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Aniversário do Fórum Diálogos. Gilbraz Aragão. Senhoras e senhores! É aniversário do fórum da diversidade religiosa de Pernambuco e por isso estamos aqui, na casa de todos os pernambucanos. Neste novembro da proclamação da República, quero lhes dizer com Joaquim Nabuco que “O verdadeiro patriotismo é o que concilia a pátria com a humanidade”. Neste novembro da consciência negra, quero abrir esta saudação com as palavras desse deputado que se bateu pela liberdade religiosa nesta terra e pela abolição da escravatura na história humana. Para que não se repita, precisamos lembrar que esta foi uma sociedade de escravidão: “... seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem do país, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma religião natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos; insuflou- lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua felicidade sem dia seguinte... É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as nossas noites do Norte”. Caros cidadãos! Estamos aqui para comemorar o aniversário do Diálogos, fórum da diversidade religiosa em Pernambuco. Ele vem ajudando a ultrapassar os suspiros do passado e a inventar um novo espírito entre a gente, a criar uma nova manhã, dançada em cirandas, com os pernambucanos. Em

Fórum Diálogos na Alepe

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Aniversário do Fórum Diálogos.

Gilbraz Aragão.

Senhoras e senhores! É aniversário do fórum da diversidade religiosa de

Pernambuco e por isso estamos aqui, na casa de todos os pernambucanos.

Neste novembro da proclamação da República, quero lhes dizer com Joaquim

Nabuco que “O verdadeiro patriotismo é o que concilia a pátria com a

humanidade”. Neste novembro da consciência negra, quero abrir esta

saudação com as palavras desse deputado que se bateu pela liberdade

religiosa nesta terra e pela abolição da escravatura na história humana. Para

que não se repita, precisamos lembrar que esta foi uma sociedade de

escravidão: “... seu contato foi a primeira forma que recebeu a natureza virgem

do país, e foi a que ele guardou; ela povoou-o como se fosse uma religião

natural e viva, com os seus mitos, suas legendas, seus encantamentos;

insuflou-lhe sua alma infantil, suas tristezas sem pesar, suas lágrimas sem

amargor, seu silêncio sem concentração, suas alegrias sem causa, sua

felicidade sem dia seguinte... É ela o suspiro indefinível que exalam ao luar as

nossas noites do Norte”.

Caros cidadãos! Estamos aqui para comemorar o aniversário do Diálogos,

fórum da diversidade religiosa em Pernambuco. Ele vem ajudando a

ultrapassar os suspiros do passado e a inventar um novo espírito entre a gente,

a criar uma nova manhã, dançada em cirandas, com os pernambucanos. Em

novembro de 2012 o Fórum Diálogos foi lançado aqui na Assembleia

Legislativa, por iniciativa do Ministério Público do Estado, sobretudo em defesa

do Povo de Santo que sobreviveu à escravidão e aqui enfrenta uma

intolerância religiosa que é racista e classista. A associação, que começou com

uma quinzena de tradições religiosas, visa colaborar para a construção de uma

cultura de tolerância entre as diversas religiões, para o conhecimento e

respeito ao culto dos outros, para a promoção de um serviço combinado das

tradições espirituais à causa da justiça socioambiental em nossa sociedade.

São lideranças que se reúnem e refletem sobre questões importantes para a

liberdade religiosa, promovendo ações para sedimentar a coexistência entre as

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crenças. Com isso, Pernambuco vai avançando para ter um povo mais

humano.

E precisamos muito disso, porque nossa história clama por um novo tempo.

Olinda já foi a bela Marim dos Caetés: setenta e cinco mil indígenas desse

povo tupi viviam na região, uma gente valente que comeu até o primeiro bispo

do Brasil, mas acabou escravizada e dizimada pela cruz e pela espada da

empresa colonial, porque atrapalhava a exploração das riquezas daqui. O que

a escola deve dizer aos nossos filhos sobre essa memória?! Afinal, há sangue

de índio em nossas mãos e sangue das escravas indígenas e africanas em

nossas próprias veias! E esse extermínio que se fez no litoral continua sendo

feito hoje pelo agronegócio no interior. O que as religiões têm a ver com essa

história? Como podem ajudar a tornar possível um outro mundo, mais

humanizado?

Muitas vezes as religiões ajudaram e ajudam a justificar explorações e

dominações. Mas quando bem interpretada a religião é paixão, é amor pelo

ideal da vida em confronto com o real, em seus limites e violências. A

experiência religiosa deve ser razoável, mas está sempre para além da razão:

é exercício do desejo humano frente à consciência de pouco poder para a

gente ser na vida, é a imaginativa antecipação de uma realidade de paz ainda

inexistente. Religião deve ser antídoto à loucura de existir em meio a tanta

injustiça: “O que mais penso, testo e explico: todo-o-mundo é louco. O senhor,

eu, as pessoas todas. Por isso é que se carece principalmente de religião: para

se desendoidecer, desdoidar. Reza é que sara loucura. (...) Muita religião, seu

moço! Eu cá, não perco ocasião de religião. Aproveito de todas, bebo água de

todo rio... Uma só, para mim é pouca, talvez não me chegue”, já dizia o

Guimarães Rosa.

E no último 15 de setembro, na III Conferência Mundial sobre as Religiões, em

Montreal, foi promulgada a Declaração Universal dos Direitos da Pessoa pelas

Religiões do Mundo, que em seu artigo I diz que “Toda pessoa tem direito a ser

tratada com respeito como ser humano e tem o dever de tratar as demais

pessoas com respeito e como seres humanos que são, sob o espírito da

irmandade”. Então, quando bem entendidas, as religiões podem nos unir em

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torno de um mandamento humanizante: cuidar do outro como você deseja ser

cuidado.

Hoje, cresce essa compreensão de que devemos nos reconhecer como

comunidade humana, geneticamente ligada com todos os seres vivos,

evoluindo junto com a totalidade do cosmos. Nossa existência deve ser

concebida como interdependência em todos os níveis. Todos somos luz e

treva, em comunitária evolução. Nenhum triunfalismo, religioso ou de qualquer

espécie, pode ter lugar neste “novo” paradigma de universo e de

conhecimento, onde se procura permitir mais vida para todos. Diante dessa

aventura ecológica e ecumênica deflagrada pelo espírito de nosso tempo, as

pessoas de boa vontade ou juízo razoável, bem como as suas religiões e

convicções, ficam desafiadas seriamente para o combate à intolerância e a

promoção do diálogo.

Não são poucos os desafios que o mundo enfrenta nesse campo (da falta) do

diálogo e da coexistência. Não bastassem os conflitos econômicos e políticos,

a China e a Coreia do Norte perseguem ideologicamente (e a ideologia aí

assume ares de substitutivo religioso) os grupos espirituais tradicionais. O Irã e

a Arábia Saudita apadrinham a versão de uma religião e perseguem

muçulmanos dissidentes, cristãos e baha’istas. O Paquistão condena à morte

quem os extremistas denunciam por blasfêmia, normalmente xiitas, cristãos,

hindus e ahmadis. Na Síria e Iraque o grupo Estado Islâmico desencadeou

ondas de terror contra yazidis, cristãos e xiitas, bem como contra os gays e as

mulheres. Budistas radicais na Birmânia agridem os muçulmanos rohingya. Na

República Centro-Africana, milícias cristãs destruíram quase todas as

mesquitas do país. Na Nigéria, o Boko Haram continua a atacar cristãos e

inúmeros muçulmanos que se opõem ao grupo. Muçulmanos e judeus

continuam se confrontando na Palestina. O extremismo político-religioso

também aterroriza Europa e EUA – e não são apenas os ditos muçulmanos

antiocidentais que o promovem: grupos que se proclamam cristãos matam

médicos que defendem os direitos reprodutivos.

No Brasil, as denúncias de discriminação religiosa recebidas pelo

Disque/Clique 100 atingiram no ano passado seu maior número. Foram 556

casos reportados ao serviço da Secretaria de Direitos Humanos do governo

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federal. Houve um aumento de 273% em relação a 2014 e a maioria dos fatos

envolve o Povo de Santo das religiões afro-indígenas-brasileiras, com cultos de

imprecações cristãs contra os seus Terreiros e agressões aos seus símbolos e

aos seus membros.

Não se trata de criticar as pessoas que gostam do evangelho e criam

comunidades em torno dele para promover mais vida, mas de questionar um

projeto de dominação político-cultural articulado por algumas lideranças

evangélicas e católicas, que consiste inclusive em um cisma com respeito à

tradição profética do cristianismo. Pois elas opõem um “deus” pai sério e

punitivo a uma divindade amorosa de justiça e compaixão; uma igreja

exclusivista, rígida e hierárquica, a movimentos inter-religiosos em favor da

terra eco-consciente; manifestam um apego teológico ao pecado original,

contra uma espiritualidade da criação e sua compreensão de bênção original;

pregam a intolerância ao estrangeiro e ao “estranho” moral, contra o abraço ao

feminino e aos outros gêneros; o medo da ciência, enfim, ao invés do incentivo

à sapiência.

São discursos que hostilizam em especial as telúricas religiões indígenas e

afro-negro-brasileiras, além de outros “bodes expiatórios” considerados

idólatras. Contra eles devemos invocar a laicidade: o Estado brasileiro é laico e

pluralista, acolhe todas as religiões sem aderir a nenhuma. Não é lícito que

uma religião imponha à nação seus pontos de vista e não podemos deixar os

espaços públicos republicanos ser ostensivamente ocupados e controlados por

quaisquer comunitarismos ou igrejas. Uma autoridade pode ter convicções

religiosas, mas não é por elas, mas pelas leis e pelo espírito democrático que

deve governar, sendo necessário traduzir as motivações religiosas pessoais

em argumentos para o debate público numa sociedade democrática.

Para enfrentar a intolerância temos criado legislação e políticas, mas

precisamos mesmo é de (re)educação. Somente a escola pode terapeutizar a

vivência da religião e as relações entre as religiões. Mas a escola como lugar

de aprendizagens críticas e transdisciplinares dos conhecimentos espirituais,

enquanto patrimônio cultural da humanidade. Cabe à comunidade educativa

refletir sobre as diversas experiências religiosas que a cercam, analisar o papel

dos movimentos e tradições religiosas na estruturação e manutenção das

Page 5: Fórum Diálogos na Alepe

culturas, rompendo com relações de poder que encobrem e naturalizam

discriminações e preconceitos. Cabe à escola refletir sobre o fenômeno

humano de abertura para a transcendência, em busca de interpretações mais

universais e significados mais profundos para o que é experimentado como

sagrado em cada cultura.

Amigas e amigos. Neste novembro de aniversário do Fórum Diálogos, desejo

que esse grupo continue ajudando a sociedade pernambucana a ser mais

cosmopolita e transreligiosa. As visões de mundo e rituais religiosos são como

um arco-íris, em que cada um pode embelezar a sua cor, mas consciente de

que ela vai aparecer ainda mais bonita dentro do espectro das colorações do

mundo, que se originam da mesma luz, transcendente. Quem sabe, é tempo de

ensaiarmos uma grande ciranda das culturas, com sons diferentes para sonhos

iguais, e um silêncio no centro que nos abra para uma palavra diferente e uma

outra visão das coisas. E neste novembro da consciência negra, repito, quero

concluir esta saudação com as palavras de um sapateiro aqui do bairro de São

José, o grande poeta negro Solano Trindade:

“Ouço um novo canto,

Que sai da boca,

de todas as raças,

Com infinidade de ritmos...

Canto que faz dançar,

Todos os corpos,

De formas,

E coloridos diferentes...

Canto que faz vibrar,

Todas as almas,

De crenças,

E idealismos desiguais...

Page 6: Fórum Diálogos na Alepe

É o canto da liberdade,

Que está penetrando,

Em todos os ouvidos...”

Que assim seja!