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TR ATA MENTOS O PR E ÇO DA VIDA A sua saúde, ou de a alguém que você ama, tem preço? Ok, a resposta óbvia é não, mas vamos reformular a per- gunta: vale a pena vender a sua única casa para dar um mês de sobrevida a um parente com câncer? E se fossem seis meses? Um ano? As perguntas não são à toa. No caso de um pacien- te com câncer de pele, o gasto men - sal com o mais novo tratamento po- de éhegar a 6 dígitos e superar os R$ 300 mil - e, se ele der sorte, essa con- ta será paga por muitos meses: é que a boa notícia é que a sobrevida dos pa- cientes com câncer é cada vez maior. A má é que os custos para desen - volver novos medicamentos contra o câncer são altíssimos. E a cada no- va droga, os benefícios crescem, mas bem pouco. Parte da explicação está na lógica natural do processo. Anti - gamente, a evolução era maior e mais rápida porque saímos do zero na lu- ta contra o câncer. Agora, tentamos aprimorar os tratamentos. PRECISAMOS FALAR SOBRE DINHEIRO por MARCELA DONINI - Para desenvolver um remédio, a indústria farmacêutica gasta perto de US$ 1 bilhão. E tem cinco anos para recuperar o valor, antes que a patente seja quebrada. indústria farmacêutica, são as pe- quenas éhances de dar certo. De 10 mil moléculas testadas, com sor- te, apenas uma pode ter potencial para tratamento. Depois de pron- to, mais um problema: a patente . No Brasil, depois de 20 anos, um medicamento vira de domínio pú- blico' ou seja, qualquer laborató- rio pode replicar. O prazo come- ça a contar assim que o laboratório que desenvolveu o remédio regis- tra a patente, o que costuma acon- tecer alguns anos antes do lança- mento comercial. Vão uns 15 anos em pesquisa, desenvolvi- mento e testes. Ou seja: os labo- ratórios têm cinco anos para recu- perar aquele US$l bilhão em pes - quisa, o que catapulta o preço do medicamento para as alturas. Muitos desses novos medica- mentos são de terapia-alvo, ou se- ja, são moléculas que atacam ape- nas as cancerigenas, em vez de to- Em1987, os Estados Unidos gastaram US$ 24 bilhões nos cuidados com o câncer. Entre 2001 e 2005, o número dobrou para US$ 48,1 bilhões por ano. No Brasil, de 2008 para 2011, os gastos cresceram 51 %, e ultrapassaram os R$ 2,2 bilhões; em 2013, o valor subiu para R$ 2,6 bilhões. Hoje, estimativas de que, para desenvolver um úni- co medicamento contra o câncer, sejam gastos em tor- no de US$ 1 bilhão. O que encarece a conta , segundo a das as células do paciente - as saudáveis inclusive - como os remédios tradicionais. Uma evolução, claro, mas o cân- cer é um sistema tão complexo que bloquear uma célula tumoral não impede que outras voltem a se reproduzir se- manas ou meses depois. A tendência é desenvolver dro- gas que bloqueiem diferentes vias moleculares simulta- neamente ou usar vários remédios em combinação, o que levará a tratamentos cada vez mais caros. 36 I CÂNCER I SUPERINTERES SANTE 201S QUANTO VALE UM ANO A MAIS DE VIDA? Perguntei no começo da reportagem se a saúde tem pre- ço . Pois tem. Para a OMS , braço da ONU para a saúde, vale até três vezes o PIB per capita por ano de vida oferecido ao paciente. Para dar um exemplo: se fosse no Brasil, a cada

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TR A T A MENTOS O PR E ÇO DA VIDA

A sua saúde, ou de a alguém que você ama, tem preço? Ok, a resposta óbvia é não, mas vamos reformular a per­gunta: vale a pena vender a sua única casa para dar um mês de sobrevida a um parente com câncer? E se fossem seis meses? Um ano? As perguntas não são à toa. No caso de um pacien­te com câncer de pele, o gasto men­sal com o mais novo tratamento po­de éhegar a 6 dígitos e superar os R$ 300 mil - e, se ele der sorte, essa con­ta será paga por muitos meses: é que a boa notícia é que a sobrevida dos pa­cientes com câncer é cada vez maior.

A má é que os custos para desen ­volver novos medicamentos contra o câncer são altíssimos. E a cada no­va droga, os benefícios crescem, mas bem pouco. Parte da explicação está na lógica natural do processo. Anti ­gamente, a evolução era maior e mais rápida porque saímos do zero na lu­ta contra o câncer. Agora, tentamos aprimorar os tratamentos.

PRECISAMOS FALAR SOBRE DINHEIRO por MARCELA DONINI

-Para desenvolver um só remédio, a indústria farmacêutica gasta perto de US$ 1 bilhão. E só tem cinco anos para recuperar o valor, antes que a patente seja quebrada.

indústria farmacêutica, são as pe­quenas éhances de dar certo . De 10 mil moléculas testadas, com sor­te, apenas uma pode ter potencial para tratamento. Depois de pron­to, mais um problema: a patente. No Brasil , depois de 20 anos , um medicamento vira de domínio pú­blico' ou seja, qualquer laborató­rio pode replicar. O prazo come­ça a contar assim que o laboratório que desenvolveu o remédio regis ­tra a patente, o que costuma acon­tecer alguns anos antes do lança­mento comercial. Vão aí uns 15 anos em pesquisa, desenvolvi­mento e testes. Ou seja: os labo­ratórios têm cinco anos para recu­perar aquele US$l bilhão em pes ­quisa, o que catapulta o preço do medicamento para as alturas.

Muitos desses novos medica­mentos são de terapia-alvo, ou se­ja, são moléculas que atacam ape­nas as cancerigenas, em vez de to­

Em1987, os Estados Unidos gastaram US$ 24 bilhões nos cuidados com o câncer. Entre 2001 e 2005, o número dobrou para US$ 48 ,1 bilhões por ano. No Brasil , de 2008 para 2011, os gastos cresceram 51 %, e ultrapassaram os R$ 2,2 bilhões; em 2013, o valor subiu para R$ 2,6 bilhões. Hoje, há estimativas de que, para desenvolver um úni ­co medicamento contra o câncer, sejam gastos em tor­no de US$ 1 bilhão. O que encarece a conta, segundo a

das as células do paciente - as saudáveis inclusive - como os remédios tradicionais. Uma evolução, claro, mas o cân­cer é um sistema tão complexo que bloquear uma célula tumoral não impede que outras voltem a se reproduzir se­manas ou meses depois . A tendência é desenvolver dro­gas que bloqueiem diferentes vias moleculares simulta ­neamente ou usar vários remédios em combinação, o que levará a tratamentos cada vez mais caros.

36 I CÂNCER I SUPERINTERESSANTE 20 1S

QUANTO VALE UM ANO A MAIS DE VIDA? Perguntei lá no começo da reportagem se a saúde tem pre­ço. Pois tem. Para a OMS, braço da ONU para a saúde, vale até três vezes o PIB per capita por ano de vida oferecido ao paciente. Para dar um exemplo: se fosse no Brasil, a cada

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ano de vida que um paciente ganha com determinado tra­tamento' o teto de gasto deveria ser de R$ 33 mil, o equi­valente a três vezes o PIB per capita do Brasil. Nos Estados Unidos, o valor é fixado pelo governo: US$ 50 mil para ca­da ano a mais de vida. Assim, um tratamento é considera­do custo-efetivo, ou seja, só valeria a pena ser feito finan­ceiramente' se, do início ao fim, custasse este valor. Mas a realidade é que ele sempre extrapola - e ninguém vai dei­xar o paciente morrer, não é mesmo?

o BOLSO E O CÂNCER Cerca de 7S% da população brasileira depende exclusi­vamente do SUS; os outros 2S % são usuários de planos de saúde. Os dois grupos gastam a mesma coisa. Os cus­tos públicos do Brasil com saúde representam 5 % do PIB; somando os gastos suplementares (particular e planos), éhegamos a 9% - não precisa ser matemático para ver que a conta não feéha. Os dados se referem à saúde em geral, mas podem ser transpostos para o cenário do câncer. Na prática, isso significa que, enquanto os 2S% têm acesso a tratamentos mais caros e, portanto, quase sempre mais eficazes, os outros 75 % têm que disputar entre eles os va-10res determinados pelo governo para cada tipo e fase de câncer - e por isso, estatisticamente, morrem mais.

Há duas formas de o governo oferecer medicamen­tos para o tratamento de câncer. O jeito tradicional é via Apac - a sigla para Autorização de Procedimentos Ambu-1atoriais de Alta Complexidade. O formato garante o re­embolso de clínicas e hospitais com os gastos - embutidos aí também equipe médica e estrutura, além dos medica­mentos. Isso em tese, já que há medicamentos na lista do SUS que, em 2013, custavam mais do que a previ-são da Apac, como o erlotinibe e o gefitinibe, indi -cados para casos de câncer no pulmão. Os valores reais éhegam a R$ 2,9 mil e R$ 2,3 mil respeétiva­mente, enquanto a Apac é de R$I,1 mil.

Questionado pelo Instituto Oncoguia, o Mi­nistério da Saúde teria respondido que apenas 5 % dos pacientes com câncer no pulmão são elegíveis para esses medicamentos e que os outros gasta­riam R$IS0 com quimioterapia paliativa, sugerin­do que o que sobra de uns pode completar a con­ta de outros. Porém, segundo os médicos, na prá­tica' nem sempre a conta feéha. E quem fica com os pés de fora desse cobertor curto é o paciente. O que acaba ocorrendo é que o hospital banca ou li­mita o tratamento. "Depois que o paciente está ali na sua frente, você não nega o melhor atendimento possível. O que muitos hospitais fazem é não acei­tar mais casos novos", diz o oncologista e auditor em oncologista Leandro Brust.

A mais recente estratégia é a compra cen­tralizada' como no caso do trastuzumabe e do

OCASO TRASTUZUMABE

Um dos medicamentos mais procurados no SUS, para pacientes com câncer de mama HER 2 positivo, passou a ser distribuído pelo governo em 2012, com a expectativa de beneficiar 20% das mulheres com câncer de mama em estágio inicial e avançado.

De 2005 a 2012, morreram 5.696 pacientes com câncer de mama HER 2 positivo atendidas pelo SUS. Hoje o governo compra e distribui para os hospitais. Esse custo não entra na conta da Apac, o valor fechado reembolsado pelo governo por cada paciente atendido pelo SUS. O problema aqui é que nem todas paCientes com câncer de mama recebem o trastuzumabe. Os casos de metástase não são contemplados, apesar de estudos comprovarem que a adição do medicamento à quimioterapia dá até 17 meses de sobrevida às pacientes, além dos 20 meses estimados para quem se trata apenas com a terapia tradicional.

U8$124 bi foram gastos nos EUA

US$ 2,6 bi foram gastos no Brasil

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imatinibe, para o câncer de mama. Como com­pra em grande escala, o Ministério da Saúde tem mais poder de barganhar preços. Um bom negó­cio para os prestadores que pagariam mais ca­ro caso tivessem de adquirir eles próprios, mas com a desvantagem de ter de arcar com custos adicionais, como equipe médica, estrutura hos­pitalar etc. A saída para oferecer um tratamen­to melhor para pacientes do SUS acaba sendo as pesquisas clínicas (leia mais na página 42).

POR QUE NÃO HÁ MAIS GEN~RICOS? Copiar um medicamento biológico como os usados nas terapias -alvo é tão complexo como reproduzir o éhampanhe francês na garagem de casa. A dificuldade de fazer cópia não é pela fal­ta da informação da molécula, que se torna pú­blica após a quebra de patente. O problema é re­produzir o cenário adequado, como questões de armazenamento e deslocamento, que os labora­tórios não são obrigados a informar.

O médico sanitarista Gonzalo Vecina Ne­to , professor da Faculdade de Saúde Pública da USp, fundador e primeiro diretor -presidente da Anvisa, cita ainda outro motivo para um certo boicote aos genéricos oncológicos. E novamen­te voltamos à questão da grana. Acompanhe: os médicos reclamam que as consultas via convê­nio estão muito baratas e os hospitais, que as diárias estão defasadas. Nesse cenário, clínicas negociariam com os laboratórios preços mais baixos do que os contratados com os convênios e parte dessa diferença iria para o bolso de al­guns médicos - o que obviamente é ilegal, mas confirmado como prática por muitos especia­listas. No caso de recomendar genéri-cos' essa margem seria menor. "Isso é -

TRATAMENTOS O PREÇO DA VIDA

valores das mensalidades e do mau atendimen­to -, e entre pacientes e médicos, que atendem rapidinho para ganhar em volume o que per­dem no valor da consulta. Uma guerra de todos contra todos, como sugerem os médicos Drau­zio Varella e Mauricio Ceséhin no livro A Saúde dos Planos de Saúde (Paralela, 2014).

O CUSTO DA NÃO PREVENÇÃO Eliminar o fumo, o abuso de álcool, o sedenta­rismo e a má alimentação poderiam represen­tar a economia de 73 % gastos globais com casos de câncer relacionados a fatores externos. Con­siderando que cerca de 12% das folhas de pa­gamentos são destinados a custos com planos de saúde, muitas empresas já estão alertas. Uma campanha de prevenção direcionada ao públi­co certo, pode ser bem-sucedida para a saúde do paciente e as finanças da empresa. De acor­do com Rodolfo Milani, da consultoria em saúde Aon, para cada R$ 1 investido em prevenção há retorno de R$ 2 a R$ 3 ao longo de 12 a 24 meses. A economia vem do quanto se deixa de gastar em exames, por exemplo, e do quanto se per­deria com a ausência de um funcionário doente. No caso do câncer, é preciso ter em mente que existem duas frentes para se planejar economia de gastos: a prevenção, por meio de campanhas uma vida saudável e a detecção precoce dos tu­mores, o que aumenta as éhances de cura.A ve­lha máxima ainda vale: prevenir é mais barato do que remediar .•

impróprio, uma vez que o médico não deve e não pode inferir lucros condi­cionados por sua prescrição", afirma o oncologista Stephen Stefani, espe­cialista em economia da saúde. Ve­cina Neto explica que a migração de margem começou em 1994, com o Plano Real. "A indústria, que vive do que produz, teve seus preços alinha­dos, a saúde não. E em vez de ganhar por produzir serviços, passou a ga­nhar vendendo coisas", diz. "É pre­ciso aumentar o valor da consulta."

E aí entramos na briga entre pIa­nos de saúde e médicos, planos de saúde e pacientes - que reclamam dos

Copiar um medicamento como os usados nas terapias­alvo é tão difícil como clonar um éhampanhe francês. Mesmo com a quebra de patente, reproduzir logística e armazenamento dos grandes laboratórios é difícil.

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