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MORFOLOGIA SOCIAL OU GEOGRAFIA HUMANA? LUCIEN FEBVRE A primeira acusação dos sociólogos contra a geografia humana é clara. Pode traduzir-se por uma palavra. Acusam-na de ambição. Nada de mais estreito dizem e, ao mesmo tempo, nada de mais ambicioso do que as suas concepções. Logo que estão em face de um grupo de homens, de uma sociedade humana, pensam no solo sobre o qual assenta materialmente esse grupo, essa sociedade. Para eles, esse suporte material, esse substrato das sociedades não é de modo algum uma matéria inerte e sem ação. Atua sobre os homens que suporta. «Influencia-os» tísica e moralmente. «Explica-os» no conjunto e em pormenor. Explica-os, e até os explica por si só. Só ele atua sobre eles. Só ele os influencia. Exclusivismo e preconceito normal: a deformação profissional do especialista explica-o perfeitamente. O geógrafo parte do solo, e não da sociedade. Sem dúvida que não chega ao ponto de pretender que esse solo é a ‘causa’ da sociedade. RATZEL contenta-se com dizer que o solo é «o único laço de coesão essencial de cada povo» (1). Mas é, antes de tudo, para o solo que se dirige a sua atenção. A ação e a eficácia do fator geográfico é o que RATZEL pretende esclarecer, precisar, mostrar bem claramente. «Em lugar de estudar o substrato material das sociedades em todos os seus elementos e em todos os seus aspectos», censura-lhe Mauss, «é sobretudo sobre o solo que a sua atenção se concentra. E o solo que está no primeiro plano da sua investigação». A morfologia social seria muito diferente. Certamente que trataria também do substrato das sociedades, mas enquanto um só dos elementos que ajudam a compreender a vida e os destinos dessas sociedades. Não começaria por divinizar, por assim dizer, esse elemento privilegiado, por lhe atribuir uma espécie de poder criador, por fazer dele o produtor e animador das formas sociais. Tendo por objeto a «massa dos indivíduos que compõem os diversos grupos, a maneira como são dispostos sobre o solo, a natureza e a configuração dos fatores de toda a espécie que afetam as relações coletivas (3), esta disciplina tomaria lugar entre as ciências especiais de que a sociologia, na opinião de DURKHEIM e FAUG0NNE-r(), constitui, por assim dizer, o Corpus. Ora aquilo que o sociólogo, ao contrário do geógrafo, põe no primeiro plano das suas preocupações não é a terra»é a «sociedade». Noutros termos, o problema não é o mesmo, conforme sejamos, nos consideremos, nos proclamemos geógrafos ou morfólogos. E, em conseqüência disso, Mauss é levado a dizer (1): «Se preferimos o termo morfologia social ao de antropogeografia para designar a disciplina à qual se refere esse estudo, não é por um vão gosto de neologismo; é que esta diferença de etiqueta traduz uma diferença de orientação». Com efeito, assim o pensamos. Diríamos mesmo de bom grado:

Morfologia social ou geografia humana

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Page 1: Morfologia social ou geografia humana

MORFOLOGIA SOCIAL OU GEOGRAFIA HUMANA?

LUCIEN FEBVRE

A primeira acusação dos sociólogos contra a geografia humana é clara.

Pode traduzir-se por uma palavra. Acusam-na de ambição. Nada de mais

estreito — dizem — e, ao mesmo tempo, nada de mais ambicioso do que as

suas concepções. Logo que estão em face de um grupo de homens, de uma

sociedade humana, pensam no solo sobre o qual assenta materialmente esse

grupo, essa sociedade. Para eles, esse suporte material, esse substrato das

sociedades não é de modo algum uma matéria inerte e sem ação. Atua sobre

os homens que suporta. «Influencia-os» tísica e moralmente. «Explica-os» no

conjunto e em pormenor. Explica-os, e até os explica por si só. Só ele atua

sobre eles. Só ele os influencia. Exclusivismo e preconceito normal: a

deformação profissional do especialista explica-o perfeitamente.

O geógrafo parte do solo, e não da sociedade. Sem dúvida que não chega

ao ponto de pretender que esse solo é a ‘causa’ da sociedade. RATZEL

contenta-se com dizer que o solo é «o único laço de coesão essencial de cada

povo» (1). Mas é, antes de tudo, para o solo que se dirige a sua atenção. A

ação e a eficácia do fator geográfico é o que RATZEL pretende esclarecer,

precisar, mostrar bem claramente. «Em lugar de estudar o substrato material

das sociedades em todos os seus elementos e em todos os seus aspectos»,

censura-lhe Mauss, «é sobretudo sobre o solo que a sua atenção se concentra.

E o solo que está no primeiro plano da sua investigação». A morfologia social

seria muito diferente. Certamente que trataria também do substrato das

sociedades, mas enquanto um só dos elementos que ajudam a compreender a

vida e os destinos dessas sociedades. Não começaria por divinizar, por assim

dizer, esse elemento privilegiado, por lhe atribuir uma espécie de poder

criador, por fazer dele o produtor e animador das formas sociais. Tendo por

objeto a «massa dos indivíduos que compõem os diversos grupos, a maneira

como são dispostos sobre o solo, a natureza e a configuração dos fatores de

toda a espécie que afetam as relações coletivas (3), esta disciplina tomaria

lugar entre as ciências especiais de que a sociologia, na opinião de DURKHEIM

e FAUG0NNE-r(), constitui, por assim dizer, o Corpus. Ora aquilo que o

sociólogo, ao contrário do geógrafo, põe no primeiro plano das suas

preocupações não é a terra»—é a «sociedade». Noutros termos, o problema

não é o mesmo, conforme sejamos, nos consideremos, nos proclamemos

geógrafos ou morfólogos. E, em conseqüência disso, Mauss é levado a dizer

(1): «Se preferimos o termo morfologia social ao de antropogeografia para

designar a disciplina à qual se refere esse estudo, não é por um vão gosto de

neologismo; é que esta diferença de etiqueta traduz uma diferença de

orientação». Com efeito, assim o pensamos. Diríamos mesmo de bom grado:

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uma diferença tal que, na realidade, morfologia social e geografia humana não

podem, sem perigo, substituir-se uma à outra. Mas o estudo «em ação>> das

duas disciplinas rivais no-lo mostrará melhor que qualquer discussão teórica.

1 - AS OBJEÇÕES DA MORFOLOGIA SOCIAL: OS AGRUPAMENTOS HUMANOS SEM RAIZES

GEOGRAFÍCAS

Não há grupo humano, não há sociedade humana sem suporte territorial.

Tal é o ponto de partida normal dos geógrafos nas suas especulações. Fórmula

equivoca até certo ponto. Na verdade, há muitos ‘grupos» e muitas

sOc1edades» — e precisamente entre aqueles que os sociólogos estudam, por

vezes, com tanta predileção— sobre os quais, ao fim e ao cabo, a influência do

«substrato geográfico», tão caro a Ratzel, se faz sentir pouquíssimo. Apesar de

uma insuficiência de preocupações geográficas bastante acentuada, os

múltiplos inquéritos dos antropólogos e etnólogos alemães, ingleses e

americanos sobre as sociedades selvagens do Novo Mundo, ou do mundo do

Pacífico, provaram-nos claramente que os primitivos só conhecem modos de

agrupamento especificamente territoriais. O totemismo, em particular, está na

raiz de uma multiplicidade de formações sociais sem raízes geográficas

aparentes.

Vejamos, para exemplificar, os Aruntas, esse povo do Centro da Austrália

que trabalhos precisos e rigorosos nos deram a conhecer em todos os

pormenores de uma organização muito complexa — tão complexa que entre

os observadores se encontram por vezes, neste como noutros casos,

divergências bastante graves. Reportemo-nos aos trabalhos mais bem

documentados, e em particular aos de B. SPENCER e L.J. GILLEN, esses clássicos

da sociologia. Em 1899 fazem a copiosa descrição das sociedades indígenas

do Centro australiano: The native tribes of Central Austrália, e em 9O4 das do

Norte deste mesmo continente The northern tribes of Central Austrália. São

observadores rigorosos e bem fornecidos de fatos, se bem que incorram —

como J. Sion já o notou — no grave de (eito de fazerem a descrição dos

fenômenos religiosos e sociais de populações cuja vida material não estudam.

Ora os seus trabalhos revelam nos Aruntas três espécies de grupos

elementares distintos, que se entrecruzam, se misturam literalmente da forma

mais complexa. Primeiro encontram-se agrupamentos propriamente

territoriais, distintos uns dos outros pelos nomes das localidades e possuindo

cada um deles um pedaço de solo, de limites conhecidos e definidos. Mas logo

ao lado deste vamos encontrar um certo número dessas classes matrimoniais

que E. Durkheim nos descreveu e, depois destas, temos os grupos totêmicos,

que englobam os indígenas sem qualquer preocupação, desta vez, de

localização ou distribuição geográfica. Não são, aliás, os grupos não

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territoriais que representam o papel mais apagado na organização coletiva dos

Aruntas —muito pelo contrário; e, por sua parte, Durkheim insistiu muitas

vezes (em especial na sua interessante referência ao livro de Howr sobre as

tribos indígenas do Sudeste australiano) (3) na extrema indeterminação da

organização propriamente territorial dessas sociedades australianas — pelo

menos, tais como as vêem e descrevem os nossos observadores, brancos e

nossos contemporâneos.

A mesma observação se poderá fazer no que se refere a todo o resto do

imenso continente australiano, em que as tribos são geralmente dotadas de

duas organizações: uma, baseada nas divisões geográficas, e a outra, solidária

da regulamentação matrimonial, O mesmo quanto às ilhas de Salomão,

estudadas por alemães e em que os agrupamentos totêmicos, distintos das

aldeias, e os agrupamentos territoriais, abrangendo por vezes portadores de

totens diferentes, se misturam e cruzam de forma semelhante aos exemplos

anteriores. A mesma circunstância em inúmeros povos primitivos do

Brasil (4), que vivem na floresta e nunca ultrapassaram o estádio de barbárie.

De resto, é curioso ver, pouco a pouco, esbater-se neles o princípio totêmico

em face do princípio territorial, representado pela comunidade de aldeia. Mas

para quê multiplicar exemplos (5) de fatos hoje bem conhecidos?

Vê-se sem dificuldade o partido que daqui se pode tirar contra as

"pretensões geográficas". Façamos, contudo, algumas observações.

Primeiro que tudo, é com freqüência que se compreende claramente a

passagem dos agrupamentos não territoriais a agrupamentos territoriais. Os

primeiros tendem, pouco a pouco, a localizar-se geogràficamente. Fala-se de

organizações totêmicas sem bases geográficas. Ora há povos — por exemplo,

os Índios Pueblos do Arizona e do Novo México - que moldaram sobre uma

organização totêmica conservada, excepcionalmente, numa vida quase urbana

a estrutura e a construção das suas casas e aldeias. E mesmo na Austrália,

nessa Austrália em que vive um grande número de populações muito parecidas

com os Aruntas, as tribos situadas mais perto do golfo de Carpentária não

apresentam as já referidas anomalias. Aí confundem-se os agrupamentos

territoriais com, os agrupamentos totêmicos. Cada localidade possui o seu

próprio totem; não se encontram aí portadores de totens diferentes; e o chefe

administrativo da localidade é igualmente o seu chefe religioso. Nada de

surpreendente, aliás, nesta confusão. Durkheim explica-a quando observa que

ela se verifica sempre que o totem se transmite pela linha paterna. Nestas

condições, o casamento não introduz em cada geração totens de origem e

importação estrangeiras.

Por outro lado, não se podem conceber <<no ar>> os membros desses

agrupamentos não territoriais — tais como essas personagens chinesas de que

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nos fala MICHELET num texto célebre. DURKHEIMobserva algures, e

precisamente a propósito de estudos sobre as tribos indígenas do Sudeste

australiano, que é impossível a um grupo social não estar, de qualquer forma,

ligado efetivamente ao território que ocupa e não ter de qualquer forma a sua

marca. Uma análise atenta não teria dificuldade em descobrir nas associações

menos (territoriais) um fator geográfico - mesmo que seja necessário chegar a

ele por intermédio do clima. Não há, por exemplo, na costa do Pacífico da

América do Norte, sociedades humanas — como a dos Kwakiutls, estudados

pelo investigador americano F. Boas — que possuem uma organização social

dupla: uma, para a vida profana e laica, caracterizada por uma divisão dos

homens em - famílias, clãs e tribos; a outra, para a vida religiosa, à base de

grupos protegidos, cada um deles, por uma divindade ou um espírito diferente

dos outros? Ora a organização laica atua durante o Verão e a organização

religiosa durante o Inverno; e com isso retomaria a geografia os seus direitos,

se não fosse já evidente, por outro lado, que com a estação fria não

desaparecem todas as conseqüências (geográficas) do regime de Verão. Mas,

independentemente destes fatos particulares, teria havido toda a vantagem em

desenvolver e precisar a observação de DURKHEIM.

RATZEL, dominado, ao mesmo tempo, pelo seu preconceito de

antropogeógrafo e por preocupações de ordem mais política que científica,

que, por momentos, nos fazem comparar a mais recente e menos fecunda das

suas grandes obras, a Politische Geographie, a uma espécie de manual do

imperialismo alemão, escreve: Se os mais simples tipos de Estado são

irrepresentáveis sem um solo que lhes pertença, o mesmo deve ocorrer com os

mais simples tipos de sociedade: esta conclusão impõe-se). E continua:

«Família, tribo, comuna só são possíveis sobre um solo e o seu

desenvolvimento só pode ser compreendido em relação a esse solo. Em

primeiro lugar, tais agrupamentos não são os únicos que representam os tipos

mais simples de sociedade. Acabamos de chamar a atenção para outros tipos

em cuja gênese, desenvolvimento e expressão o solo representa um papel

muito restrito. Mas, sobretudo, de que se trata exatamente? (Os tipos mais

simples de Estado são irrepresentáveis sem um solo que lhes pertença). Estes

três últimos termos não foram certamente escritos por acaso. «Família, tribo,

comuna só são possíveis sobre um solo e o seu desenvolvimento só pode ser

compreendido em relação a esse solo). Há, sem dúvida, mais que uma pequena

diferença entre a primeira e a segunda fórmula. Poder-se-ia exprimir essa

diferença dizendo que a primeira fórmula depende da morfologia social e a

segunda da geografia humana. Ora é curioso, e até um tanto picante, verificar

que DURKHEIM, ao afirmar que é «impossível a um grupo social não se

encontrar de qualquer forma ligado ao território que ocupa e não revelar a sua

influência), admite (se bem que o seu termo ocupar seja bastante equívoco) a

Page 5: Morfologia social ou geografia humana

segunda fórmula — essa mesma que noutros lugares critica—,

enquanto RATZEL, em contrapartida, parece ligar-se de preferência à primeira.

E os textos não são perfeitamente claros nem de um lado nem de outro. Ora é

precisamente essa ambigüidade que mostra até que ponto continua

insuficiente o trabalho de análise.

Evidentemente, haveria que distinguir. Por um lado, as povoações sociais

de base territorial: aquelas que tomam posse, de forma mais ou menos estrita,

de um pedaço de terra, o reservam para si, considerando-o como seu domínio

particular; esse pedaço de terra é, de qualquer forma, a sua projeção sobre o

solo; é a sua própria forma, no sentido estrito do termo: aquele solo que

BOUGLÉ visa quando, ao analisar, por sua vez, o conceito de morfologia social,

escreve no Année sociologique de 1900, resumindo as idéias expressas por

DURKHEIM: «O termo forma é tomado então num sentido preciso. Trata-se de

formas materiais susceptíveis de representações gráficas». E o sociólogo

acrescenta que essas formas (constituem o domínio próprio da morfologia

social). Eis o que é claro. Restam outros grupos sociais, que, por sua vez, não

têm domínio reservado, território próprio, circunscrição definida. Os seres

humanos que compõem esses grupos vivem sobre um território, numa região,

sob um céu comuns a todos, os mesmos para todos. Na medida em que

assentam sobre um solo, participam dele: têm a sua marca, afirma Durkheim;

mas o seu grupo, enquanto grupo, não tem forma gràficamente representável.

Não há pedaço de solo que seja propriamente o território do grupo’.

Mas, dito isto, foi muito grande o progresso? A distinção apresenta valor

real? Permite apoiar as objeções dos sociólogos contra os geógrafos?

Pensamo-lo tanto menos quanto é certo que há os fatos intermediários a que

anteriormente nos referimos e que é preciso reter. Nas sociedades australianas

sobre cujo conhecimento todo este debate assenta Durkheim que a

organização começou, sem dúvida, por ser totêmica e só em seguida se tornou

territorial. Ou, mais precisamente, no tempo em que ainda só existia

organização totêmica, o que havia de territorial na organização social era

muito secundário, muito apagado — se acaso se aceita a análise do sociólogo;

não lidamos aqui, mais uma vez o dizemos, com dados simples e fáceis de

interpretar. O que marcava os limites da sociedade não era uma determinada

barreira material; o que lhe determinava a forma não era a configuração do

solo. A tribo era essencialmente um agregado, não de distritos, mas de clãs, e

o que fazia a unidade do clã era o totem e as idéias de que era objeto». Em

última análise, de toda esta discussão o que permanece é o seguinte: um dos

mais importantes objetos de estudo do sociólogo — ou seja, todos esses

grupos que não são essencialmente territoriais —oferece, no fim de contas,

pouca matéria para os geógrafos. Ainda se poderá dizer que lhes oferece

Page 6: Morfologia social ou geografia humana

campo mais vasto, apesar de tudo, do que aos morfólogos? Estes últimos, num

caso semelhante, só têm que levantar um auto de carência à sua ciência: onde

não há (formas) a estudar não pode haver morfologia. Com a geografia, pelo

contrário, é possível que o grupo, enquanto grupo, lhe escape. Mas resta-lhe o

solo sobre o qual vivem os homens—e o clima, as produções e todas as

condições de existência próprias dos lugares que freqüentam e que também

ocupam, enquanto membros de grupos de outra natureza: os grupos

territoriais. Deste modo já ganhamos consciência, sem dúvida com um pouco

mais de clareza, daquilo que realmente torna opostas as duas concepções

rivais: morfologia ou geografia.

II - AS OBJEÇÕES DA MORFOLOGIA SOCIAL: A AMBIÇÂO GEOGRÁFICA

Outras objeções dos sociólogos têm, evidentemente, mais cabimento e

definem com mais nitidez o alcance da acusação de ambição. Um exemplo vai

nos mostrar, e tanto mais típico quanto é verdade que o vamos buscar num

espírito mais seguro dos seus caminhos.

Que a cultura do arroz, quer pela abundância de alimento que fornece

num pequeno espaço, quer pelos assíduos cuidados que exige, exerce uma

profunda influência sobre as sociedades do Extremo Oriente, eis um ponto de

vista caro a VIDAL DE LA BLACHE. Em rigor, uma família de cultivadores de

arroz do Camboja pode viver com um hectare, notava ele; mas, por outro lado,

para a própria cultura da planta alimentícia é necessária uma mão-de-obra

numerosa e constante. A conseqüência disto? VIDAL DE LA BLACHE, arrastado,

sem dúvida, pelo meio, pelo auditório e pelo próprio título da sua conferência

(as condições geográficas dos fatos sociais), extraiu-a um dia, na Escola dos

Altos Estudos Sociais, da seguinte forma: (Terei o cuidado de não generalizar

demasiado; mas se é exato que a forte constituição da família e da aldeia é a

pedra angular nas sociedades do Extremo Oriente que gravitam à volta da

China.., vê-se assim a relação de causa a efeito entre o modo de cultura,

inspirado pelas condições geográficas, e a única forma verdadeiramente

popular de organização social que aí se encontra). Por maior que seja o

engenho da observação e a finura feita de cambiantes da análise, há aqui,

manifestamente, abuso e (ambição).Na verdade, existem muitas outras

civilizações, caracterizadas por outros gêneros de vida e sob outros céus, em

que a família fortemente constituída se apresenta, verdadeiramente, como a

«pedra angular) da sociedade. E, de resto, em semelhante matéria, convém ter

cuidado com o velho preconceito de que a organização social se elaborou de

baixo para cima, por aglomeração progressiva de grupos, primeiro muito

simples, conjugais ou familiares, no sentido estrito do termo, e em seguida

mais vastos, se não mais complexos: clãs, aldeias, tribos e nações. A

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organização familiar não é inicial. Em todos os climas, em todas as

civilizações, recebeu ela do exterior as suas regras imperativas. Recebeu-as,

não das condições geográficas, mas do poder dominante, superior, do Estado

— da sociedade política no seu conjunto(5). Uma vez dada a organização

familiar, nada mais provável que a cultura do arroz nos países do Extremo

Oriente, onde é predominante, tenha contribuído para manter e aumentar o

seu poder e a sua influência; mas não devemos ir mais longe e repitamos

com DURKHEIM — desta vez sem reservas nem limitações: não há dúvida de

que as influências geográficas estão longe de ser desprovidas de importância;

«mas não parece que tenham o tipo de preponderância que se lhes

atribui... Entre todos os traços constitutivos dos tipos sociais não há nenhum,

que nós saibamos, que elas possam explicar). E acrescenta: aliás, como seria

isso possível. «uma vez que as condições geográficas variam de lugar para

lugar, enquanto se encontram tipos sociais idênticos (abstração feita das

alterações individuais) nos mais diversos pontos do globo?

Ainda um exemplo. Em tal matéria não se deve recear multiplicar os

exemplos. A habitação humana, a casa, é, evidentemente, um dos traços mais

notáveis destas «paisagens humanizadas’ que se nos apresentam e que

precisamente o geógrafo deve estudar: é tão familiar a nossa vista nas regiões

ocidentais que a sua ausência prolongada nos faz verdadeiramente sofrer:

numa solidão selvagem e desolada, nos cabos extremos dessa Armórica que

um mar feroz assalta infatigavelmente, um moinho estendendo as suas duas

asas em cruz na linha do horizonte rígido e nu faz sentir não se sabe que

sentimento de confiança e de paz: um pouco daquela emoção que, nos altos

planaltos do Tibet, sentiu um Perceval Landon, em marcha sobre Lhassa, ao

contemplar, por acaso, a frágil silhueta de um salgueiro de verdes folhas. Ora

diremos nós (e já foi dito) que esta casa, esta habitação do homem, por muito

adaptada que esteja, quer pelo seu aspecto, quer pelas suas disposições e

materiais, ao solo em que assenta e ao clima em que se encontra, é um fato

geográfico? Claro que não! Um fato humano, se assim se quiser—o que não é a

mesma coisa.

Há geografia num campo de trigo. Um campo de trigo não é um fato

geográfico. Pelo menos, só o é para um geógrafo. Este não tem de estudar a

"casa",mas somente o que nela há de geográfico — e nem tudo é geográfico

numa casal e competirá porventura à geografia determinar qual é a idéia

essencial dessa mesma casa. Seria certamente demasiado fácil alinhar aqui

uma série de citações que revelariam em alguns geógrafos uma preocupação

medíocre com tudo o que lhes não diz respeito, uma espécie de desprezo

jovem, cândido e um tanto irritante de vizinho— nada menos que uma

propensão um tanto incômoda para usar palavras e fórmulas simultaneamente

Page 8: Morfologia social ou geografia humana

cortantes e sumárias. Munidos de duas ou três grandes chaves para todo o

serviço, quantos não vão estouvadamente pelo mundo, experimentando-as

sucessivamente em todas as portas que encontram Ficam felicíssimos quando

se lhes depara uma que o instrumento abre o melhor que pode. «A primeira

necessidade do homem é a água. Quando a água superficial é rara, como

em Beauce, na penuriosa Champanha, e nas regiões calcárias, em geral, as

aldeias agrupam-se em grandes aglomerados á volta de alguns pontos de

água existentes, ou então escalonam-semuitas vezes por vários quilômetros

ao longo dos cursos de água. Quando a água é abundante e surge por toda a

parte, como na Ille-de-France, Limousin, Bretanha, País de Gales, etc., as

habitações disseminam-se ...". Depois vêm dois extratos de um mapa em

grande escala para comprovar o texto; e eis formulada uma lei geral, uma lei

geográfica constante, de que nada vem limitar a aplicação ou precisar o

alcance. Ora é evidente que, «se a água surge à menor perfuração, as casas

poderão distribuir-se pelo campo e que semelhante isolamento será menos

fácil no caso contrário». Poderão ... de fato, só se trata de possibilidades. E se

é indiscutível a influência do meio físico local, quer isso dizer que se exclua

qualquer outra Porventura não se poderá dar o caso. por exemplo, de

pormenores de construção e de disposição, e às vezes a própria estrutura da

aldeia, terem sido concebidos num outro solo, num outro clima, por uma

população de emigrantes; Não pode porventura suceder que os recém vindos

tenham edificado e disposto as suas habitações segundo a forma consagrada

na sua região de origem? Não se poderá verificar o fato de esse tipo se ter

modificado, dado que a experiência não permitiu que se conservasse intacto,

embora sem se obliterar por completo ? De fato, vejamos a região de Caux:

população disseminada a oeste e concentrada a leste: as condições físicas num

lado e noutro são, contudo. quase idênticas e nada impediria que a leste se

estabelecessem albufeiras e que a oeste se perfurassem poços de água. A

herdade cauchesa. de tipo tão constante, está sem dúvida adaptada ás

necessidades da exploração local. Mas outras herdades, construídas segundo

um plano diferente, também se adaptariam perfeitamente. Observações de

geógrafo, dir-se-á. Elas provam à evidência que o seu autor não está, por seu

turno, disposto a contentar-se com as grandes chaves de que falávamos atrás.

Provam simplesmente que, ainda em muitos. casos, investigadores seduzidos

a seguirem só a sua pista nem sempre ignoram a arte dos corretivos nem a

necessidade de, por vezes, olhar para o lado do vizinho. Nesta questão da casa

há uma tendência espontânea para desprezar, se não para negar, as

influências étnicas que um MEITZEN tinha apresentado sem análise critica, mas

que não deixam por isso de existir, ou as influências históricas, que não são

todas forçosamente (étnicas» e cuja ação é necessário definir quando a análise

geográfica é incapaz de satisfazer; desconhecimento inconsciente ou

Page 9: Morfologia social ou geografia humana

propositado do jogo das tradições. da ação persistente das causas sociais não

terão os sociólogos razão em censurar aos geógrafos estes defeitos tão

conhecidos? Defeitos de uma ciência jovem, exuberante e que não sabe, ao

limitar o seu próprio domínio, respeitar por via indireta o domínio do vizinho.

Recapitulemos. Agora compreende-se melhor aquilo que os partidários

da morfologia social querem dizer quando denunciam «essa disciplina de

grandes ambições que a si própria se designa por geografia humana». Na sua

pena, a censura de ambição implica duas acusações diferentes. Os geógrafos

querem explicar pela geografia, ou, pelo menos, reivindicam como seu campo

de investigação as sociedades humanas, das menores às mais vastas, das mais

rudimentares às mais complexas; ao ouvi-los dir-se-ia que todos os grupos

sociais são justificáveis por meio da sua ciência, quando, de fato, não é isso

que sucede: na realidade, em boa lógica escapam á sua influência todos os

agrupamentos não territoriais. Por outro lado, no que se refere aos próprios

grupos sociais que estão incontestàvelmente relacionados com os seus

métodos, pretendem explicar um número demasiado grande das suas

manifestações por meio da geografia e só pela geografia. Abusos manifestos,

que, por seu turno, serão ignorados por uma ciência sociológica de

perspectivas modestas e marcha prudente — porque essa tem objetivos

limitados e antecipadamente definidos...

Quanto ao primeiro ponto, já nos explicamos. Nada há de decisivo nas

acusações que se fazem ou podem fazer ã geografia. Há grupos humanos em

cuja gênese o solo, enquanto solo bruto, solo puro, se assim se pode dizer,

representa um papel insignificante, uma vez que esses grupos não têm

solo seu, ou, mais exatamente, uma vez que não talharam o seu bocado

particular no tecido universal. Mas há outros fatores geográficos além do

«solo» influir na vida das sociedades. E à influência destes últimos fatores não

escapam, de modo algum, os homens componentes de grupos não territoriais

de que se está falando — e que, aliás, se intercalam igualmente noutros

grupos, esses então de base territorial. E acaso escaparão realmente esses

primeiros grupos não territoriais à própria influência do solo? Se não escapam,

não é a morfologia social que nos poderá informar sobre as modalidades da

influência exercida nem sobre as suas conseqüências, uma vez que se proíbe a

si própria de se ocupar de outra coisa que não sejam formas. Haverá

necessidade de escolher? Não se concebe por que razão se terá de escolher.

Na verdade verifica-se, afinal, que não há equivalência entre os dois termos

cuja escolha nos é proposta.

Quanto ao segundo ponto: «Quando se passa em revista», escreve

Durkheim a propósito de Ratzel. «tal multiplicidade de fatos com o único

objetivo de investigar que papel representa, na sua gênese, o fator geográfico,

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é se necessàriamente levado a exagerar-lhe a importância, precisamente

porque se perdem de vista os outros fatores que também intervêm na

produção desses fenômenos». Objeção muito sensata. Mas

o «necessariamente» é, sem dúvida, um pouco forte. Que se aplique a Ratzel, é

muito possível. Em todo o caso, conviria não generalizar nem pretender

atribuí-lo funcionalmente a todos os geógrafos. (Na feição atual dos nossos

velhos países históricos cruzam-se e interferem causas de toda a ordem. O

seu estudo é delicado. Determinam-se ai grupos de causas e efeitos, nas nada

que se assemelhe a uma impressão total de necessidade. E patente que, em

dado momento, as coisas teriam podido tomar outro curso e que o curso

tomado dependeu de um acidente histórico. Não há motivos para

considerarmos a existência de um determinismo geográfico: o que não

significa que a geografia seja por isso urna chave que possa ser dispensada». E

mais adiante: na explicação de fatos bastante complexos submetidos a

circunstâncias diversas de tempo e de lugar, a análise geográfica, tanto como a

das influências étnicas e históricas, deve desempenhar o seu papel: o emprego

exclusivo de um modo de interpretação não poderia satisfazer uma

inteligência ansiosa de realidade, e não de sistema). Onde encontrar, nestas

linhas comedidas ou no livro a que elogiosamente se referem e que

recomendam ao leitor, vestígios desse preconceito de <<necessidade>> de

que Durkheim falava, desse exclusivismo de que fala algures MAuss? Ora essas

linhas são da autoria de um geógrafo bem qualificado como tal: Vidal de La

Blache.

III - O ERRO DE RATZEL. EM COMO ELE NÃO É TODA A GEOGRAFIA

HUMANA

Depara-se-nos aqui um vicio freqüente nos metodologistas não

especializados nas ciências sobre as quais dissertam. Nem mesmo os mais

avisados e escrupulosos lhe escapam. Precisam documentar-se depressa, em

pouco tempo e tão abreviadamente quanto possível: portanto, apóiam-se num

homem, numa obra. Mas, para avaliar todo um esforço científico, para apreciar

e criticar uma ciência em via de criação e que tateia ainda o seu caminho, o

pegar num livro, num só livro, assinalar-lhe as tendências e os defeitos e

depois generalizar não é tarefa que não implique os seus riscos. E, não

obstante, é bem isso o que, em grande parte, fazem os sociólogos.

Por certo que nos parece bem escolhido o livro de que partiram.

A Antropogeografia é a obra-prima de Ratzel, e quando Mauss, depois

de Durkheim, chama ao seu autor o (fundador da antropogeografia), exagera—

mas que é (um dos fundadores, é verdade. Não obstante, não se deve

considerar a geografia humana sinônima de Ratzel e seus discípulos.

Page 11: Morfologia social ou geografia humana

Evidentemente a escola francesa não ignora quem foi o padrinho da

antropogeografia. Quando, em 1891, foram criados os Anais de

Geographie, um dos primeiros fascículos da nova revista continha um longo,

preciso e copioso resumo das idéias mestras, dos temas favoritos do geógrafo

alemão: resumo, aliás, nitidamente crítico, notemo-lo, da autoria de L.

Ravenau e com o título de "O elemento humano na geografia". Mais tarde,

quando apareceu a Politische Geographie,Vidal de La Blache assinalou

pessoalmente o seu valor e aproveitou a ocasião para, por sua vez, definir

a Geografia Política. Finalmente, depois disso, M. G. HUCKEL resumiu, sempre

nos Anais, e dirigindo-se aos leitores franceses, as linhas fundamentais

da Geografia da Circulação segundo Ratzel. Contudo, apesar destes repetidos

testemunhos, seria bastante inexato fazer depender de RATZEL todo o esforço,

tão vivo, tão curioso, tão interessante, dos geógrafos franceses. Muitos

estranhariam semelhante influência e talvez confessassem conhecê-lo muito

vagamente. De fato, o que antes de mais nada lhes interessa é a monografia

regional. As obras teóricas, os livros de conjunto sobre o objeto, intenções e

método da geografia humana são muito raros em França. Somente podemos

citar os artigos tão sugestivos, vivos e originais, de VIDAL DE LA BLACHE; o

grande livro, de valor desigual e débil contextura, mas abundante em

referências, de J. Brunhes e, finalmente, revelando de forma muito sensível a

influência de Ratzel, mas não sem que lhe faça as suas reservas, quer dizer,

não sem crítica ou atualização, os dois livros de Camile Vallaux: La

Mer e Le Sol et l’Êtat, dois volumes recentes (1908 e 1911) da

pequena Encyclopediescientifique Doin. É tudo e é pouco. Mas no conceito dos

geógrafos franceses é bastante. Na sua opinião, a geografia humana é

demasiado jovem, tem muito que trabalhar, muito que adquirir, muito que

tentear, para poder, desde já, pensar em definições ou em delimitações

eficazes. Pretendendo-se precipitadamente delimitar o seu campo, não se

correria o risco de deixar fora dele o melhor, o mais puro da geografia

humana? Em qualquer caso, é um ponto de vista, e é preciso ainda acrescentar

que em Inglaterra, nos Estados Unidos, na Itália, ou ainda noutros pontos, há

"geógrafos humanos" cuja obra ou tendências nada têm de ratzeliano. Em

França o raizelianismo foi talvez um estado de prestígio—mas não uma

realidade.

Outra coisa ainda: mesmo no tempo em que DURKHEIM denunciava

a Antropogeografia, do mestre alemão, como um esforço, sem dúvida

quimérico, para «estudar todas as influências que o solo pode exercer sobre a

vida social em geral, já VIDAL DE LA BLACHE escrevia, nos Anais de

Geographie: (Restabelecer na geografia o elemento humano, cujos títulos

parecem esquecidos, reconstituir a unidade da ciência geográfica na base da

Page 12: Morfologia social ou geografia humana

natureza e da vida: tal é, sumariamente, o plano da obra de um RATZEL. Os

dois juízos diferem muito sensivelmente. Será falso um deles?

De fato, no próprio momento em que RATZEL parecia preocupado, antes

de mais, em definir a influência dessas condições geográficas sobre os

destinos, e particularmente sobre a história dos homens, esforçava-se afinal,

rico e seguro dos seus conhecimentos infinitamente variados, por mostrar no

homem um dos mais poderosos fatores da geografia: quer dizer, procurava

fundar, criar realmente a geografia humana. A obra do professor de Leipsig

não é das que se deixam encerrar numa fórmula única. DURKHEIM assim o viu

e referiu. Na Antropogeografia de RATZEL há três espécies de questões

diferentes — escreve Durkheim nessa referência crítica a que

frequentemente temos aludido(’). Em primeiro lugar, RATZEL preocupa-se em

estabelecer, com o auxilio de mapas - e, neste aspecto, fiel às diretrizes de

Humboldt, que em 1836 orientava a publicação do Atlas físico de BERGHAUS —

, qual a forma como os homens se encontram distribuídos e agrupados sobre a

Terra. Em seguida procura explicar essa distribuição, essa repartição,

enquanto resultante dos incessantes movimentos de toda a natureza e origem

que se sucederam no decurso da história. Finalmente — e só finalmente —,

entende dever estudar os diversos efeitos que o meio físico pode produzir nos

indivíduos e, por seu intermédio, no conjunto da sociedade. Ora esta última

ordem de problemas é muito diferente das duas outras; aliás, no seu livro,

ocupa somente uma parte restrita; quase só os dois últimos capítulos lhe são

particularmente consagrados; segundo a confissão do próprio autor, estas

questões estão somente no limiar da antropogeografia) (2. Por nossa conta,

acrescentaremos que esta terceira parte da Antropogeografia, dominada por

preconceitos de ordem pessoal, políticos ou outros. não é certamente a mais

fecunda. E não é menos verdade que é só sobre essa parte, ou quase só sobre

ela, que incide a critica de DURKHEIM e que, apontada

antecipadamente à atenção do leitor pelo subtítulo do primeiro volume:

«Princípios da aplicação da geografia à história), ela parecia atrair e provocar

essa censura geral de ambição que, através de RATZEL, DURKHEIM havia de

dirigir a toda a jovem geografia.

Estaria um pouco fora do nosso tema presente averiguar como é que

Ratzel se pôde expor, plena e conscientemente, a tais criticas. Investigador

com uma formação de ciências naturais, tinha mais que qualquer outro essa

idéia mestra da unidade terrestre, cuja concepção, em 16õ0, por

BERNARD VARENIUS bastou para que este seja hoje saudado como o verdadeiro

fundador da geografia científica. Geógrafo, no decurso da sua vida e em todo o

desenvolvimento da sua obra procurou manter a geografia humana em contato

estreito, em permanente solidariedade com a geografia física. Qual a razão por

Page 13: Morfologia social ou geografia humana

queRATZEL parece desviar-se assim da sua habitual prudência, perder de vista

os próprios princípios da sua investigação e dar apoio a esses ambiciosos, que

de bom grado sonhariam com uma filosofia da geografia, tal como outros, em

tempos passados, já tinham concebido uma filosofia da história, ou então a

esses outros espíritos resignados que colocam a geografia no nível de uma

humilde serva, ou, como se disse(5), como gata borralheira da história. Se

é verdade — e é — que no primeiro volume da Antropogeografia a idéia central

sofre grandes eclipses; se é verdade que a dialética de Ratzel não tem receio

das mais flagrantes contradições: terá interesse explicar tudo por meio destes

enfraquecimentos de doutrina? Não pensamos que assim seja. Na nossa

opinião, o erro de RATZEL foi ter aceitado com demasiada facilidade certos

problemas na própria forma como eram postos pela tradição. O seu vício foi o

de não pensar em rever com seriedade os seus termos e o seu enunciado. Ele e

os seus discípulos, assim como os geógrafos de outras escolas, na medida em

que merecem e justificam as críticas acima reproduzidas, são talvez, e antes

de mais, somente vítimas: vítimas de circunstâncias de ordem cronológica

independentes da sua vontade; mais claramente, vitimas da história.

IV - A GEOGRAFIA HUMANA, HERDEIRA DA HISTÓRIA

Certamente que, se hoje está em vias de constituição uma geografia

humana, seria erro grosseiro reivindicar para os historiadores a sua

paternidade. Na verdade, na sua gênese, desempenharam papel de primeiro

plano, por um lado, os homens de ciência — naturalistas e viajantes — e, por

outro, os políticos. Não é menos verdade que, numa época decisiva, e em

virtude da própria carência de uma ciência geográfica organizada, foram os

historiadores, como- acima o indicamos, que tiveram de tomar, e tomaram,

dessas iniciativas voltadas para o futuro.

No tempo de Michelet, e até no tempo de DUBUY, geógrafos só alguns

sábios sedentários, grandes amadores de viagens em torno da sua biblioteca e

que praticavam conscienciosamente aquilo que BERS0T, no dizer de Vidal de La

Blache, designava como "geografia difícil, a dos textos". Quanto à geografia

"fácil" reduzia-se, no fim de contas, às nomenclaturas. Era um conhecimento

de utilidade prática, desprovido de qualquer substância e de qualquer

interesse. Nada havia nos trabalhos dos seus adeptos — nem, de resto, nas

memórias dos continuadores de D'Anville — que pudesse fornecer aos

historiadores a noção precisa da finalidade, do método, do alcance exato de

uma ciência geográfica que não se confundisse com uma descrição.

Mas, por outro lado, quando MICHELET proclamava, no seu prefácio

de 1869, a necessidade de fazer assentar a história, antes de mais, sobre a

terra, que era ainda a história? Que era efetivamente a história, apesar dos

Page 14: Morfologia social ou geografia humana

esforços do próprio M1CHELET para lhe alargar, enriquecer, modificar a

concepção tradicional? Esboçar o passado da França consistia sempre em

expor, num duplo quadro, a longa luta dos reis, no interior, para estabelecer

um regime de centralização monárquica e de absolutismo e, no exterior, o seu

longo esforço para agrupar pouco a pouco as províncias à volta do (domínio»

real e acabar por preencher com território francês o quadro predeterminado:

esse privilegiado compartimento da Europa delimitado por fronteiras naturais».

Longa luta política; longo esforço político; a história continuava a ser, acima de

tudo, uma disciplina política. E se Michelet, que tudo pressentiu e adivinhou,

não é de forma alguma suspeito de lhe ter limitado arbitrária- mente a

concepção; se pretendia, como gostava de afirmar, a ressurreição da vida

integral do passado, do solo e dos homens, do povo e dos chefes, dos

acontecimentos, das instituições, das crenças; se sentiu como uma

necessidade que a «história política seja esclarecida pela história interior, a da

filosofia e da religião, do direito e da literatura» — aqui também só pôde

pressentir, adivinhar, desejar, pois, na verdade, a história econômica e a

história social não se improvisam.

História política, geografia política: a segunda, tal como o registram

quase todos os dicionários dos meados do século, não era mais do que (um

ramo da primeira»; por vezes acrescentava-se: «e da estatística». A forma dos

Estados, a sua extensão espacial, as variações desta forma e desta extensão—

por desmembramento ou acréscimo—, eis o que o historiador pedia ao

geógrafo que lhe apresentasse e o ajudasse a compreender. Naturalmente que,

nas suas investigações, partia sempre do mapa político do globo, tal como

séculos de história e 35 sucessivas gerações dos homens o tinham elaborado.

Para o geógrafo tratava-se, não de o explicar, mas de o justificar.

Efetivamente, presidia às suas investigações um ingênuo finalismo, assim

como a idéia, mais ou menos consciente, de que uma espécie de necessidade

prévia impunha aos Estados a forma que tinham...

Assim, no quadro tradicional das cinco panes do mundo inscreviam-se

com normalidade remos e repúblicas. Compartimentos estanques, rígidos e

providencialmente pré-formados, feitos para os receber e bem dotados de

«fronteiras naturais», recebiam-nos na realidade. De resto, notemos que as

primeiras tentativas daqueles que, no inicio do século, se esforçaram por

instaurar, com o nome de geografia comparada, uma disciplina mais

verdadeiramente cientifica não eram de molde a desviar os historiadores das

suas concepções.

Quando KARL RITTER procurava pôr as formas geográficas em contraste

umas com as outras, fazia-o com os continentes, as velhas «partes do

mundo», essas criações da mais antiga história que ele enfrentava. Via

Page 15: Morfologia social ou geografia humana

complacentemente nos continentes outros tantos (indivíduos terrestres». E à

África maciça, de civilizações rudimentares, opunha ele a Europa recortada,

precoce e requintada, velho tema tantas vezes retomado desde então; tomava-

se o todo, como se a Europa. a Ásia, a África, a América, «unidades’

desconhecidas dos modernos geólogos. botânicos ou zoólogos, tivessem sido,

na verdade, outra coisa mais do que coleções de fragmentos heterogêneos —

agregados díspares de peças e bocados.

De pura forma parecerá esta questão das divisões. Mas, na realidade, é

primordial. Ela entra em relação, como já foi excelentemente demonstrado,

com a própria concepção que se faz da geografia — e é preciso reler, a este

respeito, o notável artigo de Vidal de La Blache «As divisões fundamentais do

solo francês, publicado em 1888 numa revista pedagógica e mais tarde

reproduzido, a guisa de introdução, no início de um manual de ensino

secundário. Mas no tempo de Ratzel, e mesmo mais tarde, ninguém se

apercebia do problema.

Foi em vão que, a partir do final do século XVIII,

um Gettard, um MONNET, um Giraud-Soulavir entreviram a preciosa noção de

região natural: Gallois, no seu livro decisivo, estabelece-a de uma forma

incontestável. Foi em vão que, mais tarde, um COQUEBERT de MONTBRET, um

Omalius d'Hallot procuraram dividir as regiões "combinando a natureza e o

espírito do terreno com as posições geográficas"; foi em vão mesmo

que Caumont, Antoine Passy, Dufrenoy e Elie de Beaumont (estes últimos em

1841, na sua célebre Explication de la carte géologique) proclamaram, com

singular audácia e previsão, a ligação da geografia tísica com a geografia

propriamente dita, por um lado, e da geografia com a geologia, por outro, e

justificaram a absoluta necessidade para o geógrafo de tomar como objeto de

estudo as verdadeiras regiões naturais: conceitos de geólogos, que os

geógrafos do tempo de forma alguma pareciam entender.

A todos parecia mais simples instalarem-se — à maneira de bernardos-

eremitas — nas velhas conchas da história política e administrativa. Depois de

terem descrito a França nas suas províncias, dissecaram-na nos seus

departamentos. E mesmo quando se esforçavam por ir buscar à natureza

algum princípio de divisão mais racional, a idéia puramente política de uma

fronteira linear, de uma linha rígida de demarcação, absorvia as suas

preocupações. Já no princípio deste século o redator geográfico de Statistique

genérale et particuliêre de la France, escrevia o seguinte: Consideramos a

França dividida em dez partes principais, a que se deu o nome de regiões. Este

método pareceu-nos tanto mais vantajoso quanto é independente de todas as

divisões que a política ou a administração poderiam considerar úteis. Muito

Page 16: Morfologia social ou geografia humana

bem; mas acrescenta logo a seguir: «Cada uma destas dez regiões é composta

de um número de departamentos pouco mais ou menos igual>>.

De resto, para que remontar tão atrás? Não vimos nós ainda os discípulos

atrasados de Buache repartirem também, melhor ou pior, os departamentos

pelo leito de Procusta das bacias fluviais, rigorosamente rodeadas pelas "linhas

de divisão das águas", essas cadeias montanhosas que, nos mapas,

atravessavam os (pântanos do Pripet» ou corriam alegremente de uma ponta à

outra da Europa, «desde o cabo Vaigatz até ao cabo Tarifa>>?

Historiadores ou geógrafos: tanto nuns como noutros, a mesma

preocupação exclusiva das formas, no seu sentido mais superficial, no sentido

gráfico do termo — naquele sentido que, na mesma época, lhe era dado por

um INGRE5, nas suas controvérsias estéticas com um DeLACR0IX —, mas nem

a história nem a geografia tinham então os seus DeLACROIX».

Falava-se das relações entre o solo e a história. O solo era, por assim

dizer, o solo vazio, o solo puro, o solo independente da sua cobertura viva de

animais, plantas, árvores, seres humanos. Era o solo-chão, o solo-suporte, o

solo, grande tecido rígido no qual os Estados tinham talhado os seus

domínios. E segundo que contornos? Eis aquilo que se estudava, o único fato

que preocupava os investigadores.

V - AS SOBREVIVÊNCIAS DO PASSADO: VELHOS PROBLEMAS, VELHOS

PRECONCEITOS

Como parece, estaremos nós muito longe, quer de RATZEL, quer do

debate entre a morfologia social e a geografia humana e, afinal, do próprio

objeto deste livro? Não o pensamos.

Por certo, as nossas concepções de história e de geografia estão hoje

muito modificadas.

Já não nos esforçamos pacientemente por reconstituir somente a

armadura política, jurídica e constitucional dos povos antigos ou as suas

vicissitudes militares ou diplomáticas. E toda a sua vida, toda a sua civilização

material e moral, é toda a evolução das suas ciências, das suas artes, das suas

religiões, das suas técnicas, das suas trocas, das suas classes e dos seus

agrupamentos sociais. Bastará encarar a história da agricultura e das classes

rurais, nos seus esforços de adaptação ao solo, no seu longo trabalho

descontínuo de desbravamento, de abatimento de florestas, de drenagens, de

povoamento: quantos problemas não levanta cuja solução depende, em parte,

de estudos geográficos? Alargamento da história, desenvolvimento da

geografia: combinem-se os efeitos desta dupla revolução, tal como aqui

Page 17: Morfologia social ou geografia humana

indicamos; e compreender-se-á que o velho problema das relações do solo e

da história já se não pode pôr para nós como se punha para os homens de

1830 ou de 1860.

Assim se compreenderá — mas nem todos o compreenderam tão

depressa nem tão completamente quanto seria necessário. A tal ponto o

homem é um ser de tradições!

Quando, pouco a pouco a geografia humana se criava e organizava como

ciência, os historiadores puderam pensar em solicitar colaboração aos

representantes da nova ciência, que, interpelados diretamente sobre questões,

ao que parecia, de ordem geográfica por homens de quem muitas vezes

sofriam o prestígio, não se deram imediatamente conta de que corriam o risco,

ao desertar do seu domínio próprio, de se deixarem conduzir como reféns ou

como prisioneiros para um terreno que não tinham escolhido e que não era o

seu. O erro tem explicação, mas era pesado.

Com efeito, onde não há plena iniciativa para o sábio não há ciência. Não

se faz uma ciência respondendo simplesmente a um questionário formulado

do exterior, em nome e no interesse estrito de uma outra ciência. Colaborar

assiduamente no iritermédiaire des chercheurs eI des curieux, responder aí,

em consciência, ás perguntas de outrem, não é constituir uma ciência. Os

historiadores podem à vontade perguntar, em seu nome pessoal e sob a sua

responsabilidade qual foi o papel das condições geográficas no

desenvolvimento deste ou daquele povo, supondo antecipadamente essas

condições como dadas de uma vez para sempre e formando uma espécie de

bloco de efeitos, permanentes e sempre semelhantes: os geógrafos não

deviam, não deveriam ter limitado as suas ambições a satisfazer ingenuamente

semelhantes curiosidades. E como se pode pretender que não o fizeram?

Fizemos atrás referência à confusão, inicialmente tão vulgar e, aliás, tão

natural, entre as divisões políticas e as divisões propriamente geográficas. Mas

acaso não considerava um geógrafo, ainda há pouco, como quadro de um

estudo «de geografia física e de civilizações indígenas (era o subtítulo da

obra), os limites políticos, ou, antes, administrativos, de um fragmento de uma

seção de colônia francesa, sem qualquer preocupação em procurar. para sua

delimitação e caracterização, o que poderia haver de «regiões naturais>> no

vasto território que assim se submetia á observação?

Já fizemos também referência ao preconceito gráfico», se assim se pode

dizer, de um Ritter quando compara contornos sem se preocupar nada com a

sua gênese, «da mesma forma que, em etnografia, se falaria dum negro ou, em

botânica, de uma palmeira. Mas nos nossos dias, e regularmente — ainda há

pouco tempo um geógrafo chamava a atenção para o processo e o denunciava,

Page 18: Morfologia social ou geografia humana

não vimos nós comparar entre si regiões tão diferentes como, por exemplo, a

Itália e a Coréia ? Encantado da vida, o amador de formas segue nos mapas de

pequena escala, nos Atlas escolares, os contornos dessas duas penínsulas; vê-

as, descreve-as como igualmente alongadas, orientadas de modo semelhante,

cortadas da mesma forma por uma cadeia de montanhas, e, para completar o

paralelo, compara, pela sua posição, Seul e Roma, os dois centros políticos.

Havíamos feito, para terminar, referência ao preconceito de

predestinação. Mas quantos livros não há ainda em França, Inglaterra, Itália,

Espanha onde se descrevem estes países como outros tantos seres

geográficos. onde se faz salientar a sua homogeneidade verdadeiramente

providencial, enquanto a Lorena, Borgonha, Franco-Condado, Provença

representam, por sua vez, regiões naturais, quadros fabricados por toda a

eternidade para alojar as províncias? Como se nós não devêssemos examinar

com a mais minuciosa atenção crítica a lista dos próprios países, essas

unidades de base, velhíssimas unidades terrestres, designadas, por vezes, por

remotíssimos nomes!

Assim se perpetuam velhos preconceitos. Assim se continuam a formular,

na forma tradicional, problemas que o tempo renova sempre. E precisamente o

erro de Ratzel —na medida em que há erro — reside aí. O autor

da Antropogeografia não se libertou inteiramente de uma tradição bastarda;

ou, mais exatamente, depois de lhe ter dado, na parte mais fecunda e

propriamente geográfica da sua obra, o golpe mais importante, não a soube

repelir por completo.

Há na Antropogeografia —dizia Durkheim— três ordens distintas de

questões — a terceira das quais muito diferente das duas primeiras. Isto é

exato, e a própria observação, a verificação desta diferença, talvez pudesse ter

levado o seu autor a uma longa reflexão. Da mesma forma, Vidal de La Blache,

ao estudar o lugar do homem na geografia, diz que (estudar no homem um

dos poderosos agentes que trabalham na modificação das superfícies é uma

questão propriamente, puramente geográfica», questão essa, acrescentaremos

nós, que, como precursor, BUFFON viu com clareza e pos com grande vigor.

Outra questão completamente diferente é «saber que influência exerceram as

condições geográficas sobre os destinos humanos, e particularmente sobre a

sua história». No dizer de RATZEL, era procurar os princípios da aplicação da

geografia à história. Num e noutro lado a distinção é a mesma. O erro do

professor de Leipsig foi bem o de não ter escolhido entre as duas questões —

de as ter recolhido, examinado e apresentado ao mesmo tempo no seu livro.

E receamos bem que não suceda assim só na Antropogeografia, mas

talvez mesmo na Politische Geographie. Não é este, evidentemente, o lugar

próprio para renovar uma crítica muitas vezes feita — e bem feita — às idéias

Page 19: Morfologia social ou geografia humana

ramalhudas e por vezes contraditórias de Ratzel sobre o papel predominante

que na vida dos organismos políticos representaria o espaço puro, o espaço

tomado em si mesmo e independentemente dos caracteres geográficos que

nós julgávamos serem inseparáveis desses mesmos organismos. Mas

se RATZEL elaborou esta teoria, a tal ponto criticável que ele mesmo, no seu

próprio livro, por outra via, a destruiu, fe-lo levado por uma idéia política; é

que se lhe impunha uma concepção tradicional; é que, abrangendo numa visão

global todos os Estados dispersos à superfície do globo, reduzia-lhes a sua

vida múltipla, rica e variada a uma única manifestação; ao desejo, à esperança,

à permanente avidez de extensão—termo científico para designar

simplesmente a ambição conquistadora, esse sinal essencial, segundo RATZEL,

esse critério infalível da vitalidade e grandeza dos Estados. Mas quem não

reconhece aqui, apesar de uma transposição sábia e muito filosófica, a velha

atitude que há pouco caracterizamos, a preocupação predominante e simplista

das formas exteriores, dos limites graficamente definidos, dos

<<contornos>> — a docilidade, numa palavra, às sugestões da história

política e territorial?

Ao fazer referência a um livro de ARNOLO GUY0T, J.J.Ampere escrevia que

GUYOT tentou explicar a história pela geografia. Vigorosamente, VIDAL DE LA

BLACHE, que cita a frase, declara que essa pretensão, se fosse desenvolvida,

não seria mais razoável do que a de dispensar a geografia na explicação da

história. Nada mais exato. Fatos históricos e fatos geográficos são hoje, para

nós, duas ordens distintas de fatos. É impossível, é absurdo querer intercalar

uns na série dos outros, como outros tantos elos de anéis intermutáveis. Há

dois encadeamentos; que permaneçam separados; porque, de contrário, que

necessidade há de os distinguir?

Apreender e revelar, em cada momento da sucessão, as complexas

relações que os homens, autores e criadores da história, mantêm com a

natureza orgânica e inorgânica, com os múltiplos fatores do meio físico e

biológico. é o papel característico do geógrafo quando se aplica aos problemas

e às investigações humanas; vamos tentar mostrá-lo de urna forma mais

ampla. E mesmo essa a tarefa do geógrafo. Só terá outras por usurpação e

capitulação. No início, em plenos meados do século, os historiadores não viam

com nitidez que assim era. E onde o poderiam ter apercebido? A geografia —

que só existia como ciência descritiva, como nomenclatura — punham

somente questões no exclusivo interesse dos seus trabalhos. E eles mesmos

respondiam, a maior parte das vezes, como historiadores: aliás, os geógrafos

do seu tempo não teriam respondido de outra forma. Mas quando hoje há

geógrafos que, esquecidos dos progressos realizados pelo seu próprio

esforço, se demoram ainda em semelhantes problemas, sempre postos de

Page 20: Morfologia social ou geografia humana

maneira tradicional — e quando há sociólogos (com reserva de algumas

restrições e delimitações "razoáveis") que se tornam, no fundo, pura e

simplesmente candidatos à sua sucessão —, é, sem dúvida, fácil de apreender

simultânea- mente a origem e o vício de semelhante situação. Assim como

claramente se vê que o debate sobre o método e a própria historização dos

fatos tem mais valor do que uma simples curiosidade.

VI—UMA GEOGRAFIA HUMANA MODESTA

De fato, da mesma forma que a nossa história contemporânea já não

caminha na pegada de AUGU5TIN THIERRY, a geografia do nosso tempo

também já não é a da Restauração de 1815. Qual é a sua tarefa e como é que a

concebe? E como a concebem aqueles nossos geógrafos que já não calçam à

vontade pela forma ratzeliana e que, tendo chegado, a pouco e pouco

(anteriormente não sem tateamentos: já tivemos ocasião de o referir, aliás), a

uma concepção sólida de geografia, do seu fim e dos seus métodos não são

susceptíveis de embriaguez metafísica? Indicar ràpidamente a sua concepção

de geografia será — atacando o problema nos seus próprios fundamentos — o

melhor meio de por a claro a acusação de «ambição» que tentamos discutir.

Em 1913 —quer dizer, no fim da sua vida e numa época em que estava

em plena posse do seu método— o chefe da escola geográfica francesa, Vidal

de La Blache, escrevia que a geografia, inspirando-se, tal como as outras

ciências vizinhas (ou seja, notêmo-lo bem, tal como tas outras ciências

naturais)), na idéia da unidade terrestre, tem por missão especial investigar

como é que as leis físicas e biológicas que regem o mundo se combinam e se

modificam ao aplicarem-se às diversas partes da superfície do globo. Ela tem

por tarefa especial estudar as expressões mutáveis que a fisionomia da Terra

toma, conforme os lugares).

A definição teria seduzido ALEXANDRE DE HUMBOLOT, fundador da

geografia botânica, sempre tão preocupado, nas suas viagens e nos seus

escritos, com a análise das paisagens. E bem sabido comoVidal de La

Blache era pessoalmente excelente nessa análise e também como tinha

meditado longamente a obra de Humboldt, tal como a de RITTER. Notável

coincidência: lia-se, na mesma data, numa tese geográfica interessante e

original, a afirmação seguinte: De bom grado diríamos que na análise da

paisagem está toda a geografia>>; e mais adiante: <As idéias de um

biogeógrafo nascem todas da contemplação da paisagem>>. Fórmulas

interessantes, embora se lhes possam pôr algumas reservas; mas acaso não

excluirão, não porão fora do domínio geográfico todo o conjunto de problemas

que o ligam ao homem e às sociedades humanas? De modo nenhum, e o

próprio geógrafo de quem acabamos de citar duas frases reveladoras da

Page 21: Morfologia social ou geografia humana

influência de um geobotanista —Ch. FLAHAULT— faz uma confissão implícita:

<<Os outros meios de conhecimento: exame de estatísticas, análise histórica

da evolução dos agrupamentos humanos, segundo os documentos de

arquivos, servem somente para precisar, para completar, para retificar as

idéias que extraímos do estudo direto da natureza». Evolução dos

agrupamentos humanos segundo os documentos de arquivos? Mas que vêm

fazer os arquivos na paisagem? E que o homem, pelo mesmo título que a

árvore —e ainda melhor, e ainda mais, e de outra forma—, é um dos fatores

essenciais da paisagem.

O homem é um agente geográfico, e não o menos importante. Contribui

para revestir, conforme os lugares, a fisionomia da Terra com essas

«expressões mutáveis» que a geografia (tem por tarefa especial» estudar.

Desde há séculos e séculos, pelo seu labor acumulado, pela audácia e decisão

das suas iniciativas, -o homem apresenta-se-nos como um dos mais

poderosos artífices da modificação das superfícies terrestres. Não há força que

não utilize, que não submeta à sua vontade; não há região, como se tem dito,

que não apresente os estigmas da sua intervenção. Atua sobre o solo

isoladamente; atua mais ainda coletivamente — por intermédio de todos os

seus agrupamentos, dos mais restritos aos mais vastos, desde os

agrupamentos familiares aos políticos. E tal ação do homem sobre o meio é

precisamente o que de humano entra no âmbito da geografia.

A geografia é, repete incisivamente Vidal de La Blache no artigo que

citamos anteriormente, (a ciência dos lugares, e não a ciência dos

homens». Análises históricas da evolução dos agrupamentos humanos

segundo os documentos de arquivos... Sim, o geógrafo deve recorrer a tais

análises, a tais documentos; mas aquilo que lhes deve pedir não é que o

informem sobre o papel do solo nessa evolução, nem sobre a influência que as

condições geográficas puderam ter exercido no decurso dos tempos sobre os

destinos e sobre a própria história dos povos; deve procurar ser por eles

ajudado a determinar qual a ação que os povos, os agrupamentos, as

sociedades dos homens puderam exercer e exerceram de fato sobre o meio.

(Para explicar os fenômenos geográficos de que o homem foi testemunha ou

artífice é necessário estudar a sua evolução no passado, com a ajuda da

documentação dos arquivos. A declaração é de A. Demangeon. Vê-se que,

também ele, para tomar a sua perspectiva não abandona o terreno geográfico.

"A geografia", continua Vidal de La Blache, «interessa-se pelos

acontecimentos da história na medida em que estes põem em ação e revelam,

nas regiões em que se produzem, propriedades, virtualidades que, sem eles,

teriam ficado latentes. Definição nítida, estrita e egoistamente - geográfica,

como se vê. E desta vez o ponto de vista é perfeitamente claro. «A geografia é

Page 22: Morfologia social ou geografia humana

a ciência dos lugares, não a dos homens>>. Eis aqui, na verdade, a tábua de

salvação.

Retomemos agora a críticas que acima expusemos. Depois destes

comentários terão ainda algum alcance? Evidentemente que não.

Certamente que já o verificamos: quem estuda a ação das condições

geográficas sobre a estrutura dos grupos sociais corre o risco de se perder ao

atribuir valor primordial, e não só decisivo, mas único, a essas condições

geográficas. Corre o risco de ver aí a causa de certa estrutura social cuja

ubiqüidade parece ignorar. Mas quem altera os termos da questão e põe o

problema de saber, não já qual é a ação dos grupos sociais sobre o meio

geográfico, mas antes, com mais escrúpulo e precisão — a geografia é a

ciência dos lugares —, quais os traços de uma dada paisagem, de um dado

conjunto geográfico diretamente determinado ou historicamente reconstituído,

que se explicam ou podem explicar-se pela ação continua, positiva ou

negativa, de um certo grupo ou de uma certa forma de organização social;

quem, por exemplo; ao verificar antigamente a extensão antinatural de certas

culturas em regiões que parecem excluí-las, relaciona este fato com o regime

de isolamento, em que todos os grupos humanos procuram, acima de tudo,

bastar-se a si próprios, sem nada comprar a outros: se acaso for prudente,

não corre o risco de erro, confusão ou generalização abusiva. Digo eu: se for

prudente; mais valeria dizer: se não for exclusivista. Na verdade, na região de

Morvan, a vinha —que era tão corrente na Idade Média que uma comuna do

cantão de Toulon-sur Arrouz, Sanvignes (Sint l’inea, como diz um manuscrito

do século xiv), ia buscar o nome à sua total, radical, absoluta e quase única

incapacidade em alimentar esta planta quente — resulta bem de um regime de

isolamento, tal como sucede na Normandia ou na Flandres; mas é necessário

ainda destacar, quando se fala em tal, a influência exercida sobre esta cultura

paradoxal pelo hábito de misturar mel, canela e coentros com o vinho, o que o

transformava numa mézinha e enfraquecia a rudeza nativa dos mais ingratos

sumos de uva.

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Na realidade, quando se pretende encarar a geografia do ponto de vista

do homem — e entenda-se que se trata apenas de um entre muitos outros

pontos de vista —, aquilo que ela estuda, aquilo que nos dá a conhecer é o

meio- em que se desenrola a vida humana. Em primeiro lugar descreve o; em

seguida analisa-o; posteriormente tenta explicá-lo com a permanente

preocupação das repercussões e interferências. O próprio homem, mediante as

Page 23: Morfologia social ou geografia humana

suas obras, é alcançado pela geografia: obras de destruição e de criação, obras

pessoais, obras indiretas. E alcança-o precisamente na medida em que o

homem atua sobre o meio, em que lhe imprime a sua marca em que o modifica

adaptando-se-lhe.

A geografia não diz, não deve dizer: (A casa do homem explica-se pelo

solo). Verifica, deve simplesmente verificar: (Esta casa, construção ora humilde,

ora orgulhosa e complicada, de uma feição simultaneamente inovadora e

tradicionalista, que escapa, como tal, à ação do geógrafo, pertence, não

obstante, à paisagem, depende do meio -geográfico e adapta-se-lhe através

de tais ou tais elementos, disposições, caracteres secundários ou

fundamentais: e por isso, mas somente por isso, a casa está no campo das

minhas atribuições..

Da mesma forma, a geografia não diz, não deve dizer: <<O crescimento,

a extensão, a evolução de determinado Estado explica-se pelo solo que ocupa,

por estas ou aquelas vantagens de posição ou de situação. Não pode dizê-lo,

pois, na verdade (e não sem razão), os sociólogos levantar-se-iam e diriam:

Quem, senão o sociólogo, poderá tomar conhecimento de tudo quanto diz

respeito à estrutura material dos grupos e à forma como os elementos se

distribuem no espaço? É esse efetivamente o objeto de uma ciência sociológica

especial: a morfologia social.

O solo, não o Estado: eis o que deve preocupar o geógrafo. E, assim

como ele apreende, como pode chegar às instituições, a essas coisas

imateriais, por intermédio dos objetos que as exprimem e que o etnógrafo

recolhe e classifica nos seus museus, também não é direta mente que o

geógrafo apreende as sociedades humanas, as sociedades políticas; apreende-

as sim pelos vestígios que deixam à superfície do globo, peia marca que aí

imprimem; consegue-as, por assim dizer, através da sua projeção sobre o

solo>>. E quanto ao resto?

Quanto ao resto, todos podem livremente ir buscar aos trabalhos dos

geógrafos, os tratados de conjunto ou às monografias regionais, os elementos

para elaborações pessoais. O investigador que se propõe explicar pelo solo e

pelo clima a formação dos instintos que observa e os traços — tal como um

Boutmy, por exemplo — com que reconstitui a fisionomia coletiva do povo

inglês ou do povo americano tem inteira

liberdade para ir buscar aos estudos geográficos sobre a Inglaterra os fatos e

elementos, que combinará à sua vontade e para os seus próprios objetivos.

Mas o que desse modo efetua é etologia coletiva, e não geografia. Sem dúvida

que maneja noções geográficas, mas maneja-as como etólogo e para fins não

geográficos.

Page 24: Morfologia social ou geografia humana

E, do mesmo modo, o sociólogo que apenas concebe as sociedades como

grupos de homens organizados em determinados pontos do globo, e não

comete o erro de os considerar como se fossem independentes da sua base

territorial, tem inteira liberdade para investigar em que medida a configuração

do solo, a sua riqueza mineral, a fauna e

a flora afetam a sua organização. Também o sociólogo poderá manejar noções

geográficas, que irá colher, inteiramente elaboradas, aos livros dos geógrafos;

mas utilizá-las-á como morfologista e para fins que não serão geográficos.

Por outras palavras, a morfologia social não pode pretender suprimir, em

seu benefício, a geografia humana, porque as duas disciplinas não têm nem o

mesmo método, nem a mesma tendência, nem o mesmo objeto.

Capítulo 1 do livro "A Terra e a Evolução Humana", Ed. Cosmos, Lisboa, 1955