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Historia do chocolate

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  • Lacta 100 anos, muito prazer

  • o chocoLate primeiro era um enigma; depoisse tornou moeda; scuLos mais tarde se tornaria mania de

    nobres e endinheirados, at chegar ao scuLo 21 como uma

    iguaria acessveL e desejada por quase todos (sim, acredite,

    h quem no goste de chocoLate!). as suas indstrias giram

    biLhes de dLares, empregando miLhares de trabaLhadores,

    de agricuLtores a tcnicos em qumica ou robtica, de espe-

    ciaListas em embaLagens a gourmets. em torno do fruto do

    cacaueiro criou-se, ao Longo dos scuLos, uma verdadeira

    roda da fortuna. a descoberta do chocoLate , por si s,

    uma epopeia que percorre miLnios de histria, desde os pri-

    meiros sinais de seu uso, entre os oLmecas, uma civiLizao

    pr-coLombiana que teria vivido entre 1.500 e 400 a.c., prxi-

    mo ao goLfo do mxico. seria preciso muita inventividade e

    a coLaborao de muitas geraes para que, em aLgum mo-

    mento dessa evoLuo, o segredo do cacau fosse reveLado. e,

    curiosamente, eLe no estava na poLpa adocicada do fruto,

    mas nas amargas sementes que, aps serem torradas, exaLa-

    vam um aroma deLicioso e sugestivo.

    ApresentAo

  • Na primeira parte desta publicao o leitor ser apresentado aos sucessivos passos at chegarmos aos tabletes de chocolate dos dias de hoje, passando pela beberagem amarga e apimentada to valorizada por olmecas, maias e astecas, e pela bebida adoada e quente, servida em requintadas peas de porcelana nos sales mais nobres da Europa.

    Por meio de trechos de fico mesclados histria, o leitor ser convidado a seguir os passos de frei Bernardino de Sahagn, um dos primeiros a relatar o uso do cacahuatl entre os povos americanos; acompanhar o meticuloso preparo de uma receita exclusiva de cho-colate com jasmim criada na Florena renascentista; e, por fim, acompanhar uma dupla descoberta tecnolgica realizada pela famlia Van Houten, e que propiciaria a transformao do chocolate lquido em tabletes comestveis, permitindo, assim, o surgimento das primeiras indstrias de chocolate.

    Uma dessas primeiras indstrias de chocolate brasileira, nascida h cem anos na cidade de So Paulo como Societ Anonyme des Chocolats Suisse de S. Paulo. Mas foi com o nome de Lacta que faria histria no Brasil. Essa rica trajetria, relatada na segunda parte, acom-panha as transformaes pelas quais passou o prprio pas, que em um sculo de rural se tornaria urbano, de eterna promessa se confirmaria como um dos emergentes deste sculo 21, de exportador de cacau passaria a ser o sexto maior mercado consumidor de chocolates do mundo.

    Em 1996 a Lacta foi adquirida pela Kraft Foods. Essa aquisio traria novo vigor e visibili-dade s consagradas marcas da empresa, capazes de provocar gua na boca com sua simples meno. Por exemplo, Sonho de Valsa, um nome definitivamente associado ao bombom mais consumido por aqui; Diamante Negro, outra marca que dispensa apresentaes; o mes-mo vale para Laka, que se tornaria sinnimo de chocolate branco; ou Bis, provavelmente o primeiro chocolate que as mes costumam dar aos seus filhos por aqui. Alm desses quatro grandes cones do mercado consumidor brasileiro, centenas de novos modelos de ovos de Pscoa encantam crianas e adultos a cada ano. A mobilizao que antecede este feriado intensa e vem se revelando fundamental para a consolidao da indstria do chocolate no Brasil.

    No fcil fazer um bom chocolate, mas todos reconhecem quando tm um derreten-do na lngua. Como o chocolate percebido pela nossa lngua? E desta, como a percepo atinge o crebro, desencadeando aquelas sensaes de prazer to conhecidas de todos os segundos preciosos que se seguem degustao do chocolate? O terceiro captulo especula sobre os segredos qumicos do chocolate e se encerra mostrando as etapas que envolvem a sua fabricao, da fermentao da polpa temperagem da massa, do acrscimo de outros ingredientes pesquisa por novos sabores e formulaes.

    Uma empresa completar um sculo de existncia no algo corriqueiro nem aqui, nem no resto do mundo. um formidvel atestado de confiana, renovado dia aps dia por con-sumidores satisfeitos, tanto pela constncia na qualidade das marcas to queridas quanto pela empresa no se acomodar no sucesso j estabelecido. Consumidores so, por definio, insaciveis. Boas indstrias tambm. Querem sempre alargar novas fronteiras de sabor, pro-por sensaes ainda no experimentadas, criar novas manias. Se elas forem, alm de tudo, deliciosas, que sejam muito bem-vindas. o que a Lacta espera para seu prximo centenrio: seguir oferecendo suas marcas consagradas por geraes de brasileiros, acrescentando, a cada ano, novidades no maravilhoso mundo de sabores que nasce, h muitos sculos, da semente torrada de uma pequena rvore nativa das Amricas.

  • sumrio

  • da amrica para o mundo | 06

    brasiL entra na vaLsa | 34Primeiras indstrias, primeiros chocolates 35Uma fbrica para a Lacta 45A lapidao de um diamante 66O bombom do Brasil 71Bis, Bis ... 84A nova fbrica no Brooklin 88Como a Pscoa virou Lacta 94O reflexo branco 105A Kraft chega ao Brasil 120

    chocoLate : muito prazer | 132referncia | 157

    agradecimentos | 158

    crditos de imagens | 159

    ficha tcnica | 161

  • daamricapara o

    mundo

  • cidade de tLateLoLco, vice-reino do mxico, 1540.

    FrEi BErNArdiNO dE SAHAgN CHAMOU ALONSO,

    O NOViO rECM-CHEgAdO dA UNiVErSidAdE dE SALAMANCA

    QUE ViErA PArA dAr AULAS dE LAtiM NO COLgiO rEAL dE SANtA CrUz, EM

    tLAtELOLCO. VAMOS dAr UMA VOLtA PELA CidAdE, VOC PrECiSA

    CONHECEr OS AStECAS, CONVidOU O FrEi. COM O VigOr dE SEUS 41 ANOS, dOS

    QUAiS OS LtiMOS 11 ViVErA NO MxiCO, O rELigiOSO J CrUzArA OS

    LONgOS CAMiNHOS QUE LigAVAM O PLANALtO MExiCANO ONdE ViViA O

    POVO AStECA AO POrtO dE VErACrUz E S riCAS rEgiES PrOdUtOrAS dE

    CACAU, SitUAdAS MAiS AO SUL dO PAS. ESSAS tErrAS ErAM ANtES

    PErtENCENtES AOS MAiAS, POVO SUBJUgAdO PELO ESPritO gUErrEirO dOS

    AStECAS, E ALi COMEAVA UMA dENSA FLOrEStA trOPiCAL. AgOrA

    ErAM OS PrPriOS AStECAS QUE SOFriAM PArA SE AdAPtAr rEALidAdE

    dOS NOVOS CONQUiStAdOrES, OS EUrOPEUS. SEM dVidA O CLiMA dA rEgiO

    ANtigAMENtE HABitAdA PELOS MAiAS ErA MUitO diFErENtE dO dA ridA

    tLAtELOLCO, CidAdE-irM dA tENOCHtitLAN, A ANtigA CAPitAL

    dO iMPriO AStECA. ALi, A VidA girAVA EM tOrNO dO grANdE MErCAdO,

    O LUgAr PErFEitO PArA QUE O JOVEM MiSSiONriO FOSSE APrESENtAdO

    AOS PArAdOxOS dE UM POVO QUE tENtAVA APrENdEr AS NOVAS

    rEgrAS dOS COLONizAdOrES E, AO MESMO tEMPO, LUtAVA PArA NO

    PErdEr A HErANA dE SEUS ANtEPASSAdOS.

  • Lacta 100 anos, muito prazer 08

    FLUENtE EM NAHUAtL, a lngua local, frei Bernardino era bem popular entre os nativos, que j estavam acostuma-dos aos longos e meticulosos interrogatrios conduzidos por ele ou por alguns de seus melhores alunos do Colgio real de Santa Cruz. A escola havia sido a primeira a ser er-guida na nova colnia e recebia os filhos da elite asteca e dos primeiros funcionrios pblicos e fazendeiros vindos da Europa que se arriscavam por aquelas terras. O frei j acumulava na biblioteca do colgio centenas de p-ginas com descries detalhadas, depoimentos e muitos desenhos copiados de livros antigos sobre a populao local e seus costumes. Sua ttica, em qualquer lugar que fosse, era sempre procurar pelos mais velhos, aqueles que ainda conservavam na memria os mitos fundadores da-quele povo, que, por sua vez, parecia caminhar rapida-mente para a extino ou para a completa assimilao.

    Assim que desceram as escadas do colgio, os dois fo-ram cercados por crianas oferecendo abacates, limes, pimentas e outras pequenas frutas ainda desconhecidas por Alonso, que gaguejava em espanhol tentando acom-panhar os passos vigorosos de Bernardino de Sahagn. O frei tinha acabado de parar diante de uma barraca na-quele instante.

    O mercado de tlatelolco no era nem a sombra do que fora h cerca de 20 anos, quando Hernn Corts e seus 600 soldados entraram na cidade vizinha, tenochititlan: uma massa compacta de cinco mil barracas e mantas coloridas estendidas, por onde circulavam diariamente mais de 50 mil pessoas. depois das epidemias que dizi-maram cerca de um quinto da populao e as deposies e mortes dos imperadores Montezuma ii e Cahuatemoc, a cidade tivera tanto a sua populao como a sua impor-tncia incrivelmente diminudas.

    Ainda assim, o movimento na feira era intenso e Alonso se espantou com a quantidade e variedade de produtos: flores e frutos exticos, finos tecidos de algo-do, cestos tranados de palha, cabaas, cuias e utens-lios domsticos feitos de madeira, cascas de tartaruga e afiadas machadinhas de pedra algumas delas usadas em rituais de sacrifcios humanos, agora proibidos aps a chegada dos espanhis. A paisagem era ainda com-posta por braseiros, sobre os quais sempre havia algum alimento sendo oferecido, de milhos coloridos a lagartas, animal que naquela terra era considerado uma iguaria.

    Um aroma forte emanava daquela pequena barra-ca onde os dois haviam parado. O frei trocou algumas palavras com a vendedora, enquanto esta lhe mostrava alternadamente diferentes gros escuros, parecidos com amndoas, que Alonso jamais vira antes. depois de chei-rar vrios tipos, Bernardino escolheu um deles, mostran-do-o para o pupilo: aquilo era cacau. Enquanto a ven-dedora de longos cabelos negros e pele castigada pelo sol dava ordens a uma criana, que correu para buscar alguma especiaria na barraca vizinha, Bernardino dirigiu-

    -se novamente para Alonso: Est na hora de conhecer a bebida mais importante dessa terra: o cacahuatl. E se voc andou se esforando nas aulas de nahuatl, deve sa-ber do que estou falando. O novio rapidamente con-firmou sua fama de aluno aplicado, informada por seus superiores do convento de Salamanca: J sei que atl gua, frei, mas o resto da palavra deve ser essa semente escura que o senhor cheirou.

    Agito no mercado: entre frutas, flores e produtos exticos, o forte aroma do cacahuatl pairava pelo comrcio. (Afresco, 2007)

  • BErNArdiNO dE SAHAgN PEgOU UMA dAS SEMENtES E

    APrESENtOU-A A ALONSO: iStO AQUi, PArA ESSE POVO,

    MAiS dO QUE UMA BEBidA MUitO FiNA E CArA: diNHEirO!

    H MENOS dE 30 ANOS, ANtES dA NOSSA CHEgAdA, COM

    CEM BOAS SEMENtES dEStAS SE COMPrAVA UM ESCrAVO!

    triNtA dELAS VALiAM UM PErU, riU O FrEi,

    dEVOLVENdO A SEMENtE VENdEdOrA, QUE A JUNtOU AO

    PUNHAdO QUE SEPArArA PArA PrEPArAr A BEBidA.

  • 11 Lacta 100 anos, muito prazer

    Alonso acompanhou com os olhos a cacahuatera, que se ajoelhou diante de uma espcie de mesa baixa, feita de pedra, com formato cncavo, a qual frei Bernardino acabara de chamar de metate. Com a ajuda de uma pe-dra menor, mais arredondada, a vendedora moeu as se-mentes com cuidado para que as partculas no se per-dessem, revirando-as com uma esptula, at reduzi-las a p. depois acrescentou uma pasta esbranquiada, que Alonso rapidamente reconheceu como sendo de milho, alimento do qual ele forosamente teria de aprender a gostar. tudo ali girava em torno do milho e daquele tal de cacau, que agora estava prestes a experimentar.

    Mas ainda havia mais trabalho pela frente: a vende-dora agora transferia aquela massa escura para duas vasi-lhas feitas de cabaa, ricamente desenhadas. Era preciso reconhecer que esses selvagens tinham senso artstico, pensou Alonso, sem ousar se referir nesses termos a seu superior, que parecia nutrir uma curiosidade sem fim por eles. Em uma das cabaas, viu que a mulher colocou ptalas de uma flor branca e amarela que mais tarde descobriria se chamar izquixochitl. Seu aroma era seme-lhante ao das rosas, e era o tempero preferido de frei Bernardino de Sahagn e de muitos astecas. A mulher tambm acrescentou mistura o que Alonso julgou se-rem pimentas vermelhas e verdes. Na outra cabaa que descobriu que estava sendo preparada para ele , a mu-lher triturou algumas sementes que deixaram sua mo completamente vermelha: era urucum, conhecido ali como achiote, outra novidade do Novo Mundo. Juntou outro punhado de pimentas e socou tudo, acrescentan-do gua fria.

    depois, a vendedora pegou uma vasilha vazia e lan-ou aquela beberagem, uma escura e outra vermelha como sangue, de um vaso para outro, alternadamente, o

    que aos poucos provocou o surgimento de uma densa espuma nos dois lquidos. O ritual chamou a ateno de muitos passantes, gente pobre que circulava pelo mer-cado de tlatelolco buscando conseguir favas de feijo ou tortillas em troca de algum servio. Para eles, um cacahuatl era uma bebida inacessvel, mas eles podiam, pelo menos, acompanhar a sua preparao.

    Por fim, os dois receberam suas bebidas. Alonso ob-servou como seu mestre fazia e buscou repetir seus ges-tos: pegou a cabaa com as duas mos, buscando aco-modar na esquerda uma pequena vareta. O aquauitl usado para manter a espuma dessa bebida maravilhosa. Voc vai ver que, bebendo isso, s ter fome depois da hora do ngelus. Bem-vindo ao Mxico!. dizendo isso, frei Bernardino de Sahagn, o cronista que ao longo de 30 anos de trabalho dedicado produziria mais de 2.400 p-ginas, propiciando a mais extensa viso daquela socieda-de asteca que desaparecia diante dos seus olhos, bebeu com prazer sua cumbuca, chegando a respingar um pou-co do lquido em sua barba, um detalhe de sua aparncia que chamava muita ateno naquele lugar. tomando co-ragem, Alonso sorveu um grande gole da famosa gua de cacau e, quase imediatamente, cuspiu a beberagem com espalhafato.

    Mas amargo como o diabo! E queima a boca! Por deus, como se pode gostar disso?

    Frei Bernardino riu enquanto pedia para a vendedora corrigir aquele cacahuatl, fazendo-o moda criolla, ou seja, acrescentando melado de cana mistura. desta vez, Alonso consentiu: mesmo uma tima bebida, apesar de bastante amarga.

    Ao que o frei respondeu com um tom professoral: Quem disse a voc que o diabo amargo? talvez ele pre-fira se esconder no acar....

  • uma bebidados

    deuses

    A vendedora asteca do mercado de tlatelolco era herdeira de uma relao muito especial

    que os primeiros habitantes do continente americano haviam estabelecido com dois produ-

    tos essenciais de sua culinria: o milho e o cacau. Os dois alimentos j eram apreciados h

    muito tempo, desde a poca dos olmecas, que viveram entre 1.500 e 400 a.C. na regio onde

    hoje se localiza o Mxico. Eles foram os primeiros a fazer uso desses ingredientes, sendo que

    o cacau provavelmente era consumido apenas na forma de suco de polpa, que no guarda

    nenhuma semelhana com o gosto do chocolate. Era, naquela poca, nada mais que uma

    fruta de uma rvore pequena da floresta, que oferecia um suco refrescante e esbranquiado

    conhecido como kakawa, palavra que, mais tarde, se transformaria em cacau.

    Sementes que valem ouro: mais do que matria-prima para a bebida, o cacau entre os astecas e maias era tambm moeda de troca.

  • Lacta 100 anos, muito prazer 14

    Os olmecas deixaram como marcas de sua civilizao grandes esculturas em regies do

    golfo do Mxico, mas nenhum documento escrito. Alm do milho, cultivavam feijes, v-

    rios tipos de abboras, uma grande variedade de pimentas e abacates. O cacau brotava nas

    matas mais densas e midas, com os frutos nascendo diretamente de seus galhos, sempre ao

    abrigo de rvores maiores.

    Embora o milho fosse cultivado no continente americano desde 5.000 a.C., uma impor-

    tante descoberta aconteceu em algum perodo do segundo milnio antes da era crist, pro-

    porcionando a este cereal uma relevncia que s se rivalizaria, no futuro, com a do cacau: a

    inveno do processo de nixtamalizao, que consiste em cozinh-lo com um pouco de cal,

    cinzas de madeira ou conchas, deixando os gros imersos em lquido de um dia para o outro.

    isso permitia que a casca transparente que protege o gro se desgrudasse. O resultado desse

    processo o nixtamalli (nextli = cinzas; tamalli = farinha de milho), uma massa de milho

    macia e fcil de ser trabalhada com as mos.

    Essa descoberta foi to importante que o milho se tornou o principal ingrediente da ali-

    mentao de todos os povos da Amrica Central. graas a ela, os povos americanos haviam

    desenvolvido o po, uma base de amido complementada com uma protena que podia

    ser peru, peixe, coelhos e at cachorros. Esses povos no conheciam vacas, nem porcos ou

    galinhas. Esses animais haviam chegado com os espanhis, junto dos canhes, dos cavalos,

    da cruz... e da varola.

    Com o cacau aconteceu o mesmo que o milho: foram reveladas potencialidades at en-

    to despercebidas naquele fruto. A face oculta do cacau foi provavelmente desvelada pelos

    maias, povo sucedneo aos olmecas na mesma regio onde cresciam os cacaueiros. Segundo

    conjecturam Sophie e Michael Coe no livro The True History of Chocolate, em algum mo-

    mento perdido na antiguidade pr-colombiana, certo cozinheiro maia, curioso com o gosto

    amargo e adstringente deixado na boca pelas sementes do cacau, decidiu mant-las fermen-

    tando em sua prpria polpa, talvez com o intuito de criar uma verso de chicha, a bebida

    alcolica produzida a partir da fermentao da saliva no caldo com milho. S que, em vez de

    a fermentao gerar outra bebida, as sementes absorveram parte do lquido. O prximo pas-

    so foi torrar essas sementes fermentadas at que delas exalasse um cheiro bastante marcante.

    Nessa etapa, certamente, j se estava bem prximo de se conseguir um p que pudesse ser

    modo e misturado gua.

  • 15 Lacta 100 anos, muito prazer

    Obtida a massa de cacau, o milho foi adicionado para tornar a bebida mais consistente, e as especiarias foram acrescentadas para equilibrar, com seus aromas e sabo-res, o forte amargor das sementes torradas e modas. Ao longo do tempo, os maias aprenderam a condimentar o cacau com baunilha, pimentas das mais variadas formas e intensidades de ardor, alm de algumas vezes adoa-rem a bebida com mel de abelhas.

    O arquelogo Cameron McNeil, estudando vasos maias descobertos na atual Honduras, encontrou dois deles contendo respectivamente ossos de peixe e de peru, os quais continham traos de cacau. As anlises compro-varam que o cacau era usado como tempero de alimen-tos desde 450 a.C.

    A razo para que essa mistura amarga tenha cado no gosto da populao da poca s veio a ser descoberta no sculo 20: a semente de cacau (e no sua polpa) possui alcaloides, cafena e teobromina, substncias que combi-nam perfeitamente com nossos neurorreceptores cere-brais, estimulando ondas de satisfao e os sentidos. Mas, mesmo sem saber da existncia desses componentes, os maias percebiam que aquela bebida funcionava muito bem como revigorante.

    o cacau entre os maias

    Entre os anos 250 e 900 d.C. a civilizao maia viveu seu apogeu, com diversas cidades-estado em permanente estado de guerra, disputando a hegemonia umas com as outras. Cada uma buscava erguer pirmides e cidades mais imponentes do que a outra, com templos, palcios, esculturas e murais magnficos; alm disso, criaram um calendrio lunar bastante preciso. Uma delicada cermi-ca deixou diversos testemunhos do esplendor da civiliza-o maia.

    Entre o povo maia, a bebida feita com sementes tor-radas de cacau era consumida especialmente nas festas chamadas lava-ps, oferecidas por algum pochteca, a poderosa classe dos comerciantes, para celebrar a chega-da de uma caravana. O anfitrio, tendo notificado seus parceiros, scios e clientes sobre a chegada em segurana das mercadorias vindas de lugares distantes, convidava os principais habitantes de sua vila para um jantar ceri-monial, com comidas requintadas e oferendas aos deuses do fogo e do comrcio (que, no por coincidncia, era o mesmo deus do cacau!). Nessas festas, o cacau rece-bia ateno especial e era servido em cabaas ao final da

    Esttua maia apresentando o cacau: a oferta de alimento aos deuses era um dos elementos

    tradicionais da religio maia.

  • refeio, junto com um canudo de tabaco para fumar. Uma dessas festas foi presenciada e, claro, ricamente documentada pelo atento frei Bernardino de Sahagn.

    O consumo da bebida de cacau entre os maias vem se revelando por meio das recentes pesquisas mais ancestral do que se supunha. Uma das descobertas mais notveis aconteceu em 1984, em ro Azul, na guatemala: encon-trou-se uma tumba com equipamentos para o consumo da bebida. Em algum momento do sculo 6, o corpo de um governante de meia-idade foi deixado em sua tumba junto com 14 vasos, incluindo alguns cilndricos e outros com trs ps. Foram encontrados tambm alguns anis que possuam um recipiente em seu interior, indicando que continha algum tipo de lquido. Um deles era do-tado de uma ala, onde se pde identificar o hierglifo equivalente palavra cacau. Quando esses vasos foram examinados nos laboratrios da fbrica de chocolates Hersheys, nos Estados Unidos, descobriu-se que conti-nham teobromina e cafena, duas substncias que juntas so encontradas unicamente no cacau, dentre todas as espcies de plantas conhecidas pelos primeiros america-nos. Outras pesquisas revelaram vestgios da planta em vasos datados de 1.900 a.C. na regio onde atualmente Chiapas, no Mxico.

    A prpria origem do nome chocolate, tanto pode ter sido derivada dos astecas, onde a bebida era conhe-cida como cacahuatl, quanto dos maias. Segundo o es-pecialista em cultura maia, dennis tedlock, citado no livro The True History of Chocolate, durante os banquetes e dias festivos era comum os vizinhos se convidarem para chokolaj, uma expresso que significa beber chocolate junto.

    Mas o futuro do cacau seria ainda mais grandioso do que seu passado. E com uma influncia muito mais abrangente do que poderiam supor o frei Bernardino e seu discpulo, ainda concentrados em suas cuias de ca-cahuatl no mercado de tlatelolco. Chegou a hora da pre-ciosa semente cruzar o Oceano Atlntico para conquistar o Novo Mundo. Mas, antes disso, o cacahuatl precisaria passar por uma pequena transformao: tornar-se doce.

    doce costume: a pintura de Jean troy Francois mostra o hbito recm-adquirido entre as mulheres criollas de tomar o chocolate

    quente e adoado. (gravura em metal, 1723)

    Chocolate todo dia: o consumo da bebida era observado at mesmo em plena missa, quando as senhoras de origem europeia eram servi-

    das por seus empregados. (leo sobre tela, sc. 18)

  • 17 Lacta 100 anos, muito prazer

    a europeizao do cacauA transformao aconteceu em Chiapa real hoje San Cristbal de las Casas, no Mxico , uma cidade colonial cercada por centenas de vilas habitadas por descenden-tes dos maias, que no tinham permisso para permane-cer na cidade at a noite. A provncia de Chiapas, desde a poca de domnio asteca, era uma das grandes pro-dutoras de cacau, especialmente a regio de Soconusco, prxima costa banhada pelo Oceano Pacfico na atual divisa entre o Mxico e a guatemala.

    Essa regio foi tomada dos maias pelos astecas em 1502, e seu maior interesse era justamente o acesso s plantaes de cacau de alta qualidade de Soconusco. O tributo de guerra cobrado aos maias foi estabelecido em cacau: 200 fardos anuais de sementes e 800 cabaas de chocolate para beber eram levadas at os armazns reais em tenochtitlan, capital asteca. de acordo com o cronis-ta espanhol frei toribio de Benavente, um fardo de cacau era o equivalente a 24 mil amndoas, e representava o mximo de peso que um carregador conseguia levar s costas. As civilizaes pr-colombianas no possuam nenhum tipo de veculo ou animal de trao. todas as distncias eram percorridas a p.

    O bispo de Chiapa real, segundo o relato do viajan-te Thomas gage, que andou pela regio entre 1625 e 1637 como missionrio dominicano, incomodou-se com o h-bito de algumas damas da sociedade criolla nome dado s famlias originrias da Espanha que habitavam a Nova Espanha de consumirem seu chocolate, servido quen-te e adoado em plena missa. O religioso achou aquela

    atitude desrespeitosa, embora as damas alegassem que se sentiam muito fracas para enfrentar as longas oraes e suas homilias sem a ajuda de uma xcara da bebida tra-zida por serviais. O bispo tentou primeiro exortar os fi-is a abandonarem esse mau hbito. Exasperado por ver suas queixas carem no vazio, fixou na porta da Catedral um comunicado excomungando todo aquele que co-messe ou bebesse na casa do Senhor durante os servios religiosos. gage e seu superior dominicano tentaram de-mover o bispo de sua inteno, mas foi intil. As damas criollas, revoltadas, passaram a frequentar as missas dos conventos, provocando abertamente um boicote s mi-nistradas pelo bispo que, por sua vez, passou a ameaar de excomunho aqueles que se recusassem a frequentar os ofcios religiosos realizados na Catedral.

    Pouco tempo depois, o bispo adoeceu, justamente aps beber uma xcara de chocolate trazida por uma de suas pajens. O gosto forte do chocolate, adoado moda criolla, ajudou a disfarar o veneno que foi lanado be-bida, como vingana pelas ameaas de excomunho. O episdio originou um dito popular que se espalhou ao longo do sculo 17 pela Colnia: tome cuidado com o chocolate de Chiapas.

    O episdio retrata o quanto o chocolate, bebida ame-ricana feita a base de sementes de cacau e conhecida entre os nativos como cacahuatl, j devidamente ado-ado com cana-de-acar e temperado com baunilha e pimentas, havia conquistado rapidamente os espanhis.

  • Lacta 100 anos, muito prazer 18

    Aristteles, o grande sbio, estava errado e Francesco redi, mdico da famosa Casa dos

    Mdici, j sabia como provar. Aquela era, sem dvida, uma tima ocasio para servir o to

    renomado chocolate perfumado com jasmim do gro-duque da toscana, refletiu Francesco.

    Ele estava radiante depois de conferir os resultados da experincia que h uma semana reali-

    zou em sua sala de estudos. Usando meia dzia de copos e alguns pedaos de carne, deixou

    trs deles cobertos por uma fina gaze e os outros trs descobertos. As moscas haviam pousa-

    do em todos os copos, atradas pelo mau cheiro, mas apenas nos recipientes sem cobertura

    puderam de fato tocar na carne. Como j desconfiava, o mdico percebeu que apenas nos

    pedaos de carne nos quais as moscas tocaram haviam surgido larvas, que depois, se torna-

    ram moscas. redi prosseguiu com a experincia para se certificar de sua descoberta.

    Aristteles errou! A gerao espontnea no existe, disse para si mesmo, quase com receio de

    que os outros ouvissem. Como mdico de Fernando ii, o pai do atual gro-duque da toscana,

    acompanhou as dificuldades enfrentadas por galileu galilei cientista que tambm recebia

    fLorena, 1668o mecenato dos Mdici para levar adiante suas investigaes sobre a Lua e os movimentos

    da terra. tentando convencer a si mesmo que o tipo de descoberta que acabara de realizar

    no representava nenhum risco aos dogmas da igreja, Francesco redi foi buscar a receita do

    chocolate servido mais tarde ao gro-duque Cosimo iii. guardava-a escondida dentro de

    seu Libro de Arte Coquinaria, de 1460, do inigualvel Martino de rossi, uma das primeiras

    publicaes sobre culinria a circular pela toscana. Certificou-se de que o criado, que no

    canto da sala triturava o excelente cacau venezuelano de Maracaibo, trazido especialmente

    para o gro-duque, no havia percebido sua manobra para esconder aquele pequeno papel

    contendo um segredo de Estado. Em vo, os nobres, especialmente as mulheres, cercavam-

    -no de perguntas para descobrir qual o segredo daquela receita, capaz de perfumar todo o

    ambiente com uma inebriante mistura de jasmim e chocolate. redi tinha ordens expressas

    do gluto Cosimo iii, que finalmente aceitou comear um rigoroso regime prescrito por ele,

    de no revelar a ningum a sua receita. Sim, apesar de todos se referirem ao chocolate

    como uma inveno do gro-duque (e realmente ningum era capaz de beb-lo em maiores

    quantidades do que Cosimo), redi sentia orgulho de sua criao.

  • 19 Lacta 100 anos, muito prazer

    Qual era o segredo, afinal? Alm da tima procedncia das sementes, o truque consistia em

    lanar ptalas de jasmim, como delicadas lminas, por cima do cacau triturado, deixando-as

    em contato por um dia inteiro. depois, misturava-se o jasmim ao cacau, que novamente era

    espalhado pelo recipiente e recebia outra cobertura de ptalas perfumadas. No outro dia,

    uma nova camada. Esse era um segredo cobiado por muitas casas de nobres, alguns dos

    quais certamente haviam desperdiado grandes quantidades das caras sementes de cacau

    tentando adicionar gua de jasmim mistura. Ningum podia imaginar que aquele aroma

    era produzido pela prpria flor.

    H dez dias os criados de Francesco redi cuidavam dessa pasta que aromatizava o seu con-

    fortvel palacete florentino, ajudando a disfarar o mau cheiro do experimento das moscas

    na carne, encerrado naquela manh. Sob seu comando, um servial despejou a ltima par-

    cela de cacau, quase 5 quilos, em um grande tacho de estanho, acrescentando a ela 3,5 quilos

    de acar bem peneirado.

    residncia de francesco rediEnquanto o criado misturava aquela massa rescendente, o prprio redi separou as pores

    de especiarias: um generoso punhado de sementes de baunilha, outro punhado um pouco

    maior de canela-da-china e duas pores pequenas de mbar-cinzento. Era preciso tomar

    cuidado para no exagerar na dose deste ltimo condimento, mediante o risco de colocar

    tudo a perder. Muito utilizado como remdio desde a Antiguidade, o mbar era encontra-

    do sobre a superfcie do mar e, durante muito tempo, acreditou-se que fosse produzido

    por algum tipo de rvore do litoral. Apenas com o surgimento dos primeiros navios baleei-

    ros, quando foram encontradas as mesmas bolotas de cera compacta no intestino daqueles

    animais, se descobriu que o mbar era produzido pelos cachalotes, espcie intensamente

    perseguida por sua gordura, naquela poca empregada na iluminao pblica das cidades.

    Quanto mais escuro fosse o mbar, mais tempo havia flutuado no mar, e mais perfumado era.

    Seu aroma lembrava o das violetas. Na receita segundo redi comprovou depois de muitas

    tentativas surtia como um intensificador do aroma do jasmim e do chocolate, se usado

    com parcimnia.

  • Lacta 100 anos, muito prazer 20

    O passo seguinte era lanar a mistura na chapa me-tlica aquecida que mandou fazer inspirada nas metates de pedra usadas pelos habitantes das ndias Ocidentais. Ali residia, ainda, o ltimo perigo na preparao do ali-mento: a chapa no podia estar muito quente, para que todo aquele aroma perseguido h dias no se perdesse na queima das sementes.

    Sim, aquele foi um grande dia na sua vida, digno de ser comemorado com um timo chocolate, pensou redi. Aristteles estava errado e ningum antes do italiano havia pensado em, simplesmente, testar a hiptese de gerao espontnea. Que grande bobagem era aquela, repetida por sculos!. Precisou escrever detalhadamen-te a experincia antes de envi-la aos seus colegas da Academia de Cincias. redi sentia-se to inspirado que ficou tentado a acrescentar algum novo componente ao consagrado chocolate do gro-duque. Ser que aquele inveterado choclatra perceberia a diferena se ele acres-centasse noz-moscada? Ou um pouco de almscar, outro produto aromtico bastante extico, extrado dos bois almiscarados do Himalaia? Ou, talvez, algumas pimen-tas, como se fazia no novo continente? decididamente, aquela era uma poca propcia s inovaes. Um verda-deiro renascimento...

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    Voltaire (1694-1778): escritor e filsofo, com mais de 70 obras escritas em gneros variados. Ele era um entusiasta das bebidas exticas que vinham das colnias. Anotaes domsticas feitas durante seus 18 anos de exlio voluntrio em Ferney, cidade sua prxima a Genebra, revelam que Voltaire comprou chocolate 24 vezes, caf 20 vezes e ch 8. Pelas ma-nhs, sua bebida preferida era o chocolate quente, o mesmo desjejum preferido pela nobreza que ele tanto combatia.

  • 21 Lacta 100 anos, muito prazer

    as barreiras entre

    a amrica e a europaFrancesco redi enfrentou muito ceticismo de seus cole-gas cientistas a partir de sua experincia para provar que a hiptese de Aristteles, a abiognese, estava errada. O italiano entrou para a Histria por essa experincia, feita em 1668, que balanava os alicerces do conhecimento cientfico da poca, inteiramente moldado segundo as concepes do filsofo grego. Mas, na poca, redi era mais conhecido por ser um refinado gourmet, que encar-nava como poucos o esprito curioso do renascimento.

    redi encantava-se com o panorama gastronmi-co descortinado pela poca das navegaes, tais como patas de tordo tostadas em chamas de vela de cera, ca-beas de narceja assadas na grelha, ostras cruas, chifres tenros de gamo, patas de urso, ninhos de andorinha da Cochinchina e outras iguarias. A gastronomia aguava seu esprito curioso. Certa vez, investigando o formato do crebro de um gamo, decidiu testar o seu sabor, fri-tando-o em um pedao de toucinho, apesar do escnda-lo provocado entre a criadagem. Uma antiga crena de que miolos daquele animal eram terrveis para a sade humana foi lembrada ao nobre por seu criado, mas redi fez pouco caso do mito. Foi uma experincia segura: miolos de gamo so muito saborosos e saudveis, bem melhor que os miolos de porco ou de vaca, revelou, pou-co tempo depois, em carta a amigos. graas ao prestgio gastronmico e cientfico de redi, em pouco tempo toda a corte dos Mdici estava enfeitiada por essas e outras iguarias. E uma das mais famosas seria justamente o cho-colate com jasmim.

    Menos de dois sculos separam o desembarque do primeiro carregamento de cacau em solo europeu e das iguarias feitas com chocolate nos pncaros do experimen-talismo gastronmico como os realizados na Corte dos Mdici, em Florena, e nos palcios dos Luses na Frana. Os primeiros lotes de cacau chegaram aos portos da Espanha em 1558, e j vieram com sua inseparvel em-bora recente companhia: o acar. Originrio da ndia, o produto da cana chegou ao Oriente Mdio no sculo 6. de l, os rabes o levaram para o Mediterrneo, de onde, pelas ilhas de Chipre, Creta e Siclia, alcanou a Espanha. O acar era uma mercadoria relativamente cara at me-ados do sculo 15, quando passou a ser cultivado com sucesso nas ilhas da Madeira e Canrias. introduzido no Brasil e no Caribe cem anos mais tarde, tornou-se um dos

    Napoleo Bonaparte (1769-1821): o poltico e estra-tegista militar no dispensava uma xcara de choco-late antes de qualquer batalha. Ele acreditava que o chocolate era um poderoso estimulante da inte-ligncia e disseminou seu consumo entre as tropas francesas. Por outro lado, o Bloqueio Continental de-cretado por ele em 1806 para debilitar a economia da Inglaterra privou, durante alguns anos, a entrada de chocolate no continente europeu, para desespero de muitos choclatras.

  • Lacta 100 anos, muito prazer 22

    produtos mais cobiados e presentes na culinria euro-peia. E realizou seu casamento perfeito com o cacau.

    Mas antes de se tornar a bebida preferida da nobreza, junto ao vinho, o chocolate precisou passar pelo desafio de ser aprovado por dois grandes grupos: os mdicos e os religiosos.

    Na poca da chegada do cacau na Europa, a medi-cina ainda seguia os preceitos da teoria dos Humores, formulada por Hipcrates na grcia Antiga e aperfeio-ada, posteriormente, por galeno. Essa teoria dividia as pessoas em quatro temperamentos bsicos: sanguneo, colrico, melanclico e fleumtico. Assim como as pes-soas, os alimentos tambm recebiam uma classificao: quente e mido, quente e seco, frio e seco ou frio e mi-do. Acreditava-se, desse modo, que os humores eram regulados pela alimentao das pessoas e, por isso, cada alimento poderia trazer consequncias desejveis ou indesejveis.

    A insero do chocolate no cardpio europeu cau-sou confuso entre os mdicos. As primeiras avaliaes o consideraram frio, talvez influenciados pela forma como a bebida era ingerida originariamente entre os astecas, sem aquecimento ao contrrio dos maias, que habitavam o litoral mexicano e preferiam a bebida quente. O mais renomado defensor dessa corrente foi Francisco Hernndez, mdico de Felipe ii, rei da Espanha e de Portugal, que esteve nas Amricas em 1570. Para ele, sendo o chocolate frio e mido, deveria ser aqueci-do por meio de especiarias quentes, como pimentas e baunilha.

    Essa interpretao perdurou at que o mdico fran-cs daniel duncan, em 1703, escrevesse um grande trata-do sobre bebidas alcolicas e no alcolicas, publicado pela primeira vez na Frana. duncan, considerado uma autoridade no assunto, categorizou o chocolate como um alimento quente e, portanto, contraindicado para temperamentos sanguneos e colricos, por deix-los excessivamente inflamveis. Bebidos com moderao, o caf, o ch e o chocolate eram saudveis, mas seu abuso deixaria o sangue muito fino e quente. Para o mdico, das trs bebidas exticas introduzidas na Europa a partir do sculo 16, o caf era o mais perigoso, j que alm de quente era seco, e seu abuso poderia provocar ictercia.

    Antonio Lavedn, cirurgio do exrcito espanhol, tambm se debruou no estudo sobre as trs novas be-bidas que, recentemente, haviam aportado na Europa, publicando um tratado sobre o caf, o ch e o chocolate,

    em 1796. Para ele, sendo o chocolate quente e mido, era especialmente indicado para fleumticos, e surtia efeitos no retardamento do envelhecimento e contra a tuberculose.

    J o escritor gastronmico Louis Lmery, em seu li-vro de 1702, Trait des Aliments, sentenciava: O choco-late revigorante e deixa as pessoas mais fortes. Ajuda a digesto, acalma os humores cortantes que atacam os pulmes, controla os vapores emanados pela ingesto do vinho, estimula o desejo sexual e combate a malignidade dos humores.

    A nova bebida chegava para confundir as classificaes. Um certo dr. giovanni Batista Felici, mdico da corte tos-cana, considerava o chocolate um encurtador de vida. Chocolate, para ele, no era frio, mas quente era um engano tomar a bebida fria e acrescentar a ela condi-mentos, como canela, baunilha, pimentas, cravos, mbar e urucum para deix-la mais quente. Conheo algumas pessoas srias e taciturnas que, sob efeito dessa bebida, se tornam tagarelas, perdem o sono e se tornam impulsivas, outras ficam zangadas e gritam. Em crianas provoca tama-nha agitao que no conseguem ficar quietas ou sentadas em um s lugar, escreveu em 1728.

    O que Felici dizia sobre a hiperatividade de crianas encontraria eco em Joseph Barreti, que em sua obra de 1768, An Account of the Manners and Customs of Italy, conta que em seu pas as crianas eram proibidas de beber lquidos quentes pela manh, pois isso poderia estragar os dentes e enfraquecer sua constituio fsica.

    A medicina galnica s perdeu importncia no sculo 17, quando o mdico ingls William Harvey descobriu o mecanismo da circulao sangunea no corpo humano e seu sistema de bombeamento feito pelo corao.

    Com tantas restries, apenas a partir do final do s-culo 19 os choclatras se sentiram de fato liberados para consumirem a quantidade que quisessem das bebidas exticas. Em 1862, com a teoria galnica j em desuso, um escritor francs, Arthur Mangin, afirmava que nin-gum acreditava mais nos poderes teraputicos atribu-dos ao chocolate. Sorte do chocolate que, assim, saa da esfera da medicina e alava a categoria dos alimentos que podiam ser consumidos pelo mero prazer.

    Bebida onipresente: o chocolate como bebida, com a adio de acar e espe-ciarias, ganha a mesa do europeu e causa polmica entre mdicos e religiosos. (Anncio da Cadburry Cocoa, sc. 19)

  • a poLmicado jejum

    Permisso concedida: o consumo da bebida de chocolate no perodo da Quaresma provocou celeuma entre os religiosos.

    O primeiro a aprov-la foi o Papa gregrio xiii (sc. 18).

    A nova bebida tambm caiu no gosto dos religiosos, e as ordens eclesisticas em maior contato com as terras descobertas naquela poca como a dos jesutas, dos dominicanos e dos franciscanos logo criaram suas pr-prias receitas de chocolate, to certas que estavam do fornecimento de sementes da iguaria ao velho mundo. O cacau chegava em quantidades cada vez maiores nos portos da Espanha.

    durante o sculo 18, os holandeses disputavam com os espanhis a supremacia dos mares. No primeiro quar-to desse sculo, todo o transporte de cacau at a Espanha e demais pases da Europa era feito por barcos holande-ses. durante o reinado de Carlos iii, entre 1759 e 1798, cerca de 5,4 toneladas de chocolate foram consumidas apenas em Madri, capital do pas.

    Nessa poca, as sementes mais valorizadas vinham da regio de Mojos, na Amaznia boliviana, por sua fra-grncia e ausncia de amargor; de Soconusco e tabasco, tradicionais zonas de plantio no Mxico desde os tem-pos maias; e da costa caribenha da Venezuela. O cacau proveniente de guayaquil, no Equador, e da Martinica, eram considerados de qualidade inferior, por causa do amargor, e precisavam ser combinados a grandes doses de acar. Estes ltimos eram representantes do gnero forastero, nativo da Amrica do Sul, e em decorrncia da poltica liberal de Carlos iii, que autorizou o livre comr-cio entre os vice-reinados do Peru e do Mxico, inundou a Amrica Central.

    O cacau forastero, nativo das florestas tropicais mi-das localizadas entre os rios Amazonas e Orenoco, surgiu na Europa a partir do sculo 17, vindo principalmente do Equador. Quando os espanhis conquistaram as terras prximas Amaznia, no norte da Amrica do Sul, en-contraram diversas rvores de um tipo de cacau nativo na regio, do qual os ndios faziam uso apenas da polpa.

    Em 1635 j havia plantaes de cacau forastero nas guianas e no Equador, que passaram a suprir a deman-da pelo produto no vice-reinado do Mxico. Entre 1784 e 1821, 41% do cacau consumido na Nova Espanha vinha de guayaquil. Era conhecido como cacau dos pobres, pois as elites criollas desprezavam esse produto mais barato, porm mais amargo que o nobre cacau produzido em Soconusco ou na Venezuela, ambos do gnero criollo.

    Sendo uma rvore mais resistente e mais produti-va que o gnero criollo, o forastero logo ganhou a pre-ferncia dos produtores, apesar de suas sementes mais amargas.

  • 25 Lacta 100 anos, muito prazer

    Com o aumento da oferta de cacau graas en-trada do gnero forastero , e o intenso consumo de chocolate entre as ordens religiosas e entre os fiis, uma questo teolgica surgiu: o chocolate seria uma bebida ou um alimento? As implicaes dessa pergunta inocen-te afetavam diretamente a vida de milhares de adeptos da mania choclatra, pois mediante o direito cannico vigente na poca, a Santa Missa deveria vir precedida de um jejum, que se iniciava meia-noite e durava at o fim do ofcio. E nos prolongados 40 dias de jejum da Quaresma, ele poderia ser consumido? A questo rendeu discusses interminveis, geralmente opondo dominica-nos que defendiam o chocolate como um alimento e, portanto, proibido para jejuns e os jesutas, para os quais o chocolate era uma bebida como o vinho, ou seja, seu consumo no quebraria o jejum.

    A polmica, alimentada ao longo dos sculos 16 e 17, dividiu a opinio de bispos, de incio no Mxico e, depois, nos pases europeus, principalmente Espanha e itlia, onde a mania choclatra se difundia. O primeiro pontfi-ce a opinar sobre o assunto, em favor do chocolate, foi o Papa gregrio xiii. A questo ainda voltou a ser debatida, exigindo o posicionamento de outros seis papas. Para a felicidade da corrente choclatra, dominante no clero, o energtico chocolate jamais foi considerado um alimen-to capaz de quebrar um rigoroso jejum, j que era uma bebida.

    Os jesutas participaram intensamente, tanto das polmicas sobre a natureza do chocolate quanto do co-mrcio do produto, como se depreende deste relato do duque de Saint-Simon, da corte pr-jesuta de Lus xiV, em cujas festas o chocolate era servido pelo menos trs vezes por semana: no ano de 1701, uma flotilha espanho-la trouxe seu carregamento anual das ndias Ocidentais. Em um dos barcos foram descobertos oito grandes en-gradados identificados desta forma: Chocolate para Sua reverncia, o Superior da Companhia de Jesus. Quando os carregadores tentaram transportar os engradados, perceberam que eram muito pesados, desse modo, as caixas suspeitas foram levadas at um depsito em Cdiz. L, quando os inspetores alfandegrios decidiram abrir os pacotes, encontraram grandes barras de chocolate empilhadas, extremamente pesadas: por baixo da cama-da de chocolate, havia barras de ouro macio. Os jesu-tas, segundo Saint-Simon, negaram qualquer responsa-bilidade pelo contrabando, at porque todo o ouro que chegasse das colnias era, por lei, propriedade do rei. O

    nobre metal foi direto para os cofres reais, e a cobertura de chocolate foi para aqueles que descobriram a fraude; os jesutas, por sua vez, nesse episdio acabaram ficando sem nada. Vencidas as resistncias eclesisticas, a bebida teve uma tima recepo no norte da itlia, e no sculo 18 um grande nmero de cioccolatieri surgiu em Veneza, Florena, Perugia e turim.

    A fabricao do chocolate no sofreu nenhuma alte-rao significativa quando foi iniciada na Europa, a no ser pela introduo do molinillo, um agitador criado para substituir o arriscado processo de aerao asteca que, como j vimos, consistia em lanar a bebida de uma vasilha para outra na altura dos ombros. O novo equipa-mento era formado por um grande cabo arredondado, feito de madeira, que possua anis soltos em formato de concha, os quais, por sua vez, giravam sob uma haste fric-cionada pelas palmas das mos do encarregado de pro-duzir a espuma do chocolate. Produzida a espuma com o molinillo, transferia-se o lquido para uma chocolateira, aparato que se tornou quase obrigatrio nas casas aristo-crticas a partir do sculo 18.

    Alm da introduo do molinillo, provavelmente de-senvolvido pelos primeiros habitantes de Nova Espanha, a nica alterao no jeito de se fazer o chocolate foi a criao de um moedor de sementes de cacau enquanto estas eram aquecidas (funo antes exercida pela metate mexicana), permitindo que o operador trabalhasse de p, e no ajoelhado, como ainda se fazia do outro lado do Oceano Atlntico. Essa espcie de metate elevada, que nada mais era do que uma mesa cncava com espao em sua parte inferior para a colocao de um braseiro, foi criada por um francs chamado dubuisson em 1732, mas sua propagao se daria lentamente. tanto que, no mes-mo sculo, Marcos Antonio Orellana, erudito advogado de Valncia, proclamava em um poema que revela o es-tado de adorao que se formava no velho continente diante da nova bebida:

    , divino chocolate!Que ajoelhado te moem,Mos postas te batem,E olhos aos cus te bebem!

    De joelhos, mos postas e com os olhos

    voltados aos cus: assim estavam os

    europeus diante da novidade americana.

  • Lacta 100 anos, muito prazer 26

    as bebidas revoLucionriasna vida cultural da nobreza e da burguesia ascendente do imprio Britnico. As mais afamadas eram a Whites Chocolate House, fundada em 1693 pelo italiano Frances White, e a Cocoa tree. O primeiro estabelecimento era frequentado por polticos do Partido Conservador; o ou-tro tornou-se reduto dos trabalhistas.

    Pierre Masson, proprietrio de um caf na cidade de Paris na poca de expanso desses estabelecimentos pblicos, escreveu em 1705 uma interessante obra que nos permite saber como o chocolate era servido nesse comeo de sculo. Em seu livro, Le Parfait Limonadier, ou La Manire de Prparer le Th, le Caf, le Chocolate et Autres Liqueurs Chaudes et Froides, Masson ensinava que, para fazer quatro copos de chocolate, era preciso, primei-ro, aquecer quatro copos de gua em uma chocolateira.

    Pegue um quarto de libra [pouco mais de 100 gramas] de chocolate e moa-o o mais fino possvel em uma folha de papel. Se voc preferir o chocolate adoado, adicione um quarto de libra de acar modo ao chocolate. Quando a gua ferver, coloque a mistura na chocolateira e mis-ture-a bem com a vareta (para provocar espuma). Volte ao fogo e quando subir, antes de ferver completamente, tire-o e bata-o bem com a vareta at deix-lo espuman-te e sirva cada um dos copos. Ele sugeria que o mesmo procedimento poderia ser feito com leite, respeitando a mesma proporo da gua, no entanto, indicava que tal escolha seria uma exceo. Por fim, Masson revela a com-posio de um tpico chocolate espanhol daquela poca: cacau, baunilha, cravo, canela e acar.

    Entre os sculos 17 e 18, o chocolate era visto como uma bebida aristocrtica, ligada nobreza, enquan-to o caf estava associado ao dinamismo da burguesia. Alm disso, o chocolate, do mesmo modo que o ch, era um produto mais caro, enquanto o caf era mais aces-svel. Assim, por um lado, criou-se a imagem do nobre indulgente bebendo seu chocolate em ricos aparelhos de porcelana; e por outro lado, o agitado burgus, que tinha sua disposio renovada pelo caf. O historiador alemo Wolfgang Schivelbusch caracterizou, em seu livro

    Carl von Linn (1741-1783), naturalista sueco conhecido entre ns como Lineu, foi o criador da moderna nomen-clatura cientfica das plantas e animais. Quando classifi-cou a nova mania dos aristocratas, cuidou de associ-la ao papel central que o cacau cumpria na cosmologia as-teca, segundo a qual era considerado um alimento tra-zido aos humanos diretamente pelo deus Quetzacoatl. Lineu decidiu batizar a nova espcie de Theobroma cacao. A palavra Theobroma, de origem grega, significa

    comida dos deuses, fazendo um elo lingustico entre a Antiguidade Clssica e o longnquo vocbulo kakaw, que se refere primeira representao conhecida do fruto, expressa na lngua dos olmecas.

    A nova bebida, devidamente batizada e autorizada por mdicos e papas, estava pronta para ganhar novos consumidores. E eles surgiram em todas as cidades eu-ropeias, que rapidamente viram proliferar cafs e cho-colaterias, como um sinal da ampliao de seu consumo. Esses locais se transformaram, primeiro, em agitados pontos de encontro, nos quais os cidados comentavam os ltimos acontecimentos, faziam negcios e se lana-vam a requintadas experincias gastronmicas envolven-do as novas bebidas exticas: o ch, vindo da sia; o caf, recm-chegado da frica; e o chocolate, desembar-cado das novas terras da Amrica.

    Em pouco tempo, esses primeiros locais pblicos de encontros se transformaram em centros de agitao po-ltica, tanto que houve tentativas do poder monrquico ingls de proibi-los. A iniciativa de Charles ii (1630-1685), que acusava esses estabelecimentos de terem se torna-do espaos de perturbao contra a ordem pblica, no obteve xito, e os prprios permaneceram abertos e prosperaram, arrebatando cada vez mais frequentadores. Nessa poca, a cidade de Londres chegou a ter dois mil estabelecimentos registrados.

    Ao contrrio dos cafs londrinos, frequentado apenas por homens, nas chocolaterias tambm era permitida a entrada de mulheres. Msica, jogos e flertes ofereciam aos cidados a oportunidade de experimentar um pouco do ambiente dissoluto das tavernas populares, locais que as classes elevadas no frequentavam. As casas de caf e chocolate de Londres desempenhavam um papel fulcral

    Bebida para poucos: entre os sculos 17 e 18 o chocolate era visto como uma bebida da aristocracia, consumido em refinadas confeitarias. (gravura em ma-deira, c. 1850)

  • PEgUE UM QUArtO dE LiBrA [POUCO MAiS dE 100 grAMAS] dE

    CHOCOLAtE E MOA-O O MAiS FiNO POSSVEL EM UMA FOLHA dE

    PAPEL. SE VOC PrEFErir O CHOCOLAtE AdOAdO, AdiCiONE UM

    QUArtO dE LiBrA dE ACAr MOdO AO CHOCOLAtE. QUANdO

    A gUA FErVEr, COLOQUE A MiStUrA NA CHOCOLAtEirA E MiS-

    tUrE-A BEM COM A VArEtA (PArA PrOVOCAr ESPUMA). VOLtE

    AO FOgO E QUANdO SUBir, ANtES dE FErVEr

    COMPLEtAMENtE, tirE-O E BAtA-O BEM COM

    VArEtA At dEix-LO ESPUMANtE E SirVA CAdA

    UM dOS COPOS.

  • Lacta 100 anos, muito prazer 28

    Sabores do Paraso [Tastes of Paradise], o chocolate como aristocrtico e consumido mais no sul da Europa pelos catlicos, enquanto o caf era um produto mais volta-do classe mdia e era consumido principalmente por protestantes do centro e norte da Europa. O caf d mente o que foi tirado dela pelo corpo; o chocolate faz o contrrio, conjecturava Schivelbusch.

    O grande msico alemo Johann Sebastian Bach (1685-1750), que era luterano, escreveu uma cantata de-dicada ao caf, e no ao chocolate bebida considerada

    catlica, principalmente por ter cado na preferncia do alto clero catlico. tambm entre os filsofos franceses do iluminismo, o caf era a bebida preferida e se colocava em oposio ao chocolate, associado naquele momen-to hierarquia catlica (e, acima de tudo, aos jesutas) e aos opositores do iluminismo. O ch permaneceu mais restrito ao consumo nas ilhas britnicas, sem atrair am-plo pblico da maneira que o fez as outras duas bebidas

    estrangeiras.Para reforar a imagem aristocrtica do chocolate, o

    escritor britnico mais lido de sua poca, Charles dickens, em sua novela Um Conto de Duas Cidades [A Tale of Two Cities], lanado em 1859, imortalizou uma irnica descri-o do elaborado ritual que as classes abastadas realiza-vam todos os dias para consumirem suas requintadas receitas de chocolate, sempre cercados por serviais.

    A alguns desses novos consumidores da bebida, principalmente queles mais influenciados pelo clima poltico liberal e pelo combate ao Absolutismo que se disseminava nos cafs e chocolaterias das grandes cida-des, tambm no passavam despercebidas as marcas do trabalho escravo impressas nos dois principais produtos que chegavam do Novo Mundo, o cacau e o acar.

    da mesma forma que as lavouras de cana-de-acar, o cultivo de cacau nos trpicos dependia quase exclu-sivamente do trabalho escravo de milhes de africanos levados ao Novo Mundo. Em 1720, o frei Jean-Baptiste Labat, missionrio dominicano, se referiu a esse sinis-tro aspecto da produo cacaueira, fazendo as contas:

    Vinte escravos podem plantar e cuidar de 50 mil rvores de cacau. Essas 50 mil rvores, se bem cuidadas, daro cem mil libras de amndoas que sero vendidas a 37 fran-cos franceses, soma mais que aprecivel se pensarmos que ir inteiramente para o bolso do proprietrio, graas ao baixssimo custo dos escravos que cuidam das rvores.

    Essa sua nica despesa. Uma plantao de cacau uma verdadeira mina de ouro.

    Enquanto isso, os operrios das primeiras indstrias, que cumpriam longas jornadas de trabalho, s tinham acesso s bebidas alcolicas (vinhos baratos ao sul e cer-veja barata ao norte do continente europeu), alm de gim. O caf s entrou no cotidiano fabril, funcionando como um lquido estimulante oferecido aos trabalha-dores, a partir do sculo 19. O consumo de chocolate era incentivado por empresrios ingleses ligados sei-ta quaker (seita crist surgida em meados do sculo 17 na inglaterra), os quais eram contrrios ao consumo de bebidas alcolicas. richard Cadbury, por exemplo, que criou um imprio ligado ao chocolate a partir de 1824, incentivava seus funcionrios a consumirem o produto nos refeitrios que mandou construir em suas fbricas, as primeiras a terem esse privilgio.

    Nesse perodo de expanso do consumo na Europa, o pior momento para os choclatras franceses incluindo o mais destacado dentre eles, Napoleo Bonaparte , foi o bloqueio econmico inglaterra, decretado em 1806 pelo prprio governante francs. tal medida elevou os preos do chocolate e do acar a cifras proibitivas. grimod de La reynire anotou em 1808: H alguns cho-colates em Paris que contm tudo, exceto cacau. Muitas substncias so misturadas, como acar mascavo, fari-nha, fcula....

    Mesmo sendo fruto do trabalho escravo assim como o caf e o ch e com sua imagem ligada ao Antigo regime, o chocolate, servido lquido em choco-laterias, ou em barras para serem dissolvidas com gua quente nas residncias, conquistou definitivamente o paladar dos consumidores do Velho Mundo, que haviam aprendido a prepar-lo das mais variadas formas. Mas havia, ainda, uma barreira a ser vencida, e no era de ordem religiosa, medicinal ou social. Um obstculo que parecia incontornvel, por dizer respeito prpria natu-reza do produto: o chocolate, tal como era consumido at as primeiras dcadas do sculo 19, era uma bebida que causava intolerncia a muitos organismos, devido grande quantidade de gordura que as sementes de cacau naturalmente possuam. Parecia ser uma limitao natu-ral do chocolate que, definitivamente, no era para mui-tos seja por no ser barato ou, caso o cliente pudesse compr-lo, por no ser de fcil digesto.

  • 29 Lacta 100 anos, muito prazer

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    a

    Rainha Maria Antonieta (1755-1793): esposa de Lus XVI, decapitada pela Revoluo Francesa, era uma adepta entusiasta do chocolate e possua um cho-colateiro pessoal, o chocolateiro da rainha, trazido da ustria, que lhe preparava uma bebida exclusiva, com p de orqudeas misturado gua de flor de laranjeiras ou ao leite com amndoas.

    Lus XV (1710-1774): Bisneto do rei Sol, represen-tante mximo do Absolutismo, no era um adep-to do chocolate, mas suas duas amantes favoritas, Madame de Pompadour e Madame Du Barry, eram entusiastas da bebida. Pompadour usava uma frmula com mbar-cinzento, que tinha supos-tas propriedades afrodisacas, para estimular o ar-dor de Sua Majestade. Du Barry tambm apostava nas propriedades estimulantes do chocolate, para o rei e para seus outros amantes.

  • Lacta 100 anos, muito prazer 30

    As trs pancadas firmes na porta de sua casa fizeram com que Coenraad Johannes Van Houten

    despertasse assustado. Passou a noite sem dormir e logo pela manh enviou um mensageiro

    at a casa do pai, pedindo que este viesse rapidamente at ele. Coenraad era um jovem de 27

    anos, e desde que se entendia por gente estava cercado do cheiro das sementes de cacau. Seu

    pai, Casparus, conseguiu com muito esforo se tornar proprietrio de um moinho, um dos

    tantos que faziam parte da paisagem dos Pases Baixos. Nele, desde seus 14 anos, o pequeno

    Coenraad trabalhava no negcio da famlia.

    Aos poucos, as sementes de cacau, que chegavam em quantidades cada vez maiores no porto

    de roterdam, prximo da casa de Coenraad, se tornaram o principal produto fabricado pelo

    moinho da famlia. Mais do que isso: ofereceram um desafio ao imaginativo Casparus que,

    naquele ano de 1828, depois de experimentar diversos formatos e gastar uma pequena fortu-

    na em usinagem, patenteou uma engenhoca metlica. A inveno ocupava a parte principal

    do salo onde os tambores com o cacau modo eram armazenados para serem divididos em

    fardos menores.

    A mquina inventada por Casparus e que vinha sendo testada exaustivamente por seu filho

    era uma poderosa prensa hidrulica constituda por quatro nveis de presso, que conseguia

    esmagar as sementes de cacau de maneira to intensa que da massa passava a escorrer um

    lquido viscoso e denso, sem dvida uma parte da gordura. graas ajuda de um amigo letra-

    do, Coenraad conseguiu calcular a porcentagem de gordura do cacau que restava no fundo

    do recipiente, e era espantoso: o teor mdio de gordura diminuiu de 53% para cerca de 28%.

    isso seu pai j sabia, e foi essa a principal razo por meio da qual o rei William iV (1765-1837)

    lhe concedeu uma patente por dez anos pelo desenvolvimento da mquina. Mas Coenraad

    ainda no estava satisfeito com a inveno, mesmo depois de ter descoberto que a tal man-

    teiga extrada da mquina era ainda mais valorizada que o prprio cacau por fabricantes de

    produtos para a pele. Uma parte dela agora era vendida separadamente para vrias boticas,

    enquanto outra voltava massa os Van Houten haviam descoberto que agregar uma pe-

    quena quantidade de gordura de cacau ajudava a deixar a massa mais macia.

    amsterdam, pases baixos, 1828

  • 31 Lacta 100 anos, muito prazer

    Mas Coenraad tinha a sensao de que ainda faltava algo naquele processo iniciado pelo pai, e desconfiava que, finalmente, havia descoberto o que era.

    Abriu a porta para seu pai ansioso para mostrar-lhe sua mais nova experincia, e levou-o rapidamente ao lu-gar onde deixou descansando a massa de cacau, depois de extirpada de boa parte de sua manteiga. Casparus, que nessa poca estava com 58 anos, sentia orgulho de ver como seu filho, crescido ali no meio do trabalho e sem nenhuma oportunidade para estudar, se mostrava to engenhoso. Puxou a criatividade do pai, gostava de dizer Arnoldina, sua mulher, lembrando que foi ele quem inventou aquela prensa capaz de fazer dois produtos de um s, ainda sendo capaz de melhorar o primeiro. de fato, o lucrativo comrcio da manteiga de cacau apre-sentava-se para Casparus como um inesperado e salutar efeito secundrio de sua inveno. Mas o que ser que havia deixado seu filho to excitado naquela manh?

    Coenraad Van Houten acrescentou um pouco da gordura extrada massa, como j faziam, e retirou de um vidro cuidadosamente selado um p branco que foi acrescentando ao cacau modo. Este tornou-se uma mas-sa oleosa e brilhante graas ao retorno parcial da mantei-ga. Pai e filho observaram como, aos poucos, a massa de cacau tambm escurecia, ficando quase preta depois que Coenraad verteu com cuidado o p branco massa. isso aqui potssio, explicou, afirmando que j experimen-tou a mistura com carbonato de sdio e tambm fun-cionou. diante do olhar desconfiado do pai, que sendo um inventor prtico no entendia nada de reaes qu-micas, Coenraad lavou suas mos e, cuidadosamente, pe-gou uma parte da massa com os dedos, colocando-a nas mos grossas de seu pai. Veja, pai, como ela fica macia.

    Mas a maciez no era o principal efeito daquele pro-cesso, que mais tarde ficou conhecido como dutching, em homenagem nacionalidade de seu inventor [Dutch, em ingls, significa holands]: sendo o potssio (ou o car-bonato de clcio) um poderoso lcali, ele reagia com as sementes de cacau, repletas de acidez, deixando a mistu-ra muito menos cida. E isso seu pai, maravilhado, pde perceber ao colocar aquela massa de cacau na boca: se antes ela se mostrava muito amarga e adstringente, agora parecia bem mais adocicada.

    Agora, o melhor de tudo, exclamou o filho ao tirar aquela massa das mos de seu pai e lan-la na gua j aquecida da chocolateira da famlia Van Houten. Sem demonstrar nenhum esforo, contando apenas com a

    de pai para filho: a famlia Van Houten, que no sculo 19 tinha um moinho que produzia cacau em p, tornou-se posteriormente uma grande produtora de chocolate. (Propaganda, c.1890)

    Famlia inventora: aps ter descoberto a manteiga de cacau, Coenraad van Houten adicionou potssio massa de chocolate. graas a ele foi fundado o mtodo dutching, responsvel por ame-nizar a acidez das sementes de cacau no chocolate.

  • Lacta 100 anos, muito prazer 32

    ajuda de uma colher, o jovem cientista mostrou ao pai que, agora, o chocolate em p se dissolvia facilmente na gua. isso tambm vale para o leite, como a mame gos-ta de tomar o seu chocolate. No incrvel?

    Van Houten, o pai, precisou se sentar no banco mais prximo, com o corao acelerado. Vislumbrou rapida-mente caixas e caixas de chocolate em p da marca Van Houten, que seriam disputadas a preo de ouro pelos fre-gueses. Sim, graas ao aprimoramento qumico que seu filho agregava separao fsica da gordura inventada por ele, o mundo do chocolate no seria mais o mesmo. O caminho parecia muito claro e promissor.

    Pai e filho brindaram com seus copos cheios de cho-colate. Aquele processo deixava a bebida muito mais sa-borosa. Sabiam que a ltima fronteira estava aberta e eles seriam os primeiros a desbrav-la. interromperam seus sonhos com a entrada de uma cliente. Coenraad foi atend-la prestimosamente, enquanto Casparus ob-servava, com indisfarvel orgulho, seu filho, que herdou no apenas o seu moinho, mas sua inventividade.

    o efeito das descobertas de van houtengraas inveno de Van Houten pai, Casparus, e ao processo de alcalinizao desenvolvido por Van Houten filho, Coenraad, o chocolate estava preparado tecnolo-gicamente para deixar de ser uma iguaria to desejvel quanto inalcanvel, e se tornar, aos poucos, fonte ime-diata e acessvel de prazer. Sim, porque um dos principais efeitos, tanto da massa de cacau expurgada de boa parte de sua gordura quanto do processo de alcalinizao, era deixar o chocolate menos amargo e mais moldvel. Se antes j existiam barras de chocolate, elas eram bastante rgidas, alm de serem de difcil digesto. Ou seja, no eram para serem comidas, apenas dissolvidas em algum lquido, de preferncia quente, para que a mistura se des-se de forma mais homognea.

    A partir da dupla inveno dos Van Houten, que como o pai anteviu, resultou na afamada caixa de cho-colate em p que ainda hoje leva o nome da famlia, e da expirao da patente da prensa hidrulica, ocorrida dez anos mais tarde, em 1838, diversos fabricantes de

    chocolate passaram a desenvolver novos produtos usan-do a mquina do pai e o tratamento qumico do filho.

    Uma das pioneiras nessa nova frente aberta pelos Van Houten foi a indstria criada por Joseph Storrs Fry que, em 1789, ano da revoluo Francesa, havia compra-do para sua fbrica de chocolate em Londres a primeira mquina a vapor para a torra do cacau. Agora dirigida pelo neto do fundador, a J. S. Fry & Sons no demorou muito para tambm adquirir uma rplica da engenhoca de Van Houten. Contando com mais recursos financeiros e sediada no epicentro da outra revoluo que seguia em curso na Europa, a revoluo industrial, a Fry apresentou, na Feira internacional de Birmingham, em 1849, a primei-ra barra de chocolate comestvel. Agora, sim, o chocolate alcanaria uma parcela mais significativa da populao, principalmente depois que o primeiro-ministro britnico, William gladstone, reduziu em 1853 os impostos sobre a importao da matria-prima.

    At o final do sculo 19, as grandes fbricas de choco-late teriam suas prprias fazendas de cacau, localizadas nos trpicos e, dessa forma, conseguiriam ter controle sobre todas as etapas do processo, da semente grande novidade de consumo, o tablete de chocolate. A J. S. Fry & Sons, por exemplo, tinha seu plantio em trinidad.

    Os passos seguintes da revoluo tecnolgica na fa-bricao do chocolate iniciada pela famlia Van Houten foram dados por iniciativa dos suos, at ento conhe-cidos apenas como tradicionais fornecedores de leite para o resto da Europa. E o leite, nesse caso, faria toda a diferena.

    talvez, o primeiro europeu a combinar chocolate com leite, uma ligao que hoje nos parece to natural, foi Nicholas Sanders, que em 1727 produziu uma bebida para o primeiro cirurgio do rei george ii. Mas no era o

    chocolate ao leite tal como o conhecemos hoje, j que o chocolate em p ainda se encontrava com seu teor de gordura integral e era de difcil mistura, obrigando um intenso trabalho de mos com o molinillo para que a gor-dura pudesse se separar.

    dessa vez, o passo que estava para ser dado era de outra natureza, e a proeza foi realizada por daniel Peters, um chocolateiro de Vevey, na Sua, que morava pr-ximo de um qumico suo chamado Henri Nestl. Em 1867, Nestl havia criado uma forma de desidratar o lei-te por meio da evaporao da gua. depois de diversas tentativas, a dupla conseguiu criar, em 1879, o primeiro chocolate ao leite, produzido com leite em p.

  • Outros dois suos deram ainda novas contribuies para deixar o chocolate, agora mis-turado ao leite, mais macio e palatvel. Philippe Suchard criou a primeira mquina de mis-turar chocolate, conhecida como mlangeur e utilizada at os dias de hoje. E, no mesmo ano em que a dupla sua aprendia a adicionar o leite condensado massa de cacau, outro compatriota, rodolphe Lindt, tambm fabricante de chocolate, saiu para caar no fim de semana e se esqueceu de desligar sua mquina de mistura, que permaneceu funcionando por 72 horas ininterruptas revolvendo o chocolate. Para a surpresa de Lindt, que ao regressar se deu conta de seu esquecimento, aquele chocolate havia adquirido uma maciez at ento inimaginvel, formando uma delicada capa endurecida e mantendo seu interior extrema-mente macio. Estava inventada a conchagem, mtodo que tambm empregado at os dias de hoje e que consiste em aerar insistentemente a massa com mquinas desenhadas em formato de conchas. Agora era possvel produzir um chocolate ao leite que derretia na boca e que podia ter os mais diversos formatos. As novas invenes incentivaram o surgimento de diversas fbricas de chocolate na Europa, entre elas a francesa Poulain, fundada em 1869 pela famlia Menier.

    No incio do sculo 20, no se sabe exatamente o momento, um dos produtos fabricados pela Poulain chamou a ateno de casas importadoras no Brasil que, especialmente na cida-de de So Paulo, atendiam o luxo das elites. J passava da hora de o pas, que nesta altura j era um dos maiores produtores mundiais de cacau, conhecer aquele alimento dos deuses.

    O chocolate ganha o mercado: o criador da primeira mquina de misturar chocolate, Philippe Suchard, junto com rodolphe Lindt

    e Henri Nestl deram o pontap inicial no mercado.(Propaganda, c.1900)

  • BRASILENTRA NA

    VALSA

  • PRIMEIRAS INDSTRIAS, PRIMEIROS CHOCOLATES

    O chOcOlate chegOu aO Brasil pOr meiO dO caf, Ou melhOr, da

    riqueza gerada pOr ele. cOmO vimOs nO captulO anteriOr, O chOcOlate,

    O ch e O caf fOram trs BeBidas exticas que a partir dO sculO 16

    se prOpagaram pelas mais impOrtantes cidades eurOpeias, dividindO

    paladares e Opinies. O chOcOlate representava a tpica BeBida

    da nOBreza, tantO pelO altO custO quantO pelO tempO e

    meticulOsidade exigidOs para O seu preparO, enquantO O caf, pOr seu

    custO mais acessvel e pOr seu carter nOtadamente estimulante, caiu

    mais nO gOstO da ascendente Burguesia e das classes mdias

    que cOmeavam a surgir em decOrrncia dO crescimentO das cidades.

    O ch, pOr sua vez, permaneceu cOmO preferncia nas ilhas Britnicas,

    sem despertar nO velhO cOntinente O mesmO fervOr que as Outras duas

    BeBeragens, surgidas a partir das grandes navegaes Ocenicas.

    a crescente demanda mundial pelas BeBidas exticas que viraram mOda

    na eurOpa, em especial O caf, encOntrOu nO Brasil uma terra frtil

    e ainda prOcura de sua verdadeira vOcaO. cOm a queda

    dO preO dO algOdO e da cana-de-acar, aOdadOs pela

    cOncOrrncia das antilhas, Os fazendeirOs BrasileirOs estavam em

    Busca de algum prOdutO mais rentvel. faltava apenas cOnseguir as

    sementes de caf para que se pudesse cOmear a prOduO. tal fatO

    passOu a ser uma OBsessO para Os administradOres da

    grande cOlnia ultramarina pOrtuguesa.

  • as primeiras sementes da planta que se tornou conhecida

    entre os brasileiros como ouro negro foram trazidas ao

    nosso pas por um militar, o sargento francisco de melo palheta,

    que, em 1727, conseguiu atravessar a fronteira da guiana francesa

    com algumas sementes dadas a ele, secretamente, pela esposa

    do governador-geral das guianas, madame dOrvilliers.

    sementes no terreiro: trazidas por um militar nos anos 1720, as sementes de caf se adaptaram muito bem s terras brasileiras.

  • lacta 100 anos, muito prazer 38 39 lacta 100 anos, muito prazer

    O C

    AC

    Au

    na

    s te

    rra

    s do

    CA

    f Na regio subtropical, com muita chuva, e na Mata Atlntica densa do sul da Bahia, a cultura de cacau do gnero forastero, natural da Amaznia e de alta produtividade, levou o Brasil, em 1911, condio de segundo produtor mundial, sendo suplantado ape-nas pelo Equador. E da mesma forma como aconte-ceu com as cidades de Belm e Manaus, enriquecidas pelos lucros da borracha, a baiana Ilhus tambm viveu seu apogeu no incio do sculo 20. A vantagem sobre as outras cidades, no entanto, foi contar com o talentoso escritor Jorge Amado, ele prprio filho de um produtor de cacau, para narrar a saga do ciclo cacaueiro no sul da Bahia. Em livros como terras do sem fim, no qual narra a luta dos irmos Badar contra o Coronel Horcio da Silveira em torno de uma regio boa para o plantio do cacau, o roman-cista trouxe para o imaginrio brasileiro o cotidiano sofrido dos trabalhadores desse cultivo e, do mesmo modo, o luxo que a riqueza do cacau proporcionava a poucos privilegiados.

    OPO

    RTu

    NID

    AD

    ES

    O canadense James Lewis Kraft chegou cidade de Chicago, nos Estados Unidos, em 1905. Naquela po-ca, tinha 31 anos, 65 dlares no bolso e alguma expe-rincia no comrcio como funcionrio de um grande entreposto em Ontrio, no Canad. Estabelecido na cidade, Kraft comprou um pequeno vago puxado por um cavalo e comeou a comprar e revender queijos. Aos poucos, o comerciante encontrou seu nicho de mercado. Assim, quatro de seus dez irmos se juntaram a ele, em 1909, para criar a J. L. Kraft & Bros. James ocupou o cargo de presidente da com-panhia desde o ano em que foi fundada at o de sua morte, em 1953. Nas dcadas seguintes, trans-formou o sobrenome de sua famlia em sinnimo de queijo; mais tarde, de vrios tipos de alimento; e al-gumas dcadas depois, o chocolate tambm entrou no grande portflio de produtos que a Kraft desen-volveu. J no sculo 21, a brasileira Lacta passou a integrar esta que se transformou na segunda maior empresa de alimentos do mundo.

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    uER

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  • lacta 100 anos, muito prazer 38 39 lacta 100 anos, muito prazer

    As cidades

    da bORRACHA e do CACAuum sculO mais tarde, O caf se tOrnOu O

    principal prOdutO de expOrtaO BrasileirO,

    respOndendO, juntO cOm a BOrracha, pOr

    80% das expOrtaes e gerandO um ciclO vir-

    tuOsO que impulsiOnOu, entre Outras cOnse-

    quncias, O crescimentO vertiginOsO de al-

    gumas cidades ligadas a essas duas culturas,

    cOmO sO paulO, pOr cOnta dO caf, e Belm

    e manaus, nO casO da explOraO da BOrra-

    cha. essas duas cidades da regiO nOrte che-

    garam a ter luz eltrica e cinema antes da

    capital federal, O riO de janeirO.

    entre O perOdO que vai de 1889 a 1899, as ex-

    pOrtaes Brasileiras dOBraram de vOlume.

    uma dcada mais tarde, em 1909, nOvamente

    O pas duplicOu suas expOrtaes, agOra, ex-

    pOrtandO tamBm O cacau, que desde mea-

    dOs dO sculO 19 passOu a ser plantadO cOm

    muitO sucessO nO sul da Bahia, em tOrnO da

    cidade de ilhus e da Bacia dO riO mucuri.

  • lacta 100 anos, muito prazer 40 41 lacta 100 anos, muito prazer

    SuRgEM AS

    avenida pauslita, 1902.

    avenida higienpolis, incio do sculo 20.

    com as zonas de plantio do principal produto de exportao brasileiro, o caf, concentradas em terras paulistas, de incio no vale do paraba e, posteriormente, avanando para o inte-rior em uma desbravadora marcha rumo ao oeste, os chamados bares do caf j no se

    contentavam em importar carssimos produtos e porcela-nas finas da europa para enriquecerem suas fazendas. em vez disso, passaram a comprar terrenos e lotes urbanos em reas recm-incorporadas cidade de so paulo, por exemplo, a regio de higienpolis e da avenida paulista, que no incio do sculo 20 surge no alto do espigo co-nhecido como Caaguau (grande mata, em tupi). ali, a grande mata nativa foi substituda por carvalhos e pl-tanos, rvores importadas da europa, como deveria ser tudo o que fosse sofisticado na poca.

    O poder, aos poucos, se transferiu do campo s cidades e para l se dirigiu a nova classe dominante brasileira. parte dos lucros da explorao cafe-eira foi investida em luxuosos casares e em uma extensa lista de artigos de luxo importados da europa: perfumes da frana, tintas e vernizes da inglaterra, produtos de l e instrumentos musicais da alemanha, carros dos estados unidos, vinhos e licores de portugal, frana e itlia, batatas da frana e de portugal, arroz da ndia, leite condensado da sua etc.

    Outra parte da riqueza gerada pelo caf foi reinves-tida em distintas atividades. no incio do sculo 20, o Brasil passou a importar carneiro e gado do uruguai e da argentina; ferro e ao da alemanha; as mquinas no geral vinham da inglaterra, alemanha e estados unidos. conformavam equipamentos para as primeiras indstrias que se estabeleceram por aqui, concentradas basicamen-te em so paulo e no rio de janeiro.

    a expanso urbana brasileira, apesar de ter sua mais importante expresso na capital federal rio de janeiro , por conta do peso poltico de constituir a sede do governo, ope-rava de maneira cada vez mais grandiosa em so paulo. tanto que a populao paulistana saltou de menos de 65 mil habitantes em 1890 para quase 580 mil em 1920, dentre o quais dois teros eram imigrantes estrangeiros. em um perodo de 30 anos, so paulo viveu um crescimento populacional de 892%!

  • lacta 100 anos, muito prazer 40 41 lacta 100 anos, muito prazer

    PRIMEIRAS INDSTRIAS

    Brs, incio do sculo 20.

    naquela poca, enquanto palacetes suntuosos influenciados pelos mais diversos estilos arquitetnicos, do neoclssico ao art nouveau, proliferavam na zona nobre da cidade, como o recente bairro de higienpolis e a prpria avenida paulista, os bairros populares se agru-pavam em torno do centro da cidade e das fbricas espalhadas entre o Brs e a moca, na regio leste, abrigando principalmente os imigrantes que chegavam para trabalhar nas pri-meiras indstrias.

    alm de operrios e bares de caf que na maioria das ve-zes tambm eram os empresrios industriais , os novos habitantes urbanos encontravam trabalho nas ferrovias (criadas para escoar a produo cafeeira do interior at o porto de santos), na cons-truo civil e nos primeiros ser-vios urbanos da cidade, como empresas de energia, transportes urbanos, gua e telefonia.

    as primeiras indstrias brasi-leiras foram as tecelagens e as f-bricas de macarro (um costume alimentar trazido pelos imigrantes italianos e rapidamente adotado no pas), alm de fbricas de cerveja (e de vidros para acondicion-las), sapatos, chapus, calados, produtos qumicos, conservas, fundies em ferro ou bronze, fbricas de pregos e parafusos. em menos de dez anos, multiplicaram-se centenas de iniciativas de pequenos e grandes comerciantes. em 1909, por exemplo, so paulo j contava com 152 fbricas de chapus (um item absolutamente indispensvel para qualquer cidado urbano daquela poca), cinco de bengalas e trs de jogos de cartas.

    muitos desses empresrios, ao mesmo tempo em que se arriscavam a importar equipa-mentos para concretizar seus projetos (torcendo para que eles funcionassem sem maiores problemas, pois no haveria quem pudesse consert-los deste lado do oceano...), tambm exerciam a atividade de importadores. havia, alm disso, aqueles proprietrios rurais em-pobrecidos por no conseguirem o capital necessrio para investir na lavoura cafeeira e que chegavam cidade para ocupar os cargos mais elevados do aparelho burocrtico, ou torna-vam-se pequenos comerciantes. para estes, o principal ponto da cidade estava delimitado pelo famoso tringulo, formado pelas ruas so Bento, direita e xv de novembro, onde se concentravam as mais elegantes lojas, cafs e restaurantes.

  • A vIDA PuLSA NO TRINguLO

    no comeo do sculo 20, o centro da cidade de so paulo se transformava rapidamente

    com a inaugurao do viaduto do ch, o primeiro a ser construdo na cidade, ligando as

    duas margens do rio anhangaba. a regio permaneceu, ainda por alguns anos, como um

    ambiente repleto de pomares embaixo da construo que assinalava os novos tempos da

    futura metrpole.

    quem cruzasse o viaduto naquelas primeiras dcadas do sculo 20, vindo dos lados do

    recm-inaugurado teatro municipal, pagava um pedgio de trs vintns pela travessia at a

    regio mais fervilhante da cidade, o chamado tringulo. Os elegantes frequentavam cafs

    e restaurantes daquela rea, onde tambm se localizavam os prdios dos bancos e as lojas

    de importados mais luxuosas. nelas, era possvel encontrar quase tudo que se produzia na

    europa. na lista de objetos de desejo mais cobiados pelos consumidores brasileiros no co-

    meo do sculo 20 havia, naturalmente, o chocolate. agora no mais aquela aristocrtica

    bebida quente e espumante, servida em requintadas chocolateiras, mas, sim, os prticos e

    deliciosos tabletes que, como vimos, se tornaram mais palatveis e acessveis a partir da du-

    pla inveno dos van houten, que diminuiu o teor de gordura e deixou o chocolate menos

    amargo e mais miscvel com outros produtos como leite em p e a prpria manteiga de

    cacau , garantindo uma maior cremosidade.

    Os chocolates em tabletes, que nessa altura j eram produzidos em escala industrial nos

    estados unidos, principais consumidores mundiais da novidade , comearam a ser ofertados

    aos frequentadores do tringulo. a casa tolle, indstria de chocolate fundada em 1885,

    no Brs, foi uma das primeiras a vender essas deliciosas barras, alm de bombons com a

    marca abelha, em plena rua xv de novembro, em so paulo, onde possua uma loja. assim

    como diversos estabelecimentos desse perodo, a tolle tambm importava produtos simi-

    lares, dentre eles o chocolate em tablete da francesa poulain, com o sugestivo nome lacta.

  • itinerrio do chocolate: no sculo 20 so paulo se modernizava e importava vrios produtos, dentre eles, o chocolate. para compr-los a elite paulistana se dirigia inquieta rua xv de novembro. (postal, anos 1930)

  • lacta 100 anos, muito prazer 44 45 lacta 100 anos, muito prazer

    POu

    LAIN

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    CTA

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    SIL Os chocolates importados Lacta eram produzidos por

    um chocolatier francs chamado Victor Auguste Poulain, que em 1848, aos 23 anos, fundou uma pequena loja em Pontlevoy, na Frana. Com a boa receptividade dos seus produtos, em 1862 Poulain abriu sua fbrica e, trs anos mais tarde, se revelou um pioneiro da publicidade, criando o slogan gutez et comparez (prove e com-pare) para o seu produto. O inventivo fabricante tam-bm criou, em 1890, um artifcio para se aproximar de seus consumidores mais jovens: passou a distribuir, junto com os tabletes, figurinhas coloridas, impressas em car-to, para serem colecionadas. Provando e comparando, os consumidores franceses deram uma vida centenria aos produtos de Poulain, que continuaram a ser produ-zidos por geraes seguintes at hoje.

  • lacta 100 anos, muito prazer 44 45 lacta 100 anos, muito prazer

    uma fbrica para a LACTAem 1906, outra empresa paulistana passou a importar chocolates poulain lacta da frana: a zanotta, lorenzi & cia. fundada por dois imigrantes italianos, a empresa se dedicava, prioritariamente, fabricao de uma novidade criada pelo cientista brasileiro, luiz pereira Barreto, o guaran espumante. a bebida doce e gaseificada era produzida a partir do extrato de uma fruta natural da amaznia, tornando-se, dcadas mais tarde, um dos refri-gerantes mais consumidos no pas.

    em outro canto da cidade, no bairro da vila mariana, um grupo liderado pelo cnsul suo achilles isella, que havia desembarcado no Brasil em 1891 vindo da argentina, criou em 1912 a societ anonyme des chocolats suisse de s. paulo, com o objetivo de fabricar chocolates no Brasil.

    O grupo fundador do qual faziam parte trs industriais, um professor, um comer-ciante, um engenheiro e um arquiteto, todos com sobrenomes estrangeiros (isella, rapp, hottinger, ritter, Kesselring, reinmann e streiff) havia importado diversas mquinas da alemanha e da sua e adquirido um amplo galpo na rua jos antnio coelho, na vila mariana. perto dali, na rua domingos de moraes, o grupo montou uma loja para a venda dos chocolates que fabricava em forma de meia-lua, conhecidos como chocoleite. a loja foi batizada como a sua, apesar de vender chocolates made in Brazil.

    com o incio da primeira guerra mundial, a importao de chocolates e de muitos ou-tros produtos ficou bastante prejudicada. Os importados comearam a chegar com valores to elevados, que muitos empresrios viram na mudana de cenrio uma oportunidade para a conquista de novos mercados: se no havia como importar chocolates, a sada seria fabric-los. foi nesse momento que zanotta e seu scio compraram a fbrica do cnsul suo, que estava venda. O prximo passo foi adquirir o registro da marca lacta da poulain, em 1917.

    no mesmo ano, o nome lacta j apareceu no primeiro anncio luminoso da cidade, atravessando a rua xv de novembro, no movimentado trecho entre o largo do tesouro e a rua anchieta.

    no movimento dos trilhos: o francs victor poulain produzia os chocolates lacta e foi pioneiro em integrar elementos urba-nos s campanhas publicitrias.

    O luminoso da lacta: em meio ao tringulo, uma das regies mais modernas de so paulo, a lacta firmava sua marca em um alto luminoso, o primeiro da cidade.

    uma casa para a lacta: a produo brasileira de chocolate ganha impulso com a primeira fbrica da lacta, sediada na rua jos antonio coelho, no bairro paulistano da vila mariana.

  • A INfNCIA DA PubLICIDADE

    O luminoso, uma novidade no cenrio urbano, mostra como zanotta e seu scio lorenzi

    estavam sintonizados com aqueles novos tempos em que so paulo deixava seu passado

    aptico de vila esquecida para se tornar uma cidade dinmica, onde ruidosos automveis,

    bondes eltricos e magazines luxuosos, como o mappin ou a casa allem, ainda conviviam

    com carroas, gente descala e vendedores ambulantes, que se abasteciam no porto geral

    prximo ao rio tamanduate para, ento, percorrerem os bairros mais afastados. aps a

    canalizao desse rio, o prprio porto deu nome conhecida ladeira porto geral.

    alm de ocuparem alguns espaos urbanos estratgicos com o nome lacta, zanotta e

    lorenzi apostaram, tambm, nos primeiros jornais e revistas que surgiam na cidade como

    bons veculos para divulgarem a nova marca. essas aes se revelaram acertadas, embora

    caracterizadas por boa dose de improviso, j que as primeiras agncias de propaganda ainda

    comeavam a despontar nessa poca e, com elas, o uso de fotografias nos reclames. antes

    disso, muitas vezes as revistas contratavam artistas plsticos que, em parcerias com poetas e

    literatos, criavam peas nas quais o produto, geralmente, surgia ilustrando alguma situao.

    nas primeiras propagandas ensaiadas pelas empresas, a influncia do parnasianismo (movi-

    mento literrio marcado em sua essncia pelo gnero potico) era suficientemente forte, a

    ponto de ser costume dos empresrios encomendarem sonetos ou outros gneros de poesia

    para anunciarem as virtudes de seus produtos. com a lacta no seria diferente.

  • O Estado de S. Paulo, maro de 1918.

  • na propaganda publicada em junho de 1919 no jornal O Estado de

    S. Paulo, a esttua da liberdade curva-se diante de dois expoentes mximos

    da nossa terra: o presidente eleito da repblica (epitcio pessoa,

    que substituiria o interino delfim moreira, alado ao poder com a morte

    de venceslau Brs) e o chocolate lacta. epitcio pessoa, representante legtimo da

    poltica do caf com leite, enfrentou o eterno candidato rui Barbosa

    desta vez em sua quarta tentativa de se eleger presidente do pas.

  • O saci e a lacta: anncio do caricaturista lemmo lemmi, conhecido como voltolino, para o primeiro livro de monteiro lobato, O Sacy-Perr Resultado de um Inqurito, publicado em 1918.

  • um amor na vida: umberto della latta foi um dos grandes artistas do incio do sculo 20, com intensa participao na cena paulistana. suas ilustraes anunciaram os chocolates lacta nas principais

    revistas e jornais, como este veiculado em 1917 em A Cigarra.

  • lacta 100 anos, muito prazer 52 53 lacta 100 anos, muito prazer

    A P

    ENA

    E

    Nesse perodo do alvorecer das indstrias e de suas t-ticas de propaganda os anncios com poemas ainda eram extremamente valorizados. Acreditava-se que, por serem versos, seriam memorizados de modo mais fcil, deixando, assim, a mensagem gravada no subconsciente dos consumidores. E pagava-se muito bem por esse ser-vio de redao. A ponto de a Lacta anunciar, na revista fon-fon de maio de 1919, a instituio de um concurso que oferecia 500 mil ris pelo soneto decasslabo ou ale-xandrino que, pela perfeio, apuro de forma, sugesto e pela maneira com que puser em evidncia o sabor e as qualidades nutritivas do Lacta, for considerado o melhor.

    Olavo Bilac, que antes do surgimento do movimento modernista, em 1922, j era considerado o grande poeta brasileiro, foi um dos que descobriu esse nicho, assinando poemas encomendados por anunciantes. Guilherme de Almeida, outro escritor vinculado nova gerao moder-nista, que preparava a Semana de Arte Moderna, tam-bm criou propagandas em versos. O poeta participou ativamente da cena cultural paulistana na dcada de 1920, estando frente