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QUANDO AS ÁGUAS AFOGAM SONHOS Juarez Fragata

Quando as águas_afogam_sonhos

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QUANDO AS ÁGUAS

AFOGAM SONHOS

Juarez Fragata

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Havia levantado o rio da Várzea o seu bramido. O ruído das ondas chegava

ao outro extremo do povoado Saltinho, distrito de Rodeio Bonito. Os

moradores do lugarejo estavam diante de uma enchente. No ano anterior a falta

d’água tinha lhes castigado. Agora, o excesso castigava-os. A soja plantada nos

lugares altos a enxurrada arrastara. A plantada nos lugares baixos a água

encobrira. Neste ano certamente mais uma leva de pequenos agricultores

ficariam sem suas terras, assim como acontecera no ano anterior devido à seca.

Muitos tiveram que entregar suas propriedades aos bancos como forma de

pagamento a empréstimos contraídos, restando aos mesmos as seguintes

opções: fazer parte do (MST), ou então bater em retirada à capital, e assim

alargar ainda mais o cinturão de pobreza que circunda os grandes centros.

A chuva, teimosa, persistia, vez por outra alterando a intensidade. Pela

primeira vez não se via acúmulo de serragem na serraria Progresso, uma vez

que esse pó de madeira serrada estava sendo usado para tentar aplacar o lamaçal

nas entradas das casas.

No estreito espaço que separava o balcão das prateleiras, Armando andava

de um lado para o outro. O rosto descorado, a escuridão da pele na região da

parte inferior dos olhos, causada pela noite sem dormir, eram resultados de uma

preocupação lógica: as consequências da enchente. Sem sombra de dúvidas o

mesmo seria nocauteado pelos estragos causados pela chuva. Os habitantes das

grandes cidades eram assalariados. Os comerciantes vendiam suas mercadorias,

e recebiam o valor das compras a cada final ou início de mês, porém, Armando,

assim como outros comerciantes interioranos, vendia sua mercadoria, e recebia

como forma de pagamento, na safra de cada produto agrícola, soja, milho e

feijão.

Isso quando não ocorria um ou outro imprevisto, como seca, e naquele ano

enchente. Situações desse tipo faziam com que os pequenos agricultores

vendessem a mísera quantia que conseguiam colher a outros comerciantes, para

assim ajuntar uma soma irrisória em dinheiro, dando-lhe, um calote.

O calote decorrente da seca, o mesmo havia resistido, no entanto, agora, com

outro cano a vista, proveniente da enchente, seguramente iria à bancarrota.

A sugestão de sua esposa fora fugir com toda a mercadoria, e não pagar os

credores, poucos agricultores abastados, que lhe emprestavam dinheiro ao juro

dos bancos, ou então colocar fogo no estabelecimento, receber o dinheiro do

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seguro, e dar um novo rumo as suas vidas. Em outros tempos isso daria certo, e

ele mesmo já havia feito isso depois de esvaziar praticamente todas as

prateleiras.

Mas agora os tempos eram outros: praticamente impossível de ludibriar as

seguradoras. Era preciso encontrar com urgência outra saída.

Uma vez mais a chuva torna-se intensa. Após abrir a porta Alípio olhou para

o alto e não mais viu o verde de sua plantação de soja.

Agora só via-se grandes valas abertas pela água da chuva, em quantidade as

rugas no rosto de uma pessoa avançada em anos. Voltou-se para a esposa e os

filhos, e sentiu um aperto no coração.

A junta de bois, com canga e ajoujo, seria entregue ao Armando, dono do

armazém Rincão para saudar parte de sua dívida. Com essa ideia ele já tinha se

acostumado. Agora, entregar seu pedacinho de chão ao banco, e deixar a esposa

e os filhos sem terra, e sem teto, era doloroso demais. Contudo não havia outra

solução: o jeito era entregar sua terra ao banco, e seguir o exemplo de seu irmão

Xisto, e tornar-se membro do (MST).

As notícias que chegavam do assentamento, onde estava Xisto, não era das

melhores. A ordem vinda do líder dos assentados era não adquirir bens. Esta era

a receita para continuar recebendo verbas para o costeio das lavouras, no

entanto, seu irmão ousou contrariar a ordem do líder, e adquirira algumas

posses, e a partir de então passara a ser perseguido pelos demais assentados. Os

olhos de Alípio encheram-se de lágrimas. A certeza de que logo, logo estaria

convivendo com essas pessoas lhe dava a nítida sensação de que estava sendo

castigado pelas mãos do destino. Contudo, o mesmo tinha plena consciência de

que essa sensação passaria, assim como aquele fenômeno climático que

consistia na precipitação de grande quantidade de água no estado líquido sobre

a superfície da terra, remessando as plantações agrícolas, e junto à esperança

dos agricultores ao rio, fazendo-o, transbordar, e bramir como um leão em

estado de fúria.

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Desde pequeno Hipólito se preocupava mais com os outros do que consigo

mesmo. O seu altruísmo o fizera buscar formação para ser padre, pois,

acreditava que exercendo o sacerdócio poderia socorrer os aflitos e necessitados

de modo integral, e não esporadicamente. Uma vez ordenado o mesmo

assumira a paróquia do povoado Saltinho.

Todos os grandes centros são pontos que convergem para um ponto maior. É

para este ponto que migram aqueles que têm uma visão ampla, universal, e

desejam exercer influência. O ponto de convergência funciona como um

receptor de informações e influência, e ao mesmo tempo um emissor destas

informações e influência que abrangem os demais pontos de modo quase

instantâneo. Já os habitantes dos pequenos povoados se limitam a uma

microrregião. Os agrupamentos de municípios limítrofes também funcionam

como emissores de informações e influência aos seus distritos, e aos lugarejos

de menor expressão. No entanto, estes pontos de recepções ignoram quase todo

o contingente de informações e influência que chegam a eles. Estes pontos são

como universos miniaturas, com seus próprios costumes e hábitos, fazendo com

que as mentes de seus habitantes fiquem focadas naquilo que circula dentro de

seus limites. Este conjunto de fatores fizera com que o jovem padre se sentisse

preso numa pequena sela com a chave na mão, e tentara se conformar com esse

sentimento.

Com o intuito de enturmar-se com os moradores do lugar o jovem clérigo

fora algumas vezes ao armazém do Armando, e até se ariscara num joguinho de

canastra com os mais velhos; isso sem falar do futebolzinho com os mais

jovens no campinho que tinha mais terra do que grama. No entanto, todo o seu

esforço fora em vão. Padre Hipólito não conseguia conectar-se com o povo.

Na verdade o seu único ponto de conectividade era Nivaldo, filho do velho

Bergenthal. Nivaldo cursava direito em Passo Fundo, e somente ia para casa

nos finais de semana. Surgira tão grande amizade entre eles que, quando o

futuro advogado chegava ao povoado, antes mesmo de ir ver os pais ia ter com

o jovem padre. A ligação entre os dois era tanta que começara levantar suspeita,

e essa suspeita aumentara depois que Nivaldo terminara o noivado com Vânia,

filha do seu Emídio. Nem mesmo Vânia garantindo que Nivaldo era macho à

desconfiança diminuíra.

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Em tempo passado era tido como gay aquele que se colocava na condição de

passivo, sendo que o ativo continuava incluído na categoria de homem com “h”

maiúsculo. Porém, agora, em tempos modernos os especialistas haviam

decretado que, o homem que tem relações sexuais com outro homem, não

importa se é de funcionalidade ativa, é incluído na categoria gay. Os mais

velhos acataram o decreto, e diziam uns aos outros que esse tipo de relação era

como rede elétrica: havia um positivo e outro negativo.

Sempre que podiam os mais jovens os corrigiam. Não é negativo e positivo,

mas sim ativo e passivo. O passivo é aquele que perde a guerra com alegria. O

ativo é quem finca o pau na merda.

O menos preocupado nesta história toda era o senhor Bergenthal, uma vez

que o seu filho mais velho Normando, o havia preparado para esse tipo de

situação.

Ao constatar que os jovens da idade de Normando andavam como touros

desembestados correndo atrás das mocinhas, enquanto o filho parecia alheio

aos namoricos, o alemão começara a colocar em dúvida a masculinidade do

mesmo. A desconfiança fizera com que Bergenthal convidasse o filho para ir

com ele a cidade de Planalto. Seu objetivo era levá-lo a zona da cidade. Uma

vez dentro da casa de prostituição suas dúvidas aumentaram ao perceber que

Normando não mostrara interesse por nenhuma das mulheres que estava no

recinto, porém, quando uma mulatinha adentrara os seus olhos brilharam.

-Eu posso transar com a mulher de pele escura? – perguntou ao pai.

-É claro que sim, filho – respondeu o alemão não se contendo de alegria.

Afinal, Normando não era aquilo que o mesmo suspeitava. O filho era um

jovem que tinha atração por mulheres de pele escura, por isso, as moças do

Saltinho não eram de seu interesse.

Todos os finais de semana, e algumas vezes no meio da semana, Normando

ia à cidade de Planalto ter com a prostituta de pele escura. Diante das suas

constantes visitas a meretriz seu Bergenthal o chamara a sala, e num tom de

advertência lhe disse:

-Filho, eu acho que você está se envolvendo além da conta com aquela

vadia. Já está mais que na hora de você afastar-se dela!

Normando fora incisivo na resposta:

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-Pai, eu a amo, e pretendo assumi-la como esposa!

Subitamente o alemão é tomado pela raiva, e já num tom de voz alterado

afirma:

-Filho meu jamais se casará com uma dacu! Ouviu? Jamais!

A senhora Bergenthal assustara-se, com a alteração no tom de voz do

marido, visto que o mesmo não tinha por hábito se alterar. Em mais de vinte e

cinco anos de casados ela poderia contar nos dedos às vezes que tinha visto- o

enfurecer-se, por isso, adentrara a sala correndo, e assim que se deparara com

os dois perguntou:

-O quê está acontecendo aqui?

-É este teu filho que está querendo envergonhar o nome da família!

-Você quer dizer nosso filho?

Normando aproveitara a discussão dos pais, e saíra de fininho, somente

aparecendo no outro dia de manhazinha.

Bergenthal acreditava que o filho estava prestes a cometer uma besteira sem

tamanho, por isso, resolvera entrar em ação é acabar com o intento do seu

primogênito. A prostituta de pele escura sumira da zona de Planalto levando

consigo uma boa soma em dinheiro. Esse montando fora o que ela recebera

para sair das vistas de seu filho.

Como forma de amortizar a falta da prostituta de pele escura Normando

começara a planejar uma viagem aos países africanos que falavam língua

portuguesa, e acabar-se trepando com mulheres da raça negra. Porém, o seu

plano caíra no esquecimento quando começara ouvir os relatos de pessoas que

retornavam da capital.

Vez por outra a prefeitura de Rodeio Bonito mandava uma ambulância com

os pacientes que os médicos do município não mais tinham recursos para tratá-

los. Como Saltinho era um dos distritos automaticamente os habitantes do

lugarejo em estado de saúda precário eram enviados a Santa Casa de

Misericórdia de Porto Alegre.

Na maioria das vezes os convalescentes regressavam em estado de

perplexidade, declarando que a capital tinha tantas pessoas de pele escura que

em certas ocasiões dava a nítida impressão de estar-se num país africano.

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Depois de colher algumas informações, Normando fizera as trochas, deixara

um bilhete aos pais, e se mandara para a capital, e lá chegando tratara logo de

casar-se com uma mulher da raça negra, que já tinha dois filhos, fruto do

primeiro casamento.

Ao ficar sabendo do burburinho padre Hipólito começara a cuspir

marimbondo. O mesmo não conseguiu mais comer, nem dormir, e uma terrível

dor de estômago passou a fazê-lo contorcer-se. A raiva lhe mandava a ir de casa

em casa e dizer umas boas verdades, enquanto que a razão pedia para ele

aguardar até a missa de domingo de manhã, e entre este embate de forçar

acabara prevalecendo à razão.

Praticamente todos os moradores do povoado estavam no recinto sagrado. O

jovem padre subira ao púlpito, e sem delongas disse:

-Eu sei o que vocês andam falando ao meu respeito, e fiquem vocês sabendo

que tanto Nivaldo, assim como eu somos homens, e muito. A nossa ligação é

decorrente de nossa compatibilidade em assuntos diversos!

Até então padre Hipólito havia conseguido manter a compostura, mas de

súbito a raiva assumira o controle.

-Pra dizer a verdade Nivaldo é o único sujeito neste lugar com qual se pode

ter um diálogo construtivo. Os demais são todos uns bandos de dentes cariados

que quando abrem a boca só sai besteira e mau-hálito!

Ao dar-se conta que tinha pegado pesado demais o padre tentara amenizar

um pouco a patada.

-Estou tentando convencer o Nivaldo a se lançar na política como

representante do Saltinho!...

-E eu padre – interrompeu o vereador Geovani ajeitando as farripas pintadas

de preta para combinar com o bigode que mais parecia uma taturana.

-Me desculpa Geovani, mas você não tem condições de continuar como

representante do Saltinho!

-Posso saber por quê?

-Ora, Geovani, o seu único projeto aprovado foi arrancar uma plantação de

soja para construir um campo de futebol, e a liberação de uma verba para

comprar o uniforme do time!..

-O que o senhor tem contra o futebol padre?

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-Nada, apenas acho que tem coisa muito mais importante que o futebol!

-Seu padreco vestido de urubu, marxista fã de stalin – gritou Geovani dando

um banho de saliva nas pessoas que estavam sentadas em sua frente.

Ao ouvir falar de Stalin seu Xerxes levantou-se e disse:

-Puxa padre, eu não sabia que o senhor também é fã do Gordo e o Magro!

-Meu nobre eleitor, eu não estou falando do Gordo e o Magro, mas...

-Então o vereador está falando do Sylvester Stallone. Eu adoro o Rambo.

Aquela faca serrote, e aquelas frechas com pontas exprosiva são demais!

-Meu caro eleitor, eu estou falando é de Josef Stalin, e não do Sylvester

Stallone!

-Esse ator eu não conheço – respondeu seu Xerxes, fazendo com que a

discussão entre o religioso e o político ficasse em segundo plano.

Num instante de raiva padre Hipólito havia chamado à população do

Saltinho de bandos de dentes cariados que quando abriam a boca só saia

besteira e mau-hálito, e o povo de modo geral acreditara em suas palavras. Por

isso na segundo feira lotaram os consultórios odontológicos de Ametista do Sul

e do Rodeio Bonito.

O vereador Geovani aproveitara o ensejo para espalhar o boato de que o

padre era comunista, e que tinha feito um acordo com os dentistas da Ametista

e do Rodeio, e que por isso tinha dito aquelas palavras, para fazer com que

todos fossem aos consultórios odontológicos, levando-o, a receber uma

pomposa comissão.

O boato do vereador fizera com que acontecesse um racha entre os

moradores. A parte mais abastada ficara do lado do político, enquanto que

aqueles com menor poder aquisitivo se colocaram debaixo da tutela do jovem

padre, tendo-o, a partir de então como líder máximo do Saltinho.

Agora mais do que nunca padre Hipólito precisava exercer sua capacidade

de liderança. Uma enchente estava castigando o povoado, e a todo o momento

mais e mais famílias desabrigadas chegavam ao salão de festas da igreja, e já

não tinha mais como satisfazer as necessidades mais básicas daquelas pessoas.

O jovem padre correra os olhos no salão, e por um curto período de tempo

sentira-se completamente impotente diante daquela situação caótica.

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Armando adentrara o salão, dirigiu-se ao padre.

-Padre, será que o senhor poderia pedir para algumas pessoas me ajudarem a

descarregar as coisas que trouxe para ajudar as famílias desabrigadas?

Fora como se o dono do armazém aplicasse uma injeção de ânimo em padre

Hipólito. Agora alegria e tristeza se misturavam em seu íntimo. O ato de

bondade de Armando era o responsável pela a alegria, e a tristeza era

decorrente do fato de Armando estar sendo prejudicado tanto quanto os

desabrigados, e com certeza aquilo que estava doando iria lhe fazer falta.

-Isso não vai lhe fazer falta Armando? – perguntou o padre um tanto sem

jeito.

-Falta com certeza me fará – começou o dono do armazém -, mas me

desculpe à expressão padre, o que é um peito pra quem já está todo cagado?

-Não se preocupe que eu vou retribuir este favor Armando!

-Não se preocupe padre, não se preocupe!

Aos poucos as águas foram baixando, e as famílias voltando para suas casas,

até que tudo voltara ao normal. Para ajudar Armando o padre Hipólito destinara

todo o lucro do baile do chopp daquele ano ao mesmo, sendo que ele

conseguira quitar todas as dívidas, e ainda sobrara algum para repor a

mercadoria.