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Mutuar – núcleo de psicologia gestáltica

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25/08/2015 Atendimento Clínico a Crianças com Deficiência Mental em População de Baixa Renda | Mutuar – Núcleo de Psicologia Gestáltica

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Atendimento Clínico a Crianças com Deficiência Mental em População deBaixa Renda

Por: Nara Neide Teixeira Soares de Lira

RESUMO: Este trabalho apresenta um modelo de atendimento clínico a crianças com deficiência mental. O estudo é qualitativo, tendo como sujeitos de pesquisa trêscrianças. As informações foram coletadas durante e após as sessões de atendimento, por meio de anotações da pesquisadora. A fundamentação teórica tem fontesdistintas como a medicina e a Gestalt Terapia, especialmente Oaklander, Aguiar e Yontef, e outros estudiosos que focaram seus estudos no desenvolvimento infantil,como Axline e Schettini. Os estudos levaram à constatação de que o atendimento psicoterapeutico deve ser acompanhado de orientação aos pais e responsáveis,uma vez que, em geral, eles não sabem como lidar com as deficiências, especialmente as deficiências mentais. Observou-se também que o acompanhamentopsicoterapeutico colaborou com o desenvolvimento das crianças, nos aspectos motor, sensorial, cognitivo, relacional e social, ampliando suas possibilidades deinclusão social.

ABSTRACT: This study refers to a mental deficiency children’s psychotherapy. It is a qualitative research, concerning to three kids’ psychotherapy process.  Data weretaken from de meetings, during or after them. Theory is based on medicine and Gestalt Therapy authors as Oaklander, Aguiar and Yontef, as well as others childrencounselors like Axline and Schettini. The results are that the psychotherapy is so important as de relationship with parents or children’s tutors, because, generally,they don’t know how to act with the deficiencies, especially mental ones. It was observed that psychotherapy was well done to the children’s development, in differentaspects as physical, sensorial, cognitive e affective ones, given them high possibilities to have social inclusion.

INTRODUÇÃO

Segundo a Organização Mundial de Saúde, aproximadamente 10% da população brasileira é de pessoas com deficiência; destas, 5% possuem deficiência mental; 2%possuem deficiência física; 2% possuem deficiência auditiva; 1% possui deficiência visual; e 1% possui deficiência múltipla. O fato agravante é que nem todas asfamílias têm condições de desenvolver um trabalho completo de reabilitação dessas crianças e, nas classes sociais menos favorecidas, muitas vezes, elas sãoconsideradas coitadinhas ou inválidas sociais.Com este trabalho pretendo estimular a reflexão daqueles que pensam que pouco ou nada pode ser realizado, que é preciso aceitar a realidade como se apresenta.Quem sabe se você olhasse mais à sua volta, pudesse ver. Se prestasse um pouco mais de atenção, entenderia melhor. Abrindo bem os ouvidos, pudesse ouvir. Eassim, talvez pudesse tomar uma atitude, se mexer. Porque, às vezes, a resposta está bem ali, ao nosso lado, mas não conseguimos perceber. Então, pare um pouco.Esqueça tudo o que você aprende e pense diferente. Use uma lógica menos superficial e seja mais sensível e solidário. Será que somos todos iguais? Claro que não.Todos nós temos as nossas diferenças. E, na construção de um mundo novo, todos têm muito a contribuir.A criança com deficiência caracteriza-se, habitualmente, por apresentar um significativo rebaixamento no desenvolvimento mental, físico e sensorial, apresentando-se, não raras vezes, com deficiências múltiplas. Dentre as crianças que atendi, a maioria era encaminhada por professores das classes especiais da Prefeitura e doEstado, por intermédio do Conselho Tutelar da Criança e do Adolescente, ou por indicação de psiquiatras, pediatras, fonoaudiólogos e fisioterapeutas. A maioria dosatendimentos referia-se a transtornos do déficit de atenção e hiperatividade, e déficit mental. Os pais dessas crianças e adolescentes apresentavam umacaracterística comum: procuravam proteger ao máximo seus filhos e raramente sabiam como agir para educá-los.Fazer inclusão social não significa apenas garantir o acesso à escola, ao transporte, ou aos edifícios. É também acreditar em igualdade de oportunidades,considerando as deficiências, o desenvolvimento pessoal e profissional. Para realmente incluir a criança com deficiência é preciso desmistificá-la, acreditar que antesde ter uma deficiência ela é um ser humano como qualquer outro, com potencialidades, necessidades e desejos.A escola inclusiva, processo educacional pelo qual crianças com necessidades educacionais especiais são trazidas para o convívio escolar da rede regular de ensino,já é uma realidade. Mas não resolve todo o problema da inclusão social. A escola inclusiva acolhe as crianças com deficiências física, mental, auditiva, visual oumúltipla, e tem por objetivo promover a interação social, superação de limites, disseminação do respeito pelas diferenças e o desenvolvimento da capacidade detolerância. Mas é preciso mais. Penso que deveriam ser formadas equipes multidisciplinares, com o psicólogo contribuindo com sua escuta clinica.Acredito que o papel do psicólogo é lutar pela dignidade humana e pela melhoria das condições de vida daqueles que ficam alijados da sociedade, bem como intervirnos processos subjetivos que sustentam e viabilizam as estruturas injustas.

MÉTODO DE PESQUISA

Utilizando a Gestalt Terapia como abordagem e a ludoterapia como técnica, dentro de uma perspectiva fenomenológica, realizei uma pesquisa qualitativa, baseadaem atendimentos clínicos, em sessões individuais e em sessões de grupo. A pesquisa qualitativa foi escolhida porque meu objetivo era acessar a subjetividade dascrianças, compreender seu campo vivencial, dados não mensuráveis pela metodologia quantitativa tradicional.A pesquisa qualitativa se debruça sobre o conhecimento de um objeto complexo: a subjetividade, cujos elementos estão implicados simultaneamente em diferentesprocessos constitutivos do todo, os quais mudam em face do contexto em que se expressa o sujeito concreto. A história e contexto que caracterizam odesenvolvimento do sujeito marcam sua singularidade, que é expressão da riqueza e plasticidade do fenômeno subjetivo. (Rey, 2002, p.51)

Foram estudados três casos clínicos de crianças com déficit cognitivo. Com exceção de F., as demais crianças foram encaminhadas pela escola onde freqüentavam a

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Foram estudados três casos clínicos de crianças com déficit cognitivo. Com exceção de F., as demais crianças foram encaminhadas pela escola onde freqüentavam aclasse especial para crianças com deficiências. F. apresentava sintomas de autismo, A. apresentava sintomas de paralisia cerebral e M. apresentava sintomas detranstorno do déficit de atenção e hiperatividade. Todas as crianças estudadas apresentavam problemas de relacionamento, na família, ou no convívio social.Quando me refiro aos “problemas de relacionamento” quero dizer que as crianças apresentavam dificuldade em brincar com outras crianças, em obedecer àsnormas, em demonstrar afeto. Portavam-se, frequentemente, de maneira agressiva e, às vezes, autopunitiva.Os dados foram coletados por meio de anotações realizadas durante e após os atendimentos clínicos, que ocorreram em períodos que variaram de seis meses, nocaso de F., 10 meses, no caso de A. e um ano e dois meses, no caso de M. Após a leitura de minhas anotações, selecionei os pontos mais significativos, que serãorelatados neste trabalho.Alguns detalhes podem ter sido perdidos porque as sessões não foram gravadas. Os atendimentos ocorreram em ambientes variados: F. foi atendido em umconsultório tradicional de psicologia; A. foi atendido em uma sala de reuniões, improvisada para atendimento clínico infantil; e M. foi atendida em uma típica sala deatendimento médico em ambulatório de hospital, também improvisada para atendimento psicoterapeutico infantil.Para manter o sigilo, os nomes das crianças foram abreviados. Procurei descrever, na medida do possível, meu método de trabalho. Observando minhasintervenções e as reações das crianças, bem como o retorno que os pais e responsáveis me davam sobre as modificações no comportamento delas, fui apontandoos resultados obtidos.

A DEFICIÊNCIA MENTAL

Pense Bem. A percepção de mundo da pessoa com deficiência mental é bem descomplicada. Deficiência mental pode ser conseqüência de uma doença, mas não éuma doença. É uma “condição do ser”. A pessoa com deficiência mental aprende mais devagar ou demora mais para fazer alguma coisa. Mas, atenção, aprenderdevagar não é a mesma coisa de não saber nada. As pessoas com deficiência mental podem desenvolver habilidade e serem produtivas. Depende apenas que sejarespeitado o seu tempo e que lhe sejam dadas oportunidades.As crianças nascem em um meio social e é na relação com esse meio que crescem e se desenvolvem. Algumas crianças, no entanto, não acompanham o ritmonormal do desenvolvimento, pois apresentam transtornos físicos, afetivos ou mentais. Houve um tempo em que essas crianças eram apartadas do convívio social,consideradas doentes, e das quais não se esperava nenhum progresso. Muitos nomes já foram dados às pessoas e crianças com deficiências. Apesar do termo“deficiência” continuar a gerar discussão, atualmente o termo adotado mundialmente é pessoa com deficiência, isto é, o foco é na pessoa, que vem antes dadeficiência.Em 1980, a Organização Mundial de Saúde – OMS elaborou uma “Classificação Internacional dos Casos de Impedimentos, Deficiências e Incapacidades”, consideradapor alguns como preconceituosa, pois levava à idéia de que as pessoas com deficiências eram seres incompletos.  A partir de 1981, Ano Internacional da PessoaDeficiente, muitas ações foram realizadas no intuito de prestar um melhor atendimento às crianças com deficiência: salas de aula foram criadas, os professorescapacitados e começaram a serem oferecidas garantias de oportunidades no mercado de trabalho. As pessoas com deficiência passaram a ser vistas como cidadãsde direitos.O déficit cognitivo, ou deficiência mental, é um distúrbio no funcionamento cognitivo e adaptativo, prejudicando a capacidade de identificar e resolver problemas, ede desempenhar atividades de forma independente. Diversos domínios são prejudicados: interação social, linguagem, habilidades pessoais, utilização de recursoscomuns e auto-proteção. Aparece com comorbidades como o transtorno do déficit de atenção e hiperatividade, transtornos de controle dos impulsos (auto-lesões eagressividade), transtornos de ansiedade, psicoses e transtornos de humor.A criança com deficiência mental apresenta algumas características como: lentidão na marcha, passividade frente aos eventos sociais, gestos e postura inadequada,lentidão para composição da fala, sinais físicos da deficiência, baixa criatividade, linguagem pobre, atraso na compreensão de absurdos e dificuldade naaprendizagem escolar.

MINHA BASE TEÓRICA

Minha prática se deu a partir de estudos realizados sobre as psicopatologias da criança e do adolescente, a ludoterapia, o uso de contos de fadas em psicoterapia eminha formação em psicologia clínica com foco na Gestalt Terapia.Como gestaltista, preocupo-me com o quê está acontecendo com meu cliente e como ele vivencia seu dia-a-dia. Quando atendo uma criança o foco de meu interesseé saber quais são as dificuldades apresentadas no aqui e agora, e como posso ajudá-la a resgatar os sentimentos não aceitos “de forma a poder integrá-los ao seuser total e, com isso, ajudá-la a utilizar formas mais congruentes com suas necessidades em cada um dos contextos dos quais faz parte (Aguiar, 2005, p.212).”Procuro identificar os pontos cristalizados na criança, isto é, aquela forma de ser-no-mundo que ela parou de atualizar, os padrões que deixou enrijecer e osbloqueios e distorções de contato, mas, principalmente, os pontos de saúde e capacidades que podem ser desenvolvidos.Por ter escolhido o público infantil, dediquei-me a estudar o “brincar”. Brincar é uma expressão natural da criança, por isso a ludoterapia é tão utilizada nosatendimentos infantis. Segundo Axline (1984), a ludoterapia permite que a criança cresça em experiência, em compreensão, em aceitação de si mesma e do seumundo. A ludoterapia dá a oportunidade à criança de, brincando, expandir seus sentimentos acumulados de tensão, frustração, insegurança, agressividade, medo econfusão. Libertando-se desses sentimentos, a criança se conscientiza deles, esclarecendo-os, enfrentando-os, aprendendo a controlá-los, transformá-los ouesquecê-los. As técnicas de ludoterapia também podem ser aplicadas a grupos. A terapia de grupo é uma experiência terapêutica ímpar, porque permite à criançaconviver com outras crianças e desenvolver respeito aos sentimentos e espaço dos outros. Nos casos em que os problemas das crianças são centralizados em tornodo ajustamento social, adoto a terapia em grupo porque acredito que facilita mais o processo da criança do que o atendimento individual.Em meu trabalho, procuro ir ao encontro da criança, ficar junto dela, participar de suas brincadeiras e, além de intervenções descritivas, na forma de afirmações, façoquestionamentos, ou proponho a realização de experimentos, sempre visando à ampliação de suas fronteiras de contato, e ajustamentos criativos saudáveis. Minhaatuação continua com os pais e/ou responsáveis, estimulando-os a participar do processo. Em minha prática, percebi que a participação dos pais trouxe resultadosmuito compensadores.

MINHA EXPERIÊNCIA COM F.

F. foi minha primeira experiência com crianças com deficiência mental. Tinha quatro anos de idade e morava em um sítio com tios, pois a mãe se mudara após umnovo casamento. Observando a criança e, com os dados oferecidos pela tia, constatei que F. apresentava sintomas de autismo com déficit cognitivo.Segundo Mello (2001, p.14), autismo é uma síndrome que apresenta alterações desde idades muito precoces, antes mesmo dos três anos de idade, e que secaracteriza por desvios qualitativos na comunicação, na interação social e no uso da imaginação. Estes desvios provocam um padrão de comportamento restrito erepetitivo, com condições de inteligência que podem variar do retardo mental a níveis acima da média.Na anamnese realizada com a tia da criança pude conhecer um pouco de seu desenvolvimento psicossocial e ambiente familiar. A queixa principal era o jeitoestranho de F. agir e o fato de não falar aos quatro anos de idade. F. tinha sido encaminhado pela clínica da Universidade Católica de Pernambuco, onde receberaum pré-atendimento. Nesse momento, aproveitei para tecer alguns comentários sobre o que a tia trazia, por acreditar que qualquer momento pode ser a

oportunidade de uma intervenção, e por não saber se teria outras oportunidades de estar com ela. Maichin (2004) chama esse procedimento de psicodiagnóstico

Silvana Eloisa
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oportunidade de uma intervenção, e por não saber se teria outras oportunidades de estar com ela. Maichin (2004) chama esse procedimento de psicodiagnósticointerventivo.A tia relatou que F. era muito agressivo com as pessoas e consigo mesmo; atirava tudo longe quando estava nervoso; não se interessava em brincar com outrascrianças; sua distração preferida era uma corda e ele gostava de manusear suas fezes. Até aquele momento, ainda se alimentava apenas de leite na mamadeira, nãoaceitando comida de sal. Quando ficava nervoso, mordia as pessoas, beliscava-as e ria quando elas reclamavam. Quando tentava se comunicar o fazia com gritos,ficando nervoso porque não era entendido. Nesses momentos, começava a morder a si mesmo ou a bater a cabeça.Nas duas primeiras sessões, a tia ficou na sala de atendimento, porque F. impediu que ela saísse. Na terceira sessão, quando ficamos somente nós dois. F. derrubouno chão todos os brinquedos que estavam nas pranchas, tapando os ouvidos para não ouvir o barulho que faziam ao tocarem o solo. Assim como um bebê que estáconhecendo o mundo, F. levou tudo à boca, cheirando os objetos. Em determinado momento, se aproximou do pote de balas, que eu mantinha em uma mesalateral, retirou uma e a colocou na boca, com papel e tudo. Dando-se conta do gosto do papel, cuspiu e tentou desembrulhar a bala. Como não conseguisse, eu oajudei. Aquele foi o começo de nosso contato.A tia de F. havia relatado que ele tinha o hábito de tirar a roupa e ficar nu, e isso aconteceu nesta primeira sessão em que ficamos a sós. Ele tirou a roupa e começoua urinar no chão. Imediatamente eu descrevi o que estava fazendo e o levei para o banheiro. Quando terminou, ele não quis recolocar a roupa e eu deixei que eleficasse assim até o fim da sessão.No encontro seguinte, a situação se repetiu: F. tentou tirar a roupa, mas desta vez eu o impedi, dizendo-lhe que no consultório ele deveria permanecer vestido. Nasessão seguinte a cena se repetiu, e desta vez ele desistiu de tirar a roupa e foi brincar. F. nunca mais tirou a roupa no consultório ou em casa. Como acredito na nãodiretividade, meu procedimento poderia ser questionado, mas naquela relação senti que os limites precisavam ser estabelecidos para ajudar F. a buscar uma novaforma de se colocar no mundo, de acordo com os padrões estabelecidos socialmente. Tinha ficado claro na anamnese que a família não impunha limites para acriança e tenho convicção da importância dos limites para o desenvolvimento saudável das crianças. Como diz Aguiar (2005) é necessário estabelecer limitesutilizando o critério da integridade: a da criança, a do psicoterapeuta e a do espaço terapêutico, isto é, os limites devem incidir sempre sobre o comportamento enunca sobre os sentimentos da criança, já que “os sentimentos precisam ser experimentados, aceitos e canalizados em formas adequadas e construtivas deexpressão.” (Aguiar, 2005, p.221)Nossa relação foi se intensificando aos poucos. No início, F. não deixava que eu me aproximasse. Fui imitando seus gestos: tirava os sapatos, quando ele o fazia,imitava seus movimentos corporais, pegava os brinquedos que ele largava e tecia algum comentário como: “Você não quer mais o boneco?” ou descrevia seucomportamento: “Você cansou deste brinquedo e agora vai pegar outro.” Um dia ele me cheirou como fazia com os brinquedos e objetos da sala: primeiro minhasmeias, depois meu cabelo. Eu sentia que estava ganhando sua confiança.F. começou a se aproximar de mim. Apesar de eu lhe ter imposto limites, ele se sentia livre para brincar com o que quisesse, e espalhar os brinquedos pela sala. Nosegundo mês de atendimento, ele já brincava entre minhas pernas. Em algumas sessões, parecia cansado. Deitava-se no chão, no meu colo ou na poltrona e alificava olhando para o que estivesse em suas mãos. Nesses momentos eu ficava calada, demonstrando-lhe que estava presente ali, com ele, em seu silêncio.Seus gritos, presentes nas primeiras sessões, foram diminuindo, bem como sua agitação inicial. Após três meses, conheci a mãe, que trouxe sua irmã, um bebê decolo. Enquanto eu conversava com a tia e a mãe, F. aconchegou-se entre a mãe e a irmãzinha. O fato me chamou a atenção porque a tia havia dito que F. não gostavanem se aproximava de crianças. Orientei mãe e tia a ensinarem F. a comer na mesa, com garfo e faca, junto com a família, a dormir sozinho e a estimularem sua fala.A tia relatou que ele estava mais sociável, que já procurava outras crianças para brincar.Ainda no terceiro mês, F. começou a dialogar comigo. Não um diálogo verbal, com palavras, mas um diálogo com gestos e olhares. Como vi que F. ficava atento aossons, intensifiquei minhas intervenções nesse caminho. Eu fazia sons com os pés, dizendo: tá-tá-tá-tá, e com as palmas das mãos, dizendo: ti-tit-ti-ti. Ele prestavamuita atenção e depois oferecia suas mãos para eu bater palmas com elas. Então eu repetia: ti-ti-ti-ti. Brincávamos então com os pés, correndo de um lado a outro eemitindo sons. F. começava a repetir meus balbucios e gestos e interessou-se pelo pandeiro. Sua fronteira de contato se expandia.No quarto mês, F. direcionou, pela primeira vez, sua raiva contra mim, beliscando-me no rosto. Comentei que esse tipo de agressão não cabia, e que ele poderiadirecioná-la para o boneco inflável. Senti que agora nossa comunicação passava a ser mais efetiva. Até então ele estava me examinando, me conhecendo. Agora elese permitia mostrar como efetivamente era no dia-a-dia.Um dia, cheguei atrasada para a consulta. A reação de F. foi tentar me morder e beliscar, derrubando tudo o que havia nas prateleiras de brinquedos. Novamente euo lembrei do que ele não poderia fazer na sala e o impedi de agredir-me ou de quebrar os brinquedos. Não quebrar brinquedos tem que fazer parte do contrato coma criança, que deve saber que o material lúdico serve a todas as crianças que freqüentam o consultório.No sexto mês, a tia trouxe um exame neurológico que eu havia pedido logo no início. Conhecer a opinião de outros profissionais da área nos ajuda em nossaatuação. O diálogo com psiquiatras, neurologistas, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, fisioterapeutas, professores de educação física, ou outros profissionaisque também atendam a criança amplia nossa visão e facilita nossas intervenções. Podemos, às vezes, estar atuando em uma direção e os outros profissionais emoutra. O exame, solicitado logo no inicio do processo, só chegou seis meses depois porque a tia teve que esperar por um profissional que cobrava preços populares.O diagnóstico foi claro: autismo. Enquanto eu lia o exame, F. me beliscou e puxou o papel de minhas mãos: ele procurava chamar minha atenção, saindo de seumundo introspectivo. Confirmar o diagnóstico que eu havia pressuposto me dava mais segurança para orientar a tia, pois o prognóstico de autismo não é muitopromissor. A tia precisava saber que F. teria um longo caminho de cuidados pela vida afora. Conversei novamente com ela sobre o autismo, procurando colocá-la apar dos sintomas e das possibilidades de F.F. evoluiu na comunicação, mas as brincadeiras continuavam estranhas: colocava massa de modelar na boca, cheirava os objetos com freqüência, e ficava muitotempo se distraindo com folhas de cartolina, enroladas, que espalhava pelo chão. O tratamento teve que acabar porque a tia não podia mais trazê-lo. Talvez F. nuncavenha a falar, mas sua evolução era clara: já comia sozinho na mesa, brincava com outras crianças e não era tão agressivo.

MINHA EXPERIÊNCIA COM A.

A. tinha um grave déficit psicomotor, em razão de paralisia cerebral e uma cognição comprometida, em virtude de uma meningite aos cinco meses de idade. Aos oitoanos de idade andava como se fosse um autômato: pernas rígidas e pouca flexibilidade corporal. Não conseguia controlar o peso de sua mão, nem tão pouco seusimpulsos.Os pais o trouxeram a mim com a queixa de que ele vivia com a mão na boca, se mordia e se beliscava, não falava e tinha muito ciúme das outras crianças. A. tomavaum substituto do gardenal, medicação prescrita por um psiquiatra. Ele havia sido matriculado na classe especial de uma Escola Municipal, logo após ter começado aandar, aos oito anos de idade. A. se arrastara de barriga no chão até os sete anos de idade, apesar de receber acompanhamento fisioterápico desde um ano e novemeses.A. ainda usava fraldas quando entrou para a escola. Foram as professoras que o ajudaram a tirá-las. Eu entrava na equipe que o assistia com meus conhecimentosde psicologia. Ele já era acompanhado por um fisioterapeuta, uma fonoaudióloga, um pediatra e as professoras da escola, especializadas em crianças comdeficiência. A. não falava e seu olhar era o de um menino assustado. Aos oito anos, ainda se alimentava com a ajuda dos pais, dormia na cama deles, não tomavabanho sozinho e não brincava com os colegas na escola. A. não era filho único, mas sua única irmã já tinha 15 anos de idade. Nos primeiros dias de vida, os pais de A.

tinham muitas expectativas em relação a ele, o primeiro filho homem. Após sua doença ser confirmada, os pais tornaram-se mais protetores que a maioria dos pais,

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tinham muitas expectativas em relação a ele, o primeiro filho homem. Após sua doença ser confirmada, os pais tornaram-se mais protetores que a maioria dos pais,com a auto-estima muito baixa e quase nenhuma esperança no futuro do filho.Trabalhei com A. improvisando o atendimento em uma sala de reuniões do Lions Clube de Barreiros, onde havia muitas mesas e cadeiras de plástico queencantavam o menino. A. gostava de chutar bola, rasgar papel e amassá-lo, mas passava muito tempo da sessão empilhando as cadeiras da sala, separando-as eempilhando-as novamente. Jogamos bola em muitas sessões. Sua alegria se manifestava com movimentos desordenados, balançando os braços para o alto e ocorpo todo tremendo.Meu atendimento não se focava somente em A., pois eu realizava reuniões com seus pais, e os orientava para estimularem a autonomia do filho, por acreditar que aparticipação dos pais é muito importante durante o processo, pois são eles que convivem diariamente com as crianças e conhecem seu campo melhor que ninguém.Por campo, a Gestalt Terapia entende todos os relacionamentos que fazem parte do dia-a-dia da criança. O campo é como uma teia de relacionamentos, formadapor múltiplos fatores, com inter-relações complexas. Ao atender A. procurava conhecer, por intermédio de seus pais, sua relação com eles, com a irmã, com asprofessoras, colegas de classe, família, vizinhos, etc.Eu sempre procurava conhecer um pouco mais das crianças através do desenho, fazendo uso do HTP . Apesar de o teste ter um manual que interpreta os traços dodesenho, eu não me utilizo dele, pois uso o desenho apenas como um instrumento auxiliar para compreender a dinâmica da criança.A. não desenhava. Ele mal conseguia segurar o lápis. Quando o fazia, impunha tanta força nas mãos, que o papel se rasgava. Resolvi então desenvolver suahabilidade motora fina. Estimulei-o a brincar com um carrinho. Eu o empurrava em sua direção e pedia que ele o devolvesse para mim. A força que A. colocava noinício geralmente não deixava que o brinquedo corresse pelo chão, apesar da sala ter piso de cerâmica.Gradativamente, sessão após sessão, A. desenvolvia sua habilidade para empurrar o carrinho. Ele passou a fazer outros exercícios como abrir e fechar portas ejanelas e encaixar objetos. Aprendeu a tocar as cordas do violão, e não somente bater nele, como fazia no início do processo. Ampliando as possibilidades de A.exercitar suas funções de contato (tato, audição, visão, no caso de A.), eu procurava ajudá-lo a construir novas possibilidades para se relacionar no seu dia-a-dia. Acada avanço de A. eu descrevia a situação vivida por ele na sessão e confirmava suas potencialidades. Vale salientar que a confirmação é diferente do elogio. Euprocurava dizer: “Você viu, A., como está conseguindo desenvolver essa habilidade? Antes você não podia fazer isso.”A caneta foi deixando de furar o papel e A. foi, paulatinamente, aprendendo a rabiscar na folha, a colocar sozinho a colher de comida em sua boca, a dormir em seuquarto e a brincar com as outras crianças da escola.Durante todo o período de atendimento, o acompanhamento da vida familiar e escolar de A. foi fundamental. As conversas com seus pais e os profissionais que oatendiam ajudaram-me a conhecê-lo melhor.Os pais constroem expectativas em relação a seus filhos, até mesmo antes do nascimento destes. Quando estas expectativas se vêem frustradas, porque a criançanasceu com uma deficiência, os pais, na maioria das vezes, ficam sem saber como agir. Esta é a razão porque entendo ser muito importante que os pais das criançascom algum tipo de deficiência se mantenham em contato com o psicoterapeuta, que não somente irá conversar sobre o andamento da psicoterapia, como tambémpoderá orientá-los sobre a melhor forma de lidarem com a sua realidade.Passados dez meses do início do atendimento a melhora da acriança era nítida: A. havia desenvolvido mais habilidades motoras e socialmente estava mais bemajustado às suas possibilidades, fato não só observado nos atendimentos, mas também relatado pelos pais e por depoimentos das professoras, trazidos pelospróprios pais.

MINHA EXPERIÊNCIA COM M.

M., de nove anos, chegou ao Hospital Regional de Barreiros encaminhada pela fonoaudióloga do hospital, por apresentar gagueira, problemas de aprendizagem,onicofagia e muita agitação. Sua aparência pessoal me chamou a atenção, pois era de muito desleixo: os cabelos, as mãos, as unhas e as roupas estavam sujos.Na anamnese, a mãe relatou uma gravidez agitada: tentara abortar e quase fora assassinada pelo marido, que morreu quando M. tinha três meses de idade. Aos seismeses, M. mordia a própria bochecha até sangrar. M. morava com sua mãe, os irmãos e a avó. Após ficar viúva, a mãe de M. mudou-se para outra cidade, com a filhamais velha, deixando M. com a avó. Na casa dos avós, M. brincava sozinha, no quintal, com as galinhas e o cachorro.Quando chegou ao meu consultório, M. estava vivendo novamente com a mãe, com a irmã mais velha, de quinze anos, o irmão mais novo, de quatro anos, e opadrasto. A mãe afirmou que ela não gostava de brincar com outras crianças, que não tinha brinquedos porque não gostava deles, que dormia de olhos abertos efalava dormindo.M. permaneceu quieta durante a anamnese e não se importou quando a mãe saiu da sala. Conversei com M. sobre o trabalho que iríamos desenvolver e sobre apossibilidade de ela brincar com o que quisesse. Perguntei se gostava de desenhar e ela aceitou o convite, fazendo garatujas que falou serem meninos brincando debonecos e meninas brincando de bonecas. M. disse que não sabia desenhar uma casa ou uma árvore. Seus bonecos indicavam claramente que ela não tinha noçãode esquema corporal, como era esperado de uma menina de sua idade. Percebi também que não conhecia as cores.M. pediu para brincar com a massa de modelar. Disse que não tinha nenhum brinquedo e que seu irmão tinha carrinho e bonecos, mas que ela não brincava comeles. M. falou sobre seus avós. A gagueira não se manifestou em nossa conversa, fato que comuniquei à fonoaudióloga, e que analisei como sendo umamanifestação emocional da menina. Como eu havia criado um ambiente acolhedor no consultório, ela não precisava se esconder atrás do sintoma.No segundo mês, M. apareceu com sarna por todo o corpo, bastante ferido de tanto coçar. Orientei a mãe sobre os cuidados com a higiene das crianças e comocurar suas feridas. Como M. se interessava demais pelos brinquedos da sala, inclusive pelas bonecas, sugeri à mãe que comprasse alguns brinquedos, pois elaprecisava ser estimulada. A conversa com a mãe surtiu efeito: já no final do mês a aparência de M. era outra: cabelos penteados e lavados, sem feridas, bemarrumada.Logo ficou claro que M. tinha dificuldade em aprender: fiz inúmeras tentativas para que conhecesse as cores, e ela não progredia. Procurei ajudá-la com o esquemacorporal por meio do jogo Cara Maluca, oferecendo-lhe diversas peças de partes do rosto (olhos, sobrancelhas, bigode, cabelo, orelhas, nariz, chapéu) para montar orosto de um boneco, mas ela não conseguia. Pedi que se olhasse no espelho e fizesse um desenho de si mesma e ela continuava a desenhar garatujas (um círculomaior, com quatro círculos menores em volta e quatro círculos pequenos dentro).No terceiro mês, usando os “Contos de Madeleine” como recurso, M. falou, repetidamente, sobre apanhar dos pais. A mãe nunca comentou sobre bater na filha, masimaginei que isso devia ocorrer com certa freqüência porque M. era muito irrequieta e, provavelmente, a mãe não tinha paciência com ela.Como M. se sentia acolhida, respeitada e autorizada a fazer o que quisesse na sessão, respeitados os limites estabelecidos, ela brincava com o máximo debrinquedos que podia. Usava mais intensamente o dominó, o jogo de ludo, o jogo dos opostos, o mosaico, o jogo da memória, o jogo de damas e os fantoches.Assim, M. expandia suas fronteiras de contato, experimentando jogos e brincadeiras com os quais não estava acostumada. Eu a acompanhava, fazendo descrições equestionamentos para ajudá-la a tomar consciência de seus potenciais e necessidades.M. apresentava um comportamento hiperativo. Jogar com ela era permitir que trabalhasse a concentração. Os jogos são particularmente bons nos casos de criançasque têm dificuldade em se comunicar, e com aquelas que precisam de alguma atividade de concentração. São valiosos para melhorar as habilidades de contato naprópria situação terapêutica. (Oaklander, 1980, p. 197)No quarto mês, pensando em desenvolver sua sociabilidade, e acreditando que ela estava mais autoconfiante, sugeri que M. participasse de um grupo com mais três

crianças. M. concordou. Ficou isolada no início, brigou com uma e outra durante algumas sessões, mas com o tempo foi aprendendo a conviver e dividir os

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crianças. M. concordou. Ficou isolada no início, brigou com uma e outra durante algumas sessões, mas com o tempo foi aprendendo a conviver e dividir osbrinquedos.Eu direcionava alguns experimentos para que M. reconhecesse o esquema corporal, trabalhava com massa de modelar, deixando que ela levasse sua produção paracasa quando queria. Cinco meses depois do primeiro teste, eu voltei a aplicar os “Contos de Madeleine”: as respostas continuavam a apontar castigos corporais e M.continuava a apresentar muita agitação.Penso que nem sempre as orientações aos pais são suficientes. Parecia que a mãe tentava cuidar mais da filha, mas ainda não sabia lidar com sua hiperatividade.Aos poucos, a irmã de M., que passou a levá-la para a terapia, foi relatando que ela estava se comportamento melhor, em casa e na escola, apesar de não progredirna aprendizagem da leitura e escrita.No 11º. mês de atendimento, que coincidiu com o retorno das férias escolares, a mãe relatou que M. tinha voltado a gaguejar. Conversando com a mãe, soube que amenina tinha ido passar uns dias na casa dos avós e quando retornou à escola se deparou com uma professora nova. Conversando com a mãe sobre os novos fatos,sugeri que a menina poderia estar chateada por se afastar novamente dos avós e assustada com a nova professora, e a gagueira era sua forma de expressar essessentimentos. Na sessão, M. não gaguejou o que me levou a pensar que, de fato, o sintoma apresentado em casa e na escola foi a forma que M. encontrou paraenfrentar as mudanças ocorridas.Um ano e dois meses depois do início do atendimento, a mãe afirmou que M. estava bem melhor, ajudando-a nas tarefas domésticas, apesar de continuar agressivae agitada. Orientei que procurasse um psiquiatra, porque M. podia ter transtorno do déficit de atenção e hiperatividade e necessitar de intervenção medicamentosa.No caso de M, não posso dizer que houve grandes avanços. Mas nem sempre conseguimos grandes mudanças. No entanto, senti que alguma coisa havia mudadoem M. Ela aprendeu a conviver com outras crianças, conquistou um espaço saudável na família, e estava cada vez mais esperta nos jogos, apesar de continuariletrada.

O TRABALHO COM A FAMÍLIA

Conhecer os pais e responsáveis das crianças encaminhadas para psicoterapia, seu campo vivencial e como se relacionam com o mundo é fundamental para que sepossa realizar um bom trabalho, “desmistificando a idéia de que eles são meros fornecedores de informações sobre os filhos, e enfatizando-os como parteintegrante da problemática existencial da criança”. (Aguiar, 2005, p.54)É fundamental fazer contato com os pais e responsáveis desde o primeiro instante, ficando atentos para seus Selfs, para as expectativas que trazem em relação àcriança e à psicoterapia, seus medos e ansiedades em geral. Enquanto se recolhe dados sobre a criança, durante a anamnese, deve-se aproveitar para conhecer ofuncionamento da família, seus valores, crenças e que o que pensam a respeito do futuro dos filhos, aproveitando a oportunidade para algumas intervenções, senecessário, no sentido de facilitar a reflexão sobre si mesmos e seu relacionamento com a criança.O diálogo com os pais, desde o inicio da psicoterapia, permite que o terapeuta possa direcionar seu atendimento no sentido de fazer intervenções focais com acriança, sua família ou sua escola. Por não terem muitas oportunidades de falar sobre suas dificuldades frente à deficiência dos filhos, muitos pais ficam ansiosos ese sentem incapazes. Resgatar sua auto-estima e estimulá-los a perceber o quanto aprenderam com a criança, o quanto já trabalharam para seu desenvolvimento eos caminhos que ainda podem percorrer no sentido de aprender mais são passos importantes na terapia. Assim, durante todo o processo, o terapeuta devepromover encontros com os pais e responsáveis para ouvi-los e tirar suas dúvidas.No caso de atendimento a crianças com deficiências, acredito ser importante recomendar a leitura de livros sobre as deficiências, estimulá-los a procurarprofissionais especializados, como neurologistas, psiquiatras, fonoaudiólogos, terapeutas ocupacionais, entre outros, que podem esclarecer dúvidas. Outro recursointeressante é a indicação de filmes que apresentam casos de crianças e adolescentes com deficiência. Entre tantos filmes, sugiro, sobre deficiência mental: “Simplescomo Amar”, “Forest Gump”, “George, o oitavo dia” e “Uma lição de Amor”. Sobre paralisia cerebral: “Meu Pé Esquerdo”. Sobre autismo: “Rain Man”. Dessa forma,muitos pais que super-protegem seus filhos têm a oportunidade de mudar seu relacionamento com a criança, dando-lhe mais liberdade para crescer comautonomia. Entendo que a super-proteção contribui para o surgimento de crianças e adolescentes inseguros, incapazes de se ajustarem por desconhecerem seupotencial de transformação de si e do mundo.Um tema importante para abordar com os pais e responsáveis se refere aos limites que, muitas vezes, não são dados. A falta de limites de uma criança rapidamentese mostra no consultório. A colocação de limites é importante não somente para a socialização das crianças como também uma oportunidade de desenvolveremajustamentos criativos saudáveis. Na impossibilidade de fazerem tudo o que desejam, elas precisam buscar uma nova forma de satisfazer suas necessidades,desenvolvendo-se assim, simultaneamente, nos aspectos físico, cognitivo e emocional.Como vivemos numa sociedade pouco inclusiva, a maioria das pessoas desconhece as possibilidades de uma criança com deficiência mental e não sabe lidar comelas, porque não aprendeu a conviver com a diferença. Até há pouco tempo atrás, poucos pais levavam seu filhos com deficiência para shoppings, praças ouqualquer outro lugar público e elas eram afastadas dos alunos “normais” das escolas. Considerava-se que precisavam ter uma classe especial. Hoje esse conceitoestá mudando. A palavra de ordem é a inclusão social, a abertura de oportunidades para a convivência harmoniosa com a diferença.Ter encontros com os pais e responsáveis é uma oportunidade para conhecer seus valores, que podem estar sendo introjetados pelas crianças, prejudicando seudesenvolvimento. É também uma oportunidade para que eles reconfigurarem seus Selfs, uma vez que, através do diálogo com o psicoterapeuta, podem adquirirnovas informações e construir novas possibilidades de se relacionar com a sociedade e seus filhos. Ressignificando seu ser-no-mundo, podem olhar e conviver deuma forma diferente com seu presente.É importante observar que existem vários níveis de intervenção com os pais e responsáveis, para os quais o terapeuta deve estar atento:Ao longo das sessões, com o foco na relação criança/responsáveis, há quatro níveis diferenciados e complementares de intervenção: informação, orientação,sensibilização e facilitação da comunicação entre seus membros. Eles formam uma totalidade articulada e só possuem sentido como parte dessa totalidade. Acaracterização do acompanhamento familiar estaria prejudicada se deixássemos de lado qualquer um desses níveis de intervenção. (Aguiar, 2005, p. 245)

CONCLUSÕES

O grande objetivo da psicoterapia infantil é contribuir para o desenvolvimento da criança, oferecendo instrumentos facilitadores para que entre em contato comseus sentimentos em relação ao mundo que a rodeia e com suas emoções, vontades, necessidades e pensamentos, e se modifique, encontrando formas maissaudáveis de ajustamento criativo. O trabalho do terapeuta infantil que lida com crianças com deficiências é também facilitar sua inclusão social, na medida de suascapacidades.Schettini (1997), afirma que desenvolvimento e crescimento são coisas diferentes. Enquanto o crescimento se refere ao físico (estatura, força, amadurecimentoneurológico, motricidade, etc.), o desenvolvimento se liga ao processo de aprendizagem (experiência pessoal com a realidade interna e externa, contato com outraspessoas, referenciais) que a criança absorve de acordo com sua capacidade. “Está nas mãos do educador boa parte daquilo que uma pessoa poderá ser”. (Schettini,1997, p.12)O psicoterapeuta infantil é um educador por excelência, notadamente quando atua com crianças com déficit cognitivo, que habitualmente são pouco estimuladaspelos pais e sociedade em geral. Pelos estudos realizados, acredito que qualquer que seja a duração da terapia e a queixa apresentada pelos pais, a psicoterapia

sempre proporcionará benefícios, porque trabalha no campo psicológico e nas relações que as crianças estabelecem com o ambiente. Concordo com Yontef (1998)

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quando afirma que o campo da criança é como uma teia de relacionamentos. Quando os pais se queixam de determinado comportamento do filho, todos osrelacionamentos da criança devem ser considerados, uma vez que essa teia é sempre formada por múltiplos fatores, com inter-relações complexas. Seconsiderarmos o atendimento da criança, devemos estar atentos para sua relação com os pais, professores, colegas de classe, família, amiguinhos, vizinhos, ainfluência que exercem sobre ela seu sexo, sua posição na ordem de nascimento familiar, ou a deficiência que apresenta. No campo, tudo e todos estão emconstante movimento e sempre se constituindo, ou seja, o ser humano é um constante vir a ser.Procurei trabalhar com todos os fatores que influenciavam as crianças no espaço e no tempo. Em meu trabalho, evitei diagnóstico e rótulos para trabalhar com oque se mostrava, como se mostrava e para quem se mostrava; usando um termo Husserliano, em busca da essência, do retorno às coisas mesmas, paracompreendê-las.Os resultados do processo não aconteceram somente pelas intervenções realizadas, mas também pela forma como procurei estar com as crianças, aceitando-asexatamente como eram, respeitando seu tempo e capacidade de ajustamento. Procurando trabalhar na linha da não-diretividade, busquei dar a elas o máximo deliberdade e desenvolver uma sólida relação de confiança. Os sentimentos em relação a elas e ao trabalho que desenvolvi foram usados como ferramenta de análisee intervenção a serviço da própria relação terapêutica.Acredito que o processo de desenvolvimento é absolutamente singular, porque as pessoas são singulares, e se constroem a partir das relações que estabelecem, dasexperiências que vivenciam e das limitações com as quais precisam lidar. Tendo participado em um determinado momento da vida dessas crianças, acredito quemeu trabalho influenciou positivamente em seu desenvolvimento.Por ter sido realizada com crianças de baixo poder aquisitivo, de uma cidade do interior de Pernambuco, esta pesquisa é apenas um recorte da realidade dascrianças brasileiras com deficiência mental. Existem muitas outras possibilidades de estudo visando à melhoria da qualidade de vida deste público que, em 2006, foifoco da Campanha da Fraternidade da CNBB. Quem sabe mais psicólogos encontrem alternativas de atuação, incluindo a perspectiva da prevenção e voluntariado.

RERÊNCIAS

AGUIAR, Luciana. Gestalt-terapia com crianças, teoria e prática. SP, Pleno, 2005.AXLINE, Virgínia M. Ludoterapia – A dinâmica interior da criança. 2ª. ed. BH, Interlivros, l984.CAMARGO. Silvio. Manual de Ajuda para pais de crianças com paralisia cerebral. SP, Pensamento, 1999.MAICHIN, Vanessa. Os Diversos Caminhos em Psicoterapia Infantil. In: Angerami-Calmon, Valdemar A. et al. O atendimento Infantil na Ótica Fenomenológico–Existencial. SP, Pioneira, 2004.MELLO, Ana Maria S. R. Autismo – Guia Prático. Brasília, Ministério da Justiça, Coordenadoria Nacional para Integração da Pessoa Portadora de Deficiência, 2001.OAKLANDER, Violet. Descobrindo Crianças – a abordagem gestáltica com crianças e adolescentes. SP, Summus, 1980.REY, González. Pesquisa qualitativa em psicologia. SP, Pioneira, 2002.RIBAS, João B.C. O que são pessoas deficientes? SP, Brasiliense, 1983.SCHETTINI FILHO. Luiz. A criança de 6 a 10 anos – na família e na escola. Recife, Bagaço, 1997.YONTEF, Gary M. Processo, Diálogo e Awareness – Ensaios em Gestalt-terapia. SP, Summus, 1998.

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