados.

Mary Hellen sentiu-se nervosa. Relanceou um olhar para os pés dele. A valise

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estava no chão, a seu lado. Ainda bem. Assim mesmo, tomou a resolução de não se deixar intimidar por aquele homem. Estava pronta para assumir seu papel de esposa de fazendeiro, com todos os desafios e trabalhos pesados a que tivesse direito. Beauregard não iria abater-lhe o ânimo.

— Já não era sem tempo — Beauregard criticou-a, apanhou a mala e saiu da entrada sombria. — Achei que estava esperando suas roupas secarem.

— Por certo que não. — Mary Hellen sorriu com frieza. — E não se esqueça de que o responsável por esse transtorno foi aquele seu cachorro estabanado.

Beauregard ignorou-a e passou por ela.— A residência é por aqui.Por ali? Mary Hellen estudou todos os lados. Não viu nada além dos campos

forrados de gramíneas amarelas. Sem dar muita atenção a seu ceticismo, contudo, seguiu o marido.

— É aqui. — Beauregard subiu em um cômoro e desapareceu do outro lado.Quando Mary Hellen alcançou o topo, entendeu, horrorizada, que estava sobre

uma cobertura.Não era uma casa. Era um monte de barro.Estacou, estarrecida, sem fala, olhando para o marido, mais abaixo.— É o chamado abrigo subterrâneo porque... — Beauregard começou a explicar.— ...foi cavado na encosta de uma colina — Mary Hellen concluiu. Engoliu como

pôde seu espanto, andou com cautela sobre o telhado e desceu pelo lado. — Muitas pessoas moram em abrigos?

— A princípio, sim. Até ganharem dinheiro suficiente para comprar a madeira necessária para a construção de uma moradia definitiva. Como você mesma pode ver, aqui não há nenhum outro material de construção que não seja a terra.

— É verdade. Dá para notar, sem muito esforço.— A porta é aqui. — Ele pegou-a pelo cotovelo, pronto para conduzi-la até o

"lar".Mary Hellen observou com mais atenção as paredes externas. Admirou-se pela

construção e pela engenhosidade de um homem determinado a edificar uma casa em uma região onde não havia madeira.

Chegaram até a entrada e tiveram de descer cinco degraus entalhados no barro seco. O interior, a cerca de um metro e vinte centímetros do nível do chão, mostrou-se escuro até a visão acomodar-se.

Mary Hellen sentiu frio, ao inalar o cheiro úmido de terra e gramíneas. Esforçou-se ao máximo para não perder a calma, nem a compostura, e conseguiu sorrir para o marido. Beauregard deu alguns passos pelo ambiente de um só cômodo, deixou a bagagem dela ao lado da mesa e abriu os braços.

— É isso aí — afirmou com um orgulho que Mary Hellen suspeitou que não fosse tão sincero.

Com toda a certeza, seu marido esperava a desaprovação dela!

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— É bastante... sólida. — Mary Hellen bateu três vezes com o pé no solo, disposta a não dar o braço a torcer.

— Quando comecei a escavação, a terra parecia uma massa de betume. Contudo, veja como secou bem. Não acha?

— Ah, sim! Bastante. Muito bom.Permaneceram em silêncio por uns instantes, enquanto Mary Hellen espiava a

mobília. Um barrilete e uma caixa de sabão estavam encostados em uma das paredes. Duas cadeiras, uma diferente da outra, acompanhavam uma prancha velha que servia de mesa. Em um dos cantos, uma cama rústica que tinha como pés troncos de árvores descascados.

Mary Hellen caminhou até a mesa e deixou seu vestido perto do balde de leite. Notou, aliviada, que havia um fogão de ferro e uma chaminé de metal no teto. Examinou a parede de trás, escavada na lateral do cômoro. As da frente e as do lado eram feitas com torrões montados como se fossem tijolos, sendo que os blocos ficavam com o lado da grama para baixo.

Beauregard se pôs em frente a Mary Hellen, como se esperasse pela reação dela, talvez na expectativa de uma torrente de lágrimas.

— A ventania constante pode sacudir a porta ou a janela, mas não estas paredes — ele afirmou. — Elas têm uns noventa centímetros de espessura.

— Nossa! Noventa centímetros! — Mary Hellen repetiu e fitou o teto, imaginando se haveria perigo de ele ruir. — Do que é feito o forro?

— Com estacas de salgueiro entrelaçadas. Depois há mato, grama longa, uma camada de argila do barranco do riacho e um acabamento final com torrões de relva. E forte o suficiente para andar-se em cima.

— Que ótimo... — Mary Hellen chegava ao limite de sua calma aparente.Mas não o deixaria saber disso. Jamais! Voltou-se e olhou o leito.— E esta...— É a cama. Sei que é pequena. Eu tinha planejado montar outra antes de você

chegar, mas houve problemas com a fenação, que atrasou, e não tive chance de fazer isso.

Mary Hellen tornou a engolir seu desalento e sua preocupação.Quando o marido encontraria tempo, e o que eles iriam fazer enquanto isso não

se concretizasse?— Não se preocupe. Quase não há percevejos.— Como!? — Mary Hellen sentiu a pele coçar. Beauregard caminhou até a saída.— Agora que você está acomodada, vou trabalhar. Encontrará comida naquela

caixa ali e na horta. Voltarei ao entardecer.Ele subiu os degraus de terra batida sem olhar para trás e sumiu na claridade do

dia.Mary Hellen continuou em pé, derrotada, imaginando se Beauregard tinha

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consciência de que a moradia dele era um verdadeiro calabouço escuro.Ao sentir coçar o pescoço, deu um tapa e fitou a palma à procura de alguma

criatura estranha. Mas, como nada encontrou, assegurou a si mesma que devia tratar-se de imaginação. Com certeza era um fio perdido de cabelo. Relanceou um olhar ao redor, sem saber por onde começar. Beauregard não lhe dissera o que fazer, embora houvesse afirmado que as tarefas eram inúmeras. Para o momento, o óbvio seria desfazer a mala e preparar o jantar, antes que ele retornasse do campo. Isso não seria muito difícil de executar.

Carregou a valise até o leito. Porém, não viu nada parecido com uma cômoda. Não teria outra solução a não ser deixar tudo empacotado como estava.

Chegou perto do armário de cozinha, uma caixa aberta, ao lado do fogão, e ajoelhou-se para examinar o conteúdo. Encontrou um saco de fubá, uma pequena jarra de melado, um pote com gordura, outro com café, um com farinha de trigo e um pacote de carne de porco salgada. Havia um saco com batatas perto da caixa e ao lado, um barrica com sal pelo meio.

Como é que Beauregard sobrevivera até ela chegar? Não era para se admirar que tivesse procurado uma esposa por meio de um anúncio de jornal.

Daquele momento em diante, haveria comida de verdade por ali, ela propôs-se, mais animada. À noite, o marido provaria os melhores biscoitos que já comera em sua vida. Com a carne de porco, Mary Hellen faria um prato de dar água na boca. E seu marido teimoso e mal-humorado não deixaria de admirar as guloseimas.

A primeira coisa a fazer era acender o fogo e começar a trabalhar nos biscoitos. Abriu a portinhola do fogão. Cheio de cinzas. Suspirou e indagou-se qual teria sido a última vez que Beauregard o limpara.

Procurou uma pá. Não achou. Teve de tirar tudo com uma concha, e encheu um vasilhame. Quando esvaziou a fornalha, limpou a palma das mãos uma na outra, com orgulho. Pesquisou o ambiente à procura de gravetos.

Um inventário cuidadoso da chamada "cozinha" deu-lhe a certeza de que nada havia ali capaz de pegar fogo. Saiu e procurou em volta e no estábulo. Nada. Como é que Beauregard fazia? Gramíneas, talvez? Parecia que o marido as usara para outra coisa, mas como é que alguém podia acender o fogo só com elas?

Aquela altura, Mary Hellen já não se achava tão esperta. A tarefa simples de fazer um jantar se transformava em uma atribuição desalentadora.

A frustração tomou conta dela. Beauregard, na certa, estaria agachado, cuidando de suas terras, mas à espreita, convencido de que sua mulher falharia. Mesmo que isso significasse voltar com a fome de um leão e encontrar a esposa em lágrimas, debruçada sobre uma mesa vazia.

O que fazer? Não poderia enfrentá-lo com um pedaço frio de carne salgada, quando Beauregard retornasse. Mas ela também não estava com disposição de perder tempo em cima da arte de queimar grama.

Que Deus a livrasse de o marido voltar e descobrir que fizera alguma coisa

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errada. Beauregard jamais pararia de falar naquilo.Mary Hellen subiu no telhado, fez sombra nos olhos com a mão e procurou pelo

marido. Estranhou seu entusiasmo ao constatar que ele estava longe.Pelo menos, Beauregard não a estava espionando, concluiu, com um pinguinho

de bom humor inadequado.

Beauregard espetava o feno com um forcado e atirava os tufos na carroça. A relva alta deixava-o visível só da cintura para cima. Sem camisa, o corpo e os cabelos dourados pelo sol mesclavam-se à pradaria.

Mary Hellen recordou-se de como achara aquelas terras promissoras, quando as vira pela janela do trem, na véspera.

Pareceu-lhe que isso decorrera fazia um século.Deixou-se cair de cima da cobertura herbosa.Por que Beauregard a deixara sem ao menos explicar como tudo deveria ser

feito?, refletia, entre brava e desanimada.Mary Hellen já podia sentir de novo seu conhecido nó na garganta, mas não

choraria. Daria um jeito de sobreviver àquele dia em um lugar tão longínquo. E por quantos dias se fizessem necessários. Só precisava aventurar-se a andar um pouco e fazer algumas perguntas.

Mas seu bendito orgulho tornava tudo mais difícil.

CAPÍTULO XI

Mary Hellen caminhava na trilha deixada pela carroça, carregando um balde com água fria e uma caneca. Vinha pensando em como elaboraria as questões. Teria de enunciá-las de maneira tranqüila e confiante. Desconfiou que, para sentir-se realmente daquele jeito, seria preciso aprender "as cento e uma novas maneiras de ser uma boa esposa". E rápido.

O recipiente tornava-se mais pesado à medida que enfrentava, passo a passo, o vento quente do verão. Até chegar ao limite, quando lhe pareceu que o braço seria arrancado do corpo.

A água balançava-se de um lado para o outro e molhava a grama. Melhor, assim a carga ficaria mais leve. Tinha de ignorar a própria sede e esquecer a vontade de beber um gole, antes de alcançar o marido rabugento. Bufando e com uma confiança forçada, Mary Hellen palmilhou a distância, que lhe parecia infinita.

Por fim, Beauregard ergueu a cabeça. Um tremor inconveniente de alegria pulsou dentro de Mary Hellen. Tentou desviar os olhos do peito musculoso iluminado pelo sol, que nele se derramava. A luminosidade se refletia nas gotículas de suor, como minúsculos diamantes.

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Beauregard encarou-a por alguns segundos e voltou a sua faina1: espetar montes de feno com o garfo enorme e lançá-los dentro da carroça.

— Olá — ela cumprimentou com voz um pouco trêmula, ao aproximar-se.Beauregard espetou mais um monte de forragem, jogou na carroça e encostou

nela o forcado.— O que você está fazendo aqui?— Eu lhe trouxe água para beber.Mary Hellen largou o balde sobre a relva, encheu a caneca e estendeu-lhe.Pelo olhar que Beauregard lançou para o líquido, devia ter achado que se tratava

de uma solução de arsênico.Um fio de suor escorreu do contorno do couro cabeludo para a testa de

Beauregard, que limpou-o com o antebraço, antes de levar a caneca aos lábios. Fechou os olhos e inclinou a cabeça para trás, sorvendo em grandes goles.

Mary Hellen observou o pomo-de-adão mover-se com ritmo. A pele do pescoço dele brilhava pela transpiração, e ela assustou-se com a falta de fôlego que a envolveu, ao vê-lo.

A despeito da determinação dele em não apreciá-la e da aparência rústica e desarrumada, Mary Hellen não pôde deixar de notar-lhe a masculinidade vibrante. Beauregard era muito diferente de Garrison, que adorava vestir-se na moda e, sempre que saía, penteava os cabelos e o bigode.

Beauregard era viril, mas de um modo que ela ainda não conhecera. Podia apostar que o marido não escovava os cabelos espessos todos os dias. Embora eles caíssem com naturalidade sobre os ombros, sem embaraçar-se. A calça dele trazia manchas de terra e sujeira, mas o fato não a desagradou. Na verdade, teve um efeito contrário. Beauregard bebeu a água, inclinou-se sobre a vasilha e tornou a encher a caneca. Descansou o braço musculoso na lateral do grande caixote de madeira, cruzou um tornozelo sobre o outro e encarou-a. — Não tem com que se manter ocupada hoje?

— Pelo contrário — ela respondeu, imaginando uma maneira digna de perguntar como se acendia o fogo.

— Gostei de matar a sede, mas não era preciso incomodar-se por isso.Mary Hellen umedeceu os lábios ressequidos.— Não foi incômodo. E por que você me faz sentir como uma irresponsável, só

por eu ter lhe feito uma gentileza?— Não estou fazendo nada disso, Mary Hellen. Se está sentindo alguma coisa,

não culpe a mim.Beauregard sacudiu a caneca, lançando ao vento as últimas gotas brilhantes do

líquido.— Não me sinto irresponsável! Eu... — Ela interrompeu-se.Mary Hellen entendeu, com uma súbita presença de espírito, que estava

1 Qualquer trabalho aturado; lida, azáfama41

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reagindo exatamente da maneira como Beauregard pretendia que agisse. O marido desejava deixá-la frustrada. Uma punição por haver mantido segredo sobre o que ele descobrira na noite anterior. Mas Mary Hellen não se deixaria abater. De jeito nenhum.

— Para falar a verdade, eu gostaria de já estar trabalhando, Beauregard. Mas você saiu sem deixar-me com a mínima noção do que gostaria que eu fizesse em sua casa. Por isso, vim até aqui. Por exemplo, para saber qual a lenha que costuma usar. Algum problema a respeito?

Beauregard esboçou um sorriso imperceptível e limpou a boca com a mão.Mary Hellen evitava, a todo custo, fitar-lhe os olhos, que cintilavam como

esmeraldas.Ele pôs a caneca no assento da carroça a suas costas.— Você não conhece muita coisa sobre a vida no campo, não é mesmo, Mary

Hellen?— Por que será que estou com a impressão de que você se sente feliz por isso?

— Mary Hellen empinou o queixo.— Feliz? Eu? Ficarei contente quando eu recolher todo o feno, isso sim. Quanto a

suas dificuldades... não me importo muito com elas.Mary Hellen achou difícil acreditar no que ouvia.Beauregard virou-se para os cavalos e apertou uma fivela de um dos arreios.— Pode indagar-me qualquer coisa, que eu lhe direi. Não guardo nenhum

segredo.Mary Hellen fitou o balde.a seus pés.— Só quero saber o que você usa para acender o fogo. Beauregard deu a volta na carroça e ficou em frente a Mary Hellen, a poucos

centímetros. Ela reparou no abdome firme e ondulado do marido.— Ah, sei... Lenha... Você não vai encontrar muito disso por aqui.Mary Hellen esforçou-se para fitá-lo.— Sendo assim, o que usa?— Nós queimamos estrume seco de vaca.Mary Hellen o encarou, aparvalhada, pensando que havia entendido errado.— Seca? Quer dizer...— Sim.Por um instante, ela imaginou se não se trataria de uma brincadeira cruel. Não,

Beauregard não seria imaginativo a esse ponto. Sentiu náuseas só em pensar em ter de coletar aquele combustível e alimentar o lume o dia inteiro.

— Não há outra coisa, Beauregard?— Não.Mary Hellen engoliu em seco.— Tem estoque disso no estábulo?— Não, mas você pode fazer, se quiser. Pegue o carrinho de mão e vá por ali. —

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Beauregard apontou adiante. — Um rebanho passou por ali, não faz muito tempo. O estrume deverá estar espalhado por toda parte, fresco e seco.

Mary Hellen olhou para o horizonte, desanimada.— Cuidado para não se perder — Beauregard avisou, curvou-se e despejou o

balde de água sobre si.O líquido cascateou nos cabelos sedosos e ombros. Em seguida, sacudiu a cabeça

de um lado para o outro, e atirou respingos na roupa de Mary Hellen.Ela ergueu as mãos para proteger-se e pulou para trás.— O que está pensando? Já tomei meu banho hoje!— Achei que isso iria refrescá-la.Debaixo do sol quente, Mary Hellen fitou, estática, a água escorrer em fios

prateados pelo peito bronzeado. Envergonhada, desviou-se e passou uma das mãos sobre a frente do corpete. Tentando manter a dignidade, afastou uma mecha da testa suada.

— Eu o verei ao entardecer. — Virou-se e foi embora, pisando duro.Mary Hellen ainda não tinha dado vinte passos, quando Beauregard a chamou.— Você esqueceu o balde!Ela parou e cerrou as pálpebras com força. Ficara tão contente com a saída

dramática!Suspirou, esgotada, e pensou em ignorá-lo e prosseguir seu caminho. Mas o

outro recipiente que possuíam estava cheio de cinzas. Teria de usar aquele para cozinhar.

Juntou toda a dignidade que lhe restava e voltou com pompa teatral. Abaixou-se e pegou a alça de corda da caçamba vazia, fitou o rosto intolerável e sorridente e deu-lhe as costas de novo. Mais dez passos e Beauregard tornou a chamar.

— A caneca!Mary Hellen parou. Se voltasse e tivesse de encarar aquela expressão presunçosa

mais uma vez, bateria nele com o balde. Considerou aquela opção por um ou dois segundos, com grande satisfação, mas tratou de esquecê-la. Em seguida, continuou seu caminho, enfrentando o vento.

Mesmo que tivesse de morrer de desidratação, ficaria sem a caneca até o jantar!

CAPÍTULO XII

Mary Hellen, fatigada, deixou-se cair em uma cadeira. Tentou convencer-se de que a situação era cômica e que seus sonhos destruídos haviam se transformado em algo digno de muitas risadas.

Na hora passada, alimentara o fogão com excrementos secos de vaca, carregara o saco pesado de fubá até a mesa, adicionara mais combustível ao fogo, lavara as mãos, medira a farinha, renovara o combustível, esfregara as mãos de novo, calculara

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a quantidade de gordura, misturara a massa de biscoitos, outra vez o combustível, lavar as mãos...

Naquele momento, esperava que as bolachas assassem. Ao enxugar o suor da testa, entrou em pânico. Teria lavado as mãos antes de modelar os biscoitos na vasilha?

Talvez não devesse comer os doces aquela noite...Distraída, assustou-se com a silhueta escura que assomou à soleira. Engasgou e

deu um pulo da cadeira.Beauregard desceu a escada. Mary Hellen desejou ter se refrescado, antes de o

marido chegar. Não queria dar a impressão de estar atrapalhada. Mas sua cabeleira despenteada e amarrada de qualquer jeito na nuca emoldurava um semblante coberto de suor, e decerto afogueado.

— Você está com banha no nariz. — Beauregard tirou o chapéu e acariciou Shadow, que se apressara em saudá-lo.

Nervosa, Mary Hellen virou-se e esfregou o rosto com as duas mãos. Quando terminou, Beauregard já estava sentado à mesa. Shadow retornara a seu lugar no chão, perto da cama.

— O jantar estará pronto em um minuto. — Mary Hellen abriu a portinhola rangente do fogão.

O cheiro delicioso dos biscoitos douradinhos e assados impregnou a casa de barro. Mary Hellen sorriu, triunfante, e teve esperança de que Beauregard tivesse um olfato apurado.

Ela usou o avental para arrastar a assadeira para fora do forno.— Ai! — Jogou o recipiente sobre a mesa. Queimara os dedos com o calor da

vasilha.Beauregard inclinou-se para trás na cadeira, que teve seus pés dianteiros

erguidos do chão. Mary Hellen chupou os dedos feridos.— Será que terei direito a um prato ou precisarei de comer direto do tabuleiro?Mary Hellen o encarou e fechou os punhos com raiva. Aquele homem divertia-se

demais para seu gosto. Ela virou-se, pegou dois pratos de uma prateleira perto do fogão e deixou-os diante dele.

— O que é que há, Beauregard? Prefere ostras frescas e vinho? Quem sabe, morangos com creme? Isso não deve ser um grande problema por aqui.

Beauregard voltou a cadeira no lugar e a fitou.— Teve um dia difícil, não é mesmo, sra. Brigman?— Meu nome é Mary Hellen, e você... — Contraiu os maxilares."Controle-se!", ela repreendeu-se, fechando os olhos para não vê-lo, pelo menos

por um segundo ou dois.Quando ergueu as pálpebras, Mary Hellen forçou um sorriso tão doce quanto o

mel e respirou fundo, para acalmar-se.— De modo algum, Beauregard. Na verdade, foi bem agradável. Está com sede?

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Eu estava apenas esperando os bolinhos terminarem de assar, antes de ir até o riacho encher o balde.

Um tremor de fadiga percorreu-a, ao fitar, fascinada, aqueles olhos verdes embriagadores. Aquelas esmeraldas cintilantes, escondiam, como se fosse um mistério, todas as emoções que porventura acometessem Beauregard.

Mary Hellen imaginou se algum dia chegaria a compreender o que se passava no íntimo do marido.

Beauregard inclinou-se para a frente e descansou um braço sobre o tampo.— Os biscoitos já estão fora do forno.— Como assim?— Eu disse que os biscoitos já saíram do forno. O que está esperando, Mary

Hellen? Já pode ir buscar a água.Mary Hellen recuou, exasperada, e resistiu à tentação de jogar o bandejão

quente em cima do colo dele. Em vez disso, reuniu o que lhe sobrava do orgulho ferido e, com uma postura irretocável, despejou as bolachas em uma gamela.

— Pois era mesmo o que eu ia fazer — afirmou, arrependida por não ter ido buscar água do riacho antes de pôr aqueles benditos doces no forno.

Mas, como era preciso alimentar a fornalha com freqüência, não tivera coragem de abandonar o posto.

Mary Hellen limpou as mãos na saia e deu alguns passos.— Por que não relaxa um pouco, Beauregard? — indagou, com ironia. — Ponha

os pés para cima. Já volto.Furiosa, Mary Hellen levantou o balde que usara para lavar as mãos uma centena

de vezes naquela tarde. Subiu os degraus e deixou para trás a abafada casa de barro.O horizonte do Oeste para além dos milharais brilhava em um rosa radiante. A

brisa iria que soprava fazia esvoaçar os cabelos colados na pele pegajosa de seu pescoço.

A caminhada até o regato lhe faria bem, decidiu como consolo e esforçou-se para admirar a cor magenta do magnífico Armamento.

Ao voltar com o balde de água pela metade, teve de diminuir o passo, sem acreditar no que via.

Beauregard descansava em uma cadeira do lado de fora, de costas para ela, com os pés erguidos sobre um barril, e Shadow se deitara a seu lado. Ambos contemplavam o pôr-do-sol.

Mary Hellen parou e pôs o balde no terreiro. O marido não a ouvira chegar, em virtude do vento que soprava pela pradaria e pelos trigais.

— Que estranho... — murmurou para si mesma.O primeiro dia de seu casamento mais parecera uma contenda do que um início

de relacionamento. Desde que chegara, ela ainda não revelara nada sobre si mesma. E, pelo andar da carruagem, as coisas não mudariam tão cedo.

Estava determinada a esconder suas emoções. Por quanto tempo teria de

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continuar sendo uma pessoa que na verdade não era?Observou os ombros largos do marido sob a camisa branca folgada. Lembrou-se

das gentilezas dele antes do ato de amor, na véspera. Antes que descobrisse tudo.Para sua surpresa, Mary Hellen teve de admitir que as carícias tinham sido muito

prazerosas. E por quê? Deviam ser as mãos dele. Tépidas e suaves. Peritas em segredos do corpo feminino, que ela mesma desconhecia. Como é que Beauregard sabia onde tocá-la para fazê-la experimentar tamanhas delícias?

Embora a noite houvesse terminado de maneira desastrosa, em nada lembrava aquela que passara com Garrison, nem mesmo para efeito de uma comparação.

Era uma pena que o principal ato do matrimônio pudesse ter lhe arruinado a vida duas vezes, lamentou-se. Como tudo poderia ter sido diferente!

Mary Hellen abandonou um pouco a batalha de seus instintos, agarrou a alça da caçamba e dirigiu-se até onde estava seu marido. Podia entender de onde provinha a hostilidade dele. Pelo menos, devia-se a um mau começo.

Ela gostaria que tudo melhorasse. Estava cansada de ficar brava. Era tempo de parar com os atritos. Quem sabe se tomasse a iniciativa de assumir uma atitude mais calorosa...

Mary Hellen chegou perto de Beauregard. Ele deixou cair o pé no solo e estreitou os olhos.

— Foi bom o passeio até o regato?Não responder-lhe à altura pareceu um desafio para Mary Hellen.— Foi, obrigada.O rosto de Beauregard escureceu por causa da sombra da silhueta da esposa.

Mary Hellen esperou para ouvir as próximas palavras exasperantes, mas ele apenas inclinou-se e pôs a grande mão sobre o quadril dela.

Mary Hellen enrubesceu de imediato, e o sangue acelerou em suas veias. Mas o que ele estava fazendo, em nome de Deus?! E por que ela ficava tão nervosa por isso? Afinal, eles eram casados.

— Você está atrapalhando minha visão do entardecer. — Beauregard afastou-a para o lado, e o cão gemeu a seus pés.

Mary Hellen ficou parada como uma idiota, com taquicardia, enquanto procurava recuperar o fôlego. Rezou para que pudesse viver naquele lugar primitivo, pelo menos sem reagir com tamanha violência a cada movimento daquele homem!

Era apenas uma questão de tempo, sem dúvida. Tratava-se só do primeiro dia. Depois de acostumar-se, nem notaria mais a presença dele.

Beauregard cruzou o tornozelo sobre o joelho e tornou a olhar para a esposa.— Você não tem nada para fazer?Mary Hellen não entendia como um homem podia ser tão atraente e ao mesmo

tempo tão desprezível. Esperava que um bom jantar conseguisse aquecer um pouco o coração dele.

Ela virou-se para entrar, agarrada naquela esperança.

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— Pode vir a qualquer hora. A comida estará na mesa, a sua espera.

CAPÍTULO XIII

Beauregard coçou as orelhas de Shadow e esticou os braços acima da cabeça. Não deveria ter mandado Mary Hellen até o ribeirão para buscar água fresca quando ela se mostrava tão exausta. Não deveria tê-la sobrecarregado de trabalho. Mas o que sua mulher contara sobre o amante o aborreceu além do previsível.

Ergueu-se da cadeira, encostou-a na parede frontal da casa, fitou mais uma vez o céu pintado de escarlate e entrou, com Shadow, no abrigo escuro.

— Vou acender uma... — começou a dizer, chegando ao último degrau.Mary Hellen descansava a cabeça sobre os braços, em cima da mesa, com os

olhos fechados.Beauregard se aproximou da cama, apanhou a lamparina, riscou um fósforo na

bota e acendeu o pavio. Esperava que Mary Hellen acordasse com a súbita luminosidade. Mas a pobre criatura continuava a dormir.

O estômago dele roncou, pois nada ingerira desde a manhã. Fitou o fogão, procurando algum alimento.

Viu os biscoitos dourados dispostos com arte em um prato, a mesa posta com uma vela apagada no centro e algumas flores silvestres em uma pequena taça. O remorso invadiu-o como um maremoto. Mary Hellen esforçava-se bastante para melhorar o ambiente. Por que ele não fazia o mesmo?

Beauregard chegou até o fogão e destampou a panela. Um cozido encorpado de carne de porco e batatas fervia, convidativo. Só o aroma era suficiente para dar água na boca.

Segurando a tampa, virou-se. Mary Hellen continuava dormindo placidamente. Viu as duas tigelas pequenas, encheu-as com o guisado e serviu sua mulher primeiro.

— Mary Hellen? — ele murmurou, sacudindo o ombro dela com delicadeza. — Não está com fome?

Ela não respondeu. Beauregard ajoelhou-se ao lado da cadeira e analisou-lhe a fisionomia. O queixo aninhado nos braços franzia os lábios grossos. Os cílios longos estavam fechados. Mary Hellen parecia tão inocente quanto uma criança.

Beauregard lembrou-se dos tempos felizes do passado, quando June, sua irmã mais nova, adormecia onde quer que se sentasse. Em geral no meio de algum jogo, depois de uma luta valente para manter-se acordada. Beauregard cerrou as pálpebras, procurando vê-la de novo. O coração aqueceu-se com a recordação da caçula, depois entristeceu-se com imensa saudade. June faria quinze anos naquele Natal.

Respirou fundo e afastou aqueles pensamentos. Fitou Mary Hellen de novo.Quando seria o aniversário dela?, ele perguntou-se.Mary Hellen gemeu, e Beauregard imaginou com o que sua mulher estaria

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sonhando. Seria com o amante?Beauregard irritou-se, só de imaginar nisso. Levantou-se e sacudiu-a mais uma

vez.— Mary Hellen, acorde. Você está dormindo. Acorde! Ela, por fim, mexeu-se. Ajeitou os cabelos, atordoada.— Oh... Devo ter adormecido. Já está na hora do jantar.Mary Hellen fez um movimento para afastar a cadeira, mas parou ao ouvir a voz

de Beauregard:— Já servi.Ela piscou e inclinou-se para trás, sem entender. Nisso, notou a tigela a sua

frente.— Obrigada, mas eu poderia ter feito isso. Beauregard pegou a sua vasilha com ensopado de cima do fogão.— Eu sei.Mary Hellen juntou as mãos, para fazer uma oração. Beauregard sentiu um

grande mal-estar, ao lembrar-se de que não rezava fazia três meses, desde que deixara de se sentir agradecido.

Pigarreou, antes de falar:— Você gostaria de dizer algumas palavras, Mary Hellen?— Achei que você as diria. — Fitou-o em silêncio, e seu marido não teve

alternativa a não ser aquiescer.Beauregard fechou os olhos e agradeceu ao bom Deus pelo alimento, pelo dia

ensolarado e pelo teto que os acolhia. Disse "amém" e fitou Mary Hellen, continuava a encará-lo.

— Passe os bolinhos — pediu com rispidez, embora pudesse muito bem pegá-los ele mesmo.

Mary Hellen estendeu o prato por sobre o tampo e deu um pulo, como se algo a houvesse mordido. Ergueu-se da cadeira e encheu duas canecas com a água do balde que estava perto do fogão.

— Fui até o riacho pegar e esqueci-me de servi-la. — Ela pôs uma das pequenas vasilhas na frente dele e sentou-se.

— Sabe, se você soubesse como dirigir a carroça, poderia encher as barricas. Eu a ajudaria a deixá-las do lado de fora. Sempre que chovesse, elas tornariam a encher-se. Assim, não precisaria ir ao regato dez vezes por dia.

Mary Hellen parou com a colher a meio caminho da boca.— Seria muita bondade de sua parte. Começaram a comer.— É. Talvez eu faça isso para você amanhã cedo, antes de ir ao campo.Por que se oferecera para fazer aquilo?, Beauregard perguntou-se. Tinha

trabalho para fazer, e estava atrasado com suas tarefas. A segadeira2 deveria chegar

2 Ceifeira48

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em uma semana.— Obrigada.As cadeiras rangiam, a lanterna sibilava, e nenhum dos dois dizia uma palavra.

Beauregard inclinava-se para o prato e saboreava cada bocado, na certeza de que era a melhor refeição que já vira naquela casa. As únicas refeições decentes de que se lembrava eram as que fizera no rancho do vizinho. Martha, esposa de Howard, cozinhava muito bem.

Esvaziou a tigela, e Mary Hellen levantou-se de imediato.— Quer repetir?— Por favor.Ela serviu-o de mais uma porção fumegante do ensopado.Beauregard comeu, sem falar, pensando. Talvez um dia de raiva já fosse

suficiente. Não que a houvesse perdoado pela mentira ou por ter se apaixonado por outro homem. Beauregard a trouxera ali por um motivo determinado, e havia muito a ser feito antes do inverno.

Mary Hellen teria muitas coisas para aprender e, com toda a honestidade, Beauregard não poderia ensiná-la. Como Martha fazia para administrar a propriedade com os poucos recursos ali disponíveis sempre fora um mistério para ele.

Beauregard engoliu outro bocado e levantou a cabeça.— Seria uma boa idéia visitar os Whitiker amanhã. Mary Hellen arqueou as

sobrancelhas.— Os Whitiker? Quer dizer que temos vizinhos?— A um quilômetro e meio depois do riacho.— Acreditei que fôssemos os únicos colonizadores por aqui. Não vi nenhuma

casa pelas redondezas.— E porque a maioria deles mora em abrigos subterrâneos. A menos que se

saiba onde estão, é difícil percebê-los. Os Whitiker moram em uma construção de barro, acima do solo. Não terá problemas em encontrá-los. Poderia conversar com Martha sobre as maneiras de como viver com mais facilidade nesta região.

O olhar de Mary Hellen dizia-lhe que ela se surpreendera pela preocupação dele em sugerir tal coisa. Na verdade, não havia tempo a perder com ignorâncias na estação da colheita.

— Já falei a ela sobre você. Acho que Martha deve estar esperando sua visita.— Será maravilhoso! Irei amanhã mesmo. Beauregard sentiu a excitação dela, embora Mary Hellen se esforçasse para

escondê-la.— Contudo, não poderei ir junto, para as apresentações formais. Estarei muito

ocupado. Para ser franco, as coisas por aqui são um pouco diferentes daquelas a que está acostumada. A necessidade e a sobrevivência vêm em primeiro lugar. Durante uma tempestade, famílias inteiras dividirão o teto com as galinhas, se isso significar salvar o bando. Esteja preparada para um tipo diferente...

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— Eu entendi. — Interrompendo-o, afastou a cadeira. Começou a tirar a mesa e mudou de assunto: — Quis fazer manteiga, mas não encontrei uma batedeira.

— No estábulo há uma. Eu a pegarei daqui a pouco.— Seria muita gentileza sua. Quer que eu faça café?— Claro.Mary Hellen foi até a porta.— Aonde você vai?— Vou buscar mais... Bem, tenho de acender o fogo outra vez. Ia fazer isso, mas

acabei adormecendo.Beauregard entendeu a expressão desconsolada de Mary Hellen por sua falha.

Ela queria executar todas as tarefas com perfeição.— Mary Hellen, acho que... — Ergueu-se e caminhou em direção dela. — ...não

quero café. Costumo mesmo tomá-lo pela manhã. A bebida tira-me o sono. Estava apenas querendo ser educado.

Eles estavam frente a frente, um pouco próximos demais, como se fizessem uma avaliação.

— Está bem.Naquele exato momento, Beauregard lembrou-se de que iriam passar a noite

juntos. Na casa deles. Sozinhos.Olhou para a cama estreita e tentou imaginar como iriam ficar apertados ali.

Ficariam espremidos um contra o outro a noite inteira, mesmo contra sua vontade. Apesar do lindo rosto e do corpo desejável, decerto tocar em Mary Hellen lhe causaria mal-estar. Como iria encostar em uma mulher que deveria estar pensando em mais alguém? Como fazer amor com ela, sabendo que outro homem fora dono de seu coração e de seu corpo fazia apenas algumas semanas?

Beauregard sentiu as faces em fogo de tanta irritação. Sabia que não deveria incomodar-se com nada daquilo, mas não podia lutar com a urgência irracional de encontrar aquele homem, fosse lá quem ele fosse, e dar-lhe uma bela lição. Tinha muita vontade de mostrar-lhe como era a aparência do solo visto bem de perto.

Quem o tal sujeito pensava que era para roubar a inocência de uma mulher e depois deixá-la tão desesperada a ponto de ela ter de responder a um anúncio e tornar-se esposa de outro?!

Embora não soubesse muito bem o que acontecera entre Mary Hellen e o estranho, Beauregard teve uma urgente necessidade de sair dali, de tanta raiva que sentiu de si mesmo por incomodar-se com o assunto.

— Vou buscar a batedeira de manteiga. — Sem perda de tempo, deixou a residência.

Enquanto caminhava pelo pátio e sentia o frio da noite tocar-lhe a pele, Mary Hellen não lhe saía da cabeça. Recordava a expressão dela, poucos minutos atrás, sem jeito, parada ao rés do chão, sem querer demonstrar a pouca vontade de acender o fogo de novo.

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Se ele aceitasse o café, ela o teria preparado com um sorriso. Não sabia explicar o porquê, mas gostaria que sua mulher fosse um pouco menos conscienciosa. Pelo menos, seria mais fácil dizer-lhe que pretendia dormir no celeiro aquela noite.

CAPÍTULO XIV

Na manhã seguinte, Mary Hellen acordou e teve a impressão de que o sol havia tirado férias. A casa minúscula estava tão escura quanto o manto domingueiro de um sacerdote.

Sentou-se e, mais aliviada, percebeu sinais de vida. Uma faixa estreita de luz serpenteava através da janela coberta de pó e iluminava um dos cantos do abrigo, bem em cima do monte seco de estrume.

Que horas seriam?, perguntou-se, sonolenta, estirando os braços acima da cabeça.

Relanceou um olhar ao redor do recinto, esperançosa de achar em algum lugar o tique-taque de um relógio que interrompesse o silêncio perpétuo.

Preguiçosa, afastou a coberta, estirou as pernas para fora da cama e pôs os pés descalços no piso frio de terra. Bocejou e tocou o colar de pérolas que se mexia no pescoço. Por que o estava usando? E ainda mais no leito?

Mais tarde ela iria compreender que se tratava de uma ligação com o passado, que, embora recente, não voltaria mais. A vida antes de Garrison.

Esforçou-se para não pensar em coisas tristes. Alcançou seu relógio dourado. Levantou-o para vê-lo melhor na obscuridade. Focalizou os ponteiros finos e negros, contra o fundo branco. Dez horas!

Deu um pulo, tirou a camisola e vestiu-se depressa com a mesma roupa da véspera. Apressada, amarrou as botas e rezou para que Beauregard não houvesse vindo ali à procura do desjejum, antes de ir para o campo cuidar de sua safra. Claro, se isso houvesse acontecido, seu marido a teria acordado. Ah, que Deus a perdoasse se Beauregard a encontrasse dormindo até tão tarde!

Passou água fria no rosto e beliscou as faces. Pegou um biscoito e correu escada acima, rumo à luz do dia. O astro-rei brilhava, o céu estava azul, e o trigal agitava-se e sibilava ao sabor da aragem incessante.

Mary Hellen não viu Beauregard. Iniciou o trajeto para a residência dos Whitiker. A visita até que seria uma boa desculpa para explicar a falta de produtividade daquela manhã.

Assim que rodeou a casa, ela parou. Achou dois barris cheios de água até as bordas.

— Oh, Senhor! — falou consigo mesma.Beauregard estivera ali.Ainda havia uma chance de ele não haver entrado, Mary Hellen pensou, com

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otimismo. Claro, se aquilo fosse verdade, ele a teria acordado.Com uma ponta de ânimo, passou pelas barricas. Fora bondade dele carregar

água, quando tinha tanto trabalho a fazer no campo. Quem sabe fora apenas um pouco de civilidade, nada mais...

Beauregard deixara bem evidentes suas intenções, na véspera, ao dizer que dormiria no celeiro. Na certa, não suportava a idéia de tocar nela.

Bom, talvez não houvesse sido uma má idéia, Mary Hellen concluiu, andando pelo terreiro, onde o porco resfolegava sua indiferença. Tocá-la só o lembraria daquilo que destruíra o casamento deles, logo na primeira noite.

Em poucos minutos, Mary Hellen chegou ao riacho. Olhou em ambas as direções, embora soubesse que não encontraria uma ponte por perto. Não tinha jeito. Teria de cruzá-lo a pé.

Tirou as botas e ergueu as saias até a cintura. Entrou na água fria e enfrentou a resistência do córrego, carregando as botas acima da cabeça, com uma das mãos. Escalou a ribanceira do lado oposto. Sentou-se na relva para calçar-se.

Sua atenção foi atraída pela fumaça de uma chaminé a distância, que se destacava no céu azul. Com a calçola molhada que se colava às pernas sob as saias, Mary Hellen caminhou naquela direção.

Logo descobriu que o "quilômetro e meio" de Beauregard fora uma exposição atenuada de um fato concreto. Quando chegou à fazenda dos Whitiker, Mary Hellen teve certeza de que andara uns cinco quilômetros, no mínimo.

A propriedade dos vizinhos era mais bem estruturada que a sua. Uma horta verdejante florescia atrás da cerca de madeira. Madeira! A robusta construção de barro era quadrada e reta, coberta com telhado feito de pranchas.

"Quanto luxo!", admirou-se.Lembrou-se de como tivera de cobrir o combustível, na noite anterior, enquanto

cozinhava, para evitar que o pó do esterco entrasse na panela.Mary Hellen aproximou-se da porta da frente, suada e com calor pelo longo

trajeto que enfrentara. Havia uma gaiola pendurada na frente da janela, com aves canoras entoando melodias alegres. Debaixo da janela, as flores plantadas tinham as pétalas rosa e púrpura viradas para o céu e pareciam sorrir para o vento.

Poderia ter sido previdente e trazido biscoitos, como política de boa vizinhança, Mary Hellen admoestou-se.

Tarde demais. Ela bateu na porta com o punho fechado.Sem nenhuma demora, uma mulher rechonchuda de cabelos castanhos abriu a

porta. O rosto iluminou-se com um largo sorriso.— Vejam só! Você deve ser Mary Hellen. Entre, entre! Mary Hellen agradeceu

por sentir-se tão bem-vinda.Ainda não atinara com a idéia de quanto a solidão a afetava, desde que ela e

Beauregard haviam deixado Dodge City.— Como está? — ela saudou.

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— Sou Martha Whitiker. — Martha levou Mary Hellen para a cozinha. — Tenho esperado por você todos os dias. Desde que Beauregard pôs aquele anúncio.

— Então você sabia?— Ah, sim. Seu marido é como um irmão para mim e Howard. A idéia foi nossa.

Embora eu não saiba como conseguiremos ficar mais tempo longe dele. Antes, Beauregard não saía daqui. Mas, como Howard diz, nós não estaremos perdendo um amigo, mas sim ganhando uma amiga. O pobre Beauregard precisava demais que você viesse.

Desarmada pelas novidades, Mary Hellen aceitou a cadeira que Martha ofereceu-lhe e sentou-se junto à mesa, admirando a bela toalha xadrez em vermelho e branco.

— Quer tomar um café? — Martha ofereceu.— Não gostaria de dar-lhe trabalho...— De modo algum! Acabei de coá-lo há exatos cinco minutos, depois que pus o

pão no forno.Martha fazia tudo parecer tão simples! Encheu duas xícaras de porcelana com o

café cheiroso. Comparada com a moradia de Mary Hellen, aquela era pródiga demais.Nisso, a porta abriu-se, e uma menina pequena, com os cachos loiros

desmanchados pelo vento, irrompeu na casa.— Mamãe! — falou alto, animada. — Papai pegou uma galinha-das-pradarias!

Ela passou correndo perto dele. Aí, ele jogou o martelo nela e pá! Depois, agarrou-a com força!

Martha pegou a criança nos braços.— Que maravilha! Teremos um banquete, hoje à noite! — Deixou a menina no

solo, mas continuou segurando sua mão. — Mollie, esta é nossa nova vizinha, Mary Hellen Brigman.

A garota adiantou-se, tímida.Mary Hellen inclinou-se para falar com a criança:— Olá, Mollie. Que vestido bonito você tem!— Foi minha mãe que fez. Ela também já costurou um outro.— Nossa! Você é uma garotinha de sorte. Quantos anos tem?Mollie ergueu três dedinhos e esfregou a face na saia da mãe.— Ela está envergonhada — Martha sussurrou. — Nós não recebemos muitas

visitas.Mary Hellen sorriu com simpatia e ouviu passos do lado de fora. Mollie esqueceu

a timidez e correu até a porta.— Olhe! Frank está trazendo a galinha!Mary Hellen virou-se na cadeira e viu um garoto na entrada. Loiro como Mollie,

descalço e com a mão para cima, ostentava, muito orgulhoso, a ave morta, segurando-a pelas pernas finas. Devia ter uns nove ou dez anos, se muito.

— Mãe, eu trouxe uma galinha para a senhora depenar.

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Martha esboçou um largo sorriso, com as mãos nos quadris amplos.— Estou vendo. Entre e venha cumprimentar nossa nova vizinha, a sra. Brigman.Frank deixou o troféu sem vida no chão a seu lado, limpou a mão na calça e

estendeu-a.— Prazer em conhecê-la, sra. Brigman. Sou Frank. A senhora poderia dizer a

Beauregard que fui eu quem viu a galinha primeiro?Mary Hellen sacudiu a pequena mão estendida e fitou Martha, curiosa.— Frank gosta muito de Beauregard e o tem no mais alto conceito — Martha

explicou.— Ele vai deixar que eu o ajude a cavar o poço — o menino disse, com o peito

estufado.— Poço? — Mary Hellen repetiu e esperou haver entendido direito.— É sim, senhora. Quando o pai fez o nosso, eu era muito pequeno para ajudar.

E Beauregard falou que, se algum dia eu quiser tornar-me um fazendeiro como ele, precisaria aprender direito como se faz tudo.

Martha adiantou-se e indicou a porta às crianças.— Bom, agora vamos. De volta às tarefas. Obrigada por trazer a ave para o

jantar.Frank deixou a ave sobre a mesa, em frente a Mary Hellen, que recuou na

cadeira. As penas estremeceram antes de murchar.Frank e Mollie correram para fora.Para alívio de Mary Hellen, Martha tirou a galinha de cima da mesa e levou-a até

o balcão.— Essas crianças... — Riu. — Mas eu não sei o que faríamos sem elas. Seria

terrivelmente monótono.Martha sentou-se diante de Mary Hellen e bebericou o café.— Então, como é que está se arranjando por aqui? Mary Hellen levou a xícara aos lábios e considerou a questão. Em parte, desejaria

fazer confidencias e contar todas as suas agruras à vizinha, que acabava de conhecer. Porém, já não era suficiente Beauregard pensar que ela era uma inútil? Não queria que Martha concordasse com ele.

— Bem, eu...Martha sacudiu a cabeça com expressão tolerante, mesmo antes de Mary Hellen

continuar.— Senti a mesma coisa, meu bem, quando cheguei aqui. Na verdade, rompi em

lágrimas quando Howard parou a carroça em frente ao abrigo subterrâneo.Mary Hellen ergueu as sobrancelhas.— Vocês também moraram debaixo da terra?— Ah, sim! Por muito tempo. Achei que ficaria louca. Estava acostumada a viver

na cidade, com o comércio nas ruas. Você não pode imaginar como sofri durante o primeiro ano.

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Mary Hellen considerou, esperançosa, a cozinha bem-arrumada e abastecida.— Parece que agora você tem aqui tudo o que necessita.— Sim. Nós empregamos muito dinheiro em nossa casa. A maior parte das

melhorias veio com a chegada de Beauregard.— É mesmo? Como assim? — Mary Hellen deixou de lado a xícara, mais

interessada do que gostaria de admitir.— Ele estava sozinho. A vida aqui não é fácil para um homem solteiro, para não

se dizer que é quase impossível. Beauregard trocava trabalho por comida ou por um pedaço de pão, e vinha nos ver com freqüência. Por isso é que estava tão desesperado para casar-se. Deixava as próprias atividades para trás e vinha auxiliar-nos. Beauregard não conseguia fazer também as tarefas de uma mulher. Não tenha ilusões. Você irá trabalhar tanto quanto ele. Mas sei que será uma boa esposa.

Mary Hellen sentiu o otimismo retornar. Não fazia parte de sua personalidade perder as esperanças. Embora na véspera, quando Beauregard saíra, quase houvesse sucumbido.

— Sei que tenho muito o que aprender, vivendo aqui, Martha. Achei que estaríamos sozinhos, até Beauregard sugerir que eu viesse falar com você.

— Eu disse a ele que fizesse isso logo após sua chegada. Avisei-lhe: "Não deixe que pobrezinha levante um dedo, antes de vir falar comigo".

— Bem, não foi bem isso que meu marido fez. Na verdade, divertiu-se vendo que eu me atormentava pelas mínimas coisas. Desde como acender o fogo até tirar água do riacho.

Martha tocou nas mãos de Mary Hellen, por sobre o tampo.— Não seja muito severa com ele. Beauregard passou por maus bocados.Mary Hellen franziu a testa, sem entender.— Você não sabia? — Martha recostou-se. — Talvez eu não devesse ter

mencionado isso...— Conte-me, por favor. — Contudo, Mary Hellen não sabia se teria sido melhor

se tivesse mais conhecimento sobre o passado do marido antes da noite de núpcias. Assim, talvez pudesse ter agido de modo diferente.

— Não sei se devo...— Martha, por favor. O fato de eu saber o que se passou poderá ser uma grande

ajuda para mim. De outro modo, esse casamento terá um triste fim, logo, logo.Martha ajeitou-se no assento, embaraçada.— Nem me fale nisso! Beauregard não poderia suportar outra desilusão.— Desilusão? — Mary Hellen ficou tensa.— A pior que eu já vi.Atônita, Mary Hellen não podia imaginar Beauregard apaixonado por alguém e

muito menos admitindo isso.— Ah, querida... — Martha lamentou. — Sei que não deveria dizer nada. Howard

me aconselhou que não o fizesse.

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— É claro que tem de me contar! Preciso saber. Isso me ajudará a entender o que está acontecendo. O que houve? Quem era ela?

— Foi uma coisa terrível. — Martha levantou-se e tornou a servir Mary Hellen de mais café. — Beauregard veio de Nebraska para cá no ano passado, depois que sua família morreu...

— É mesmo?Por que ele não lhe contara nada sobre isso?— De tuberculose. Todos, exceto George, que havia se mudado um ano antes

para Dodge, a fim de abrir um escritório de advocacia. Beauregard perdeu os pais, um irmão mais novo e três irmãs mais novas. Depois dessa tragédia, não pôde mais permanecer lá. Queria começar de novo em qualquer outro lugar. Desse modo, vendeu tudo e veio para Dodge comprar algumas terras. Assim, ficaria perto do único membro da família que lhe restara. Nisso, encontrou Isabelle na cidade. Ela é filha do reverendo. Pessoas muito simpáticas.

— Isabelle... Martha anuiu.Então, Beauregard não era tão inocente assim. Também ocultara os fatos.— Mas Isabelle não combinava com as pretensões dele, Mary Hellen. Era muito

bonita, e eu acho que Beauregard perdeu a cabeça por ela. Ele gastou grande parte de suas economias em um presente de noivado. Um colar, que acabou vendendo em seguida. Talvez quisesse assegurar-se de que Isabelle não mudaria de idéia.

Martha fez uma pausa e tomou um gole.— Beauregard construiu seu pequeno abrigo e trouxe-a para conhecê-lo.

Prometeu-lhe que ergueria uma casa de verdade no ano seguinte. Isabelle viu do que se tratava e afirmou que teriam de reconsiderar o noivado deles. Menos de uma semana depois, fugiu com outro homem. Um milionário.

Martha suspirou.— Foi a traição que machucou o coração de Beauregard. Ele afirmou que não

havia nada mais importante que a verdade... E que também não se apaixonaria mais por nenhuma garota bonita, pois se arriscaria a perdê-la para outros homens.

Martha pareceu voltar ao presente e mexeu-se na cadeira, ao fitar Mary Hellen. Parecia arrependida de haver feito o relato.

— Contudo, tenho certeza de que isso agora faz parte do passado.Mary Hellen duvidou da veracidade daquela afirmação, ao lembrar-se da

expressão de Beauregard ao vê-la pela primeira vez. Entendeu que ele teria preferido alguém mais simples e sem muitos atavios.

— Há quanto tempo isso aconteceu, Martha?— Já faz uns três meses.Mary Hellen levantou-se e foi até a janela. Ah, se ela soubesse disso antes! Por

causa do que acontecera a Beauregard, manter silêncio sobre o passado fora pior do que confessar a verdade.

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— Você está bem, minha querida? Cometi um erro, não é mesmo?— Não, Martha, agiu de maneira correta. — Mary Hellen encarou a vizinha. —

Agora posso entender por que meu marido tem agido com tanta frieza.— Espero não ter atrapalhado nada entre vocês. Procure entender que a atitude

dele nada tem de pessoal. Beauregard voltará a ser o que era, pode acreditar.Mary Hellen fitou o terreiro, pela vidraça. "Nada tem de pessoal..."Se ao menos aquilo fosse verdade! Rememorou os acontecimentos da noite de

núpcias.Quando Mary Hellen se voltou para a nova amiga, Martha estava dobrando a

toalha xadrez. Guardou-a em uma prateleira e trouxe a galinha para a mesa.— Não se incomoda se eu a depenar, enquanto conversamos? Quero levá-la ao

forno assim que o pão ficar pronto. Desse modo, você poderá ir para casa com comida pronta para seu esfomeado marido. Isso o ajudará a deixar de lado Isabelle.

Mary Hellen sorriu. Entendeu que Martha seria uma boa companheira.— Agora, sente-se, Mary Hellen. Eu lhe contarei tudo sobre o dia-a-dia de uma

esposa de fazendeiro destas pradarias. Beauregard pensará que encontrou ouro, quando vir como você se tornou imprescindível para ele.

Mary Hellen teve de admitir isso que era tudo o que desejava para si.

CAPÍTULO XV

Beauregard observava o sol cor-de-rosa no horizonte, enquanto começava a desatrelar a parelha no terreiro. Deu uma olhada para a sua pequena casa e viu a chaminé estreita e fumegante sobre o telhado de relva.

Não pôde compreender a miscelânea de emoções que o atingiram. Em parte, aquela fumaça era como um sonho que se tornava realidade. Tinha uma companhia, uma parceira. O início de uma família.

Uma família...Assustou-se. E se Mary Hellen estivesse desesperada para casar-se por estar

esperando um filho? Era uma possibilidade, embora ainda não lhe tivesse ocorrido até então.

Deixou cair as tiras dos arreios de couro que estava segurando e acariciou o focinho macio de Gem. Pensando bem, o que ele sabia sobre a esposa? Muito pouca coisa. E se fosse por estar grávida é que ela respondera tão rapidamente ao anúncio?

Não, decerto não devia ter sido por causa disso, decidiu. Devia estar apenas exagerando, pelo que ouvira dela na véspera.

Terminou de tirar os equipamentos dos cavalos e em seguida levou-os ao estábulo. Alguns minutos depois ele saiu, fechou a porta da cocheira e passou a tranca.

Andou devagar pelo pátio, em direção à residência. Seu coração batia em cadência com os passos. Por que aquela ansiedade?

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Não era importante saber se Mary Hellen gostava de outra pessoa, disse para si mesmo. Ela já terminara o romance, e se a gravidez fosse uma realidade, também não havia muito a se fazer.

Em parte, seria de seu agrado que sua mulher não tivesse filhos logo. Contudo, aquele era um acontecimento imprevisível e poderia ocorrer bem antes do desejado. Mas a criança de outro homem? Como ele se sentiria a respeito?

Chegou até o abrigo e entrou. Sentiu de imediato um aroma delicioso. Parecia incrível que um simples cheiro pudesse acalmar suas preocupações, levando-se em conta o assunto sobre o qual estivera matutando. Havia quanto tempo não sentia um odor tão agradável como aquele? O que seria? Biscoitos? Um bolo? Desceu os degraus e encontrou a casa iluminada com a luz dourada e bruxuleante da lamparina de querosene. Acariciou Shadow, que viera saudá-lo.

Alguma coisa estava diferente. Aliás, tudo estava diferente. Havia um cobertor vermelho pendurado no forro como se fosse uma parede e que dividia a área de dormir da área de comer. A mesa estava coberta com uma toalha branca, que nada mais era do que um saco velho de farinha, cortado. De novo, uma caneca com flores silvestres no centro.

Beauregard tirou o casaco e virou-se para pendurá-lo nó gancho atrás da porta. Porém havia um gorro redondo de algodão no lugar. Onde ela o teria encontrado? A única coisa que ele a vira usando na cabeça fora aquela coisa ridícula de cor púrpura.

Naquele momento a manta mexeu-se e Mary Hellen saiu de detrás da mesma.— Você já voltou!? — ela indagou o óbvio, em tom alegre. — Como foi o seu dia?Mesmo que a animação fosse uma pantomima, era agradável do mesmo jeito.— Tudo bem. Já recuperei o atraso. — Estudou tudo a seu redor. — Você

trabalhou bastante.Mary Hellen foi até o fogão, e Shadow acomodou-se aos pés dela.— Hoje eu fui até a casa dos Whitiker.— Foi o que eu imaginei. Você não estava aqui, quando voltei, ao meio-dia.Ela virou-se depressa.— Você veio até aqui?— Um homem precisa comer... Mary Hellen empalideceu.— Sinto muito, Beauregard. Eu deveria ter preparado alguma coisa, antes de sair.Beauregard admirou-se pelas desculpas, como se Mary Hellen tivesse medo de

vê-lo zangar-se.— Deixe para lá. Durante um ano, me arranjei sozinho. Estou acostumado.Ela fitou-o por um momento, apertando o tecido da saia entre os dedos. Depois,

pareceu aliviada e voltou-se para o fogão.— O que é que está cheirando tão bem? — Beauregard reparou na cintura

estreita e na curvatura dos quadris.Mary Hellen não parecia estar grávida, embora ainda fosse muito cedo para

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saber.— Assei um bolo. Recolhi os ovos, e Martha deu-me um pouco de açúcar.

Afirmou que se tratava de um gesto de boas-vindas. Também presenteou-me com um gorro e aquela manta.

— Muito atencioso por parte dela.— É uma pessoa adorável, sem dúvida.Mary Hellen entreteve-se em volta do fogão por mais alguns minutos, e

Beauregard sentou-se na cadeira, observando a esposa.Os movimentos graciosos e a entonação aveludada que cantarolava uma doce

melodia eram encantadores. Quase o suficiente para fazê-lo esquecer o que estivera pensando.

Ela ergueu a tampa da panela com uma toalha enrolada em uma das mãos, e inclinou o rosto para soprar o vapor.

Alguns minutos depois, ela voltou com um prato de comida fumegante e pôs a iguaria na frente dele.

Fazia pouco pensara tantas bobagens, e só a situação atual era que na verdade interessava.

— É galinha? — ele indagou, incapaz de esconder sua surpresa.Será que Mary Hellen teria abatido uma ave? Não podia ser.— É sim. Cortesia dos Whitiker.Sua esposa devia mesmo ter causado uma boa impressão, decidiu, com a boca

cheia d'água.Por fim, Mary Hellen sentou-se, eles disseram uma breve oração e iniciaram o

jantar.Comeram em silêncio. Em parte porque Beauregard não sabia o que falar, e em

parte porque estava faminto demais para conversar entre as garfadas.Depois que terminaram de comer, Mary Hellen tirou a mesa.— Aprendi muitas coisas hoje, Beauregard. Acho que conseguirei administrar

bem as tarefas, assim que me acomodar e começar uma rotina.Então ela planejava ficar...— Tentarei fazer sabão, antes do inverno — Mary Hellen continuou. — Já

comecei a guardar as cinzas do fogão. Martha disse que poderíamos fazer isso juntas depois do abate dos porcos.

Beauregard fitou-lhe a nuca branca e delgada, enquanto ela lavava os pratos em uma caçamba. Na verdade, parecia bastante animada.

— Cuidado com a lixívia, enquanto estiver fazendo o sabão, Mary Hellen. O vapor é perigoso, se atingir os olhos.

— Terei cautela.Ela abaixou-se para abrir a portinhola do forno. Beauregard lutou contra a

vontade de alcançar-lhe os quadris e concentrou-se no cheiro delicioso do bolo.Mary Hellen puxou a fôrma para fora e deixou-a sobre um barril virado de

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cabeça para baixo.— Será preciso deixá-lo esfriar por uns cinco minutos, antes de cortar uma fatia.

Será que você pode esperar?— Claro.— Não quer um café? — Ato contínuo, Mary Hellen serviu-se do líquido

fumegante.Beauregard inalou o aroma agradável. Gostou de ficar sentado depois da

refeição, trocando idéias com sua esposa, que, de repente, parecia à vontade e confiante no que fazia. Uma mulher que tecia planos para o futuro, mesmo que fossem tão simples como fazer sabão.

Será que se importaria de ficar acordado até um pouco mais tarde?— Acho que vou tomar um pouco — ele respondeu. Mary Hellen estendeu-lhe uma xícara e sentou-se diante do marido.— Você já ordenhou uma vaca? Mary Hellen pigarreou.— Não. Mas Martha explicou...— Ela mostrou para você como se faz?— Não foi bem isso... — Mary Hellen se levantou e encostou um dedo no bolo.

Cortou algumas fatias e trouxe-as para a mesa. — Acredito que poderá ensinar-me, não é, Beauregard?

— Não aprenderá se eu não lhe mostrar. Afinal, terá de fazer isso mais cedo ou mais tarde.

— Estou pronta para fazê-lo, assim que você dispuser de um pouco de tempo.— Amanhã eu a acordarei bem cedo, e você poderá acompanhar o processo.

Pelo menos, estará em pé em um horário decente.Mary Hellen engasgou com a bebida. Enrubesceu tanto que poderia competir

com um tomate maduro, e, pela primeira vez desde que conhecera Beauregard, viu-o rir.

Por um momento, Mary Hellen demonstrou aflição, com os olhos arregalados e as sobrancelhas elevadas ao máximo. Depois, fez uma careta engraçada e deu um sorriso largo, encantador.

— Está bem, eu dormi até tarde esta manhã. Não tornará a acontecer.Beauregard assentiu, ainda sorrindo, e refletiu como uma simples risada podia

trazer tanta alegria a um ambiente.

CAPÍTULO XVI

Beauregard virou-se em sua cama de feno na escuridão, coçou as costas e os braços e perguntou-se que horas seriam. Sentou-se devagar, ainda tonto de sono. Não conseguia dormir mais com Maddie calcando o solo com as patas, na baia a seu lado.

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Ela estava inquieta. Já devia ter amanhecido.Ele ficou em pé e espreguiçou-se, atirou o cobertor a um canto, tirou o feno dos

cabelos e dos ombros.Será que a sua esposa já estaria acordada?, gostaria de saber.Lembrou-se da promessa de ensiná-la a ordenhar Maddie. Teria de ir até a casa e

despertá-la.Beauregard cruzou o terreiro e observou os traços leves de luz que iluminavam o

céu. Inspirou o ar fresco do alvorecer e entrou na casa escura. Foi direto até a lamparina para acendê-la e estremeceu, ao riscar o fósforo. Não fazia sentido ele não querer fazer barulho, já que viera até ali para acordar Mary Hellen. Entretanto, o silêncio da aurora e a paz que reinava dentro de sua casinha pareciam muito especiais para serem perturbados.

Quando o recinto iluminou-se, Beauregard olhou o cobertor vermelho pendurado como cortina. Escutou a respiração constante da esposa, vinda de detrás do tecido que separava o ambiente. Devagar, deu alguns passos, sem fazer ruído e lembrou-se do sorriso doce à mesa do jantar, na véspera. Durante a noite inteira, a visão não lhe saíra da lembrança. Ele estacou, vibrando de ansiedade. Despertá-la parecia-lhe um ato íntimo. Gostaria de contemplar o sono de Mary Hellen por alguns instantes. Lutou contra o que lhe parecia um absurdo e afastou a cortina.

Mary Hellen estava deitada de lado, coberta até as orelhas. Beauregard admirou o que estava à vista. Os cabelos escuros, os cílios longos, a curva do quadril e o contorno das pernas debaixo da manta. Olhá-la dormir incendiou-lhe os sentidos, de maneira surpreendente.

Teve vontade de esquecer as tarefas e deitar-se debaixo do cobertor com ela, abraçá-la e sentir-lhe o corpo quente de encontro à sua pele nua.

Beauregard inclinou-se e pôs a mão no ombro de Mary Hellen, antes de que seu corpo o convencesse a fazer o que seu coração ainda não estava pronto a conceder.

Como se fosse um sonho, Mary Hellen sentiu-se despertar, com o ligeiro sacudir de seu corpo. Uma mão grande descansava em seu ombro. Suspirou e ainda sonolenta, percebeu dois olhos verdes que a estudavam. Recobrou a consciência e entendeu que era o marido ajoelhado a seu lado, à espera de que ela dissesse alguma coisa.

— Já amanheceu? — indagou, num sussurro.— Sim, Mary Hellen. Maddie está ansiosa.— Maddie... — Sentou-se, tentando coordenar os pensamentos.A manta deslizou e deixou à mostra a parte superior da camisola desabotoada no

pescoço. Mary Hellen notou que o marido desviava o olhar.O coração dela confrangeu-se. Imaginou se no futuro Beauregard a perdoaria,

para voltar a vê-la de novo como mulher e desejá-la. Que estranho... Ela achava que tal fato não faria a menor diferença. Mas naquela manhã passou a importar muito mais do que gostaria de admitir.

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— Eu a esperarei no estábulo. — Beauregard se levantou.— E o café da manhã?— Nós comeremos, depois de tirar o leite e recolher os ovos.Mary Hellen escutou o bater das botas subindo os degraus e pôs os pés descalços

no chão.Será que algum dia as coisas seriam diferentes?Teriam de ser, se Beauregard pretendesse ter filhos. Isto é, se ela já não estivesse

grávida. Mas Garrison lhe afirmara que havia apenas um período curto em que a mulher podia conceber e que, assim mesmo, isso não acontecia com tanta facilidade.

Suspirou. Jamais chegariam a constituir uma família, com um marido que insistia em dormir no estábulo.

Vestiu-se depressa, jogou o xale sobre os ombros e saiu. O ar frio fustigava seu rosto, ao cruzar o solo orvalhado com passos leves.

Entrou no galpão e sentiu os cheiros já conhecidos de cavalo e feno. Uma lamparina acesa estava pendurada em um gancho. Com uma pá, Beauregard limpava o esterco debaixo da vaca e depositava-o em um carrinho de mão. As franjas da manga do casaco de couro iam para a frente e para trás, de acordo com os movimentos. Mary Hellen parou na entrada, segurando o xale com firmeza, aguardando instruções.

— Pela manhã, deve-se tirar um pouco de estrume antes de começar a ordenha — ele explicou, ao passar com o carrinho perto dela. — Você pode acrescentá-la ao estoque de combustível. Vi que fez um, do lado de fora de casa.

Um pouco depois, Beauregard se voltou e puxou um pequeno banco redondo para perto do animal. Alcançou um balde e deixou-o ao lado.

Mary Hellen, imóvel, sentia-se uma tola. Engoliu em seco, quando o marido inclinou-se para fora da baia e fitou-a, com mechas de cabelos dourados caídos na face.

— Você não vem? Ela anuiu e aproximou-se.— Onde é que eu fico?Beauregard conduziu-a até o banquinho, com a mão em suas costas.— Sente-se aqui. Maddie, fique quieta.Mary Hellen obedeceu e fitou os flancos largos do animal.Beauregard ajoelhou-se ao lado da esposa.— Terá de manter os joelhos separados e inclinar-se para a frente.Mary Hellen não conseguiu conter a vermelhidão do rosto, quando separou as

pernas devagar.— Está bem.— Agora, segure as tetas com firmeza e aperte. Mary Hellen fez como ele mandara, mas, assim que tocou o tecido cálido das

mamas, Maddie recuou para o lado e derrubou Mary Hellen, que caiu de costas. Ao bater com a cabeça no muro, sentiu-a começar a latejar.

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— Maddie! — Beauregard gritou. — Fique quieta! Você está bem, Mary Hellen?Ele endireitou o banco redondo e ajudou Mary Hellen a levantar-se. Ela fez um

gesto afirmativo, sem conseguir falar, por causa do calor daquela mão forte.— Maddie sabe que você é uma estranha, mas vai acostumar-se. Tente outra

vez.Nervosa, Mary Hellen adiantou-se, equilibrando-se para não cair. O coração batia

forte. Por que tinha de fazer aquilo? Beauregard não podia continuar? Era óbvio que Maddie o preferia. Mas, ao tornar a pegar as tetas quentes, descobriu que Beauregard estava certo. Maddie não se mexeu, enquanto Mary Hellen fazia a primeira compressão.

— É isso aí! Pode começar a tirar o leite.Mary Hellen apertou com toda a força, mas nada aconteceu. Nunca se sentira

tão incompetente!— Continue tentando — Beauregard aconselhou-a. — Você sentirá o momento

certo.Mary Hellen apertou e apertou, até os nós dos dedos ficarem brancos, e não

houve novidades.— Não está adiantando. O que há de errado? Beauregard fitou os úberes cheios de Maddie.— Ela não quer deixar o leite sair. Levante-se. Deixe-me tentar.Mary Hellen foi para o lado, e Beauregard sentou-se. Passou as mãos sobre as

mamas de Maddie e, sem nenhum esforço, fez o líquido branco jorrar dentro da caçamba, com o som característico do jato.

— Vê? Você tem de puxar e apertar ao mesmo tempo. E Mary Hellen viu. Um par de mãos bronzeadas, fortes, capazes e gentis ao

mesmo tempo, que faziam o leite de Maddie sair. Com persuasão natural.Ela teve a idéia ridícula de querer saber se Maddie estaria gostando. Ao lembrar-

se de como Beauregard a acariciara na noite de núpcias, entendeu por que a vaca a teria empurrado para o lado.

— Agora, tente você.Mary Hellen voltou a ajeitar-se no banquinho, imitando o estilo do marido. No

começo, nada de leite. Depois, saíram algumas gotas.— Veja! Está funcionando!Não demorou muito e Mary Hellen espremia o leite para dentro do recipiente

em jatos fortes e firmes. Ela conseguira!— Muito bem, Mary Hellen! — Beauregard cumprimentou-a.Ela olhou para cima e viu-o sorrindo. Um fato tão raro que até deixou-a

paralisada, mas que fez sua pele arrepiar-se e os ossos parecerem virar gelatina.Quando o leite parou de sair, fez-se silêncio no estábulo. Mary Hellen esforçou-

se para prestar atenção a sua tarefa e rezou para entender os sentimentos que a invadiam.

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Estava desesperada para agradar um homem que não desejava ser agradado. Se ao menos ela não houvesse cometido aquele erro crucial na noite de núpcias... Se eles pudessem voltar àqueles momentos anteriores à descoberta do segredo dela, quando Beauregard a tocara e a desejara...

Mary Hellen deixou as mãos caírem no colo. Levantou a cabeça e implorou afeição com o olhar. Beauregard desviou-se rapidamente, como se tivesse coisa mais importante para fazer.

Rejeitada, Mary Hellen baixou os cílios. Tinha certeza de que Beauregard vira o que ela pretendia e sentira-lhe o desespero. No entanto, por algum motivo particular, resolvera ignorar a súplica muda.

Ele deu um tapinha amigável no traseiro de Maddie.— Não vai demorar muito, garota. Apenas fique quietinha até que o leite se

esgote.Beauregard virou-se e saiu do estábulo.

CAPÍTULO XVII

Dois dias mais tarde, Mary Hellen debruçava-se sobre a batedeira de manteiga, agitava-se com vigor para cima e para baixo e por vezes esfregava as costas doloridas.

Ao ouvir a carroça ranger e tinir com sua melodia simples e constante, deixou o que estava fazendo. Apressou-se a preparar a carne de porco frita com molho, o pão de milho e o café, a refeição habitual de Beauregard do meio-dia.

Mary Hellen cortava as fatias de pão, quando a sombra dele assomou à soleira.— Como foi sua manhã? — ela indagou, repetindo o mote3 de sempre.— Muito bem — ele também deu a mesma resposta. Beauregard desceu os degraus e foi até o bule de café. Mary Hellen reparou no

rasgo na manga da camisa do marido.— O que aconteceu com sua camisa? — Serviu um prato de comida e deixou-o

sobre a mesa.Beauregard encheu uma xícara com café.— Gem tentou morder-me.Mary Hellen aproximou-se do marido para examinar a manga.— O cavalo fez isso?— Sim, mas eu mereci. Quase arranquei os dentes dele ao tentar arrumar o

cabresto que entortara. Inabilidade, acho.O pedaço de pano pendurado deixava à mostra o braço musculoso. Mary Hellen

desenrolou a manga para ver se havia conserto.— Posso costurá-la, enquanto você come. Por que não a tira?Beauregard parou, com o bule em uma mão e a xícara na outra. Eles se

3 Tema, assunto64

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entreolharam, e Mary Hellen continuou a segurar o tecido no lugar, cobrindo a pele nua.

— Não há pressa. Isso pode esperar até a noite. Mary Hellen controlou-se e esperou não ter enrubescido.— E se você enganchar em alguma coisa? Eu terei trabalho dobrado para poder

costurar. Tire-a, e terminarei antes que acabe de almoçar.Ele hesitou, deixou a xícara em cima da mesa e virou-se. Os músculos de suas

costas se contraíram e relaxaram, quando Beauregard levou os braços para cima e tirou as mangas.

Mary Hellen esperava, atrás do marido, e a peça de vestuário veio cair em suas mãos. Ela pôde constatar que ainda conservava a quentura do corpo de Beauregard e a umidade proveniente do trabalho duro. Gostaria de esfregá-la no rosto e sentir o cheiro da natureza misturado com o odor masculino.

— Serei rápida — Mary Hellen assegurou e afastou-se, à procura de agulha e linha.

Remexeu entre suas coisas, com mãos trêmulas, sem esquecer-se da proximidade de Beauregard seminu. Encontrou os apetrechos de costura e encaminhou-se em direção à porta, sem olhá-lo.

— Aonde você vai, Mary Hellen? Ela parou no primeiro degrau.— Aqui dentro é muito escuro. Preciso de luz mais forte para enfiar a linha. Não

demoro.Mary Hellen subiu a escada correndo, com a camisa pendurada em seu braço.

Por que é que ele tinha o poder de deixá-la alvoroçada? Ela se desmanchava inteira, só em vê-lo.

Mary Hellen suspirou, sentou-se na cadeira do lado de fora e começou a fazer o remendo.

Estava quase terminando, quando ouviu o som das botas de Beauregard subindo devagar os degraus. Ela passou a costurar com maior rapidez. Queria terminar antes de ele chegar. O pânico fez com que espetasse o dedo.

— Ai! — Levou o dedo à boca e depois baixou a cabeça de novo, para terminar o que estava fazendo.

Antes de Mary Hellen terminar a tarefa, a sombra de Beauregard escureceu-lhe no colo.

— Machucou-se?Mary Hellen fez que sim.— Não tenha pressa. Não vou continuar com a fenação4 já. Acho que comi

demais. — Beauregard passou por ela e sentou-se na grama.Mary Hellen acabava de remendar a roupa dele, sem fitá-lo. Ainda assim, sabia

muito bem como e onde ele estava sentado. Beauregard recostava-se em um cotovelo, 4 1.Processo de conservação das forragens. 2.Colheita do feno.

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uma perna encolhida e um braço desnudo abraçando o joelho.Mary Hellen começou a transpirar.Ele levantou-se, ao mesmo tempo em que ela terminava de dar um nó.— Acabou?— Sim. Está nova. — Mary Hellen examinou a costura e sacudiu a camisa ao

vento.Ficou em pé e estendeu para o marido a peça branca, sem olhar para ele, a

pretexto de alisar a saia. Mas percebeu que ele se apressava em vestir a roupa, em abotoá-la e em enfiar as pontas inferiores para dentro da calça.

Beauregard pigarreou.— Agora temos de voltar ao trabalho. Mary Hellen sorriu, nervosa.— Isso mesmo. — Não sabia o que dizer. Beauregard encaminhou-se para a carroça, examinado o local do rasgo. Subiu no

assento e agarrou as rédeas, com o olhar fixo para a frente. Mary Hellen levou a mão à testa para fazer sombra e esperou que ele sacudisse as tiras de couro e partisse. Nisso, ele voltou-se para ela.

— Obrigado por remendar minha roupa.Mary Hellen fitou o rosto perfeito e a barba por fazer. Sentiu-se recompensada e

a alegria invadiu-a. Até que enfim, o marido lhe dava valor. Quer ele admitisse, quer não.

— Não há por quê.Beauregard bateu as rédeas, com os cotovelos encostados nos joelhos. Os

arreios tilintaram e a carroça disparou em direção à pradaria imensa.Mary Hellen teve vontade de pular sem parar e gritar de puro entusiasmo. Mas

deu só um pulinho modesto, antes de entrar na casa.Mais tarde, no mesmo dia, Mary Hellen espantou um gafanhoto de cima da

toalha de mesa. No mesmo instante, um outro veio ocupar o lugar vago.— Saia daí! — berrou e assustou-o com as costas da mão, já com arrepios pelo

corpo.Limpou as mãos na saia, recuperou o domínio sobre si mesma e virou-se para o

fogão. Um pouco antes, seguindo os conselhos de Martha, colhera algumas verduras nativas para misturá-las com a carne de porco salgada, cebolas e batatas. Picara tudo e fizera um guisado. Tirou a caçarola do forno e sentiu o cheiro aromático da iguaria. Imaginou se agradaria Beauregard.

Um pouco depois, Mary Hellen ouviu o barulho da carroça e olhou para a porta. Era um pouco cedo para Beauregard chegar. Saiu para ver o que o trouxera para casa àquela hora. Uma tarde quente e modorrenta a envolveu. A sensação na pele foi desagradável.

— O que aconteceu que o fez voltar antes? Beauregard pulou da carroça com um baque surdo.

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— Havia gafanhotos demais — ele aproximou-se, de cenho franzido.— Eu espantei dois. Beauregard tirou o chapéu e mirou o horizonte escurecido.— Quer jantar? — Mary Hellen ofereceu. — Acabei de preparar a refeição.— Não, ainda não.Ele fitou o céu por algum tempo, enquanto amarrava os fardos. Depois tornou a

pôr o chapéu e passou pela esposa. Foi em direção à casa, onde Shadow dormitava. Parou do lado de fora da porta, e Shadow levantou-se, com as orelhas longas inclinadas para trás. Choramingando, o cão veio ao encontro de Beauregard, que se abaixou para coçá-lo atrás das orelhas.

— Qual é o problema, garoto? O que está farejando? O cachorro olhou em volta e começou a latir. Mary Hellen aproximou-se para ver

se alguém se aproximava. Nenhum movimento, nem mesmo o da relva alta. Não havia chilreios, cantos ou chiados.

Uma pequena brisa levantou os cabelos de Beauregard e desapareceu em seguida. Ansiosa, Mary Hellen abraçou-se.

— Droga! — Beauregard grunhiu e marchou nervoso em direção aos gerânios que Mary Hellen havia plantado do lado de fora. — O que é que há?

Ele tirou o chapéu e bateu nas flores, sem parar de esbravejar. Foi só naquele momento que Mary Hellen percebeu os gafanhotos caindo das folhas, esvoaçando em pânico.

— Esses insetos costumam aparecer sempre, Beauregard?— Não — ele respondeu, com preocupação evidente. Mary Hellen permaneceu em silêncio, sem saber o que fazer.Beauregard pôs de novo o chapéu e fitou a janela empoeirada. Os gafanhotos

batiam contra ela, como se tentassem entrar na casa.— Acho melhor fechar a porta.Beauregard pegou a planta quebrada e deu para Mary Hellen levar para dentro.

Eles se entreolharam, apreensivos.— A horta! — Mary Hellen mencionou. Beauregard anuiu, como se estivesse

pensando no mesmo assunto e esqueceu-se do vaso. Correu para trás da casa.— Traga roupa de cama!Sem demora e tomada de súbita energia alicerçada pelo pavor e pela coragem

combinados, Mary Hellen correu para dentro. Deixou a planta em cima da mesa e arrancou o cobertor vermelho do forro onde estava pregado. Agarrou a manta, os lençóis da cama e o saco de farinha que servia de toalha de mesa. Correu escada acima segurando a saia com uma das mãos e a pilha de panos na outra. Bateu a porta atrás de si.

Os gafanhotos voavam para todos os lados, batiam na carroça e atormentavam os cavalos, que abanavam a cauda e sacudiam a cabeça, na tentativa de livrar-se dos insetos.

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Apavorada, Mary Hellen deu a volta na casa. Sentiu uma ferroada no rosto, ao colidir com alguns dos insetos irritantes. Continuou o caminho cabisbaixa e chegou até a pequena horta, onde Beauregard batia com o chapéu para proteger os tomateiros indefesos. Shadow andava para a frente e para trás, rosnando.

Beauregard levantou a cabeça e acenou.— Traga aqui e cubra o que puder.Mary Hellen deixou cair a pilha no chão. No mesmo instante, quatro ou cinco

gafanhotos pularam no monte de pano.— Sai, sai! — ela gritava, pegando o cobertor de cima e abrindo-o no ar.Os gafanhotos voaram desorientados e depois direto para a horta.Mary Hellen cobriu as plantas, sabendo que capturara dezenas deles por baixo.

Beauregard continuava a agitar o chapéu sobre as folhas verdes, abanando e batendo nas plantas trêmulas.

— Acho que deveríamos cortar o que for possível e levar para dentro — Mary Hellen sugeriu, estendendo o último lençol sobre um dos cantos da horta.

— Vá buscar uma faca. Ficarei aqui para afastá-los. Mary Hellen correu, agitando os braços para manter os insetos longe dela, mas

sem conseguir deixar de trombar com eles. Ouviu o som do mugir assustado de Maddie, do lugar onde a vaca estivera pastando. Os porcos guinchavam no cercado. Os cavalos resfolegavam, lamuriavam-se e sacudiam os arreios.

Mary Hellen entrou correndo na residência, e o barulho de seus passos ecoou na escada de terra. Estava escuro. Onde estaria a faca?

Estreitou os olhos e procurou em cima da mesa. O fogão. Lá. Agarrou o cabo de madeira e em segundos subiu os degraus e, do lado de fora, bateu a porta com força. Rodeou a casa correndo e chegou à horta.

Estacou, confusa, ao ver o marido. Beauregard estava no centro dos canteiros e ignorava os gafanhotos apinhados em seus ombros e mangas.

O que havia de errado? O que ele fazia ali?Mary Hellen ergueu as saias e aproximou-se. O brilho amarelo do sol estava se

tornado cinza.Ela escutou um zumbido muito alto e sentiu uma forte palpitação. Beauregard

empalideceu.Mary Hellen fitou o olhar parado do marido. Sem saber do que se tratava, virou-

se devagar para ver o que atraíra a atenção de Beauregard.— Oh, não!Uma nuvem diferente movia-se, vinda do oeste, muito colorida para ser de

chuva ou tempestade de poeira, muito escura para ser nevoeiro. Também avançava depressa demais, como que movida por uma energia sobrenatural, voando muito alto, até bloquear o sol.

Mary Hellen aproximou-se de Beauregard, que a abraçou pelos ombros.— Isto não pode estar acontecendo — gemeu, desconsolado.

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— O que é, Beauregard?Aparentando calma, ele levou-a para fora da horta.— Acho melhor você entrar.Mary Hellen parou e desvencilhou-se dele.— Mas o que é? O que está havendo?— E uma invasão de gafanhotos — respondeu, sem tirar os olhos do céu escuro.

CAPÍTULO XVIII

Beauregard fitou a densa nuvem de acrídeos voar sobre o campo de trigo. As espigas permaneciam imóveis, como se pressentissem o perigo. Dentro dos limites do bando imenso e escuro, tudo rodopiava como flocos de neve no caos de uma tempestade de inverno.

Shadow latia, e Mary Hellen e Beauregard continuavam atônitos, hipnotizados, fixos na massa adejante5 e alvoroçada. Aquilo rugia como um incêndio na pradaria.

Os sons produzidos eram os de raspar e crepitar incessantes, acompanhados de uma vibração estridente em conseqüência do atrito dos fêmures com as asas.

Após alguns momentos, Beauregard emergiu de sua estupefação e começou a puxar Mary Hellen de volta para o abrigo do lar.

— E a safra?! — ela gritou, atordoada com a invasão que lhe atingia a alma.— Cortarei o que puder. Mary Hellen parou.— Vai lutar contra eles?— Da melhor forma que puder. Dê-me a foice.— Vou ajudá-lo.Beauregard fitou-a por um segundo de depois pegou-a pelo braço.— Não. Fique dentro de casa e feche tudo.— Eu fecharei e depois voltarei para fazer o que for possível.De repente, as pragas vieram para cima deles, voando de encontro ao rosto e

cravando-se nas roupas. Mary Hellen deu um grito agudo e agitou os braços para defender-se.

— Mary Hellen, não acho que...— Você precisa de meu auxílio!Surpreso com a força de vontade da esposa, Beauregard percorreu o terreiro

com o olhar. Os cavalos, ainda atrelados na carroça, estavam assustados e inquietos. Os porcos amontoavam-se dentro do cercado. Beauregard fitou Mary Hellen.

— Muito bem. Corte o que puder da horta. Leve os animais para dentro do celeiro e feche as portas. Vou apanhar a foice para cortar milho. Começaremos por ali.

— E o trigo?

5 Adejar - Mover as asas para manter-se em equilíbrio no ar; bater as asas; voar.69

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— Não podemos estar em dois lugares ao mesmo tempo. Vá! — Deu-lhe um ligeiro empurrão nas costas.

Mary Hellen correu para o estábulo, esmagando insetos sob os pés a cada passo. Queria trancar tudo antes que as pestes invadissem o galpão. Gritou para os porcos, que guinchavam e resfolegavam, e conduziu-os para dentro. Então, bateu e trancou a porta.

Depois, correu para o lado do terreno onde Maddie se escondera, perto do cocho de água, mugindo e pisoteando o solo.

— Tudo vai dar certo, Maddie.Mary Hellen levou a vaca para o celeiro e deu uma pancada amigável no traseiro

do animal. De novo, fechou a porta e baixou a tramela.Fez o mesmo com os cavalos.Qual o próximo passo?Um gafanhoto bateu-lhe no olhos.— Sai! — Deu-lhe um tapa e esfregou o local dolorido. Percebeu Shadow um

pouco mais adiante.— Venha até aqui, garoto! Venha!O cão correu e parou a um metro de Mary Hellen. Ergueu as orelhas, como se

pressentisse que ela pretendia trancá-lo, afastando-o do dever de guardião. Sentou-se.— Shadow! — tornou a chamá-lo, com a paciência no limite. — Venha cá! —

Bateu palmas e abriu a porta. — Depressa! Não tenho tempo a perder!Depois de mais alguns momentos de hesitação, o cão entrou correndo no

estábulo.— Bom menino. — Afagou-o e fechou tudo de novo, ouvindo Shadow latir em

protesto.A horta.Ela correu em direção à casa, em busca de faca e baldes. As botas batiam

ritmicamente no piso que se tornara ondulante por estar coberto de insetos, que se esmigalhavam com ruído.

Entrou depressa na casa e, na volta, parou antes de sair. Beauregard insistira para Mary Hellen permanecer lá dentro e a tentação de obedecê-lo era grande. Ela respirou fundo e procurou reunir toda sua coragem para prosseguir.

Ele precisava da ajuda dela. Afinal, aquela fazenda também era de Mary Hellen. Eram donos de uma safra que precisava de todo o auxílio que pudessem dar.

Com energia e vontade renovadas, ela abriu a porta. Um vento quente das malditas criaturas ameaçou entrar.

— Não! — Mary Hellen agitou as mãos contra o bando que zunia.Saiu e bateu a porta. Os insetos colidiam com ela e grudavam na roupa. Agarrada

na faca e nos baldes, correu para a plantação de hortaliças e legumes.Descobriu, horrorizada, que os panos estendidos estavam quase invisíveis,

cobertos pelos gafanhotos. Mary Hellen arrancou um cobertor do chão e uma lufada

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deles foi lançada no ar. Logo ela encheu dois baldes com os vegetais que restavam. Deixou as batatas, esperando que estivessem a salvo embaixo da terra.

Levou tudo para casa e, depois de trancá-la, correu para o milharal.Beauregard parecia exausto. O rosto estava molhado de suor, e o chapéu,

enterrado em sua cabeça.— Conseguiu salvar alguma coisa na horta? — ele quis saber, enxugando a testa

com a manga.— O que sobrou já levei para casa e os animais estão no celeiro.— Por que você não amarra os caules que eu ceifei e empilha-os, um por cima

dos outros?— Não podemos deixá-los aqui.— E muito longe para levar tudo, mesmo com a carroça. Seriam necessárias

várias viagens. Se as hastes estiverem amontoadas em blocos, alguma coisa se salvará.Mary Hellen concordou e começou a juntar o que caía ao lado de Beauregard. As

plantas verdes desapareceriam rápido. Seria impossível resguardá-las das mandíbulas ávidas.

Antes de eles conseguirem empilhar um décimo da safra, o sol começou a declinar.

— Está ficando escuro. O que faremos? — Mary Hellen procurava enxergar por entre a nuvem de insetos entre eles.

Beauregard parou de cortar a aproximou-se, coberto de suor e terra.— Está exausta. Olhe só para você.Mary Hellen baixou as pálpebras, disposta a mostrar-se forte.— Por que não vamos para dentro?— Por mim, não precisamos parar, Beauregard.— Não?— Eu posso muito bem prosseguir.— Tenho certeza de que sim, minha querida, mas eu não agüento mais."Minha querida?!"— Vamos. — Beauregard segurou-lhe a mão. — Precisamos descansar e estou

com fome.Mary Hellen deixou-se conduzir pelos campos, em direção ao lar. Quando eles

passavam pelo terreiro, Shadow começou a latir dentro do celeiro.— Somos nós, meu amigo! — Mary Hellen falou alto, para acalmar o cão. —

Seria melhor levá-lo para dentro de casa esta noite. Shadow vai ficar louco dormindo ali com aqueles gafanhotos malditos.

De repente, ela deu-se conta de uma verdade. Beauregard também dormiria dentro do casebre.

Um tremor de aflição tomou conta de Mary Hellen. Onde Beauregard iria dormir? Na cama com ela? Ou no chão, com Shadow? Que ridículo ter tais idéias em uma situação crítica como aquela!

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Será que ele também estaria refletindo sobre o assunto?, ela perguntou-se.— Vou buscá-lo — Beauregard afirmou. — Por que você não vai para dentro e

prepara alguma coisa para comermos?O olhar de Beauregard deixou claro que ele não pensava em providências

noturnas. A colheita era a sua preocupação. E ele estava perdendo a esperança.Mary Hellen correu para dentro, aflita para escapar da praga terrível.Quando Beauregard voltou com Shadow, Mary Hellen colocava a vasilha com o

guisado de carne de porco em cima da mesa. Nesse meio tempo, ela matou uns doze gafanhotos. Amarrou um pano molhado na testa e tentou ajeitar os cabelos revoltos.

Shadow sentou-se perto do fogão. Beauregard tirou 1 o chapéu, com ar solene.— Por quanto tempo isso ainda vai durar? — Mary Hellen quis saber.— Não sei. — Beauregard sentou-se à mesa e esfregou os olhos.O ambiente permanecia em silêncio, em contraste com o barulho ensurdecedor

de fora.— Acha que eles atacarão o trigo?— Posso apostar que sim.Mary Hellen serviu o guisado e sentiu o desânimo do marido. Beauregard tinha

necessidade de ficar quieto. De comer sem falar. Provavelmente ele não sabia como contar que perderiam os lucros da colheita do trigo, que não mais lhes proveria o sustento no inverno. Ela também não estava certa de querer ouvir aquilo.

Preocupada, ela tirou água do balde com as xícaras e deu uma para Beauregard. Ele tomou um gole e fez urna careta de nojo.

— Ah!Mary Hellen encolheu-se e examinou sua chávena.— Oh, não! — Arrepiou-se. — Eu mantive os que estavam voando afastados do

balde. Pelo jeito, alguns se afogaram.— Não é sua culpa. — Beauregard largou o recipiente.— Posso fazer café. Assim dará para disfarçar um pouco o gosto. O fogo já está

aceso.Mary Hellen preparou o bule e, enquanto ele esquentava, sentou-se para comer.— Acho que podemos passar sem orações esta noite, Mary Hellen. Não vejo

muito coisa para agradecer. A época não podia ser pior. Se esta praga houvesse esperado até a próxima semana, a segadeira já estaria aqui. Em dois dias os vinte acres estariam cortados e enfeixados.

Mary Hellen sentiu o desânimo na voz do marido.Apesar disso, ele estava calmo, o que a preocupou. Talvez Beauregard estivesse

pensando em mandá-la de volta para Boston. Bem, também não era para tanto... — Não devemos nos lamentar sobre o que não podemos mudar. — Ela fechou os olhos e juntou as mãos em prece. — Precisamos rezar agora, mais do que nunca. Obrigada, meu Deus, por dar-nos a força necessária para salvar um pouco de milho e de verduras. Obrigada por manter-nos a salvo de tudo isso. E obrigada pelo jantar. Amém.

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Mary Hellen ergueu as pálpebras e viu que Beauregard a fitava, estático, boquiaberto.

— Amém — ele disse, por fim.— Agora podemos comer.Esfomeados, eles não perderam tempo. De vez em quando, um dos gafanhotos

desgarrados do bando pousava na mesa e encontrava a morte sob a mão pesada de Beauregard.

— Como será que os Whitiker estão se arranjando, Beauregard? Acha que eles também sofreram a invasão?

— Espero que não. Howard tem uma safra maior, portanto, mais a perder.— Bem, mas eles têm filhos. E Frank já tem idade para dar uma boa ajuda.— Sim, é claro. — Beauregard fez uma pausa. — Pobre Mollie... Ela não iria

gostar muito de ver o que acontece. Odeio até pensar nisso.O coração de Mary Hellen confrangeu-se ao refletir no pavor que a pobre menina

sentiria.— Espero que ela esteja bem. Beauregard terminou a primeira rodada.— Ainda tem mais?— Sim. Eu pego para você. — Mary Hellen ergueu-se. Quando tornou a sentar-

se, Beauregard esfregou a testa e suspirou.— Não tenho boas notícias. Antes de entrar, fui até a horta, tirar as roupas de

cama que deixamos lá. Não sobrou muita coisa.— Das hortaliças?— Não, Mary Hellen. Dos cobertores e lençóis. Mary Hellen cobriu a boca com a

mão e fitou o colchão da cama, sem nada por cima.— Aquelas coisas miseráveis mastigaram por cima dos tecidos — Beauregard

acrescentou — e deixaram tudo em farrapos.— Eram os únicos que tínhamos...Shadow levantou a cabeça e ganiu para ela, como se pretendesse consolar a

dona.— Eu sei, Mary Hellen. Você terá de cobrir-se com as roupas, até podermos

comprar outras.Mas sem trigo para colher, como poderiam comprar roupa de cama e o básico

necessário para sobreviver no inverno?Beauregard empurrou a cadeira para trás.— Vou tirar o leite da Maddie e dar água para os cavalos.— E o café?— Quando eu voltar — ele respondeu, pondo o chapéu. — Pode conservá-lo

quente para mim?— Está bem.Beauregard saiu com Shadow, e Mary Hellen ficou lavando a louça do jantar.

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Ordenhar Maddie era tarefa de Mary Hellen. Mas para falar a verdade, ela não estava com coragem de ir para fora outra vez. Com a escuridão, ela não poderia ver os gafanhotos.

Somente poderia ouvi-los sendo esmagados debaixo dos pés e senti-los batendo em suas faces.

Um pouco depois, Beauregard voltou, trazendo um balde com leite. Shadow vinha atrás, abanando o rabo. Beauregard deixou o vasilhame no chão e a vida dentro da casa pareceu quase normal. Mary Hellen espiou dentro e viu uma camada de insetos debatendo-se em pânico, nadando uns sobre os outros, para tentar salvar-se do afogamento.

— Ai! — ela gemeu, arrepiada.Beauregard chegou perto e tirou-os de dentro com uma caneca.Mary Hellen sentiu aflorarem as lágrimas contidas durante o dia. Pensando bem,

eram as mesmas contra as quais vinha lutando, desde que descera do trem. Todas as vezes que o marido a encarava, decepcionado, ela tivera vontade de chorar. Mas não o fizera. E nem o faria naquele momento.

As coisas poderiam ser piores, ela consolou-se, embora não pudesse imaginar nada mais terrível de que uma praga daquelas.

Ele levantou a cabeça, ao sentir o olhar fixo de Beauregard. Ele a fitava, como se pedisse perdão.

Desculpas por quê?, ela perguntou-se. Por causa dos gafanhotos? Pela safra perdida? Pelo inverno que estava à porta? Ou seria por tudo que se passara entre eles?

— Não posso acreditar que isso esteja acontecendo. Quando eu a trouxe para cá, não imaginei que passaríamos por isso.

Mary Hellen não se conteve mais, ao ouvir as palavras de Beauregard. Como ela desejava ouvir esse tipo de comentário por parte do marido! Uma palavra que demonstrasse sua preocupação com ela. Queria ver de novo o homem gentil que fora com ela à sala do juiz no dia do casamento. Um homem que se apressara em sentá-la e abaná-la...

E então, eis que ele ressurgia.— Não é tão ruim assim, Beauregard.— Tenho de voltar lá para fora. Tentarei salvar o que possa ter sobrado. Você

não precisa vir. Fique aqui e procure descansar um pouco.Mary Hellen pensou no marido sozinho na escuridão, cortando os pés de milho e

lutando contra os insetos vorazes. Com o passar das horas ele perderia a coragem e a esperança. E ela decidiu que não o deixaria. Não naquele momento. Também iria, apavorada ou não, e carregaria os caules ou que houvesse sobrado deles, para salvar alguma coisa.

— Irei com você.— Não precisa.

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Apesar da negativa, Mary Hellen viu a gratidão estampada no olhar cansado de Beauregard. Pela primeira vez, ele não estava desapontado com a esposa.

A apreciação dele trouxe novo alento a seu corpo exausto. Mary Hellen pegou o gorro, vestiu-o, amarrou com firmeza debaixo do queixo e encarou o marido, desafiadora.

— Tente impedir-me, se puder.

CAPÍTULO XIX

Mary Hellen e Beauregard trabalharam até a meia-noite no milharal. Ceifaram os caules que haviam permanecidos inteiros e amarraram tudo em feixes seguros. Não fizeram comentários, mas ambos sabiam que seria pequena a chance da colheita sobreviver àquela noite.

Esgotados e sedentos, eles voltaram à pequena e escura casa de barro. Beauregard nunca imaginara que aquele lugar iria parecer-lhe tão agradável e aconchegante. Enquanto Mary Hellen acendia a lamparina, ele saiu para encher uma caçamba com água de uma das barricas. Ele teve de tirar os gafanhotos com a mão e entendeu que a água ficara com gosto amargo. Mas sua boca estava tão seca, que beberia de uma só vez um galão de leite azedo.

Ele entrou em casa e ambos encheram as xícaras. Mary Hellen gemeu pelo mau gosto da água, fazendo uma careta engraçada.

— Será que a água do ribeirão está com o mesmo gosto? — ela indagou, sem esperança que não fosse verdade.

— Provavelmente.— E voltará ao normal?— Isso deve acontecer mais cedo ou mais tarde. Um acrídeo soltou-se do forro e

caiu sobre os cabelos de Mary Hellen, sem que ela notasse. Beauregard colocou a xícara na mesa e aproximou-se para espantar o inseto. Ele notou o olhar de surpresa da esposa. Quanto mais chegava perto, mais ela arregalava os olhos castanhos. Ele refletiu, com pesar e com um remorso estranho, se ela o temia.

Beauregard espantou o invasor e Mary Hellen nem mesmo piscou.A maioria das mulheres teria gritado ou feito coisa pior. Mas Mary Hellen havia

saído fortalecida dos acontecimentos, lutando para salvar os gerânios picados e o milho infestado.

Beauregard fitou-a e viu-lhe os olhos redondos como duas luas cheias.— Alguma coisa errada, Mary Hellen?— Estou apenas cansada.Beauregard estava perto de Mary Hellen o suficiente para sentir-lhe o aroma.

Dessa vez não era de água de rosas. Era, na verdade, o cheiro dela mesma. Ele fechou os olhos, para desfrutar daquele instante precioso.

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— Eu nada teria feito, se não fosse você, Mary Hellen. Com um gesto inesperado, ela acariciou-lhe o rosto com a mão suave.

Em resposta, Beauregard beijou-lhe a palma da mão quente. Beauregard teve vontade de aninhar-se no calor dela e ali permanecer para sempre. Não queria enfrentar a praga, o campo e nem a devastação que estaria à sua espera na manhã seguinte. Para sua grande surpresa, ele desejava apenas Mary Hellen.

Espantado por aqueles sentimentos, Beauregard soltou a mão da esposa e deu um passo atrás. Era evidente que estava procurando apenas um consolo, motivado pelos acontecimentos terríveis daquele dia. Na manhã seguinte, a safra poderia estar destruída. Fazer amor com Mary Hellen não traria nada de volta. Isso somente o mergulharia no mar negro do sofrimento, caso ela resolvesse abandoná-lo.

E depois dessa experiência penosa, seria bem provável que isso acontecesse.Mary Hellen manteve-se impassível, mas Beauregard notou que ela ficara

magoada por ele ter-se afastado.— Você está bem? — ela balbuciou. Beauregard anuiu, sentindo-se péssimo. Lembrou-se de que tinha um

compromisso consigo mesmo. O de manter uma distância emocional entre eles, pelo menos até tornar-se mais confiante em relação a Mary Hellen.

— Nós conseguiremos, Beauregard.Ele encarou-a e, pela primeira vez, notou a grandeza da energia de sua mulher.

Apesar do que pensara anteriormente, viu nela a parceira, a companheira. Sua mulher. Como impedir os sentimentos que começavam a crescer dentro de seu coração? E de seu corpo? Ela era doce, sensível, generosa e serena. As aflições daquele dia haviam sido frustrantes. E ao lado de sua esposa, a esperança renascia.

— Mary Hellen, amanhã cedo não terá restado mais nada. A colheita de trigo estará perdida.

Ela concordou, com um gesto de cabeça, e encostou o rosto no peito musculoso do marido.

Em vez do zumbido atordoante e da crepitação do enxame destruidor, ele ouviu só o som da própria respiração, leve e vagarosa. Admitiu que estava sentindo tudo o que jurara não querer de novo.

— Precisamos dormir. — Beauregard inclinou-se para trás na cadeira ao lado da mesa. — Não vai resolver nada passarmos a noite preocupados. Teremos muito o que fazer, logo cedo.

Mary Hellen não queria imaginar como seria o dia seguinte. E nem o que aconteceria naquela noite, pois estavam juntos e sozinhos, diante de uma cama estreita.

Sem saber o que fazer, ela fitou Beauregard e lutou contra o aperto que sentiu no coração. Desde a malfadada noite de núpcias, eles ainda não haviam dormido juntos. Na verdade, nas duas vezes em que ela entregara seu corpo a um homem, o resultado fora desastroso.

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Não seria melhor esperar até Beauregard perdoá-la e superar a sua raiva?, Mary Hellen refletiu, mordendo a unha do polegar.

Ela e Beauregard haviam feito muitos progressos e ela não queria recordá-lo do começo doloroso, arriscando-se a destruir o que já fora conquistado.

Ao perceber que suas mãos tremiam, ela escondeu-as no colo, debaixo da mesa.Beauregard se ergueu e coçou a cabeça.— Acho que dormirei no chão. A cama é muito pequena para dois.A frustração tomou conta de Mary Hellen. Todo o seu raciocínio nervoso

pareceu-lhe uma tolice. Beauregard nem mesmo queria dormir com ela.Mary Hellen ficou em pé e foi sentar-se na beira da cama, desejando ter uma

manta para cobrir-se. Tirou os grampos dos cabelos e deixou-os sobre o criado-mudo rústico, enquanto Beauregard deitava-se no chão duro, perto da mesa. No mesmo instante, Shadow enrodilhou-se perto do dono e Mary Hellen não pôde deixar de invejar o calor dos corpos que eles partilhavam.

Ela resignou-se a seu leito vazio, pegou a camisola dentro de sua valise e usou-a para cobrir-se. Logo adormeceu, em um sono inquieto.

Na manhã seguinte, o barulho das orelhas de Shadow, que batiam por ele estar se sacudindo, acabou por despertar Mary Hellen.

Beauregard mergulhava a xícara dentro do balde de água e bebeu tudo de olhos fechados, em virtude do sabor ruim do líquido.

— Posso fazer café — Mary Hellen ofereceu-se. — Eu não vi que você estava acordada. — Beauregard deixou a xícara em cima

do fogão.— Acabei de abrir os olhos.Mary Hellen tirou a camisola que usara para cobrir-se e saiu da cama, com a

mesma roupa da véspera. Esforçou-se para ignorar Beauregard que a olhava, enquanto ela enchia a fornalha com estrume seco de vaca. Semiconsciente, ela riscou um fósforo.

— Seus cabelos... — ele comentou, acariciando Shadow.Mary Hellen assustou-se e percebeu que ainda segurava o fósforo aceso. Jogou-o

rapidamente no combustível, sentindo o rosto em fogo.— ...você sempre os usa presos. Ela virou-se.— Eu os prenderei em seguida.— Fica bem com eles presos ou soltos, Mary Hellen — concluiu, ainda

esfregando o pêlo do cachorro.— Você já foi lá fora, Beauregard?— Não. Pela janela não dá para ver nada. Está muito escuro. Acho que vou

ordenhar Maddie, enquanto você côa o café.— Deixe que eu faço isso. Ainda vai demorar um pouco para o fogão esquentar.Beauregard pôs o chapéu e fitou-a.

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— Bem, então iremos juntos. — Fez um gesto para ela segui-lo.Eles subiram os degraus e chegaram à porta. Beauregard levantou a tranqueta e,

antes de abri-la, virou-se para Mary Hellen.— Você fez uma boa prece ontem à noite?— Fiz — ela respondeu, aflita.Beauregard empurrou a porta devagar. Não foi a visão do que restara que deitou

por terra todas as esperanças. Foi o som sinistro. Um zumbido monótono e ensurdecedor penetrou nos ouvidos e na alma de ambos.

Beauregard deu um passo atrás e bateu a porta. Ele não disse uma só palavra. Deixou-se ficar ali, de cabeça baixa, agarrado na tranca.

— Sinto muito. — Mary Hellen tocou-lhe no ombro. Seu marido soltou um suspiro profundo e fitou-a, com extrema preocupação.— Mesmo com esperança de que a praga já houvesse debandado, para ser

sincero eu não contava com isso. Você ainda quer ir até o celeiro?— Quero — afirmou, corajosa.Mary Hellen precisava estar junto do marido e ver o que restara da fazenda

deles.Beauregard tornou a abrir a porta e pegou Mary Hellen pelo cotovelo. Ele ergueu

o braço para proteger o rosto e ela fez o mesmo. Uma bruma rosa coloria o horizonte, mas não chegava a iluminar o céu. Enquanto caminhavam esmagando insetos mortos, milhares deles voavam ao redor deles, devorando com avidez tudo o que encontravam.

Beauregard e Mary Hellen chegaram até o celeiro e entraram rápido. Os animais estavam inquietos. A praga invadira a pequena estrutura.

Beauregard acendeu a lamparina, e o recinto iluminou-se.— Bom Deus! — ele sussurrou.Mary Hellen ficou boquiaberta.Os gafanhotos estavam em toda a parte, devorando e consumindo. O cabo de

uma enxada que estava ao lado da entrada fora mastigado. Várias partes dos arreios haviam sido comidas e ainda havia insetos refestelando-se com elas. As cordas estavam reduzida a pedaços. Um velho chapéu de palha que ficava pendurado em um pilar perto da baia de Maddie convertera-se em tiras.

Dois insetos bateram no rosto de Mary Hellen, que espantou-os, enquanto Beauregard continuava a fitar as baias, atônito.

As pestes haviam devorado o feno. Estavam sobre as costas dos cavalos e corriam pelas crinas longas.

Ele pegou um dos arreios nas mãos e examinou-o.— Ainda podem salvar-se, Beauregard?— Creio que sim, mas é melhor levá-los para dentro. — Entregou-o para Mary

Hellen. — Está muito pesado?Era mais do que ela esperava que fossem, mas daria um jeito.

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— Dá para levar.— Por que você não vai para casa? — ele indagou, com a frustração estampada

nos olhos verdes. — Depois de ordenhar Maddie, vou espiar a plantação, que não deve estar com aspecto muito agradável de se ver.

Angustiada, Mary Hellen concordou e saiu do galpão. Fez o caminho de volta, de olhos semicerrados por causa dos acrídeos insuportáveis e sentiu suas expectativas afundarem. Viera de Boston com o sonho de uma vida no campo. Com certeza, dali para a frente não haveria mais sonhos.

Mas assim mesmo, esperava que Beauregard não desistisse de tudo. E como conseqüência, não a mandasse embora.

CAPÍTULO XX

Os gafanhotos permaneceram por mais dois dias, fazendo um banquete com tudo o que havia na propriedade. A noite, Beauregard estirava-se no chão, ao lado de Shadow. Mary Hellen, constrangida, dormia na cama. Várias vezes ela havia tirado a cabeça do travesseiro por causa de pesadelos terríveis, nos quais a multidão de insetos invadia seu leito. Então ela descobria que a pequena casa feita de terra era um verdadeiro abrigo protetor. O inimigo não entrava ali.

No terceiro dia, Mary Hellen e Beauregard acordaram ansiosos para ver se a calamidade já abandonara a fazenda. Mas assim que o dia clareou, a nuvem apenas mudara de lugar. Na hora do almoço a praga foi embora tão rapidamente como chegara, deixando para trás um milharal destruído e campos vazios onde uma vez fora plantado o trigo.

Também nada restara da horta, onde o solo seco fora adubado com insetos mortos. A água dos barris parecia sopa de gafanhotos e, com certeza, tivera o seu sabor piorado. Beauregard levou-os até o jardim das hortaliças e regou a terra com aquele líquido amargo. Ele assegurou a Mary Hellen que os acrídeos seriam um ótimo fertilizante para a nova plantação que faria.

Ao entardecer, eles estavam sentados em silêncio à frente de um prato de panquecas de fubá e melaço de sorgo6. Tentavam não pensar em como iriam sobreviver ao inverno, sem os lucros provenientes da venda da safra. Mary Hellen queria esquecer tudo por aquela noite e rezou para que, algum dia, voltasse a ser feliz.

— Como será que está o regato? — Mary Hellen quis saber, para não pensar no pior.

Beauregard tomou um gole de café, a única coisa que dava para beber sem o gosto dos insetos. Conservariam o leite para fazer manteiga e vender, embora isso não rendesse muita coisa.

— Não sei. Ainda não fui ver. Por quê? 6 Gênero de gramíneas tropicais do Velho Mundo, p. ex., a Sorghum vulgare ou milho-zaburro, ou milho-da-guiné

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Mary Hellen suspirou.— Eu adoraria tomar um banho. — Estava pensando na mesma coisa.— Mesmo?— Sim. Por que não vamos até lá, depois do jantar? Mary Hellen anuiu, cansada demais até para falar. Terminaram de comer, e Mary

Hellen tirou os pratos da mesa. Desamarrou o avental e dobrou-o sobre a cadeira.— Está pronto?— Estou pronto há três dias. Compartilharam algumas risadas muito bem-vindas, subiram os degraus e

abriram a porta. Mary Hellen fitou o pôr-do-sol e a luz magenta ofuscou-lhe o olhar.— Ah... — Beauregard deu um suspiro e parou, já no lado de fora. De olhos

fechados, ele inspirava a brisa quente do anoitecer. — Você está sentindo isso?Mary Hellen fitou-o de esguelha, admirando o contorno angular de seu rosto.

Beauregard tinha um nariz perfeito e uma covinha atraente no queixo quadrado.— É maravilhoso.— Tudo tão quieto e pacífico...— É como estar no céu.Mary Hellen inspirou o ar, como se tomasse uma bebida para matar a sede.

Nisso, ela notou que Beauregard mantinha o olhar fixo para o local onde fora o campo de trigo.

Ela aproximou-se e tomou-lhe a mão. O calor dele atravessou-lhe o braço e foi direto a seu coração. Ela sentiu que o marido apertava-lhe os dedos com suavidade. Por um instante, Mary Hellen e Beauregard permaneceram unidos por um liame7

invisível que permitia a comunicação das emoções desconexas de ambos. E eles estavam conscientes do que acontecia.

Mary Hellen sentiu um arroubo de alegria e conduziu Beauregard para a frente. Haviam saído para celebrar o fim da praga e não para lamentar o que fora perdido.

— Vamos ver como está o riacho. Atravessaram os campos sem dizer nada, no meio das gramíneas mortas e dos

tocos de milho sem folhas. Quando chegaram ao ribeirão, o sol já se escondera atrás dos cômoros8 arredondados. O céu apresentava uma tonalidade intensa de azul. Um momento raro e de curta permanência, antes do dia render-se à noite.

— Parece que está limpo. — Beauregard parecia agradavelmente surpreso.A água cristalina seguia seu curso vagaroso e para baixo, na direção da corrente.

Havia gorgulhos nos lugares rasos e redemoinhos, nos mais profundos.— Graças ao bom Deus!Antes de Mary Hellen dar-se conta do que acontecia, Beauregard tirou o casaco e

jogou-o sobre um arbusto sem folhas. Arrancou a camisa branca pela cabeça e descalçou as botas sem sentar-se, equilibrando-se ora num pé, ora no outro.7 Aquilo que prende ou liga uma coisa a outra; ligação8 Pequena elevação de terreno; duna, combro

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— Não olhe, se não quiser. Mas não estou em condições de preocupar-me com sensibilidades delicadas. A água está tentadora demais.

Beauregard jogou as duas botas no chão e começou a abaixar a calça. Atônita e de olhos arregalados, Mary Hellen viu-o sair de dentro da roupa. A escuridão velava a imagem dele. Ela não soube afirmar se a fraqueza nas pernas era provocada por gratidão ou por desapontamento.

No mesmo instante, ouviu uma forte pancada na água quebrando a quietude da escuridão.

— Ah! — Beauregard gritou, ao vir à tona.As ondas de água se espalharam pela ribanceira e obrigaram Mary Hellen a

recuar.Beauregard sacudiu a cabeleira molhada, lançando pingos para todos os lados.— Entre, Mary Hellen. Está uma delícia!Ele nadava, observando e esperando que ela se decidisse a tirar a roupa. Uma

agitação ardente cresceu dentro dela. Era excitante e assustador ao mesmo tempo.Sem sair do lugar, ela começou a tirar os grampos, um a um. Sacudiu a cabeça e

os cabelos pesados caíram nas costas. A falta de luminosidade ainda não era total para cobrir-lhe a nudez. Beauregard continuava a bater os braços água, sem desfitá-la.

Mary Hellen desabotoou o corpete e hesitou, segurando-o fechado. A aflição fazia o estômago revolver-se. Nunca antes tirara a roupa na frente de um homem.

Ele deu uma braçada para trás, mas manteve os olhos fixos nela.Deus do céu, aquilo era demais. O coração disparava e fazia-a tremer. Ele teria

de virar-se.Mary Hellen encarou-o, envergonhada por ter de pedir, mas com medo de não

fazê-lo.— Você se importa de não olhar? — Ela ficou vermelha e deu graças por estar

escuro.Beauregard parou de nadar, afundou até os lábios ficarem submersos na água,

borbulhando. Depois tirou a cabeça da água.— Eu me importo, sim.Surpresa, Mary Hellen agarrou o corpete desabotoado. Não sabia o que fazer.— Não fique tão chocada. Afinal, somos casados ou não?O tom de brincadeira dele descontraiu-a um pouco, mas não de todo.Por que sugerira aquilo?, ela repreendeu-se. Nem por um instante imaginara o

que iria acontecer. Só pensara em tomar um banho.— Está bem. — Mary Hellen tentou não mostrar-se apreensiva.Deslizou a parte superior do vestido pelos ombros, decidida a nadar de camisa e

calções. De qualquer maneira precisava lavá-los e não iria esperar até sexta-feira, dia de lavar a roupa.

Sentindo-se observada, ela saiu de dentro da saia e dobrou-a com todo o cuidado perto do casaco dele. Depois desenganchou, as presilhas do espartilho e

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atirou-o no chão. Soltou os cordões das botas e jogou-as para um lado.Mary Hellen entrou na água até a cintura, com pressa de esconder-se sob a

proteção da correnteza branda e escura. Depois mergulhou. Um frescor delicioso envolveu-a. O barulho abafado da água nos ouvidos impedia que ela ouvisse outros sons. Era como se lavasse até os problemas...

Ela emergiu rápido, interrompendo o silêncio reinante, e respirou fundo. Gotas acetinadas escoriam por seu rosto e pescoço.

— Uma delícia, não é mesmo, Mary Hellen?— Divino, na verdade.— Gostaria que pudéssemos ficar aqui para sempre.— Mas não podemos. — Mary Hellen sorriu, compreensiva.— Eu sei.Nadaram um ao redor do outro por um tempo, aproveitando o silêncio.— O que vamos fazer? — Mary Hellen perguntou, um pouco mais tarde.Beauregard afastou os cabelos molhados do rosto.— Posso plantar trigo de outono, mas não estará em condições de ser colhido

antes de novembro. O que não será suficiente para manter nossas provisões de inverno.

— Não há mais nada que possamos fazer? Beauregard aproximou-se, nadando.— Estive pensando em...A hesitação dele suscitou as dúvidas de Mary Hellen.— Eu poderia achar trabalho em Nebraska na estação de colheita, se é que lá

eles também não foram atacados pelos gafanhotos. Investiria meu pagamento aqui e...— E deixar-me sozinha? — Mary Hellen interrompeu, com evidente desagrado.— Seria por poucos meses.— Poucos meses! Não. De jeito nenhum!Mary Hellen deveria ter imaginado que o rompante iria desagradá-lo. Afinal,

quem era ela para decidir o que deveria ser feito? Entretanto, uma réstia de luar iluminou o rosto do marido e sua expressão mostrava que ele gostara do comentário.

Será que era isso mesmo?Sem tirar os olhos dele, Mary Hellen mergulhou até as orelhas.— Precisamos de dinheiro para os suprimentos de inverno e para a comida, Mary

Hellen. Não temos nem mesmo um tostão para comprar cobertores. Nós congelaremos por aqui até fevereiro.

Mary Hellen só queria afundar nas profundezas da água e deixar-se levar pela correnteza escura. Não queria nem pensar em ficar sozinha, sem Beauregard.

— Mary Hellen? — Beauregard nadou para mais perto.— Não posso ir com você? Beauregard virou a cabeça de lado, com jeito de quem se desculpava.— Isso é impossível. Decerto terei de dormir em alojamentos rústicos, junto com

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outros homens. Por outro lado, você tem de ficar tomando conta da fazenda.Ela teria de ficar sem ele. E a saudade tomaria conta de seu coração. Ela pensou

nisso, sem entender bem o significado de tudo aquilo.Beauregard mergulhou e logo voltou à superfície, atirando os cabelos para trás.— Eu não quero que você vá, Beauregard. Ele parou e os olhos verdes brilharam,

maravilhados.— Não vejo nenhuma outra solução. Talvez fosse pretensão, talvez desespero, mas fosse o que fosse, tinha de haver

uma resposta.— Sei de uma. Venderei minha pérolas. Beauregard nada disse. Apenas encarou-a.— Você me escutou?— Sim, Mary Hellen, mas não vou deixá-la fazer isso. Ela esperava por essa resposta, mas tinha de convencê-lo.— Por que não? Não precisarei delas aqui. Prefiro ficar sem o colar, do que sem

você.Beauregard nadou em círculos, com sua mulher no centro.— Você me surpreende.— Vai pensar nisso?— Não vai se desfazer de uma jóia, Mary Hellen. Não posso concordar. Você

merece ter uma coisa bonita."Eu mereço ter uma coisa bonita", ela repetiu para si mesma, encantada.Eles se entreolharam por alguns segundos, até Mary Hellen sentir-se

envergonhada e abaixou o olhar. Ela nadou mais um pouco com a cabeça dentro da água e deixou a discussão para trás. O céu escurecera mais um pouco e a lua se tornava mais brilhante.

— Você já notou que as estrelas aqui cintilam mais do que na cidade? — Beauregard perguntou.

Mary Hellen olhou para cima. A água fria acariciou-lhe a parte de trás da cabeça e ela deu razão ao marido.

Um outro barulho na água quebrou o silêncio. Beauregard havia mergulhado. Inesperadamente, ele surgiu diante de Mary Hellen e segurou-lhe os quadris. Ela tentou permanecer calma, embora a pulsação houvesse se acelerado.

Ele tocou-lhe o rosto e o lóbulo das orelhas. Ela arrepiou-se inteira, quando ele brincou com os cabelos da nuca.

—Você é muito bonita.Beauregard abraçou-a e ela sentiu a evidência da excitação dele. Mary Hellen

desejou que ele a amasse como na noite de núpcias. Para senti-lo agarrado nela, ansioso, mas também preocupado com ela.

Teria ele esquecido?, ela imaginou, enquanto ele a beijava no rosto.Os pés dela, que tocavam o fundo lodoso do riacho, foram de súbito levantados

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de seu apoio. Ela apertou os ombros largos, enquanto ele a guiava para escarranchar-se nele.

Nos braços do marido, ela sentiu-se tão leve como uma folha na água. Mary Hellen não sabia bem o que deveria fazer em seguida. Seguiu seu instinto e prendeu-o pela cintura com os tornozelos.

Naquele abraço, ela sentiu-se protegida e segura.Descansou a face no ombro dele. As gotículas de água faziam-lhe cócegas na pele

e enviavam ondas de emoção para suas veias. Um fio delicado de intimidade começava a tomar conta deles. Teve medo de ele ir embora e tudo se perder, devolvendo-os ao início. E ela queria prosseguir, acima de qualquer coisa.

— Mary Hellen... — Beauregard sussurrou e fez um caminho de beijos no rosto.Beijou-lhe o nariz, as pálpebras e depois a boca. Quando os lábios se

encontraram, ela apertou-o com as pernas. O que estaria acontecendo?Beauregard se virava devagar dentro da água e acariciava-lhe as costas. Mary

Hellen tomou-lhe o rosto entre as mãos e beijou-o com ardor. Não sabia por quanto tempo aquilo iria durar e queria aproveitar cada segundo inebriante daquela união.

Beauregard ofegava, enquanto soltava os minúsculos botões da camisa de Mary Hellen. O contato suave fez com que ela engasgasse. Tudo acontecia depressa demais.

Ele afastou a cabeça.— Você quer mesmo?— Que... quero,— Tem certeza?Beauregard despertava-lhe os sentidos de uma maneira inteiramente nova.

Mesmo assim, ela estava receosa. Na primeira e última vez que isso acontecera, fora um desastre completo.

— Tenho. Estou apenas um pouco nervosa.— E por quê? Você já fez isso antes.O encanto rompeu-se. Mary Hellen sabia que era verdade, mas ele dissera aquilo

com o propósito de feri-la. Para lembrá-la do que havia feito. Beauregard queria que a esposa soubesse que ele hão esquecera a mentira.

Mary Hellen sentiu um nó na garganta, envergonhada.— Mary Hellen, não foi bem isso que eu quis dizer.— Talvez não. Mas disse.— Desculpe-me.Ela não queria mais tocar no assunto. Queria apenas voltar para casa.— Foram dias difíceis. — Beauregard voltou atrás, pela água. — Estamos ambos

cansados. Não tive intenção de ofendê-la.Mary Hellen anuiu, mas não podia encará-lo, sabendo como ele se sentia a seu

respeito. Só queria o respeito do marido, e imaginou tê-lo conseguido, naquelas longas horas de desespero.

Mary Hellen engoliu água sem querer e observou-o saindo do riacho, com a

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nudez mal visível na escuridão.— Vou para casa. Por que não vem também, antes que se resfrie?Mary Hellen saiu do riacho abraçada em si mesma, tiritando. Vestiu o espartilho

sobre a camisa molhada. Beauregard segurou o corpete para ela enfiar os braços. Enquanto ela o abotoava, ele apanhou a saia. Depois de vestidos, ele pegou-a pelo braço e ajudou-a a subir a ribanceira.

Entretanto, todas aquelas gentilezas não podiam esconder a maneira como ele a enxergava e nem como Mary Hellen ficava infeliz por isso.

CAPÍTULO XXI

Enquanto conduzia a esposa pelo campo devastado e espinhoso, no meio da escuridão, Beauregard imaginava se algum dia eles compartilhariam de um casamento feliz. Considerou que Mary Hellen tivera razão em ficar aborrecida. Ele dissera aquilo para fazê-la sofrer. De uma certa maneira, ele acreditava que ela ainda gostava do primeiro homem que conhecera. E por que não? Eles haviam terminado o relacionamento há poucas semanas.

Beauregard apertou o braço de Mary Hellen, enquanto contornavam uma pilha de caules de milho destruídos. O luar iluminava o caminho e eles continuavam em um silêncio desconfortável.

Quando chegaram ao terreiro, ele soltou-lhe o braço. Mary Hellen apressou o passo e entrou na casa cabisbaixa. Beauregard parou e observou a minúscula janela escura. Em seguida ela já se iluminava com a luz oscilante da lamparina. Virou-se para o celeiro, o lugar onde dormira até a chegada dos gafanhotos. Voltou-se de novo para a pequena casa de terra.

O que iria fazer?, ele perguntou a si mesmo. Onde ficaria aquela noite?Recordou-se de como a segurara nos braços e como ela se encostara nele. De

como ela permanecera a seu lado nas duas noites anteriores, tentando salvar o impossível de ser salvo. Fora destemida. Ela demonstrara qualidades que ele sempre imaginara para a sua esposa.

Fitou o céu escuro, inspirou o ar refrescante da noite e arrepiou-se, com frio. Os cabelos estavam molhados. O outono logo chegaria.

Enfiou as mãos no bolso, com raiva de si mesmo por haver dito o que dissera.Andou de um lado para o outro, chutou a terra por vezes e depois voltou para o

abrigo. Se tivesse coragem, perguntaria a Mary Hellen se ela o deixaria dormir dentro do lar.

Mary Hellen estava sentada na beira da cama. Trocara a roupa de baixo molhada por outras secas e vestira um outro corpete. Apesar da lanterna acesa, o interior parecia vazio e gelado. Muito triste, ela pensava se algum dia Beauregard a perdoaria. Nisso, a porta rangeu e abriu-se, e ele entrou. Ela fitou-o, espantada. Achava que ele

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dormiria no celeiro.— Olá. — Beauregard parou no primeiro degrau.— Entre. — Só então Mary Hellen percebeu como estivera tensa. Descontraiu os

ombros e suspirou. — Estou contente que tenha voltado.— Verdade? Depois do que falei lá no riacho, achei que fosse o contrário.Mary Hellen sorriu, melancólica.— Lá no estábulo não deve ser muito confortável. Beauregard desceu a escada, devagar.— Não é.— Quer comer alguma coisa. Posso... Beauregard ergueu a mão.— Por favor, não se incomode. Prefiro conversar. Mary Hellen começava a ficar nervosa. Ele queria dialogar. Mas sobre o quê?— Está bem — ela concordou, tentando esconder a apreensão.Beauregard aproximou-se. — Você teve razão em ficar zangada. Eu estava errado.Mary Hellen piscou, surpresa.— Não tem de se desculpar.— Tenho, sim, Mary Hellen. Você não merecia ouvir aquilo. Só falei para

aborrecê-la.Mary Hellen sentiu-se contente por finalmente acharem um canal de

comunicação. Mas ainda a atormentava a insegurança pelo significado real do fato. Beauregard continuava irritado com ela. Tanto é que desejara magoá-la.

Beauregard tirou o paletó e pendurou-o na cadeira. A camisa estava colada em sua pele úmida.

— Quero apenas ser uma boa esposa — Mary Hellen afirmou, com voz trêmula. — Sua esposa. Gostaria de poder mudar tudo o que me aconteceu antes.

— Devo supor que fui o responsável por você sentir-se dessa maneira, não é? Quero dizer, envergonhada. — Beauregard pegou na mão de Mary Hellen e sentou-se a seu lado. — Não vou mais tomar atitudes desse tipo. Não pode apagar o passado, Mary Hellen, como eu também não posso.

Pensativo, Beauregard fitou as mãos unidas e passou o polegar de leve sobre o dela. Mary Hellen arrepiou-se inteira com aquela sensação.

— Mesmo que eu pudesse voltar atrás, Mary Hellen, eu não o faria. Poderia não ter o que acabo de conseguir.

Mary Hellen fitou-o, aturdida, sem ousar compreender o significado daquelas palavras.

— Olhe, sei que tivemos um início tempestuoso, mas precisamos esquecer isso.Mary Hellen baixou os cílios, incapaz de fitá-lo sem chorar, de tanto que ansiara

por ouvir aquelas palavras. — Gostaria de tê-lo conhecido antes.

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Beauregard virou a mão delicada de Mary Hellen entrelaçou os dedos fortes nos dela.

— Na verdade, nenhum de nós pode adivinhar o futuro e nem saber se vai conseguir o que se espera. Sei que você gostaria de alguém mais... refinado. Eu li isso em seu olhar, da primeira vez em que me fitou.

Mary Hellen umedeceu os lábios, espantada e confusa por ele haver notado o fato.

— E eu pretendia alguém mais simples — ele acrescentou. — Em vez disso, foi você quem apareceu.

— E também queria uma pessoa que não mentisse para você.Beauregard hesitou e depois anuiu.— Mas isso já passou. Temos uma nova vida. Precisamos um do outro. Eu não sei

o que faria ontem e anteontem sem você. Talvez, em um determinado sentido, você não tenha sido o que eu esperava. Mas em outros, você tem sido a melhor companheira que eu poderia desejar.

Mary Hellen tocou no rosto de Beauregard, com esperança, alegria, mas também temor. Ele ainda não conhecia muita coisa sobre ela.

Beauregard beijou-lhe a mão. Foi um beijo de afeição e respeito.Respeito.Ele fitou-a com admiração e passou uma das mãos com sensualidade na parte

interna do antebraço dela.— Você vem tentando ser uma esposa para mim — assegurou, com a voz

profunda e aveludada. — Mas eu não tenho sido um marido para você. Deixe-me ser um de verdade, esta noite. Permite que eu a ame.

Beauregard inclinou-se um pouco e Mary Hellen aspirou-lhe o frescor dos cabelos, quando ele roçou-lhe os lábios. Ela teve a impressão de que seus sonhos, um a um, haviam-se tornado realidade. Tudo o que ela mais desejara...

O beijo tornou-se mais intenso e ele deitou-a na cama. Mary Hellen sentiu vertigem, quando ele passou a explorar-lhe o interior da boca com a língua ansiosa. Ele rolou para cima dela com cuidado e seus corpos colaram-se. Beauregard passou os lábios úmidos pelo pescoço de Mary Hellen, depois pelos ombros e sobre o decote do corpete.

— Posso tirar? — ele indagou, com os olhos inflamados de desejo.Tentando controlar a agitação interna, ela consentiu. Beauregard desabotoou-o

e abriu-o. Por baixo, havia o espartilho e a camisa. Ele beijou-a com ternura. Mary Hellen sentiu respiração dele em seu peito, quente e úmida, o que fez seu sangue correr como fogo nas veias.

— Existem muitas maneiras de eu tocar você, Mary Hellen. Prometo que, a partir de agora, as coisas serão diferentes.

Mary Hellen respirou fundo.Beauregard parou de falar, à procura dos lábios da esposa. Deslizou a mão até a

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coxa de Mary Hellen, acariciando-a por algum tempo.— Você espera, amor, até eu acender o fogo? Mary Hellen assentiu. Beauregard levantou-se da cama e foi até o fogão. Ela

observou-lhe os ombros largos, enquanto ele se ajoelhava e abastecia a fornalha e riscava um fósforo. O recinto iluminou-se com um agradável brilho dourado que esquentou os corpos e os sentidos. Beauregard levantou-se e fitou-a, desabotoando a camisa.

— Não quero que você sinta frio.Mary Hellen deitou-se de lado sobre o cotovelo, enquanto Beauregard tirava a

camisa e jogava-a sobre a cadeira, deixando à mostra o peito musculoso, bronzeado e os braços fortes. Ele sentou-se na beira da cama, abaixou o corpete dela pelos ombros e fez o mesmo com o espartilho, deixando-a apenas com a camisa e a saia.

— Por que não se deita de bruços, querida? Assim poderei massagear suas costas.

Mary Hellen estremeceu, quando o marido tocou-lhe a parte posterior da cintura.

— Relaxe — Beauregard murmurou, massageando os músculos laterais das costas de Mary Hellen. — Você trabalhou muito esses dias.

Com movimentos ritmados e fortes, ele prosseguiu a compressão nos ombros e costas. Até aquele momento, ela ainda não se dera conta de quanto estava dolorida e cansada. Mary Hellen fechou os olhos e suspirou.

Uma sensação surrealista de parar no tempo envolveu-a, enquanto ele moldava-lhe o corpo com mãos experientes. Ela não soube dizer se haviam se passado minutos ou horas. Então ele tirou-lhe os grampos dos cabelos, afastou as madeixas para o lado e beijou-lhe a nuca.

A emoção tornava-se difícil de ser contida e Mary Hellen virou-se. Abraçou-o pelo pescoço, puxou-o para baixo e beijou-o. Ele deitou-se sobre ela, que se contorceu, maravilhada. Ela não podia imaginar que seria daquela maneira e nem que a agradasse tanto ser dominada.

— Passe suas pernas em volta de mim, Mary Hellen — ele pediu, com ansiedade.Tremendo, ela agarrou-se ao marido, enquanto ele explorava-lhe o corpo com

mãos ternas.— Por favor... — ela implorou, sem saber bem o porquê.Beauregard levantou-se e ficou em pé diante dela. Eles se entreolharam e Mary

Hellen escutou a roupa dele cair no chão. Depois ele abaixou-se de novo sobre Mary Hellen e beijou-a com os lábios úmidos. O coração dela disparou com a expectativa, quando ele mudou de posição. Beauregard tirou-lhe o restante da roupa e penetrou-a, com delicadeza.

— Você é deliciosa, meu amor — sussurrou.Eles se moveram em cadência até que, alguns momentos mais tarde, as

sensações aumentaram e o corpo de Mary Hellen apresentou espasmos inesperados e

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incontroláveis.Beauregard apertou-a e beijou-a. Depois apoiou-se no colchão, atrás dos ombros

dela, e ergueu o tórax para contemplá-la. Os cabelos dourados dele caíram para a frente. Mary Hellen afastou-os e viu o olhar terno do marido.

Em seguida Beauregard abaixou a cabeça e ela não mais viu aqueles olhos verdes escondidos sob os cabelos. Ele estremeceu e alguns segundos depois relaxou, estendido sobre ela.

— Sinto-me tão bem com você! — Beauregard murmurou-lhe ao ouvido. — Na noite de nosso casamento, eu não a conhecia. — Ele tornou a fitá-la. — Agora que a conheço, tudo será muito diferente. Prometo ser um marido melhor de agora em diante.

Beauregard beijou-a com ternura e Mary Hellen refletiu, infeliz, que ele ainda não a conhecia. Não totalmente. Se ele chegasse a inteirar-se dos fatos, o sentimento que florescera entre eles decerto morreria, Mary Hellen sentiu um aperto no coração. Não deixaria aquilo acontecer. Mesmo que isso significasse mentir para o resto da vida.

Ela tomou a resolução, com os lábios sob os dele, que Beauregard jamais deveria saber de nada. Levaria a verdade para o túmulo. Garrison fora muito mais que seu amante. Mary Hellen tinha certeza de que o canalha viria a sua procura, se soubesse que ela contara a alguém ou mesmo que se casara. Então Mary Hellen e Beauregard correriam um grande risco.

A realidade cruel viria à tona e o mundo inteiro ficaria sabendo que Mary Hellen tinha mais de um marido.

CAPÍTULO XXII

Mary Hellen acordou na manhã seguinte, sob o casaco de pele de gamo de Beauregard. As franjas faziam-lhe cócegas no nariz. Ela espreguiçou-se com os braços para trás da cabeça e bocejou. A sua saia longa estava estendida sobre suas pernas, como uma manta. Na certa Beauregard a cobrira durante a noite. A bondade dele deixava-a com sentimento de culpa.

Recordou-se do dia em que respondera ao anúncio e de sua decisão de não revelar a verdade. Ela não admitira para si mesma que estava sendo desonesta. O casamento com Garrison era irrelevante, ela refletira. Legalmente, não existia.

Mas ela duvidou que Beauregard se interessasse por legalidades. Ele só não queria que ela guardasse segredos que pudessem afetá-los.

Mary Hellen cobriu o rosto com a mão e esfregou os olhos fechados. Quando concordara em casar-se com Garrison, nem mesmo o conhecia direito. Havia sido tão ingênua! Sentira-se muito sozinha após a morte dos pais e quisera apenas ser outra vez amada por alguém. Se na época ela houvesse ao menos sentido a força interior

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que ora a animava!Esperava ter essa mesma energia para conviver com a sua desonestidade.Mary Hellen enterrou a cabeça no travesseiro e abafou um soluço. Não contara

apaixonar-se por um homem que valorizava mais a verdade e a honestidade, de que seu lindo rosto. Jamais perdoaria a si mesma por mentir-lhe. Mas ela não tivera chance desde o começo. Garrison era um homem perigoso. Nem pensar no que ele poderia fazer se achasse que alguém mais sabia da verdade. Ela não podia arriscar a vida de Beauregard. Se alguma coisa acontecesse com ele...

De qualquer modo, teria de encontrar forças para continuar mentindo, sem importar-se com o quanto isso lhe roia as entranhas.

Um pouco mais tarde, Mary Hellen levantou-se da cama, vestiu a roupa e acendeu o fogão. Quando as chamas começaram a crepitar, ela subiu a escada e foi buscar água com o bule. Sentiu um tremor quente. Apesar de tudo, ela ainda podia sentir o prazer de ter sido beijada e amada. Afundou o recipiente dentro da barrica e quando o líquido frio tocou-lhe os dedos, ela teve a sensação de que despertava para uma nova vida. O brilho do sol que iluminava seu rosto, o cheiro dos animais e a umidade fria que envolvia suas mãos.

A existência era cheia de milagres, ela compreendeu. Mesmo para aqueles que não os mereciam. Admirou a aurora, enquanto retornava ao lar.

Mary Hellen pensava em sair para ordenhar a vaca, quando Beauregard chegou, carregando um balde. O coração dela acelerou-se ao vê-lo. Os cabelos desalinhados na altura dos ombros, a face escurecida pela barba por fazer e um sorriso nos lábios sedutores.

Mary Hellen não pôde evitar de sentir-se ansiosa, ao lembrar-se de como aqueles lábios a haviam beijado na noite anterior.

— Bom dia — Beauregard cumprimentou-a e depôs o balde.A alça de corda caiu para o lado, sem ruído.Beauregard beijou-a, e Mary Hellen correspondeu com ardor, segurando-lhe a

nuca quente sob os cabelos. Aquele contato aqueceu-a e afastou o frescor da manhã de seus ossos. Quando ele se afastou, Mary Hellen já sentia muito calor.

— Bom dia — ela respondeu, procurando manter o equilíbrio.— Eu trouxe leite. — Beauregard foi até a cama e examinou-a. — Sabe, lembrei-

me de que o que sobrou do milharal poderia muito bem servir para fazer um colchão maior.

A idéia de uma cama maior deu novo alento ao espírito aflito de Mary Hellen. Beauregard pretendia dormir com ela, dali para a frente.

Os sonhos poderiam tornar-se realidade, ela pensou, um tanto desapontada por não sentir uma felicidade completa. Talvez, algum dia, conseguisse esquecer.

Foram até a mesa, e Beauregard sentou-se.— Broa de milho? — Mary Hellen afastava como podia os pensamentos

indesejáveis. — Se quiser, também posso fazer panquecas de fubá na chapa de ferro. É

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só esperar um pouquinho, até eu recolher alguns ovos.— Hum... Isso é bom!Mary Hellen curvou-se para o saco de farinha e Shadow começou a latir do lado

de fora. Intrigada, ela fitou Beauregard, que levantou-se e subiu os degraus.— Howard! — ele gritou, da porta. — Que prazer em vê-lo!Emocionada por receber a primeira visita desde que chegara, Mary Hellen

limpou as mãos em uma toalha, apressou-se a subir a escada e cumprimentar o vizinho.

Howard estava sentado na carroça e esfregava a barba escura. Embora contente por vê-lo, Mary Hellen entristeceu-se um pouco por Martha não o ter acompanhado.

— Olá, Mary Hellen! — Howard tocou na aba do chapéu de palha, freou os cavalos, desceu e deu um tapinha amigável na cabeça de Shadow.

— Já tomou café, Howard? Se você gosta, vou fazer panquecas assadas na chapa.— Agradeço muito, Mary Hellen, mas acabei de comer e também não posso

demorar-me. Estou a caminho de Dodge. — Virou-se para Beauregard. — Pelo que estou vendo, você também não escapou da praga.

Mary Hellen escutou a conversa por alguns momentos. Quando os dois homens dirigiram-se ao campo para ver os estragos, ela entrou. Preocupou-se com Martha, incapaz de imaginar como se sentiria uma mãe sem comida para dar aos filhos. Teria de fazer-lhe uma visita, assim que pudesse.

Meia hora mais tarde, Beauregard entrou em casa.— Howard vai até a cidade — ele falou, enquanto desencostava a cama da

parede.— O que você vai fazer?Beauregard agachou-se e tirou uma pequena caixa de estanho de um buraco no

chão.— Dar a meu amigo algum dinheiro para comprar sementes para o trigo de

outono.Mary Hellen viu-o remexer dentro da caixa, depois guardá-la no lugar e puxar o

leito por cima.— Achei que não tínhamos um tostão... Beauregard parou e encarou-a.— Não temos. Quero dizer, temos só este que vou entregar a Howard. —

Beauregard aproximou-se. — Por quê?Mary Hellen desviou-se.— Por nada. Espero que tudo dê certo. E se alguma coisa também acontecer com

essa safra?— Mary Hellen, por favor, não se preocupe.— E se ocorrer o pior, o que faremos? — insistiu.— Nós daremos um jeito. — Ele pegou-a pelo braço.— Mas não quero que você vá embora. Beauregard tocou-lhe o ombro.

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— Não irei, querida. Prometo. Tudo dará certo. Apesar dos temores, Beauregard era seu marido, e ela devia confiar nele.

Quando Beauregard voltou para o terreiro carregando as únicas economias, pelo menos era o que ele dissera, Mary Hellen não pôde deixar de imaginar, com dor no coração, que soma conseguiria pela alta qualidade das pérolas de sua mãe.

CAPÍTULO XXIII

O fósforo riscado acendeu-se entre o indicador e o polegar de Beauregard. Devagar, fitando o palito queimar, ele jogou-o no combustível seco da fornalha. Em poucos segundos, o estrume pegou fogo e ele fechou a porta.

Virou-se para fitar Mary Hellen, que estava deitada na cama. A luz refletia-se nos botões do vestido de chita.

— Meu Deus, você é linda! — Beauregard murmurou, pensando em como pudera desejar que Mary Hellen fosse uma mulher sem atrativos.

Ela era perfeita. Os cabelos escuros espalhados no travesseiro, os lábios carnudos, úmidos e semi-abertos e o rosto corado. Aproximou-se da esposa, sorrindo e antecipando o prazer. Beauregard a despiria mais uma vez, peça por peça, e se regozijaria com as sensações advindas do tato, da visão e do olfato.

Ele se alegraria em cada minuto, até o fim da vida deles.Bom Deus, será que gostava dela tanto assim?Beauregard parou, hesitou, com a testa latejando. Não estava preparado para os

sentimentos que o inundavam com tanta força.— O que aconteceu? — Mary Hellen quis saber, deitando-se sobre um cotovelo.Beauregard sobressaltou-se com a voz dela, esqueceu seus receios e caminhou

até o leito.— Nada, juro. Estava apenas com vontade de olhar você. Por que não tira as

botas? — Sentou-se ao pé da cama e desamarrou os cordões. Puxou os sapatos com delicadeza e deixou-os no chão. — E as meias...

Em questão de segundos, Beauregard massageava-lhe a barriga das pernas e os pés delicados.

— Que delícia! — Mary Hellen apoiou-se de novo no cotovelo. — Por que você é tão bondoso para mim?

Beauregard riu.— E o que a faz pensar que não gosto do que faço? — Fez pressão com os

polegares, em círculos, no arco sedoso do pé da esposa. — O seu prazer me dá prazer.Mary Hellen inclinou a cabeça, refletindo sobre as palavras do marido.— Não imaginei que fosse desse jeito para um homem.— Bom, talvez você tenha aprendido com o homem errado.Mary Hellen empalideceu, e Beauregard estacou, entendendo que novamente

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dissera uma frase indevida. O silêncio que se seguiu foi denso, pesado.— Vai ver que foi — Mary Hellen falou, por fim. — Mas acredito que o homem

certo possa ensinar-me o que deixei de aprender.As palavras dela reanimaram-no, e Beauregard sentiu um conforto estranho e

suave. Eles haviam partilhado de uma jornada difícil desde o primeiro dia. Naquela altura dos acontecimentos, o perdão era uma presença constante. Beauregard voltou ao seu trabalho gratificante de massagear os lindos pés de Mary Hellen.

Naquela noite, mais tarde, os corpos se moveram cadenciados e em grande harmonia.

Beauregard sentiu, mais uma vez, a urgência e a realização escaldante. Ele a amava demais. Muito mais do que pudera algum dia imaginar. Mas ainda sentia necessidade de resistir a esses sentimentos. Quanto tempo levaria para ele aceitar esse amor, dar-se por vencido e esquecer seus receios?

Exausto e confuso, ele largou-se por cima de Mary Hellen. Ela abraçou-o e beliscou-lhe o lóbulo da orelha.

— Está satisfeito? — perguntou, com inocência.— Sim, minha querida esposa...Beauregard disse a si mesmo que deveria ter prazer com Mary Hellen e que seria

certo apaixonar-se por ela. Afinal, era a sua mulher. Sorriu, esfregou o rosto nos cabelos escuros e espessos.

— Mas por pouco tempo, acho. Depois, poderei precisar de sua colaboração outra vez.

— O que me dará o maior prazer, sr. Brigman. Beauregard segurou-a tão próximo e com tanta ternura, como jamais fizera com

alguém.

CAPÍTULO XXIV

Uma semana mais tarde, as nuvens baixas de tonalidade cinza-clara permaneciam inertes sobre a pradaria. O ar denso e parado era incomum e uma névoa cobria o horizonte longínquo.

Mary Hellen voltava do celeiro carregando uma caçamba de leite e a alça de corda espinhosa afundava na palma de sua mão. Vinha ofegante, preocupada em não desperdiçar nada do líquido precioso. Durante a noite deixaria o balde do lado de fora para que a nata sobrenadasse. Depois teria pela frente outra etapa cansativa de bater mais uma boa quantidade de manteiga, que seria vendida para comprar os cobertores de lã.

— Shadow! Venha cá! — Mary Hellen chamou, por sobre o ombro, ao chegar à porta da casa de barro. — Olhe que vai chover.

O cachorro apareceu vindo do galinheiro, o que provocou uma confusão de

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penas esvoaçando e aves cacarejando. Correu para perto de Mary Hellen, abanando, a cauda de alegria.

Dentro do abrigo, a escuridão era maior do que a habitual para aquela hora do dia. As nuvens escondiam o pouco de luz que costumava penetrar naquele pequeno lar. Mary Hellen deixou a caçamba no chão e esfregou a mão vermelha. Lançou um olhar pelo ambiente e resolveu acender a lamparina para enxergar melhor. Shadow bocejou e estendeu-se perto do fogão apagado.

Riscou o fósforo e acendeu o pavio do recipiente com o líquido iluminante. Lembrou-se então da necessidade de comprar mais daqueles palitos antes da chegada do inverno. E também mais óleo combustível.

Ah, meu Deus! Como é que sua arrecadação minguada decorrente da venda da manteiga poderia prover as necessidades básicas deles, se algum imprevisto destruísse a safra de trigo de outono? Não haveria nenhum outro jeito, a não ser vender o colar de pérolas verdadeiras que fora de sua mãe.

Curiosa, fitou a cama estreita feita de três troncos cortados de árvores.Será que a pequena caixa ali em baixo continha mais dinheiro além daquele que

Beauregard dera a Howard?, ela cismou, intrigada.Estranho que o marido não houvesse mencionado antes a existência das

economias, embora, para ser sincera, ela tivesse de admitir que ele quase não contava nada sobre si mesmo. Até pouco, pelo menos.

Beauregard só abrandara as atitudes um tanto ríspidas, graças à invasão dos gafanhotos.

Mary Hellen sentou-se na cadeira, sem tirar os olhos do leito. Refletiu se deveria tirá-la do lugar. Essa atitude caracterizaria uma bisbilhotice? Ou talvez seria falta de confiança? Entretanto a confiabilidade não era tão forte â ponto de não ser possível rompê-la. Mesmo sendo uma semente em desenvolvimento, era pequena e frágil.

Shadow ganiu. Mary Hellen deu um pulo e virou-se. O cão a mirava com seus olhos negros arregalados e a cabeça inclinada para um lado.

— O que você está olhando, meu rapaz? — perguntou, sentindo-se ridiculamente culpada por algo que não havia feito.

Os trovões ribombaram do lado de fora e Mary Hellen ergueu-se da cadeira, alisando, distraída, as pregas de sua saia. Sem pensar mais sobre confiança ou culpa, ela foi até a cama e agarrou a casca rugosa de um dos cepos que formava a estrutura. Conseguiu afastar, alguns centímetros e com muito esforço, o móvel rústico da parede. Ignorou o olhar crítico de Shadow. Afinal, não passava de um cachorro.

Puxou mais um pouco e viu a caixa pequena de estanho dentro do buraco quadrado. Que estranho ela não haver tomado conhecimento disso até uma semana atrás, dormindo sobre o cofre das economias durante aquele tempo todo.

Inquieta, ela virou-se e espiou a porta. Já havia começado a chover. Beauregard poderia voltar do campo antes da hora costumeira.

Não que isso fosse relevante, pensou. Afinal, não estava fazendo nada de errado.

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Só queria saber de quanto dinheiro dispunham. Assim poderia planejar a lista de suprimentos para a viagem à cidade. Ignorou o aperto nervoso de seu estômago e ajoelhou-se entre a cama e a parede. Tirou a caixa fria do esconderijo e a pôs em cima do colchão. Fitou o metal sem brilho, de novo a porta e mais uma vez a caixa. Depois, indecisa, levantou a tampa devagar.

As dobradiças pequeninas rangeram e Shadow veio farejar para ver do que se tratava. Dentro, papéis dobrados com algumas pedras por cima para fazer peso. Desdobrou-os. Era a escritura da propriedade e alguns recibos de armazém, com a inscrição "Pago".

Mary Hellen compreendeu a sua tolice em haver sido tão curiosa por nada. Arrumou os papéis no lugar.

Foi quando notou, no canto da caixa, um pequeno saquinho de veludo amarrado.Shadow descansou o queixo peludo sobre o braço estendido da dona. Espiou

com atenção enquanto ela tirava a embalagem e enfiava dois dedos dentro para abri-la. Mary Hellen sentiu uma coisa fria e dura. Tirou-a.

Arregalou os olhos, sem acreditar no que via. Tratava-se de um adereço cintilante, que valia muito mais de que o colar de pérolas de sua mãe. Um diamante grande, oval e circundado por pequenas safiras, incrustado em uma peça de ouro com formato de lágrima. Pendurado em uma corrente brilhante de ouro.

Mary Hellen segurou o maravilhoso objeto entre os dedos, sentindo a pulsação acelerar-se, encantada com o ornamento sem jaca9 que refletia a luz dourada da lamparina.

Shadow tornou a ganir, e ela acariciou-lhe os pêlos macios de sua cabeça.— O que há com você, garoto? — Mary Hellen tentava tranqüilizá-lo, por

entender que o cachorro sentia a aflição dela.Não conseguia entender o significado de uma jóia magnífica em um lar tão

modesto. A quem pertencera aquele pingente? Por que Beauregard nunca mencionara a existência desse objeto valioso? Eles vinham, literalmente, dormindo sobre uma fortuna. Riqueza essa suficiente para mantê-los sem passar necessidades durante o próximo inverno. E talvez até no seguinte.

Mary Hellen cerrou as pálpebras com força. Queria acreditar que havia um bom motivo para ele não haver mencionado a existência dessa peça de joalheria. E também por não haver oferecido para vendê-la no lugar do colar de sua mãe. Quem sabe não seria falsa e não valesse nada? Não. Na certa tratava-se de uma preciosa herança familiar.

Abriu os olhos e fitou o objeto com atenção. Era tudo verdadeiro, tanto o ouro quanto as pedras. Apenas diamantes e safiras poderiam ter um brilho tão puro e intenso.

Será que... Uma idéia ocorreu-lhe.Com um medo crescente, virou a jóia em sua mão. Pensou que fosse desmaiar.

9 Substância heterogênea em pedra preciosa, Fig. Mancha, falha95

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"Para Isabelle. Com amor eterno, Beauregard."Beauregard dissera para Martha e Howard que havia vendido a corrente, mas na

realidade não o fizera. Por que o guardava? Para manter a memória do primeiro amor? Mary Hellen estremeceu. Seu marido amara aquela mulher. Tratava-se de sua primeira escolha, se é que tivera alguma.

Mary Hellen sentou-se sobre os joelhos. Shadow estava deitado a seu lado com o queixo sobre as patas é não tirava os olhos dela. Passou a ponta do dedo em cima do diamante.

Como será que Beauregard entregara o presente à Isabelle? Teria ele se ajoelhado em uma das pernas e feito a proposta? Ou a teria segurado nos braços e beijado, achando que jamais poderia amar outra pessoa?

Mary Hellen fitou o recinto sem nada ver e pensou no dia em que sua mãe lhe dera as pérolas. Fora na data de seu décimo-terceiro aniversário. Pela primeira vez, a adolescente sentira-se uma mulher de verdade. Tornou a ler as palavras gravadas: "Com amor eterno..." Será que Beauregard pensava que as memórias dele eram mais valiosas de que as dela?

A mesquinhez presente na personalidade de Mary Hellen gostaria de atirar o objeto precioso no rosto de Beauregard, assim que ele pusesse os pés na porta. Não, não faria isso, decidiu. Ela não era uma pessoa histérica e Beauregard também não. Ele não atirara nada nela na noite de núpcias, ao fazer uma descoberta semelhante sobre as experiências passadas da esposa. Beauregard apenas saíra do quarto. Talvez houvesse uma explicação lógica para o fato de ele esconder o tesouro sem mencioná-lo, quando ela se oferecera para vender as pérolas. Ela não tinha o direito de ser tão criteriosa, dadas as circunstâncias de sua própria vida.

Mary Hellen guardou com todo o cuidado o ornamento dentro do envoltório de veludo, puxou o amarrilho e arrumou tudo nos seus devidos lugares. Empurrou e encostou a cama de encontro à parede. Sabia que deveria esfriar aquele ciúme irracional e, como uma adulta sensata, simplesmente perguntar a Beauregard do que se tratava, assim que ele voltasse.

CAPÍTULO XXV

Mary Hellen inclinou-se sobre a batedeira de manteiga e, com uma força excessiva e desnecessária, acionou o cabo liso de madeira para dentro e para fora.

No dia seguinte as costas estariam, doloridas, ela pensou, ao sentir o esforço muscular.

Mas não havia alternativa. De algum jeito, precisava libertar-se das tensões.Logo os braços de Mary Hellen estavam adormecidos. Endireitou-se um pouco e

descansou por um ou dois segundos. Olhou para Shadow, espichado no chão a seus pés. Lembrou-se dos dias atribulados de sua vida no restaurante em Boston, quando

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outra garçonete faltava ou pedia a conta. A maioria ia embora em pouco tempo e ela se desdobrava para atender sozinha às mesas.

Pelo menos ali, Garrison não entrava a qualquer hora, sentava-se junto à pequena mesa de cozinha, esperando ser servido.

Apertou as mãos pegajosas na extremidade de madeira e acionou-a outra vez. Se pudera lidar como assunto Garrison e sair ilesa desse episódio, poderia enfrentar o marido e perguntar-lhe sobre o colar.

Shadow levantou a cabeça e aguçou as orelhas, o que chamou a atenção de Mary Hellen. Dali a instantes ela ouviu o barulho de uma carroça. Olhou pela janela coberta de pó. Era Howard, com Martha e os filhos. Embora gostasse deles e se alegrasse em vê-los, preferiria que houvessem escolhido um outro dia.

Shadow latiu e disparou porta afora. Mary Hellen tirou alguns fios de cabelo da testa. Limpou o suor do nariz e das faces. Trataria de esquecer os problemas por ora.

Segurou a saia, subiu os degraus e saiu ao encontro da tarde ensolarada.— Martha. Howard. Que bom vê-los!Howard ajudou a esposa a descer da carroça. Martha I apressou-se em chegar

perto de Mary Hellen e apertar-lhe as mãos.— Venho pedindo a Howard para trazer-me até aqui. Queria tanto falar com

você, Mary Hellen! O que aconteceu às nossas fazendas foi terrível, mas tenho certeza de que sobreviveremos. O trigo de outono vai vingar. Você vai ver!

Mary Hellen anuiu, esperando que isso realmente se concretizasse.— Shadow! — Mollie chamou. O cachorro andava de um lado para o outro na

frente dos cavalos, abanando o rabo. Howard desceu Mollie, enquanto Frank pulava sozinho. Mary Hellen sorriu ao ver como as crianças acariciavam os pêlos dourados do cão e quase o sufocavam, de tantos abraços.

— Por favor, entrem. Farei um bule de café — convidou-os, esperando sair-se bem em sua primeira empreitada como anfitriã. — Gostaria que pudessem ficar para o jantar.

Martha sorriu e seguiu-a, mas Howard ficou para trás.— Isso é uma grande amabilidade da sua parte, Mary Hellen — ele afirmou. — Se

as senhoras me permitirem, irei até o campo para ver o que Beauregard está fazendo.Howard voltou para a carroça e saiu com ela. As crianças tomaram conta de

Shadow, rindo e correndo atrás dele em círculos no terreiro.— Logo eles ficarão cansados — Martha fez a consideração, de braço dado com

Mary Hellen. — Até lá, vamos aproveitar o silêncio lá dentro.Elas entraram na pequena casa escura.— Oh, Deus, Mary Hellen! Você fez uma boa melhora por aqui. Eu sabia que você

conseguiria. Será que perdeu as esperanças com a janela?Acanhada, Mary Hellen olhou as vidraças sujas. Sobrecarregada de serviço,

esquecera de limpá-las nos últimos dias.— Com esse vento, elas ficam empoeiradas tão depressa... Não tive tempo de...

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Martha ergueu um das mãos.— Por favor, não se desculpe. Sei bem o que é isso. — Apanhou um pano

molhado de cima da mesa, saiu e limpou os vidros por fora.O sol voltou a entrar no casebre.— Você precisa é de um ou dois ajudantes, Mary Hellen — Martha disse, ao

voltar. — As coisas ficarão mais fáceis quando tiver filhos em idade suficiente para ajudá-la em sua tarefas.

Mary Hellen não parava de pensar no pingente de Isabelle debaixo da cama.— Tem toda a razão. Por que não nos sentamos um pouco?Martha aceitou a sugestão e enfiou a mão dentro da sacola.— Tenho uma coisa aqui para você. — Tirou uma carta e estendeu-a por sobre a

mesa. — Howard foi à cidade esta manhã e trouxe isto. Nós temos por hábito recolher a correspondência de toda a vizinhança.

Mary Hellen apanhou-a, e algo em seu íntimo lhe inspirou cautela. Quem é que escreveria para ela? Ninguém sabia onde ela se encontrava. Devia ser algum engano. Ao pegar no envelope amassado, viu que era dirigida a Mary Hellen MacFarland. Seu nome de solteira.

O medo cresceu e apoderou-se dela. Ela saíra de Boston, sem ao menos informar seu patrão. A carta só poderia ser de uma pessoa.

Passou o dedo sobre a caligrafia familiar e caprichada: "Mary Hellen MacFarland, Dodge City, Kansas". Como poderia abri-la na frente de Martha? O que diria à amiga?

Mary Hellen levantou-se e caminhou até a janela, de costas para a vizinha e sem conter o pânico que a invadia. Hesitou e abriu o lacre devagar. Não teve outro jeito, a não ser ler o que estava escrito.

"Minha adorada Mary Hellen,Eu nem mesmo posso saber se você chegará a receber esta missiva. Só consegui

saber que sua passagem era para Dodge City. O chefe do trem teve a bondade de ajudar-me a desvendar o mistério.

Meu coração força-me a escrever para você, mesmo sem saber para onde poderá ter ido depois de Dodge. Por que, minha querida? Por que você foi embora? E por que para tão longe? O que esperava encontrar nesse fim de mundo? Quem poderá dar-lhe tudo o que você merece? Coisas de qualidade, para uma linda mulher. Era o que eu pretendia para você.

Por favor, meu amor, volte para casa. Não podemos esquecer nossos desentendimentos? Sei que me ama. Você disse isso em seu juramento. E certamente não preciso lembrá-la do que acontecerá se me trair. Volte, Mary Hellen. Volte para casa, antes que eu seja obrigado a procurá-la.

Seu verdadeiro amor, Garrison."

Entorpecida pelo choque, Mary Hellen dobrou a carta. Sem nem piscar, ela fitou o terreiro pela janela, onde as crianças se divertiam. Ouviu as risadas abafadas, como

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se viessem de um mundo distante.Uma mão em seu ombro assustou-a.— Mary Hellen, minha querida. Teve más notícias? Mary Hellen estava suando. Sua cabeça latejava, enquanto tentava encontrar

uma resposta para a pergunta de Martha.— Não, está tudo bem. Eu... estava batendo manteiga antes de vocês chegarem

e... devo ter-me cansado um pouco.— Que tal sentar-se? — Martha conduziu-a até uma cadeira.Mary Hellen sabia que a amiga estava com a razão. Se ficasse em pé, poderia

desfalecer. Mas nem depois de obedecê-la, a tensão na nuca e nos ombros a abandonaram. As pontadas continuavam na cabeça.

— Sente-se melhor, meu bem?Mary Hellen não sabia o que dizer. E muito menos o que fazer. Tremendo, enfiou

a carta no envelope. Gostaria de queimar tudo, mas não podia. Não na frente de Martha.

— Diga-me, Mary Hellen, o que aconteceu?— Não foi nada. É apenas uma mensagem de meu antigo patrão. Ele quer que eu

volte. — Mary Hellen riu, nervosa, e pôs o papel sobre a mesa, debaixo da caneca de flores.

— Ele devia gostar muito de você.Mary Hellen ficou vermelha e tornou a levantar-se. Decerto Martha notava sua

inquietação. Abasteceu a fornalha com o estrume seco de vaca, à procura do que fazer.

— Posso ajudar em alguma coisa?— Não. Estou ótima. — Mary Hellen limpou uma das mãos na outra. — Quer

café?— Será ótimo.Mary Hellen andou de um lado a outro na cozinha, aflita por saber que Martha

percebera alguma coisa de errado. Após alguns minutos de silêncio, a vizinha começou a falar sobre os gafanhotos. Mary Hellen tentava responder com coerência. Esperava não ter aberto uma brecha na amizade que se iniciara de forma tão agradável. Por fim, Mary Hellen serviu o café e sentou-se, achando difícil ignorar as palavras que gritavam para ela, sob da caneca.

Não podia deixar Beauregard descobrir aquilo. Não podia envolvê-lo nisso. Com certeza, ele tentaria tomar alguma atitude, sem a mínima idéia de quem estaria enfrentando. Garrison o mataria. Ela teria de achar uma maneira de solucionar o problema. Nesse meio-tempo, teria de queimar a mensagem.

CAPÍTULO XXVI

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Com os cotovelos nos joelhos, Beauregard segurava as rédeas de couro macio e dirigia a carroça rangente pelo terreiro, já próximo de sua casa. A parelha de Howard vinha atrás. Os cavalos pararam e resfolegaram, tilintando os arreios. Com a ajuda de Howard, Beauregard havia arado mais terras do que o previsto. Por isso e por saber que Howard trouxera a rabeca, resolvera parar mais cedo. Mollie e Frank saíram correndo da casa.

— Eles chegaram! Eles chegaram!— Olá, pessoal! — Beauregard chamou-os.A pequena Mollie correu direto para os braços do pai. Frank rumou em direção a

Beauregard e pegou o freio de Gem. O menino mostrava-se sempre ansioso por ajudar.

— Que tal desatrelar os cavalos, Frank?Beauregard pulou da carroça e bateu os pés no chão com um ruído surdo e

reparou na expressão de orgulho e excitação do garoto.Prestou atenção e escutou as vozes melodiosas das damas vindas de dentro de

sua casa. Um sentimento novo e agradável irrompeu dentro dele. Um jato de alegria e de satisfação. As duas mulheres assomaram à entrada e adiantaram-se.

Beauregard não conseguia tirar os olhos da figura de Mary Hellen. Ela curvou-se, pegou a menina loira no colo e aproximou-se com Mollie escarranchada na cintura. Um dia, Mary Hellen seria a mãe de seus filhos. Uma ponta de suspeita toldou-lhe a alegria. Imaginou se isso aconteceria antes do tempo previsto. Tinha de esperar para ver...

— Como foi seu dia, Beauregard?— Muito bom, obrigado.Por algum motivo, ela não o encarou. Em vez disso, observou Martha falando

com Howard. Beauregard pegou Mollie nos braços.— Quem é que está aqui? A pequena sereia? Mollie gargalhou e brindou-o com um beijo molhado e sonoro na face.— Agradeço muito, srta. Mollie — ele declarou, com cavalheirismo. — Eu estava

mesmo esperando por isso.— Você precisa fazer a barba! — a garota falou alto e esfregou a mãozinha no

queixo de pêlos hirsutos.— Mollie! — Martha interveio. — Você não deve dizer essas coisas!A mãe sorriu para Beauregard e tomou a filha do colo dele.— Olá, Beauregard — Martha cumprimentou-o. — Que prazer em vê-lo. Mary

Hellen contou que trouxemos uma carta?Beauregard fitou a esposa, que empalideceu.— Não, não disse. Quero dizer... ainda.— Meu antigo patrão — Mary Hellen respondeu, depressa demais. — O

restaurante anda muito cheio e... — Parou de falar e estremeceu.Uma noção quase doentia infiltrou-se na mente de Beauregard.

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— Ele escreveu para você?— Isso mesmo — Martha respondeu por Mary Hellen. — O homem quer que ela

volte para trabalhar, o que não nos causou surpresa. Quem não iria querer Mary Hellen de volta?

Beauregard nem escutou o que Martha dizia. Não conseguia tirar os olhos de Mary Hellen, que evitava encará-lo.

— Obrigada por trazer a missiva, Martha.— Não há por que, Beauregard. — Martha ficou perto deles mais um pouco, mas

como a conversa parecia ter-se encerrado, ela sorriu sem graça e encaminhou-se para perto do marido.

Mary Hellen voltou-se para entrar na casa, ainda sem olhar para Beauregard.— Se quiserem vir, o café está pronto.— Onde deixo os cavalos? — Frank indagou. — No estábulo ou no cercado?— No estábulo, eu acho melhor. — Beauregard fez um esforço para falar.O garoto levou-os, um por vez, para o celeiro.Beauregard prestava atenção em Mary Hellen, que já descia os degraus do lar

deles. Precisava acreditar na esposa no que dizia respeito à identidade do verdadeiro remetente da carta. Ao mesmo tempo, ele mesmo queria conferir a veracidade.

Martha apressou-se a entrar atrás de Mary Hellen. Ele teria de esperar.Beauregard odiou a si mesmo por presumir que Mary Hellen escondia alguma

coisa dele, mas o que fazer? Ela sempre fora tão vaga a respeito de seu passado e naquele momento, parecia nervosa demais.

Quem sabe se a missiva não fora mesmo enviada por quem ele estava pensando? Esperava também que isso não fosse o começo do fim.

Mary Hellen desceu a escada, com o coração disparado como uma carroça em fuga. Fixou o olhar no papel debaixo da caneca com flores. Será que o fogão ainda estava aceso?

Antes de ela pegar o envelope, percebeu um barulho à porta. Mary Hellen rodopiou sobre a ponta dos pés, pensando que fosse Beauregard. Mas era Martha, com Mollie nos braços.

— Vamos pôr a mesa? — Martha sorriu, solícita. Mary Hellen esforçava-se para respirar direito.— Sim. Eu ia mesmo fazer isso. Martha deixou Mollie no chão.— Por que não vai brincar com sua boneca? Tenho de ajudar a sra. Brigman.Mary Hellen mirou a carta. Tinha de escondê-la.A pretexto de tirar as flores, ela levantou a caneca, deixou-a no peitoril da janela

e enfiou a mensagem no bolso. Na primeira oportunidade, a atiraria no forno.

CAPÍTULO XXVII

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Beauregard e Frank fecharam a porta do celeiro e voltaram juntos para casa, com Shadow abanando o rabo ao lado deles. Ao entrar, Beauregard parou no degrau superior. Inalou o delicioso aroma de pão fresco, café e especiarias.

Mary Hellen estava em frente ao fogão e, com uma colher de pau, mexia o jantar dentro da panela de ferro fundido. Ela cantarolava uma melodia em voz bem baixa. Ele fitou o coque solto que prendia os cabelos escuros e sentiu as mãos frias e pegajosas. Teria o amante pedido para ela voltar? E como sua mulher se sentiria a respeito disso?

Pigarreou e desviou o olhar. Howard estava a um canto, acendendo o cachimbo. Mollie, sentada no chão, brincava com um boneca velha e rasgada. Era o cenário de seus sonhos. Uma casa cheia de entes queridos.

Beauregard desceu e tentou não pensar na carta e no que ela poderia representar. Talvez ele estivesse imaginando coisas. Quem sabe não seria originária de quem ela afirmava que fosse. Do ex-patrão.

— Hum, que cheiro bom! — Beauregard deixou o chapéu sobre o barril ao lado da porta. — O que é?

— Cozido de coelho — Martha explicou. — Howard pegou-o especialmente para hoje à noite.

— Muito obrigado, Howard.O marido de Martha segurava o cachimbo com uma das mãos e enrolava o

suspensório com o dedo da outra.— Bem, esse coelho tolo pulou na frente da minha carroça, quando eu voltava da

cidade. Parou e ficou olhando para mim. Como se quisesse obsequiar-me com um jantar.

Todos riram.— Howard sempre teve muita sorte nesse aspecto — Martha disse a Mary

Hellen. — Os animais parecem cair do céu, justo para sua próxima refeição.Mary Hellen achou graça, mas Beauregard notou que o brilho habitual do olhar

da esposa estava ausente.Frank tratou de contar as últimas lorotas sobre a boa-sorte do pai com o rifle,

enquanto as damas serviam o jantar. Comeram o guisado delicioso, rindo e caçoando do azar de Beauregard em relação à caça.

Depois da refeição, as mulheres arrumaram a cozinha, enquanto Howard, Beauregard e Frank sentaram-se do lado de fora, observando o sol manchar o céu com listras rosa e púrpura.

Os homens ouviram o bater de pratos vindo de dentro e conversaram sobre aragem da terra. Quando, enfim, o céu escureceu, eles acenderam um pequena fogueira no pátio para aquecer as mãos do frio da noite.

— Muito bonito! — Martha exclamou, surgindo na frente deles. — Nós limpamos a casa até deixá-la brilhando e vocês ficam sentados aqui sem fazer nada?

Howard puxou a saia da esposa e sentou-a em seu colo.

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— Eu estava ocupado buscando uma estrela para você, minha querida. Estávamos esperando você chegar para poder mostrar-lhe.

— Mentira! — Frank estragou o romantismo. — Estávamos conversando sobre matança de porcos.

Caíram na gargalhada, todos exceto Frank, que não viu a mínima graça na história. Quando Mary Hellen saiu de dentro de casa com Mollie pela mão, eles já haviam parado de rir. Ela aproximou-se da pequena reunião de amigos e Beauregard levantou-se, oferecendo-lhe a cadeira. Mary Hellen agradeceu com polidez e sentou-se, mantendo Mollie no colo. Beauregard sentou-se no chão, ao lado dela.

— Que tal um pouco de música? Frank sentou-se nos calcanhares.— Boa idéia, pai! Toque alguma coisa bem bonita! Martha levantou-se do colo do marido. Howard também pôs-se em pé e ela

retomou o lugar dele.— Desde que chegamos, ele está com coceira nos dedos para tocar — Martha

comentou.Frank tirou a rabeca da caixa e entregou o instrumento ao pai, que o ajeitou

embaixo do queixo.— Algum pedido?— Toque Buffalo Gals! — Frank pediu, gritando.— Pois não.Howard encostou o arco nas cordas e preencheu a noite com sua música. As

crianças apressaram-se a dançar, de braços dados e em círculos.Beauregard deu risada ao ver os rostinhos felizes como que iluminados por cem

velas. Fitou Mary Hellen de esguelha. Queria ficar sozinho com ela. Como podia regozijar-se com tudo aquilo, quando o que mais queria era tranqüilizar o coração?

— Toque Jimmy Crack Corrú — Frank fez a sugestão, quando a primeira melodia terminou.

Howard não se fez de rogado e voltou a tocar. Mollie gargalhou e pulou no colo de Beauregard, que de imediato apertou-a em um abraço exagerado, gemendo como se fizesse um grande esforço.

Frank puxou a mão de Mary Hellen.— Venha dançar comigo, sra. Brigman!Sem esperar por uma resposta, o garoto puxou-a para fora da cadeira e passou o

braço no dela. Beauregard observou a esposa dançar com Frank, pulando em círculos com a expressão alegre e agitando a saia quando erguia os pés do chão. Apesar de tudo, o que Beauregard poderia fazer a não ser sorrir também?

Quando a canção terminou, Mary Hellen deixou-se cair na cadeira, rindo e arfando ao mesmo tempo.

— Que maravilha! — ela falou para Frank, ainda em pé à sua frente. O menino segurava-lhe a mão, à espera do início da próxima canção.

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— Venha cá, Frank — Martha admoestou o filho. — Dê uma chance para a sra. Brigman respirar.

Frank obedeceu sem retrucar e sentou-se nos joelhos da mãe.— Que tal tocar alguma coisa adequada para os recém-casados? — Howard

sugeriu, cocando o queixo.— Ah, não se incomode... — Mary Hellen protestou, em vão.Howard começou a tocar Lorena, uma canção de amor nostálgica, acompanhado

pelo cantar da esposa. Martha mostrou-se dona de uma voz suave e profunda. Os sons se ergueram junto com o crepitar das chamas.

Beauregard sussurrou qualquer coisa no ouvido de Mollie e deixou-a no chão.Ele levantou-se e segurou na mão de Mary Hellen. Ela fitou-o, hesitante e

deixou-se levantar. Beauregard levou-a para longe do fogo, abraçou-a pela cintura e eles começaram a dançar. A noite estrelada arrebatou os medos trancados no coração de Beauregard, enquanto a canção triste prosseguia na rabeca e na voz de Martha.

Beauregard, segurando na mão de Mary Hellen durante o suave rodopiar, admirou a leveza com que ela o acompanhava.

Quando o som da última nota elevou-se às estrelas, Beauregard parou, relutante. Ainda de mãos dadas, eles se entreolhavam sem falar.

— Agora toque uma coisa legal, pai! — Frank gritou. Beauregard soltou os dedos de Mary Hellen, que abaixou a cabeça e sentou-se.Dali a segundos, uma música alegre criou um novo ânimo entre os presentes e as

crianças retomaram os passos da dança. Beauregard puxou Martha para bailar, mais para livrar-se do estado de melancolia. Mary Hellen batia palmas, enquanto os outros pulavam ao redor da fogueira.

Eles riam, brincavam e vaiavam, mas durante o resto da noite Beauregard não esqueceu da afeição que sentira, dançando com a esposa.

Por volta da meia-noite, Mollie adormeceu nos braços da mãe.— Está na hora de irmos embora — Martha sussurrou para Howard, tocando-lhe

na mão, pedindo-lhe para não tocar mais.Howard esfregou o queixo.— Acho que você tem razão. Meus braços já estão mesmo dormentes.— Agradecemos muito pela visita. — Mary Hellen ergueu-se. — Não me lembro

de ter me divertido tanto. Precisamos repetir a dose sem demora.— Nós o faremos, com certeza.Trocaram abraços e despedidas. Depois de acomodar a família e os pertences na

carroça, os Whitiker deixaram Mary Hellen e Beauregard em pé, do lado de fora da porta, agitando as mãos em despedida a seus vizinhos que mergulhavam no caminho escuro.

Logo o ranger do veículo não foi mais ouvido. Beauregard estava, por fim, a sós com a esposa.

— Vamos entrar? — Beauregard sugeriu e abraçou-a pelos ombros.

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Ela fitou-o, muito séria.— Vá na frente. Vou apagar o fogo.— Pode deixar que eu faço isso.— Que bobagem... Você trabalhou duro hoje. Ficarei até as chamas se

extinguirem por completo.Mary Hellen afastou os fios de cabelos da testa do marido.Eles ficaram olhando um para o outro por alguns instantes. Depois Mary Hellen

encaminhar-se, de cabeça baixa, para a fogueira.Beauregard observou-a afastar-se. Mesmo tomado por uma inquietação

irritante, ele queria, mais do que tudo, confiar em sua mulher.Hesitou por um momento, virou-se e entrou.

CAPÍTULO XXVIII

Mary Hellen sentou-se em frente à fogueira, com a mão dentro do bolso. A carta ainda estava lá. Ela reconsiderou o que fazer a respeito. Se a queimasse, o que Beauregard iria pensar? O papel era uma mercadoria valiosa naquelas paragens, o que não permitia que ela se mostrasse tão perdulária.

Ah, se ao menos Martha não a tivesse mencionado! Ela continuou sentada na cadeira, fitando as chamas amarelas.

Não seria melhor contar para Beauregard que a correspondência fora enviada por Garrison? Poderia rasgá-la na frente dele para demonstrar que não desejava voltar para a vida antiga.

E se o marido pedisse para ler? "Sei que me ama. Você disse isso em seu juramento."

Bom Deus, teria de confessar tudo!Mary Hellen fitou a casa, ansiosa e consciente de que seu receio aumentava.

Odiava ter de manter esse segredo, sem poder contar nada para Beauregard. Mas não arriscaria a vida do marido.

Por outro lado, preocupou-se em saber qual seria a atitude de Beauregard, se ele soubesse. O relacionamento deles havia percorrido um trajeto espinhoso para chegar até ali. E ainda não estava consolidado o suficiente para enfrentar uma situação como aquela.

Seria bem provável que ele ficasse colérico e arrasado. Mary Hellen nem queria pensar em uma coisa daquelas.

Ah, se ao menos eles estivessem casados há mais tempo! Nesse caso, quando o, início tempestuoso Houvesse se convertido numa memória distante, Beauregard seria até capaz de perdoá-la.

Mary Hellen pretendia contar-lhe um dia, quando Garrison ficasse reduzido a uma triste lembrança e não representasse mais nenhuma ameaça. Nesse tempo, o

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casamento já fortalecido poderia suportar o peso das novidades.Mas não naquele momento. Não enquanto Garrison não estivesse na cadeia.Mary Hellen fitou o céu escuro e tomou uma resolução. Queimaria a carta.

Naquele instante. Se Beauregard pedisse para ver o que estava escrito, ela diria que a havia usado para acender o fogão e nem pensara em guardar o papel para uso futuro.

Beauregard estava sentado à mesa e brincava com uma colher. Não gostou do que estava pensando. Não conseguia controlar as suas suspeitas.

Por que Mary Hellen insistira tanto para apagar a fogueira? Por que ele a deixara fazer a tarefa sozinha?

Cada vez mais impaciente, foi até a janela escura e pôs a mão em concha de encontro à vidraça fria e limpa. Mary Hellen estava sentada em uma das cadeiras e fitava o céu estrelado.

Era uma vergonha não confiar nela, mas tinha de saber o que ela estava fazendo. Cruzou o recinto, subiu a escada e abriu a porta. As dobradiças rangeram e chamaram a atenção de Mary Hellen. As chamas iluminaram-lhe o rosto e ele viu um brilho súbito de pânico no olhar da esposa.

Mary Hellen jogou rápido nas chamas o que deveria ser a carta. Aquilo pegou fogo, crepitou e depois desapareceu.

Mary Hellen fitou Beauregard a distância, no terreiro. Os segundos pareceram horas. Tudo o que ela podia fazer era esperar pelo que aconteceria em seguida. Ele aproximou-se devagar, o rosto contraído pela raiva. Ou seria desapontamento?

— O que foi que você queimou? A carta que Martha trouxe?Mary Hellen anuiu, com o coração apertado.— Não era de seu patrão, era?— Não.Ela percebeu que o marido cerrava os maxilares. — Por que a queimou? Não vai me dizer de quem era?— Achei que ficaria bravo.— E por que eu haveria de ficar? Você não o encorajou a escrever, encorajou?— Não.Beauregard fitou o fogo que ainda crepitava alto e as chamas que tremiam com o

vento.— O que ele disse?— Que quer que eu volte. Por isso a queimei. Beauregard olhou-a, desconfiado.— Eu iria contar-lhe... — Mary Hellen tentava melhorar a situação.— E por que eu deveria acreditar nisso?Mary Hellen levantou-se e deu alguns passos na direção dele, mas Beauregard

recuou. Ela parou, suspirou e tornou a adiantar-se.— Eu tinha de esperar Howard e Martha irem embora, antes de poder conversar

com você.106

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Beauregard ponderou sobre a explicação e, com a ponta da bota, jogou terra na fogueira, o que diminuiu as chamas.

— Você diz que o tal sujeito queria sua volta. Ele não se importa nem mesmo com o fato de você ser esposa de outro homem?

Mary Hellen encolheu os ombros, em pânico, sem saber o que responder.Beauregard encarou-a com dureza no olhar.— Será que ele nem mesmo sabe que você se casou? A verdade era essa. Garrison não sabia de nada, mas Mary Hellen teve receio de

dizer mais alguma coisa. Beauregard agarrou-a pelos braços e apertou-os.— Ele sabe?O pavor percorria todos os caminhos possíveis no cérebro de Mary Hellen.

Beauregard nunca fora bruto com ela, nem mesmo na noite de núpcias. Mas Mary Hellen tinha discernimento suficiente para avaliar as possíveis conseqüências da ira de um homem. Ela sacudiu a cabeça com energia.

— Por que não? Você resolveu fugir sem dar uma explicação, por acaso?— Não vi necessidade de fazer isso. Beauregard soltou-a e afastou-se. Com o pé, jogou mais terra na fogueira já

quase apagada.— Bem. Espero que, se você decidir pôr fim a nosso contrato, pelo menos tenha

a gentileza de avisar-me antes.— Não vou deixá-lo, Beauregard.— Você não me tem dado muitos motivos para que eu acredite nisso.Beauregard virou-se e caminhou em direção ao casebre. Desesperada para

apaziguar os desentendimentos, Mary Hellen segurou a saia e seguiu-o. Quando entraram, Beauregard sentou-se à mesa, com a mão na testa. O silêncio tornou-se angustiante.

— O que você vai fazer?— A questão é outra, Mary Hellen. O que você pretende fazer?— Nunca poderia imaginar que a escolha fosse minha.— Por que não? Você é que deixou um amante para trás, em Boston. Se quiser

voltar para ele, eu sobreviverei. Eu só precisava de uma ajuda aqui na fazenda. Poderei encontrar outra pessoa...

Mary Hellen teve a impressão de ter levado um soco no estômago.— Tem de acreditar em mim, Beauregard. Eu acabaria lhe contando sobre a

carta. Não pensei que fosse descobrir desta forma.— Nunca poderei ter certeza, não é mesmo? Mary Hellen ajoelhou-se ao lado da cadeira dele.— Beauregard, por favor, você tem de acreditar em mim. Não quero voltar para

ele. Sei que é difícil para você crer que não estou mentindo, depois do que aconteceu com... — Hesitou.

— Depois do que aconteceu com o quê?!

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— Depois do que aconteceu com Isabelle.Se ela o tivesse estapeado, a reação de Beauregard não teria sido muito

diferente.— Só porque ela foi embora, não quer dizer que eu também vá.— Quem lhe contou sobre isso? Martha? Mary Hellen assentiu.— Ela precisava dizer-me. Eu tinha de saber por que você estava tão zangado

comigo.— Pensei que soubesse o motivo. Você casou-se, mas já pertencera a outro

homem em Boston. Também contou isso para Martha? Que guardou o segredo, quem sabe por achar que eu não descobriria?

— Não...Beauregard coçou a ponta do nariz.— Era de se imaginar.Mary Hellen sentou-se nos tornozelos e assumiu uma posição defensiva.— Beauregard, não sou a única que guarda os segredos.— Sobre o que você está falando?— Sobre a jóia debaixo de nossa cama.— Que jóia?Pelo olhar do marido, Mary Hellen notou que ele sabia exatamente a que ela se

referia.— Eu achei a corrente e o pingente. Beauregard empalideceu. Fitou a cama, como se imaginasse a cena de ela

arrastar o pesado móvel e bisbilhotar nos objetos pessoais dele.— Quando?— Hoje.— Mary Hellen, aquilo não significa nada.— Então por que mentiu para Martha, dizendo que vendera o colar?Para falar a verdade, ele não encontrou uma resposta.— O pior de tudo, Beauregard, é que você ia deixar que eu vendesse o colar de

pérolas de minha mãe para sustentar-nos durante o inverno. Sem nunca haver sequer mencionado que também tinha alguma coisa para vender, inclusive de valor muito maior. Até pretendia trabalhar em outro lugar e deixar-me sozinha. Por quê?

Beauregard tocou na mão da esposa.— Eu não deixaria que vendesse as pérolas. — Parou de falar, durante um

momento longo. — Não podia imaginar que você conhecia a história de Isabelle.— Pois eu sabia.— Mary Hellen, eu ia me casar com ela. Não estava passando o tempo. Eu

gostava dela. Por isso não pude vender a jóia em seguida. Então você veio e trabalhamos muito e... — Ele tornou a fitá-lo com acusação no olhar. — Talvez você possa parar de amar alguém de repente, mas eu não. Meu coração não é uma

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máquina. Mary Hellen cruzou os braços.— E nem o meu! Você deve imaginar que por não conseguir esquecer Isabelle,

eu também não seja capaz de fazer o mesmo com Garrison. Sim, este é o nome dele. E você também não sabe o que aconteceu comigo, antes de eu vir para cá. Aliás, não tem a mínima idéia.

Beauregard sentou-se para a frente.— Então, conte.

CAPÍTULO XXIX

Mary Hellen fitou a janela escura. Pensava em até que ponto poderia contar a verdade, sem correr o risco de arruinar tudo.

— Eu não o amava, Beauregard. Hoje eu posso garantir-lhe. Claro que na época eu não tinha consciência disso. Eu era muito ingênua e solitária. — Sacudiu a cabeça com ar solene. — Ele não era quem eu pensava que fosse.

— Ele não era o quê?Mary Hellen pensou por um momento.— Decente.Beauregard mexeu-se na cadeira, mas a expressão continuava impassível. Ela

perguntou-se se ele estaria acreditando no que ela contava.— O que está tentando dizer-me, Mary Hellen?— Estou afirmando que cometi um erro. Depois da morte de meus pais, eu fiquei

muito sozinha. Nós éramos muito unidos e nem sei se algum dia chegarei a superar essa perda.

— Você não tinha mais parentes? Ninguém com quem pudesse morar? Uma outra família?

— Não. Não havia ninguém mais e também eu já não era mais uma criança.— Como foi que eles morreram?— O coche deles virou e caiu em uma ribanceira.Mary Hellen levantou-se e foi até a janela. Escutou a cadeira de Beauregard

sendo arrastada para trás e depois sentiu as mãos fortes do marido em seus ombros.Ela agradeceu intimamente a compreensão do marido, pois estava emocionada

demais para traduzir aquele sentimento em palavras.— No começo, Garrison foi muito bom para mim — ela continuou, mudando de

assunto.Mary Hellen precisava explicar alguma coisa a Beauregard, que sabia tão pouco

sobre ela...— Ele era bonito e educado. Desde a morte de meus pais, eu havia percorrido

uma trajetória de vários empregos. Trabalhei em uma fábrica de calçados e depois em uma de roupas. Quando conheci Garrison, eu trabalhava em um restaurante de hotel.

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Ele vinha jantar todos os dias. Sempre com a aparência de um cavalheiro muito charmoso. Começou a trazer-me flores todos os dias. Tenho de admitir que fiquei envaidecida.

Beauregard a fitou de um modo engraçado, como quem achava que ela não precisava de incentivos para envaidecer-se.

— Eu gostava das atenções dele. Estava sozinha, tinha saudade de meus pais e queria uma família. Aspirava a um casamento e filhos. Não via motivos para não aceitá-lo. E Garrison parecia mesmo muito interessado em mim.

Beauregard recuou um pouco, impaciente. Mas Mary Hellen precisava continuar. Tinha de explicar e fazê-lo entender que ela não fora uma jovem frívola, como ele pensava.

— Garrison me levava para passear todos os dias e era sempre atencioso, preocupado com meu bem-estar e minha felicidade. Depois de algumas semanas, ele... — Mary Hellen hesitou, sem saber se teria condições de continuar a narrativa.

— Ele o quê, Mary Hellen?— Resolveu me propor casamento. — Passou por Beauregard, sentou-se à mesa

e descansou o queixo na mão.— Ah, é?Mary Hellen notou a surpresa na voz dele e também um leve ciúme.— Sim.— E você aceitou?Ela esforçou-se para agüentar o olhar firme de Beauregard.— Aceitei. Entretanto...— Você aceitou?! — Beauregard sentou-se de novo, pálido.Mary Hellen observou como o marido ficara chocado com a notícia. Não podia

imaginar o que ele faria, se ouvisse o resto.Baixou os olhos. Estava muito encolerizada consigo mesma. Havia sido tão

fantasiosa, confiante e tola. Fora criada por pais muito éticos e não tinha condições de entender que no mundo havia muitas pessoas que não eram exatamente confiáveis. Errara as presumir que Garrison fosse um homem decente.

Ah, se ao menos pudesse imaginar esse outro casamento! Jamais teria se envolvido com um mau-caráter como ele.

— Mary Hellen?Ela assustou-se e fitou o marido sob a luz pouco clara. Teve de prosseguir,

embora vacilasse.— Assim que eu aceitei, ele insistiu para que eu não voltasse à pensão modesta

onde eu morava. Ele dizia que a mulher dele não poderia viver em um lugar daqueles. Garrison instalou-me em um hotel de luxo.

As últimas palavras foram pronunciadas em tom baixo e Mary Hellen procurou forças para continuar.

— Foi quando...

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— Garrison ficou com você no hotel? — Beauregard inclinou-se para a frente na cadeira, com o cenho franzido. — Gostaria de tomar o primeiro trem para Boston e torcer-lhe o maldito pescoço!

Mary Hellen estacou, apavorada. Beauregard não deveria ir para Boston. Não podia jamais encontrar-se com Garrison. Tinha certeza de que ele entregaria o tratante às autoridades, se descobrisse alguma coisa sobre o casamento ilegal. E nem pensar no que Garrison poderia fazer. Ela o havia abandonado por temer por sua própria segurança. E também porque o matrimônio não era válido. Por que remexer nisso de novo?

Como era difícil esconder os fatos reais de Beauregard, quando ela morria de vontade de contar-lhe...

O que seria pior? Mentir ou arriscar a vida de ambos?— Então, por que você o deixou? — Beauregard fez a pergunta direta.— Porque... porque depois de nós...— Depois de terem passado a noite juntos... Mary Hellen balançou a cabeça, com um gesto afirmativo.— É, depois... daquilo, Garrison mostrou-me um lado desconhecido de sua

personalidade. Acho que pelo fato de haver violado minha inocência, ele imaginava que eu lhe pertencia de algum modo. Até que me amarrou em uma cadeira no quarto, enquanto saía para cuidar de seus negócios...

Beauregard empurrou o assento para trás e levantou-se.— Ele fez o quê? Mary Hellen baixou a cabeça, com os olhos cheios de lágrimas e as mãos suadas.— Amarrou-me em uma cadeira.— Por quanto tempo?Mary Hellen procurou coragem para continuar. As memórias eram terríveis de

suportar.— Não muito. Garrison teve de voltar logo, pois fiz muito barulho, gritando por

socorro.Beauregard cobriu o rosto com as mãos e andou de um lado para o outro.— Gostaria de encontrar esse homem cara a cara. Queria...— Não, Beauregard, por favor. Deixe para lá. Só pretendo esquecer tudo isso.

Quero ficar aqui com você e apagar da lembrança o que aconteceu.Beauregard estava encolerizado e insistiria para encontrar Garrison. Ela não

poderia permitir que isso acontecesse...Ele foi até a cama.— Garrison deveria apodrecer na prisão pelo que fez a você.— É o que eu também gostaria, mas não tenho prova de nada. Ninguém iria

acreditar-me. Ele é poderoso e respeitado. Eu só tinha em mente fugir dele.Beauregard fitou-a.— Por isso respondeu ao meu anúncio.

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— Sim. Garrison dizia que jamais me deixaria ir embora. Eu sabia que, para ver-me livre de Garrison, teria de fugir para bem longe, onde ele não pudesse achar-me. Um dia ele ficou adoentado e eu aproveitei para esgueirar-me para fora do quarto. Fiquei andando pelas ruas, sem saber o que fazer. Foi quando vi o jornal e li o anúncio.

Beauregard levantou-se e andou pelo chão de terra, meneando a cabeça. Os olhos verdes haviam se tornado cinzentos.

Mary Hellen também ergueu-se.— Antes eu lhe disse que amava Garrison, pois não queria que você pensasse

que me entreguei a um homem sem amá-lo.Beauregard sentou-se na beira da cama e, cabisbaixo, pensou durante algum

tempo, mantendo o rosto entre as mãos. Mary Hellen só desejava acabar com tudo aquilo.

Por fim, ele a encarou, com os olhos semicerrados.— Mary Hellen, não me incomoda o fato de você não ter sido uma noiva virgem.

O que me preocupa é eu acreditar que ainda continua amando esse homem. Por que não me contou logo a verdade? Eu teria entendido.

— Teria mesmo? Se houvesse escrito tudo e com detalhes em minha carta, você jamais teria me aceitado. Decerto pretendia desposar alguém com um passado mais bonito.

Beauregard passou as mãos nos cabelos.— Essa é sua opinião. A verdade você não sabe.— Sei, sim. Depois de Isabelle, você queria navegar em águas mais calmas.

Nenhuma dificuldade inesperada que pudesse fazê-lo sentir alguma coisa. Nada que envolvesse sentimentos. Talvez não se importe por não me haver conhecido como donzela, Beauregard. Mas isso é importante para mim. Eu me arrependerei para sempre por ter me entregado a alguém a quem não conhecia direito e sem saber o que era um amor verdadeiro.

— Ainda assim você permitiu que eu a amasse na nossa noite de núpcias. E nós mal nos conhecíamos.

— Aquilo foi diferente.— Por quê? Por que nós éramos casados? Ou por que você talvez já não fosse

mais inocente? A primeira vez é importante e a segunda não?— Claro que é! — gritou, incapaz de controlar o desespero. — Será que você não

enxerga? A primeira vez não é tão essencial quanto a última. A última! Não haverá ninguém depois de você. Isso não quer dizer nada?

Beauregard demonstrou uma emoção diferente e Mary Hellen gostaria de saber qual seria.

— Pretende manter o seu juramento, Mary Hellen? — Pretendo, Beauregard.— Então, escreva a Garrison e conte-lhe. Diga-lhe que está casada e que ele nem

pense mais em fazer contato com você. Porque, se o fizer, o seu marido fará com que

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ele se arrependa do dia em que a conheceu.Mary Hellen viu o ódio nos olhos de Beauregard e entendeu que seu marido

falava sério.— Nós a enviaremos amanhã. Temos mesmo de ir à cidade, para comprar alguns

suprimentos. — Beauregard passou pela esposa para sair, mas deteve-se e voltou. — E, se esse sujeito gostar de si mesmo, tratará de esquecê-la, para o bem dele mesmo.

Beauregard deixou de casa feito um rojão. Mary Hellen parada, no meio do quarto, inquieta e temerosa. Consciente de que Garrison McPhee, infelizmente, não sabia o que era bom para ele, pois apenas enxergava o que queria.

CAPÍTULO XXX

Mary Hellen balançava, oscilava para todos os lados e até pulava, sentada no banco da carroça. Segurava com força o xale branco de lã. Os dedos começavam a ficar dormentes por causa do frio. Desde que ela e Beauregard haviam deixado a fazenda, a temperatura quase não se elevara. O céu estava branco e a manhã, sem cor. As gramíneas da pradaria agitavam-se ao sabor do vento forte. Sem sol, o calor do verão parecia abandonar-se ao outono, cedo demais.

Ensimesmada, sem falar, ela sentia a brisa gelada que soprava em seu rosto e a presença da carta para Garrison, em seu bolso. Conhecia o conteúdo de cor e salteado. Fora muito difícil encontrar as palavras certas:

"Prezado Garrison,Recebi sua carta. Por favor, não escreva mais e nem tente manter contato

comigo. Nada temos para conversar. Está tudo terminado entre nós. Amo outra pessoa.

Mary Hellen."

Ficara em dúvida em como escrever a última frase ou talvez suprimi-la. Por fim, optou por deixá-la curta e objetiva.

Beauregard, a seu lado, deu uma tossidela. Ela desejava que o marido falasse alguma coisa. Qualquer coisa. Mas ele se limitava a segurar as rédeas e a apressar os cavalos. Mary Hellen tinha a impressão de que Beauregard gostaria de ver terminada aquela confusão, tanto quanto ela mesma.

De repente, a carroça levantou e desceu, deu um solavanco e parou.— Condenada! — Beauregard praguejou. — Iah! Iah! Os cavalos tentaram, mas caixa velha de madeira não se mexeu.— Estamos atolados. — Ele largou as rédeas e deu um salto para descer.Mary Hellen imaginou que a irritação de Beauregard se devia à presença dela,

além do transtorno óbvio do incidente.Beauregard curvou-se ao lado da roda dianteira esquerda.

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— Pegue as rédeas e faça os cavalos puxarem.Mary Hellen deslizou no assento. Os cavalos esforçaram-se para andar, com os

cascos grandes batendo no solo.Beauregard grunhiu e gemeu.— Já chega, Mary Hellen! Pare, pare!Beauregard foi para a frente e tentou fazer os animais recuarem. Porém, a roda

estava presa em um buraco fundo.— Talvez eu devesse sair — Mary Hellen sugeriu. — Pode ser que a carroça

esteja muito pesada.Frustrado, Beauregard fitou-a e anuiu.Mary Hellen desceu no meio da relva e constatou a profundidade do buraco. Do

solo, o ângulo de inclinação da carroça parecia impossível de ser real.Beauregard foi de novo até a roda atolada.— Vá você para a frente e puxe-os. Mary Hellen o obedeceu.Durante dez longos minutos, eles empurraram, encorajaram e grunhiram. Mas

não houve resultado positivo. Mary Hellen voltou para examinar a situação.— Por quanto tempo nós já rodamos?— Deve ser quase meio-dia... Uma quatro horas, pelo menos.No momento, as circunstâncias não se apresentavam muito promissoras. Mary

Hellen pretendeu sugerir uma pausa, porém envergonhava-se de fazê-lo. Por outro lado, não podia agüentar por mais tempo os olhares irados do marido.

— Por que não almoçamos, Beauregard? Você está cansado, e os cavalos também. Talvez, se esquecermos um pouco o assunto, possamos ter uma idéia melhor.

Beauregard ignorou o oferecimento e puxou a roda mais uma vez. Depois de um valente esforço, ele recuou.

— Quando chegarmos à cidade, o correio já estará fechado.Mary Hellen umedeceu os lábios. Entendia o porquê da aflição do marido. Eles

teriam de permanecer em Dodge e esperar até o dia seguinte, o que poderia significar outro período de cultivo perdido. Tudo por causa daquela bendita carta.

Bem, estavam encalhados e famintos. Comer alguma coisa antes de reiniciar os trabalhos da remoção não iria atrapalhar em nada. Mary Hellen deu a volta na carroça e tirou a caixa onde havia acondicionado uma grande broa de fubá e um jarro com água.

— Vamos comer, enquanto resolvemos o que poderá ser feito para tirar a roda do buraco.

Mary Hellen sentou-se, espalhou a saia em volta de si e cortou uma fatia do pão macio. Já dava a sua segunda dentada, quando Beauregard resolveu acomodar-se a seu lado.

— Pão de fubá?Ela anuiu e continuou mastigando. Terminaram de comer o pão inteiro sem dizer

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mais nada.Ao final da refeição, Beauregard deitou-se, curvou um joelho e cobriu a face com

um braço. Mary Hellen observou-lhe os lábios e o queixo com a barba hirsuta. A maior parte do rosto permanecia coberta pela franja da manga.

— Assim que pudermos, teremos de reiniciar a viagem. Poderemos acampar nos arredores da cidade ou ficar com George. Mas desconfio que ele mandará enforcar-me, se não ficarmos na casa dele.

— Isso me parece uma boa idéia. Poderemos tratar de nossas incumbências logo pela manhã.

Beauregard não respondeu. Depois de alguns minutos, tocou no assunto que o incomodava.

— Você escreveu a carta ontem à noite? Mary Hellen sentiu um frio no estômago.— Escrevi. Está em meu bolso. Beauregard afastou o braço dos olhos.— Posso ver?— É claro. Se quiser... — Mary Hellen tirou o papel do bolso.Beauregard sentou-se. Leu a nota em segundos que pareceram horas. Depois,

colocou a missiva no colo e encarou a esposa. O cenho já não estava tão franzido e nem a boca tão cerrada.

— Uma mensagem muito boa.Mais aliviada, Mary Hellen soltou os ombros.— Obrigada.Durante alguns instantes só se ouviu o vento que soprava através da pradaria.— Isso é verdade, Mary Hellen?Ela sabia muito bem a que Beauregard se referia e, de repente, teve medo.— Qual parte? — Procurava ganhar tempo. Ele devolveu-lhe a carta.— A última. "Amo outra pessoa."O coração, de Mary Hellen bateu, desordenado, ao considerar aquela afirmação.

Imaginou se saberia mesmo o que era o amor. Entretanto, Beauregard fora o único responsável pelos sentimentos novos e inebriantes que a envolveram durante aquelas poucas semanas.

A maneira delicada e erótica de ele acariciá-la. O modo como Mary Hellen compartilhava das alegrias do amor com o marido. E ela se tornava cada vez mais íntima de Beauregard, emoção essa que não se recordava de haver sentido em sua vida inteira. Seria isso o amor? Seria amor o fato de ela não suportar a idéia de viver sem ele?

Beauregard sentou-se, sem esperar resposta.— Você não tem de responder. Eu não deveria ter perguntado.— Não, por favor, eu...

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— Desculpe-me se fui muito ríspido ontem à noite. Mas eu estava possesso.Surpresa, Mary Hellen passou a ponta da língua no lábio inferior. O marido pedia

desculpas, encarando-a, enquanto os cabelos dele esvoaçavam ao vento.— Não se preocupe. Você tinha o direito de ficar bravo.— Eu deveria ter lhe dado uma chance para explicar-se. — Beauregard inclinou-

se sobre um braço, arrancou uma folha fina e comprida da relva e entrelaçou-a no dedo indicador. — Acha que, depois de enviar a carta, nós poderíamos... recomeçar?

Beauregard suspirou, antes de continuar:— Não sei o que Martha lhe disse sobre meu relacionamento com Isabelle, mas

tudo já terminou. Eu trouxe comigo a corrente de ouro e o pingente, pois pretendo vendê-los hoje. Sua carta seguirá para o destino certo e as coisas poderão ser diferentes.

O coração de Mary Hellen aqueceu-se com a esperança.— Eu gostaria muito, Beauregard. Ficaram sentados mais um pouco, olhando-se e Mary Hellen perguntou-se se

algum dia aquela angustia a abandonaria. Seu marido queria recomeçar uma nova vida. Isso não lhe parecia impossível ali na pradaria, tão longe de Boston.

CAPÍTULO XXXI

— Vamos tirar a carga da carroça. — Beauregard se sentia revigorado depois do almoço e de ter dado água para os animais.

Admitiu que sua esposa tivera razão em sugerir que fizessem uma pausa para comer. Os cavalos certamente também agradeceram o descanso.

Mary Hellen ajudou a descarregar os utensílios de cozinha, o caldeirão, a caçarola de cabo e três pernas, além das caixas com manteiga e ovos que haviam trazido para vender. Beauregard tirou a pá e o rifle.

— Vou escavar uma rampa para podermos tirar essa roda do buraco. Então você aproveitará para puxar os cavalos.

Durante a próxima meia hora, Beauregard cavou com a pá o solo duro e compactado pelas raízes entrelaçadas da relva.

Sentiu calor, em conseqüência do esforço despendido. Tirou o paletó e a camisa, dobrou-os sobre a lateral do estrado. O vento frio em sua pele nua pareceu-lhe um refrigério. O buraco estava mais comprido e ele esperava que houvesse espaço suficiente para mover a carroça e fazê-la rodar. Parou de tirar terra e voltou-se para Mary Hellen.

— Vou colocar a pá debaixo da roda para fazer o efeito de uma alavanca e forçar um pouco.

Mary Hellen chegou até os cavalos e segurou os arreios.— Estou pronta. Pode começar. Depois é só avisar.

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Beauregard espetou o cabo da pá no chão em forma de cunha, para erguer a roda. Esta subiu alguns centímetros.

— Tudo bem. Comece a puxar! — ele gritou, lançando todo o seu peso contra a parte de ferro que começava a ferir-lhe as palmas das mãos.

A carroça moveu-se um pouco, mas parou ao chegar no declive que Beauregard havia esculpido.

— Mais forte!Tropeçando e sofrendo, os cavalos puxavam com esforço violento o que parecia

ser um peso insuportável.A carroça rangeu como um barco velho, mas em seguida levantou-se e rodou

para fora da cavidade. A roda de trás entrou no buraco e o veículo pareceu rodar na lateral de uma onda. O impulso dos animais puxou-o outra vez para fora.

De repente, Beauregard escutou um grito. Saiu da depressão que havia cavado, mas não avistou Mary Hellen.

Pôs-se a procurar as rédeas às apalpadelas. Onde sua mulher estaria?A parelha parou de repente.— Mary Hellen! — chamou-a, aflito.Nisso, Beauregard a viu, presa debaixo da carroça. Ajoelhou-se e rastejou para

baixo do estrado, na sombra escura onde ela estava deitada de lado, apertando o pulso.

— O que aconteceu?— Eu caí, e os cavalos não conseguiram parar. Acho que quebrei o braço.— Deixe-me ver.Com cuidado, Beauregard tentou despir-lhe a manga comprida, onde era visível

uma mancha de pisada de casco.Como pudera deixá-la fazer um trabalho tão arriscado?, ele recriminou-se. Por

que ele mesmo não fizera aquilo?— Consegue mexer o braço?— Não.Beauregard deitou-se de lado, sobre um cotovelo e notou-lhe a palidez. Em vez

de tirar, ele enrolou a manga para cima.— Preciso ver como está. — Com as mãos trêmulas, ele fechou os dedos sobre o

pulso delicado e ferido, procurando sentir os ossos quebrados. — Estou machucando você?

Mary Hellen enrijeceu-se, olhou firme para o fundo da carroça e anuiu.— Acha que quebrou, Beauregard?— Não tenho certeza — ele mentiu. Beauregard sentia uma grande protuberância no osso fino e aquilo provocou-lhe

um grande mal-estar. Mary Hellen apertou o punho e, desajeitada, tentou sentar-se.— Talvez esteja apenas machucado.— Não quero mais correr riscos. Assim que chegarmos à cidade, iremos direto ao

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consultório do dr. Green. Você pode se mexer?— Posso, mas acho que preciso de ajuda.Beauregard esgueirou-se para fora, por cima do capim seco que pinicava. Voltou-

se para auxiliar Mary Hellen a sair dali. Canhestra, ela se esgueirava pelo chão e deixava escapar gemidos guturais por entre os dentes apertados. Ela ficava ainda mais pálida.

Beauregard amparou-a para que Mary Hellen pudesse ficar em pé. Depois tomou-a no colo como se fossem recém-casados e ajeitou-a com delicadeza no assento de madeira. Apesar do coração que batia aos golpes, ele procurava aparentar calma.

E se houvesse acontecido uma coisa pior com Mary Hellen? Se o cavalos a houvessem esmagado?, refletiu, inconformado com sua irracionalidade. Sua mulher poderia vir a falecer! Tudo isso, pela impaciência de mandar a carta.

Mary Hellen, ajeitou-se no banco, apertando o ferimento. Beauregard se comoveu de vê-la sofrer, curvada pela dor. A viagem sacolejante que os esperava não seria nada agradável para ela.

Ele fitou o sol. A tarde já ia adiantada. Chegariam à noite na cidade e ao consultório do dr. Green. Apressado, Beauregard tornou a carregar a carroça, jogando as coisas dentro, sem qualquer critério. Nem queria pensar no que estava acontecendo. Fora tudo por culpa dele. E, na certa, Mary Hellen estava consciente disso.

Já havia escurecido, quando eles chegaram à cidade. A dor no braço de Mary Hellen era tão cruciante, que ela não saberia dizer onde começava e onde terminava. No ombro? Nas costas? No quadril?

Durante o trajeto, todas as vezes em que passavam por irregularidades no terreno, apareciam novos espasmos que lhe provocavam ânsia de vômito. Várias vezes ela sufocara a vontade de inclinar-se para fora da carroça e deixar a natureza agir. Em vez disso, forçara a si mesma a suportar o enjôo. Quando tinha vontade de gritar, concentrava-se em controlar a respiração, mantendo-a firme e regular.

— Estamos quase chegando. — Beauregard virou o veículo na Front Street. — Você está gelada.

— Estou bem.Na verdade, Mary Hellen batia os dentes sem cessar, mesmo quando tentava

manter o queixo apertado.Beauregard tirou o paletó de couro e ajeitou-o nas costas de Mary Hellen.

Quando ela fechou o agasalho em volta de si, a dor voltou mais forte. Mas, graças a Deus, o casaco era quente...

Eles pararam em frente a uma construção na rua principal, cujas janelas estavam às escuras.

— Bem que eu imaginei... — Beauregard murmurou. — O médico já deve ter ido embora.

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Ficaram parados, sentados, enquanto Beauregard decidia o que fazer. Mary Hellen puxou mais o casaco para agasalhar-se.

— Bem... Vamos fazer o seguinte. Eu a levarei até a casa de George, um lugar mais confortável. Depois irei à procura do doutor e o levarei até lá.

Beauregard bateu as rédeas e dirigiu a carroça para a casa do irmão. Por sorte, uma lamparina estava acesa na janela da frente. Beauregard alcançou o chão com um pulo, correu escada acima e bateu com força na porta.

Alguns segundos mais tarde, a pesada peça de madeira rangeu e abriu-se.— Beauregard! Que boa surpresa! — George olhou para o irmão e depois para a

carroça. — Mary Hellen veio junto?— Sim. Nós viemos comprar suprimentos e encalhamos na pradaria. Ela está

machucada e precisamos de um médico.George arregalou os olhos, espantado.— Traga-a até aqui! Beauregard voltou rápido à carroça para ajudá-la.Mary Hellen sentia-se fraca e doente. Encostou-se no ombro do marido para

descer, mas ele tomou-a de novo nos braços fortes.Mary Hellen escondeu o rosto no pescoço de Beauregard, com vontade de

dormir ali. Aquilo seria impossível. A dor era muito grande e não havia condições de ignorá-la. Ele carregou-a para dentro, com passadas grandes e cuidadosas.

— Leve-a para cima, até o quarto de hóspedes — George instruiu, seguindo o irmão. — Acenderei a lanterna.

Dali a instantes, Mary Hellen repousava em um colchão macio e o marido cobriu-a com uma manta de lã. Beauregard tocou-lhe a testa com as costas da mão.

— Você ficará bem até eu voltar? Ela assentiu, em silêncio e com sono.— George, tome conta de Mary Hellen. Vou procurar o dr. Green.Mary Hellen escutou o som das botas do marido descendo rapidamente os

degraus, o ranger da porta que se abria e o bater que veio em seguida. Ficou deitada na cama, fitando o forro pintado de branco.

— Como foi que aconteceu? — George quis saber. Mary Hellen nem percebera que ele ficara no quarto. Estivera por demais

concentrada em lutar contra a dor. Ah, que maravilha poder pensar em outra coisa...— Nós caímos em um buraco, George. Estava guiando os cavalos para fora, mas

Gem escorregou, e eu caí. Deveria ter sido mais cuidadosa.— Bobagem! Acidentes acontecem. Onde estava Beauregard?— Atrás da roda posterior. — Parou para respirar. — Empurrando. Ele estava

com muita pressa de chegar à cidade...George franziu a testa.— Está tudo bem entre vocês?Confusa e desorientada, Mary Hellen tentou sentar-se.

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— Não, não faça isso... você deve ficar quieta. — George aproximou-se da cama e puxou as cobertas até o queixo da cunhada. — Eu conheço a situação. Não se preocupe.

Ela tentou sentar-se de novo.— Que situação? Você está se referindo aos gafanhotos?Ele afastou-se, sentou-se na cadeira de balanço e deu um impulso para trás.— George, o que está acontecendo?— Nada, Mary Hellen. Não está acontecendo nada. Você precisa descansar.A agitação dela causou mais um espasmo de dor. Ela apertou o braço e deixou-se

cair para trás.— Não me mande descansar. Eu o farei quando me disser o que está havendo.George empurrou os óculos de aro dourado para cima do nariz afilado.— Não há nada para inquietar-se.— Por favor, diga-me — ela pediu, com voz suave. Não estava com energia

suficiente para insistir. — Se não o fizer, ficarei deitada aqui imaginando todo tipo de coisas, com certeza bem piores das que você está escondendo de mim.

Após uma breve hesitação, George deixou escapar um suspiro de derrota.— Como eu já lhe disse, não há nada para preocupar-se. Apenas... Bem, é que

uma velha amiga de Beauregard está envolvida em outro escândalo.— Como assim? — Mary Hellen esforçava-se para raciocinar. — Velha amiga?

Está se referindo a Isabelle?George pareceu mais descontraído.— Então você sabe sobre ela?— Claro que sim. O que aconteceu?— Acho que o marido a abandonou.Mary Hellen sentiu uma espécie de inquietação infiltrar-se em sua mente.— Onde foi que você ouviu isso? Talvez seja apenas um boato.— Tenho convicção de que é verdade.— Como pode estar tão certa? George encarou-a.— Porque ela está na casa do pai e veio falar comigo outro dia para saber de

Beauregard.

CAPÍTULO XXXII

Beauregard irrompeu pela porta adentro da casa de George, com o dr. Green em seu encalço.

— Ela está lá em cima.Subiram a escada, sem demora. Entraram no quarto e pensaram que Mary

Hellen estivesse adormecida. Mas assim que ouviu o ruído, ela abriu os olhos. George

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continuava sentado na cadeira de balanço, olhando para ela.O médico inclinou-se e pôs a mão na cabeça de Mary Hellen.— Como está se sentindo? — o médico quis saber, ao abrir a maleta de couro

marrom.— De modo geral, estou bem.— Deixe-me ver se está mesmo. — Beauregard afastou as cobertas. — Qual é o

braço? Ah, este aqui!Beauregard adiantou-se. A mão de Mary Hellen havia ficado azul.O dr. Green tentou enrolar a manga para cima, mas encontrou-a muito apertada.— Vamos ter de remover isto. — Olhou para George na cadeira de balanço.— Esperarei lá embaixo. — George ergueu-se e segurou o pulso do irmão. — Por

que não vem comigo? Preciso conversar com você.Beauregard fitou a mão de George que o apertava.— Faremos isso mais tarde.— Vou precisar de sua ajuda, Beauregard — o médico avisou.George hesitou por um momento, depois saiu do quarto e fechou a porta.O médico tirou depressa e com cuidado o corpete de Mary Hellen e deixou-a sob

as cobertas, de camisa e espartilho. — Tenho de examiná-la. Vai doer um pouco. Beauregard aproximou-se da cama e segurou-lhe a outra mão.O médico tocou o pulso.— Está doendo?— Está.O dr. Green apertou um pouco mais.— E agora?Mary Hellen contorceu-se de dor.— Ai! — Ela apertou os dedos de Beauregard e cerrou os dentes.O médico examinou mais um pouco e olhou para Beauregard.— Está mesmo quebrado. A julgar pelo aspecto da mão, terei de colocar o osso

no lugar agora mesmo. A circulação está prejudicada.Beauregard fitou a expressão apavorada de Mary Hellen.— Não há remédio para aliviar a dor, doutor?— Não tenho tempo para ir buscar, Beauregard. Ela pode perder a mão. Agarre o

braço dela bem aqui.Em pânico, Beauregard deu a volta no leito e obedeceu.Mary Hellen fitou-o, com o medo estampado nos olhos súplices. Seu marido

queria segurá-la e protegê-la, mas sabia que o necessário deveria ser feito. Sentiu um nó no estômago e respondeu com um olhar pesaroso.

O especialista fechou a mão sobre o punho dela, ajeitando os dedos.— Isso vai doer, sra. Brigman, mas eu o farei o mais depressa que puder.De repente, o dr. Green puxou. Mary Hellen gritou de dor.

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Beauregard segurou no braço da esposa, lutando contra a vontade de expulsar o homem dali. O médico puxou o osso, empurrou e pressionou para baixo o máximo que pôde. Mary Hellen gritava em agonia e contorcia-se como uma moribunda. Beauregard estava sem ar e segurava-lhe a mão, enquanto o dr. Green puxava mais uma vez. Ele nada podia fazer, a não ser ficar ali, vendo Mary Hellen sofrer.

— Pare, por favor! Não agüento mais!De repente, o clínico soltou o braço de Mary Hellen, deu um passo atrás e

enxugou a testa com a manga. Mary Hellen continuava a contrair-se, chorando.— O senhor conseguiu?O dr. Green sacudiu a cabeça, desanimado.— Ainda não, Beauregard. Está muito inchado. Interrompi, para ela se recuperar

um pouco. Depois tentarei de novo. — Foi até a porta e chamou o dono da casa. — George! Você tem uísque?

Beauregard inclinou-se e tirou os cabelos da testa de Mary Hellen. Naquele momento ela estava quieta e o suor cobria-lhe o rosto.

— Estou enjoada...O dr. Green apanhou o urinol de dentro do criado-mudo e trouxe-o para cima da

cama. Mary Hellen vomitou e depois engasgou, tentando respirar. Nisso, George entrou com uma garrafa.

— O que está acontecendo?— Estamos recolocando o osso no lugar — o médico respondeu e tirou a bebida

das mãos de George, que desceu em seguida.Pôs o gargalo na boca de Mary Hellen, que engoliu o quanto pôde.— Tenho de tentar de novo — ele avisou e devolveu a bebida para George.— Não, por favor, ainda não... — Mary Hellen implorou.— Sinto muito, sra. Brigman. Mas sua mão... — O dr. Green fez um aceno para

Beauregard segurá-la firme. Depois, dirigiu-se a Mary Hellen. — Agora, coragem...Beauregard prendia-lhe o braço, tentando manter a própria valentia. O coração

se confrangia ao vê-la de dentes e olhos cerrados. As lágrimas vieram copiosas, enquanto ela se preparava para o sacrifício.

O médico puxou do lado contrário onde Beauregard segurava. Mary Hellen gritou e torceu o corpo mergulhado na dor. Beauregard rezava para aquele tormento acabar logo, horrorizado com a força que tinha de fazer em oposição ao estirar do dr. Green. Não podia suportar mais a tortura a que Mary Hellen estava sendo submetida.

O minuto seguinte pareceu uma eternidade. Finalmente o osso chegou no seu devido lugar e Mary Hellen inclinou-se para o lado do marido, aliviada.

— George, pegue as talas na minha maleta.O dr. Green enfaixou o braço de Mary Hellen e ela cerrou os dentes para não

gritar. Beauregard não pôde deixar de admirar-lhe a coragem.— Agora acabou, amor. Acabou. Muito fraca, ela anuiu.

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— O senhor poderia ministrar-lhe algum medicamento para aliviar a dor?— Vou dar-lhe um pouco de morfina. Beauregard, peça a George que pegue a

embalagem no meu consultório. Está na estante de remédios, na última prateleira. Aqui está a chave da porta e esta outra é a do armário.

Beauregard desceu, explicou o que o médico queria. George saiu e não demorou a voltar.

Pouco tempo depois, Mary Hellen fechou os olhos e adormeceu. Beauregard suspirou, aliviado. Tudo aquilo acontecera pela pressa de enviar a carta.

A culpa era toda sua!Beauregard e o dr. Green desceram e foram até a cozinha, onde George fervia

água para o chá.— Ela está bem? — George quis saber.— A sra. Brigman vai sofrer um pouco, mas se recuperará. A mão ficará perfeita— Saber disso é reconfortante, dr. Green. Gostaria de ficar para o chá, doutor?— Não posso, obrigado. Tenho de ir para casa e pôr as crianças na cama.Beauregard acompanhou-o até a porta.— Doutor, suponho que o senhor ouviu falar dos gafanhotos — Beauregard

disse, em voz baixa.O dr. Green anuiu, tocando-lhe no ombro.— Nós temos uma boa quantidade de manteiga na carroça. Quando a

vendermos, terei condições de pagar uma parte do que lhe estou devendo.O dr. Green levantou a mão.— Sei que você é um homem de palavra, Beauregard, e que me pagará quando

puder.Beauregard apenas acenou com um gesto de cabeça, agradecido pela paciência e

confiança do médico. Ainda bem que possuía o colar para vender.O dr. Green partiu, e Beauregard voltou para a cozinha, onde sentou-se. Foi só

então que sentiu fraqueza. Parecia que as pernas haviam abandonado seu corpo. Fizera-se de forte para amparar Mary Hellen em seu sofrimento, mas naquele momento ele pensou em um bom gole de uísque. Cansado, fitou o irmão.

— Bem, o que você tinha para dizer-me? George serviu duas xícaras de chá e levou-as até a mesa.— Escute bem. Tive uma visita há uns dias. Isabelle.Beauregard levou a chávena aos lábios, para disfarçar o tremor.— O que ela queria?— Está preparado para ouvir?Beauregard não tinha muita certeza disso, mas de qualquer modo teria de fazê-

lo. Concordou, acenando com a cabeça.— O marido dela fugiu com uma garçonete do The Comique Theatre.Beauregard sorveu um pouco de chá calmamente e pôs a xícara de porcelana

sobre o pires, tentando não derramar o líquido quente. Exalou um suspiro sonoro.

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— E o que eu tenho com isso? George afundou na cadeira.— Não sei, meu irmão. Pensei que se importasse. Mas me alegro por estar

errado.— O que esperava que eu dissesse?— Imaginei que fosse sair correndo por aquela porta à procura de Isabelle para

tomá-la nos braços, oferecendo o ombro para ela chorar.Beauregard remexeu-se na cadeira.— Tenho uma esposa lá em cima, George. Acha mesmo que eu a deixaria sozinha

nessas condições? O que iria parecer? — Tomou mais um gole de chá, fitando o irmão por cima da borda da xícara. — Por que está me olhando dessa maneira?

George esfregou o queixo.— Espero, com sinceridade, que não se trate só de uma questão de aparências.Beauregard largou a chávena no pires, dessa vez com força desnecessária, e

levantou-se.— George, não me importo com o que aconteceu a Isabelle. Sinto muito por ela,

e é só!

CAPÍTULO XXXIII

Beauregard entrou no quarto silencioso e pouco iluminado. Pisando devagar, aproximou-se da cama de Mary Hellen. Ela estava deitada de costas e dormia profundamente. O médico dissera que a dose de morfina seria suficiente para ela dormir até a manhã seguinte.

Beauregard deitou-se na beira da cama, ao lado da esposa, tocou no cobertor e depois na mão dela. Estava arrependidíssimo. Se lhe fosse permitido trocar de lugar com Mary Hellen naquela noite, ele o teria feito sem hesitar. Qualquer coisa para poupar-lhe daquele sofrimento.

Apoiou-se em um cotovelo para fitar o rosto adorável da mulher. Até que enfim, a expressão dela era de tranqüilidade.

Beauregard beijou-lhe a face, de leve. Era estranho pensar que houvesse se casado com Mary Hellen por causa de Isabelle. Nunca poderia supor que alguma coisa boa pudesse advir por Isabelle haver rompido o compromisso deles.

Para ser bem sincero, fora esse o motivo que o levara a fazer um anúncio insípido em um jornal. O que acabara por trazer-lhe a suave Mary Hellen.

Isabelle viera falar com George.Por quê? O que ela teria dito a seu irmão?Na verdade, a notícia fora surpreendente. Beauregard se esforçara ao máximo

para demonstrar indiferença e não se permitira fazer nenhuma pergunta.Deitou-se de costas, com um braço sob a cabeça.Podia ser que Isabelle tenha se arrependido de sua decisão de romper o noivado.

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Talvez ela quisesse retomar o relacionamento deles.Pôs a mão em concha sobre a testa e fechou os olhos, apavorado com a

possibilidade de tornar a encontrá-la. Claro, teria de ser educado, mas isso poderia ser constrangedor.

Por outro lado, se a visita a George houvesse sido uma mera cortesia, não havia com que se preocupar.

Tentou focalizar o teto na semi-obscuridade. Ouviu Mary Hellen respirar de forma regular, a seu lado,

Se Isabelle guardava alguma esperança de que ele a aceitaria de volta, ela teria de saber que ele estava casado com outra. E que ele não tinha a mínima intenção de quebrar o juramento que fizera. Isabelle teria de entender que o amor que existira entre eles estava acabado.

E ponto final.

Mary Hellen acordou na manhã seguinte com o braço doendo muito. Gemeu e lembrou-se dos horrores da noite anterior. O médico puxando o seu braço quebrado... Pareceu-lhe um pesadelo terrível. Em toda a sua vida, jamais fora submetida a uma provação como aquela. E, pelo jeito, a dor ainda não a abandonara...

Ouviu vozes vindas do térreo. Beauregard e George estavam conversando, mas Mary Hellen não distinguiu as palavras.

Sentiu sede. No criado-mudo ao lado da cama havia um copo com água. Ao tentar pegá-lo, derrubou-o. A peça de vidro caiu no chão e espatifou-se.

— Droga!Mary Hellen tentou erguer-se. Sentiu forte enjôo e voltou a deitar-se. Ainda não

estava em condições de sair da cama.Uma batida soou à porta. Ela nada respondeu e Beauregard entrou.— Mary Hellen, está tudo bem com você? — Ele fechou a porta e chegou até a

cama. — O que aconteceu? George e eu ouvimos um baque.— É melhor trazer logo a bacia de lavar as mãos. Agora! — Agitou-se com as

convulsões.Beauregard pegou depressa a bacia de porcelana e segurou perto de Mary

Hellen, para que vomitasse. Ela detestou que o marido a visse naquele estado. Quando terminou, voltou a deitar-se e puxou o cobertor até o pescoço.

— Desculpe-me... — Mary Hellen esforçou-se para falar, enxugando as lágrimas dos olhos.

— Não seja bobinha... — Beauregard deixou a bacia no chão e pegou um lenço sobre a cômoda. Sentou-se na beira da cama e limpou-lhe a face. — O dr. Green deu-lhe uma boa dose de uísque ontem à noite, além da morfina.

— Eu lembro. Foi horrível!— Acho que você até gostou da bebida! — Beauregard caçoou, tentando alegrá-

la um pouco. — Como está seu braço?— Doendo.

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Beauregard tirou alguns fios de cabelo dos olhos dela. A despeito do estômago embrulhado, Mary Hellen acalmou-se com aquele toque suave.

— George disse que podemos ficar aqui o tempo que for necessário. Não vamos a lugar nenhum até você melhorar.

— E a plantação?— Pode esperar alguns dias. O importante é que você se sinta bem.— Sou mesmo um estorvo. Só tenho lhe causado problemas.Beauregard acariciou-lhe o rosto e sorriu com afeto.— Não quero que pense em um absurdo desses. Se há algum culpado nessa

história, esse alguém sou eu. Não deveria ter tanta pressa em chegar à cidade. E o pior é que pedi para você segurar os cavalos quando...

— Beauregard, não tem de ficar aqui só por minha causa. Pode voltar e terminar seu trabalho. Eu voltarei para casa, quando estiver melhor. Ficarei bem, não se preocupe.

Mas para ser franca, Mary Hellen não queria afastar-se dele, nem mesmo por um dia.

— De modo algum! O doutor garantiu que em dois dias você já estará bem melhor. Embora durante algum tempo, deverá tomar certas precauções. Cuidarei da ordenha. Também tenho certeza de que Martha ficará muito feliz em poder ajudá-la.

Mary Hellen sorriu, encantada.— Você já se incumbiu do que viemos fazer aqui?— Não. Irei depois do desjejum.— Por favor. — Mary Hellen levou a mão à boca. — Não me fale em comida.Beauregard achou graça da leve tentativa dela de fazer uma brincadeira.— Você precisa descansar. Quer alguma coisa? Mary Hellen balançou a cabeça de um lado para o outro. Ele levantou-se, deu-lhe

um beijo na testa e carregou a bacia até a porta.— Beauregard? Você se esqueceu disto. — Mary Hellen enfiou a mão no bolso

da saia e tirou a carta destinada a Garrison.Hesitante, Beauregard voltou até a cama. Estendeu a mão, mas Mary Hellen

continuou segurando o papel.— Acho que me sentirei melhor quando souber que você já a enviou. — Ela

entregou a missiva e deixou cair a mão para o lado.Com o coração repleto de arrependimento, Beauregard sorriu e saiu do

aposento.

Beauregard abriu a porta da agência do correio e os sininhos tiniram. Estava ansioso para enviar logo a carta para aquele patife do Garrison e começar uma nova vida com Mary Hellen. O maldito episódio do passado já causara sofrimentos suficientes. Mary Hellen estava com um braço quebrado por causa disso.

Quando ele entrou no estabelecimento público, todos os homens, mulheres e crianças viraram-se e fixaram os olhares nele. Ouviu-se sussurros e risadinhas.

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Beauregard parou, tentando controlar a respiração. Teve a sensação engraçada de que a cidade inteira comentava sobre a sua vinda a Dodge e sobre a última tragédia de Isabelle.

Ele ignorou os cochichos e dirigiu-se ao guichê postal.— Bom dia, Roger.Roger Crosby deu um espirro e assoou o nariz. Ele perdera um pouco dos

cabelos, desde que Beauregard o vira pela última vez.— Bom dia, Beauregard. Faz tempo que não o vejo por aqui.— Ando muito ocupado. Tenho trabalhado bastante. Acho que deve ter ouvido

falar na praga dos gafanhotos.— Foi uma coisa terrível. As pessoas atravessaram um período difícil. — Roger se

virou e procurou alguma coisa em uma pilha de envelopes. — Há uma carta para Martha Whitiker. Chegou agora pela manhã. Pode levar para ela?

— Claro. — Beauregard enfiou a mão no bolso do paletó à procura da mensagem para Garrison e deixou-a em cima do balcão.

— Precisa de mais alguma coisa hoje?— Sim. — Beauregard estendeu-lhe o envelope. — Por favor, isto é para Boston.Roger segurou os óculos entre o polegar e o indicador, examinando o

sobrescrito.— Você disse Boston...— Sim.— Tem certeza? Pois saiba que há um tal de Garrison McPhee aqui na cidade.Beauregard teve a impressão que o teto desmoronara sobre sua cabeça.— Pode ser um outro Garrison McPhee.— Talvez sim. Mas é que esse chegou de Boston há poucos dias. Na verdade,

veio entregar pessoalmente a missiva que Martha levou. Trata-se de algum parente?— Não. — Beauregard virou-se para sair, pisando duro nas tábuas do assoalho.— Beauregard? Não quer que eu mande a carta?— Não, Roger! — Beauregard abriu a porta com violência. — Por enquanto, não.

CAPÍTULO XXXIV

Beauregard voltou para a casa de George, esforçando-se ao máximo para não se irritar em demasia. Mary Hellen não sabia da presença de Garrison na cidade, ou pelo menos era o que ele pensava. Só mesmo Deus para saber o que estava escrito naquela carta que ela havia queimado.

Ele caminhava, sem ver nada, e empenhava-se ao máximo para não imaginar o pior. Acreditava nela. Tinha de acreditar. Aproximou-se da casa e pensou no que iria dizer a Mary Hellen, quando ela perguntasse se havia enviado a carta. Parou na varanda coberta e fitou o chão de tábuas largas. E se ela quisesse ver Garrison de

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novo?Os risos vindos da cozinha intrigaram-no. Deduziu que Mary Hellen estivesse

melhor. Beauregard puxou a porta de tela e entrou. Mary Hellen estava bebendo chá, com o xale sobre o braço metido em talas. George contava-lhe a história de quando, há vinte anos, Beauregard arrebentara o nariz de Charles Tomkins.

Beauregard foi até a cozinha. Os risos cessaram e ele sentiu-se desagradavelmente o centro das atenções.

George deslizou a cadeira para trás e ficou em pé.— Beauregard. Estávamos falando de você.— Deu para perceber. — Tirou o casaco e notou a expressão de curiosidade no

rosto da esposa. — O que você estava dizendo?— Hum... Estava contando a Mary Hellen por que ninguém o chama de Arthur.Beauregard olhou de um para o outro. Ambos pareciam crianças surpreendidas

espiando o professor antes da aula. Pendurou o casaco nas costas de uma cadeira.— Charles Tomkins estava mesmo precisando de uma boa lição. De fato, ele

mesmo afirmou isso, depois de esfriar a cabeça.George e Mary Hellen entreolharam-se e caíram na risada. Beauregard encostou-

se na pia seca, olhando-os gargalharem.Mary Hellen levantou-se da cadeira e aproximou-se. Ela estava curvada e

demonstrava fraqueza. Deixou a xícara no balcão e chegou perto do marido.Beauregard suspirou, sem saber o que fazer. Coçou a nuca e viu a parte superior

do envelope aparecendo do bolso do paletó. Com certeza Mary Hellen também notaria o fato. Ela perguntaria por que ele não enviara a carta. Apavorou-se só em pensar no que lhe diria.

— Vê como já estou bem melhor? — ela afirmou, tomando cuidado ao tornar a sentar-se. — O braço ainda está doendo, mas acho que eu só estava precisando alimentar-me um pouco. Se quiser ir para casa hoje, acho que posso encarar a viagem.

Ir para casa...Se Mary Hellen estivesse na expectativa de ver Garrison, decerto não

demonstraria vontade de retornar à fazenda.Beauregard sentiu-se aliviado com esse pensamento. Eles poderiam sair direto

da cidade e pôr-se a caminho, antes de ela lembrar-se de perguntar sobre a carta. Claro que ele teria de contar-lhe. Ele só esperava que Mary Hellen não se importasse com o fato.

— Claro, podemos partir hoje. Mas só se você me garantir que se sente em condições de fazê-lo.

Mary Hellen levantou-se, vacilante.— Acho que sim. Já fez tudo o que tinha de fazer? Você não demorou nada.— Não tudo.Beauregard pensou na venda do colar e talvez em trocar umas palavrinhas com

aquele verme de Boston, se pudesse encontrá-lo.

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— Podemos fazer tudo na saída da cidade. Será que alguém pode ajudar-me a arrumar minhas coisas?

Beauregard concordou, embora com relutância. Com Mary Hellen a seu lado, não poderia seguir o rastro de Garrison. Pensou no que iria fazer, enquanto observava Mary Hellen saindo da cozinha, rumo ao quarto, Levantou-se para segui-la e sentiu o olhar de George, observando-o.

— O que foi, George?— Nada. E que você dá a impressão de estar aborrecido.— Por acaso não estaria se um cavalo houvesse quebrado o braço de sua

mulher?— Acho que sim — George respondeu, embora não estivesse convencido que

fosse só aquele o problema.Beauregard ergueu Mary Hellen até o assento da carroça. O movimento fez com

que uma dor aguda se infiltrasse pelo braço quebrado. Ela mordeu a língua e não se queixou, pensando se não havia cometido um erro ao sugerir a viagem para o mesmo dia. Naquela hora estava mesmo sentindo-se melhor. Além do que, não queria tornar-se um empecilho para ninguém. Só não podia imaginar como seria difícil galgar uma carroça com um braço quebrado.

Beauregard subiu e sentou-se ao lado dela. Acenaram para George, que estava na varanda, encostado na balaustrada. Depois puseram-se em marcha pela rua poeirenta, rumo à região comercial da cidade.

Não demorou e eles chegaram a Front Street. Passaram por outras carroças, carruagens e pelo gado que vagava sem destino. Pela rua ouvia-se uma música orquestrada pelo tropel dos cascos, pelo tilintar dos arreios e dos cincerros, e, pelo relinchar dos cavalos.

— Vou parar na loja Wrightfs para vender a manteiga e os ovos. — Beauregard parou a carroça algumas ruas abaixo. — Pode ficar sentada aí, descansando um pouco dos solavancos.

Mary Hellen sabia que mover-se lhe traria de volta uma dor mais intensa. Contudo, o trajeto para casa demandaria muitas horas sentada.

— Eu gostaria de entrar, Beauregard.— Você se sentirá melhor aqui.Mary Hellen não gostou da insistência dele.— Mas eu adoraria ir junto.Beauregard hesitou, mas acabou ajudando Mary Hellen a descer. Tirou a caixa

grande de madeira da parte posterior do veículo e dirigiu-se para a loja.A porta fechou-se depois de Mary Hellen entrar, tinindo os pequeno sinos.

Ficavam para fora o bater dos cascos na rua de terra seca e o barulho das rodas das carroças. Dentro da loja, havia de tudo, no chão e nas prateleiras.

Selas, rifles, mantimentos, barricas de sal e melado, alimentos enlatados, cinza para fazer sabão e rolos de tecido. As pessoas perambulavam pelos pequenos

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corredores, olhando, pensando, analisando os itens e tagarelando sem parar. O ar estava impregnado com cheiro de tabaco, especiarias e couro.

Mary Hellen e Beauregard encaminharam-se até o balcão onde ele depositou a caixa.

— Bom dia, Austin.— Beauregard, meu rapaz! — Ele fitou Mary Hellen com curiosidade.— Esta é minha esposa, Mary Hellen Brigman. Mary Hellen, Austin Moore. E o

encarregado da loja.— O senhor administra uma bela casa, sr. Moore.— Obrigado. Não me lembro de tê-la visto antes. A senhora não deve ser daqui.— Tem razão. Sou de...— Ela é do leste.Espantada, Mary Hellen fitou o marido. Beauregard já mudara de assunto com o

outro. Ela supôs que ele não gostaria que os outros soubessem que ele a mandara buscar, como um item de um catálogo.

— Nós trouxemos manteiga e ovos, Austin. Enquanto Mary Hellen observava a transação comercial ser efetivada, um caubói

aproximou-se e encostou-se no balcão ao lado dela. Nas mãos, ele segurava um par de luvas marrom e manchadas. Mary Hellen perguntou-se, com asco, quanto tempo faria que o homem não tomava banho. Levou um dedo enluvado sob o nariz e, de repente, sentiu-se nauseada.

Beauregard parou de falar e prestou atenção aos movimentos da esposa.— Você está bem?Com os olhos lacrimejantes, Mary Hellen apenas anuiu, com receio de falar e

vomitar de novo.— Está enjoada?— Estou bem, Beauregard... Só preciso de um pouco de ar. Vou esperar lá fora.

— Engoliu em seco e virou-se para sair.— E os cobertores?— Escolha-os você mesmo — ela respondeu, sem se voltar.Do lado de fora, Mary Hellen respirou fundo, e sentiu o cheiro do curral para

guarda temporária do gado, que se encontrava a menos de um quilômetro dali. Pelo menos a sensação de enjôo havia passado.

Mary Hellen caminhou pelo passeio de tábuas, em direção à carroça. Subiu a custo, enquanto protegia o braço quebrado. Sentou-se, jogou o xale sobre as pernas e preparou-se para esperar.

Carroças e charretes passavam fazendo estrépito. Os homens cumprimentavam-na com os chapéus e as mulheres sorriam. Os caubóis montados em seus cavalos trotavam no meio da rua larga.

Nesse exato momento, ela ouviu dizerem a seu lado.— Mas vejam só! Que coincidência!

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Emudecida pelo choque e pela descrença, Mary Hellen continuou com o olhar fixo à frente. Reconheceria aquela voz em qualquer parte do mundo.

Garrison moveu-se até o ângulo de visão dela e cumprimentou-a com o chapéu preto.

— Esse seu braço deve estar mesmo muito machucado. Só assim você permitiria que seu marido escolhesse as roupas de cama. Não tem medo de que ele se decida pela cor errada?

CAPÍTULO XXXV

Beauregard fitava a pilha de cobertores, em dúvida. Havia vários padrões nas cores cinza, vermelha ou azul. Imaginou qual seria mais do gosto de Mary Hellen. Algum parecido com a manta vermelha que ela pendurara na casa ou uma cor diferente?

Ah, também isso era o de menos. Precisava de alguma coisa que os aquecesse no inverno e, além disso, ela já estava lá fora sozinha há bastante tempo. Teria de apressar-se.

Depois de escolher um azul e um vermelho, ele dirigiu-se ao caixa. Teve de esperar até que a mulher à sua frente pagasse pelos mantimentos. Enquanto aguardava, percorria a loja com o olhar. Imaginou, achando-se ridículo, se ele reconheceria Garrison, se o encontrasse. Suspirou e espiou a mulher, que ainda contava o dinheiro.

Dali a pouco, ele chegou mais perto e deixou os cobertores sobre o balcão.— Levarei estes.— Muito bem, eu lhe darei o crédito pela manteiga. Diga à sua esposa que eu já

vendi a metade.— Ela ficará encantada.Beauregard pensou em como ela se preocupara, achando que ninguém iria

querer a manteiga. Mal podia esperar para contar-lhe a novidade. Depois disso, ele poderia contar as notícias sobre Garrison. Esperava e pedia a Deus para que ela não se importasse com o fato.

Mary Hellen, por instinto, tentou deslizar pelo assento e afastar-se de Garrison, mas estremeceu de dor.

— O que você está fazendo aqui?Ela observou, aterrorizada, ele encostar-se na carroça de Beauregard e cruzar os

pés calçados com sapatos brilhantes, um sobre o outro. Garrison tirou uma partícula de poeira da manga do terno preto. O pânico mais genuíno congelou-a no banco.

Ele tirou o chapéu.— O que você acha que eu vim fazer aqui? Levá-la de volta para casa, para seu

lugar.131

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— Como foi que me encontrou?— Não foi difícil, minha querida. Não recebeu minha carta? O chefe da estação

em Boston cooperou demais e depois que eu cheguei aqui... Bem, descobri que esta cidade está cheia de pessoas amáveis. E parece que todo mundo conhece a vida de todo mundo. Como vê, tudo se resolveu com relativa facilidade.

— Então deve saber que eu estou casada. O nome dele é Beauregard, e vai sair da loja a qualquer momento.

— Sim, sim, Beauregard. O fazendeiro de coração partido. Que triste história...— Você não tem o direito de... — Mary Hellen confundiu-se sobre o que

pretendia dizer, mas recuperou-se de imediato. — Isso não é de sua conta! Agora ele está casado comigo, e nós somos felizes.

— Casados. Ah, sim, também ouvi falar nisso... Mas será que você não está se esquecendo de alguma coisa?

Mary Hellen encarou-o, incapaz de responder. Garrison inclinou-se na direção dela, com olhar triunfante.

— Você deve saber que isso não é legal.Ela nunca sentira tanto pânico.— É legal, sim. Foi realizado na frente de um juiz, na sede do município.Garrison sacudiu a cabeça, divertido.— Não contou a ele, não é mesmo?— O que eu e meu marido conversamos não lhe diz respeito.— Seu marido? Parece-me mesmo convicta. Isso me faz ficar com vontade de

gargalhar, Mary Hellen.Ela ergueu o queixo e olhou em frente. O braço começou a doer mais.— Por que não nos deixa em paz?Garrison passou na frente da carroça e acariciou o topete de Gem.— Por quanto tempo ainda vai levar essa comédia adiante, Mary Hellen? Será

que está tão zangada a ponto de pretender que eu sofra para todo o sempre?Como Mary Hellen nada respondesse, Garrison deu a volta no veículo e

descansou a mão sobre o assento.Mary Hellen deslizou para o outro lado, segurando o braço.— Bem, talvez eu mereça isso — ele conjeturou. — Mas lhe disse que sentia

muito por não haver lhe explicado tudo antes. Você sabe que a amo mais do que a qualquer outra. Você é, de longe, a garota mais bonita que já conheci. Quero que volte para casa. Esqueça todas essas bobagens que aconteceram entre nós.

— Não vou a lugar nenhum. Já lhe disse, agora estou casada com Beauregard.— Mas é lógico que não pode amar um fazendeiro. — Fitou-lhe o braço

enfaixado. — Parece que o sujeito não cuida de você tão bem como se deve.— Não foi ele quem fez isso! Beauregard jamais encostaria um dedo em mim!Garrison sacudiu a cabeça.— Isso você diz. Mas deixemos tudo isso de lado, Mary Hellen. Tenho de lembrá-

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la de eu sou seu verdadeiro marido.— Não é, não! Nosso casamento nunca foi legal. Não teve significado algum —

ela falou alto e inclinou-se para a frente.Percebeu, tarde demais, que havia atraído a atenção dos transeuntes. Rápido,

voltou a sentar-se.— O que é que há, Mary Hellen? Pare com isso!— Já lhe disse que não vou a lugar algum. Estou lhe avisando para deixar-me

sozinha.— Está me avisando? Acho que precisa tomar mais cuidado antes de ameaçar-

me.Mary Hellen deslizou mais um pouco no banco duro e, apesar da dor, desceu do

outro lado da carroça. Tinha de sair dali.— Aonde é que pensa que vai? — Garrison perguntou, seguindo-a pela calçada

de tábuas.— Para longe de você.Um pingo de chuva caiu sobre o rosto de Mary Hellen.— Mas nós ainda não terminamos.— Terminamos, sim, Garrison!Mary Hellen ouviu os passos dele mais próximos, logo atrás.— Se eu pensasse desse modo, teria vindo até aqui para encontrá-la, para ter

certeza de que havia mantido a boca fechada?Mary Hellen parou. Reconhecera o tom de comando do qual pensara ter

escapado. A chuva começou a cair, provocando-lhe um calafrio desagradável. As gotas de água batiam como um tambor no telhado acima deles. Ela protegeu-se na entrada de uma loja.

— Saia de minha vida, Garrison.— Você sabe que não posso fazer isso. Eu te amo. Não saberia viver sem você.O coração de Mary Hellen palpitava forte. Ela gostaria de esconder o pavor.

Sentiu as faces em chamas e a cólera irrompendo.— Pois eu não te amo!Garrison, boquiaberto, não podia acreditar no que ouvira.— Você não pode estar falando sério...Mary Hellen sabia que era outra de suas grandes representações. Mesmo assim,

sentiu necessidade de suavizar o golpe. — Sinto muito, Garrison, mas estou.Ele encarou-a, sem dizer nada, atônito. Poder-se-ia dizer que estava sofrendo. De

verdade. Mas ela não se comoveu. Lembrou-se de que ele era um mentiroso. E dos bons. Olhou para a frente.

— Parece que seu fazendeiro vem vindo.Mary Hellen inclinou a cabeça e espiou na direção da Wrightfs. Apavorada,

endireitou o corpo para dentro do vão da porta.

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O que fazer?Beauregard parou do lado de fora da loja, viu a carroça vazia e olhou na outra

direção da rua.— Pelo amor de Deus, Mary Hellen! — Garrison zombou. — Veja aqueles

cabelos. Você não pode preferir aquele camarada a mim!Mary Hellen sentiu um nó na garganta. Observou Beauregard parar, à espera de

que os pedestres saíssem de sua frente no passeio de tábuas. A cabeleira esvoaçava na testa. A franja marrom de seu paletó agitava-se com a chuva de vento. Na verdade, era bem diferente de Garrison. Menos civilizado, menos refinado.

Porém, muito mais decente e muito mais digno.— Por que não nos apresenta, querida? Mary Hellen fuzilou-o com o olhar.— Beauregard não haveria de gostar de conhecê-lo.— Duvido. Acho que quer muito me conhecer, isso sim. Naquele momento, Beauregard olhou em direção ao vão da entrada onde ela

estava parada, espiando, e fixou-lhe um olhar espantado. Mary Hellen sentiu-se sufocar.

— Ele nos viu! — Garrison comentou, entusiasmado. Mary Hellen perguntou-se se conseguiria correr até Beauregard, antes de

Garrison ter a oportunidade de dizer qualquer coisa. Tinha de tentar. Não podia deixar que ele descobrisse daquela maneira.

Beauregard veio em direção da esposa e ela deu um passo à frente. Garrison fechou a mão sobre o braço quebrado de Mary Hellen e puxou-a para trás. Ela estremeceu de dor.

— Não tão depressa, amor — Garrison sussurrou-lhe ao ouvido. — Quero cumprimentar seu novo marido.

CAPÍTULO XXXVI

Mary Hellen sentiu-se oscilar na beira de um precipício, com alguém empurrando-a para baixo.

Beauregard andou com toda a calma na direção deles, carregando uma caixa de madeira com mercadorias, sem desfitar a esposa por um só momento. Trovões estrondaram em algum lugar à distância e a chuva derramou-se sobre os telhados inclinados acima da cabeça deles.

O tempo parecia parar, à medida que Beauregard se aproximava. Mary Hellen tentou ir ao encontro dele, mas Garrison puxou-a para trás pelo braço quebrado. Ele sempre fora um descarado, mas aquilo também já era demais.

— Mary Hellen? — Beauregard chamou-a, de cenho franzido.Ela balançou a cabeça, freneticamente. Queria fazê-lo entender com o olhar que

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não planejara nada daquilo, que Garrison era um inimigo, e que não sabia que ele seguira todo o trajeto dela desde Boston.

"Ajude-me", Mary Hellen tentou dizer.Beauregard encarou Garrison, estreitando os olhos.— O que é que está acontecendo aqui?Mary Hellen percebeu que o aperto em seu braço enfaixado afrouxava. De

imediato, correu para o lado de Beauregard.— Não me lembro de termos sido apresentados. — Garrison estendeu a mão. —

Você deve ser Beauregard. Sou Garrison McPhee. Já ouvi muito falar a seu respeito.Beauregard fitou Mary Hellen, que sentiu o estômago contrair-se de tanta

apreensão.— Parece que temos um negócio em comum — Garrison afirmou, abaixando a

mão.— Pois eu duvido. O que o senhor deseja?— O que quero? Ache que fosse óbvio. Beauregard deixou a caixa na calçada de tábuas, adiantou-se e empurrou

Garrison.Mary Hellen não conhecia o marido como um homem violento, mas naquele

momento temeu pelo pior.— Beauregard... — Tocou a manga dele. Beauregard nem percebeu que a mulher o chamara.Encarava Garrison, que àquela altura já se encontrava espremido de encontro à

parede.— Está tudo bem, Mary Hellen — Garrison conseguiu falar. — Ele apenas quer

intimidar-me.— Pode ter certeza de que o farei.Os segundos se passavam, e Beauregard apenas se manteve ali, olhando

Garrison de cima.— Beauregard, vamos embora — Mary Hellen pediu, tocando-lhe no braço outra

vez.Ele não respondeu de imediato. Depois, por sorte, deu um passo atrás.— Mary Hellen não quer vê-lo mais. Sendo assim, sugiro que o senhor volte para

o lugar de onde veio.— Não viajei de tão longe para ser maltratado por você, Beauregard.— Não quero saber por que veio, Garrison. O senhor não vai encostar a mão de

novo em minha esposa.— O que é isso?!— Suponho que me ouviu muito bem!O desafio entre os dois prosseguia, enquanto a chuva batia no beirai do telhado.O coração de Mary Hellen pulsava desordenado, e ela ofegava.— Beauregard, vamos embora — implorou, mais uma vez.

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Ele começou a afastar-se de Garrison, mas Mary Hellen ainda não estava tranqüila. Só ficaria mais sossegada quando estivessem em cima da carroça e de volta para o rancho, esclarecendo o assunto.

Beauregard parou de novo. Mary Hellen continuava apavorada. O que ele iria dizer ou fazer? Por que não o largava é iam embora?

Beauregard sacudiu um dedo no nariz de Garrison.— Fique longe de minha mulher. "Oh, Deus!"Mary Hellen fitou Garrison, implorando por compreensão. "Por favor, não diga

nada. Não agora. Deixe-nos ir embora."O rosto de Garrison iluminou-se com um sorriso lento e maldoso.— Sua mulher? Acho que está enganado.— O senhor acha?— Beauregard, deixe para lá — Mary Hellen pediu. — Precisamos conversar

sobre isso...Eles se moveram pelo passeio e a chuva continuou a cair.— É uma pena que eu é que tenha de dizer-lhe isso, Beauregard, mas Mary

Hellen não é sua esposa.Beauregard endireitou-se.— Isso é ridículo. Nós estamos casados há um mês. Garrison meneou a cabeça, como quem se sentia penalizado.— Tenho receio de que não estão. Mary Hellen não é sua esposa, repito.— Como assim? Por que não é? Os olhos de Garrison lampejaram, triunfantes.

Mary Hellen pensou que iria desmaiar.— Porque ela é minha mulher.Beauregard teve a impressão que lhe haviam dado uma paulada no peito.No começo, riu, achando a conversa absurda. Mas no íntimo desconfiava de que

havia alguma coisa errada. Tentou raciocinar, Só queria acreditar em Mary Hellen e não naquele canalha. Mas por algum motivo, e ele envergonhou-se de admitir isso, seu instinto o fazia duvidar dela.

— Você não parece tão surpreso quanto eu esperava que ficasse — Garrison afirmou. — Não tem mais argumentos?

Beauregard percebeu a inquietação de Mary Hellen.— Deixe-me explicar — ela implorou. Beauregard não a olhou. Sabia que teria de escutar uma justificativa, mas não

naquele momento.— Não há nada para ser explicado — Garrison interveio. — É muito simples.

Mary Hellen casou-se comigo e depois, talvez com um excesso de precipitação, se casou com você.

Beauregard esforçou-se para dizer alguma coisa, qualquer uma que fosse. Mas as palavras haviam se evaporado.

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— Beauregard, por favor, escute...Ele ouviu o que Mary Hellen disse, como se fosse um eco. Interrompeu-a,

levantando a mão.— Isso não pode ser verdade. Eu tenho uma certidão de casamento.Garrison enfiou a mão no bolso interno do paletó.— E eu também. — Garrison desdobrou um pedaço de papel e estendeu-o. —

Veja você mesmo.Beauregard teve a nítida impressão de que as letras estavam borradas. Ele viu a

assinatura de Mary Hellen e a de Garrison. Um forte mal-estar invadiu-o.— Viu?Mas Beauregard não podia ver nada. Não podia aceitar aquilo. Mary Hellen era a

sua esposa. Haviam passado um mês juntos na sua fazenda. Eles chegaram a gostar um do outro, Haviam feito amor. Haviam feito promessas...

— Beauregard, há muita coisa que você não sabe — Mary Hellen falou, com voz trêmula. — Se deixar-me explicar...

Por fim, ele fitou-a. Só viu a mulher que o havia enganado na noite de núpcias. Ele havia perguntado se ela amava aquele homem. Naquele momento, ficava sabendo que ela havia se casado com ele!

Mary Hellen tocou-lhe no ombro, mas Beauregard encolheu-se, afastando-a com desdém.

— Você está bem, Beauregard? Ele virou-se e encarou-a.— Não, não estou.Beauregard não podia mais ficar ali. Tinha de ir embora. Se ficasse, poderia fazer

alguma coisa da qual se arrependeria depois. Ele saiu a passos largos pela rua molhada, chapinhando e afundando na lama. A chuva caía sobre a sua cabeça e ensopava seus cabelos, colando-os na nuca e nos ombros.

Se aquele homem era mesmo o marido dela, ele refletiu com impetuosidade, então paciência!

Na verdade, não se sentia muito surpreso. Ele vinha esperando por uma coisa daquelas desde o início. Ele sempre perdia tudo o que mais amava.

Beauregard subiu na carroça, pegou as rédeas e olhou para a frente. Não a olharia de novo. Não podia. Bateu as rédeas com força, espirrando água no ar. As roupas molhadas e frias grudavam-se no corpo. Pingos de chuva caíam dos cílios e escorriam pelas faces.

Quando se preparava para partir, escutou um grito abafado de algum lugar longínquo, atrás de sua consciência atordoada. Tentou ignorar, mas o som cortou sua fúria como uma faca.

Não olhe para trás!, ele repetiu mentalmente várias vezes, enquanto virava a carroça em direção à sua casa. Mais um brado e sua resolução já não lhe pareceu tão convincente. Receou capitular mais uma vez. Beauregard freou os cavalos devagar.

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Ficou sentado, olhando sem ver, sentido a chuva que lhe escorria pelo rosto. Era como se procurasse uma saída no meio de um denso nevoeiro. Os clamores amortecidos chegavam até ele, vindos do lado de fora de seu raciocínio paralisado. Mary Hellen.

Era ela quem gritava para ele voltar. Beauregard virou-se no banco. Garrison agarrava-a pelo braço quebrado, puxando-a pelo passeio de tábuas. Ela se debatia e gritava por socorro.

Bom Deus! O que é que ele estava pensando? Beauregard pulou da carroça e disparou na direção deles. As botas chafurdaram na terra molhada. Correu no meio da chuva que lhe toldava um pouco a visão. Não podia deixá-la para trás.

Chegou na calçada de madeira, antes de Garrison notar sua presença. Mary Hellen soluçava e gritava, com o braço sadio estendido para a frente. Beauregard pegou na mão de Mary Hellen no exato momento em que Garrison se voltava.

Beauregard recuou e deu um soco no rosto do outro, que cambaleou para trás e caiu no passeio. Sem pensar em mais nada, Beauregard pegou Mary Hellen nos braços, carregou-a pela rua enlameada e levantou-a até o assento do veículo. Em segundos, os cavalos galopavam, espalhando lama para todos os lados. Beauregard não tinha a menor idéia do que iria fazer dali para a frente.

CAPÍTULO XXXVII

Mary Hellen chorava sem parar. As gotas de chuva batiam em seu rosto e eram levadas pelo vento. Soluçando, sem fôlego, ela agarrou-se à lateral da carroça em uma curva pronunciada e feita à toda velocidade. Ela agradecia a Deus, por ele ter voltado.

Beauregard voltara.Fitou-o e pensou, muito infeliz, se afinal aquilo tinha alguma importância.Beauregard continuava com o olhar fixo à frente, a expressão sombria e sem

demonstrar nenhuma emoção. Era verdade. Ele a resgatara das mãos de Garrison, mas não teria perdido todos os sentimentos que tinha por ela, no decorrer do processo?

— Beauregard, eu sinto muito! — gritou, por sobre o ruído do tropel dos cascos.— Por que não me contou nada sobre isso?— No começo, por medo de que me mandasse embora. Depois, por receio do

que Garrison poderia fazer, caso o encontrasse.Beauregard não queria olhar para ela. Concentrava-se na estrada à frente e dava

impulso com as rédeas.— lá!Mary Hellen girou no banco para encará-lo e agarrou-lhe a manga.— Seja honesto, Beauregard, pode me garantir que não me mandaria embora?

Depois de tudo o que compartilhamos nessas poucas semanas, você quase foi embora. Achei que houvéssemos nos entendido e que houvesse esperança para nós. E você ia me deixando para trás!

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— Não sou eu quem precisa defender-me. É você.— Se tivesse me dado a oportunidade de falar quando lhe pedi para fazê-lo, eu

teria contado o que aconteceu realmente. Agora, nem tenho muita certeza de que fará a menor diferença.

Mary Hellen notou que os músculos do queixo se retesavam. Após alguns segundos, Beauregard puxou as rédeas e fez os cavalos diminuírem a marcha. Fitou-a pela primeira vez, depois de que eles subiram na carroça.

— O que quer dizer com "o que aconteceu realmente"? Mary Hellen largou a manga dele e enxugou a umidade dos olhos.— Não é tão simples como Garrison quis que parecesse. Não me casei com ele e

depois com você. Eu não faria isso.— Está me dizendo que vocês são divorciados? Ela sacudiu a cabeça, desejando que fosse verdade.— Não, mas quando me casei com você acreditei que pudesse fazê-lo.Beauregard parou a carroça na saída da cidade.— O que está tentando dizer?— Que meu casamento com Garrison não foi verdadeiro.— Por que não? — ele perguntou, confuso e com e cenho franzido.— Porque... porque ele já era casado. Beauregard estacou, apenas piscando por causa da chuva.— Está falando em bigamia, Mary Hellen?— Isso mesmo. Só que eu não sabia disso quando nos casamos. Garrison contou-

me na nossa noite de núpcias, depois que nós...— Por que não me disse antes? Se você era inocente, poderia entregá-lo às

autoridades. Isso teria sido resolvido, antes que viesse para cá.— Se você soubesse do fato, não iria querer casar-se comigo. Além disso,

Garrison ameaçou-me. Se eu contasse para qualquer pessoa, ele afirmaria que eu sabia o que estava fazendo e que estava atrás do dinheiro dele. Foi quando vi o seu anúncio e tive a oportunidade de começar uma vida decente, junto de um homem honesto e trabalhador como meu pai. Alguém digno de formar uma família.

Beauregard escutava, sem quase respirar.— Achei que jamais teria a chance de conseguir essas coisas, se alguém soubesse

do que ocorrera. Estava persuadida de que mantendo segredo sobre o assunto, pelo menos até haver passado algum tempo, eu poderia esclarecer os fatos mais tarde. Mas eu cometi um erro quando subi no trem em Boston. Eu deveria ter usado outro nome.

— Você pretende fazer-me pensar que seu único engano foi ter sido apanhada?— Não espero nada e muito menos que entenda. Só gostaria de poder voltar

atrás e começar tudo de novo.Ficaram sentados mais um pouco, ambos ensopados. Mary Hellen não conseguia

parar de tremer.— Então, tudo isso significa o quê? — Beauregard observava as tiras de couro

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que apertava em suas mãos. — Nós estamos casados ou não?Ela não queria responder. Mas também sabia que, se não fosse honesta com

Beauregard naquele momento, tudo estaria perdido. O tempo dos segredos havia passado.

— Já não sei de mais nada. Ambos se entreolharam.— Por que eu deveria acreditar em você, depois de tudo o que escondeu de

mim?— Por que eu o amo. Queria dizer-lhe isso ontem, mas não pude. Não tinha

certeza quanto aos seus sentimentos. Não pensei que você quisesse amar alguém. Ou que deixasse alguém amá-lo.

Beauregard inclinou a cabeça.— Em meu coração, eu sou sua mulher. Isso não é o mais importante?— Você diz que me ama, mas mentiu o tempo todo para mim. Que espécie de

amor pode existir sem confiança?— Beauregard...— Responda-me. Como espera que eu reaja a essa... — Hesitou e passou a mão

nos cabelos — ...confissão súbita de que me ama? Como poderei acreditar em você, quando pretendeu passar-se por quem não era? A nossa vida nesses trinta dias não passou de uma grande mentira. Teria sido uma realidade, para mim, amar você, sendo que eu não tenho a menor idéia de quem você é?

Mary Hellen estremeceu com a frieza dele.— Diz que não pode haver amor sem confiança, Beauregard. Mas eu confio em

você. Do fundo do peito.— Talvez seja por eu nunca ter mentido para você. Não tenho experiência nesse

negócio de escamotear a verdade e brincar de montar enigmas.O ressentimento crescia e Mary Hellen refletiu no que haviam passado durante

aquele mês em que viveram como marido e mulher. Em como ele a tratara com frieza durante e depois da noite de núpcias.

— Nunca mentiu para mim! Essa é boa! E Isabelle? Você não me contou nada disso. Eu fiquei sabendo por intermédio de Martha!

— Não quero falar sobre isso.— Por que não?— Porque é diferente. Não menti a respeito de Isabelle. Apenas deixei de

mencioná-la. Uma coisa não tem nada a ver com a outra.— Diferente, mesmo. — Mary Hellen estava com a pulsação acelerada, de tão

furiosa. — Ela foi a razão por que você mandou buscar-me. Não passei de um artifício para você esquecê-la. Resolveu me usar tanto quanto eu o usei.

Beauregard apertou as rédeas entre as mãos.— Sei muito bem que você não a esqueceu. E se Garrison achar um jeito de

destruir o que já construímos, você mandará buscar outra esposa e me esquecerá?

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Como se este mês não houvesse existido?— Claro que não.— Se Isabelle já fizesse mesmo parte de seu passado, você não se empenharia

tanto em desconfiar em mim.Beauregard soltou as rédeas e levantou-se do assento.— Eu já a esqueci — ele assegurou, do alto de sua estatura. — O que não posso

esquecer é...Era como se ele acabasse de entender as emoções que lutara tanto para ignorar,

durante esse tempo todo.— Não pode esquecer o quê, Beauregard? A chuva continuava a cair sobre eles.— As coisas das quais eu gosto sempre acabaram me abandonando.Beauregard sentou-se de novo e ela admirou-se da sinceridade do marido.— Vi minha família morrer. Minha mãe, meu pai, minhas irmãs menores e meu

irmão mais novo. E não houve nada que eu pudesse fazer para impedir essa tragédia.Mary Hellen segurou-lhe as mãos frias, mal contendo as lágrimas.— Oh, Beauregard...— Mary Hellen, não queria amar você. Lutei muito contra isso. Mas então eu me

permiti essa esperança, para acabar descobrindo que você nunca me pertenceu de verdade.

— Eu sou sua, Beauregard.— Você foi de Garrison, antes de ser minha. Fez o juramento. Disse que o amaria

até que a morte os separasse. Você acreditou mesmo no que afirmava? Estava mesmo sendo sincera?

Envergonhada, ela tentou responder-lhe. Mas como poderia, se nem achara uma resposta para si mesma?

— Estava? — Beauregard ergueu a voz.Mary Hellen anuiu, com um gesto de cabeça, sem olhar para ele.— Acreditei nele, por desconhecer sua vida e sua verdadeira personalidade.— Você lhe prometeu amor eterno. Mary Hellen tornou a encará-lo.— E você também prometeu a mim, sem ao menos me conhecer.Beauregard não retrucou. Permaneceu imóvel, vendo o horizonte cinzento,

obscurecido pela chuva e pela névoa.— Por favor, acredite em mim. Pensei que estivesse livre, quando me casei com

você. Tinha certeza de que minha união com Garrison não tinha nenhum valor legal. Neste mês eu me aproximei muito de você. Coisa que nunca aconteceu em relação a ele e nem a ninguém.

— Um mês... — Ele fitou-a, desolado. — E durante todo esse tempo, não fiquei sabendo quem você era.

O tom tenebroso dele provocou-lhe um calafrio na espinha.

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— Mas agora já sabe. Eu juro. Sabe de tudo.— Pode até ser. Mas não tenho certeza de que eu gosto do que sei.Em pânico, Mary Hellen viu-o apanhar as rédeas, bater com elas no dorso largo

dos cavalos e virar a carroça.— Para onde estamos indo, Beauregard?— Voltando para a casa de George. Preciso dos conselhos de um advogado, e

tem de ser agora.

CAPÍTULO XXXVIII

Molhados até os ossos, Mary Hellen e Beauregard pararam no jardim da casa de George. Não haviam trocado uma só palavra desde que Beauregard virará a carroça para voltar. Mary Hellen sentia-se muito tensa e congelada.

Sem esperar pela ajuda do marido, ela desceu do veículo e correu até a porta da frente, para escapar da chuvarada. O braço doía a cada movimento que Mary Hellen fazia, mas a dor de seu coração era muito maior.

Mary Hellen tirou o excesso de água dos cabelos e entrou na casa seca e quente, tremendo de frio. George apareceu no vestíbulo.

— Mary Hellen! Você está ensopada! Venha cá, vamos para perto do fogo. —- Ele conduziu-a até a cozinha.

— Onde está Beauregard?As dobradiças rangeram e ela escutou os passos do marido. George correu ao

encontro dele.— O que é que há com você? — George perguntou.— Mary Hellen poderia ter morrido aí fora.Pelo que Mary Hellen pôde ouvir da cozinha, Beauregard não respondeu. Ela

imaginou se Beauregard se importaria com aquilo.Beauregard entrou no recinto e não perdeu tempo com explicações.— George, temos um problema legal e precisamos de sua ajuda.George veio atrás de Beauregard e fitou Mary Hellen, intrigado.— Talvez seja melhor irmos para a sala de estar. George indicou o caminho para Mary Hellen, com um gesto da mão. Ela entrou e

sentou-se no sofá em frente da janela e os dois irmãos ficaram em pé.— Acho que você é quem deve explicar — Beauregard falou para a esposa. —

Você conhece os fatos melhor do que eu.Mary Hellen hesitou, sem saber como enfrentar uma situação tão delicada. O

estômago ardia de tanta dor. Talvez com maior intensidade de que o braço quebrado.— É um assunto particular... especial, eu diria. George tirou os óculos.— Eu tenho um problema... aliás, nós temos um problema — Mary Hellen

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começou, com calma.— Pode contar com a minha máxima discrição — George assegurou-lhe.— Obrigada. — Aquilo estava se tornando mais difícil do que esperava. Manteve

os olhos baixos. — Eu... eu cometi um erro antes de casar-me com Beauregard. Agora tenho receio de que tudo vá por água abaixo.

— Que tipo de erro?Mary Hellen ficou em pé e andou até a lareira. Apática, fitou o vaso de porcelana

branca sobre o consolo da lareira. Como contar aquilo a George, seu cunhado, que sempre a tratara com tanta gentileza? Mas se pretendia viver em paz com seu marido, teria de achar um jeito de relatar os acontecimentos.

Mary Hellen fechou os olhos, antes de começar.— Antes de Beauregard e eu nos casarmos, eu namorei com outro homem e o

envolvimento prosseguiu até o ponto de... — Ouviu Beauregard pigarrear e não foi capaz de continuar.

Mary Hellen tentou encontrar as palavras certas. Desistiu. Não havia como enfeitar o que acontecera.

— Bem, eu casei-me com Garrison. George assobiou, espantado.— Vocês se divorciaram?— Não, George. E aí é que está o problema. Nós não nos divorciamos.Mary Hellen encarou os dois irmãos. George ficou atônito, boquiaberto.

Beauregard mastigava sua ira em silêncio.— Mary Hellen, eu não entendi — George clamou, andando de um lado para o

outro.— Eu não me divorciei, por não acreditar que meu primeiro casamento fosse

válido. Ainda creio nisso, embora não com tanta certeza. Eu não tinha coragem de procurar os conselhos de um advogado, por medo de ser detida.

— Detida? Mas por quê? — George parou.— Por que Garrison... já tinha uma esposa. George afundou na cadeira de balanço ao lado da lareira e pôs a mão na testa,— Meu Deus! Isto é inconcebível. Quer dizer que o camarada não se divorciou da

primeira mulher para casar-se com você?— Não.— Ele não era viúvo?— Não.— Está me dizendo que você casou-se com um bígamo?— Sim.George esfregou a testa.— Beauregard sabia alguma coisa sobre isso? Ela fitou o marido, como quem pedia desculpas.— Eu não soube de nada até hoje — Beauregard confirmou, sem se alterar.

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— No começo, não lhe contei nada, com medo que Beauregard me mandasse voltar. Quando conheci Garrison, não tinha a mínima idéia do que me aguardava. No começo ele foi muito galanteador, mas depois tornou-se cruel. Eu tinha de fugir daquilo.

Mary Hellen queria muito salvaguardar o que ainda restava da boa opinião de George sobre ela.

— Eu não tinha a mínima idéia de que ele já fosse casado. Agora ele seguiu-me até Dodge e quer que eu volte. Tenho receio do que ele possa fazer, se eu não fizer a vontade dele. Garrison afirmou que jamais me deixaria ir embora. Agora ele já sabe que eu me casei com Beauregard. Você precisava ver a cara dele hoje, quando eu lhe disse que não o amava mais. Foi como se eu o apunhalasse no peito.

George sentou-se para a frente.— Ele está aqui em Dodge? Você falou com ele? Alguém viu você?— George, vamos ao que interessa — enfim, Beauregard interveio: — Algum dos

casamentos dela é válido?O tom imparcial do marido fez Mary Hellen estremecer. George coçou a cabeça.— Não tenho certeza.— O que você quer dizer com isso? — Beauregard alterou-se. — Você é um

advogado!— Eu não posso saber tudo! A bigamia não é a minha especialidade. Nunca tive

um caso desses. Terei de estudar o assunto.— Quanto tempo vai levar isso?— Não tenho certeza. Se eu não encontrar as informações em minha biblioteca,

terei de consultar um colega.— Ótimo. Então esperarei notícias — Beauregard resmungou e rumou para a

saída.— Aonde você vai? — Mary Hellen perguntou, perdendo os últimos fragmentos

de coragem.— Dar uma volta — Beauregard respondeu, sem olhar para trás.— Posso ir com você? Precisamos conversar.— Quero ficar sozinho. — Ele saiu e bateu a porta.Beauregard patinhou pelas ruas lamacentas da cidade, sem se importar com o

barro que cobria as suas botas e espirrava em sua roupa. A chuva havia parado, mas o céu ainda estava cinzento. Ele sentiu o cheiro de umidade no ar e o frio nos ossos.

Ele caminhou como se fosse um intrépido caubói montado em um belo cavalo preto. Fizera todo o trajeto, desde a casa de George até o passeio de tábuas, sem nem lembrar-se por onde passara. A tensão provocava-lhe forte dor de cabeça e deixava seus músculos retesados. Era doloroso admitir que, durante as noites em que passara com a esposa, Mary Hellen escondera tantos segredos e uma grande parte de si mesma. Por que não confiara nele e contara tudo? Teria ele sido um ogro desde o princípio?

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Com um certo arrependimento, chegou à conclusão de que fora mesmo.Nisso, ouviu que o chamavam pelo nome. Aquela voz... Aquela voz maviosa...— Beauregard? Mas é você mesmo?Ele parou, atarantado, no passeio. O coração foi à boca e ele não conseguia

controlar mais nada. Virou-se devagar e fez o melhor que pôde para demonstrar calma.

— Olá, Isabelle.Ela sorriu e encaminhou-se para ele. Hesitante, ele fez o mesmo. Procurava

pensar em qualquer outra coisa, menos em que haviam sido noivos.— Olá. É maravilhoso encontrá-lo.— O mesmo digo eu — ele respondeu, escondendo o redemoinho que agitava a

sua cabeça latejante.— Ouvi dizer que você casou-se há um mês. Mas não podia imaginar que isso o

tornasse ainda mais bonito do que você já era.Beauregard relanceou um olhar ao redor e imaginou a quantidade de boatos que

havia corrido a respeito.— O nome dela é Mary Hellen.— Eu sei. George me disse. Parabéns.— Obrigado.O brilho do olhar azul dela desapareceu aos poucos.— Suponho que ele lhe contou sobre minha... — ela hesitou e continuou, em um

murmúrio—... minha situação.Beauregard balançou a cabeça.— Sim. E eu senti muito de saber isso.— Eu também fiquei arrependida por... — Ela hesitou. O desejo que Beauregard tinha de vê-la terminar a frase era, no mínimo,

perturbador. Ele engoliu a vontade de pedir-lhe para continuar e ela o fez, mesmo sem que ele ter implorado.

— Sinto muito por eu ter ido embora sem me despedir de você.Beauregard desviou o olhar de Isabelle e fitou o vazio que se formava à sua

frente.— Isso já faz parte do passado.— Beauregard, espero que não tenha ficado com muita raiva de mim por eu ter

agido assim.— Claro que não. Como eu disse, isso faz parte do passado — ele enfatizou, sem

saber bem o porquê.— É, você tem razão. Tantas coisas aconteceram desde então... Fico feliz de

saber que conseguiu continuar sua vida normalmente.Ele teve a impressão de que a voz dela tremia. O que ele iria fazer, se ela

começasse a chorar ali no meio da rua? Ele fitou as próprias botas com interesse exagerado e cenho franzido. Recusava-se a tomar conhecimento do que poderia estar

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ocorrendo.— Como sua esposa é? George me disse que ela é o oposto de mim. Cabelos e

olhos escuros, um pouco mais baixa.— É verdade — Beauregard concordou, querendo que Mary Hellen estivesse ali.— Espero que você esteja feliz, Beauregard. Ela é tudo aquilo que você sempre

desejou?Ele pensou por um momento, ponderando sobre a questão. Mary Hellen não era

o que ele sempre desejara. Até pouco tempo, Isabelle mantivera a primazia.— Ela é o que eu desejo agora — ele respondeu com sinceridade.Isabelle parou de sorrir.— Espero que possamos continuar amigos.— Sem dúvida — ele respondeu, sem outra alternativa. Beauregard viu-a fitar

um movimento na rua e virou-se para ver o que era. George se aproximava na charrete, com Mary Hellen a seu lado.

— Aquela é a sua esposa? — Isabelle quis saber.— É, sim.— Então eu vou embora. Não quero que ela nos surpreenda juntos.Ele pensou em dizer-lhe que ficasse, para apresentá-las. Mas ela já caminhava

em sentido contrário. Ele olhou-a afastar-se, observando-lhe o passo gracioso e familiar.

Beauregard virou-se, de volta a George e Mary Hellen. O veículo leve parou ao lado do passeio.

— O que vocês dois estão fazendo por aqui? Nenhum deles respondeu. George fixou-lhe um olhar sério, com os lábios

contraídos. Beauregard olhou de esguelha e viu Isabelle desaparecer na esquina e entendeu, inquieto, que Mary Hellen também acompanhara o trajeto da outra.

CAPÍTULO XXXIX

Beauregard fitou a expressão magoada da esposa e repreendeu-se por sua intensa vontade de explicar-se. Afinal, não fizera nada errado. George desceu da charrete, em um pulo.

— Mary Hellen queria tomar ar. Pensamos em dar um volta e sair a sua procura. — George franziu a testa com ar de censura e depois voltou-se para a cunhada. — Agora tenho de ir ao escritório. Beauregard a levará para casa.

Devagar e sem saber que atitude tomar, Beauregard aproximou-se e subiu no lado do condutor. Sem dizer uma só palavra, Beauregard bateu as rédeas e virou o veículo leve. Estava com as mãos frias e úmidas. Isso o irritou. Não entendia por que sentia-se culpado. Fora uma simples conversa com Isabelle. Como se ela não houvesse feito a mesma coisa há menos de uma hora, com implicações bem piores...

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Alguns minutos depois, eles pararam em frente à residência de George. Beauregard freou e desceu.

Mary Hellen não esperou que Beauregard desse a volta para auxiliá-la. Começou a descida sozinha, estremecendo com a dor que sentia no braço.

— Espere aí — ele protestou e apressou-se ao redor do cavalo. — Deixe-me ajudá-la.

Beauregard segurou-a pela cintura estreita, ergueu-a um pouco e deixou-a no chão com delicadeza. Mary Hellen fitou-o, com uma pergunta no olhar.

— Foi um encontro casual — afirmou, ainda com as mãos na cintura dela. — Não planejei nada.

Mary Hellen virou-se em direção à residência, seu marido havia percebido o sofrimento em seu olhar.

— Mary Hellen, espere... Ela subiu os degraus.— Não precisa explicar nada. Acredito em você. Entrou e deixou que a porta batesse.Beauregard abriu-a e seguiu a esposa.— Pode escutar-me, por favor? Não foi nada premeditado. Dei de encontro com

Isabelle e não pude deixar de cumprimentá-la.Mary Hellen foi para a cozinha, encheu a chaleira de água e levou-a ao fogão.— Queria apresentar você, mas Isabelle foi embora antes de eu poder fazer isso.Mary Hellen arrumou uma xícara de porcelana e cima da mesa pequena de pinho

e foi em buscar o açucareiro, sem nada dizer.Beauregard não podia mais suportar aquilo. Aproximou-se de Mary Hellen,

pegou-lhe a cintura com duas mãos e virou-a para poder encará-la.— Mary Hellen, você tem de acreditar em mim. Eu não quero Isabelle. Os

sentimentos que porventura tive por ela estão mortos.Mary Hellen arregalou os olhos, fitou-o e fez um gesto afirmativo com a cabeça.Beauregard puxou-a de encontro a si. Sentiu o busto suave achatar-se de

encontro ao seu abdômen. De repente, deu-se conta de que ele era único a preocupar-se em fornecer explicações. Se do que ela é que se casara com dois homens mesmo mês!

Mas nada fazia muito sentido, Beauregard lastimou-se, sentindo-se aquecer com uma onda de desejo inquestionável.

A única coisa que realmente importava naquela altura dos acontecimentos era que Mary Hellen lhe pertencia. E ele a Mary Hellen. Tinha certeza de que não desejava ninguém mais e, se pudesse decidir sobre o assunto, nenhum homem jamais a tocaria.

Beauregard beijou-a e sentiu que Mary Hellen correspondia, abrindo os lábios quentes e úmidos. O calor deles anulava qualquer outro que porventura houvesse existido.

Ela não poderia voltar para Garrison. De jeito nenhum.

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Mary Hellen deslizou a mão para baixo do casaco de Beauregard... Ele apressou-se em tirá-lo.

Soltou os braços das mangas e deixou o paletó cair no piso de madeira. Tomou Mary Hellen entre os braços e carregou-a escada acima. Subiu os degraus de dois em dois, enquanto ela se agarrava em seu pescoço com o braço sadio e beijava-lhe o rosto, murmurando-lhe o nome. Com a ponta da bota, Beauregard abriu a porta do quarto, que bateu na parede interna.

Beauregard carregou-a para a cama, onde deitou-a com muito cuidado.O corpete... tinha de tirá-lo.Um botão, depois o segundo... Os dedos de Beauregard tremiam sem controle e

as mãos tornaram-se úmidas. Ele sentiu uma mistura estranha de desejo e perturbação. Um impulso inexplicável de chorar.

Ele tentou ignorar o conflito de emoções que ameaçava derrotá-lo. Precisava concentrar-se no que estava fazendo. Abriu os colchetes do espartilho e deslizou a camisa feminina para baixo do ombros de Mary Hellen. O busto desnudo e magnífico estava ali, à sua espera. Ela deitou a cabeça para trás e Beauregard abocanhou o máximo que pôde com seus lábios famintos. Queria proporcionar a Mary Hellen um prazer maior do que ele mesmo sentia.

Beauregard percebeu a ânsia de Mary Hellen e tirou a própria camisa, as botas e puxou a calça para baixo.

Quando ele deitou-se sobre ela, ouviu-a gemer e murmurar.— Preciso tanto de você, Beauregard... Ele penetrou-a, com um movimento rápido de quadris. O barulho da chuva

pesada que caía sobre o telhado abafou o som dos gemidos.Eles se moveram a um só ritmo. Mary Hellen protegeu como pôde o braço

quebrado. Ela enterrou as unhas nas costas de Beauregard, enquanto ele se erguia, sustentando-se nos braços, para poder fitá-la.

O rosto dela parecia ainda mais bonito na luz difusa daquela tarde chuvosa. Logo Mary Hellen atingiu o ápice e gritou, ao mesmo tempo em que os raios iluminavam o quarto. Com o maxilar cerrado, Beauregard sentiu a essência de sua vida explodir dentro da esposa. Durante um breve momento, Beauregard não pôde respirar. Tudo o que queria era que o tempo parasse. Assim poderia ficar ali, naquela cama, para sempre. Pesaroso, ele reconheceu que isso era um sonho impossível. A vida não era como se desejava que fosse. Havia tantas coisas a serem resolvidas entre eles, tantos segredos que precisavam ser entendidos.

Quanto tempo isso ainda levaria?, ele refletiu, suspirando profundamente.Sob ele, Mary Hellen também suspirou. Beauregard sentiu o coração condoer-se

e abraçou-a com força. Perguntou-se quando é que as inseguranças iriam abandoná-lo.De repente, Beauregard experimentou a velha e conhecida necessidade de

proteger-se. Saiu de cima de Mary Hellen e sentou-se. Os cabelos molhados esfriavam-lhe a pele e ele estremeceu. Não saberia expressar-se de modo correto. Onde

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encontrar as palavras certas?— Tenho de ir — foi só o que conseguiu dizer. Aliás era o que ele sempre dizia. Ficou em pé, vestiu a calça e depois a camisa.

Mary Hellen puxou o acolchoado até o queixo.— Aonde você vai?— A nenhum lugar. Apenas vou descer. Preciso refletir sobre algumas coisas.Beauregard beijou-lhe a testa de leve, afastou-lhe alguns fios de cabelos dos

olhos, saiu do quarto e deixou Mary Hellen arrumar-se sozinha.

CAPÍTULO XL

As cortinas de renda ondulavam para dentro do quarto e deixavam penetrar o ar com cheiro de chuva. Mary Hellen continuava deitada na cama, agarrada na coberta que lhe cobria o pescoço, angustiada por saber que Beauregard queria manter-se afastado dela.

Mas o que era aquilo? E como é que acontecera?, ela ponderou, infeliz. E ainda por cima, em plena tarde?

Mas é que depois de ver Beauregard com Isabelle, o medo de perdê-lo fez com que o desejasse mais ainda. A vontade de tocá-lo e ser tocada por ele fora irresistível. Assim que ele havia tomado a iniciativa de beijá-la, ela correspondera plenamente.

Essa fora a sua motivação. Além do mais, tinha de estabelecer os seus direitos. Mas e quanto a ele? Ele a puxara com a força de um vendaval de inverno, com a excitação evidente naqueles olhos verdes. A reação dele também fora diferente das outras vezes na casa de barro. Por quê? Ele teria fechado os olhos e imaginado que estava com Isabelle?

Só em imaginar isso, uma onda de ciúme atingiu-a. Teve de lutar contra esse pensamento detestável. Levantou-se e foi até a janela. Fechou-a, deixando o barulho da chuva para o lado de fora. Na frente do espelho, ela arrumou os cabelos despenteados e o corpete amassado.

Mary Hellen assustou-se ao ouvir o barulho da porta da frente que se abria.Estaria Beauregard deixando a casa?, ela pensou, ansiosa.Agarrou a barra da saia e saiu do quarto, determinada a impedi-lo. Parou no topo

da escada e viu George pendurando o sobretudo no cabide atrás da porta.Ele olhou para cima e tirou os óculos embaçados.— Mary Hellen, está tudo bem? Você está tão vermelha...Envergonhada, ela tocou no rosto com a mão saudável.— Estou bem. Eu... estava descansando.— Ela começou a descer os degraus . —

Você conseguiu descobrir alguma coisa sobre o casamento?Beauregard aproximou-se, vindo da cozinha, com uma caneca de água na mão.

Mary Hellen parou no meio da escada, mas ele não a olhou.

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— O que foi que encontrou a respeito? — Beauregard quis saber.George dobrou os óculos e enfiou-os no bolso de cima do paletó.— Por que não vamos até a cozinha?Os três entraram e ela sentou-se à mesa. O medo tomou conta de Mary Hellen e

provocou-lhe espasmos sob a superfície da pele. Ela cerrou os dentes, esperando pelo pior.

— Por favor, George, diga-nos. Não posso suportar mais essa agonia.George conservou-se ao lado da porta, fitando-a, as mãos postas como se

estivesse para rezar o padre-nosso.— Bem... você está casada. Não há dúvida quanto a isso.— Com quem? George indicou o irmão.— Com Beauregard.— Ah, graças a Deus! — Mary Hellen encostou-se no espaldar da cadeira.Beauregard pôs a caneca sobre a mesa e sentou-se em frente, sem entretanto

fitá-la.— A boa notícia é que casamento de vocês é válido — George afirmou.Beauregard fitou o irmão, como a questionar se aquilo era uma boa notícia. Mary

Hellen sentiu-se morrer um pouco.— Um casamento bígamo é considerado inválido quando uma das partes se

propõe a terminá-lo com uma anulação ou um divórcio. Você estava certa, Mary Hellen, ao supor que seu matrimônio com Garrison era nulo e em sua anuência em casar-se com Beauregard.

Mary Hellen pensou por que não ficava mais feliz com a informação. Na verdade, ela estava a ponto de chorar, com Beauregard sentado a sua frente, parecendo insensível ao que George contava.

— Ainda há mais? — Mary Hellen esforçava-se para não demonstrar tremor na voz.

— Sim. — George apanhou um documento que havia deixado sobre o balcão. Pôs os óculos e leu qualquer coisa em silêncio.

Aqueles momentos de quietude pareciam não ter fim. Então, ele baixou as folhas.

— Em 1862, foi estabelecido um decreto contra a bigamia. Faz parte de uma lei federal que torna a bigamia uma atividade criminosa.

— Garrison poderá ir para a cadeia?— Sim, uma vez que seja denunciado às autoridades. E... o mesmo pode

acontecer com você, Mary Hellen.Com o coração disparado, ela sentiu o olhar fixo de Beauregard.— Mas eu não sabia!— Nesse caso, é claro, você seria inocentada. Entretanto, se Garrison afirmar o

contrário... Acredita que ele tentaria incriminá-la?

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— Sim. Garrison avisou-me que, se eu revelasse alguma coisa, ele diria que eu sabia o que estava fazendo, por pretender apenas o dinheiro dele.

— Mas você deixou-o sem levar nada, não é mesmo?— É evidente que sim.— Nesse caso, Garrison terá muito trabalho para provar que você queria isso.— Então acha que eu não tenho nada com o que preocupar-me, George? —

Mary Hellen indagou, com medo de ter esperança.— Farei tudo o que estiver a meu alcance para ajudá-la. Durante esse diálogo,

Beauregard não se manifestara. A mudez dele aborrecia-a mais do que tudo.— As notícias são mesmo boas — Mary Hellen disse para George. — Sendo

assim, por que você está tão... apreensivo?— Porque ainda temos um outro ponto a considerar. Mary Hellen endireitou-se.— É sobre seu enlace com Beauregard. Beauregard encostou-se para trás e cruzou os braços.— Pensei ter ouvido você dizer que nossa união era válida, meu irmão.— Foi o que eu disse, Beauregard, mas há algumas implicações.— Só porque nós não nos conhecíamos, George? Há muita gente fazendo isso

hoje em dia.— Sim, Mary Hellen, concordo, mas, neste caso, há mais do que a falta de

conhecimento mútuo. É o assunto da fraude.— Fraude? George pigarreou.— No dia em que você chegou, Mary Hellen, Beauregard mostrou-me sua carta.

Não fique brava. Ele estava apenas tentando me convencer de que agira certo. Eu me lembro muito bem de que você afirmava com convicção que nunca fora casada antes.

— Mas eu não havia sido mesmo! Pelo menos, não legalmente.— Entendo, Mary Hellen. Mas um tribunal pode pensar de maneira diversa, se

Beauregard tiver a intenção de levar o caso adiante.Mary Hellen fitou o marido, de soslaio. Ele estava sentado, muito calmo, muito

atento.— O que você quer dizer com isso, George?— Que meu irmão tem fundamentos para pedir uma anulação.O estômago de Mary Hellen pareceu querer sair pela boca. Levou as mãos ao

abdome, com os dedos trêmulos.— Anulação?— Se ele quiser. — George encarou Beauregard. — Evidente que, se meu irmão

não tiver intenção de fazer isso, tudo permanecerá como está.Mary Hellen olhou para o marido, por sobre a mesa, bastante nervosa. Talvez o

pior de tudo fosse que ela nem podia imaginar o que ele estaria pensando, apesar da intimidade que haviam conquistado naquelas poucas semanas.

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Será que o conhecia mesmo?, ela perguntou-se. Será que teria a oportunidade de tentar?

— Por que todos estão olhando para mim? — Beauregard afastou os cabelos do ombro. — Suponho que ambos estejam esperando que eu diga que não pretendo acabar com este casamento.

George deu um passo atrás e deixou os papéis sobre a mesa ao lado do fogão.— Acho que nós dois gostaríamos de saber o que...— Não sei, George. Se está querendo uma resposta, não a posso dar. —

Beauregard agarrou o paletó e saiu da cozinha.Mary Hellen permaneceu sentada, imóvel e desconsolada, observando o

cunhado.A porta da frente abriu-se e bateu na parede interna do hall. George apressou-se

até lá.— Aonde você vai, Beauregard?— Pensar em algum outro lugar. Infelicíssima, Mary Hellen escutou o som das botas do marido descendo os

degraus."Beauregard jamais vai perdoar-me", ela refletiu, muito triste. Então, escondeu o

rosto nas mãos e chorou.

CAPÍTULO XLI

Encharcado e exausto, Beauregard empurrou as portas de vaivém do Long Branch Saloon. Entrou, inalou o cheiro forte de fumaça de charuto e tirou o chapéu embebido de água. Estranhou que o local estivesse cheio àquela hora do dia. Devia ser por causa da chuva, ele pensou, enquanto caminhava a passos largos até o bar. Enfiou a mão no bolso, à procura de algumas moedas.

— O que você vai querer? — O barman enxugou as mãos no avental úmido.— Uísque.Beauregard não bebia com freqüência, mas estava convicto de que era um

momento apropriado para fazê-lo.O homem pôs um copo em cima do balcão, virou-se para pegar uma garrafa na

prateleira atrás dele e serviu uma dose da bebida alcoólica.— Pode deixar aqui. — Beauregard sabia que não voltaria tão cedo para casa de

George.Precisava pensar e pensar, e não era capaz de fazer isso, com Mary Hellen na

mesma casa. A simples presença dela impedia-o de raciocinar com clareza e ele tinha de tomar uma decisão importante.

Deveria ter imaginado que qualquer coisa semelhante aconteceria, quando ela lhe contara sobre Garrison e a morte dos pais, que na verdade ocorrera há quatro anos

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e não há quatro meses. Ali haviam começado as mentiras, mas ele sentira-se obrigado a cumprir o juramento que havia feito.

Levou o copo de vidro matizado aos lábios secos e degustou o líquido amargo, antes de engolir. Carregou a garrafa até uma mesa e sentou-se.

Deveria ter sido mais cuidadoso, depois do que acontecera com Isabelle. Não devia ter se deixado seduzir por Mary Hellen tão depressa, sem antes conhecê-la melhor.

Anular o casamento... Na verdade, seria a atitude mais simples e sensata a tomar.

Levantou o copo, tomou a dose restante e tornou a enchê-lo. Fitou o líquido que jorrava para dentro do vasilha. O que iria fazer?

A razão dizia-lhe para terminar com tudo. A lei era clara. Ele teria justificativas.Mas a idéia de deixar Mary Hellen e voltar à fazenda sozinho, sem sua mulher,

era impraticável. Só em imaginar isso, sentia pontadas nas têmporas.Nunca mais vê-la? E nem tocá-la? Poderia admitir a noção de que não se

comprazeria mais com o calor daquele corpo macio?No fundo do saloon ecoaram risadas. Beauregard assustou-se, tomou mais um

gole grande do líquido ambarino e amargo. Aliás, muito bem-vindo por seu efeito entorpecente.

Apertou com força o cavalete do nariz e fechou os olhos ardentes. Quais seriam as possibilidades de que voltariam a ser felizes? Haveria alguma probabilidade de voltar a confiar nela? E para sempre?

Se fosse inteligente, dali para a frente jamais confiaria em ninguém.Beauregard escutou passos perto dele e sentiu uma presença não desejada a seu

lado. Girou rapidamente na cadeira.— Encontramo-nos outra vez. — Garrison fez uma pequena mesura.— Não por minha vontade. — Beauregard teve de conter-se para ficar sentado.

Tinha ímpetos de jogar a cara do outro na lama.Garrison ficou parado e depois puxou uma cadeira.— Você se incomoda se eu me sentar?— Eu me incomodo, sim.— Ah, vamos lá! Não acha que está sendo duro demais comigo? Tem é de ficar

com raiva de Mary Hellen.Beauregard sentiu uma contorção interior. Tomou mais um trago de uísque.Garrison sentou-se na frente dele, apesar do protesto anterior.— Barman, vou beber com ele!O homem trouxe um segundo copo.— Quer uma garrafa também? — o barman perguntou.— Não, apenas isto. Não estou tão necessitado de afogar as mágoas quanto este

cavalheiro aqui.O homem encheu o copo, deu as costas para os dois e voltou a seu trabalho.

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Beauregard tentou ignorar o olhar fixo de Garrison. A última coisa de que necessitava era meter-se em uma briga de saloon e passar a noite na cadeia.

— Ah, quanto desânimo... — Garrison suspirou.— Não é de sua conta, McPhee.— Estou apenas tentando entabular uma conversa. Acho que começamos com o

pé errado.— Não haverá pé certo onde você e eu estivermos juntos.— Não o culpo por estar enraivecido. Em seu lugar, eu também estaria. Mas

como eu disse, não é comigo que você tem de estar zangado. Só estou tentando ajudar.

— Ajudar? Você?Garrison cruzou uma perna sobre a outra e tomou uma golada lenta e

dignificante.— Vim aqui para falar com você, não vim? Você está com cara de quem está

precisando de alguns conselhos.— Como se eu precisasse disso! Você é o meu problema, McPhee e não a

solução.— Isso não é muito amistoso de sua parte.— E você não é meu amigo. Estou mesmo surpreso que tenha se aproximado de

mim.Garrison riu com excesso de confiança.— Estamos em um lugar público, sr. Brigman. Se encostar a mão em mim, haverá

muitos cavalheiros que virão em meu auxílio.— Não é sobre isso que estou falando. Garrison bebericou mais um pouco,

olhando para a frente.— Não?— Não. Eu poderia falar com o xerife. Você seria preso aqui mesmo.— Preso? E posso perguntar-lhe por quê?— Você sabe muito bem! Por bigamia com "B" maiúsculo.Garrison quase engasgou com a bebida.— Foi o que ela lhe disse? O engraçado é que não fui o único. — Garrison sorveu

mais um pouco do uísque, sorriu, inclinou-se para a frente e descansou a mão no ombro de Beauregard. — Que original... Bigamia. Só que neste caso, Beauregard, eu não sou o bígamo. Ela que é. O que faz de você também um fora-da-lei.

— Preciso avisar-lhe que meu irmão é um advogado. Ele verificou as leis para mim. Meu casamento com Mary Hellen é válido. O seu, não.

— Sinto muito, sinto muito... — Garrison gargalhou, com as mãos na barriga. — Eu não deveria rir. Isso é muito sério.

— Pode apostar que é. E eu acho que está na mais do que na hora de dizer-me onde está a graça.

Garrison segurou a garrafa.

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— Quer mesmo saber? Talvez você também precise de mais um drinque. — Garrison encheu os dois copos, sob o olhar distraído de Beauregard. — Isso é muito difícil. Sempre é.

— O que você quer dizer com "sempre"?— Eu deveria ter falado isso antes. Não é a primeira vez que Mary Hellen foge

para uma nova vida e tenho de trazê-la para casa. E você também não é o primeiro homem com ela se casou.

Beauregard teve de conter-se para não socá-lo.— Dá para ver que você ficou surpreso — Garrison comentou, com ironia.— Estou espantado por você ter a capacidade de inventar uma coisa dessas.— Não estou inventando nada. Mary Hellen é minha esposa e ela é

problemática.Beauregard tomou toda a bebida do copo e bateu-o sobre a mesa. Limpou a

boca com a manga e ficou em pé.— Por que você não volta para Boston e leva junto suas histórias mirabolantes?— Imagino que ela ainda deve ter-lhe contado que os pais morreram.Beauregard ficou imóvel. Olhou para fora das portas de vaivém do saloon, onde

a água da chuva caía a cântaros, escorrendo do telhado. Tornou a fitar Garrison, sem demonstrar nenhuma emoção. O outro se erguera e estava em pé, no bar.

— E ela disse que os coitados faleceram em acidente de trem ou de varíola?Beauregard não conseguia acreditar naqueles absurdos, Não podia ser. Por que

não parava de escutar? Por que simplesmente não ignorava aquele patife do Garrison?— Bem? — Garrison insistiu. — Do que foi? Beauregard encarou-o com frieza.— Eles estão mortos. Pereceram em um acidente de carruagem.Garrison aproximou-se.— Sim. Acidente com uma carruagem. Agora, isso foi quando ela ainda era

criança ou foi um acontecimento recente?Inquieto, Beauregard engoliu em seco, à procura de uma resposta coerente.

Antes de eles terem se casado, ela escrevera contando que haviam morrido há quatro meses. Mais tarde, que eram quatro anos. E aí?

— Talvez você necessite de outra dose. — Garrison tornou a encher os dois copos com uísque.

Beauregard já nem queria beber. Tinha de preservar a mente alerta. Não podia anuviar o raciocínio e também não agüentava mais olhar para Garrison. Mas, no íntimo, ele entendia que precisava de respostas. Garrison o estava fazendo de idiota. Ou pelo menos, era o que o outro pensava.

Andando com cautela, Beauregard voltou ao bar, segurando o copo com mão firme.

— O que mais?Garrison tirou um charuto do bolso superior do paletó.

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— Então presumo que ela disse que eles haviam morrido.— E por acaso não é verdade?Garrison cortou a ponta do charuto e acendeu-o. Balançou a cabeça, enquanto

soltava algumas baforadas.— Estão vivos e morando em Chicago. Beauregard sentia que o mundo

desabava.— Você deve ter percebido que havia alguma coisa errada, Brigman. Instinto?

Mary Hellen deve ter vindo com... bem... digamos, alguma prática. Isso não sugeriu nada a você?

Beauregard permaneceu em silêncio. Não queria acreditar naquele homem. Sua cabeça latejava. Estava tão confuso a ponto de sentir tonturas. Era certo que duvidara dela. Mas reconhecera, com o tempo, que o problema maior era com ele mesmo. Entrara naquele relacionamento bastante cético. Até George tentara convencê-lo a ter mais cautela.

Talvez a sua atitude não se devesse a sua experiência amarga com Isabelle. Quem sabe se seus instintos não estavam certos...

Sem vontade, tomou mais uma golada do líquido amargo e ambarino. Sentiu o trajeto do uísque até a boca do estômago e encarou o inimigo.

— Se ela é tudo isso que você diz, por que a deseja de volta?Garrison soltou outra baforada.— Deve adivinhar a resposta, companheiro. Esteve com ela por um mês. Mas já

foi tempo suficiente para despertar-lhe algum sentimento, mesmo que de pequena monta.

Beauregard olhava o copo e tentava não demonstrar nada.— Existe alguma coisa especial nela, você não acha, Brigman? Alguma coisa que

faz com que se queira protegê-la. Mesmo sabendo que, de fato, ela pode tomar conta de si mesma muito bem. Acho que não sou diferente de você. Eu ainda a quero, apesar de tudo o que ela fez. Não posso aceitar com facilidade o fato de ficar sem a sua companhia. Não é também como se sente? Não está tentando justificar e querendo dar um jeito de relevar tudo isso?

Beauregard não respondeu, mas as palavras de Garrison martelavam, selvagens, eu seu cérebro. Mary Hellen o enganara desde o princípio, escrevendo que nunca fora casada. Depois, tentando fazer o mesmo na noite de núpcias...

Beauregard inspirou fundo, antes fazer uma pergunta.— Vocês têm filhos?— Não. Mary Hellen não quer e sabe como prevenir-se. A cabeça de Beauregard girava como um parafuso...Seus membros tremiam.E não era por causa do uísque.Ele virou o copo e terminar de beber. Deixou o dinheiro no bar e afastou-se do

balcão.

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— Aonde é que você vai, Brigman?— Não lhe interessa.Garrison estendeu a mão e agarrou o braço de Beauregard.— O que pretende fazer? Não vou aqui ficar esperando que você lhe dê uma

surra. O que você tem a fazer é deixá-la ir embora. Traga-a e eu a levarei para casa, onde ela estará segura. E esqueça tudo o que aconteceu.

Beauregard hesitou, encarando o adversário.— É capaz de me dar sua palavra de honra de que não vai bater nela?— Não resolvo as coisas dessa maneira, Garrison.Beauregard saiu do saloon, pensando em como resolver tudo aquilo. Ele só

queria despachar Mary Hellen no primeiro trem para o leste e nunca mais ouvir falar dela.

CAPÍTULO XLII

Beauregard voltou para a casa de George, concentrando-se para não cair e para desviar-se dos montículos de dejetos dos animais. Se caísse, no estado patético e intoxicado em que se encontrava, não estaria apto para distinguir se iria de encontro ao barro ou a outras coisas.

Afastou os cabelos molhados dos olhos para enxergar melhor. A chuva havia parado e a rua era um verdadeiro lamaçal. As botas afundavam na terra molhada, à medida que caminhava, carregando imundícies.

Ah, sim... e ainda por cima a cabeça latejava como um tambor. Deveria ter pensado melhor antes de haver aceitado a última dose. Aliás, antes de começar a beber. Nunca tivera muita resistência contra as bebidas alcoólicas.

Já estava escuro, quando ele chegou à casa de George. Parou na varanda para limpar a lama e a sujeira das botas. Contemplou as janelas pouco iluminadas. Não queria entrar e nem fazer o que deveria ser feito. Mas o tempo das indecisões já passara. Só não pretendia deixar Mary Hellen às voltas com a lei.

Cambaleando, alcançou a maçaneta da porta e repreendeu-se mais uma vez por haver bebido tanto. Entrou na semi-obscuridade da casa. Ninguém veio cumprimentá-lo.

O silêncio rodeava seus sentidos deturpados.Em pé, tentou equilibrar-se no centro do hall. Ouviu, vindo da cozinha, o barulho

de uma cadeira sendo arrastada. George apareceu.— Você voltou. O comentário era óbvio.— Sim. Onde está Mary Hellen?— Descansando. Vou chamá-la. — George fez menção de subir.— Não. Não faça isso.

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George parou no primeiro degrau.— Prometi que a acordaria se... quando você retornasse.— Não será necessário.De repente, o ambiente começou a girar e Beauregard cambaleou

perigosamente. George agarrou-o pelo braço e franziu a testa.— Você está bêbado?— Não... isto é, tomei alguns drinques, mas estou muito bem.Com expressão desgostosa, George entrou na sala e acendeu mais uma

lamparina.— Beauregard, você não é de beber, meu irmão! O ambiente iluminou-se é George sentou-e no sofá.— Mary Hellen ficou muito preocupada depois que você saiu. Nem mesmo

jantou. Foi direto para a cama.Beauregard encostou-se no marco da porta e cruzou os braços.— Você está tentando fazer-me sentir culpado? Não sou eu o mentiroso.— Eu sei, eu sei.— De que lado você está, George? George passou a mão nos cabelos.— Não estou de lado nenhum. Estou apenas pensando que Mary Hellen

precisa...— Mary Hellen precisa! Eu é que sou sua família,George. Eu. Ela mentiu para mim desde o começo e você age como se eu é que

merecesse censura. Como se eu é que estivesse causando todos os problemas.— Não é nada disso.Beauregard entrou no recinto com cuidado. Afinal, sentia um pouco de tontura.— Então o que é?— Você não pode dar as costas para ela, Beauregard. Ela não tem ninguém.Beauregard tentou ignorar o latejar intenso de sua cabeça.— Ninguém? Ela também contou a você a triste história da morte dos pais?— Sim. E por que está me olhando deste jeito?— Então você concedeu-lhe a simpatia do ouvinte atento?— Mas que bobagem é essa agora, meu irmão?! Beauregard foi até o consolo da lareira onde encostou o cotovelo e depois

apoiou a têmpora em dois dedos.— George, você não sabe nem da metade do que se passou.George levantou-se e descansou a mão no ombro de Beauregard.— E você sabe que ela o ama. Beauregard estremeceu e afastou-se do irmão.— Não quero escutar isso.— Beauregard, eu o conheço. Você gosta dela. Está apenas zangado.— É mais do que isso. Estou possesso. E você não tem nem idéia sobre a

verdadeira história, meu irmão. Você acha que a conhece, só por ter passado um

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pouco de tempo com ela. Ela é uma mulher bonita que usa a beleza para conseguir o que quer. Você entrou direitinho no jogo de Mary Hellen.

George afastou-se e entrou na cozinha escura. Beauregard seguiu-o.— Não adianta fugir de mim.— Você está bêbado e bancando o idiota.— Estou?!George nada respondeu. Foi até a janela da cozinha e fechou-a com uma

pancada.— Você sempre a apoiou, George, como se eu fosse o único que fazia tudo

errado. Admito que não sou uma pessoa fácil de lidar, mas será que não dá para entender que sou seu irmão? Nós não sabemos nada a respeito de Mary Hellen.

O advogado sentou-se em uma das cadeiras e encostou os dois cotovelos na mesa.

— Desculpe-me, Beauregard, mas não posso aceitar o que você está dizendo.— Eu sei. Você foi atraído por ela no momento em que a viu na estação de trem,

não é mesmo?George balançou a cabeça.— Não, Beauregard. Ela é sua mulher.— O problema não é esse. — Beauregard suspirou e fitou o irmão por alguns

minutos, pensativo. — Engraçado... No começo, você é que tentava convencer-me a não casar com ela. Achava que eu deveria conhecê-la primeiro.

George recostou-se no espaldar da cadeira.— Eu me lembro. Eu tive um mau pressentimento.— E você estava certo. Você não tem idéia do que eu soube esta noite.— E vai me dizer?— Suponho que não tenho outra opção.Meia hora mais tarde, George suspirou e sentou-se de novo, depois de haver

levantado umas três vezes. — Você acredita nele, Beauregard?— Já nem sei mais em quem acreditar. Só sei que este casamento não deveria

ter-se realizado. Ao mandar buscar uma noiva sob encomenda, pensei que estivesse me livrando dos problemas. Achei que seria mais simples.

— O que você pretende fazer?Beauregard descansou a testa na mão e fechou os olhos.— Farei o que qualquer homem faria, em minha situação. Mas a idéia de...George levantou o olhar.— De quê?— A idéia de... — Não podia acreditar no que estava acontecendo. — Por Deus,

George, gosto demais dela! Mas não posso impedir que meus sentimentos por Mary Hellen modifiquem o que tem de ser feito. Sei que será difícil, mas preciso de fazer a coisa certa. E de sua ajuda também.

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CAPÍTULO XLIII

Mary Hellen permanecia desperta no escuro, olhando para o teto. Acordara fazia uma hora com um latejar forte no braço. Já fora na ponta dos pés até o hall e descobrira que estava sozinha na casa.

Nesse intervalo, pensara em um número alarmante de cenários desagradáveis. E se Beauregard e George tivessem ido ao encontro de Garrison? Se algo terrível houvesse acontecido com eles? Se eles houvessem relatado tudo ao xerife?

Virou-se de lado na cama e descansou o rosto sobre as costas da mão sadia. Se ao menos aquela incerteza a deixasse dormir e só acordar quando eles voltassem!

Meia hora mais tarde, ela ouviu uma carroça parar em frente da residência. Deu um pulo para fora da cama e correu para a janela.

Eles estavam de volta. Mary Hellen suspirou, aliviada. Permaneceu à janela, com a mão no peitoril. George e Beauregard conversaram um pouco. Depois George saltou da carroça e foi até a porta.

Beauregard foi embora.Mary Hellen sentiu de novo o estômago embrulhado. Para onde o marido iria?Jogou o xale sobre os ombros e desceu a escada, esbaforida. Encontrou George

na cozinha.— Onde vocês estavam? — Mary Hellen indagou, incapaz de conter o desespero

na voz.George deixou alguns papéis sobre a mesa, sem olhar para a cunhada.— Acho que é melhor você sentar-se.— O que foi? — O coração dela disparou. — O que aconteceu? Para onde foi

Beauregard?— Por que não se senta? — George sugeriu, mais uma vez, e finalmente fitou-a.

Ele estava pálido e, por trás dos óculos, os olhos mostravam-se vermelhos de exaustão.

Mary Hellen hesitou e depois obedeceu. Esperou, enquanto George folheava as páginas.

— Quer uma xícara de chá ou outra coisa qualquer, Mary Hellen?— Não! Não quero nada, exceto que me diga o que está acontecendo!George sentou-se diante dela e pôs as mãos sobre as folhas que estivera

analisando.— Tenho más notícias.O medo paralisou-a na cadeira e a emudeceu.— Sinto que eu tenha de dizer-lhe isso, mas Beauregard decidiu pedir a anulação

do matrimônio.Depois das palavras de George, tudo escureceu de repente para Mary Hellen.

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Anulação? Teria ouvido direito?— Você está bem?— Não.— Sinto muito, Mary Hellen. — George não olhava para ela. — Meu irmão está

irredutível. Quer que você volte para Boston.As lágrimas vieram-lhe aos olhos. Angustiada, Mary Hellen engolia em seco,

lutando para não chorar.— Ele falou mais alguma coisa? O porquê, exatamente?— É um direito legal dele.A frieza do cunhado machucou-a. Parecia que o mundo inteiro se voltava contra

ela.— Beauregard ainda ama Isabelle, é isso?— Não tenho o direito de discutir isso com você, Mary Hellen. Estou agindo

como advogado de Beauregard.Ela teve a sensação de ter sido atirada contra uma parede de tijolos. Sem

conseguir evitar que as lágrimas escorressem, ela deixou-as fluir.George apanhou os papéis.— Está tudo certo. Beauregard inclusive já os assinou.Mary Hellen limpou o rosto molhado, sem acreditar no que George lhe pedia.— O que diz aí?— Isto não a implica como bígama, se é o que lhe preocupa — George garantiu,

com expressão impenetrável. — Nós discutimos o assunto à exaustão para chegar a um texto que...

— Não me importo com palavras. Só quero saber quais as razões que Beauregard alegou.

— Aqui diz que você o enganou. Levou-o a acreditar em coisas a seu respeito que não eram verdadeiras.

Mary Hellen empurrou a cadeira para trás e levantou-se.— Essa anulação não me fará voltar para Garrison, se é isso que Beauregard

pretende. Tomarei meu próprio rumo. Quero que diga isso a seu irmão.— Eu direi. — George encarava-a, pálido.— E se Beauregard pode abandonar-me, sabendo que eu o amo, anular o

casamento será até uma medida benéfica. Se ele é incapaz de acreditar em mim ou de me amar... então é melhor ficar sozinha.

Mary Hellen virou-se e saiu da cozinha, mas parou no primeiro degrau. Os documentos. Não os havia assinado.

Mary Hellen apertou o corrimão. Deveria assinar seu nome e deixar Beauregard ir embora assim tão fácil?

Respirou fundo, sentindo uma raiva surda crescer dentro dela. Como é que ele podia deixá-la, sem ao menos despedir-se? Mandara o irmão fazer isso por ele!

Permaneceu no sopé da escada da casa de George, pensando no futuro.

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Pesarosa, entendeu que o súbito fim daquele casamento fora previsível desde o começo. Aflita e assustada na noite de núpcias, ela cometera um erro ao enganar Beauregard. Aquilo era, sem dúvida, a sua merecida punição.

Carregando um pesar incomensurável, Mary Hellen virou-se, entrou na cozinha e, rápido, subscreveu o nome no local apropriado.

O sol acabava de despontar, quando Beauregard chegou à fazenda, sonolento, machucado e solitário. Viajara a noite inteira mergulhado em um estupor que parecia não ter fim. Não esquecera por um só minuto as decepções e as mentiras de Mary Hellen. Ao mesmo tempo, ele se debatia contra a vontade de retornar a Dodge e trazê-la de volta ao lar.

Mas que lar era aquele, ele perguntou-se.Campos secos e mortos? Uma pequena estrutura feita de terra? Um vento frio,

como se fosse de inverno, sempre no caminho?Beauregard parou, freou a carroça e desceu. Apesar do sol que aparecia, o frio

nos ossos ainda permanecia. O outono logo chegaria. O céu clareava aos poucos e ele podia ver a sua respiração sair em pequenas baforadas.

A porta do celeiro abriu-se e a luz da lamparina refletiu-se pelo chão como pingos de água. O pequeno Frank Whitiker apareceu na entrada.

— Beauregard! Você voltou! — o garoto gritou. — Estava cuidando de Maddie para você. Já a ordenhei e também dei comida para os porcos.

Beauregard aproximou-se do garoto e desmanchou-lhe os cabelos.— Obrigado, Frank. Eu sabia que podia contar com você.O rosto do menino iluminou-se de orgulho. Beauregard fez um grande esforço e

conseguiu sorrir.— Preciso ir para casa. Ainda tenho de fazer minhas tarefas, antes do desjejum.

— Frank correu pelo terreiro, mas parou de repente e virou-se. — Espere até eu contar para o pai e para a mãe que você está de volta! Pode acreditar que eles virão aqui para mais uma noite de danças.

Beauregard franziu a testa. Ainda não pensara em como explicar tudo para Howard e Martha.

— Frank, a sra. Brigman não veio comigo. Ela ficou na cidade.Frank coçou a cabeça.— Ah...— Pode dizer a seus pais que não se preocupem. O menino pareceu indeciso, depois virou-se devagar e iniciou o caminho de volta

pelo campo árido.Uma hora mais tarde, Beauregard continuava sentado à mesa, fitando as paredes

de barro e ouvindo o rugir sinistro do vento sobre a imensidão da pradaria sem fim. Por que não se sentia aliviado? Acabara de livrar-se da mulher que o decepcionara e saíra do episódio legalmente. Apesar disso, só pensava em como sentia a falta dela.

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Depois de aceitar a oferta de George para pagar-lhe um bilhete de trem para qualquer lugar, Mary Hellen foi até a estação e escolheu seu destino. Caldwell. Um bom lugar, como qualquer outro.

Mas não se sentia muito disposta. Resolveu dar um passeio, para ver se o ar fresco e o sol melhorariam seu mal-estar. Foi até o passeio de Front Street, com os saltos das botas batendo de forma ritmada nas tábuas. Passou ao lado da Mueller's, uma loja de calçados. O cheiro de pão fresco que vinha de uma padaria ao lado. provocou-lhe uma súbita náusea.

De novo não, ela pensou, segurando a boca com a mão enluvada. Atormentada, procurou um lugar para ir. Mas qual?

Tapando a boca, ela virou-se e correu para a alameda cercada, ao lado da loja de sapatos. Com uma das mãos sobre a cerca alta, ela curvou-se para a frente e vomitou.

Alguns minutos depois, ela limpava as lágrimas dos olhos e fungava. O que mais teria de enfrentar naquele dia? De volta ao passeio, tentou ignorar os olhares curiosos. Esperava que a náusea houvesse passado, mas nada. A indisposição prolongava-se. Só em pensar no trem oscilando e balançando durante o trajeto, ela quase teve de vomitar outra vez.

— Você está bem? — uma senhora idosa perguntou. — Aliás, não é o que está me parecendo.

— Não se preocupe, já vai passar. A mulher fitou-a com simpatia.— Por que não vamos até o médico? Eu não ficaria em paz com a minha

consciência se a deixasse por aqui.Mary Hellen pensou em recusar a oferta da bondosa senhora, mas talvez fosse

melhor aceitar. Quem sabe se não precisaria de algum remédio. Debitaria a consulta na conta de Beauregard.

— Obrigada — ela disse com a voz trêmula, sentindo fraqueza ao tentar andar.A senhora segurou no braço sadio de Mary Hellen e conduziu-a pela rua,

andando devagar.

— Grávida! — Mary Hellen gritou, olhando o dr. Green com os olhos arregalados. — O senhor tem certeza?

— Sim, tenho.Mary Hellen deixou-se cair em uma cadeira estofada em veludo, perto da porta.

O médico ajoelhou-se na frente dela, com os olhos castanhos cheios de compaixão.— Algum problema?"Imagine! Somente se alguém pensar em estar grávida e não souber quem é o

pai!"Mary Hellen levantou-se e levou a mão aos lábios. O bebê seria de Beauregard?

Se fosse verdade, a alegria seria imensa. Uma felicidade tão intensa, que não poderia ser maculada por nada desse mundo.

Alguma coisa lhe dizia que era dele...163

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Virou-se e abriu a porta com um tranco. As suas saias rodaram para fora.— Sra. Brigman! Aonde vai?— Contar a meu marido!

Beauregard estava sentado na banqueta, ordenhando Maddie. A tarde silenciosa o acabrunhava. Não ventava e as gramíneas estavam paradas. Se não fosse pelo jato ritmado do leite de Maddie caindo na caçamba de madeira, ele poderia perguntar-se se os seus ouvidos ainda funcionavam.

Inclinou-se para a frente e debaixo da vaca. Recordou-se dos dias do mês anterior, quando ficava ansioso para que chegasse a hora de voltar ao aconchego de sua casa, depois de um longo dia de trabalho.

Era verdade o que se dizia, ele pensou, espremendo as últimas gotas de leite do úbere de Maddie. Só se dá valor, quando se perde.

Beauregard pegou na alça de corda do balde e levantou-se, refletindo se ficara apenas sem o cheiro da broa quente e do porco assado. Qualquer mulher poderia preparar uma refeição e criar uma ambiente agradável dentro de uma casa, mesmo sendo esta de barro. Só seriam necessárias algumas flores, uma toalha de mesa e uma cortina na janela.

Mas qual mulher poderia afastá-lo daquela sensação de vazio?De repente, ele teve vontade de montar em um cavalo, voltar para a cidade,

ajoelhar-se e implorar para Mary Hellen perdoá-lo por ter sido tão idiota e tão covarde. Quando é que se permitira amar a esposa sem ter de atormentá-la por isso? Quando é que lhe dera o mesmo que ela entregara a ele?

Virou-se, para levar a caçamba para fora, mas parou ao ouvir algo. Ruído de patas?

A esperança tomou conta dele. Teria Mary Hellen voltado para dar-lhe uma nova oportunidade?

Com o coração pulando de alegria, Beauregard curvou-se e deixou o vasilhame de madeira no chão. O tropel do cavalo cessou e alguém desceu.

Foi até a porta. Seu humor começava a modificar-se. A felicidade tomava conta dele. Teve vontade de rir! O sol alaranjado apareceu a sua frente, quando ele saiu do celeiro, pronto para correr. Estacou, atônito.

Isabelle aproximava-se dele, ondeando a longa saia florida de um lado para o outro.

CAPÍTULO XLIV

Mary Hellen ficou indecisa entre segurar o chapéu na cabeça para evitar que ele voasse ou erguer um pouco a barra da saia de cor púrpura. Afinal, somente podia usar uma das mãos. Sem resolver o assunto em definitivo, saiu correndo do consultório do médico, em direção ao local onde se alugavam cavalos e veículos. Decidiu-se por uma

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charrete para ir até a fazenda. Precisava dizer a Beauregard que estava esperando um bebê. Um bebê!

A medida que corria, os movimentos bruscos faziam o braço doer demais.Como segurar as rédeas com aquela tala miserável amarrada que a impedia de

mexer-se com desenvoltura?, ela refletiu.Talvez fosse melhor pedir a George para ajudá-la. De qualquer maneira, não

desistiria. A novidade mudava tudo. Apressada, dirigiu-se à cocheira Ham BelFs, onde parou, ofegante.

— Ei, qual a pressa? — um homem vestido de azul perguntou.— Quero uma charrete.— Muito bem. Podemos providenciar. Por quanto tempo a senhora vai desejar o

veículo atrelado?— Tenho de ir à Fazenda Brigman — ela explicou, ainda sem haver retomado o

fôlego.O homem olhou-a, extasiado.— A senhora é aquela que o deixou por causa do cavalheiro de Boston?— Em nome de Deus, onde é que o senhor ouviu falar nisso?— Todo o mundo sabe. Além disso, a filha do reverendo esteve aqui esta manhã

para alugar um cavalo. Parece que Beauregard, enfim, vai aceitá-la de volta.Mary Hellen desequilibrou-se e deu um passo atrás.— Quan... quando é que ela foi para lá?— Hoje cedo. Suponho que já deve estar lá.A sensação de derrota deixou Mary Hellen sem ação. Tinha de recuperar-se e

pensar. Urgente. Teria perdido Beauregard para sempre?— A senhora ainda quer o veículo?Mary Hellen ficou parada por um bom tempo, atordoada. Como podia ousar ter

esperanças, sabendo que Isabelle voltava para Beauregard?E a criança em seu ventre? Beauregard poderia imaginar que ela pretendia usar

essa prerrogativa para obter vantagem. Afinal, ele sempre pensara o pior sobre a esposa.

Mary Hellen fitava os caibros do telhado, à procura de respostas. Uma calhandra voou para frente e para trás, e empoleirou-se no forro pontiagudo. Depois voou para baixo e achou a saída pela porta larga da cavalariça. Mary Hellen inspirou fundo e fitou os olhos redondos do homem.

— Quero a charrete, por favor. Durante alguns minutos, Mary Hellen andou de um lado a outro ao lado da

estrebaria, esperando que o homenzinho lhe trouxesse a encomenda. Sua coragem arrefeceu um pouco, ao presumir sua chegada à propriedade de Beauregard. E se encontrasse Isabelle dentro da casa de barro, preparando uma refeição deliciosa? E se Beauregard estivesse abraçando a outra e acariciando-lhe as costas? E beijando-lhe a nuca?

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Se continuasse a fantasiar tal cenário, não teria forças nem para chegar até a próxima esquina.

Mordeu a unha do polegar e resolveu verificar por que o responsável pela estrebaria demorava tanto. Rodeou a construção rústica e colidiu com uma pessoa.

Recuou e olhou para cima.— Não! Essa não! — murmurou, surpresa. Garrison agarrou-lhe o braço quebrado. A dor foi tão forte que Mary Hellen

gritou e dobrou os joelhos.— Tem de ser já, meu amor. Senão, perderemos seu trem.Ele arrastou-a para a estação ferroviária.— Não! Não! Alguém me ajude!Garrison virou-se depressa e tirou uma pistola de dentro do paletó preto.

Pressionou a mão fria sobre a boca de Mary Hellen. Com a outra, encostou-lhe o cano da arma na parte de trás da cabeça.

— Se der mais um pio, mato-a aqui mesmo. Prefiro vê-la morta de que nos braços daquele selvagem a quem você chama de marido.

— Olá, Beauregard — Isabelle saudou, aproximando-se em passadas etéreas e graciosas como sempre. Sorriu, calorosa. — Ouvi alguns boatos... E não pude suportar a idéia de que você estava aqui, sozinho.

— O que você ouviu?— Que George preencheu os documentos da anulação esta manhã no tribunal.

Você deve saber que, em Dodge, as novidades espalham-se muito rápido e com minúcias. Ambos fomos testemunhas disso.

Beauregard escondeu as mãos dentro dos bolsos do casaco curto.— Você fez esse trajeto todo sozinha? Não foi uma coisa muito sensata e...— Bobagem. O dia ainda estava claro quando saí e eu me lembro bem do

caminho. O suficiente para não me perder.Beauregard lembrou-se da última vez em que ela estivera ali e da maneira,como

fora embora.— Bem, mas não é bem assim.— Ah, é? — ela desafiou, no tom melódico e suave que empregava, quando

tinha algum objetivo em mente.Engraçado. Beauregard costumava esfacelar-se em mil pedaços, quando ouvia

aquela voz.— Apropriado? É isso? — Isabelle deduziu, com uma sobrancelha erguida. — Já

nem penso mais em proteger minha reputação. Estive casada e fui abandonada. Agora, vou ser mãe... Mãe sem marido.

— Isabelle...— Ninguém sabe. Nem mesmo meu pai.Ela caminhou devagar até o cavalo e acariciou-lhe o focinho. Um estranho

sentimento de piedade acometeu Beauregard. Nunca imaginara que pudesse sentir 166

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isso por Isabelle. Ela sempre conseguira tudo o que desejara. Até às custas dele.— Sinto muito pelo que lhe aconteceu — ele falou com sinceridade. Deu um

passo à frente e parou.— Obrigada. — Isabelle mascarou a emoção com um sorriso. — Mas não

cavalguei tanto para falar sobre mim. Hoje, você é quem precisa de um ombro amigo. Acho que ainda nem mesmo comeu.

Beauregard apontou o celeiro.— Não, eu estava terminando algumas tarefas e...— Bem, tenho a coisa certa para um homem faminto. — Pegou o alforje. —

Trouxe sanduíches e uma sacola com doces feitos em casa. Lembrei-me de que você gostava dos meus biscoitos de melado.

Beauregard ficou parado, apenas olhando. Por mais que ele quisesse acreditar que se tratava apenas de bondade, apostava que Isabelle pretendia outra coisa. Algo que ele não tinha e nunca teria para oferecer-lhe. Suspirou, refletindo em como resolver aquela situação. Apontou a casa e ambos entraram no abrigo escuro debaixo de terra.

Beauregard deixou o balde de madeira no chão. Tropeçou em uma cadeira, ao ir até a janela para abrir a cortina. Quando se voltou, viu Isabelle avaliando o ambiente de um só cômodo.

Beauregard ajoelhou-se para acender a fornalha e Isabelle deixou a sacola dupla de couro em cima da mesa.

— Desde que eu estive aqui pela última vez, isto melhorou muito. Mary Hellen imprimiu sua marca na casa. — Ela foi até janela. — Que cortina linda!

Isabelle esfregou o tecido entre o polegar e o indicador, e depois notou as flores secas.

— Acho que terei de substituí-las.O estômago de Beauregard contraiu-se.— É... darei um jeito de colher um novo ramalhete amanhã — Isabelle

comentou, alegre."Amanhã..."Beauregard ainda não havia pensado nisso. Claro que Isabelle teria de pernoitar

em algum lugar. Ela não poderia voltar para a cidade no escuro. Talvez Howard e Martha pudessem ter a gentileza de preparar-lhe uma cama.

Isabelle cruzou as mãos às costas e perambulou pelo compartimento, observando os detalhes.

— Vamos comer os sanduíches? — Beauregard ergueu-se. Queria pôr um fim àquela apreciação crítica.

— Claro! Desculpe-me por ficar bisbilhotando. Você deve estar com fome.Isabelle arrumou o lanche sobre a mesa de maneira caprichada, sobre uma

travessa de estanho. Beauregard sentou-se e começou a comer de imediato. Era um ótimo motivo para não falar.

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Depois, Isabelle lavou o prato vazio, tirou as migalhas de cima da mesa e preparou-se para fazer café. Dali a pouco, um aroma agradável recendia na casa e ela encheu duas canecas.

— Sabe, ouvi dizer que o antigo bonitão da Mary Hellen veio buscá-la para voltar com ela.

Antigo bonitão.Era óbvio que as piores partes da história haviam sido canceladas.— É verdade. O homem veio de Boston.— Eles devem estar muito apaixonados. Sinto muito. Beauregard... não consigo

perdoar-me pela maneira como nós nos separamos. Ainda assim estamos aqui, sentados como bons amigos. Você não está com raiva de mim?

Por que a conversa sempre girava em torno dela?, ele se perguntou.— Lógico que não.A resposta correta seria que ele não se detivera muito a pensar naquilo. Não se

tratava de um caso de perdão. A cólera se abrandara e cedera lugar a uma indiferença crescente.

Isabelle terminou de tomar o café.— Beauregard, você não deve amargurar-se pelo que aconteceu agora. Eu posso

voltar. Poderíamos enfim encontrar aquilo que procurávamos, antes de tudo desmoronar. Desde que nós nos separamos... — Enxugou uma lágrima solitária do canto de um dos olhos — ...tenho sentido muito sua falta.

No final, a voz dela soou emocionada. Por sobre a mesa, Beauregard bateu-lhe de leve na mão.

— Você é tão bondoso, Beauregard, tão carinhoso! Fui uma tola em tê-lo deixado. Zack era muito imprevisível e às vezes, até grosseiro. Ele sempre queria ser o centro das atenções. Você sempre foi calmo e teve a cabeça no lugar. Agora entendo que acomodar-me é exatamente de que preciso. — Isabelle levantou os cílios e mostrou os olhos azuis marejados. — E eu quero você!

Beauregard fitou-a e sua cabeça latejava. Ali estava ela. Isabelle. De volta para ele. Recordou-se que durante dois meses após ela tê-lo abandonado, ele permanecera acordado noites inteiras. Ficava imaginando onde e como ela estaria, e desejava, embora sem esperanças, que Isabelle sentisse um pouco a falta dele.

Ele recostou-se no espaldar da cadeira. Isabelle levantou-se devagar. Pegou um lenço de dentro do alforje, enxugou as lágrimas com leves pancadinhas e andou até a janela. Beauregard apertou o cavalete do nariz e cerrou as pálpebras. Mesmo no calor dessa situação, onde as suas fantasias noturnas se concretizavam, ele continuava pensando em Mary Hellen.

— Tudo vai dar certo. Você é forte, Isabelle. Saberá enfrentar os percalços.— E será que terei de fazer isso sozinha? — Passou a mão suave no rosto dele e

deslizou os dedos por baixo dos cabelos, até alcançar a nuca.Depois, ficou na ponta dos pés, pronta para beijá-lo.

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CAPÍTULO XLV

Beauregard fitou Isabelle, que mantinha os olhos fechados e os lábios entreabertos. Ela tocou-lhe a boca com a sua e o que deveria ter sido uma das delícias do paraíso, teve gosto de fel. Ele afastou-a com delicadeza, empurrou-a para baixo pelos ombros e sacudiu a cabeça.

— Sinto muito, Isabelle.Ela ergueu as sobrancelhas, sem entender o que acontecia.— O que quer dizer com isso?— Não posso ficar com você.— E por que não? Desta vez eu não irei embora. Zack pode pular de um

despenhadeiro, que eu não vou dar a mínima...— Não é por causa de Zack. Isabelle afastou-se.— Eu te amei no passado, Isabelle. Mas lembre-se de que me casei com outra

pessoa.— Isso não quer dizer nada, pois todos sabem que a encontrou por meio de um

anúncio. Você casou-se com ela para esquecer-me.O brilho do olhar de Isabelle apagou-se, como se ela, de repente, houvesse

percebido ter dito as palavras erradas.Beauregard odiou aquilo.— Naquela ocasião, pode ser que eu tenha feito isso para livrar-me de sua

lembrança. Mas agora, gosto de Mary Hellen.— Acontece que anulou o casamento, Beauregard. Por que fez isso, se a ama?

Achei que você houvesse tomado tal atitude, por eu encontrar-me livre de novo.Beauregard deu-lhe as costas.— Cometi um engano. Nunca deveria ter assinado aqueles documentos.Isabelle começou a arrumar suas coisas.— Zack também voltará para mim, você vai ver.— Espero que sim. Eu a levarei de volta à cidade.— Deveria mesmo ter adivinhado... — Encerrou o assunto com altivez.

Já era tarde da noite, quando Beauregard deixou Isabelle em casa do pai. Fora uma longa viagem na escuridão. O frio do outono castigara-lhes o rosto e as mãos. Isabelle até parecia satisfeita de voltar à civilização.

Beauregard devolveu o cavalo dela ao dono da cocheira. Seus sentimentos precipitavam-se, deixando-o angustiado, como se fugisse de um incêndio que estivesse em seu encalço. Tinha de encontrar Mary Hellen e desculpar-se. Rezou em silêncio. Era uma prece desesperada. Pedia aos céus para ela perdoá-lo e conceder-lhe uma nova oportunidade.

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Parou em frente à casa de George, freou a carroça e espiou a janela do quarto do andar de cima. Alvoroçou-se. Mal podia esperar a hora de encontrar Mary Hellen, de escutar sua voz, de sentir o aroma de água de rosas tão característico de sua esposa.

"Bom Deus, faça com que ela esteja aqui e me escute..."Desceu do veículo, correu para a escada da varanda e disparou degraus acima.

Sem hesitar, agarrou a maçaneta de cobre, mas a porta abriu-se antes de que ele a movimentasse. George apareceu, muitíssimo irritado.

— O que foi que houve?George não respondeu ao irmão. Em vez disso, deu um passo à frente, fechou o

punho e deu um soco no nariz dele, que cambaleou para trás.A dor espalhou-se pelo rosto como fogo.— O que está acontecendo, George?! — Beauregard, surpreso, levou a mão ao

nariz.George virou-se e caminhou a passos largos para a cozinha. Beauregard seguiu-o,

aturdido. Nunca, em toda a vida deles, George havia batido nele.Também, Beauregard supôs, nunca lhe dera motivos para zangar-se.Beauregard entrou na cozinha, atrás de George.— Você vai me dizer qual é o problema? George sentou-se, muito pálido.— Não se preocupe — Beauregard afirmou. — Não vou revidar o golpe. Já perdi

o costume de brigar. Prefiro que me diga o que aconteceu.George estendeu-lhe um pedaço de papel.— É isso aí.Beauregard, sem tirar uma das mãos do rosto, pegou a pequena folha com a

outra.— É um telegrama de um colega de Massachusetts, Beauregard. Eu queria ter

certeza de que havia feito o melhor para você, anulando o matrimônio. Hoje de manhã, telegrafei para ele e pedi que investigasse seu problema legal.

Beauregard leu o telegrama.— Quando você recebeu isso?— Há uma hora. Parece que Mary Hellen estava dizendo a verdade o tempo

todo.— Eu já sabia disso, George.— Mas disto você não sabia: Garrison está sendo procurado em três Estados.

Não apenas por bigamia. Por poligamia, usando os mais diferentes nomes. Mary Hellen era a esposa número quatro. Coitada! E ela nem tinha idéia do que se passava.

Beauregard afundou-se em uma cadeira.— Mary Hellen agiu com correção, Beauregard. Tentou também não arruinar o

casamento. Aliás, fez o possível para que desse certo. Mas você convenceu-se de que ela mentia desde o começo. E pior, eu deixei que você me envolvesse nisso.

Beauregard sentiu náuseas e deixou o telegrama em cima da mesa.

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— Não precisa dizer-me que eu estava errado. Eu já previa isso. Onde está Mary Hellen? Posso falar com ela?

George fitou-o com expressão feroz.— Receio que esteja um pouco atrasado.— Sei que você já preencheu os requerimentos da anulação, George. Não

importa. Só quero vê-la. Falar com ela. Trataremos de outros assuntos mais tarde.George encostou-se na pia e cruzou os braços.— Se eu não fosse uma pessoa tão racional, pensaria que você quer que eu o

acerte de novo.— Mas por quê? — Beauregard indagou, zonzo. George nunca agira daquela maneira.— Como é que você sabe que eu preenchi os documentos? Foi um passarinho

que lhe contou?Beauregard levantou-se e tirou a mão do nariz machucado.— Eu posso explicar...— Tenho certeza de que pode. Todo o mundo já sabe que Isabelle foi encontrar-

se com você. Ela disse à viúva Harper que finalmente vocês dois iriam ficar juntos. E ninguém diz nada à sra. Harper que não seja espalhado pela cidade inteira.

— O que você está me dizendo?— Depois que recebi o telegrama, tentei encontrar Mary Hellen. Queria trazê-la

de volta para você. Mas descobri que ela alugou uma charrete para ir a seu encontro. Mudou de idéia, quando ouviu falar de Isabelle. O chefe da estação contou-me que ela pegou um trem para Caldwell. Sinto muito, Beauregard. Fiz tudo o que estava ao meu alcance, mas ela deixou a cidade agora à noite.

Beauregard não podia aceitar aquilo. Impossível.— Garrison foi com ela?— Não sei. O encarregado dos trens disse que muitos homens embarcaram.— George, eu vou atrás do trem. Depois de fazer um relato sobre Garrison ao

representante da autoridade federal aqui da cidade.Sem perda de tempo, Beauregard e George caminharam até a carroça. Assim

que apanhassem Garrison, eles rumariam para Caldwell. Mas não seria muito fácil chegar lá antes do trem.

Eles pararam em frente ao posto da polícia federal. Beauregard desceu.— Pode esperar aqui, George.— Está brincando? Eu não perderia isso por nada desse mundo!Eles bateram na porta antes de entrar. O delegado Peavy estava sentado atrás da

mesa, com as longas pernas esticadas em cima dela.— Boa noite, George. Beauregard. Em que posso ajudá-los?— O senhor conhece aquele camarada que veio de Boston? — Beauregard foi

direto ao assunto.— Acho que o senhor vai querer prendê-lo.Peavy abaixou as pernas e inclinou-se para a frente.

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— Está se referindo ao cara que veio atrás de sua esposa? Soube disso, Beauregard. Você tem toda a minha simpatia. Trata-se de uma bela mulher. Não tem tido muita sorte no amor, não é, filho?

— Não, senhor, mas não é esse o problema — Beauregard respondeu, irritado. — George recebeu um telegrama de um colega de Massachusetts, onde dizia que Garrison McPhee está sendo procurado por poligamia em três Estados.

— Poligamia, é? Mas isto é um crime federal. George adiantou-se.— Correto, delegado. Mary Hellen, a esposa de Beauregard contou-me o caso.O delegado fitou Beauregard com atenção.— Parece que ouvi a viúva Harper contar que você entrou com um pedido de

anulação hoje.— É verdade. O senhor também deve ter ouvido dizer que eu pretendia reatar o

compromisso com Isabelle. Mas isso não passa de um mexerico, tão comum aqui da cidade.

Os irmãos entreolharam-se, e George fez um gesto de encorajamento para Beauregard prosseguir.

— Minha mulher era uma das esposas de Garrison, senhor — Beauregard explicou. — Mas ela não sabia que ele já era casado. Ela foi enganada.

— E, pelo que posso deduzir, as outras mulheres também foram.O agente federal Peavy sacudiu a cabeça.— Que coisa terrível! Sua esposa deve estar abaladíssima. — Levantou-se e

prendeu nos quadris o cinturão de onde pendia o coldre com a arma.— O senhor acha que vai precisar disso? Peavy pôs na cabeça o chapéu preto de abas largas.— Por aqui, Beauregard, nunca se pode ter certeza de nada. Você sabe onde o

homem está?— Estava hospedado no Hotel Great Western — Beauregard disse.O delegado verificou as balas na culatra do revólver e fechou o tambor ruído

surdo.— Vamos fazer justiça em nome dessas pobres damas. George e Beauregard acompanharam Peavy até a rua escura e caminharam, lado

a lado, até o hotel. Garrison, por fim, encontraria o que merecia. Aquilo haveria de esclarecer todas as injustiças e Mary Hellen ficaria livre. Livre para casar-se outra vez, se Beauregard conseguisse fazer o que pretendia.

Eles se aproximaram do balcão onde estava um funcionário.— Boa noite, delegado — o homem cumprimentou, fechando o livro de

registros.— Boa noite. Soube que tem um hóspede aqui chamado Garrison McPhee.— Garrison McPhee... — ele abriu o livro, percorreu as páginas com um dedo

longo e enrugado. — Sinto muito. Ele foi embora essa tarde.

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— O quê?!— Foi embora — o funcionário repetiu para Beauregard, inquieto. — Estava

planejando pegar o trem da noite.— O que vai para Caldwell? — George mantinha a mão no ombro de Beauregard.— Acredito que sim. Ele disse que iria viajar com a esposa.— Droga! — Beauregard murmurou e encarou o irmão.— Ela não falou que iria voltar para ele, Beauregard. Pelo que Mary Hellen me

disse ontem à noite, agora o despreza mais do que nunca.Peavy tirou o chapéu.— O que vocês dois pretendem fazer? George fitou o delegado.— Certamente Mary Hellen embarcou no mesmo trem noturno junto com

McPhee.— Pode ser que ela tenha mudado de opinião sobre ele. — O delegado Peavy

coçou a barba.Beauregard enfureceu-se.— O senhor está enganado, delegado. Mesmo que ela esteja com ele, não há de

ser por vontade própria.— Você está falando em rapto?— Sim, senhor.Beauregard virou-se para sair.Mary Hellen jamais voltaria para Garrison, ele refletiu, convicto.Naquela altura dos acontecimentos, Beauregard confiava nela. Só esperava que

ela não estivesse em perigo.Ele bateu a porta da entrada do hotel e desceu os degraus, dois a dois,

atravessou a rua e pulo na carroça.— Beauregard, espere! — George correu atrás do irmão.— Não há tempo a perder. Tenho de chegar a Caldwell antes do trem.O delegado aproximou-se.— Você não conseguirá fazer isso, usando este caixote velho.Beauregard engoliu em seco, recusando-se a admitir a veracidade do comentário

de Peavy.— Por que você não vai com o cavalo de meu auxiliar? Eu irei com o meu.

Cavalgaremos até Caldwell e prenderemos McPhee.— Não vou ficar aqui esperando, Beauregard. Irei pegar meu cavalo, lá em casa.— Então vá logo, George! Estamos perdendo minutos preciosos.

CAPÍTULO XLVI

Era como voltar ao ponto de partida, Mary Hellen raciocinou.Apenas um mês atrás, sentada junto à janela do trem, ela observara a região

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rural do Kansas desfilar rápido ante seus olhos. Na ocasião ela se perguntara como seria sua nova vida. Naquele momento, ela fazia o mesmo, consciente de que seus piores receios haviam se tornado uma realidade.

Extenuada de tanto chorar e lutando para ignorar a dor aguda em seu braço, olhou de esguelha para Garrison a seu lado.

Tinha de controlar-se e ser corajosa.Era imprescindível encontrar uma maneira de sair daquela enrascada, voltar a

Dodge e contar a Beauregard sobre o bebê. Não. podia perder a esperança. Apesar de Isabelle.

Garrison tinha o olhar fixo para a frente e, por baixo do braço esquerdo, mantinha o cano da arma apontado para ela.

— Meu Deus, como esta parte do país é monótona! — Garrison suspirou e ajeitou-se melhor na poltrona do vagão. — Quilômetros e quilômetros de capim. Nada além disso.

— É magnífico. — Mary Hellen também olhava em frente.— Não acredito que essa seja sua opinião. Depois de chegarmos à civilização,

garanto-lhe que irá alegrar-se. Só que, dessa vez, acho que iremos parar em algum lugar do Texas. Ainda que não haja muita coisa por ali, admiro-lhes o gosto pelos jogos de azar.

— Pensei que voltaríamos para Boston.— Temos péssimas recordações de lá. Precisamos recomeçar em outro lugar.Mary Hellen cerrou as pálpebras, muito infeliz.— Você não pode expulsar as lembranças a seu bel-prazer. Uma cidade diferente

não apagará o que aconteceu.Garrison deu um sorriso ligeiro e afetado.— Sei que tudo aquilo o que sucedeu entre nós foi desagradável, mas...— Não estou falando sobre nós. Estou falando de mim. Amo outro homem e

nada do que você fizer ou disser mudará isso.Mary Hellen estremeceu ao sentir o cano da arma espetando-lhe as costelas.— Já lhe disse que não quero ouvir mais nenhuma palavra sobre isso!Mary Hellen encarou-o e empinou o queixo, desafiadora.— E pelo fato de você não querer escutar sobre meus sentimentos, não quer

dizer que eles não existam.— Bobagem! Você nem mesmo sabe o que está sentindo. Mary Hellen apertou os dentes. Gostaria de sentir pena daquele homem que não

conhecera um verdadeiro amor, mas era impossível. Garrison não merecia a piedade de ninguém e muito menos dela. Não depois de tudo o que fizera.

"Oh, Senhor!" Como faria para suportar tudo aquilo? Como escapar de uma situação tão detestável?

Sacudindo-se para a frente e para trás, no mesmo ritmo cadenciado do trem, Mary Hellen achou melhor ficar em silêncio. Pensou no ser que carregava em seu

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ventre e tentou não perder as esperanças.

Na manhã seguinte, Beauregard, George e o delegado Peavy entraram galopando em Caldwell. Vieram logo atrás do trem que chegava expelindo nuvens negras de carvão em pó pela chaminé da máquina dianteira. Os cavalos vinham sem fôlego e assim também Beauregard, depois da corrida desenfreada durante a noite inteira, com muito pouco tempo de descanso. Era o preço que pagava para uma segunda oportunidade. Da qual esperava ser merecedor.

A locomotiva entrou na estação fazendo ruídos sinistros de descarga, sibilando e soprando fumaça branca na plataforma. Os três homens trotaram lado a lado e Beauregard ergueu-se, apoiando as botas nos estribos, e espiou pelas janelas. Os passageiros amontoavam-se nos corredores, procurando as bagagens. Nem queria pensar na possibilidade de Mary Hellen não estar ali dentro. De outro modo, como poderia encontrá-la?

O comboio foi parando e as rodas fizeram barulho, chiando nos trilhos. O vapor foi lançado de novo e o sino de latão tocou ao mesmo tempo em que Beauregard e o delegado desmontavam dos cavalos. Largaram as rédeas dos animais castrados nas mãos de George e correram para a parte posterior da composição. As botas rangeram sobre o cascalho até que, enfim, eles subiram a bordo.

Beauregard foi pelo corredor, pedindo licença e esgueirando-se por entre os passageiros que já se encontravam em pé. Ele e o delegado percorreram dois vagões e não encontraram nada. Mas quando chegaram ao terceiro, Beauregard estacou e o coração bateu com força. Ali estava ela. Por cima do espaldar do assento, só apareciam o chapéu de cor púrpura e as penas.

Um gemido surdo escapou-lhe do peito. Ele não a perdera. Deu um passo à frente e lembrou-se de que Garrison também deveria estar por perto. Fitou o homem ao lado de Mary Hellen. Mesmo só vendo a parte de trás da cabeça deles, reconheceu de imediato a cartola preta.

Uma nova esfera de possibilidades horríveis ocorreu-lhe. E se ela preferisse ficar com o outro, depois de tudo o que ele, Beauregard, a fizera passar? Ele havia anulado o casamento deles. Podia imaginar quantas histórias Garrison deveria ter inventado para convencê-la.

O delegado pôs a mão no ombro do fazendeiro.— Você o viu?Beauregard, bastante aflito, apontou o farsante.— É aquele. Ao lado de Mary Hellen, que está com o chapéu púrpura.— É um chapéu e tanto! — Peavy passou à frente de Beauregard.O representante da lei andou pelo corredor, que já se encontrava mais livre, e

chegou até a poltrona indicada.— O senhor é Garrison McPhee?Mais atrás, Beauregard observava a cena. Queria ver a reação de Mary Hellen.

Ela virou a cabeça e encarou Peavy. O perfil suave revelou espanto, com os lábios 175

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carnudos entreabertos.Garrison hesitou, ao ver o distintivo de prata do delegado.— Sim, por quê? Algum problema?Peavy estendeu a mão e agarrou-lhe o braço.— O senhor está preso. Venha comigo.— Não! — Mary Hellen levantou-se, em pânico. Beauregard amargou alguns instantes de desgosto.Ela tentava proteger Garrison...Mas, em seguida, entendeu por que ela gritara. Garrison flexionou para cima o

outro braço, que ostentava uma pistola de grosso calibre. Apontou para o delegado e atirou.

Beauregard não se deteve. Não houve tempo. Assim que o estampido repercutiu-lhe nos ouvidos, pulou para a frente.

Garrison viu-o com o canto do olho. O delegado caiu para trás, por cima dos assentos e atravessado na passagem. Garrison voltou-se, engatilhou a arma a apontou-a para Beauregard. O grito de Mary Hellen pareceu vir de muito longe.

— Garrison, não!Beauregard atracou-se com Garrison. Ambos caíram no corredor. Beauregard

ficou por cima e seu queixo foi de encontro à testa de Garrison. Eles se viravam e se contorciam, com Beauregard tentando agarrar a arma. Os passageiros vociferavam e gritavam. O barulho e a confusão repercutiam entre as paredes do vagão. O fazendeiro sentiu o cano frio da arma em seu estômago.

Ele temeu perder a vida, que na verdade estava por um fio. Grunhiu e fez um movimento abrupto para afastar a pistola de seu corpo.

Ouviu-se um clique. O som ecoou dentro de sua cabeça.Em seguida, a pistola detonou.Garrison e Beauregard encararam-se, os olhos de Garrison, incrédulos. No

mesmo instante, a cabeça dele pendeu para trás e ficou imóvel no piso do corredor.Os gritos e o caos de instantes atrás terminaram. A quietude envolveu a mente

de Beauregard. Inerte e extenuado, ele conheceu o toque da mão que lhe encostava no ombro. Compreendeu que estava deitado em cima de um homem morto. Levantou-se como um raio, cambaleando a seguir. Mary Hellen pegou-o pelo braço e fitou-o.

— Você está bem? — Estava pálida e tensa de preocupação.— Estou, sim. — Mas suas mãos tremiam.Um gemido veio do banco ao lado deles. O delegado... Eles se viraram, a tempo

de ver George chegar correndo pelo espaço entre as fileiras de assentos.— O que aconteceu?Beauregard inclinou-se por cima de Peavy. O sangue manchava a camisa e o

ombro da autoridade federal.— O senhor vai ficar bom, delegado. O rosto do delegado contraiu-se.

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— Acho que preciso de um médico.— George, por favor, vá buscar ajuda — Beauregard pediu.George, lívido pelo susto, virou-se e correu para fora. Mary Hellen chegou mais

perto e pegou a mão de Peavy.— Posso fazer alguma coisa pelo senhor?O delegado piscou algumas vezes e respirou com dificuldade.— A senhora poderia dar um jeito nesse chapéu.

CAPÍTULO XLVII

Mary Hellen e Beauregard contaram ao xerife local toda a história e ficaram bastante aliviados, ao ver o delegado Peavy ser transportado em uma padiola, a mando do médico. Mary Hellen segurou o chapéu e desceu do vagão. A manhã brilhante era uma promessa de um dia ensolarado. Ela inalou o cheiro de fumaça do carvão. O odor pronunciado de animais, já conhecido, deu-lhe a entender que aquela, como Dodge, era uma cidade onde o gado era abundante.

Os outros passageiros amontoavam-se na plataforma de desembarque e, curiosos, trocavam informações sobre os distúrbios recentes. Beauregard desceu depois dela e Mary Hellen sentiu seu coração apertou-se de tanta ansiedade. Ela não ousava virar-se e nem olhar para ele. Tinha tanto medo de alimentar esperanças...

George desceu e parou na plataforma.— Foi por um triz — o cunhado comentou. — Vocês dois poderiam ter morrido.Por fim, Mary Hellen virou-se. Beauregard, alto e forte, passava a mão nos

cabelos desalinhados que tocavam de leve os ombros largos. Mas a expressão era inescrutável. Ah, como gostaria de sentir aqueles braços ao redor de si...

Mary Hellen baixou a cabeça. Queria contar a Beauregard sobre o bebê, mas não na presença de George. E o que seria dela se Beauregard planejasse casar-se com Isabelle?

Os três ficaram em silêncio durante alguns minutos, fitando o piso de pranchas de madeira.

— Acho que vou dar uma espiada nos cavalos. -— George coçou a cabeça.— Aproveite para verificar o horário do trem — Beauregard pediu.— Pode deixar.Mary Hellen começou a perder as esperanças. Talvez seu marido pretendesse

mandá-la de volta.De repente, Beauregard pegou-a pelo cotovelo do braço sadio e levou-a para a

parte lateral da estação.— Para onde estamos indo, Beauregard?

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Ele parou atrás da parede da plataforma, encarou-a e segurou-a pelos ombros.— Foi verdade o que você disse ao delegado? Que não pretendia deixar Dodge

com Garrison e que não queria mais nada com ele?Mary Hellen fitou-o e viu a preocupação nos olhos verdes e a tensão na testa

franzida. Teve vontade de acariciar-lhe o rosto para acalmá-lo.— Claro que era verdade! Já havia lhe dito que não o amava.— Tive receio de que vocês houvessem saído juntos da cidade.Mary Hellen o fitou.Beauregard cerrou as pálpebras e deixou escapar um suspiro.— Nem posso imaginar o que teria acontecido se não tivéssemos conseguido

alcançar o trem a tempo.— Mas conseguiram, e agora está tudo bem. Beauregard abriu os olhos devagar,

e Mary Hellen o viu firme e decidido.O que ele estaria sentindo?, perguntou-se, nervosa e remoendo-se em dúvidas.Precisava descobrir. De preferência, antes de contar-lhe sobre o bebê.Mas ela não teve tempo de indagar nada. Beauregard curvou a cabeça e ele

beijou-a com lábios ansiosos e úmidos de desejo. Mary Hellen sentiu tontura e cambaleou. Beauregard ergueu-a nos braços e ela pensou que estivesse dentro da fantasia que acalentara nas últimas horas. Gemeu de prazer, no momento em que ele procurou-lhe a língua, com a dele.

Beauregard afastou-se fitou-a com ternura.— Perdão, Mary Hellen.Todos os significados possíveis daquela palavra passaram pela mente de Mary

Hellen.— Perdão por quê?Beauregard desviou o rosto, envergonhado.Será que ele pedia desculpas por havê-la magoado? Por ter resolvido voltar para

Isabelle? Ou por alguma outra coisa?— Peço-lhe perdão por não acreditar no que me contou sobre Garrison. Eu devia

saber que você não mentia.Insegura, Mary Hellen procurou as palavras certas.— Não foi sua culpa. Eu é que poderia ter confiado em você. Se houvesse

contado tudo desde o princípio tudo seria diferente.— Não. Você tinha todas as razões para manter segredo do que acontecera. Eu é

que agi mal. Fechei as portas, quando você mais precisava de mim.As lágrimas toldavam-lhe a visão do homem que estava à sua frente. Mary Hellen

enxugou os olhos, tentando focalizá-lo.— Quero que saiba que nunca pretendi magoá-la. No entanto, acho que

estávamos certos em anular o casamento. Nosso juramento matrimonial não teve valor nenhum.

O coração de Mary Hellen pareceu estraçalhar-se em mil pedaços. Ela procurou

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desesperada por sua força interior e susteve a respiração.Beauregard iria dizer-lhe que ainda amava Isabelle?— Todos a bordo! — o chefe do trem chamou. Decidida, Mary Hellen resolveu fazer uma pergunta direta:— Você vai casar-se com Isabelle?— Isabelle?! Eu não gosto de Isabelle, Mary Hellen.— Mas ela foi visitá-lo.— Eu a levei de volta à cidade. — Beauregard estava aflito para explicar tudo.Mary Hellen não tirava os olhos dele, com medo de acreditar no que ele lhe dizia.— Isabelle queria retomar nosso relacionamento, mas eu lhe disse...— O quê? — Mary Hellen segurou-lhe o rosto, e eles se encararam com

intensidade.— Que eu amava você e que a amaria para sempre.— Todos a bordo! — O homem tornou a chamar.— Mas a anulação... Você afirmou que agimos certo. Beauregard sorriu.— Sim, estou feliz por termos anulado nosso casamento. Da segunda vez, nossos

votos terão um significado real.— O que está dizendo?Beauregard ajoelhou-se numa perna e segurou-lhe a mão, beijando-a várias

vezes. Abraçou-a pelos quadris, puxou-a com força e escondeu o rosto nas saias dela.— Eu te amo, Mary Hellen. Case-se comigo, por favor. Desta vez, com toda a

sinceridade.Mary Hellen foi envolvida por sensações de alegria e êxtase. Ela também

ajoelhou-se, passou os dedos por entre os cabelos espessos de Beauregard, puxou-o para bem perto dela e beijou-o com toda a alma.

Um minuto mais tarde, o trem apitou. A locomotiva afastou-se devagar da estação, fazendo ruídos intermitentes de descarga, silvando e soltando rolos de fumaça negra de fuligem que se desmanchavam ao vento. Beauregard e Mary Hellen continuaram com os olhares fixos um no outro. Ela sentiu o sol que lhe banhava o nariz. Era preciso confessar mais uma coisa...

— Tenho de contar-lhe algo, Beauregard. Não sei como é que você vai sentir-se a respeito.

— Não importa o que você tem para dizer-me. Nada poderá toldar a minha felicidade. Ela é tamanha que só tende a aumentar.

Embora ainda um pouco apreensiva, Mary Hellen sentiu-se mais aliviada com a confiança dele.

— Descobri ontem que estou... estou...Como dizer aquilo? E se Beauregard não aceitasse que a criança pudesse ser de

Garrison?— Estou grávida.

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Ambos ficaram ali parados, sem falar, por alguns instantes.— É... meu?Mary Hellen sentiu a cabeça zonza. Esperara, talvez com ingenuidade em

demasia, que aquilo não tivesse importância. A resposta que teria de dar saiu estrangulada:

— Não tenho certeza. — Envergonhada e cheia de remorso, esforçou-se para conter a melancolia.

Quem poderia imaginar, seis meses atrás, que viria a encontrar-se em uma situação tão difícil?

Cabisbaixa e chorando em silêncio, ela surpreendeu-se ao perceber os dedos de Beauregard sob o queixo. Ele ergueu-lhe o rosto com suavidade e fixou-lhe um olhar atento e marejado de lágrimas.

— Mary Hellen, eu amarei essa criança mais do que qualquer pai seria capaz. Não importa de quem seja.

Mary Hellen soluçou.— Beauregard, eu sinto tanto!— Sente?! Não deve desculpar-se por nada, querida. Você me fez o homem mais

feliz do mundo!Mary Hellen afastou-se, incrédula. Depois de tudo o que fizera, depois de todas

as mentiras, como é que ainda poderia ser tão abençoada?— Eu te amo, Beauregard!— Eu também, meu anjo. Vamos para casa.

EPÍLOGO

No lado de fora da pequena casa de barro, Beauregard caminhava de um lado para o outro, esmigalhando com os pés uma fina capa de neve matinal. Esfregou as mãos frias e assoprou-as. Pôde ver o vapor de sua respiração.

O trabalho de parto começara cedo. Por que demorava tanto?Um grito de dor cortou o ar frio da manhã. Beauregard parou, com o coração

pesado."Senhor meu Deus, faça com que tudo transcorra bem. Não posso perdê-la. Não

agora."Outro grito atingiu-o. Beauregard aproximou-se da porta. Tinha de entrar. Não

podia mais ficar esperando. Não ficaria ali fora, com Mary Hellen sofrendo tanto.Nisso, um grito diferente deixou-o sem fôlego. Um bebê. Era o choro de um

bebê!Escutou com atenção e distinguiu a risada suave de Martha. Admiração e

esperança cresceram dentro dele. Os segundos pareceram horas, e Beauregard permanecia ali, congelado e ansioso, esperando Martha sair.

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Será que tudo estava de acordo? Mary Hellen estaria bem? Não ousava pensar no que faria, se não estivesse.

Nisso a porta abriu-se.— Parabéns! — Martha enxugou as mãos em um avental sujo de sangue. — Você

tem um filho!Beauregard se descontraiu e sentiu-se envolvido por um fortíssimo instinto

paternal. Um filho. Tinha um filho!— Mary Hellen está bem? Martha sorriu e fez que sim.— Ela é muito valente, e quer vê-lo. Beauregard sentiu um nó na garganta. Passou apressado ao lado de Martha, não

sem antes apertar-lhe o braço em agradecimento.Desceu os degraus de dois em dois e entrou no calor do pequeno lar deles,

pouco iluminado. Mary Hellen estava deitada na cama, sorrindo e com o nenê nos braços, mais bela do que nunca.

— Olá — chamou-o, com voz débil. Beauregard parou aos pés dela. Fitou a esposa e o filho.— Olá...— Alguém quer conhecê-lo. Beauregard deu a volta no leito.A criança tinha o rosto vermelho e mexia-se um pouco, de encontro à mãe.

Estava enrolada em um acolchoado branco que Martha trouxera como presente.Beauregard ajoelhou-se para ver melhor.— Quer segurá-lo, querido?Incapaz de falar, Beauregard tomou o menino nos braços. O nenê levantou a

mãozinha e agarrou o polegar do pai.Que alegria poderia ser maior do que aquela?, Beauregard perguntou-se, louco

de alegria, fitando o doce rostinho emoldurado por cabelos escuros.— Ele se parece com você, Mary Hellen.— Não inteiramente...Intrigado, Beauregard fitou a esposa sorridente. Mary Hellen sentou-se devagar

e desembrulhou a cabeça do menino.— Parece que nosso garoto tem as orelhas iguais às suas.Beauregard gargalhou.— Não imaginei que você houvesse reparado em minhas orelhas.— Seus cabelos são lindos, senhor meu marido, mas não podem esconder tudo.Mary Hellen deitou a cabeça no travesseiro, deixou escapar uma risadinha e fez

um gesto para ele sentar-se a seu lado.Com a criança no colo, Beauregard, comovido, alegrou-se com as lágrimas que

lhe vieram aos olhos. Jamais poderia haver dúvida a respeito.O menino era um Brigman.

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JULIANNE MACLEAN está emocionada em fazer parte da equipe de autores de Romances Históricos da Harlequin com Marcada pelo Passado, seu romance de estréia. Ela diplomou-se em duas faculdades, antes de embarcar no maravilhoso desafio que é escrever um romance: Literatura inglesa e Administração. Nessa ocasião, ela trabalhou como auditora financeira do governo canadense. No momento, Julianne escreve em casa, onde também cuida da biblioteca de seu marido, que é médico. Mas a sua tarefa mais importante é ser esposa e mãe devotada. Ela e o marido adoram viajar. Moravam na Nova Zelândia, antes de se estabelecerem no Canadá com a filha de três anos.

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