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Manual de filosofia política flamarion caldeira ramos

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Participamdesteprojeto

AlbertoRibeiroGonçalves de Barros Professor de Ética e FilosofiaPolítica no Departamento de Filosofia da Universidade de São Paulo. ÉgraduadoemAdministraçãopelaFaculdadedeAdministraçãodeSãoPaulo(1984) e em Filosofia pela Universidade de São Paulo (1988). Possuimestrado(1992)edoutorado(1999)emFilosofiapelaUniversidadedeSãoPaulo e pós-doutorado pela Universidade de Londres (2009). É autor doslivros AteoriadasoberaniadeJeanBodin(Unimarco/Fapesp,2001)e DezliçõessobreBodin(Vozes,2011).Tempublicadoartigossobreopensamentopolíticomoderno.Trabalhaatualmentecomopensamentorepublicano.

Ari Ricardo Tank Brito Professor no Departamento de Filosofia doInstitutodeCiênciasHumanasdaUniversidadeFederaldeMatoGrosso.Fezmestrado pela Universidade de Varsóvia (Polônia) e doutorado pelaUniversidade de São Paulo (2007). Atualmente é o Coordenador daGraduaçãodoDepartamentodeFilosofiadoInstitutodeCiênciasHumanaseSociais (UFMT). Traduziu a Carta sobre a tolerância, de John Locke(Hedra, 2007) e o ensaio Sobre a liberdade de John Stuart Mill (Hedra,2010).

Bruno Costa Simões Possui graduação (2002), mestrado (2005) edoutorado (2010) em Filosofia pela Universidade de São Paulo. Atuaprincipalmente nas áreas relativas aos seguintes autores e temas: ThomasHobbes, mecanicismo, movimento das paixões; Leo Strauss, pensamentoconservador e democracia liberal; Carl Schmitt, crítica do extremismo dedireita.Atualmente desenvolve projeto de pesquisa de pós-doutorado sobre

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políticainternacionaleosimpassesentreoidealismonormativoeorealismoderuptura.ProfessordePensamentoCríticoeÉticanoInstitutodeEnsinoePesquisa(Insper).

CarlosEduardodeOliveiraProfessordoDepartamentodeFilosofiaeMetodologiadasCiênciasdaUniversidadeFederaldeSãoCarlos(UFSCar)eDoutoremFilosofiapelaUSP.ÉmembrodoCentrodeEstudosdeFilosofiaPatrísticaeMedievaldeSãoPaulo(Cepame).Atualmentetemsededicadoaoestudodetemascomoonominalismoeametafísicamedieval,easteoriasdoconhecimentodeTomásdeAquinoeGuilhermedeOckham.

DenilsonLuisWerlePossuigraduaçãoemEconomia(1995)emestradoemSociologiaPolíticapelaUniversidadeFederaldeSantaCatarina (1998),doutorado em Filosofia pela Universidade de São Paulo (2004) e pós-doutoradoemFilosofiapeloCebrap(2007).ÉprofessordeÉticaeFilosofiaPolítica no Departamento de Filosofia da Universidade Federal de SantaCatarina(UFSC),pesquisadordonúcleodeDireitoeDemocracianoCentroBrasileiro deAnálise ePlanejamento (Cebrap) e pesquisador doNúcleodeÉticaeFilosofiaPolíticadaUFSC(Nefipo).Atualmentedesenvolveprojetode pesquisa sobre pluralismo, tolerância e democracia na filosofia políticacontemporânea(RawlseHabermas).Éautordolivro JustiçaeDemocracia–ensaios sobre John Rawls e Jürgen Habermas (Esfera Pública, 2008) eorganizou Democraciadeliberativa(EsferaPública,2007).

EnioPassianiPossuidoutoradoemsociologiapelaUniversidadedeSãoPaulo(2007).ÉprofessordasFaculdadesdeCampinas(Facamp)eautordolivro Natrilhadojeca–MonteiroLobatoeaformaçãodocampoliterárionoBrasil(Edusc,2003).Atualmenteiniciapesquisanaáreadesociologiadacomunicação, especificamente sobre as relações entre internet, sociedade epolítica,apartirdoestudodealguns blogsdepolítica ligadosa importantesperiódicosnacionais.

FelipeGonçalvesSilvaDoutoremFilosofiapelaUniversidadeEstadualde Campinas (IFCH/Unicamp). Possui graduação em Filosofia pelaUniversidade de São Paulo (FFLCH/USP) e em Direito pela PontifíciaUniversidadeCatólicadeSãoPaulo(PUCSP).Fezestudoscomplementaresna Albert-Ludwigs-Universität Freiburg e na Freie-Universität Berlin. Épesquisador do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap) emembrodonúcleodeDireito eDemocracia.Temexperiência nas áreas deFilosofia e Sociologia Jurídica, com ênfase em teoria crítica, atuandoprincipalmente nos seguintes temas: teoria democrática, esfera pública,

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movimentossociaiselutaspordireitosnaAméricaLatina.FlamarionCaldeiraRamos Professor de Ética e Filosofia Política da

UniversidadeFederaldoABC.Possuigraduação(2001),mestrado(2003)edoutorado(2009)emFilosofiapelaUniversidadedeSãoPaulo,comestágiona Johannes Gutemberg Universität Mainz daAlemanha (2006). Fez pós-doutoradonaUniversidadedeSãoPaulocombolsadaFapesp(2010-2011).TemdesenvolvidopesquisasobreaTeoriaCríticadaEscoladeFrankfurtepublicou diversos artigos e traduções sobre Schopenhauer e o pessimismofilosófico.

JonasMarcondesSarubideMedeirosPossuigraduaçãoemRelaçõesInternacionais pela Universidade de São Paulo (2008). Atualmente émestrandonoDepartamentodeFilosofiadestamesmaUniversidade,alémdemembrodoNúcleodeDireitoeDemocraciadoCentroBrasileirodeAnálisee Planejamento (NDD/Cebrap). Tem experiência nas áreas de Filosofia eRelações Internacionais, atuando principalmente nos seguintes temas: teoriacrítica, teoriadasciênciashumanas, sociologiaalemã,movimentos sociaiseeducaçãopopular.

José Carlos Estêvão É professor Livre-Docente do Departamento deFilosofiadaUniversidadedeSãoPaulo.Émembro fundadordoCentrodeEstudos deFilosofiaPatrística eMedieval deSãoPaulo (Cepame– 1992).Trabalha com Filosofia, com ênfase em História da Filosofia, em especialcomosseguintestemaseautores:onominalismomedieval,PedroAbelardoeGuilherme de Ockham, e o pensamento político de Tomás de Aquino eAgostinhodeHipona.

Maria Isabel de Magalhães Papaterra Limongi Professora daUniversidadeFederaldoParaná.Formou-seemFilosofiapelaUniversidadedeSãoPaulo(1990),ondetambémconcluiuseumestrado(1994)edoutorado(1999). É autora do livro O homem excêntrico: paixões e virtudes emThomasHobbes(Loyola,2009).

Marisa da SilvaLopes É professora daUniversidade Federal de SãoCarlos, no Departamento de Filosofia e Metodologia das Ciências. Possuigraduação (1997), mestrado (2000) e doutorado (2004) em Filosofia pelaUniversidadedeSãoPaulo.Traduziu AprudênciaemAristóteles, dePierreAubenque (Discurso Editorial, 1998), e é autora de O animal político:estudossobrejustiçaevirtudeemAristóteles(EsferaPública,2009).

RúrionMeloProfessordeTeoriaPolíticadoDepartamentodeCiências

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SociaisdaEscoladeFilosofia,LetraseCiênciasHumanasdaUniversidadeFederaldeSãoPaulo(Unifesp)epesquisadordoCentroBrasileirodeAnálisee Planejamento (Cebrap). Possui graduação (2003), mestrado (2005) edoutorado(2009)emFilosofiapelaUniversidadedeSãoPaulo(USP),epós-doutorado pelo Cebrap (2011). Foi pesquisador visitante da J. W. GoetheUniversitätFrankfurtamMainedaFreieUniversitätBerlin(2007e2008).ÉcoordenadordoGrupodeEstudosdePolíticaeTeoriaCríticadaUnifespeeditordoseloEsferaPública.Éautorde Ousopúblicodarazão:pluralismoe democracia em Jürgen Habermas (Loyola, 2011) e organizou (com D.Werle)olivro Democraciadeliberativa(EsferaPública,2007).

YaraFrateschiProfessoradeÉticaeFilosofiaPolíticanaUniversidadeEstadual de Campinas desde 2004. Possui graduação (1997), mestrado(1999), doutorado (2003) e pós-doutorado (2004) em Filosofia pelaUniversidade de São Paulo. Pesquisadora visitante naColumbiaUniversity(2000)enaENSdeParis (2006).Éautorade A físicadapolítica:HobbescontraAristóteles(EditoradaUnicamp),bemcomodeartigosecapítulosdelivrossobreAristóteles,ThomasHobbes,JohnLockeeHannahArendt.

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Introdução

O manual que o leitor tem em mãos pretende apresentar as ideiasfundamentais da história da Filosofia Política. Não se trata de um resumo dasprincipaiscorrentesedosprincipaisautoresdessahistória,masdeumaintroduçãoa seus momentos cruciais. Por isso, os capítulos estão organizados de formacronológica, partindo da Filosofia Política na Antiguidade até a discussãocontemporânea. Porém, mais importante do que conhecer a linha do tempo éentender certas questões da história da Filosofia Política. É o desdobramentoconceitual que oferece, então, o principal fio condutor: pormeio dele se podeobservarodesenvolvimentodetemasaindapresentesnodebatecontemporâneo:justiça, democracia, liberdade, soberania, poder e reconhecimento, para ficarsomente em alguns. Com a contextualização histórica das sucessivas doutrinaspolíticas do Ocidente, o leitor terá contato com as origens e as bases dosprincipaisproblemasdateoriapolíticanaatualidade.

Háalgum tempoo ensinodeFilosofia temsidoobrigatórionas escolasdoBrasil,demodoqueosmanuaisparaoensinosuperiorjánãoprecisamintroduziro aluno naFilosofia antes de passar ao estudo de seus temasmais específicos.Contandocomesserequisitoprévio,ostextosdestelivroapresentamosprincipaistemaseautoresdaFilosofiaPolíticasupondoqueseusnomesjásejamfamiliaresaosleitores.Poressarazão,evitamosdescreveravidaeaobradecadaumdeles,imaginandoserpossívelumacompreensãoinicialdesuasteoriaspolíticassemterde reconstituir todosos detalhes dos seus sistemas filosóficos (ou “teóricos”, jáque também tratamos de autores – comoMaxWeber, Pierre Bourdieu e CarlSchmitt–quenãosãofilósofosnosentidoestritodotermo).Olugar-comumseriadizer o contrário: que não é possível a compreensão exata do que cada autor

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pensasobrea“justiça”,porexemplo,semoprofundoconhecimentodateoriaqueestáemsuabase.Certamenteoleitorquepretendeobtera“compreensãoexata”eprofundadopensamentodessesautoresarespeitodapolíticaterádesevoltaraoestudo das fontes originais, isto é, das obras propriamente ditas, além docomentárioespecializado.Estimularoleitorairalémdesseprimeirocontatoé,nofundo,oqueesperamosconseguir.

Este livro é constituído por doze ensaios introdutórios sobre alguns dosprincipais temas da Filosofia Política. Em cada um deles são apresentados ospensadores mais representativos dentro de cada recorte: temos, então, noscapítulossobreaFilosofiaPolíticanaAntiguidadeenaIdadeMédia,osnomesdePlatão, Aristóteles, Santo Agostinho, São Tomás de Aquino e Guilherme deOckham; no capítulo sobre oRepublicanismo temosCícero eMaquiavel, e nocapítulosobreSociologiaencontramosnomescomoKarlMarx,MaxWeber,T.Parsons,P.Bourdieueoutros.Umavezquecadacapítulorepresentaumrecorte,algunsautoressãomencionadosemmaisdeumcapítulo:assim,HobbeseLockeaparecemtantonoContratualismocomonoLiberalismoClássico;eKarlMarxémencionadonãoapenasnocapítulosobreosteóricosdaSociologia,mastambémsobreoSocialismo;seHegeleKantsãotratadosespecificamentenoCapítulo6,seus nomes reaparecem nos Capítulos 7, 10 e 12. As constantes remissõesdemonstram não apenas a riqueza de suas obras, mas, ainda, a dificuldade deenquadrá-losemumaúnicaperspectiva.

Impossívelevitaraausênciadealgunsnomesimportantes,umavezqueestemanual não se pretende exaustivo.Mesmo tendo procurado, em cada capítulo,explicardetalhadamenteacontribuiçãodecadaumdosautoresmencionados,aintençãosemprefoioferecerumroteirodeleituraparaumafuturapesquisamaisaprofundada. Julgamos, porém, que a leitura deste livro não deixará de serproveitosaparaaqueleque, já tendonoçõesbásicasde filosofia,queira terumavisãodeconjuntodahistóriadaFilosofiaPolíticaocidental.

Aseleçãodostemasprocurouprivilegiarantesdetudoosclássicos:nãoseriarazoáveldeixarnomescomoAristóteles,Maquiavel,Hobbes,RousseaueMarxforadeummanualsobreFilosofiaPolítica–ummanualquetemapretensãodeabranger tanto a história quanto o debate contemporâneo.Mas é sobretudo emrelação à discussão atual queo leitor encontrará as lacunasmais consideráveis:apenasdeterminadostemasdodebateatualforamincluídos,oquesejustificanãoapenaspelalimitaçãonecessáriaeinevitáveldoespaço,mastambémpelofatodequeadiscussãopolítica contemporâneanãopoderia ser esgotadadentrodeummanual, que tem como objetivo justamente a formação do leitor para sua

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participaçãonessedebate.Ascorrentesediscussõesatuaismencionadasnostrêsúltimos capítulos foram escolhidas tendo em vista justamente o fato derecuperarem questões presentes na tradição e, com isso, oferecerem exemplosadequados (embora não os únicos possíveis) para mostrar a persistência e arelevânciadosautoresdiscutidosnoscapítulosanteriores.

A reflexão sobre a política, talvez mais do que qualquer outro tipo dereflexão,jamaissedeixaesgotarpelaabordagemmeramentehistórica.Estelivroestá longedeofereceruma“arqueologia”das teoriaspolíticasouestabelecerdemodo aprofundado a “genealogia” de certos conceitos. Trata-se, antes, derememorarasorigensdeumaconversaqueseestendeatéosdiasdehoje,cujasconsequências e desdobramentos dificilmente se podem vislumbrar. Comomanual,olivronãopretendesermaisqueumguiaparaquemseinicianoestudodas teorias políticas,mas, como livrodeFilosofiaPolítica, pretende convidar oleitor para além da abordagem informativa, para o engajamento crítico naconstruçãodeumidealdevidaemsociedade.

Oscoordenadores

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PlatãoeAristótelesONascimentodaFilosofiaPolítica

MarisadaSilvaLopesJoséCarlosEstêvão

Bibliografia

1.1.ÉticaepolíticanaAntiguidadeTantoaéticaquantoapolítica,talcomoasconcebemoshoje,nasceramnas

cidadesgregas,entreosséculosVIeIVantesdaeracorrente.Nãoéporacasoque ainda as designamos compalavras gregas: ética vemdo grego ethos (algocomo“costumes”)epolíticade polis(algocomo“cidade”).

Ora,“costumes”e“cidades”sãomuitomaisantigosdoqueisso.Oquehá,pois, de tão peculiar na concepção grega daquela época que pôde marcarindelevelmenteasnossasformasdepensamento?

Certa concepção de igualdade, de isonomia. As cidades gregas eramescravistas.Aescravidãoeracomumemuitoantiga,mas,emgeral,sediluíaemformas muito variadas de servidão, que comportavam a composição dos maisdiversosgrausdeservidãoeliberdade:mesmoosmaispoderososeramservosemrelação ao rei (qualquer que fosseo títuloque tivesse).Nas cidadesgregas, aocontrário, houve uma contraposição polar entre livres e escravos.E os homens

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livreseramconsideradosiguaiscomoabsolutamentelivresemcontraposiçãoaosescravos,tambémiguaisemsuaabsolutaprivaçãodeliberdade(cf.VERNANT,2002;2005;VERNANT;VIDAL-NAQUET,2008).

Tal concepção de igualdade se exprime demaneiramais clara na reformapolíticadas leisdacidadedeAtenas feitaporSólonemfinsdoséculoVIa.C.Entremuitasoutrasmudanças,comoaextinçãodapenadeescravidãopordívida,Sólon misturou todos os clãs, famílias e posições sociais (comerciantes emarinheiros, donos de terra e arrendatários etc.) e os dividiu e reagrupou porsorteio. Por sorteio porque se todos são iguais não há nenhum critério paradistinção.Osnovosagrupamentosassimcriadosformavamalgocomo“distritoseleitorais” – muito heterogêneos do ponto de vista social – que elegiam ousorteavam,dependendodasituação,aquelesquedeveriamocupar,porturnos,asfunções de direção da cidade, além de participarem todos da assembleia, averdadeiragovernantedaAtenasdemocrática(cf.MOSSÉ,1982;2008).

Como se vê, essa ideia de igualdade está muito longe de sua concepçãomoderna, segundoaqual“todososhomensnascemlivrese iguais”.Ocidadãopensadopelosgregoséigualporqueeenquantoélivre.Esãohomens,nosentidoestritodo termo:mulheresecriançasestãoexcluídas (assimcomo,emgeral,osquenãonasceramnacidade).Noentanto,malgradosuafaltadegeneralidade,anoçãodeigualdadeteveumimpactoextraordináriotantonavidagregadeentãoquantonahistóriadopensamentoocidental.

Emprimeiro lugar, asmuitas cidadesgregas reivindicavam sua autonomia,seupoderdeseautogovernar.Asformasdegovernoescolhidasvariavamquasedecasoacaso,emborapudessemseragrupadasemregimesdetipomonárquico(com um ou dois governantes), de tipo aristocrático (com um grupo degovernantes), e de tipo democrático (com todos governando por meio daassembleia). Ainda assim, independentemente de qual fosse o regime, opressuposto da igualdade em que se baseava a autonomia era suficiente paraobrigar a um uso do poder diferente do tradicional.Aos inferiores, servos ouescravos, sedáordens.Aos iguais, não.Nãohá, sobre aquelesque são iguais,nenhum poder superior: nem rei, nem patrão, nem deus. Com eles se devemapresentarasrazõespelasquaisseordena,deve-seargumentarparaconvencê-los.Equantomaioronúmerodaquelesqueparticipavamdogovernodacidade,maisintensaerefinadasefaziaanecessidadedeargumentação.

Enquanto as formas tradicionais de concepção do poder podiam serrepresentadaspormetáforascomoadoreicomopastorqueconduzseupovo,oucomo jardineiro que o faz florir (ambasmantendo uma diferença de qualidade

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entreogovernante eosgovernados), ametáforapor excelênciadopoder entreiguais é a do círculo cujo centro, equidistante de cada um dos pontos dacircunferência, está vazio e é ocupado sucessivamente por cada um dos quedelimitamacircunferência.

Tal foi, de modo exemplar, o caso do regime democrático de Atenas.Começandopeloexercíciodajustiçaeindoatémesmoàdeterminaçãodastáticasdebatalhanaguerra,tudoeradebatidoeresolvidopelaassembleiadoscidadãos(e pouco lhes importava que os espiões inimigos evidentemente assistissem àdeliberação).OshomensquegovernaramAtenasforam,antesde tudo,grandesoradores.

A eliminação da referência à autoridade exterior entre homens iguais e anecessidadedeargumentarcomtodososdemaisdeunascimentoanovasformasdepensamento,dentreasquaisamaisinfluentehistoricamentefoiaFilosofia,e,nela,aÉticaeaPolítica,taiscomoasconcebemosdesdeentão.

Apassagemdasformastradicionaisdeautoridadeparaonovoexercíciodacidadania foi um parto doloroso (VERNANT;VIDAL-NAQUET, 2008). É oque mostra a tragédia grega, pondo em cena o conflito entre a lei e a moraltradicionaiseasleiseanovamoraldacidade,comoocorre,demodoexemplar,napeçadeSófocles, Antígona:quandoCreonte,reideTebas,ordena,emnomedas leis da cidade, que o corpo do irmão de Antígona fosse deixado semsepultura,ela,apoiando-senastradições,confrontaCreonte.Cadaumaseumodotemboasrazõesaapresentar.Mascomoelasdecorremdecódigosopostos,cujosfundamentos não podem nem ser comparados, o embate torna-se mortal paratodososenvolvidos.

De modo muito mais ameno, o mesmo faz a comédia, como quandoAristófanes, em As nuvens, põe em cena ninguém menos do que Sócrates,criticando impiedosamenteosdeuses tradicionais (“NãoéZeusque fazchover,são as nuvens, idiota!”) e apresentado como um sofista que pode ensinar aargumentação necessária para escapar da justiça, em particular, escapar doscredores. Embora ainda hoje a peça seja engraçada, parece-nos extremamenteinjusta com Sócrates, mas aponta com igual clareza o mesmo conflito entre atradição e as novas concepções. O que não teve graça nenhuma é que, narealidade, como se sabe, Sócrates terminará sendo condenado à morte sob aacusação de desrespeito aos deuses. O conflito se mostra tão dilacerante quetambémacomédiaterminaemtragédia.

Ambos os elementos, certo “desrespeito aos deuses” e a possibilidade de

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argumentarcontraajustiçadecorremigualmentedopredomíniodaargumentaçãoentreiguaisnaGréciadeentão.

AristófanespõenabocadeSócratesque“nãoéZeusquefazchover”.Édetodo improvável que justamente Sócrates sustentasse essa tese.Mas ela ilustraperfeitamenteoesforçoquevinhasendofeitoentãoparacompreenderomundosem referência à autoridade, isto é, nesse caso, à autoridade dos mitos e dareligiãotradicional.Os“sábios”,chamadosdesofistas,apresentavamrazõespelasquais se pudesse compreender a natureza. Ou seja, fundavam o que veio a sechamardeFilosofia. Independentementeda referênciaaosdeuses (oudaabertarefutação de sua existência), a grande diferença é que os deuses não eram ofundamento da argumentação: ela devia sustentar-se apenas nas razões queapresentava.Abria-seumcapítulonovonahistóriadoespíritohumano.

Alguns sábios, como Tales ou Pitágoras, Parmênides ou Heráclito,dedicavam-se ao conhecimento racional da natureza (historicamente, nós osbatizamosde“pré-socráticos”),outros,aquelesquetornaramonome“sofista”uminsulto,dedicavam-seasaberbemargumentar.Ora,seminhasdemandasjudiciaisdependemdacapacidadedeargumentação(enãodobeneplácitodeumrei,fosseelesábioounão),ébastanteprovávelqueeumevejalevadoacontratar,mesmoque custe caro, alguém,umespecialista, que argumentepormim.Quantomaisdesesperadaminhacausa,quantomaiselaseafastadajustiça,maisprementesefazoauxíliodoespecialistaemaiscaraatarefa.Nãoédifícilimaginarcomoemtalsituaçãohouvessequemseoferecesseparadefenderqualquercausa,fosseounãojusta.Daíqueapalavra“sofisma”,oargumentodosofista,veioasignificar“argumentofalso”.

Narealidade,esseéoretratopintadopelosadversáriosdossofistas.Defato,os sofistas sabiam argumentar e ensinar a argumentar. Os poucos exemplostextuais que chegaram até nós, como o Elogio de Helena, de Górgias, sãoimpressionantes. Protágoras, o mais importante deles na época de Sócrates,mereciaorespeitomesmodePlatão,quedáseunomeaumdeseusdiálogos.Eelestambémsabiamargumentaremdefesaprópria.Nãohá,diziam,algoquesejaaverdade.Tudoérelativoaomodocomonosaparece:“ohomeméamedidadetodasascoisas”,éaboa retóricaquedeterminaoqueébome justooumaueinjusto.

Seconfinadasàspendências jurídicasdoscidadãosessas teses jácausavammal-estar, na condução da assembleia que governava Atenas pareciam, paraalguns, catastróficas. Um bom orador era perfeitamente capaz de orientar aopiniãodamaiorianãoemdefesadosinteressesdacidadecomoumtodo,masde

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gruposouindivíduos,emdefesadeinteressesmenores.Piorainda,comointuitodemanter seu prestígio, o sofista tendia a ajustar-se à opinião damaioria, a sefazerseuporta-voz,semseperguntarseaopiniãomajoritáriaeraounãoamelhorparatodos.Ouseja,tornava-seumdemagogoefaziadademocraciademagogia,termoquesignificava“conduziropovo”,masqueveioasignificarjustamenteafalsadireção.

Imagine-seadificuldadequeteveTemístoclesparaconvencerosateniensesaescolheraperigosaestratégiadeabandonaracidadeeembarcar, semnenhumaretaguarda, numa batalha de vida ou morte contra os invasores persas. Odemagogo teria preferido contemporizar com o medo que a maioria sente edefenderestratégiasmenosassustadoras,mesmoqueestascolocassememriscoasobrevivência deAtenas.O contrário do demagogo é o phronimos, isto é, umhomem“prudente”,quesabereconheceroqueémelhorparatodos,mesmoqueoremédiosejaamargo.O phronimosporexcelênciafoiPéricles,virtualgovernantedeAtenasporquarentaanos(MOSSÉ,2008).Odemagogo,aocontrário,afagaosdesejosdamultidão;suaretóricabuscaantesmoveraspaixõesdamaioriadoqueesclarecerarazãodetodos.

AristófaneschamaSócratesdesofista.MasSócratesdizianãopoderaceitarotítulode“sábio”porque,afinal,aúnicacoisaquesabiaeraquenãosabianada.Nomáximo, poderia ser chamado de “amigo da sabedoria”, isto é, de filósofo.Comonãosabianada,nãopodiareceberalunoseserremuneradoporeles,comofaziam os sofistas. Nem defender causas alheias. Mas era um “amigo dasabedoria”porquesededicavaabuscarconhecerracionalmente.Nãoosmistériosdanatureza,comoseusantecessores(poucolheimportavamascausasdachuva),masosprocedimentosdoshomens.Interrogandoseusinterlocutoressobretemascomoajustiçaouacoragem,praticavaoqueviriaaserconhecidocomoÉticaecomoPolítica.

1.2.PlatãoSócratesnãoescreveunadaetudoquesabemosdeleépormeiodeterceiros,

em especial domais talentoso de seus discípulos, Platão.NossoSócrates é, narealidade,umapersonagemliteráriadosdiálogosdePlatão.

Todos sabemos o que é a coragem. Mas quando, no diálogo de Platãochamado Laques,Sócrates interrogaseus interlocutoressobreo tema,entreeles

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doisafamadosgenerais,percebe-seumaenormedificuldadeparadefiniroque,defato, seria a coragem. Nenhuma das definições é suficiente ou está isenta decontradições.Acoragemnãopodeserdefinidaporenfrentaro inimigo,porquenemsempreéprudentefazê-lo(éprecisodistinguirentrecoragemetemeridade),mas tampouco seria aceitável defini-la como enfrentar o inimigo quando éconvenienteefugirdelequandonãoé.Todasasrespostassãorefutadaseoúnicoganhododiálogoéacertezadequeaindanãosabemosdefinircoragem.Mesmoassimestamosmaissábiosdoquenocomeço,porqueagoraconhecemos nossaignorânciasobreoqueseriaacoragem.

BustodemármoredePlatão.CópiadooriginalgregodeSilanions,séculoIVa.C.

Diversos diálogos de Platão são aporéticos, isto é, sem solução, emboraensinandoque não se sabe aquilo que se acreditava saber: um ataque frontal à“sabedoria” dos sofistas. Faltamostrar que podemos, sim, conhecer a verdade,tarefabemmaisárdua.

Até porque é possível mostrar, como faz Heráclito, que “tudo é fogo”,significandoque tudomudacontinuamente.“Nãosepodeentrarduasvezesnomesmo rio”, imagemque não poderia sermais clara, pois o que chamamosde“rio” não é senão o correr de águas que nunca são as mesmas e, dito assim,percebemosquetambémjánãosomososmesmos,mudamostantoquantoorio.Omovimento não seria aparência, mas a própria natureza de tudo que existe.

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Razãopelaqualtudoquesepodeconhecerdealgoéque,sejaoquefor,mudaperpetuamente. Portanto, não pode ser conhecido. Tese desconfortável para“sofistas”,quepretendiamtudoconhecer,aomenostalcomonosaparece.

Contraapretensãosofística–aliás,muitobemargumentada,comoseriadeseesperar–dequeascoisassãocomonos aparecem,seopunhaademonstraçãodequeaverdadeexigeaabsolutacontraposiçãoentreoser(oqueé)eonão-ser(o que não é).Mais ainda: não há, nempode haver, o “não-ser”, como é fácilperceberselevarmosasérioosignificadodaspalavras.Sendoassim,o“oqueé”édesdesempre,poisnãopodehaverumantes,queseriaum“não-ser”.Éúnico,pois tudo que fosse diferente do ser simplesmente não existiria.É imóvel, poisnadapoderiapassarde“não-ser”aser,oque implicariaqueo“ser”se tornariaalgodiferente,esabemosqueoqueédiferentedesersimplesmentenãoexiste.Tais são, grossomodo, as teses de Parmênides. Simultaneamente irrefutáveis einadmissíveis,poisanós pareceevidentequeascoisassãoedeixamdeser,quemudam e se transformam. Veja-se, por exemplo, a cerrada discussão sobre oargumentodeParmênidesnodiálogodePlatãochamado Osofista.

Énessepanoramafilosóficoque,comodissemos,Sócratessedebruçasobreumnovocampodeconhecimento:odasaçõeshumanas.Umacoisaédebatermossobre a realidade primeira das coisas, outra, bem mais premente, é nosperguntarmossobreapossibilidadeounãodajustiça, temadomaisfamosodosdiálogosdePlatão: ARepública.

Asituaçãoamenaebucólicanaqualcomeçaodiálogodegenerarapidamentequando Trasímaco, uma das personagens do diálogo, interrompe mais umaatuaçãodeSócrates–queestámostrandocomoéinsustentávelumaboatentativatradicionaldedefinirjustiça(“daracadaumoquelheédevido”)–dizendoqueSócrates só sabe discordar e que ele, sim, Trasímaco, pode definir a justiça:justiçanãoserianadamaisquealeidomaisforte.Afinal,nãoéoquesevê?Nãoéoqueaparece?

OproblemaéqueaafirmaçãodeTrasímacotemumpressuposto:entende-sequejustoéseguiralei.Ora,dizele,aleiéfeitapelomaisforte(sejamreis,sejamassembleias,tantofaz)eemseubenefício.Note-sequeseéassim,simplesmenteajustiçanãoexiste,éapenasinteresseparticulartransformadoemlei.

Malgrado a grosseria de seu interlocutor, Sócrates tenta levar Trasímaco aconcederquesemprehaveriaapossibilidadedeolegisladorerrarefazerumaleicontra seu interesse, o que invalidaria sua definição. Mas Trasímaco não estádispostoaconcedernada:quandoolegisladorlegislacontraseusinteresses,nãoofaz enquantolegislador.Assimcomoomédicoque,aoinvésdecurar,envenena

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comseusremédiosopaciente,nãoofaz enquantomédico.Nãoémédico,apenasparece ser médico. É fácil imaginar um rápido esboço de sorriso no rosto deSócrates.Oxeque-mateestápronto.Mesmoparaseuadversárioéprecisoiralémda aparência, sempre é preciso procurar o que a coisa é enquanto tal. Porexemplo,ajustiçanelamesmaenãoaaparênciadejustiça.

Éverdadequenãoénadafácildeterminaroquesejaajustiçaenquantotal.Nãoaaparênciadejustiça,masadefiniçãoprópriadejustiça.TantoqueprimeiroSócratesmostracomoatesedeTrasímacoétotalmenteindefensáveleestabeleceanecessidadedebuscaraverdadeiradefiniçãode justiça.Pretenderequipararajustiça à força, como quer Trasímaco, longe de fortalecer o tirano, só oenfraquece, pois mesmo uma quadrilha de ladrões ainda exige uma justadistribuição do botim, sema qual ela se desfaz emódio e luta interna.Quantomaisnacidade,naqualautilidadedajustiçaépromoverauniãoeaharmonia,enquantoainjustiçatemoefeitocontrário.Ajustiçaéumavirtude,éboa,eéútil.Ainjustiçaéumvício,émá,eénociva.

Ainda assim, o primeiro livro de A República termina com ganhossubstanciaisquantoànecessidadeda justiça,mas semque se tenhaconseguidodeterminar sua definição, distinguindo o “ser justo” e o “parecer justo”. Paratanto,Platãopropõeumamudançadeperspectiva:quesedeixedeconsideraresteouaquelehomemjusto,estaouaquelaleiouconstituiçãojustas(semprepessoasecoisasparticulares) e sepasseapensarnoque seria aCidade justa emgeral.SeráapartirdaperspectivadaCidadejusta,ideal,quesepoderádefinirajustiçaedistinguiroqueéjustodoqueapenasparecejusto.

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AmortedeSócrates,deJacquesLouisDavid,1787.MetropolitanMuseumofArt,NovaIorque.

Pouco importa que a Cidade perfeita seja quase inatingível. Por exemplo,nelahaveriaigualdadeentrehomensemulheres:afinal,adiferençaentreambossó diz respeito à reprodução e, em tudo mais, o que os distingue é apenas aeducação. Bastaria educá-los domesmomodo. “Mas asmulheres deveriam sededicar à ginástica como os homens?” “E por que não?” Que os homens seexercitemnuspublicamentejáfoiescandaloso,atualmentenãoémais,argumentaSócrates. Pois com as mulheres seria a mesma coisa, é só uma questão decostume.Mesmoassim,éfácilconcordarquesãobempequenasasverdadeiraspossibilidadesdepromovertaligualdade.

A descrição do odelo de Cidade justa estende-se por vários livros de ARepública, determinando quais são as funções necessárias para a vida (para amelhor formadevida)daCidade:as funçõesdosque trabalhamparamantê-la,dos que a devem proteger e dos que a devem dirigir. Isso posto, seria justa aCidade na qual cada um concorre segundo suas aptidões naturais para suaharmonia,ouseja,aquelescujaprincipalvirtudefosseatemperançatrabalhariam,os que mostrassem, sobretudo, a virtude da coragem seriam os guardiões daCidade,eaquelescomamaisacentuadavirtudedasabedoriaagovernariam.

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Dado o modelo, estamos, agora sim, aptos a distinguir entre o quesimplesmenteparecejustodoqueverdadeiramenteéjusto.Penaqueaindapareceque há pouca relação entre a Cidade descrita por Platão e qualquer cidaderealmenteexistente.

O passo seguinte é generalizar o procedimento de estabelecer a verdade,praticado até agora. Para tanto, Platão lança mão de uma alegoria.A famosaAlegoria daCaverna. Imagine-se, diz ele, pessoas que vivessemnuma cavernafracamenteiluminadaporumafogueira,imobilizadaseviradasparaaparedenaqualveemapenasasconfusassombrasprojetadasporcoisasquepassamàssuascostas.Comotudoqueelasconhecemsãoessassombras,semnuncatervistoasprópriascoisas,elas tomamtais sombraspela realidade. Imagine-se,ainda,que,eventualmente,umadelas,comgrandedificuldade,conseguisselibertar-seesairda caverna.A princípio ficaria completamente ofuscada pela luz do Sol, mas,vagarosamente,acostumariaavistaàclaridadeepoderiavernitidamentetodasascoisas e entender que elas é que são reais, enquanto as sobras não passam desombras.Alegre com sua grande descoberta, obriga-se a voltar à caverna paratransmiti-la a todos.Aocontráriodoqueespera,ninguémacreditanele e aindazombam de suas palavras, que soam tão distantes do que lhes parece ser arealidade,assombras,única“realidade”queconhecem.

Não é exatamente o que faz a comédia de Aristófanes ao apresentar“Sócrates”penduradonumcestojuntoaotetoeperdidono“mundodalua”?

Ora,paraPlatão,podemosterumconhecimentocertodaverdadenamedidaem que nos afastamos das aparências sensíveis em direção aos modelos dasdiversasrealidades.Modeloouarquétipo,ouaindaIdeia(assim,commaiúscula,paralembrarqueestamosnosreferindoaumamatrizprimordial),talcomosefezaqui com a Ideia de Justiça. Há conhecimento, de fato, quando se conhece arealidade imutávelnaqualparticipamascoisasparaseremoquesão.Abelezados corpos, das vozes, das cores é tãomais intensa quantomais intensamenteparticipamnaBeleza,cujoconhecimentonospermitedizeroqueébelo.

Contra a livre oposição das opiniões pretendida pelo sofista (e, no âmbitopolítico, sua correlata degeneração demagógica), o conhecimento científico danaturezadascoisase,emprimeirolugar,daCidade.Ouseja,nãoapretensãodeconheceroquenãopodeserconhecido(ascoisasmutáveis),masconhecimentodarealidadeimutávelpelaqualtodasascoisassãooquesão.

SeumatalnoçãodeIdeiaaindanosparecenebulosa,bastaquevoltemosaosnossos conhecimentos mais elementares de matemática, em particular de

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Geometria: quando nos referimos a qualquer entidade matemática, o ponto, alinha, o triângulo, sabemos com certeza que “este” ponto que nos serve deexemplo, “esta” linha, “este” triângulo” são apenas um suporte sensível para oPonto, aLinha, oTriângulo.Tantoque tudo aquilo quedemonstramosusandocomosuportesensível“esta”figuraaquivaleparaqualquerfigurademesmotipo.Qualquer triângulo sensível, traçado no papel, por exemplo, tem alguma cor,emboraoTriângulo,odaciência,sabemos,nãotenhacoralguma.Enãoocorreaninguémreclamardeumteoremaporquenãopodeexistirtriângulosemnenhumacor.Sabemosquenaciêncianãoestamosfalandodefiguras sensíveis(que,estassim,sempretêmalgumacor),masdefiguras inteligíveis.

Ora,aIdeiadeCidadequesedepreendede ARepública,muitoemboranãocorrespondaanenhumacidadeexistente,étãomaisrealdoquequalquercidade,domesmomodoqueoTriângulodaGeometriaemrelaçãoaosmuitostriângulosque desenhamos aqui e ali. Com certeza, não se trata apenas de um modeloutópico, mas do conhecimento da natureza da Cidade tendo em vista levar ascidadesatuaisaumamaisintensaparticipaçãonaIdeiamesmadeCidade,istoé,adaCidaderegidapelajustiça.

QueassimoentendiaPlatão,ficaclaroinclusiveporsuabiografia(partedaqualelesnoscontaemumacarta,achamada CartaVII)epelasingentes–etãomalsucedidas–tentativasdepôrempráticaoqueteorizava.Mas,principalmente,porqueacausapelaqualnosafastamosdobemeda justiçaé justamentenossaignorânciaarespeitodoquesãorealmenteoBemeaJustiça.

Confundidosporaquiloquenos parecebomejusto,mudandoseguidamentedeopinião,oshomenssãoinjustos(einfelizes).ConhecendooBemeaJustiça,oshomensserãobonsejustos.

1.3.AristótelesSerão? Certa vez, um homem culto e aparentemente respeitável, militar

francês aposentado, disse, ao ser entrevistado, que, embora fosse leitor deFilosofia, Literatura emuitas outras coisas, não deixou de torturar centenas deargelinos durante a Guerra da Argélia. “Como pude fazer o que fiz?”, seperguntavasinceramenteo torturador.Oqueaprenderanão tinhasidonadaútilparaimpedirseuexecrávelcomportamentomoral.

Conhecimento e qualidade moral não estão necessariamente unidos, já

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afirmavaAristótelescontraseumestrePlatãoeomestredeste,Sócrates.Isso não significa queAristóteles negasse que fosse necessário conhecer o

quesãoosvaloresmorais(virtudes)necessáriosaobomconvíviohumano,comoo são a justiça, a coragem ou a amizade, por exemplo. Sem conhecer-lhes adefinição, sem saber o que elas são, como podemos saber se nossas ações,aquelasquechamamosjustasoucorajosas,nãosão defatoinjustasoucovardes?Ouseoquechamamosjustonãoéapenasoqueconvémaalguém,aumgrupoou a um país?Qual o critério para distinguirmos justos e injustos, corajosos ecovardes? Lembre-se do que foi dito antes sobre a maneira como Trasímacodefine a justiça: o que é vantajoso para os mais fortes. Mas essa definição,argumenta Sócrates, não é apropriada para caracterizar uma pessoa que secomportacorajosamentediantedeumadoença.Assim,éprecisosaberqualéoelementodacoragemquevalhatantoparaodoentequantoparaosmaisfortes.

BustodemármoredeAristóteles.CópiadooriginalgregodebronzedeLysippus,séculoIVa.C.

Aristóteles, apesar de afirmar a necessidade de conhecermos o que são asvirtudes,tambémafirmaqueoconhecimentonãonostornavirtuosos.Refugiar-senateoriaéomesmoque,quandoestamosdoentes,escutaratentamenteomédico,masnão fazernadadoqueeleprescreve (ARISTÓTELES,1973, II,4,1105b15-16).1Aideiacentralaqui,veremos,équeocaráterdeumapessoanãoébomporqueelasimplesmenteconheceoqueéajustiçaouacoragem,masporqueela

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queroudesejaagiremconformidadecomoquesejajustiçaoucoragem.Por que tudo o que podemos aprender sobre o que é justo fazer, o que é

corretoouoqueébomnãoé suficienteparamoldarnossocaráter?Aristótelesapresenta dois motivos para esse descolamento parcial entre o que desejamosfazereoquedeveríamosdesejarfazeremfunçãodoquesabemosserocorretoafazer. O primeiro motivo diz respeito à especificidade da ética frente ao quepoderíamoschamardeconhecimento teórico,comoamatemática,porexemplo.O segundo motivo diz respeito à nossa natureza humana, natureza que écomposta por dois elementos, o irracional e o racional, que podem estar emconflitoumcomooutro.

Comecemospeloprimeiromotivo.Emduasdesuasobras,a ÉticaaNicômaco, livroVI,ea Metafísica, livro

VI, encontramos a explicação para distinguir conhecimento teórico econhecimento prático. O conhecimento teórico, ou científico, é a capacidaderacionalparaexplicarporquealgoacontece,porexemplo,explicarporqueocorreoeclipsedaLua.Explicaro porquêémostrara causapelaqualalgoacontece.A causadoeclipseéainterposiçãodaLuaentreoSoleaTerra.

O conhecimento prático é o conhecimento que permite aos seres humanosproduzirouagirnomundo,porissoeleéprático,istoé,refere-seàsnossasações.Nós não podemos interferir na ocorrência de um eclipse, apenas podemosconheceracausadesuaexistência.Aocontrário,omédicopode restabelecerasaúde do seu paciente. O que não existia, o paciente saudável, passa a existirquandoomédicoocura.Éclaroqueomédicosemprepodematarumpaciente,mas isso só acontece por imperícia, porque a arte que o médico pratica, aMedicina, é um conjunto de conhecimentos que visa a uma ação, orestabelecimentoouamanutençãodasaúde.

Tanto a ética quanto a política são conhecimentos práticos, assim como amedicina, porque identificam o que há de melhor a ser realizado pelas açõeshumanas.Sócrates,porexemplo,serecusaafugirdaprisãoe,portanto,damorte,porque isso seria cometer um ato de injustiça. Está ao alcance de Sócratescometer injustiça ou não cometê-la, ou seja, atentar ou não contra as leis dacidade. É claro que seus amigos argumentaram que a condenação fora injusta,masSócrateslhesresponde,nodiálogo Críton,dePlatão,queas leisdacidadenãodevemserseguidasapenasquandonosconvêm.Viversobasleisdacidadeé, de certomodo, aceitar umpacto cujos termos devem ser respeitadosmesmoquando isso vá contra nossos interesses pessoais. A alternativa teria sidoargumentarepersuadiracidadedainjustiçadasleisqueacabaramporcondenar

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Sócrates.Mas issonãofoi feito,então,cumpra-sea lei! (PLATÃO,1997,50a-52a.)

O mundo, no entanto, não está povoado de Sócrates. Os seres humanoscomuns,diz-nosAristóteles,nãoobedecem

“[...]aosentimentodepudor,masunicamenteaomedo,enãoseabstêmdepraticarmásaçõesporqueelassãovis,maspelotemoraocastigo.Vivendopelapaixão,andamnoencalçodeseusprazeresedosmeiosdealcançá-los,evitandoasdoresquelhessãocontrárias,enemsequerfazemideiadoqueénobreeverdadeiramenteagradável,vistoquenuncalhesentiramogosto.Queargumentopoderiaremodelaressa sorte de gente?É difícil, senão impossível, erradicar pelo raciocínio os traços de caráter que seinveteraramnasuanatureza”(ARISTÓTELES,1973,livroX,9,1179b6-18).

Adespeito do aparente pessimismo em relação à capacidade humana paraagirbemporoutromotivoquenãoomedodapunição,sejaelaaprisão,amultaouaexecraçãopública,vejamosoqueestáportrásdessaideia.

Em primeiro lugar, Aristóteles distingue dois modos de praticar belas enobres ações, isto é, ações que são dignas de louvor, quemerecem elogio porseremdotadasdequalidademoral,como,porexemplo,osatosdecoragem.Ummodode praticá-las é pelo sentimento de pudor, ou seja, porque é honrado ouíntegro agir como agimos; um outro modo de praticar belas e nobres ações épraticá-lasporquedesejamosevitarummalmaior,apunição.Numcasocomonooutro, pratica-se uma ação nobre, mas a motivação para praticá-la é bastantediferente:noprimeirocaso,amotivaçãovemdanobrezadocaráter;nosegundo,vemdotemoraocastigo.Emsuma,hácertascoisasquesãoreprováveisouvis,motivopeloqualdeveriamserevitadassimplesmenteporquesãoreprováveisouvis.Apessoavirtuosa,ouseja,aquelaqueénobredecaráter,nãoaspraticariajamais, ao passo que os que se deixam guiar pelos prazeres só deixariam depraticá-las porque temem uma consequência pior e contrária ao prazer queperseguem.

Em segundo lugar,Aristóteles afirma que aqueles que apenas perseguemsuaspaixões,ou seja, aquelesqueestão inclinadosa fazer tudooque satisfaçaseus desejos, mesmo os que a razão proíbe, nunca sentiram o gosto do que éverdadeiramente nobre e agradável. Se for assim, é lícito pensar que as coisasnobrestambémsejamprazerosas,logo,nãohaveriaumacontraposiçãonecessáriaentrenobre/bomeprazer.Oqueénobretambéméagradáveleprazeroso.

Note-se que essa concepção filosófica está bem longe de atribuirnegatividade ao prazer, considerando-o ou como o índice de uma naturezadecaída (uma leiturade inspiraçãocristã)oucomoumobstáculoà felicidade,aqual se manifesta pela imperturbabilidade da alma ( ataraxia) derivada do

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domínio ou extirpação das paixões (como faz o estoicismo). Aristóteles nãocondenaaspaixõesouoprazer,masasuadesmesura.Aspaixões,comoomedo,araivaetc.,eoprazersãonaturais,porissonãopodemsercondenadosdesaída.O que não é natural é certo comportamento humano que se aproxima dabestialidade,ouseja,ocomportamentoquesedeixadirigirportudooqueaprazou repulsa unicamente à sensibilidade. Com a maior parte das pessoas éexatamente isso que ocorre, especialmente quando se é jovem. Sem umaeducaçãoadequadanostornamosintemperantes,ouseja,desmedidosemrelaçãoaos prazeres do corpo, ou insensíveis, porque evitamos todos os prazeres; oucovardes, porque tememos tudo e de tudo fugimos, ou temerários, porquedesejamosenfrentartodososperigos,mesmoquandoérazoáveltemê-los,eassimpordiante.Portanto,omodocomonoscomportamosdiantedoquecausadeleiteousofrimento,emexcessoouemgrauinsuficiente,éumsinalindicativodenossocaráter.Ora,queargumentospodemconteroudissuadiraquelescujocaráterfoiforjadonasmalhasdoexcessoedafalta?ArespostadeAristóteles,vimosacima,é negativa: nenhum argumento dissuade aqueles que se deixam dirigir pelaspaixões.

No entanto, se há pelomenos umSócrates, nada impede, pelomenos nãologicamente,aexistênciadeoutros.Ditodeoutromodo,aexistênciadealguémvirtuosocomoSócrates,antesdeindicarabem-aventurançadeumícone,indicaqueossereshumanosnãosãonembonsnemmauspornatureza,masquepodemsetornarumououtroemfunçãodaeducaçãorecebida.Porconceberdessemodoanossanatureza,Aristótelespodeafirmarque,assimcomosepreparaaterraparareceberasemente,deveríamossereducadospelacidadedesdeainfância“afimdenosdeleitarmosedesofrermoscomascoisasquenosdevemcausardeleiteousofrimento, pois essa é a educação certa” (ARISTÓTELES, 1973, livro II, 3,1104b11-13),aliás,comojádiziaPlatão.

Aeducaçãoconsisteentãoemaprendera“sentirogosto”doqueénobreeverdadeiramenteagradável,aprendera apreciaroqueénobreebom.Atenção!Apreciarnãoéamesmacoisaquesimplesmente conheceroqueénobreebom.Porquenão?Porqueconheceroqueénobreebom nãoobriganinguémaagirdemaneira nobre, assim como conhecer quais são os alimentos saudáveis nãoobriganinguémasealimentardemaneirasaudável.Emtermosmodernos,oquesesabesermoralmentecorretonãogerao dever,istoé,nãogeraaobrigaçãodeagir segundouma leimoral, tenha essa lei origemapenasna razãoou emumatradiçãoreligiosaoupolítica.

A despeito do que pode parecer, a educação não consiste em aprender a

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apreciaroqueémoralmentebomassimcomoseaprendeaapreciarchuchu,seisso forpossível:nãoé ausênciade repulsa,mas sentirprazerquando se temaposseouseestánapresençadaquiloqueseestima,como“ocavaloaoamigodecavaloseumespetáculoaoamadordeespetáculos,mastambémosatosjustosaoamante da justiça e, em geral, os atos virtuosos aos amantes da virtude”(ARISTÓTELES,1973,livroI,8,1099a8-10).

Lembremos o que dizAristóteles: aqueles que vivem sob o domínio daspaixõesnãofazemideiadoqueé verdadeiramenteagradávelouprazeroso. Seeleafirmaqueháum“verdadeiramenteprazeroso”éimperativoreconhecerquepode existir algo que tomamos como prazeroso, embora este algo nãoseja verdadeiramenteprazeroso.Estealgo,então,nos aparece comoprazeroso,algoéprazeroso paramim,maspodenão ser prazeroso em simesmo, não serverdadeiramenteprazeroso.

A distinção entre ser e parecer, que Aristóteles herda de Platão, permitecompreender os limites da razão humana para operar sobre a sensibilidade, ouseja, permite compreender porque o conhecimento prático, o conhecimento doqueéverdadeiramentebomparaossereshumanos,nãoésuficienteparacausarumaaçãoeissocomoconsequênciadenossanaturezacomposta,comoaludidoanteriormente.A ideia central a ser exposta é a seguinte: o que aparece comoprazeroso à sensibilidade pode aparecer como algo moralmente reprovável àracionalidade,ouseja,comoalgoque nãoéverdadeiramenteprazeroso.

Segundo Aristóteles, a alma é um atributo essencial de todo ser vivo esignifica,emtermosgerais,vida,istoé,atividade.Todoserdotadodealma,todoser animado, é dotado por isso mesmo de certas faculdades ou capacidadesirracionais e/ou racionais. Pertencem à faculdade irracional: 1. a faculdadenutritiva, que também é reprodutiva; 2. a faculdade sensitiva; e 3. a faculdadedesiderativa ou motora. A faculdade racional da alma é responsável pelopensamentoepeloconhecimentoracional.

Todo ser vivopossui alma: a samambaia, o boi,Sócrates, os deuses.Mas,segundoumaescalaqueobedeceaoprincípiodomelhor,eomelhoréserpuraracionalidade, ou seja, ser deus. Desse modo, as plantas possuem apenas afaculdade nutritiva/reprodutiva; os animais irracionais são dotados de faculdadenutritiva/reprodutiva,sensitivaedesiderativa/motora;ossereshumanos,alémdasanteriores, também são dotados de faculdade racional, e os deuses, apenas defaculdade racional. Os seres humanos são, portanto, um composto de almairracionaleracional:sãodotadosdefaculdadesprópriasdosseresquepossuemcorpoorganizadoedafaculdaderacional.Oserhumanoéumanimalracional.

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Por ser um animal que raciocina, que pensa, ele é capaz de agirmotivadotantoporaquiloqueafetaasuapartesensível(corporaloumaterial)quantoporaquiloqueafetasuaparteracional.Agirsignificamover-senadireçãodealgooucontrariamenteaalgo.Esse“algo”significaouoquepodeprovocarsentimentodeprazer(oalimentoparaofaminto,oconhecimentoparaoestudante),porissoétomadopeloagentecomoumbem,ouoquepodeprovocarsofrimento(amorteou a pobreza), por isso é tomado pelo agente como um mal. Como ninguémconscientemente deseja omal para si próprio, ou seja, ninguémage contra seuprópriointeresse,então,evitaralgoquemeapareceummalé,porconsequência,perseguirumbem.Portanto,todaaçãoéummovimentodesencadeadoporalgoquemeaparececomoumbemeédesejadocomotal.

Em síntese, não hámovimento ou ação se não há desejo: é àmedida quedesejaqueoanimalestáaptoamover-seporsimesmo.Desejaréuma atividadedaalma desencadeada ou por algo que aparece como agradável e prazeroso,motivo pelo qual é perseguido, ou por algo que aparece como desagradável eprejudicial,motivopeloqualéevitado.

Ocorre, porém, que a faculdade desiderativa ou motora, por ser umafaculdade da alma irracional, portanto ligada à sensibilidade, só é capaz dediscriminaroqueéagradáveloudesagradáveldopontodevistadasensibilidade.Ovinhoéagradávelaopaladar,oenxofreédesagradávelaoolfato.Ovinhoeoenxofrenãosãobonsoumausemsimesmos.Bomoumausãoqualidadesquelhes atribuímos, por exemplo, em função do uso que se faz deles. Portanto,atribuirbondadeoumaldadeaovinhoouaoenxofrenãoéumaoperaçãoquesedê no nível da sensibilidade, mas da razão. É exatamente aqui que se põea possibilidadedoconflito.

Nada impede, entretanto, que o agradável para sensação seja julgadoracionalmente comobom:nãohá conflitonecessário entre sensaçãoe razão.Oconflito se instaura quando há desacordo entre o que é julgado comomau doponto de vista da discriminação racional, mas aparece como agradável àdiscriminaçãosensível.Porexemplo,saciarafomegerasensaçãodeprazer,massaciá-la às custas de outro é contrário ao julgamento da razão.Assim como écontrário à reta razão tomar dinheiro emprestado numa situação de extremanecessidade sabendo que não poderá ressarcir o empréstimo, mas prometendofazê-lo,pois,casocontrário,nãooobteriaafimdelivrar-sedeseugrandeapuro.Emambososcasos,oquesedesejaélivrar-sedoquepromoveosofrimento,oquetodoserhumanojustificadamenteteme,afinaléperfeitamentehumanotemer

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adoença,amorte,odesprezo,apobreza,afaltadeamigosetc.No entanto, por serem dotados de racionalidade, os seres humanos não

seguem apenas as leis da satisfação imediata de seus desejos. Se assim fosse,estaríamosmaispróximosdabestialidadedoquedahumanidade.

Ora,oquesignificaserdotadoderacionalidadeou,ditodeoutromodo,quala consequência para nossas ações o fato de sermos naturalmente dotados deracionalidade?Arespostatemrelaçãodiretacomadefiniçãodeverdade.Sedigo“a flor é amarela”, essa proposição será verdadeira se a coisa que ela diz forexatamentetalcomoaproposiçãodizqueacoisa é.Quandopensamos,julgamosou dizemos que as coisas são de um certo jeito e as coisas são assim, então éverdadeironossopensamento,julgamentooufala.

Está claroqueparaAristóteles, assimcomoparaPlatão, a verdadedoquepensamos está diretamente vinculada aomodo como as coisas existemde fato.Em outras palavras, as coisas não são verdadeiras porque digo que sãoverdadeiras. Parafraseando e adequando ao nosso exemplo um argumentoda Metafísica:nãoéporque dizemos que a flor é amarela que a flor é amarela,masépelofatodeaflorseramarelaquedizemosaverdadequandoafirmamosisso.Aracionalidadehumanaé,portanto,acapacidadeparaenunciaraverdadeinscritanomundo.Nessesentido,conhecersignificaapreenderpelopensamentooqueascoisassãoeacausadeascoisasseremtaiscomoelassão.

Pelopensamentosomoscapazesdetomardistânciadenósmesmos,ouseja,somoscapazesdejulgarepensarsobrenósesobreascoisasquenosafetamnãoapenas do ponto de vista de cada indivíduo, confinando o pensamento aoque aparececomobomeprazerosoacadaum.Nóssomoscapazesde julgarepensar sobre o que é bom e melhor para nós do ponto de vista de nossahumanidade.Omelhorparao serhumanoéagirdeacordocomoquea razãoafirma ser verdadeiramente bom, justo e nobre. Como se lê na Ética aNicômaco,osupremobemhumanoéaatividadedaalmadeacordocomarazãovirtuosa(ARISTÓTELES,1973,I,7,1098a16),ouseja,omelhordosbensqueossereshumanospodemalcançaréadireçãodesuasaçõesporaquelapartequepossuieexerceopensamentoeissoemconformidadecomavirtude.

O supremo bem humano, que Aristóteles chama eudaimonia e nóstraduzimos, na falta de expressãomelhor, por felicidade, significa a realizaçãoexcelentedesuanatureza,istoé,daquiloqueocaracterizae,aomesmotempo,odistinguedetodososoutrosseresdomundo.

A essa naturezaAristóteles chama essência. Respirar, por exemplo, não é

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algoquecaracterizanemdistingueossereshumanosdequalqueroutracoisaqueexistenomundo.Assimcomonãoéamarcacaracterísticaouessencialdossereshumanosserembípedes,dotadosdeórgãosdossentidosoudemovimento.Poroutro lado, a alma racional, dissemos, não é exclusividade dos seres humanos,visto queos deuses, paraAristóteles, são essencialmente racionais.Resta, pois,considerar este ser do ponto de vista da sua composição: ele é um animal,portanto,umserdotadodesensaçãoedesejoe,poressemotivo,capazdeagiremfunção do que sente e deseja, como, aliás, qualquer animal. Mas ele é poressênciatambémumanimal racional,logo,assuasaçõesnãoresultamapenasdoqueafetaseucorpo,suasensibilidade,nemobedecemapenasaoqueditaarazão.Asações,aquiloquese fazmotivadoporalgoquesedesejaobterouporalgoque se deseja evitar, pode obedecer aos ditames da razão, “como um filhoobedeceaseupai”(ARISTÓTELES,1973,I,13,1102b31).

Emsuma,a eudaimoniaousupremobemhumanoéviverdetalmaneiraqueaquiloqueapraznossaalmadesiderativasejaoqueaatividadeexcelentedaalmaracionalafirmeserverdadeiramentebomeprazeroso.

Aristótelesaquiestárejeitandoumanoçãode eudaimoniaquetornaoespaçopropriamente humano de ação devedor da realidade universal e imutável domundodas Ideias.Obempropriamentehumanonãoestávinculadoanenhumarealidade transcendente, porque essa realidade,mesmo que existisse, não dariacontadoqueéparaoserhumano serhumano:umserquevive,sente,semoveepensa. Essa é sua natureza, sua essência, diráAristóteles.A realização de suaessêncianãoestánemnabem-aventurançacelestialnemnafriasolidãodosábio.Acidade( polis)élugarondeossereshumanossefazemsereshumanos,ouseja,nembestiais,nemdivinos.

Retomemos brevemente o percurso de nossa argumentação sobre aconcepção de Aristóteles acerca dos seres humanos para que possamoscompreender porque é na cidade e por intermédio dela que podemos realizarnossanaturezaouessênciahumana.

Aristóteles não concebe a espécie humana como radicalmente distinta dosanimais irracionais.Aespéciehumanaéanimalnamedidaemqueédotadadesensaçãoemovimento,istoé,todaequalquermudançaenãosóaespacial:porexemplo,cresceréumamudançaquantitativa,deixardeserignoranteetornar-sesábio é uma mudança qualitativa. A diferença determinante entre os animaisirracionaiseosracionais(sereshumanos)estánacausaquedeterminasuasaçõesouatividades.Osanimais irracionais sãoabsolutamentedeterminadospelas leisnaturais que regem o funcionamento dos corpos e os seus comportamentos.

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Assim,ofuncionamentodospulmõesobedeceàimperturbávelfinalidadenaturaldatrocagasosaentreomeioambienteeosangueouseuhomólogo.Domesmomodo,umleãomacho,quandoassumeocontroledeumbando,mataosfilhotesde um macho precedente para reconduzir a fêmea à condição reprodutiva.Ninguém,pelomenosnãoemsãconsciência, levariaaobancodos réuso leão“infanticida”.Porquenão?Porquenãohápossibilidadede escolhanemparaospulmõesnemparaoleão.Anaturezaexcluifinalidadesalternativasparaoqueénaturaledesprovidode razão:ocomportamentodoqueénaturalnãoadmiteapossibilidadedeescolhaentre fazeroudeixarde fazeralgo, fazeralgodecertamaneiraenãofazerdeoutra.

Os seres humanos, ao contrário, porque são compostos de razão e desejo(radicado em nossa alma irracional), não vivem apenas para satisfazer asexigênciasnaturaisdesuaanimalidade,mas,principalmente,vivemparaexerceroquehádemelhorneles–asuaracionalidade,ouseja,aquelapartedenósquenoscapacita a atingir averdade inerenteàs coisas.Ocorre,porém,queanossaracionalidade não é causa suficiente para determinar nossas ações, ou seja,mesmoquandoseconheceousesabeomelhoremaiscorretoaserfeitopode-senãofazê-lo.Oconhecimentodascoisassãse,analogamente,dasregrasmorais,não é capaz de imprimir movimento, isto é, fazer alguém agir de maneirasaudável ou agir moralmente. Lembremos o caso do torturador citadoanteriormente.

Seo conhecimentodasverdadesmoraisnãoé suficienteparadeterminar aação, esse conhecimento, contudo, não é dispensável.Aristóteles não afirma ainutilidadedoconhecimentoprático,ouseja,doconhecimentodosprincípiosquedevemorientarocomportamentohumanoemvistadafelicidade( eudaimonia).O filósofo afirma, isto sim, que o conhecimento da coragem, da justiça, damagnanimidade não é suficiente, não basta por simesmo, para levar alguém aagir corajosamente, justamente ou magnanimamente. É preciso mais que oconhecimento.Énecessário,comoditoantes,queaprendamosadesejaroqueéracionalmentepostocomoverdadeiramentebom.Emoutrostermos,énecessárioque os fins que desejamos atingir por meio de nossas ações sejam finsmoralmentebons.

Aperguntaquesecolocaé:comoacidadepoderealizaressaoperação?Emquemedidaacidadeserácapazdesetornarcausadarealizaçãodanaturezaouessênciahumana?

ParaAristóteles, a cidade é o lugar natural dessa realização porque é uma

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comunidadeordenadasegundoajustiçaeobemcomum.Issopodeparecerutópicoaosnossosolhosou,nomínimo,ingênuo.Hobbes

(1992,I,2),aliás,contradisseateoriapolíticadeAristótelesaodemonstrarque“asociedade é um acordo voluntário, e o que se busca em toda sociedade é umobjetodavontade,ouseja,algoquepareceacadaumdosseusmembrosum bempara si mesmo”.Aristóteles, no entanto, não pensa assim, e argumenta que afinalidade primordial da cidade será a promoção do bemviver juntos, isto é, apromoção de um modo de vida determinado pelos princípios da justiça e davirtude, exceção feita àquelas cidades em que o governante não respeita aigualdade( isonomia)ealiberdade( eleutheros)doscidadãosnemvisaaobemcomum. Vale aqui lembrar a advertência: as noções de igualdade, liberdade ecidadãonãocoincidemcomnossacompreensãoatualdessasmesmasnoções.Nocontexto histórico em queAristóteles escreve, cidadão é todo homem adulto,livre, nativo e que tem a possibilidade de exercer atividade política. Desseconjunto estão excluídos os cidadãos naturalizados, os metecos (estrangeirosresidentes), os estrangeiros, as mulheres, as crianças e os escravos. Livres sãoespecialmente aqueles que não condicionam sua vida à de alguém (como osescravos). Igualdade é a condição daqueles que não estão sujeitos a relaçõesbaseadasnasuperioridadeeinferioridade(marido/mulher,pai/filho)ouarelaçõesbaseadasnocomandoeobediência (mestre/escravo).Acidade será,portanto, acomunidadedecidadãosquetêmporfinalidadeobemcomum(ouo bemviverjuntos) e cuja autoridade é política, ou seja, está baseada tanto na liberdadequantonaigualdadedessescidadãos.

É exatamente essa configuração que distingue a cidade das outrascomunidades que a constituem – a família e a aldeia (associação de famílias).Tantoa famíliaquantoaaldeia sãocomunidadesorganizadas segundo relaçõesdeautoridadedospaisdefamília,dadaafaltadeigualdade,oudespótica,dadaafaltadeliberdade.Alémdisso,sãocomunidadescujafinalidadeéareproduçãodaespécie pela procriação, a preservação e a conservação da vida.Nesse sentidoessascomunidadessãoditas naturais.Nãoépor escolhaquefêmeaemachoseunememvistadageração,“mas,talcomoentreosanimaisemgeraleasplantas,é uma tendência natural e necessária deixar um outro semelhante”(ARISTÓTELES,1998,I,2,1252a28-30).Tambémnãoépor escolhaqueasformigasouoshomenscompartilhamdeterminadas tarefas (p.ex.,prover-sedealimento,proteger-secontraataques,construirhabitação):oqueseverificaéumadadaconformação natural de alguns animais para agir emgrupo (os gregários)emvistadasatisfaçãodefinalidadesprópriasànaturezadecadaespécie.

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Merecedestaqueacontraposição“natureza”e“escolha”.Comoditoacima,oqueépornaturezaexcluiapossibilidadedefinsalternativos:ninguémescolheseocoraçãobateráounãobaterá,ouaindacomobaterá.Escolher,aocontrário,édar preferência a algo em detrimento de outra coisa:Aquiles, o “melhor dosAqueus”,escolheumamorteprematuraeglória imperecívelà longevidadesemglória.

Anaturezadeterminaafinalidadeeomeiopeloqualelaseráatingida.Emoutros termos,anaturezaé causa tantoda finalidadequantodomeiopeloqualrealizaafinalidade.Nessesentido,anaturezaéa causadaexistênciadafamíliaedaaldeia,porqueépormeiodelaquefinalidadesnaturais,taiscomoaprocriação,conservaçãoepreservaçãodavida,sãorealizadas.

Ossereshumanos,quetambémsãoseresnaturais,sãoigualmenteautoresdecertas coisas que passam a existir por decisão humana: por exemplo, a NonaSinfonia de Beethoven, o 14 Bis, a Revolução Francesa, a Declaração dosDireitosHumanosetc.Poressemotivo,Aristótelespoderáafirmarquearazão,aolado da natureza e do acaso, é causadodevir daquilo que não era, ou seja, aatividade racional é prática, além de teórica (ARISTÓTELES, 1973, III, 5,1112a31).A razão, afirmao filósofo, éumdotedanaturezaquenos capacitatanto para o conhecimento da verdade (seu aspecto teórico) quanto para tornarexistenteoquenãoexistia(seuaspectoprático).

Há, portanto, uma especificidade humana em relação aos demais seresnaturais.Asaçõeshumanasnãoserestringemaocumprimentocegoeestritodasleisnaturais.Aocontráriodeseuscongêneresirracionaisqueseagrupamporquesãoincapazesdeviverisoladamente,comoasformigaseasabelhas,osanimaisracionaistendemaviveremcomunidadeporqueapenasnelapodemseafastardaselvageria,dainiquidade,dacrueldade,daestupidez.Oserhumano,“afastadodaleiedajustiça[...]éacriaturamaisímpiaeselvagem,eamaisgrosseiradetodasno que diz respeito aos prazeres do sexo e da alimentação” (ARISTÓTELES,1998,I,2,1253a32-37).Arazão,portanto,podeserviraDeusouaoDiabo:se,por um lado, ela eleva o ser humano à condição divina, porque lhe permiteconheceraverdadeedirigir suasações,poroutro,elapodeserusadapara finsabsolutamenteopostosàsabedoriaeàvirtude.

Ora,acomunidadepolítica(cidade)éparaoserhumanooseulugarnaturalporque, sendo dotado de racionalidade, ele é consequentemente dotado delinguagemdiscursiva,oqueotornacapazdemanifestarmaisdoquesensaçãodeprazer ou sofrimento, para o que bastaria a voz. Em função desse seu atributonatural,eleécapazdeperceberemanifestarobemeomal,oútileoprejudicial,

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ojustoeoinjusto,motivopeloqualotipodeorganizaçãohumanaserásuperioràqueles agrupamentos cujas tarefas se restringem à reprodução, proteção emanutençãodavida,comosãoosformigueirosouascolmeias.SegundoumadasmaisfamosasformulaçõesdahistóriadaFilosofia,estaéacausapelaqualoserhumanoénaturalmenteum animalpolítico(ARISTÓTELES,1998,I,2,1253a7-20).

Sendoassim,acidadenãoseráoutracoisasenãoacomunidadeorganizadasegundoessesvalores:elaéaconsequência naturale necessáriadaatividadedarazãoprática,istoé,denossacapacidaderacionalpararefletir,ponderar,decidireagir segundo o parâmetro do que é verdadeiramente bom para nós e para osoutrostendoemvistaobemviverjuntos.

Contrariamente ao modo como concebiam os sofistas, para Aristóteles acidadenãoresultadeumacordooudeumpactodenãoagressão.Tampoucoécorretoconcebê-lacomoumagrandefamíliaouassociaçãosuficientementeamplaparasercapazdesatisfazerasnossascarências.SegundoPlatão,acidadenasceparasatisfazernecessidadesligadasàexistência,taiscomoatrocadeprodutosetrabalho para a preservação e conservação da vida, que os seres humanos sãoimpotentesparasatisfazerisoladamente(PLATÃO,2006,369a).Adotandoessepontodevistasomoslevadosaadmitirqueadministrarumacidadesejaomesmoque administrar uma casa (Platão, 1972, 259b), já que a cidade seria umacomunidade diferente da família apenas segundo a quantidade dos que sãogovernados.Aquele que possui a ciência do comando ou a arte de governarsaberá guiar seus governados, sejam eles membros da família, da aldeia oucidadãos,edecidirásobreoqueébomparaeles.

MasAristótelesnãopensaassimeafirmaocaráternaturaldacidadecontramuitos de seus predecessores. Afastando-se ou, antes, reelaborando a teseplatônica, Aristóteles não concebe a cidade como a associação que apenaspermiteasatisfaçãodenecessidadesqueoshomenssãoimpotentesparasatisfazerisoladamente.

Emcertosentido,noentanto,Platãotemrazãoemafirmarqueacidadenascedenecessidadesligadasàexistênciaeàsobrevivênciadeumsermortalcompostodecorpoealmaecarentedemuitascoisasqueéincapazdeobterisoladamente.Mas a falta de autonomia não é uma prerrogativa humana, ela atinge todos osseresmortais e, emmuitos casos, os impulsiona aviver emgrupo.Porém, issonãobastaparaafirmarquesuafinalidadesejaasubsistênciadacidade,emboraosejaparaoseuvir-a-ser.

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Aristóteles insiste que para o homem a condição de animal político não éuma compensação natural ou um expediente por não ser autônomo como osdeuses. A natureza política do homem não é uma fatalidade que devemoslamentar.Certamentealgunspoderiamimaginarqueseriamuitomelhorvivernoisolamento ou apenas entre aqueles que compartilham as nossas mais carasconvicções(afamília,aigreja,asconfrariasetc.).Tambémháosqueprefeririamnãoestarsujeitosàsvicissitudesdamatériaedacontingênciadomundoemquevivemos,queAristóteleschamadesublunar,poisnestemundosemprepodemosdeixarderealizar(atualizar)tudoaquiloqueestáinscritoemnossaessência.Masentão a nossa natureza seria outra, não a natureza de homem. É próprio dediversastradiçõesfilosóficaspretenderema“divinização”doshomens,taiscomooneoplatonismo,porexemplo,eémesmoocernedo“mistério”cristão,masnãoéaposiçãodeAristóteles: a felicidadepropriamentehumana remeteànaturezapropriamente humana, que é, nelamesma, política.É desse ponto de vista queAristóteles opõe à tese convencionalista sobre a proveniência da cidade o seucaráter natural, mas sem restringir o caráter natural próprio do homem anecessidadesdetipoquase“biológico”,comoparecefazerPlatão.

Para Aristóteles, a natureza especificamente humana comporta reflexão(deliberação) e escolha (decisão racional): a cidade nasce de uma exigência,digamos,“biológica”,portanto,natural,maselanãoexisteplenamentesenãoporuma exigência ética. Pensar a cidade como existindo por natureza equivale avincular a natureza humana à da cidade: um ser intermediário, nem deus nembesta, que pode escolher viver em conformidade com a virtude e a justiça e,então,realizarsuaessênciasegundoomelhorfim,a eudaimonia.

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Créditosdasimagens–JacquesLouisDavid–DeAgostini/Diomedia

1.Asgrandesobrasfilosóficastêmumanumeraçãopadrãoquepermitequeumadeterminadapassagemsejaencontradaemqualquerediçãooutradução,independentementedapaginação.ÉocasodasobrasdePlatãoedeAristóteles.Osnúmeroseletrasnascitaçõesindicamestanumeraçãopadrão:“ ÉticaaNicômaco,II,4,1105b15-16”significaLivroII,capítulo4epágina1105,colunab,linhas15a16daediçãopadrão”.Emgeral,anumeraçãopadrãoéreproduzidanamargemdasediçõescorrentes.

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FilosofiaPolíticaeIdadeMédiaConhecimento,vontadeebemcomumcomofundamentosdapolítica

medieval

CarlosEduardodeOliveiraIntrodução

2.1.1.DevolvendoaDeusoqueédeDeus2.1.1.1.Filosofia,ÉticaeoconhecimentodeDeus

2.1.2.DevolvendoaCésaroqueédeCésar

Bibliografia

IntroduçãoComo não lembrar a vasta extensão temporal do que chamamos de Idade

Média e, ao menos no que diz respeito à Filosofia, a variedade de “idadesmédias”aseremconsideradas?Ocidente,Oriente,Eurocentrismo,Orientalismo;Cristãos, Judeus, Mulçumanos; Latinos, Gregos, Árabes; “Pagãos”, “Leigos”,“Gentios”,“Regulares”,“Religiosos”,“Seculares”...Vários sãoosadjetivos,osobjetos e os enfoques aos quais é possível voltar nossa atenção.Atémesmo aduração do que costumamos considerar a “Idade Média” pode ser posta em

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questão (LIBERA, 1998). Do século V ao século XV, isto é, da queda doImpério Romano do Ocidente (453) à tomada de Constantinopla pelos turcos(1453)?Afinal,noquedizrespeitoaoconjuntodopensamentomedievallatino,ocidentalecristão,nãoseriamaisprodutivorecuarumpoucomaisessecomeçoatéosiníciosdaPatrísticaeesticarseufinalvisandoenglobartodasasexpressõesdo que pode ser visto como parte da Escolástica?Domesmomodo, não seriamelhoridentificaroiníciodaIdadeMédiamulçumanacomoprimeiroséculodaHégira, que se inicia com a fuga de Maomé (ou, como o preferem osmulçumanos, Muhammad) de Meca para Medina, equivalente ao século VII(622)daeracristã?EoquedizerdaIdadeMédiajudaica?Enfim,impossívelnãolembrarque,mesmocomasmelhorespretensõesdecompletudeeuniversalidade,anarraçãode fatoshistóricosgeralmenteéparciale inescapavelmente refémdeumadeterminadaperspectiva,oque,porém,talveznãosejaexatamenteumcasopara lamentações.Por issomesmo, ahistóriaquevamos traçar aqui certamenteseráparciale refémdeumaperspectivabastantedelimitada:as relaçõesentreoque é possível ao homem conhecer e o que é próprio da política.Mas não seengane:nãosetrataexatamentedepensar“aristotelicamente”apolíticamedievalcomoumaciência.Trata-se, issosim,demostraremquesentidoalgunsautoresmedievais (especialmente Agostinho, Tomás de Aquino e Guilherme deOckham)entenderamaPolíticacomoancoradaemdeterminadosprincípiosquederivamdaquiloquenosépossívelconheceracercadomundoemquevivemos.

2.1.EntreaCidadeCelesteeaCidadeTerrena:Agostinho–fé,razãoeosentidodahistória

Entãolhesdisse:“Devolvei,pois,oqueédeCésaraCésar,eoqueédeDeus,aDeus”.1

2.1.1.DevolvendoaDeusoqueédeDeusMesmo num livro que já foi considerado um manual de formação e

cultura cristã,Agostinho2nãotemreceiodeafirmarque,talcomoopovohebreuaosairdoEgito,eporordemdopróprioDeus,“despojouosegípcios”,levandoconsigo seus “objetos de prata, objetos de ouro e roupas” (ÊXODO, 12, 35-36, inBÍBLIA,1995),assimdevemprocederoscristãoscomrelaçãoaoquede

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bom professaram os filósofos, ainda mais especialmente no que diz respeitoaos platônicos: os cristãos devem reivindicar para si “o que eles disseram deverdadeiroeemconformidadecomafé”,assimcomoalguémoreivindicaria“deinjustos possuidores” (AGOSTINHO, 2002, p. 144).3 São várias asoportunidadesnasquaisAgostinhoinsistenaimportânciaparaafé“daquiloquehá de verdadeiro” na filosofia, ou melhor, na importância para a fé do que éalcançado pormeio da razão.De fato, pouco importa que essas coisas tenhamsidocompreendidasporPlatãoouporqualqueroutrosábio,sejaelefilósofoounão:nomeadasounãosegundoafilosofia,oqueimportaéquetaiscoisastenhamumarealidadetalqueninguémpossaserreferidocomosábiosenãoconhecê-las(AGOSTINHO,1993).

UmexemplodecomoAgostinhoentendiaessarelaçãoentreaféearazãoaparece na resposta dada por ele a uma carta na qual havia sido convidado aexplicarumpoucomelhoraquestãodaTrindade,istoé,decomopodehaverumDeus único que, ao mesmo tempo, seja uno e trino, porque distinto em trêspessoas(Pai,FilhoeEspíritoSanto).Comaperguntaseguiaumaexigência:queaexplicaçãofossefeitaantesapartirdaféquedarazão.SegundoConsêncio,oautordacarta,seriaumpressupostodessescasosquemaisdoqueaargumentosracionais, “deva-se seguiraautoridadedos santos”.Agostinho,porém,mostrouem sua resposta discordar desse tipo de opinião: sem uma alma racional, ohomemnãopoderianemaomenoscrer.“Nãosetrataderejeitaresafé.Masdetambémdivisarescomaluzdarazãoaquiloquejáadmitescomafirmezadafé”(AGOSTINHO,1967,p.890),escreveu.

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RetratodeAgostinho,séculoXV,Suíça.

Nãoparece,porém,queAgostinhotenhapensadoquearazãosesobreponhaà fé ou vice-versa. Antes, temos ali a proposta de uma relação convergente(NOVAES FILHO, 2009): para que tenha fé, o homem precisa da razão, aomesmo tempo que, quanto àquilo que ainda não pode compreender, o homemprecisadafé“quepurificaocoração(istoé,amente)paraqueabarqueesustentea luzdasuprema razão”,queéa razãodivina.Assim, longedeservistacomoalgoirracional,afééantesentendidacomoapossibilidadedeamadurecimentoerealizaçãointegraldarazão.Féerazãosecomplementam.Nãoporqueafé,porsua natureza, precise ser explicada ou a razão, pelo mesmo motivo, precise“recebersuasverdades”dealgoexterior.Masporqueafénãopodeexistirnumaalmadesprovidaderazãonamesmamedidaemquearazãonecessitadaféparaajudá-lanacompreensãodaquiloque aindanãopodecompreenderporsimesma,masquecertamentepoderácompreenderumdiajásemanecessidadedafé.

Postasascoisasdessemodo,ficaclaroqueessaexposiçãotemumpontodepartidaaindanãototalmentedeclarado,quepoderíamosformularmaisoumenosassim:tudooqueexistenomundo,e,portanto,tudooquepodeserpensado,foicriadoporDeus.Assim,aoconheceracriação,decertomodoohomemtambémparece poder conhecer seu criador. No entanto,Agostinho certamente não sepretende um fideísta, que despreza a razão e defende a superioridade da fé.

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AgostinhodefendeacriaçãodomundoporDeuspormeiodeumareflexãosobreamutabilidadedascoisas(AGOSTINHO,1845).Nanatureza,aquiloquemuda,istoé,omutável,nemsempreexistiu.Assiméohomem,osanimaisetudooquepodemosconhecer:ascoisastêmumcomeçoe,cedooutarde,têmumfim.Ora,aquiloquenemsempreexistiu,precisade algoquesejaanteriorasiequetenhapossibilitadosuaexistência:omutávelnãopodesersuaprópriaorigemepareceumcontrassensoproporqueonadatenhasidoalgumavezoautordealgo.Dessemodo,emúltimainstância,paraexistir,oconjuntodascoisasmutáveisdependeuaomenosumavezdealgoquefosseanteriorasi.Eéprecisoqueesseserquedeu origem ao mutável tenha sempre existido, isto é, que seja eterno e,consequentemente, imutável. É assim que, paraAgostinho, amutabilidade é omaior testemunho que as coisas podem dar de seu criador: “Existimos porquefomos criados;mas não existíamos antes de existir, portanto, não podíamos tercriadoanósmesmos”.Paraohomem,namedidaemquepodemserconhecidas,ascoisas confessamseucriador(AGOSTINHO,1997;2001).

Combasenessespoucoselementosaquilevantados,Agostinhovê-secapazdeprepararoprimeirograndepassodesuaargumentação:todoessepercursoquelevada“contemplaçãodacriação”acerto“conhecimentodeDeus”,quepercebea importância da operação conjunta da fé e da razão para o conhecimento daverdade, não é algo cujasmarcas podem ser reconhecidas apenas pormeio da“históriadasalvação”,istoé,ahistóriaqueseiniciacomacriaçãodomundoporDeuspassapelaformaçãodopovohebreucomAbraão,culminanarevelaçãoeencarnação doCristo e terá seu fim no dia do “juízo final”, que será levado acabo pelo próprio Deus. Paralela à história da salvação,Agostinho propõe aexistênciadeuma“outra”história,queacabapormostrardequemodoahistóriadetodaahumanidadeestáindissociavelmenteligadaàquela:trata-sedaanálisedealgo queAgostinho, a partir de uma definição de Varrão, chama de “teologianatural”(AGOSTINHO,2001,p.241-338).

2.1.1.1.Filosofia,ÉticaeoconhecimentodeDeusNo ano de 410, Roma é invadida e saqueada pelo exército visigodo,

comandadoporAlarico.Oscristãossãoacusadosdeseremosresponsáveispelosmalessofridospelacidade:“voltando-secontraareligiãocristã”,os“cultoresdosfalsosdeusesromanos”,“detratoresdaeracristã”,“começaramablasfemaraindamaisásperaeamargamentecontraoDeusverdadeiro”(AGOSTINHO,1845,c.647s., Retratações, II, xliii, 1;2001,p.28 s., CidadedeDeus, I, i).A fimde

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defenderoscristãosdessetipodeataque,Agostinhopõe-seaescrevera CidadedeDeus.Afinal, a acusação era grave: o Deus dos cristãos não serve para aorganizaçãoeproteçãodacidade.

Emsuadefesa,Agostinhoprocuramostrarafalsidadedessaacusação:“Vários feitos de todas as guerras, quer anteriores à fundação de Roma, quer posteriores a seunascimento e à organização de seu império, foram escritos: lede-os e dizei-nos em que cidadeaprisionada por estrangeiros, os inimigos, aprisionadores, pouparam àqueles que sabiam estarrefugiadosnos templosdesuasdivindades.Mostrai-nosalgumchefebárbaroque,emforte invadido,tivesseordenadonãoferiraquemquerquefosseencontradonesteounaqueletemplo”(AGOSTINHO,2001,p.29).

Seguem-seaissorelatosdeinvasõesepilhagens:Troia,Roma;asnarraçõesde Salústio, Virgílio... SegundoAgostinho, não existem relatos sobre inimigosque, frente a uma religião qualquer, tenham demonstradomisericórdia com osperseguidos.Oumelhor,nãoexistiam:Agostinholembraque,dessavez,muitosforamaquelesqueforamsalvosporteremserefugiadoembasílicasoujuntoaossepulcros dos mártires, fossem eles verdadeiramente cristãos, fossem elesapenas gentios – isto é, não cristãos – em busca de abrigo. E ainda maisinusitado, relata, foi o fato de muitos prisioneiros terem sido entregues a taisabrigosporseuspróprioscaptores,“paraquenãofossematacadosporoutrosquenãoteriamamesmamisericórdia”.Ora,apontaAgostinho,issosiméalgonovo,umnovo costume,umanova moral:“equemnãovêqueistodeveseratribuídoaonomedeCristo,àeracristã,écego;quemovêenãoolouva,ingrato;equemseopõeaquemolouva,insano”(AGOSTINHO,2001,p.28).

Sinais de novos tempos, sem dúvida. Mas não eram sinais totalmentedesconhecidos até mesmo dos não cristãos. Ao escrever a Cidade de Deus,Agostinhopropõe-seamostrarnaprimeirapartedesuaobra(equivalenteaosdezlivros iniciais), “os erros dos pagãos”. Mas mesmo na narração de tais fatos,Agostinho encontra lugar para mostrar que nem tudo que foi alcançado peloshomenseradefatoestranhoàquiloquepropunhaa fécristã.Principalmentenoquedizrespeitoaoquefoialcançadoporaqueleshomensquederamasimesmosotítulodefilósofos,nomeque,elelembra,proclamao amordasabedoria, quenãoéoutracoisaqueopróprioDeus:paraAgostinho,SabedoriaéVerdade,eambossãotítulosdivinos(AGOSTINHO,1998).

Emsuaanálisedafilosofia,Agostinhoacreditaqueosfilósofos“platônicos”sedestacamdosdemaisporconfessaremhaverumDeus

“[...]acimadetodanaturezadaalma,quenãoapenasfezomundovisível,frequentementenomeadode‘céu e terra’, mas fez também, sem exceção, toda alma. E fazfeliz (do latimbeata, isto é, bem-aventurada)aalmaracionaleintelectual,decujogêneroéaalmahumana,pelaparticipaçãoemsualuz

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incomutáveleincorpórea”(AGOSTINHO,2001,p.190).

Mas os platônicos não chegaram a conhecer todas essas coisas nemsozinhos,nemdeumasóvez.Devem-seaosfilósofospré-socráticos,istoé,aosjônicos e aos itálicos, como os nomeia Agostinho, as primeiras tentativas decompreensão das coisas naturais. E foi, sem dúvida, com Sócrates que aFilosofia deu um passo extremamente significativo. Afinal, em vez de tentaraprofundar-seaindamaisnosestudosdascoisasdanatureza,comofaziamseusantecessores, Sócrates orientou seus estudos “para a reforma e a ordenaçãodos costumes”,ouseja,SócratesabandonouaFísica(hojeaciênciaqueestudaamatéria,aenergiaeomovimento,masque,naépocadeSócrates,enumsentidoque se estendeu até o início da Filosofia Moderna, não queria dizer senãoo estudo da natureza, isto é, de tudo aquilo que diz respeito ao que pode serdito natural,sejacoisas,fenômenosmeteorológicos,osastros,oshomensouosanimais) em favor da Ética ou moral. Sua escolha, arrisca Agostinho,provavelmente deu-se pelo fato de que ele tenha percebido que o trabalhodesenvolvido pelos filósofos que o antecederampoderia ser um trabalho inútil.Afinal,Sócratesteriadescobertoqueascausasqueregiamanaturezaresidiamnavontade de um único e soberanoDeus, que apenas poderia ser conhecido pormeiodeumainteligência purificada(cf.HADOT,1999,p.104).

“Eporissoaconselhavainsistentementeapurificaçãodavidapelosbonscostumes,paraqueoespírito,livredosdesejosdegradantes,fosseelevadoporseuvigornaturalparaoqueéeterno,paracontemplarcom a pureza da inteligência a natureza da luz incorpórea e imutável em que vivem estavelmente ascausasdetodasasnaturezasengendradas”(AGOSTINHO,2001,p.193).

Tendocomopontodepartidaqueoestudodasabedoriadigarespeitoàaçãoeàcontemplação,dandocontinuidadeàfilosofiadeSócrates,Platãoteriaaindadividido a Filosofia em três partes: moral (Ética), natural (Física) e racional(Lógica). Mas é no que diz respeito à moral que Platão teria chegado àsconclusões mais importantes. E, nesse ponto, a filiação de Agostinho aoneoplatonismoficaaindamaisevidente.Tomandoporplatônicaumatradiçãoqueremonta,entretanto,aAristóteles,4AgostinhoafirmaqueoobjetodaÉtica éobemsupremo,aoqual,nós,ogênerohumano,referimostudooquefazemoseaoqual apetecemos por si mesmo e não por outro, porque é por ele que somosfelizes.Ora,segundoAgostinho,“PlatãochamaessebemsupremoeverdadeirodeDeus.Porisso,querqueofilósofosejaaquelequeamaaDeus,pois,umavezqueafilosofiatendeàvidafeliz,éfelizaquelequetiveramadoaDeusfruindoaDeus”.Éporissoque“oestudiosodasabedoria(que,comefeito,éofilósofo)sóhádeserfelizquandocomeçarafruiraDeus”(AGOSTINHO,2001,p.193).

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AquipodemosvercomosãoagregadosospontosrecolhidosporAgostinhoparamostrar a naturalidade damoral cristã. Por sua própria racionalidade, pormeiodafilosofia,ohomemécapazdeconhecerpartedoprojetodivinopormeiodacontemplaçãodacriação.Talconhecimentoleva-oàdivisãodossaberesedaíàconstituiçãodamoral,quetemporobjetoobemsupremo,quenadamaisédoque a própria felicidade. Mas é ao chegar nesse ponto queAgostinho mostratambémaverdadeira intençãode seudiscurso: emboraos filósofos “tenham seesforçadocomomáximodededicação”paraencontraroquepossafazerfelizaohomem, acabaram apenas “tramando engendrar para si a felicidade nainfelicidadedavida”(AGOSTINHO,2001,p.381).Ouseja,todoessepercursoserve apenas para Agostinho poder apontar com maior precisão a limitaçãodaquilo que é possível ser alcançado pelo conhecimento humano. Quandoabandonado às suas próprias forças, o intelecto humano é capaz apenas deresultadosparciais.Epormaisqueseesforce,nãoécapazdealcançarsozinhotudooquenecessitaparaabarcarosupremobem.Comojávimos,nãosetratadenenhumdesprezopelafilosofiaoupelarazãohumana.Trata-setãosomentedeseretomaradistinção/convergência/complementaridadeentreféerazãojáretratada:esseéumdaquelescasosemquearazãoencontraseulimite,namedidaemquetrata de algo que ainda não pode compreender por si mesma. E tal limite,decisivo para distinguir a moral “dos filósofos”, “baseada em coisas vãs”, damoral “dos cristãos”, “baseada na verdadeira felicidade”, será decisivo tambémparaadistinçãoentreoqueépróprioàCidadeCelesteeàCidadeTerrena:afinal,ambas visam à felicidade, mas apenas uma será verdadeiramente capaz dealcançá-la.

2.1.2.DevolvendoaCésaroqueédeCésarEassimdois amores fizeramduascidades:o amorde si, queavançaatéo

desprezodeDeus,aterrena;oamoraDeus,queavançaatéodesprezodesi,aceleste.Comoresultado,umasegloriaemsimesma;aoutra,noSenhor.Afinal,umabuscaaglóriaentreoshomens,mas,paraaoutra,amáximaglóriaéDeus,testemunhadaconsciência(AGOSTINHO,2001,p.169).

O tema da distinção de duas Cidades certamente não é uma invençãoagostinianae,provavelmente, eraatémesmoum lugar-comumentreoscristãosafricanos(BROWN,2000).Tambémécertoqueelejáhaviasidoformuladoaomenos por um escritor donatista do século IV cuja obra foi conhecida porAgostinho:Ticônio.Aindaassim,ou,talvez,exatamenteporisso,tendoemvista

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a querela que sustentou contra os donatistas, Agostinho prefere propor taldistinçãocomolhetendosidosugeridapelasEscrituras,entreoutroslugares,noSalmo 87 (86), 3: “Ele conta glórias de ti, ó cidade de Deus”. Numa dasoportunidades em que trata dessa distinção na Cidade de Deus, Agostinhoesclarece que o termo “cidade” nada mais é do que um modo “místico” denomeara“sociedadedoshomens”(Agostinho,2001,p.173),ouseja,emúltimainstância, nada mais é do que um nome dado para significar um conjunto dehomens. Por si mesma, portanto, a palavra “cidade” não define nada deespecífico.E“místico”,ali,nãopareceteroutrafunçãoqueadeevitarummal-entendido.AseparaçãoentreasduasCidadesapontaadistinçãodedoisgênerosde homens que só pode ser medida no que diz respeito a seus fins. ParaAgostinho, os homens estão divididos entre “aqueles que vivem segundo ohomem”e“aquelesquevivemsegundoDeus”.Essesgêneros,explica,compõemduascidades,dasquaisuma“estápredestinadaareinarcomDeusnaeternidade”eaoutra“asofrerumeternosuplíciojuntoaodiabo”.Essadistinção,porém,nãotem lugar já na vida deste século: “pois estas duas cidades estãomisturadas eatreladasentresinesteséculo,atéquesejamseparadaspelojuízofinal”.Nãosetrata,portanto,deumadistinçãoentreEstadoeIgreja:nemaCidadeCelesteéaIgreja,nemaCidadeTerrenaéoEstado(AGOSTINHO,2001,p.64).

Assim, a fim de tornar ainda mais precisa a distinção das duas Cidades,Agostinho traça para si um plano programático. Em primeiro lugar, pretendeocupar-seemmostrarcomoépossívelpensarcorretamenteaconstituiçãodeumacidadetendocomopontodepartidaomodopeloqualelavisaalcançarofimquealmeja,quenãoéoutracoisaque,comojávimos,ofimquealmejamospróprioshomens, seja individualmente, seja em conjunto: o supremobemou felicidade,também identificadapor vezes comapaz.Para fazê-lo,mostrará quemuitodoquepensaramoshomensaesserespeitonãopassadeilusão,namedidaemquenão foram capazes de divisar adequadamente o que vem a ser esse bem e,portanto,qualomelhormododealcançá-lo.Masnãosetratarádemostrar,nessecaminho,“verdadesdefé”contráriasousuperpostasa“verdadesderazão”.Porum lado, trata-sedemostrar a inadequaçãodealgumasdas tesesdesenvolvidaspelos filósofos no que diz respeito ao campo da própria razão. Por outro, deapresentar“nãoapenaspelaautoridadedivina,mastambémpelarazão”oqueéaverdadeirafelicidadequeapenaséconferidapelopróprioDeus(AGOSTINHO,2001, p. 381). E para a realização dessa tarefa, Agostinho resolve tomarcomo sparring nada menos que a filosofia ciceroniana: se, contra todas asevidências, os cristãos são atacados por proporem uma doutrina injustamente

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acusadade inútilparaaproteçãoeorganizaçãodacidade,oquehaveriadeserdito,então,arespeitodeumaposiçãosegundoaqualépossíveldizeratémesmo,esemamenorsombradedúvida,queaRepúblicaRomanajamaisexistiu?Ora,sustentaráAgostinho,essaéexatamenteaposiçãodeumdosmaioresteóricosdodireitoromano:Cícero.

Cícero teriavistona justiçaopróprio fundamentoda república.Afinal, eleteriadefinidoarepúblicacomo“acoisadopovo”,eo“povo”como“auniãodemuitos, associada pela concordância no direito e pela utilidade comum”(AGOSTINHO, 2001, p. 411). Segundo essas definições, o direito ( ius) nãopodeserseparadodajustiça( iustitia),umavezquea“concordâncianodireito”,núcleo da definição de povo, pressupõe que “a república não possa ser geridasemjustiça”:ondenãoháverdadeirajustiça,nãopodehaverdireito.Diantedisso,Agostinhonãofazmaisdoquetirarasconclusõesdessaproposta:ondenãohájustiça, cai por terra a possibilidade de haver a associação de muitos pelaconcordância no direito – sem justiça, sem direito, sem povo. Portanto, semrepública.

Mas, continuaAgostinho, seondenãohá justiçanãopodehaverdireito, eondenãohádireitonãopodehaverpovo,eseondenãohápovonãopodehaverrepública,ajustiçanadamaiséparaCícerodoque“aquelavirtudequedistribuiacadaumoqueéseu”(AGOSTINHO,2001,p.412).Ora,sejustiçaédistribuiracadaumoqueéseu,tudooqueafastaohomemdoDeusverdadeiroeosubmeteademôniosimpuroséinjustiça,conclui.Emesmoaqui,aindaqueovocabulárioempregado(quecontrapõeo“Deusverdadeiro”a“demôniosimpuros”)nãosejaabsolutamenteodeCícero,paraAgostinhoaconclusãoapresentadanãoésenãoumaformulaçãopossível,e,nomais,bastantefiel,dapropostaciceroniana:éopróprioCíceroqueconfiaráocuidadodaRepúblicaàsmãosdeDeus.

Afinal,Cíceroterialevantadoaindaaomenosmaisumargumentoemfavordajustiçacomobasedarepública.Emsuma,seusopositoresteriampropostoque“arepúblicanãopodesermantidanemgeridasenãopelainjustiça”,umavezquenão haveria nadamais injusto do que homens serem obrigados a servir outroshomensimpostoscomoseussenhores.Etalcomosedarianessarelaçãoentreoshomens, amesma injustiça se repetirianoquediz respeito à cidade, quenão émaisdoqueumconjuntodehomens:amenosque acidadequeéumagranderepública seguisse a injustiça ao imperar, ela jamais poderia imperar sobre asprovíncias.

Contraessatese,Cíceroteriarespondidoqueadominaçãopodesimserjusta:a servidão pode ser útil a alguns homens “na medida em que é feita com

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correção”. Afinal, “na medida em que é tirada dos ímprobos a licença paracometerinjúrias”,algunshomens“melhorseachamquandodominados,umavezqueestariammuitopiorseassimnãofossem”.AbasedesteargumentodeCíceroseria um princípio “tomado da natureza”: “a alma que serve a Deus imperaretamentesobreocorpo”,ouseja,éjustoqueosuperiorimperesobreoinferior.Dessemodo, acrescentaAgostinho, o argumento de Cícero serviria tanto paramostrarqueaservidãoéútilparaalgunscomotambémparamostrarqueserviraDeuséútilparatodos:

“Ouvi o que diz (Cícero) no livro III daRepública, quando trata da causa do imperar. ‘Acaso nãovemos,diz,queaoótimoédado,pelapróprianatureza,comsumautilidade,odomíniodomaisinferior?Porque,então,Deusimperasobreohomem,aalmasobreocorpo,arazãosobrealibido,airacúndiaeasoutraspartesviciosasdessamesmaalma?’[...]Comefeito,aservidãoéumgênerode injustiçanamedidaemqueestãocomoutrosaquelesquebastamasimesmos,masnamedidaemqueosescravossãoaquelesquenãopodemmoderarasimesmos,nãoháinjúriaalguma”(CÍCERO,1826,p.389).

NaquelequeserveaDeus,aalmaimperasobreocorpocomjustiça:“[...]assim,seohomemnãoserveaDeus,oqueneledeveserreputadocomojustiça?Porisso,quandonãoseserveaDeus,aalmanãopodedenenhummodoimperarjustamentesobreocorpo,ouarazãohumana sobre os vícios. E se em tal homem não há esta justiça, sem nenhuma dúvida também nãohaverá no conjunto de homens formado por este tipo de homens. Portanto, não há aí aquela‘concordâncianodireito’quefazdamultidãodoshomensumpovo,dequeméacoisaqueéchamadaderepública”(AGOSTINHO,2001,p.413).

Mas ainda aqui não é exatamente Agostinho o autor da conclusãoapresentada.Afinal,tudooquefoiatéagoraapresentadonãosepretendemaisdoqueaconsequênciadosprópriosargumentosdeCícero.Assim,aindafaltaparaAgostinho apresentar a prova anunciada de que seria possível sustentar, deacordocomaopiniãodopróprioCícero,jamaisterexistidoaRepúblicaRomana.Faltamostrarqueosromanosnemsempre(oununca,sepensarmosnoconjuntode todos os homens que se pretendem romanos) adoraram o Deus verdadeiro,que,paraAgostinho,nãoésenãooDeusdoscristãos.

EserámaisumavezpormeiodafilosofiaqueAgostinhocumprirátambémessatarefa,aomostrarquetantoVarrãoquantoPorfírioacabaramporreconhecerque o Deus verdadeiro seria exatamente o Deus dos cristãos (AGOSTINHO,2001). Ora, se até mesmo de acordo com o testemunho dos filósofos o DeusverdadeiroéoDeusdoscristãose,secomosesabedesuahistória,osromanosadoravamaoutrosdeuses,entãodefatonãohaveriaremédiosenãoconcederque,deacordocomoquedefendeCícero,nuncahouveaRepúblicaRomana,porque,uma vez que os homens nunca teriam servido a Deus, nunca houve justiça,portanto, nem direito, nem povo. Postas as coisas desse modo, algo na

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argumentação deCícero temde estarmuito errado: é claro queAgostinho nãoconcordava com a conclusão de que jamais tivesse existido a RepúblicaRomana...

Mas antes de explorarmos este últimoproblema, toda essavolta hádenosservir ao menos para entendermos um pouco melhor o que parece ser acontribuiçãomais importantedeAgostinhoparaahistóriadeumafilosofiaque,além de ocupar-se do saber tradicional dos filósofos, passa a preocupar-setambémcoma contribuição trazida pelo conteúdo da revelação dada porDeusaoshomens.Agostinhoapontaparatodososqueseveemnamesmasituaçãoemqueele,ouseja,diantedosdesafiospropostospela filosofiagregaaoconteúdorecebido pela revelação, os moldes segundo os quais entende que deva serconduzida uma discussão, seja ela de caráter teológico ou não. Sua crítica aopensamentodeCíceronãosedámeramentecombasenumpressupostodeféounum argumento de autoridade, mas se desenvolve por meio da exposição dosprópriosargumentosciceronianos,istoé,umaargumentaçãoqueelamesmanadatrazdeestranhoàfilosofia,aindaquedealgummodovenhaaser iluminadapeloqueé reveladopela fé.Assimposto,opapeldoqueé reveladoparecenão sermais do que o do fiel da balança, ideia reguladora que, em última instância,ajudaráachecaraconsistênciaeavalidadedeumargumento.OerrodeCícero,segundo Agostinho, nunca foi o fato de não ter crido no Deusverdadeiro, problema,aliás,quenemsequerfoiaventadoemnenhuminstantedaargumentação que vimos ser traçada. Na exposição de Agostinho, o erro deCícero foi, em última instância, ter baseado sua definição de república numadefinição equivocada de povo, porque atada à definição de justiça. A esserespeito,tambémsefazimportantenotaraquimaisumavezque,diferentementedoquepossaparecer,acríticadeAgostinhonãoseancoraexclusivamentenumprincípiodefé.OquepermiteaAgostinhoconcluirqueéinjustiça nãoserviraDeuséoargumentosegundooqualéjusto,pornatureza,queosuperiorimperesobreoinferiornamedidaemqueestenãopodemoderarasimesmo,ouseja,namedidaemqueéuma regranaturalque“Deus impere sobreohomem,a almasobre o corpo etc.”.Além disso, o que permite aAgostinho concluir que osromanos tenham cometido tal injustiça é o fato de os próprios filósofos teremreconhecido como verdadeiro o Deus cristão, sabidamente desprezado pelosromanos. O resto não é mais do que a aplicação do próprio argumentociceroniano.

Assim, voltando ao problema que havíamos abandonado, dada ainadequação da definição de Cícero,Agostinho propõe ele mesmo uma nova

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definiçãodepovo,que,nomais,serviráaindaparaapontarumsegundoaspectofalho–etalvezaindamaisgrave–dadefiniçãociceroniana.SegundoAgostinho,melhor seria definir povo como “o conjunto da multidão de seres racionaisassociadopelaconcordânciacomumdascoisasqueama”(AGOSTINHO,2001,p. 419), definição que claramente faz eco àquele que era seu problema inicial,enunciadologonoiníciodolivroXIXda CidadedeDeus,asaber,pensarcomosedáaconstituiçãodeumacidadetendocomopontodepartidaomodopeloqualelavisaalcançarofimquealmeja.Ora,deacordocomessanovadefinição,nemDeusnemajustiçatêmpapelnaconsideraçãodoqueéounãoumpovoouumarepública:parasaberoquefazdedeterminadoconjuntodepessoasumpovo,quecontinua sendo para Agostinho, tal como em Cícero, a base do que é umarepública, basta “considerar atentamente aquilo que ele ama”. Tendo isso emvista,poucoimportasecristãosousepagãos,certamenteoconjuntodehomensqueéopovoromanofoieéumaRepública.Eomesmovaleráparaosgregos,osegípcios,osbabilôniosetc.

Ao propor essa troca, Agostinho não só substitui o direito pelo amor.Agostinhomudatambémoqueera,nasuainterpretação,umfundamentonaturaltranscendente(alegitimidadedoimpériodosuperiorsobreoinferiorqueprovémda legitimidade do império de Deus sobre o homem) por um fundamentoimanenteaoprópriohomem:avontade.Ora,avontade,argumentaráAgostinho,nem sempre estará direcionada ao que é bom, justo e verdadeiro. Ou seja, apropostadeAgostinhoacabapornegaraCíceroumasegundaconsequênciaquea sua definição de república parecia impor: o fato de que toda república fossejusta, ou, pelomenos, o fato de que “a república não pudesse ser gerida semjustiça”.Ajustiçanãoéalgopressupostoouintrínsecoàrepública.Nessesentido,dadooconflitodosinteressesdoshomens,nenhumacidade noséculopoderáserconsideradaalgumaveztotalmentejusta,dadoquenãoaspire,ou,aomenos,nemsempre aspire ao soberano bem. Dessas cidades apenas pode-se dizer que umpovo“serátantomelhorquantosuaconcordânciaestivernoqueémelhor,etantopior quanto sua concordância estiver no que é pior” (AGOSTINHO, 2001, p.419).Demaneiraincondicional,ajustiçapertenceapenasàCidadedeDeus,que,comojávimos,nãoseidentificacomnenhumacidadeexistente nestemundo:

“[...] pois, em geral, a cidade dos ímpios, na qual Deus não impera como aquele a quem ela deveobedecerdadoqueproíbequeseofereçasacrifíciosenãoexclusivamenteaele,e,portanto,naqualnãoimpera a alma reta e fielmente sobre o corpo e a razão sobre os vícios, carece da verdadeira justiça”(AGOSTINHO,2001,p.419).

Aindaqueumlivropermeadodereflexõespolíticaseelaboradodeummodo

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que nada tem de dogmático quanto à discussão dos argumentos que ali sãopropostos,nãopodemosnosesquecerdeque ACidadedeDeusé,antesdetudo,umtratadoapologético.Suafunção,talcomoretratadalogonoiníciodaobra,édefenderareligiãocristã.Portanto,ninguémhádeseadmirardequeadiscussãodetemaspolíticosestejaalilevantadaantesemfunçãodesseseuescopodoquetendo em vista a elaboração de qualquer teoria política mais bem organizada.Mas,mesmoassim,atesebásicapropostaporAgostinhonessetratado,segundoaqual é preciso saber o que o homem é capaz de alcançar a respeito do bemsupremo que é Deus e de como a busca desse bem organiza a política e asociedade, será incessantemente retomada e passará por várias (re)elaboraçõesdurantetodaaIdadeMédia.Énoencalçodealgumasdessastransformaçõesqueseguiremosnossaanálise.

2.2.Política,intelecto,vontadeenatureza:TomásdeAquino–obemcomumeaorganizaçãodacidade

Todacidadeéumasortedecomunidadeinstituídaemvistadealgumbem...5

AlémdeassistiràquedadoImpérioRomanodoOcidente,àconsolidaçãodafécristãcomoaprincipalreligiãodoocidentelatino,aoavançodoislamismoeàtransferência da filosofia para o Oriente, os quase 8006 anos que separamAgostinhodeTomásdeAquino7tambémpuderamtestemunharumeventocujoimpacto, além de crucial para a história do pensamento científico modernoocidental,seestendedeformaaindavigorosaatéosdiasatuais:osurgimento,emmeadosdoséculoXIII,dasUniversidades.8Aissodeve tambémsersomadoofatodeque,jádesdeasegundametadedoséculoXII,osestudantesseviramàsvoltas com uma nova preocupação: a obrigação de ajustar contas com umatradiçãodepensamentoque,emborarecenteparaelesnoquedizrespeitoàsuatotal acessibilidade, já não era tão nova no que diz respeito a alguns dosdesdobramentos de sua reflexão – o pensamento deAristóteles (cf. LIBERA,1998;GILSON,2010b).

Nesse quesito, provavelmente ninguém foi mais festejado como o maisprofícuorealizadordessatarefadoqueTomásdeAquino.Juntoaisso,TomásdeAquinoétambémfrequentementelembradocomoaquelequemelhor cristianizou

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o aristotelismo.Antes um preconceito que uma constatação, o fato é que estaúltimaafirmaçãomuitasvezesaparecebastantemalformulada.Mesmonumaboaapresentaçãodafilosofiapolíticatomasiana,aindaépossívelencontraroseguintetipodeargumentação:

“Tomás deAquino, contudo, é antes um cristão, e seu aristotelismo é um aristotelismo cristão. Emcontraste como cristianismo,Aristóteles não possuía uma concepção de pecado original [...]. Para ocristianismoprimitivoeosPaisdaIgreja,porém,simbolizadosnosescritosdeS.Agostinho(381-430),avidapolíticahaviasidocorrompidapelainclinaçãohereditáriadohomemparaomal,eoEstadoeraumainstituiçãocoercitivacomofimdemanterummínimodeordemnummundodepecado.[...]ParaoAristótelesdolivroIdaPolítica,poroutro lado,ohomemézoonpolitikon–literalmente,umanimalcuja orientação é apolis – e a vida política é uma parte necessária de seu desenvolvimento pleno...”(SIGMUND,1993,p.218).

Comojávimos,nemparecequeAgostinho teriauma leitura tãopessimistada vida política (afinal, “um povo será tanto melhor quanto sua concordânciaestivernoqueémelhor...”e,nessesentido,diversamentedecoagir,afunçãodapolíticaseráantesadeauxiliaroshomensnabuscadobemsupremo),nem,comoveremos,parecequeopecadooriginalsejaumelementorelevanteapontode,porsimesmo,proporqualquerdificuldadeparaaapresentaçãotomasianadafilosofiaaristotélica. Tampouco parece que Tomás de Aquino concordaria com aafirmaçãodequeogênerohumanoteriauma“inclinaçãohereditária”paraomal:segundoTomásdeAquino,opecadooriginalnemsequerafetadefatooqueéprópriodanaturezahumana.Afinal,seriaantesumdefeitodivinoqueohomemfossenaturalmenteinclinadoparaomal,oquetornaessahipótese,emsimesma,absurda.PormeiodeAdão,ahumanidadeteriarecebidoumpresentedeDeus,talqualumdomsobrenatural:ajustiçaoriginal,pelaqualohomemsesubmeteriaaDeus,aspotênciasinferioresàrazão,ocorpoàalmaetc.Aopecar,Adãoteriarejeitadoessedom.Opecadoé,assim,umaespéciededesordemouprivaçãodaordem adequada. Como resultado do pecado original, o homem deixa de sercapazdealcançaro sumobem,umavezque jánãopodemaisvernemfruiraDeus.Mas aqui aparece o ponto principal: por sua própria natureza, o homemjamaispossuiuosprincípiosnecessáriosparatorná-locapazdealcançarosumobem, necessitando para isso do auxílio da graça divina. Primitivamente, esseauxíliofoiajustiçaoriginal,presentedadoporDeusparaahumanidadepormeiodeAdão.Depoisdopecado,esseauxíliofoiamediaçãodoCristohomem,“emquem a fé pode subtrair o impedimento do pecado original” (TOMÁS DEAQUINO,1982a,p.27).

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RetratodeTomásdeAquino,porJoosvanGenteP.Berruguete,1475.MuseudoLouvre,Paris.

Quandocomentaa PolíticadeAristóteles,TomásdeAquinoretomaaideiaaristotélica segundo a qual a cidade é a suprema comunidade humana(ARISTÓTELES, 1989). Segundo a leitura de Tomás deAquino,Aristótelesteriadefendidoquetodaassociaçãohumanaestariaordenadademodoavisaraalgumbem.Eacidadeseriaamaisgeraldessasassociaçõesporqueenglobariatodasasoutras.Arazãopelaqualseriapossívelsustentarqueacidadefosseumacomunidadetãogeralpoderiaserofatodequeobemparaoqualacidadeestariaordenada também seria o bem mais fundamental entre todos os bens: o bemcomum.Afinal, a cidade não estaria ordenada para alcançar o bem de algumindivíduo ou de algumgrupo isolado de indivíduos,mas estaria ordenada paraalcançarobemde todos, semdistinção.Por isso,destacaTomásdeAquino,opróprioAristóteles teriadefendidoque, ao englobarosbensmais fundamentaisentreosbenshumanos,obemcomuméaindamaioremais divinoquequalquerbemdealgumindivíduo;afinal,eleestariamaispróximodasemelhançadivina,causa universal de todos os bens (ARISTÓTELES, 1984; Tomás deAquino,2007;1969).

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ÉnestesentidoqueTomásdeAquinoentendequeAristótelesdefenderáqueo homem é naturalmente um animal da cidade, isto é, um animal político(ARISTÓTELES, 1989). Faz parte da natureza do homem associar-se emcomunidades:a família,acasa,avila...Acidadeseriaapenasamaiorde todasessascomunidades.Eseriatambémnaturalmenteaprimeiradentretodas,jáqueenglobariaatotalidadedelas:otodoéanteriorasuaspartes.

Masaprincipalprovadequeavidaemcomunidadeé algonaturalparaohomemestaria no fato de o homem ser o único animal dotado de fala.A fala,explicaTomásdeAquino,nãoéasimplesexpressãodealgopelavoz;afinal,ohomemnão é o único animal capazde exprimir algovocalmente.A tristeza, odeleite,a iraeo temorpodemsermanifestadosporqualqueranimal.Exemplosdissosãooladrardocachorroouorugidodoleão.Ohomemtampoucoprecisadafalaparaexprimiressessentimentos.Elepodevaler-seapenasdeinterjeições.E mesmo que venha a expressar sentimentos por meio das palavras, como opróprioAristóteles(1936)lembranoiníciodo Sobreainterpretação,aspalavrasfaladas servem para muito mais do que isso, na medida em que sãosímbolos convencionais impostos para, dadas certas condições, significar algo.Entendida dessemodo, a fala é exclusiva do homem, que, diferentemente dospapagaios,podefalarcomaintençãodesignificaralgo.Assim,TomásdeAquinodescreve, a falahumanaauxiliaohomema realizar aquiloqueodistinguedosdemaisanimais:acapacidadedeentenderecomunicaroútileonocivo,ojustoeo injusto. E como a natureza nada faz em vão, quando ela dá ao homem acapacidadedecomunicaroútileonocivo,ojustoeoinjusto,eladáaohomemacapacidadedesecomunicarcomoutrohomem.Ora,éevidentequeohomemsóécapazdesecomunicarquandoviveemcomunidade...

Tomás deAquino entende dessemodoque a política é o resultado de umajustepromovidoentreanatureza,ointelectoeavontadehumana:seuobjetoéoestudo racional da cidade, o tipo ideal de todas as comunidades humanas(QUILLET,1988).Afinal,entendeque,paraAristóteles,acidadeéresultadodanaturezahumana, assimcomoapolítica é a ciência responsável por considerartudo o que diga respeito ao bem que é próprio à cidade. E porque visa àordenação da cidade para o bem comum, a política considerará tudo o que serelacionacomasaçõeshumanasnamedidaemqueestasvisamaalgumbem,ouseja,desdeaquiloqueérelativoàsartesmecânicas(comoosabernecessárioparafabricar algo, tal qual o construir navios) até aquilo que é relativo às ciênciasmorais, isto é, àÉtica, que trata do que é próprio à deliberação, à escolha etc.(TOMÁSDEAQUINO,2007).Estandoascoisasassimconcatenadas,opecado

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originalsimplesmentenãoterápapeladesempenharnessaapresentação.EafédeTomásdeAquinosósefarápresentenamedidaemqueobemcomumapontadoporAristótelespuderseridentificadocomopróprioDeus.

Mas, ainda assim, parece ser o próprio Aristóteles quem abre essapossibilidadeparaTomásdeAquino,mesmoque,quandoserefiraadeusouaodivino,Aristótelesnão tenhaemmentenadaquesejaparecidocomodeusdoscristãos. De fato, Tomás de Aquino só propõe essa aproximação porque,subjacente à ideia de natureza tal qual a propõe Aristóteles, está uma certacompreensão de ordem, que, tal comoTomás deAquino a entende, não podedeixardeserpensadasenãocomoaexpressãodaprópriavontadedivina.Assim,TomásdeAquinoparececonsiderarnãohavernadadesobrenaturalno fatodeque possamos ter a inteligência dessa ordem, ainda que não possamoscompreendê-laemsuacompletude:“aluzintelectualqueháemnós,nadaéalémde uma certa semelhança participada da luz incriada na qual estão contidas asrazõeseternas”(TOMÁSDEAQUINO,2001,p.350).Aindaquedeummodobastante diminuído, a inteligência humana é semelhante à própria inteligênciadivina,e,nessesentido,aordemqueainteligênciahumanaapreendenanatureza,é,decertomodo,aordempensadaequeridaporDeusnomomentodacriação.

Principal resultadodissoéque,namedidaemque tratadoqueénatural,aPolítica não estará apenas relacionada à Física,mas guardará relações tambémcom a Teologia, saber que Tomás de Aquino promove à ciência e ao qualsubordina todas as demais ciências (TOMÁSDEAQUINO, 1982b). Tanto éassimqueTomásdeAquinopõecomoprincípiodosatoshumanosquelevamaobemopróprioDeus,que“tantonosinstruiatravésdaleicomonosauxiliaatravésdagraça”.ParaTomásdeAquino,aleiéumasortederegraoumedidadosatoshumanos, segundo a qual alguém é induzido ou desestimulado a agir.Consequentemente, toda lei é baseada na razão, princípio de todos os atoshumanos:arazãosófazohomemdiferentedosoutrosanimaisporqueépormeiodelaqueohomemtorna-sesenhordeseusatos,àmedidaquepodeproporumfimparaeles.

Alémdisso,oprincipalatohumanodequearazãoéprincípioéaquelequevisa ao fimúltimodavidahumana, que é a felicidadeoubem-aventurança.E,assim como da razão, esse será o fim principal da lei. Tal como escreveAristótelesna ÉticaaNicômaco(ARISTÓTELES,1984),“dizemosjusto,legal,aquilo que produz e conserva a felicidade e suas partes para a comunidadepolítica” (TOMÁSDEAQUINO, 1995, p. 35).Ao compreender a ordem dacriação tal qual proposta por Deus, o intelecto oferece à vontade aquilo que

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apareceparaelecomoomaispróximodobemaoqualohomemsedestina.Àvontade,portanto,cabeescolheragirounãodeacordocomessebem.

EssaescolhaépropostaporTomásdeAquinocomoaexpressãodofimdacomunidade,quesósedáquandoosseusmembrospropõem-seaviversegundoavirtude.Propiciaravidasegundoavirtudeéexatamenteatarefadogovernante:governar não é senão “conduzir o que é governado para o fim que lhe éadequado”.Oofíciodo rei, portanto, é cuidar dobemcomumdamultidão, aoqualseordenamtodososbenstemporais.Postasascoisasdessemodo,tambéméfácil perceber que a vida segundo a virtude não é exatamente nem o fim dacomunidade,nemodohomem.Elaéomeio.Ofimdohomem,namedidaemqueéumanimalpolítico,éobemcomum,que,nessesentido,confunde-secomofim imediato da comunidade.Mas o bem comum não é o fim último nem dacomunidade, nem do homem.O fim último da comunidade é o fim último dohomemenquantotal:afruiçãodivina,osumobemoufelicidade.E,comovimos,apesardeestar a eleordenadopelopróprioDeus,ohomemnãopode,por suapróprianatureza,chegaraessefim.Eleprecisadoauxíliodivino.Dessemodo,cabe ao governo divino, e não ao humano, cuidar daquilo que vai além danatureza humana. Ora, lembra Tomás de Aquino, o único homem capaz deassumir tal governo é aquele que não é apenas homem,mas também é Deus:JesusCristo.Ecomosesabe,oCristonãoentregouoministériodeseureinoaosreistemporais,masaPedro,dequemosucessoréoSumoPontífice,VigáriodeCristo,ouseja,oPapa(TOMÁSDEAQUINO,1995).

Como se vê, por meio de sua apresentação da filosofia aristotélica,principalmentenoquedizrespeitoàcompreensãodanaturezadohomem,TomásdeAquino dá suporte à teoria da distinção entre o poder temporal e o poderespiritual.Afinal, dado o que é capaz de apreender de sua própria natureza, ohomem vê-se destinado à busca do bem comum, regida pelo poder temporalporque subordinadaàquiloqueéprópriodanaturezahumana.Mas, apartirdoque é capaz de apreender da ordem da natureza em si mesma, considerada oreflexodavontadedivina,ohomemécapazdeperceber-sedestinadoaumfimque supera o bem comume aquilo que é possível para si segundo sua próprianatureza:osumobem,quesópodeseralcançadoporintermédiodafénumDeussalvador,cujocuidadocabe,comoexpressaaprópriavontadedivinapormeiodopoder conferido por Cristo a Pedro, ao poder espiritual. E é aqui que oaristotelismodeTomásdeAquinoserácapazdesubverteraposiçãoagostiniana(BERTELLONI,2005).DiversamentedeAgostinho,quenasuateoriadasduasCidadesprocurouafastardesuaexposiçãoumaorientação temporalista,aonão

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confundir a Cidade de Deus com qualquer cidade deste mundo, Tomás deAquinopropõeumaversãodapolíticacuja face religiosapareceobrigadaa terpesojánestavida:obomgovernodeveauxiliarohomemaalcançarnãoapenasàquele que é seu fim natural, o bem comum, mas deve auxiliá-lo a alcançaraquele que é também seu fim último: o sumo bemou a fruição deDeus. Estáinaugurada, portanto, a discussão sobre a subordinação do poder temporal aopoderespiritual:namedidaemqueestáencarregadodocuidadodofimúltimodetodavidahumana,cabepordireitoaoPapatambémopodersobretodososbensintermediários.Mas,aindaassim,é tambémnamedidaemqueaoPapaéantesconfiadoogovernodaquiloqueestáalémdanaturezahumana,quesejustificaogoverno temporal do rei no que diz respeito ao âmbito próprio da naturezahumana. Para Tomás de Aquino, a existência dos dois poderes é, portanto,legítimaenecessária.Mascoubeàhistóriaposterioratarefadedeterminaroqueépróprioàalçadadecadaumdessespodereseomodopeloqualelespoderiamcoexistir...

2.3.Entreavontade,arazãoeafé:GuilhermedeOckhameadistinçãodospoderesespiritualetemporal

ARegraeavidadestesirmãoséesta:viveremobediência,emcastidadeesempropriedade...(FranciscodeAssis,Regranãobulada)

Pouco mais de meio século separa a morte de Tomás de Aquino e aelaboraçãodasobraspolíticasdeGuilhermedeOckham.9Nessemeiotempo,asdiscussões sobre a amplitude dos poderes temporal e espiritual acirraram-se aponto de a Igreja reclamar para si até mesmo o direito sobre a investidura dopoder temporal: apenas ao Papa, detentor do poder espiritual, cabe o poder decoroaroImperador.Eissonãoeratudo:aoPapadeveriatambémcaberopoderdedestituiroImperadorquenãoagissedeacordocomosprincípiosda leicristã.É fácil perceberque esse tipodeposição traziauma sériedeproblemasparaogoverno civil.Afinal, a plenitude de poder que a Igreja reclamava para si, pormeio da figura do Papa, fazia do Imperador um aliado que, na prática, estavareduzidoanãomaisdoqueumrefémeserviçaldavontadepapal.

Em franca oposição a esse raciocínio, estava a posição de alguns fradesmendicantes que, a princípio, não tinhamnenhumapreocupação coma tese da

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plenitude do poder papal. A eles interessava apenas a defesa da máximaevangélica segundoaqualpautavamsuavida religiosa: “sequeres serperfeito,vai,vendetudooquetensedá-oaospobreseterásumtesouronocéu.Depois,vem e segue-me” (EVANGELHO SEGUNDO SÃO MATEUS, 19:21, inBÍBLIA,1995).

A“querelasobreapobrezaevangélica”,títulosoboqualficouconhecidaadisputaentreessesfradeseaSantaSé,relataumahistóriaqueaindamerecesermais bem contada.A Ordem dos Frades Menores, de acordo com seu títuloprimitivo, ou Ordem de São Francisco ou dos Franciscanos, como é maisconhecida até hoje, foi, desde seu início, constituída como umaOrdem mendicante,istoé,umacomunidadedeirmãosreligiosos(freisoufrades,dánomesmo)queviviamdaesmolaedacaridadealheias,semapossibilidadedepossuir bens próprios. Seu principal propósito era seguir ao que, na época, erarotulado os três conselhos evangélicos: uma vida evangélica de obediência aossuperioresdaOrdemeàSantaSé,de castidade na relaçãocomosoutros edeabsoluta pobreza,ou,comoodescreveopróprioFranciscodeAssis,fundadordaOrdemFranciscana,umavida sempropriedades.AsdisputasinternasdaOrdemsobreaextensãodacompreensãodessesprincípiosevangélicoslevaramaváriassubdivisõesinternas,dasquaisamaisviolentamenteperseguidafoiacomunidadedosfrades espirituais,quemisturaramaoidealdapobrezaevangélicaastesesdeJoaquim de Fiore,monge beneditino cisterciense, segundo o qual a história daIgreja e do mundo deveria ser dividida em três períodos ou idades,correspondentesàspessoasdaTrindade.ÀIdadedoPaicorresponderiaoqueénarradonoAntigoTestamentodaBíblia;aIdadedoFilho,considerada otempopresente, teria tido seu inícionaencarnaçãodoCristoena fundaçãoda Igreja.Porfim,aIdadedoEspíritoSantoseriaumaépocafutura,naqualsedariaaplenarealizaçãodavidaevangélica.Mas,paraosespirituais franciscanos, a IdadedoEspíritoSanto já teria chegado, eumdosprincipais sinaisdisso seria aprópriaOrdemFranciscana, lugarde realizaçãoplenadavidaevangélica.Essaposiçãofoi considerada uma grave heresia pela Igreja, e essas comunidades espirituaisacabaram igualmente debeladas: ou porque excomungadas, ou porque seusmembros aceitaram se submeter novamente à “regra e obediência da Ordem”,renunciandoasuas“crençasheréticas”.

Obviamente, a defesa da pobreza evangélica, própria a toda a OrdemFranciscana,nãoeraumaexclusividadedos frades espirituais.Por issomesmo,estava sujeita a controvérsias no que diz respeito ao modo como deveria serinterpretada. A fim de pôr um termo a tais discussões, alguns frades foram

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enviadosparadeterminaracorretacompreensãodeste temajuntoàCortePapalemAvinhão.JuntoaelesestavaMigueldeCesena,naépoca,oMinistroGeraldaOrdem Franciscana (isto é, o representante máximo da Ordem, considerado opróprio sucessorde sãoFrancisco), justamentena condiçãode representante detoda a Ordem. Não demoraram, porém, a surgir graves divergências entre asinterpretaçõespropostasporestesfradeseaspropostaspelopapado.Tantoque,em virtude do encrudescimento da disputa, a situação dos frades tornou-serapidamente insustentável. Historicamente, graças à polêmica que sustentaramcontraopapado,essesfrades,e,comeles,GuilhermedeOckham,queacabouseunindoaeles,foramváriasvezestomadoscomopertencendoaomovimentodosfrades espirituais,oqueparecenãopassardeumerrogrosseiro,aindaquemuitoconveniente. Afinal, assim tais frades poderiam facilmente ser rotuladoscomo hereges,oqueinteressavaàIgreja,umavezquea heresia pretensamenteseriaamarcadistintivada falsidadedesuasopiniões,eàOrdemFranciscana,namedidaemquepoderiarapidamentesedissociardessesseusrepresentantes.

RetratopóstumodeGuilhermedeOckham.

As razões que levaram Ockham a entrar nessa polêmica são por eleapresentadas em sua Carta aos Frades Menores, escrita a seus confradesreunidosnoCapítuloGeral(reuniãoquecongregavaosprincipaisrepresentantes

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detodaaOrdemetinhacomotarefa,entreoutrascoisas,elegeroMinistroGeral)de 1334, emAssis. Nessa Carta, Ockham propõe-se a “dar as razões” de suaoposiçãoaoPapa.Emsuma,relataqueapóslerosescritosdoPapaJoãoXXII,contra o qual ele e os franciscanos reunidos em torno aMiguel de Cesena serebelaram,nãopôdesenãoencontrarváriospontos“errôneos,estultos,ridículos,fantásticos,insanosedifamatórios,contráriosàféortodoxa,aosbonscostumes,àrazãonatural,àcorretaexperiênciaeàcaridadefraterna”(OCKHAM,2009,p.200).Defato,aestratégiadeOckhamserásemprereduzirtodapolêmicaporelelevantadaaoquepodesertomadoda purarazão:

“[...] E, algumas vezes, colocando-me no lugar de outrem, conscientemente, argumentarei de modosofísticoemfavordastesesapresentadas,afimdeque,umavezentendidasasalegaçõesemfavordecadaumadaspartes,osinceroamantedaverdadepossateraocasiãodediscernirocertodoerradocomaagudezadapurarazão”(OCKHAM,2002,p.19).

E é por meio da pura razão e da experiência que Ockham traça um dosprincipaisargumentoscontraarelevânciadasagraçãodoImperadorpeloPapa:aunção,consagraçãoecoroaçãofeitasparaoreipormeiodeumeclesiásticonãoseria capaz de conferir ao Imperador nenhum poder temporal. O poder doImperador ou do rei, paraOckham, provém, emúltima instância, do povo queresolveuelegerumgovernantepara si:opovodeveestabelecer seumreidevesuceder a outro por hereditariedade, por eleição ou por qualquer outro meio.Tambémcabeaopovodecidirseoreiquesucedeaoutrohereditariamenteobtémopoderantesouapenasdepoisdesuacoroaçãooudeoutracerimôniaqualquer.Parasabermos,portanto,dequemodoumreirecebeseupoder,bastaolharmospara a história da constituição do seu reino. E quando essa história não pudermaisser lembrada,deve-se tentar tirardoscostumesrelativosàcoroaçãodessesreis as regras segundo as quais se dá a instituição de seu poder.Assim, por simesma,aunçãorealnadaconfereaorei:afinal,“elapodeserfeitaapenascomopropósitodeo reigozardemais respeitoedeferência...” (OCKHAM,2002,p.224).

Ao propor a vontade do povo como a base da instituição do governotemporal, Ockham não faz mais que retomar a formulação aristotélica daconstituição da política “em vista do bem comum” numa chave estritamenteprática.Opoderdogovernante,ou,naspalavrasdeOckham,oprincipadorégio,“possui,entreoutrascaracterísticas,aqueledetersidoinstituídoporcausadobemcomum dos súditos, e não em proveito do próprio governante”. De fato, umreinadoéinstituídomaisparaaquelesquenãoseguemasleisinstituídasemvistado bem comum do que para aqueles que as seguem: o governante “foi

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principalmenteinstituídoparaquecorrijaepunaosdelinquentes”.Portanto,maisdoqueparaatenderaosfinsditadospelanaturezahumana,talcomoemTomásdeAquino,apolítica,paraOckham,énecessáriaparasustentarumadeterminadaprática:

“[...] se nalguma comunidade ninguémprecisasse ser punido por causa duma culpa ou delito, então,bastariaquehouvesseummonitorouumdoutorqueinstruísseacercadobemquedeveserfeito,eseriatotalmentesupérfluohaverumgovernante...”(OCKHAM,2002,p.159).

E essa insistência na prática e na instituição voluntária do poder tem suarazão de ser: para Ockham, apesar de, tal qual reclamaAristóteles, o homemnaturalmentetenderparaafelicidade,elenãoécapazdeconhecernaturalmentequal é o seu fim último, ou seja, em que consiste, em última instância, suafelicidade.Emoutraspalavras,ohomemnãotemporsimesmoumconhecimentodefinitivoacercadoqueseriaparasiosumobemouobememsimesmo.QueessefimsejaDeuséalgoquesópodeseralcançadopormeiodarevelação:paraOckham, diferentemente do que vimos emTomás deAquino, não há nada nanatureza que seja suficiente para demonstrar a vontade ou a existência de umDeuscriador.Alémdisso,nãoháprovasdequeohomemnãopossaconsiderarcomoseubemsupremoaalgumbem finito:pormaisque se tenha investigadoqual é o fim último das obras humanas, não houve filósofo que conseguisseprovar naturalmente nem que haja um bem infinito, nem qual seria esse beminfinito,nemmuitomenosqueessebeminfinitosejaDeus...(Ockham,1967.)

Sendo assim,mais do que na natureza, o núcleo em torno do qual gira apolíticaockhamianaestánavontade:vontadedopovoquedecideescolherparasiumrei,vontadedoreiqueescolhequetipodeorganizaçãoseráamelhorparaseureino. Mas uma vez que nem a filosofia, nem o poder espiritual podem ditardefinitivamenteaohomemoquevemaserobemcomumporelebuscado,restaque a reta razão busque discernir, dentro dos limites de sua capacidade, aquiloquedeveconsiderarcomobem,sejaapartirdoque lheéoferecidopela fépormeio da revelação, seja a partir do que pode atingir pormeio de suas própriasforças,mostrandoàvontadeoquepodeserconsideradobomedeixando-alivreparaescolherounãooperarsegundoessebem.Postasascoisasdessemodo,nemarevelação,nemAristóteles,sãomaiscapazesdeofereceràrazãotudooqueelanecessitaparaaescolhadobemcomum.EmOckham,aPolíticaencontra seuslimites, uma vez que já não podemais contar nem com a religião nem com anatureza comobasesde seus fundamentos.Destituídade suasbases, avontadeprecisabuscaremsimesmaalegitimidadedobemquerido.Abrem-se,enfim,asportasparaamodernidade...

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Créditosdasimagens

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– TheArtArchive/Musée des BeauxArts Dijon/Gianni Dagli Orti/OtherImages

–TheBridgemanArtLibrary/GrupoKeystone–SammlungRauch/Interfoto/Latinstock

1.EvangelhosegundoSãoMateus,cap.22,versículo21,in Bíblia(1995).

2.AureliusAugustinus,BispodeHipona,e,porisso,tambémconhecidocomoAgostinhodeHipona,ou,nomodocomoéveneradopeloscatólicos,santoAgostinho,nasceuemTagaste,cidadeafricanadaprovínciaromanadaNumídia,atualArgélia,em354.Porvoltadeseus30anos,mudou-separaaItália,estabelecendo-seemRomae,depois,emMilão,ondeexerceuocargodeoradordoImpério.Poucodepois,em388,voltouaTagaste.EmHipona,tambémlocalizadaondehojeéaArgélia,foiordenadopadreem391ebispoem396.Morreunestamesmacidadenoanode430,poucoantesdeelatersidotomadapelosvândalos,segundoanarraçãodePossídio.ProfessordeGramáticaedeRetórica,Agostinhotravouconhecimentocomafilosofiade Cícero e depois sucessivamente com oManiqueísmo e o Ceticismo. EmMilão, descobriu a filosofianeoplatônica,que teve influênciadefinitivaemseupensamentoeemseusescritos.Tambémali,noanode387, converteu-se ao cristianismo, influenciado por Ambrósio, Bispo de Milão. Uma das principaisreferênciasparaocristianismomedieval,queencontrouemsuasobrasasbasesparaadiscussãodeváriosaspectosfundamentaisdopensamentocristão,Agostinhofoiumautorprofícuoedeváriasobrascélebres,dentre as quais, por sua importância para a filosofia, não poderíamos deixar de lembrar aqui ao menosduas: Confissõese ACidadedeDeus,marcos do pensamento e da política cuja influência ultrapassou delongeoslimitesdoperíodomedieval.

3. Apesar de, quando possível, trazermos aqui a referência dos textos citados em língua moderna,proporemosanossaprópriatraduçãodostextoslatinossemprequejulgarmosconveniente.

4.Cf.Aristóteles (1984). Sobre a concepção aristotélica das relações entre o bem supremo e a felicidade( eudaimonia), veja-se: Lopes (2008). Sobre o modo como o próprioAgostinho entende e propõe essarelação:Kent(2001).

5.Aristóteles(1989,p.21).

6. Dois livros bastante introdutórios sobre o que se passa nesse período, mas de leitura proveitosa são:Nascimento(1992)eStorck(2003).Paraumaleituramaisaprofundada,Gilson(1995).

7.TomásdeAquinonasceuentreo fimde1224eo iníciode1225nocastelodeRoccasecca, situadonocondadodeAquino,noreinodaSicília.Filhocaçuladefamílianobre,foidestinadoporseupai,Landolfo,oconde deAquino, ao sacerdócio. Tomás iniciou sua estadia entre os monges beneditinos, naAbadia deMonte Cassino, quando tinha apenas 5 anos. Em 1239, ainda entre os beneditinos, ingressou naUniversidadedeNápoles,ondeconheceuosfradesmendicantespregadores,maisconhecidoscomofradesdominicanos.Em1244,decidedeixarosbeneditinosefazer-sedominicano,mesmoquecontraavontadedesuafamília.Em1248foienviadopelosdominicanosparaestudarTeologiaemPariseColônia,tendocomomestreAlbertoMagno.Depoisdeformado,ensinouTeologiaemParis,Orvieto,Roma,ViterboeNápoles.Emsuacarreira,alémdoentãotradicionalcomentárioao Livrodassentenças, dePedroLombardo,TomásescreveuvárioscomentáriossobreasobrasdeAristóteles.SuasínteseedomíniodopensamentoaristotélicootornaramconhecidocomoumdosmaioresintérpretesdoEstagirita.Tomástambémescreveuváriasoutrasobrassobremetafísica, física,psicologia,políticae teologia.Dentreelas,aprincipaléa Sumade teologia,originalmente concebida comonãomais que um“catecismo” coma finalidadede instruir “àqueles que seiniciam na religião cristã”. Destaca-se nela o fato de a argumentação desenvolvida por Tomás estarfirmemente ancorada nos alicerces da filosofia aristotélica. Também merece destaque a Suma contra osgentios,umaapologiadareligiãocristãbaseadaemargumentosderazão.Tomásfaleceuem7demarçode1274, nomosteiroCisterciense deFossanova, a caminho doConcílio deLion. Foi canonizado pelo papa

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JoãoXXIIem1323.ImprescindívelcomointroduçãoaopensamentodeTomásaindaéaleituradeGilson(2010a),cuja6ªediçãodatade1964.

8.Ao menos dois estudos podem servir como uma primeira introdução para este tema: o incontornáveltrabalhodeJ.LeGoff(1995),e,comocontraponto/complementoaeste,Libera(1999).

9.GuilhermedeOckhamnasceuem1288,novilarejodeOckham,condadodeSurrey,Londres,Inglaterra.Antes dos 14 anos, ingressou no Convento dos Franciscanos de Londres, como puer oblatus, isto é, acriançapobreentregueaoConventoparasededicaràvidareligiosa.Ali,fez-sefradefranciscanoe,em1306,foiordenadosubdiáconodeSouthwark.Entre1308e1310encerrouosestudosdeFilosofiaedeuinícioaosestudos deTeologia, realizados emLondres eOxford.Suas leituras deAristóteles e sua compreensão daTeologiasãofortementemarcadasporseunominalismo,queprefereverasexplicaçõesquesomoscapazesde dar a respeito da natureza e da realidade que nos cerca antes como uma expressão domodo de comosomos capazes de conhecer do que como a descrição de quaisquer fenômenos metafísicos. Em 1322,Ockham é denunciado à Corte Papal em Avinhão, provavelmente por João de Reading, um confradefranciscano,pelasuspeitadequesuastesesfossempoucoortodoxasouheréticas.Em1324,éconvocadoaseapresentaremAvinhão,após terseusescritosexaminados,apedidodoPapa,porJoãodeLuterell,ex-chancelerdaUniversidadedeOxford,ondeOckhamhavia estudado.Ali,Ockhamseuneaoutros fradesfranciscanos,entreelesMigueldeCesena,entãoamáximaautoridadedaOrdemFranciscana,queacabaramsendo acusados de heresia por terem defendido a pobreza evangélica, principal identidade da vidafranciscana,comodistinçãomáximadocristianismoedavidareligiosa.Em1328,juntodeseusconfrades,Ockham foge deAvinhão e passa a viver exilado naAlemanha, sob a proteção do Imperador Luís daBaviera.Desdeentão,dedica-seaescreverumasériedeopúsculosetratadossobrepolítica,tendocomomoteprincipalacríticaàplenitudedopoderpapal.Morreem1347,naAlemanha, talvezvítimadapestenegra.Dentre suas principais obras estão os Comentáriospara física e para a lógica aristotélicas, o Comentáriopara as sentenças de Pedro Lombardo , os Quodlibeta e, no que toca à política, o Brevilóquio sobre oprincipadotirânico,o Diálogoeas OitoquestõessobreopoderdoPapa.

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RepublicanismoAlbertoRibeiroGonçalvesdeBarros

Introdução

3.1.1.Humanismocívico:aretomadadoideáriorepublicano

Bibliografia

IntroduçãoComooutrasdoutrinaspolíticas,oRepublicanismonãotevesuaorigemnem

encontrou sua formulação definitiva num único pensador. A sua temática foisendo elaborada e o seu ideário foi sendo construído por diversos autores nodecorrer dos séculos. O pensamento republicano possui, assim, diferentesmatrizesemanifestou-sedeváriasmaneirasnahistóriadopensamentopolítico.Pela sua amplitude e heterogeneidade, pode ser abordado sob diversasperspectivas.Neste capítulo será apresentadooRepublicanismodeCícero edeMaquiavel como formas de expressão, talvez as mais significativas dopensamentorepublicanoclássicoemoderno.

3.1.RepublicanismodeCíceroFilósofos e historiadores da Antiguidade greco-romana tiveram um papel

relevantenaconstruçãodoideáriorepublicano.Nosseusescritosencontram-seas

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primeirasmanifestaçõesdoRepublicanismo.AoladodeAristóteles,Políbio,TitoLívio, Salústio, entre outros, destaca-se o pensamento político deMarco TúlioCícero(106-43a.C).

Cícero pode ser considerado um autor eclético, no sentido de que evitavaassumiraverdadeabsolutadeumadoutrinafilosófica,condenandoasoutrasquelhe eram opostas. Como um admirador dos neoacadêmicos, ele preferiaconsiderarosváriospontosdevistasobreomesmoassunto,paraconfrontá-losecorrigi-losdeseusexcessos,afimdeproduzirumasínteseconstruídaapartirdeseuprópriojulgamento.Nocampopolítico,combinouconcepçõesdediferentesprocedências,produzindoumateoriapolíticaque,senãofoioriginal,teveaforçae o vigor necessários para influenciar o pensamento republicano até amodernidade.

Depoisdeumaintensaatividadepública–serviuaRepúblicaromanacomoquestor,edil,pretorecônsul–edeumavastaproduçãoliteráriaefilosófica,queinclui as mais belas páginas da retórica latina, Cícero dedicou-se à reflexãopolíticaquandoseencontravanoexílioejáseanunciavaofimdaRepública.Noseudiálogo Darepública(CÍCERO,1985),de51a.C.,emparticularnoslivrosIe II, é possível reconhecer os princípios norteadores do ideário republicanoclássico.

Até o século VII, esse diálogo foi amplamente lido e abundantementecomentado.Agostinho e Isidoro de Sevilha, por exemplo, fizeram dezenas decitaçõesliterais,reproduzindováriaspassagensemsuasobras.Mas,nodecorrerda Idade Média, a maior parte do diálogo foi perdida, com exceção da parteconhecida como o Sonho de Cipião, que foi transmitida em inúmerosmanuscritos. Em 1819, o jesuítaAngeloMai, ao trabalhar nummanuscrito decomentáriosdeAgostinhoaosSalmos,percebeuquehaviatraçosdeumescritoanterior,apagadoparadarlugaraoscomentáriosteológicos.Eledecifrouotextosubjacente e o transcreveu, publicando em1822 a primeira ediçãomodernadoquerestoude Darepública,cercadeumquartodooriginal.

Pelos fragmentos do preâmbulo do livro I é possível perceber o principalobjetivododiálogo:suprimirashesitaçõesecombaterodesânimoqueafastamoscidadãosdavidapública.Inicialmente,Cícerotravaumapolêmicacontraaquelesqueviamnoprazer( voluptas)ounoócio( otium)obemsupremodaexistênciahumana.Aos defensores do prazer, egoísta e estéril, ele opõe vários exemploshistóricos de cidadãos que contribuíram para a manutenção e grandeza darepúblicaromana,alcançandoporissoahonraeaglóriaalmejadasportodososhomens.Aospartidáriosdoócio,elesustentaaprimaziadohomempolíticocom

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oargumentodequeavirtude sóé completaquandoépraticada; e comoa suamais alta aplicação encontra-se na atividade pública, onde a natureza humanaencontra a sua mais plena realização, a dedicação ao bem público é a plenarealizaçãodavirtude(CÍCERO,1985,I,2).

Jácontraasobjeçõesdaquelesqueressaltavamasfadigaseosperigosaqueestavam expostos os homens públicos, sem receber nada senãomuitas vezes aingratidão, Cícero responde com o próprio exemplo de uma vida dedicada aobem público. Argumenta que os bons cidadãos devem estar preparados paraassumirosencargospúblicosedevemambicionaroexercíciodopoder,afimdeevitar que os maus o façam e com isso destruam a república, ao impor seusinteressesparticulares(CÍCERO,1985,I,3-12).

Cícerodefendeaindaanecessidadedesacrificarmuitasvezesoprópriobem-estarpelobemdapátria.Oamoràpátriaéconsiderado,antesdetudo,umdeverincondicional de reconhecimento para o lugar do qual recebemos nossaidentidade: a língua, as tradições, as leis e tudo o que nos constitui.Associadamuitasvezesaoutrosobjetosdeafeição–Deus,pais,família,amigos–apátriadeveteradedicaçãototaldeseuscidadãos(CÍCERO,1985,I,1).

BustodeMarcoTúlioCícero(106-43a.C.).MuseuCapitolino,Roma.

Em Dos deveres (CÍCERO, 1999), de 44 a.C., tratado moral escrito nomesmo período, ao discutir os deveres provenientes das inclinações naturais

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impressas no homem, Cícero ressalta a obrigação moral de preservar o bemcomum(CÍCERO,1999,I,153-7).Comooserhumanoénaturalmenteumsersocial,domesmomodoqueéumserracional,Cíceroargumentaqueele temodever moral de adaptar-se à vida em comunidade e de cuidar daquilo que écomum.Assim,imoralétudoaquiloqueécontrárioànaturezaracionalesocialdo ser humano, ou seja, toda ação pautada apenas pelas paixões e contra acomunidade.Nadapode ser consideradomais imoral e, portanto, irracional, doquebuscarasatisfaçãodobemparticularemprejuízodobemcomum,umavezqueocuidadocomobemcomumdecorredeumaleiinscritananaturezahumana(CÍCERO,1999,III,21-22;74-75).

Cícero sustenta, ainda, nesse tratado que a lei moral deve ser decretada apartirdoqueémais adequadoàutilidadecomum,quenãoé amera somadosinteressesindividuais,masosomatóriodasobrigaçõesquecadaumdeveatodos.Comooserhumanoencontranavidaemcomumapossibilidadedarealizaçãodesuanatureza,ohonesto sópode serdefinidoem relaçãoàparticipaçãonavidapública.Nãohá,assim,conflitoentreoútil eohonesto, comoalguns filósofossustentavam,poisahonestidadeestánabuscaeconservaçãodautilidadecomum(CÍCERO,1999).

Antesdenarrarodiálogosupostamenteocorridoem129a.C.,nosjardinsdeCipião, onde se encontravam alguns dos mais destacados homens públicos deuma época também conturbada politicamente, Cícero justifica sua competênciaparaexporoassunto.Eleteveafelicidadedeuniroconhecimentoteóricocomaprática dos assuntos públicos e guardava na memória a sábia opinião de seusantepassados que participaram desse debate. Era então seu dever dar suacontribuição,aoreproduzirodiálogosobreumtemadetamanharelevância,nummomentocríticoparaaRepúblicaromana.

O diálogo se inicia sobre os rumores da chegada de um segundo Sol naórbita celeste,metáfora astronômicaque remetia ao conflito entre o senado e opovo,queseacentuavacadavezmaisemRoma.OpersonagemLélio,umdospolíticos mais experientes entre os presentes, interrompe a discussão sobre opossível fenômeno astronômico dos dois Sóis com o argumento de que o serhumanoéincapazdeconhecercertosmistériose,sechegasseacompreendê-los,não seria nem melhor nem mais feliz. Já a situação política que dividia aRepública e da qual dependia o bem-estar dos romanos era assunto que diziarespeitoa todososcidadãos.Elepede, então, aCipião,quepossuía aomesmotempooconhecimentoteóricoeaexperiênciapráticadapolítica,queconduzaumdebatesobreaformadegovernocapazderestabeleceraconcórdianaRepública

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(CÍCERO,1985,I,14-37).Cipião,personagemqueseráumdosporta-vozesdeCíceronodecorrerdo

diálogo, reconhece que nada lhe émais familiar do que este tema ao qual temdedicado toda sua reflexão.Mas, antesdeavaliarqual seria amelhor formadegoverno,considerasernecessáriodefinirostermosdadiscussão.Começaentãocomadefiniçãoderepública:

“Repúblicaé coisadopovo.Epovonãoéqualquer ajuntamentodehomenscongregadodequalquermaneira, mas o ajuntamento de uma multidão associada por um consenso jurídico e por umacomunidade de interesses. E a primeira razão para se juntarem não é tanto a fraqueza quanto umatendêncianaturaldoshomensparasecongregarem”(CÍCERO,1985,I,39).

A definição apresentada mostra que república não designa somente aexistênciadeumacoisapública( respublica),emcontraposiçãoàcoisaprivada( resprivata),mastambémainstituiçãomesmadeumpovo,jáqueelaécoisadopovo( respopuli).Formadopelauniãodoshomensnãoapenasparaasatisfaçãodasnecessidadesnaturais, emespecial a segurança,masprincipalmenteporuminstintogregárionatural, umpovo se institui pelo assentimento comumdeumamesmaregrade justiça,quegarantea todosaproteçãodesuasvidasedeseusbens,epelacomunhãodedeterminadosinteresses.

Arepúblicadefine-se,então,materialmenteporumagrupamentodehomensemtornodeinteressescomuns;edefine-seformalmenteporumvínculojurídicoqueuneesseagrupamentodehomensedeinteresses,istoé,porumdireitoque,porserreconhecidoportodoseatodos,mantémoquepertenceatodos.Écomose cadaumpedisse à comunidade aproteçãode seus interesses e fizesse a suaparte na manutenção dos interesses de todos. Por isso, essa coisa pública dizrespeitoatodos,comosetodososquepartilhamdessebemcoletivo,aquiloquepodeserchamadodebemcomum,tivessemdireitosedeveresemrelaçãoaele.Portanto,nofundamentodarepúblicaestáanaturezaeodireito:oinstintonaturalconduzoserhumanoàvidaemcomunidade,ondeelesolicitaaproteçãodeseusinteressese, em troca, se submeteà legislaçãocomum(CÍCERO,1999, II,11-18).

Em outras partes do diálogo, o termo república não traz esse sentidomaisgeral, que se refere à natureza política da comunidade, mas é reservado paradesignaruma formaespecíficadegoverno,queéconsideradaamaisadequadapara assegurar o bem comum. Cipião argumenta que, para que o vínculoestabelecidoentreoshomenspossaperduraraolongodotempo,éprecisoqueeleseja fixado numa instituição permanente, com poder suficiente para impô-lo atodos.Avontadedeviveremcomumqueuneoshomensnumpovodeveassim

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sefixarnumgoverno.Seguindo a tradicional tipologia dos regimes políticos, estabelecida a partir

donúmerodepessoasaquemogovernoéatribuído–uma,poucasoumuitas–Cipião considera que as três formas decorrentes – monarquia, aristocracia edemocracia – são razoáveis, desde que a regra do direito seja observada.Mastodas elas têm suas debilidades: namonarquia, os cidadãos não participamdosnegóciospúblicos;naaristocracia,elesgozamdepoucaliberdadenadeliberaçãopública; e na democracia, a igualdade plena dos cidadãos se torna injustadesigualdadepornãohaverdistinçãodosgrausdedignidade.Em razãodessasdebilidades,elassedegeneramemformasdedominação:atiraniadeumsó,queé um regime de opressão; a dominação de uma facção oligárquica, que é umregime de venalidade; e a licença arbitrária da multidão, que é um regime deinsubordinação.Amudançadeumaformaaceitáveldegovernoparaasuaformadegeneradasedápela irrupçãodeseuprincípiocorruptor:oautoritarismofazamonarquia se tornar tirania; a ambição faz a aristocracia se transformar emoligarquia;eodesprezodaordemfazademocraciasedegeneraremoclocracia(CÍCERO,1985,I,44-46).

Depois de mostrar as inconveniências das três formas simples e de seusrespectivos desvios,Cipião sustenta que amelhor forma de governo, capaz degarantir a estabilidade e a longevidade da república, é a formada da fusão dasmelhores características das três formas simples, sem as suas debilidades. Issoretardariaasuacorrupção,istoé,asuadegradaçãoeconsequentedegeneraçãodocorpo político. O melhor exemplo dessa boa mistura era a própria Repúblicaromana, que reunia em sua constituição de modo equilibrado os melhoresprincípios de cada forma simples e evitava os seus respectivos problemas(CÍCERO,1985,I,54-55).

O termo república passa então a ser associado a um regime políticoespecífico, identificado com o governo misto, já exaltado pelos filósofos ehistoriadoresgregoscomoomaisadequadoparaocorpopolítico,porquegarantiaaparticipaçãodasdiversaspartesqueocompõemcomaadequadarepartiçãodasmagistraturas.

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AdenúnciadeCatilinaporCícero,océlebrediscurso,afrescorepresentativodoSenadoRomanoem63a.C.,deCesareMaccari,1889.PalazzoMadama,Roma.

É interessante observar que essa duplicidade de sentido de república vaipermanecer até o início da modernidade. Jean Bodin e Thomas Hobbes, porexemplo, utilizaram a palavra república para designar a sociedade políticaorganizada, enquantoMaquiavel e Guicciardini a empregaram para denominarumregimepolíticoespecífico,quesecontrapõeaoprincipado.

AorigemdessaambiguidadepodeestarnatentativadeCíceroemencontrarumequivalenteparaotermogrego politeia.Em APolítica,Aristóteles(384-323a.C)defineinicialmente politeiacomocertaordeminstituídaentreosmembrosdeumacidade,poistodacidadepossuiumaconstituição,istoé,aquiloqueorganiza,estruturaeordenaasrelaçõesentreassuasdiversaspartes,fazendodelasumtodo(ARISTÓTELES, 1998, III, 1275a). Em seguida, ao analisar a natureza docidadãoe identificá-locomoaquelequeparticipaemumadas funçõespúblicas(administrativa,judicialoudeliberativa),definemaisprecisamente politeia comocertaordemdasdiversasfunçõespúblicasoumagistraturas,especialmenteaqueésuprema entre todas, ou seja, o governo (ARISTÓTELES, 1998, III, 1275b-1276a;1278b).

Já ao discutir a melhor constituição ( ariste politeia) para toda e qualquercidade,noplanopuramenteteórico,otermoéutilizadoparadesignarumaforma

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constitucionalespecífica.Depoisdeproporumaclassificaçãodasconstituiçõesapartir de um critério quantitativo do número de pessoas que detêm o supremopodernacidade–governodeum,algunsoumuitos–combinadocomumcritérioqualitativodecomoessepoderéexercido–embenefíciodointeresseparticularde seu detentor ou do interesse comum da cidade – Aristóteles denomina ogoverno de muitos, de acordo com a lei e em benefício do interesse comum,de politeia.Assim,onomegenéricoparaasconstituiçõeséatribuídoaessaformaespecífica em que amaioria dos cidadãos exerce o supremo poder visando aointeressecomum(ARISTÓTELES,1998,III,1279b).

Em seguida, ao analisar as constituições efetivamente existentes e tentardefinir qual delas é amelhor,Aristóteles constata que amaioria das cidades écompostaporduaspartespredominantes:umpequenogrupodericoseumgrupomaior de pobres. Como considera que é necessário levar em conta ascaracterísticasmaismarcantesdoconjuntodoscidadãos,amelhorconstituiçãoaserestabelecidadevecongregardemaneiraproporcionalasparcelasoligárquicase democráticas, promovendo uma mistura ( mixis) de suas principaiscaracterísticas:ariquezadosoligarcasealiberdadedosdemocratas.Essamisturapode sermais oligárquica em alguns casos emais democrática emoutros,masjamais exclusivamenteoligárquicaoudemocrática (ARISTÓTELES,1998, IV,1290a-1291b).

Aconstituiçãomista( politeiamixis)éconsideraentãoamaisadequadaparaamaioriadascidades,porconseguircertoequilíbriodeinteressesentreaspartesmais significativas que as compõem, os oligarcas e os democratas, evitando osextremosegarantindoojustomeionoqualépossívelserealizarajustiçapolítica.Aopromovera integraçãoecomunicaçãodaspartesconstitutivaseantagônicasda cidade, submetendo os interesses dos dois segmentos predominantes aointeresse comum, o governo misto propicia certa estabilidade, fundada nocompromisso entre as partes que a constituem (ARISTÓTELES, 1998, IV,1294b-1296b).

O historiador grego Políbio (208-125 a.C.), no seu livro História, tambémavaliaaconstituiçãomista( politeiamixis)comoamelhorformadegoverno,masprincipalmente por ser capaz de superar as mudanças naturais dos regimespolíticos(POLÍBIO,1996).MuitopróximodareflexãodePlatão(1990),Políbiodescreve uma sucessão de regimes políticos ao longo do tempo: inicialmente,surgiudemaneiraespontâneaogovernodeumsó,cujoaperfeiçoamentogerouarealeza, que se transformou em sua forma degenerada, a tirania, que foisubstituída pela aristocracia, que se corrompeu numa oligarquia, que foi

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substituídapelademocracia,que sedegenerounumaoclocracia,que finalmentefoi substituída pela monarquia, encerrando o que seria o curso natural dassucessõesdosregimespolíticos.

Oprocessodemudançasconstitucionais( metabolepoliteion)éapresentadocomo idêntico ao dos corpos naturais, numadescrição da dinâmica política emtermos biológicos, como era comum na filosofia grega de ummodo geral.Nocasodoscorpospolíticos,acorrupçãoseria frutoda instabilidade intrínsecadasformassimples–monarquia,aristocraciaedemocracia–queeramcorretaspelapráticada justiçaedorespeitoàs leis,edos inconvenientesdeseus respectivosdesvios–tirania,oligarquiaeoclocracia–formasmarcadaspelafaltadecontrolee limite no exercício do poder.Assim, cada forma simples inevitavelmente sedegenera na sua forma oposta, que é substituída, por sua vez, por outra formasimples,numprocessonaturaldesucessãodosregimespolíticos.

Alémdessecaráterbiológico,asmudançasconstitucionaisteriamumcarátercíclico ( politeion anakyklosis), isto é, uma vez iniciado o processo detransformações,omovimentoseperpetuaria.Assimhaveriaumciclo incessantedemudançasconstitucionais,demodoqueofimdeumcicloimplicariaaorigemde outro.A única possibilidade de superar esse ciclo, segundo Políbio, seria aadoçãodeumgovernomistoquecombinasseomelhordecadaformasimples,oelemento mais virtuoso – a saber, a liderança da monarquia, a excelência daaristocracia e a liberdade da democracia – sem as suas debilidades (POLÍBIO,1996,VI,3-9).

Os exemplos históricos de Esparta e de Roma, que tiveram uma grandelongevidade por adotar um governo misto, corroborariam a tese de que acorrupçãopode ser amenizada coma combinaçãodosmelhores traçosde cadaformasimples.PolíbioatribuiàgenialidadedeLicurgoaestabilidadealcançadaporEsparta,aoelaborarumaconstituiçãoqueuniaamelhorcaracterísticadecadaformasimples,semsuasfraquezas.Naarquiteturaconstitucionalconstruídapelolegisladorespartano,asfunçõesdegovernoeramdivididasentreinstânciasquesecontrolavam mutuamente: o poder do rei não se transformava numa tirania,porqueeracontrabalançadopelopoderdopovo,quenãopodiadesprezarorei,por temer o Conselho dosAnciões, que o povo elegeu como os mais sábios(POLÍBIO,1996,VI,10).

Da mesma forma, Roma alcançou longevidade e proeminência, segundoPolíbio, em razão de seu governomisto, que não foi fruto do gênio de um sólegislador,masdeumcontínuoaperfeiçoamentodesuasinstituições,provocadopelos conflitos sociais entrepatrícios eplebeus.Nodecorrerde sua tumultuada

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história,Romaadquiriuumaconstituiçãoquecombinavaomelhordoselementosmonárquico, aristocrático e democrático, representados respectivamente nasfunções dos cônsules, dos senadores e dos tribunos da plebe. O resultado doregimerepublicanoadotadoporRoma,apósaexpulsãodosreisetruscosem509a.C.,foioequilíbrio,aestabilidadepolíticaeaexpansãodeseusdomínios.

Inspirado nessa descrição de Políbio, Cícero sustenta que num governomisto, como o adotado pela Roma republicana, as debilidades inerentes dasformassimplessãoafastadas–aexclusãodoscidadãosnosnegóciospúblicosdamonarquia, a pouca liberdade dos cidadãos nas deliberações públicas daaristocracia,afaltadedistinçãodeméritoentreoscidadãosdademocracia–eosprincípiosqueassustentamsãomantidos–aafeiçãoeunidadedamonarquia,asabedoriaeexcelênciadaaristocracia,aliberdadeeparticipaçãodademocracia.Graças a essa fusão do que há demelhor em cada uma das formas simples, ogovernomistoéconsideradoaformamaisadequadadegovernoparaarepública(CÍCERO,1985,I,30-46).

Embora a república tenha sido definida como coisa do povo, Cícero nãodefendequeoseugovernodevaserexercidopelopovo,nosentidodopovoseocupar diretamente dos negócios públicos. Isso poderia resultar no domínioarbitrário do povo, que é a antítese da própria república. A melhor formaconstitucionalparaa repúblicaéogovernomisto,queestabeleceaequidade,aordem e o equilíbrio entre as partes que a compõem. O resultado é então aunidadeeaestabilidade,quegarantemasualongevidade.

Paramostrarqueogovernomistonãoéprodutodamera imaginação,umaformaconstitucionalapenasideal,CícerodedicaolivroIIde Darepública paradescrever como Roma adquiriu sua estabilidade e grandeza, ao mesclar asmelhores características do governo real, aristocrático e popular em suaconstituição.Aocolocarcadaumemseulugareaodarexpressãoaosinteressesde toda coletividade,Roma encontrou uma forma harmoniosa e equilibrada degoverno, que deveria ser recuperada nessemomento emque o conflito entre opovo e o senado ameaçava a concórdia e a unidade da República (CÍCERO,1985,II,1-39).

As concepções políticas encontradas em DaRepública estabelecem algunsprincípios fundamentais do ideário republicano: a manutenção da comunidadepolíticadependedacoesãodeseusmembros,alcançadapelaparticipaçãonumaforma de ação coletiva em defesa do bem público; a base dessa coesão é opatriotismoeadedicaçãoaobemcomum;obemcomuméasseguradocomuma

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arquiteturaconstitucional,ogovernomisto,capazdedarexpressãoaosinteressescomuns;a igualdadede todososcidadãosperantea leigarantea liberdadedoscidadãosedacomunidade; acomunidadepolíticaestá sustentadanavirtudedeseuscidadãos,quedeveseefetivarnaatividadepública;asvirtudesdoscidadãossãodesenvolvidaseaperfeiçoadasquandoexercitadasnointeriordeinstituiçõesquepromovamaefetivaparticipaçãopolítica;eaatividadecívicaformaoespíritopúblicosobreoqualsefundamentaaliberdadepolítica.

3.1.1.Humanismocívico:aretomadadoideáriorepublicanoAlgunshistoriadoressustentamqueoideáriorepublicanosófoiretomadoa

partir do séculoXV pelos humanistas italianos daRenascença, depois de umalonga ausência no debate político. Ao buscar inspiração nos autores daAntiguidadegreco-romana,paraenfrentarasquestõespolíticasdeseutempo,oshumanistasteriamresgatadovaloresquehaviamnorteadoaexistênciadascidadeslivres do passado: autogoverno, participação política dos cidadãos, igualdadeperante a lei, entre outros (BARON, 1993).Alguns historiadores, no entanto,reconhecemnosescritosderetoresdoséculoXIII,comoBrunettoLatinieDinoCompagni,edefilósofosescolásticosdoséculoXIV,comoPtolomeudeLucaeMarsílio de Pádua, a presença desse ideário na defesa da liberdade política desuascidades.Aoenfatizaranecessidadedoaprimoramentodoespíritopúblicoapartir da prática das virtudes cívicas, principalmente entre os governantes, aodefender a identificação entre os interesses privados dos cidadãos e o interessepúblico, e aoproporoaperfeiçoamentodaarquiteturaconstitucional apartirdamelhordistribuiçãodasmagistraturas,essesautoresmedievaisteriamrecuperadováriosaspectosdoRepublicanismo(SKINNER,1996).

A temática republicana, para outros historiadores, já teria sido retomadadesde o século XIII com a recuperação dos tratados éticos e políticos deAristóteles, que trouxeram novamente para o debate político reflexões sobre acidadania,aconstruçãodobemcomum,asupremaciadaconstituiçãomista,entretantos outros temas que não faziam parte do pensamento políticomedieval atéentão, marcado pela forte influência da filosofia política de Agostinho(BLYTHE,1992).

Defato,noiníciodaAltaIdadeMédia,apesardaspretensõesuniversalistasdoSagradoImpérioRomano-GermânicoedoPapado,algumascidadesdoNorteda Itália passaram a reivindicar sua liberdade política, entendida comoindependência externa e autonomia interna. Elas não acatavam a reivindicação

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papal, apoiadanadoutrinada plenitudopotestatis, de suprema jurisdição sobreseus territórios; e apesar de continuar sendo consideradas, de iure, vassalas doimperador,elasexerciam, defacto,certaindependência,marcadaprincipalmentepelaelaboraçãoeexecuçãodesuasprópriasleis.Alémderejeitaraingerênciadepoderes externos sobre seus assuntos internos, elas também não aceitavam ogoverno arbitrário e hereditário sobre os assuntos públicos. Elas recusavam ogoverno autocrático, considerado despótico e tirânico, incompatível com aliberdade de viver segundo as próprias leis. Para sustentar as reivindicações deindependência e autonomia dessas cidades, vários autores – juristas, retores,filósofos escolásticos – recorreram ao arsenal de argumentos provenientes doRepublicanismo.

Mas, sem debater se o ideário republicano se manteve ou foi totalmentenegligenciado no período medieval, é preciso ressaltar, como faz NewtonBignotto, a diferençade intenção entre os escritos dos autoresmedievais e doshumanistas da Renascença. Se, entre os medievais, a contemplação apareciacomo a forma superior de se relacionar com omundo, a partir de humanistascomo Coluccio Salutati e Leonardo Bruni, as atividades próprias à cidadevoltaram a ser consideradas o que de melhor se poderia fazer ao longo daexistênciahumana.Reconhecia-senovamentenoespaçodavidapúblicaolugarprivilegiadodamanifestaçãodosvaloresmaiselevadosdacondiçãohumana.Afigura clássica do cidadão ativo, voltado para os problemas de sua cidade, foiretomadaeumasériedediscussõesarespeitodadedicaçãoaobempúblico,dacapacidade e possibilidade de se agir na cidade, voltou a ocupar o centro dodebatefilosófico(BIGNOTTO,2001).

Os humanistas se diferenciavam de seus antecessores principalmente pelaênfasenadiscussãosobreacidadaniaativaeaformaçãodeumtipodecidadãocapaz de contribuir para a liberdade política de suas cidades. Eles acreditavamqueaexistênciaeamanutençãodegovernoslivresdependiamdasvirtudesdoscidadãos,dadedicaçãoaobemcomumedaparticipaçãoativadoscidadãosnosassuntospúblicos.Preocupadoscomodestinodesuascidades,consideravamqueosregimeslivresconheciamsuadecadênciaquandooscidadãoscolocavamseusinteresses privados acima dos interesses públicos, abandonando as obrigaçõescívicas,ouquandonãodispunhammaisdascondiçõesnecessáriasparaparticipardavidapolítica(BIGNOTTO,2001).

Comoshumanistas,apolíticavoltouaservistacomoamaisimportantedasarteshumanas,aatividadecapazdeproporcionaraoshomensomaiselevadodetodososbens.Essavalorizaçãodaatividadepolíticafoiacompanhadapeloelogio

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da república. ParaBruni, por exemplo, o que os gregos chamavamde políticadeveria ser denominado “ preceitos sobrea república”, pois seuobjetivo era arealizaçãodeumbemcomum,quesópodeseralcançadopelaaçãoconjuntadeiguais; e isso só se dava numa verdadeira república, ou seja, numa sociedadepolítica bem ordenada em que os cidadãos se alternam nos cargos públicos eparticipamativamentedogoverno.Arepúblicanãoeravistaapenascomoolugarde proteção e de satisfação das necessidades materiais, mas também onde oscidadãos partilhavam de leis, costumes, magistraturas, cerimônias religiosas epúblicas,experimentandorelaçõesdeamizadeedesolidariedade.

Era um lugar-comum na literatura humanista de que sem a ciência civil( scientia civilis) não poderia haver justiça, equidade e paz social, nemmesmosequervidacivil( viverecivile).Paraoshumanistas,aciênciacivilpossibilitavamaisdoqueodesenhoformaldaconstituiçãodacidadeouocorpodasleiscivis,ela moldava as paixões e as inclinações dos cidadãos, incutindo hábitos deamizade e virtudes cívicas capazesdegarantir a concórdia.Quando a cidade éregidadeacordocomosprincípiosdaciênciacivil,pode-sedizerqueacidadepertenceaoscidadãos,umavezqueelespartilhamaquiloqueécomumevivemparaarealizaçãodeumbemcomum.

Na linguagem dos humanistas, o homem político ( politikós) assume asfeiçõesdocidadãovirtuoso( civilisvir),cujasqualidadesdevemestaraserviçodarepública.Pararealizarseudeverdeconduzirarepúblicaàfinalidadeparaaqual foi instituída, o cidadão deve ser virtuoso, isto é, temperante, corajoso,prudente e justo.Graças a essas virtudes, o cidadão é capaz de cuidar do bemcomum,preservandoacoisapúblicaegarantindoascondiçõesderealizaçãodobemviver.

Oproblemaenfrentadopeloshumanistaseracomoreordenarosfundamentosda vida civil ( vivere civile), garantindo a liberdade de suas cidades que seencontravam ameaçadas pela pretensão universalista do Papado e do Império,pela expansão das grandes monarquias nacionais e pelas investidas de váriosprincipadositalianos.AsanálisesdeDonatoGiannottieGasparoContarinisobreasdisposiçõesconstitucionaisdeVeneza,asreflexõesdeFranciscoGuicciardinisobre o governo de Florença, as considerações de Mario Salomonio sobre ogoverno de Roma procuravam dar uma resposta a esse problema, propondonovasformasdeorganizaçãodoregimerepublicano.

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3.2.RepublicanismodeMaquiavelMas foi, sem dúvida, na obra de Nicolau Maquiavel (1469-1527) que o

Republicanismo ganhou suas feições modernas. Alguns princípios foramconservados, outros reformulados e outros completamente abandonados,redefinindooideáriorepublicano.

Depois de servir ao governo republicano de Florença por 14 anos comoSegundo Chanceler, responsável pela correspondência relativa à administraçãodos territórios florentinos, e também como secretário dos Dez da Guerra,relatando as missões diplomáticas que envolviam os membros desse comitê,Maquiavel foi afastado de suas funções públicas com o retorno ao poder dosMédici,emnovembrode1512.Consideradosuspeitodeconspirarcontraonovoregime,foipreso,emfevereirode1513,esoltoummêsdepois,graçasàanistiaconcedida em comemoração à eleição do cardeal Giovanni de Médici para oPapado.

RetratodeMaquiavelporSantidiTito,segundametadedoséculoXVI.PalazzoVecchio,Florença.

Maquiavel retirou-se então para sua pequena propriedade rural emSant’Andrea, próxima à cidade de San Casciano, onde dedicou seu tempo delazer à reflexão sobre sua experiência política e sobre os ensinamentos dosgrandeshomensdopassado.Oprimeiro frutodessa reflexão, comoelemesmo

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relatounumacartaaoamigoFrancescoVettori,foiacomposiçãodeumopúsculosobreosprincipados( Deprincipatibus),noqualdiscutiaoqueeraoprincipado,as suas diferentes espécies, como eram conquistados emantidos, e por que seperdiam.

Publicadocomotítulode OPríncipe,oopúsculoiniciacomaafirmaçãodeque todos os Estados que existiram e existem são principados ou repúblicas,indicando a possibilidade de dois regimes políticos, que se distinguem pelonúmero de pessoas que detêm o poder: uma só ou o conjunto dos cidadãos(MAQUIAVEL, 2004). Ao tratar da primeira forma de regime, Maquiavelanalisaascondiçõesdaaçãopolítica,suaspossibilidadeseseuslimitesapartirdafiguradopríncipe,emparticulardopríncipenovo,responsávelpela instauraçãodeumanovaordempolítica(MAQUIAVEL,2004).

SegundoMaquiavel,osmeiosmateriaisqueopríncipedispõeparaagirsãoas leis e as armas. Como avalia que as boas leis dependem das boas armas,concentrasuaanálisenaqualidadedasarmas, istoé,notipodeexércitosqueopríncipepodeutilizar.Depoisdecriticartropasmercenáriaseauxiliaresporseremineficientesepoucoconfiáveis,enalteceoexércitoconstituídoporcidadãosleaisquelutamporamoràpátria.Alémdeserummeiodecanalizaraenergiadopovoem favor do bem comum, o exército popular é visto como o único capaz dealcançar a coesão necessária para a manutenção do Estado (MAQUIAVEL,2004).

Ocontroleeobomusodasarmasnãoesgotamaaçãodopríncipe.Eledevepreocupar-se, ainda, segundo Maquiavel, com a arte do governo. Essa arte éadquirida pelo conhecimento das principais características do ser humano, quepermite ao príncipe agir de acordo com o que são realmente os homens. Oshomenssãodescritoscomogeralmenteingratos,simuladores,volúveis,covardes,ambiciosos, pérfidos e interesseiros. Isso não quer dizer que eles sejamnaturalmentemaus,masquetêmcertatendênciaembuscaroprópriointeresseeagirdeacordocomele.Opríncipenãopodeassimsuporqueoshomenssejambonsnemgoverná-los combondade,porqueconhecerá inevitavelmente a ruínaentretantosqueestãodispostosaagircommaldade,senecessário,paraalcançarseusdesejos.Porisso,mesmoquenãosejamau,opríncipedeveaprenderausarda força quando for preciso, fazendo-se temer, pois esse é um sentimento,diferentedoamor,quenãoseabandonajamais.SegundoMaquiavel,aquelequegovernadeverecorrernãoapenasàsleis,própriasdoserhumano,mastambémàforça, que é maneira de combater dos animais, empregando as qualidades daraposa, para conhecer as armadilhas, e do leão, para aterrorizar os oponentes

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(MAQUIAVEL,2004).Asvirtudesprincipescas celebradaspela tradição–probidade, liberalidade,

piedade,lealdade,entreoutras–sãoassimrejeitadas.Naverdade,elastornam-seineficazes no âmbito político, que é regulado por outros princípios e valores.Maquiavelressaltaanecessidadedeumamoraladequadaàpolítica,umavezqueos valores que regulam a ação política não coincidem muitas vezes com osvaloresqueregemaaçãohumanaemoutrosdomínios.Nãosetrataderetiraramoralidadedapolítica,masdereconhecerqueapolíticatemseuprópriosistemanormativofundadoemvalorespróprios.Aaçãopolíticanãoestaria,então,isentade deveres,mas os critérios para estipulá-los não poderiam ser estranhos a suafinalidade,queéapreservaçãodobemcomumedaordempública,representadosem OPríncipepelaconquistaemanutençãodopoder.

Para alcançar sua finalidade, o agente político não dispõe no pensamentomaquiavelianodeumanteparomoralpredeterminadoeabsoluto.Aosedefrontarcom a incerteza, a instabilidade e amutabilidade dos acontecimentos políticos,sujeitosàcontínuaaçãodafortuna,elenãopoderecorreraumconjuntoderegrasfixas, apriorieatemporais.

Aotratardaaçãodafortuna,Maquiavelnãonegaasuaexistêncianemasuainfluêncianosnegócioshumanos,mascriticaa imagemdeumadivindadecujaarbitrariedaderegulariainevitavelmenteodestinodoshomens.Admitequeaaçãohumanaécondicionadanãosomentepelaestruturasocialpreviamenteexistente,como tambémpelascaracterísticasdosagentesenvolvidos,mas rejeitaqueessaação seja totalmente dirigida pela fortuna, restando apenas o conformismo e aresignação. Se os homens não têm como se opor às condições impostas pelafortuna, eles precisam, pelo menos, se adequar a elas, viabilizando a melhoropçãodeação.Afortunaimpõe,semdúvida,umaespéciedeestruturaapartirdaqualaaçãoserealiza,masdeixaaoshomensumespaçoconsideráveldeatuação(MAQUIAVEL,2004).

Aquelequeécapazdeobterêxitodentrodoquadroestabelecidopelafortunaé considerado um homem de virtù. Virtù é o termo empregado porMaquiavelparaindicarumconjuntodequalidades–sentidoderealidade,compreensãodascircunstâncias, habilidadede avaliaçãodomomento, aptidãopara se adaptar àsdiferentessituações,capacidadedeadotarmedidasextraordinárias–quenãoseconfundemcomasvirtudesconsagradaspelatradiçãofilosóficaequepermitemaohomemrealizarseusobjetivosapartirdoqueédadopelafortuna.

Se a fortuna é tratada a partir de características femininas, pelo fato de ser

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retratada como uma deusa, a virtù é associada às qualidades próprias do varão( vir), aquelas consideradas viris como razão, prudência, habilidade militar,coragem, entre outras. A extensão da influência da fortuna é consideradadiretamenteproporcionalàextensãoda virtù doagentepolítico,ou seja,de suacapacidadedeanálise,deavaliaçãoedeaçãoemcadasituação.Quantomaiorforessa capacidade, tanto maior será a possibilidade de sucesso e tanto menor odomíniodafortuna.Enfim,oêxitodoagentepolítico,sejaeleumpríncipeouoconjuntodoscidadãos,vaidependerdesua virtù,ouseja,desuadisposiçãodeadequarassuasestratégiasdeaçãoàsparticularidadesdomomento,alterandoasuacondutadeacordocomascircunstânciaseadaptandooseucomportamentoàsexigênciasdecadasituação.

Se OPríncipe trata dosprincipados, Discurso sobreaprimeiradécadadeTito Lívio, obra finalizada em 1519, aborda especialmente o segundo tipo deregimepolítico:asrepúblicas.ApreocupaçãodeMaquiavelpareceser,naesteirados humanistas, com a crise que envolvia os fundamentos constitucionais dasrepúblicasitalianasdeseutempo,emparticularFlorença,esuaspossibilidadesdesobreviver como comunidades livres num mundo reconfigurado pelas grandespotênciasterritoriais.

Defato,aliberdaderepublicana,entendidacomoindependênciaemrelaçãoàspotênciasestrangeiraseautonomianaelaboraçãoeexecuçãodesuasprópriasleis,constituiotemaprincipaldessescomentáriosdeMaquiavelaosdezprimeiroslivros da História de Roma, de Tito Lívio (59-17 a.C.). A primeira partedos Discursos é dedicada amostrar a origem e o desenvolvimento político deRoma, em especial a substituição do regimemonárquico pelo republicano e acriaçãodeinstituiçõescapazesdepreservarsualiberdade;asegundapartemostracomoaprogressivaexpansãodeRoma,apoiadaemseupoderiomilitar,ajudouasustentar a liberdade conquistada; e a terceira parte avalia a ação dos cidadãosromanosnamanutençãodaliberdadedaRepúblicaromana.

Mas por que comentar a história da antiga República romana, quando apreocupação era com a liberdade das repúblicas de sua época, em especialFlorença?Noprefácio,Maquiavel anuncia sua intençãode adotar napolítica apráticaquejáeracomumaodireitoeàmedicina:ousodasexperiênciaspassadaspara a elaboração de regras que orientassem a ação no presente.A premissabásicadesseprocedimentoeraainvariabilidadedaspaixõesedesejoshumanos,que não se manifestavam sempre do mesmo modo, em razão das mudançasprovocadas pelo tempo, mas mantinham certa constância, permitindo que osrelatos históricos pudessem ser utilizados comoparâmetros de conduta.Não se

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tratavadepuraimitaçãodopassado,masderesgatarosentidodosfatosnarradosa fim de extrair lições para a atualidade, como já havia sido feito para osprincipadosem OPríncipe.

FlorençanoséculoXVI.ComemoraçãonaPiazzadellaSignoria.Àdireitavê-seoPalazzoVecchio.Anônimo,1595.GalleriadegliUffizi,Florença.

Maquiavelsugeredessamaneiraapassagemdeuminteresseestético,queselimitavaaadmirarelouvarosrelatoshistóricos,parauminteresseprático:abuscade exemplos que pudessem orientar a estratégia de ação. O exemplo históricosugeridoparaasrepúblicaséodaRepúblicadeRoma,cujaliberdadeegrandezanãoforamalcançadasapenasporcausadoacasooupelosfavoresdafortuna,masprincipalmentepela virtùdeseuscidadãos.

A maioria dos humanistas, no entanto, via com certa desconfiança aexperiência romana e propunha outros modelos, principalmente Esparta, naAntiguidade, eVeneza, entre as repúblicas contemporâneas.Eles opunham, deumlado,ocaráterpacíficodessascidadesaoexpansionismoávidoeimperialista

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de Roma; e de outro, a concórdia e a unidade que havia nelas às constantesdissensõesentreosromanos.Porisso,propunhamcomoexemploaserseguido,emrazãodapaz,concórdiaelongevidadealcançadas,EspartaouVeneza.

Maquiavel procura mostrar que a estabilidade de Veneza era decorrenteprincipalmentedasuaposiçãogeográficaisoladaedesuapopulaçãohomogênea.Do mesmo modo, Esparta, ao assegurar uma igualdade entre seus cidadãos eimpediraentradadeestrangeiros,garantiuapermanênciadesuasinstituiçõesporlongo tempo.Ambas experimentaram realmente a estabilidade, mas porque semantiveramfechadas,adotandoumapolíticadeconservação, istoé,decontroledesuapopulaçãoedemanutençãodeseusterritórios.Oequilíbriodessascidadesfoi, assim,estático.Roma,aocontrário,desde suasorigens, abriuasportas aosestrangeiroseoexército,aopovo.Afimdeconservara liberdadeconquistada,depois da expulsão dos reis etruscos, conduziu uma política de expansão,ampliando sua população e seus domínios. A sua estabilidade foi alcançadagraçasaodinamismodesuasinstituiçõesqueserenovaramcontinuamentediantedas novas circunstâncias históricas. O equilíbrio dessa república foi assimdinâmico(MAQUIAVEL,2007a,I,6).

Seapolíticade isolamento,adotadaporEspartaeVeneza,parecesermaissegura,elanãoéconsideradaamaisadequadaa longoprazo.Maquiavelalertaque não há nada que seja permanente entre os homens. Por isso, a políticaadotada por Roma, que acolheu a natureza mutável dos acontecimentos,permitindo um equilíbrio dinâmico, é amais indicada e deve ser imitada pelascidadesitalianas.

Maquiavelenfatizaassimadiferençaentreasrepúblicascapazesdeexpansãoe as projetadas apenas à conservação. Ele sustenta que somente aquelas queoptarampelaexpansão,buscandoapotência,comoRoma,garantiramao longodotempoamanutençãodaliberdade.ARepúblicaromanafoicapazdeconservarsua liberdade, porque se manteve aberta aos acontecimentos, enfrentando oscontínuosdesafiosdacontingênciadascoisashumanas.Comoaliberdadenãoégarantidaporumaformaconstitucionalestável,comoogovernomisto,maspelacriação contínua das condições de potência, Roma era omelhormodelo a serseguidopelasrepúblicascontemporâneas.

Reproduzindoacrençahumanistadequeacompreensãodanaturezadeumcorpopolíticodevelevaremcontaanaturezadesuafundação,MaquiavelmostraquealiberdadeeagrandezaalcançadasporRomatambémforamdecorrentesdamaneiracomoelafoifundada(MAQUIAVEL,2007a,I,1).AotratardaorigemdeRoma, aborda a figuramítica e controvertida deRômulo. Contra toda uma

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tradição que repudiava o fratricídio e o condenava sem ressalvas,Maquiavel ojustifica pelos seus resultados.Ele argumentaque se o objetivodeRômulo, aomatarseuirmão,tivessesidoapenasasatisfaçãodeumaambiçãopessoal,seuatodeveria ser realmente censurado,mas comovisava a um interessemaior e tevecomo fruto a grandeza de Roma, sua ação estava justificada. O fratricídio deRômuloéjustificávelprincipalmentepordoismotivos:anecessidadedeestarsó,deconcentrartodopoderedefazer,muitasvezes,usodaviolência,nomomentoda fundação de um corpo político; e a finalidade e o resultado da ação(MAQUIAVEL,2007a,I,9).

A avaliação do ato de Rômulo é feita assim a partir de critériosexclusivamentepolíticos,levandoemcontaopreçodaemergênciadeumanovaordempolítica,enãoporcritériosjurídicosoumoraisexistentes.Omomentodafundação é considerado pré-jurídico, antecedente a todo e qualquer direito, eindependentedeumamoralalheiaaosvaloresdaprópriapolítica.Alémdisso,omomento da fundação, como todo ato político, não pode ser julgado pelasimpressões que produz,mas pelos seus efeitos. Só depois de conhecer os seusresultadoséqueumaaçãopolíticapodesercorretamenteavaliada.Talvezestejanessa justificação do fratricídio de Rômulo a origem da máxima atribuída aMaquiavel,masquenãoseencontrademaneiratextualemsuaobra,dequeosfinsjustificamosmeios.

SegundoMaquiavel,apesardenãotertidoasorte,comoEsparta,deterumsábiolegisladorquelhedesseumaboaconstituição,Romaaadquiriunodecorrerdesuahistória,graçasaprincípiosestabelecidosdesdesuaorigem.Entreeles,oda liberdadeparaqueas forçaspolíticaspudessemseexpressar,oquepermitiucomquesuasinstituiçõespudessemserremodeladaseaperfeiçoadasemfunçãodos acontecimentos. Havia, por exemplo, em Roma mecanismos institucionaiscapazesdedarvazãoàscontínuasdissensõesentrepatrícioseplebeus.

Maquiavelmantém, assim, a tradicional concepção de que foi a partir dasdissensõesentreseuscidadãosqueRomaadquiriusuaconstituiçãorepublicana.Noentanto,elasnãosãoconsideradasapenasumaetapaparaaaquisiçãodeumaforma constitucional mista, como sustentava Políbio, nem acontecimentosfortuitosdesuahistória,comodefendiamoshumanistas.Tratadasporumasériede termos, como confusão, desordem, desunião, tumultos, inimizades,controvérsias, discórdias civis, divisões, disputas, elas são consideradasinevitáveis e responsáveis pelas boas leis e pela liberdade de Roma(MAQUIAVEL,2007a,I,3-4).

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Enquantotodaumatradiçãoafirmavaqueparadesfrutardavidacivil( viverecivile) era necessário instaurar a concórdia e a unidade, valores exaltados pelopensamentopolíticoantigoemedieval,Maquiavelenfatizaquesedeveaprenderapreservá-lanointeriordosconflitos,comofezRoma,poiselessãoinerentesaocorpo político. O seu ponto de partida é a constatação da existência em todocorpo político de dois humores – termo emprestado da medicina hipocrático-galênica–dosquaisnascemdesejosdistintos:odesejodosgrandes( grandi)demandar e dominar; e o desejo do povo ( popolo) de não ser comandado nemoprimido. Esses dois desejos são considerados complementares: um remete aooutro indefinidamente, jáqueumnãoexiste semooutro.Elespodementão seafirmarconjuntamente,masnãopodemser saciados simultaneamente,porqueaplena realização de um implica a impossibilidade de satisfação do outro: se odesejodosgrandesdedominarétotalmenterealizado,odesejodopovodenãoserdominadonãopodeserefetivado(MAQUIAVEL,2007a;2007b).Seguindoaconcepçãomédicadaépocadequeasaúdedetodocorpo,humanooupolítico,depende do equilíbrio entre os seus humores,Maquiavel sustenta que nenhumdos humores deve predominar ou dominar totalmente o corpo político, pois seissoacontecerocorpoadoeceeperece.

Nos principados, a pluralidade dos humores émediada pelo príncipe, quepodemanter os diferentes desejos em equilíbrio. Já nas repúblicas, amediaçãodeveserrealizadapelaconstituiçãoepelasleis,detalmodoqueoshomensnãoprecisemrecorreràforçaparasatisfazerseusdesejos,oqueresultarianumestadode licenciosidade. Por isso, é preciso criar instituições que levem em conta aimpossibilidade de ultrapassar a dessemelhança de desejos e que permitamqueelesseexpressemmutuamente.Énecessáriotermecanismoscapazesdelidarcomasinevitáveisdissensõesprovocadasporessadessemelhançadedesejos.Enfim,devehavermeioseespaçospúblicosnosquaisosconflitosprovocadosporessesdesejos distintos possam ocorrer, sem que se aniquile a possibilidade deconvivênciaentreaspartesconstituintesdocorpopolítico.

As dissensões ocorridas entre patrícios e plebeus geraram boas leis eliberdade,porquehaviaemRomainstituiçõescapazesdedarvazãoaosdesejosopostosenasquaisosconflitospuderamsemanifestar.Maquiaveldestacaentreesses mecanismos o direito de acusação pública, que possibilitava denunciaraquelescidadãosqueatentassemcontraaliberdadedaRepública.Essedireitodeacusaçãotinhadoisefeitos:oscidadãosnãoousavaminvestircontraasegurançadacidade,poistemiamseracusadosecastigadospeloatentado;epermitiaalivremanifestação dos desejos por um mecanismo institucional (MAQUIAVEL,

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2007a,I,7).Semmecanismos institucionais,osdesejos são reprimidos,gerando facções

que colocam em risco a existência do corpo político. Era, por exemplo, o queocorriaemFlorença,segundoMaquiavel.Comoacidadenãodispunhademeiosinstitucionalizados para canalizar os desejos de seus cidadãos, eles recorriam ainstrumentosprivados,comoacalúnia,quegeravafacçõesealutaentreosseusmembros(MAQUIAVEL,2007a,I,8).

As dissensões, quando mediadas por mecanismos institucionais, podemproduzirboasleiseliberdade,comoocorreuemRoma,emrazãodaprevalênciadasaçõesnecessáriassobreaquelasquedependemdaescolha.ParaMaquiavel,oshomensagemporescolhaoupornecessidade;esóanecessidadeécapazdeconduzi-losapraticarobem(MAQUIAVEL,2007a).Asdissensõesimpõem,aorepresentarumrisco iminenteparaaexistênciadocorpopolítico,umestadodenecessidadeque levaoshomensaagirbem.Nãoapenas são indicadorasdessanecessidade, mas a impõem pela urgência de uma decisão no interior dadiscórdia, suprimindo todo recurso à escolha e às indecisões que dela resultam(MAQUIAVEL,2007a,I,46eIII,28).

Segundo Maquiavel, é preciso que o legislador tenha em mente, aopromulgar as leis, que a natureza criou os homens com a pulsão insaciável detudo possuir e a impotência de tudo atingir, o que os torna ambiciosos einsatisfeitos;eaambiçãocessaapenasquandoanecessidadeseinstaura.Porissoolegisladordeveformularleisdemodoacultivarumestadodenecessidade,paraque a ambição não se manifeste. Não é que a lei seja capaz de modificar oshomens,maselapodecriar,pelasançãoquecarrega,umestadodenecessidadeartificialcapazdefrearosimpulsosdestrutivosdoshomenselevá-losapraticarobemeaagirdeacordocomointeressecomum(MAQUIAVEL,2007a,I,3).

Ao retomar a teoria polibiana das mudanças constitucionais, Maquiaveldefende que a corrupção dos regimes políticos se dá em consequência dadistância temporal e do enfraquecimento da necessidade que exigiu suainstituição: as gerações se sucedem, a urgência é esquecida e a corrupção seinstaura. Assim, um regime político só escapa da degeneração enquantopermanecermarcado pela urgência que o fez surgir; e conhece sua decadênciaquandoessanecessidadedesaparecedohorizonte(MAQUIAVEL,2007a,I,2).

No caso de Roma, após a expulsão do rei etrusco, os patrícios ainda sesentiamameaçadospelopossívelretornodamonarquiaeexerceramopodercommoderação,dentrodalei,pormeiodoConsuladoedoSenado.Mascomamorte

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dos Tarquínios, eles perderam o medo e passaram a governar de maneiradiscricionária,oprimindoaplebe.Osdistúrbioscomaplebeaumentaram,então,de tal modo que ameaçaram a existência de Roma. Diante desse novo perigoiminente, um estado de necessidade se impôs e foram criados os Tribunos daplebe, que permitiram ao povo agir politicamente por um meio institucional.Assim, as dissensões entre patrícios e plebeus provocaram mudançasconstitucionais que não suprimiam os elementos do regime precedente, masacrescentaramnovoscomponentes,combinando-osnaformaçãodeumgovernomisto(MAQUIAVEL,2007a,I,2).

Mas o governo misto não é considerado a solução definitiva para aestabilidade política. Para Maquiavel, a superioridade da constituição romanaresidiamuitomais na sua dinâmica do que na suamistura, ou seja, no fato depermanecer aberta para o processo contínuo de desequilíbrio e permitir essedesequilíbrio,semtentardeterminá-lo,possibilitandoqueastensõesprovenientesdosconflitosentrepatrícioseplebeuspudessemsemanifestar.

Não há, no entanto, um elogio incondicional dos conflitos por parte deMaquiavel.Elereconhecequeelespodemgerarboas leise liberdade,comonocasodeRoma,ougerarviolênciaemedo,comoemFlorença.Nessesentido,eledistingueasdisputasocorridasemRoma,ondeodesejodaplebeeraparticipardogoverno, sem dele excluir os patrícios, a fim de proteger sua liberdade, doscombatesemFlorença,ondeodesejodaspartesenvolvidassemprefoiexerceropoder de maneira exclusiva, excluindo a outra parte por meio do exílio e dosangue, que não são soluções para os conflitos, pois os sufocam ao invés deresolvê-los(MAQUIAVEL,2007b,III,1eVII,1-2).

SegundoMaquiavel,asdissensõestiveramefeitospositivosemRomaporqueforammotivadaspelaparticipaçãoeocorreramnaesferapública,mediadaspormecanismos institucionais que permitiram sua expressão.Ao contrário, tiveramefeitosnefastosemFlorença,porqueforamguiadaspor interessesparticularesesolucionadaspormeiosprivados(MAQUIAVEL,2007a,I,7-8).

Oresultadodosconflitospodeserdistintonãoapenasemdiferentescidades,masnamesmacidadeemdiferentesmomentos.EmRoma,observaMaquiavel,asdisputas que se seguiram à promulgação da lei agrária pelos irmãos Gracogeraramódio eproduziram facções, causandoa ruínadaRepública.Aquestãoentãoéentendercomodeummesmopontodepartida,adissensãoentrepatríciose plebeus, chegou-se a resultados tão opostos: num primeiro momento, aliberdade e a grandeza; num segundo, a guerra civil e o esfacelamento daRepública.

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Oque parece estar em causa paraMaquiavel é inicialmente o trabalho dotempo sobre a lei agrária, de modo que o que era num primeiro momentonecessário para refrear o desejo dos patrícios tornou-se em seguida uminstrumentodeambiçãodosplebeus.Depois,ofatodeodesejodosplebeusterseequiparadoaodesejodospatrícios,aoquerer tambémcomandaredominar.Aoabandonar seu desejo original de não ser dominado e ter amesma ambição dedominar dos patrícios, os plebeus passaram a disputar o mesmo objeto,conduzindoaRepúblicaaoconfrontoarmado(MAQUIAVEL,2007a,I,37).

Ao considerar as consequências da lei agrária, Maquiavel aponta para oprocessodecorrupçãoqueseinstaura,mesmonumregimerepublicano,emrazãodoinevitávelefeitodotempo;ealertaparaoperigodeseacreditarqueseafastousuapossibilidadeparasemprepormeiodeuminstrumentoconstitucionalcomoogoverno misto. Maquiavel considera que essa corrupção comporta graus ediferenciações.Seacorrupçãotiversealastradoportodasaspartesdarepública,principalmenteentreopovo,aliberdadenãoterámaislugar,amenosquesurjaum acontecimento extraordinário.Roma, por exemplo, conquistou e conservousua liberdade, após a expulsão dos Tarquínios, porque o povo não estavatotalmente corrompido. Mas não conseguiu recuperar sua liberdade, após aextinção dosCésares, porque o povo já se encontrava então contaminado pelamaisprofundacorrupção.Domesmomodo,MilãoeNápolesnuncaalcançaramaliberdade, porque a corrupção encontrava-se impregnada em suas entranhas(MAQUIAVEL,2007a,I,16-17).

Noscasosemque sechegouaumestágiomáximodecorrupção, somenteumareformaamplaeradicaldarepúblicaécapazdeimpedirsuaruína.Paraisso,lembraMaquiavel,osmeiosordináriossão insuficientes:as leisnãoconseguemmais reprimiracorrupção;eas instituiçõesdeixaramdesereficientes.Torna-seentão indispensável o recurso a métodos extraordinários, como as armas e aviolência.Emtalsituação,defendeaaçãodeumsóhomem,queseapoderedopoder,paradispordeledamaneiraquebementender,empregandoosmeiosqueconsidere necessários para reformar as leis e as instituições, ou seja, é precisoretornaraomomentopré-jurídicodafundação,noqualoagentepolíticoencontra-seforade todalegalidadeemoralidade.MasMaquiaveladvertequeserámuitodifícil encontrar um cidadão virtuoso que se disponha a usurpar do poder pormeios ilegítimos, a fim de promover essa reforma radical; e se um homemambicioso e corrupto o fizer, dificilmente dará um bom uso ao poder queconquistoucomomal(MAQUIAVEL,2007a,I,18).

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Já nos casos em que a corrupção ainda não alcançou seu graumáximo, épossível combatê-la, segundoMaquiavel, com a renovação contínua, isto é, oretornoaosprincípiosqueseencontramnomomentodainstituiçãodarepública,para que seja recordada a necessidade de seu surgimento. Esse retorno nãoconsistenumasimplesreafirmaçãodoconteúdodesuaconstituiçãooriginal,poisisso seria recusar a inevitável mudança das coisas, mas na rememoração domomentonoqualsedeuauniãodoscidadãosesealcançouoconsensoparaaformaçãodacomunidadepolítica.Osprincípiosparaosquaiséprecisoretornarcontinuamentesão,decertaforma,anterioresa todoconteúdo(MAQUIAVEL,2007a,III,1).

Essa renovação contínua é pensada como resultado de três processos. Oprimeiro é totalmente extrínseco, quando a república fica exposta a um perigoexterno, devido a um acaso qualquer, como uma invasão ou uma catástrofenatural.O segundo é intrínseco e depende do surgimento de homens virtuososquese tornemmodelosdecondutaparaosdemaiscidadãos,pelosseusatosdecoragemedesprendimento,comoocorreuemRomacomBrutus,quesecolocounolimitedodireitoparaseoporaumpodercorrompido.Masambososprocessosdependemda contingência e são perigosos: o primeiro pode resultar no fimdarepública;osegundopodegerarumestadodeterror,poisoscidadãosvirtuososnormalmentesecolocamàmargemdaleierecorremàviolência(MAQUIAVEL,2007a,III,2-3).

Já o terceiro processo, que não é muito detalhado por Maquiavel, parececonsistir na criação demecanismos legais que produzamo contínuo retorno àsorigens de maneira regular, revigorando as instituições da república. Menoscontingenteemaiseficaz,significariatornarasleisefetivaselhesdarnovamenteasuaforçaoriginal,aplicando-as,etornarasinstituiçõesmaisatuantes.Assim,omeio mais eficaz de não ver a república se corromper é não esquecer suanecessidade originária, fazendo reviver continuamente o momento da suafundação, por meio de mecanismos que recuperem seu vigor inicial(MAQUIAVEL,2007a,I,16).

ApartirdoexemplodeRoma,Maquiavelsustentaaolongodos Discursosasuperioridade das repúblicas sobre os principados. Para ele, as repúblicas sãomaisprósperasdoqueosprincipados,porquenelasoscidadãos,segurosdequevão desfrutar de seus bens, se empenham em aumentar suas riquezas,favorecendoaprosperidadepública(MAQUIAVEL,2007a,II,2).Elastambémsãomaisproeminentes,jáquetodososcidadãossededicamigualmenteaobemcomum, que é considerado de todos, diferente dos principados, nos quais o

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interessedopríncipeéfrequentementecontrárioaointeressecomumou,oqueépior,seconfundem(MAQUIAVEL,2007a,II,2).

Nas repúblicas, o interesse comum émais respeitado, segundoMaquiavel,porqueavontadedecadamembrodacomunidadeestásubmetidaàvontadedetodos, expressa nas leis. Se o império da lei também é recomendado para osprincipados,poisterumaautoridadereguladapelaleiéamelhorgarantiadeumgoverno justo e moderado, só nas repúblicas, onde possíveis exceções ouprivilégios são descartados, tem-se a garantia efetiva de que as leis vãocontemplar o interesse da coletividade e não o de facções ou de indivíduos(MAQUIAVEL,2007a,I,47).

Aigualdadecivilinstauradanasrepúblicas,graçasaoimpériodalei,écapazdegarantir tambéma igualdadedeacessoaoscargospúblicos, inclusiveamaisaltamagistratura,combasenasvirtudes, incentivandooscidadãosapraticá-las.Issonãoocorrenosprincipados,ondeosofíciossãodestruídosdeacordocomavontade do príncipe. Para Maquiavel, o governo republicano favorece osurgimento das virtudes cívicas, uma vez que proporciona aos cidadãos, aoconferir-lhes liberdade, um campo de possibilidade para o desenvolvimento desuaspotencialidades(MAQUIAVEL,2007a,I,29-30e55).

Asrepúblicastambémsãoconsideradasmaiseficazesdoqueosprincipadosna tarefa de colocar as paixões humanas a serviço do bem comum, pois elascondicionam o reconhecimento da almejada glória aos serviços prestados àcoletividade, seja no combate aos inimigos externos, seja no desempenho dasmagistraturas. No regime republicano, os impulsos humanos podem sercanalizados, por meio de instituições públicas, para a busca da grandeza e dapotênciadacidade(MAQUIAVEL,2007a,I,7-8).

Contra toda uma tradição, expressa inclusive na obra de Tito Lívio, quedenunciava a inconstância e a incompetência do conjunto dos cidadãos paraexercer o poder,Maquiavel sustenta que tanto os príncipes quanto os cidadãosestãosujeitosatodotipodeexcesso,quandonãotêmsuacondutareguladapelasleis. Na verdade, os príncipes podem cometer erros ainda maiores do que oscidadãos. O governo republicano é assim mais estável e prudente do que osprincipados (MAQUIAVEL, 2007a).Além disso, se é uma raridade encontrarumsábioebompríncipe,muitomaisaindaéencontrardoispríncipessábiosquese sucedam no poder. Já nas repúblicas, em razão da escolha dos governantesentreoscidadãosmaisvirtuosos,épossívelnãoapenas tersucessivamentedoisgovernosvirtuosos,mas todaumasériedegovernos(MAQUIAVEL,2007a,I,

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20).Enfim, as repúblicas são consideradas superiores porque têm uma

longevidade maior do que os principados, já que estão mais capacitadas a seadaptar às circunstânciasdo tempo, em razãodavariedade edadiversidadedeseus cidadãos. Elas podem resistir melhor ao inevitável declínio de todas ascoisas, porque a habilidade de muitos é maior do que a de um homem só(MAQUIAVEL,2007a,III,9).

Além de defender a superioridade das repúblicas sobre os principados,Maquiaveldeclarasuapreferênciapelasrepúblicaspopulares.Odesejodopovodenãoserdominado lheparecemaispróximoda liberdade,porque revelaumaface importante de sua manifestação, que é a ausência da ambição de poder.Comonãodesejaseapropriardopoder,masapenasviverlivre,opovoécapazdesalvaguardarmelhoraliberdade,poisoseuinteressenãoseopõeàexistênciadeumgovernolivre.Porterumavontademaiordeviverlivreeumapropensãomenor de violá-la, o povo deve ser então o guardião da liberdade. Romanovamente é exaltada como exemplo a ser seguido pelas repúblicascontemporâneas, pois deu a guarda da liberdade ao povo (MAQUIAVEL,2007a,I,5).

Embora o desejo do povo seja apresentado como indeterminado, ele nãopodeserconsideradodesprovidodeconteúdopolítico.Paranãoserdominadoeviver em liberdade é necessário que o povo resista e tenha uma ação políticacontínua em oposição ao desejo dos grandes de dominar.A realização de seudesejo só é possível quando consegue instituições que o protejam contra odomínio dos grandes, garantindo a liberdade para si e consequentemente paratodacidade.

Aliberdadeésempreobjetodecríticasviolentas,segundoMaquiavel,edeescassadefesaporpartedaquelesqueporelasãobeneficiados.Issoexplicariaporque os legisladores são obrigados a atemorizar os homens para mantê-la.Construção frágil, submetida às mais diversas contrariedades, a liberdade nãocontanemmesmocomumaimagemunânime.Aocontrário,asuarepresentaçãoestá intimamente relacionada ao lugar que os homens ocupam em relação aopoder estabelecido: alguns desejam a liberdade porque querem participar dopoder;outrosporquedesejamapenasviveremsegurança;poucosporqueveemnelaumaformadepromoverobemdetodos(MAQUIAVEL,2007a,I,16).

Maquiavel introduzassimnovoselementosno ideário republicano.Emboratrate dosmesmos temas abordados pelos humanistas, ele o faz a partir de umanovaperspectivadanaturezadaaçãopolítica,desuascondiçõeseseus limites.

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Com isso, redefineo ideário republicanoeprojeta asbasesdoRepublicanismomoderno.

3.3.RetornoaoRepublicanismoORepublicanismoteveaindaoutrasimportantesexpressõesnamodernidade.

Apenasparacitardoisexemplos.NasegundametadedoséculoXVII,umgrupode autores ingleses – entre os quais se destacam John Milton, MarchamontNedham, James Harrignton,Algernon Sidney e Henry Neville – recorreu aoideáriorepublicanotantoparadefenderogovernoquesubstituiuamonarquia,em1649,depoisdaexecuçãodoreiCarlosI,quantoparapropor,comaRestauraçãoem1660,umregimemaisadequadoparagarantirasliberdadeseosdireitosdosingleses.No decorrer do séculoXVIII, vários autores franceses, com destaquepara Jean-Jacques Rousseau, reformularam o pensamento republicano numalinguagem contratualista, mais adequada à filosofia política moderna. Tanto oRepublicanismo inglês quanto o francês influenciaram de maneira decisiva osprocessos revolucionários do final do século XVIII, como a RevoluçãoAmericanaeaRevoluçãoFrancesa.

ÉverdadequenoséculoXIXeboapartedoséculoXXoRepublicanismoficouesquecido,renegadoaumsegundoplano.Masnasúltimasdécadasvoltouaocupar um espaço significativo no pensamento político contemporâneo. O seuretornoteve inúmerasrazõesemotivações:alternativaaodebatedominadopelaoposição entre liberalismo e socialismo ou entre liberalismo e comunitarismo;meio de superar as fraquezas teóricas atribuídas ao liberalismo; recurso paraenfrentar os fenômenos contemporâneos da despolitização, da corrupção e dafragilizaçãodolaçosocial,entretantasoutras.

É interessante observar que a recuperação do pensamento republicanocomeçoucomhistoriadoresingleses,comoJohnPocockeQuentinSkinner,queapresentaram um modo alternativo de abordar a história das ideias políticas(POCOCK, 1962; 1985). Ao invés de ordenar cronologicamente os sistemaspolíticos, eles propunham o estudo histórico da linguagem política e dasmudançasconceituaiscomoformadecompreendereorganizarhistoricamenteopensamento político numa lógica de paradigmas intelectuais. Para realizar essahistóriaintelectual,elesdefendiamqueerafundamentalsituarostextospolíticosnocontextoemqueforamproduzidos.Nãobastava,assim,lê-loseanalisá-losa

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partir de uma lógica interna dos argumentos. Era preciso conhecer as questõespolíticascentraisdasociedadeedotempoemqueelesforamescritos,identificaro vocabulário político e os conceitos disponíveis da época e perceber quais osproblemasquedesejavamtratar(POCOCK,1975;SKINNER,1998).

O trabalho desses historiadores contribuiu para o revigoramento doRepublicanismonãoapenasemtermosdeparadigmaexplicativonahistóriadasideiaspolíticascomotambémnosestudosjurídicosenaprópriafilosofiapolítica.No caso da filosofia política, autores como Philip Pettit, Jean-Fabien Sptiz eMaurizioViroli,apesardasdiferençasdeabordagemedeperspectiva,buscaramno Republicanismo elementos a partir dos quais seja possível formular umadoutrina política alternativa ao liberalismo.A premissa é de que o pensamentorepublicanopermitearetomadadetemáticasnegligenciadaspelatradiçãoliberal,como o engajamento cívico, o sentido de bem comum, a responsabilidadecoletiva,entretantasoutrasfundamentaisparasepensarapolíticacontemporânea(PETTIT,1999;SPITZ,1995;VIROLI,2002).

Assim, por meio de um complexo processo de revisão histórica, algunsautorescomeçaramapôremcausaopensamentoliberaleacabaramporafirmaranecessidade e a defesa de valores republicanos: a virtude cívica, a primazia dointeressepúblico,aconstruçãodobemcomum,oamoràpátria,oenvolvimentocomacoisapública, aparticipaçãopolítica,osdeverese responsabilidadesdoscidadãos, entre outros. Nesse sentido, eles recorreram às diversas matrizesrepublicanas para nelas encontrar referências conceituais possíveis de seremutilizadasnacontemporaneidade.Trata-sedeumimportantecaminhoaberto,masaindaasermaisbemexplorado.

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Créditosdasimagens–TheBridgemanArtLibrary/GettyImages–CesareMaccari–SantidiTito–Album/Akg-Images/Latinstock

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OsContratualistasHobbes,LockeeRousseau

MariaIsabeldeMagalhãesPapaterraLimongiBibliografia

De ummodo geral, o termoContratualismo designa toda teoria que pensaque a origem da sociedade e do poder político está num contrato, um acordotácito ou explícito entre aqueles que aceitam fazer parte dessa sociedade e sesubmeteraessepoder.Emboranãosetratedeumaposiçãoestritamentemoderna,nem restrita às filosofias de Hobbes, Locke e Rousseau, o Contratualismoadquiriu o estatuto de um movimento teórico ou corrente de pensamentoprecisamentecomessesautores.Quandoalguémcontemporaneamentesedeclaraum contratualistarefere-seoufilia-seaeles.Assim,quandoRawls(2000,p.12)declaraquesuateoriadajustiçaprolongaa“teoriadocontratosocial,talcomoseencontra em Locke, Rousseau e Kant”, logo em seguida puxa uma notaindicando que não estava se esquecendo de Hobbes, mas que o deixaradeliberadamentedelado.Eletemdefazerisso,jáque,comoosautorescitados,Hobbeséumeoprimeirodos contratualistas.

OfatodequeRawlsfaçaesserecortenointeriordoContratualismoindicaoquanto é problemático referir-se a ele, como fizemos, nos termos deuma tradição, movimento teórico ou corrente de pensamento. Diferentestradições – liberal, absolutista, democrática, jusnaturalista, juspositivista –perpassam oContratualismo. E, não obstante, há algo como oContratualismo,umpontoemcomumqueuneHobbes,LockeeRousseau.Seessesautoresnãopartilhamdosmesmosideaispolíticosedasmesmastradições,partilhamporcertode uma sintaxe comum, para fazer uso de uma expressão de Matteucci, no

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verbete Contratualismo do Dicionário de política editado por ele, Bobbio ePasquino. Segundo o autor, os contratualistas são assim chamados porque“aceitam a mesma sintaxe”, a saber, a “da necessidade de basear as relaçõessociais e políticas num instrumento de racionalização, o direito, ou de ver nopacto a condição formal da existência jurídica do Estado” (BOBBIO;MATTEUCCI; PASQUINO, 2010, p. 279).Observemosmais de perto o queestáemjogonessa sintaxe.

Atesedequeaorigemdasociedadepolíticaestánumcontratoimplicaqueasociedadepolíticaéumartifício,istoé,umaformadeassociaçãoaqueoshomensnãosãoconduzidospelomovimentonaturaldesuaspaixõesenaqualnãoestãodesdesempreinseridosdemaneiraespontâneaouirrefletida(comoafamília,porexemplo), mas uma comunidade que os homens resolvem instituirvoluntariamente, na medida em que têm razões e motivos para isso. Nessesentido, a distinção entre umestadode natureza e umestado civil é central noContratualismo.Elaindicaomomentoanterioreoposterioràinstituiçãodocorpopolíticoepermitequeseretiredeumadescriçãodoestadodenaturezaasrazõeseosmotivosqueexplicamessainstituição.

Alémdisso,atese contratualista implicaqueapolíticase fundasobreumarelação jurídica. Pois, o contrato, que dá início à associação política, é um atojurídico (trata-se de uma figura do direito privado romano) pelo qual as partescontratantesestabelecemdireitosedeveres recíprocos.ParaoContratualismo,asociedade política não apenas se funda sobre uma relação jurídica, como sedistinguedasoutrasformasdecomunidadeprecisamenteporisso.

Nabuscadofundojurídicosobreoqualseassentamasrelaçõespolíticas,oContratualismoprolonga,aseumodo,atradiçãododireitonatural,queremontaaAristóteles e aos estoicos, e que entre os modernos é encabeçada por autorescomoGrotiusePufendorf,queinfluenciaramdiretamenteos contratualistasaquiem questão.A noção de um direito ( jus) natural aponta para a existência decertospadrõesoucritériosdelegitimaçãodasrelaçõespolíticasquepreexistemaessas mesmas relações ou que não dependem diretamente delas para se fazervaler.Anoçãodecontratoapontatambémparaisso,masdeummodoparticular.

Por meio dela se pensa esse subsolo jurídico da política nos termosespecíficosdeumcontrato:éarelaçãocontratual,nãoanatureza,queofereceospadrõesecritériosdelegitimaçãodasrelaçõespolíticas,instituídasporela.Serãolegítimas as instituiçõesque estiveremde acordocomos seus termos–daí porque seja fundamental conhecê-los bem, como procuraram fazeros contratualistas, cadauma seumodo.Odecisivonomodo contratualista de

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pensarofundojurídicodapolíticaéaideiadequeaestruturajurídicadocorpopolítico lhe é coextensiva, isto é, que o corpo político reside precisamente noconjuntodas relaçõesdedireito e deveres estabelecidas pelo contrato.É issooque está em jogo nomoderno conceito de Estado, que substitui as expressõesclássicas, como polis ou civitas (cidade), para designar a forma de associaçãoespecificamente política.OEstado se define comoumconjunto de relações depoder pensadas e legitimadas em termos de direitos e deveres. Os autorescontratualistascontribuíramdiretamenteparaaformaçãodesseconceito.

O ponto de partida de todos eles é a ideia de que o poder político ou asrelações de poder de natureza política podem e devem ser legitimadas pelorecursoànoçãodecontrato.Opressupostocomuméodequeopoderpolítico,paraquesejalegítimo,possaserpensadocomosetivessesidoinstituídoporumatocontratual,mesmoqueefetivamentetalveznãotenhasido.Opressupostoéodequeopoderpolíticoépornaturezalegitimável,umpressupostoqueprolongaeespecifica a tradição jusnaturalista clássica, sem dúvida predominante,mas quenãoéaúnicaapartirdaqualsepensouapolítica.Assimcomoentreosmodernoshouvequemprocurassedesmontaranoçãodedireitonatural1ouquecriticasseorecurso à ideia de contrato,2 há, entre as filosofias contemporâneas, alémdaquelas que reivindicam sua filiação ao Contratualismo, outras que apontampara os limites dessa noção quando se trata de pensar as relações de podercontemporâneas.3 O que se põe em questão, nessas críticas, é justamente opressuposto,quealicerçaoContratualismo,dequeopoderpolíticopossaedevaser capturado por um esquema jurídico e ser, nesse sentido, perfeitamentelegitimável.

Aoassumirisso,nãosetrataparaos contratualistasdedizerquetodaformade poder é legítima ou passível de legitimação, mas que o poder só épropriamente político, só é o poder da cidade, se puder ser legitimado pelocontrato,sepuderserpensado comose tivessesidoinstituídoporele.Pois,semcontrato,nãohácidade, e as relaçõesdepoderque sedão foradesseesquemanão são propriamente políticas. O poder político é, assim, senão aquele queefetivamentefoifundadoporcontrato,oquesepodepensartersido.Aressalvaéfundamental. Ela indica que as relações políticas não estão sendo pensadaspelos contratualistas nos termos das relações efetivas de poder que os homenstêmunscomosoutros,masnostermosdecomodevemserpensadasparaqueseadequemacertoconceitodepolítica.

IssoéexplícitoemRousseau,quelançamãodaideiadecontratoeconceitua

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apolíticaapartirdela,aomesmotempoquefazusodetodooseutalentoliterárioparamostrar que as instituições políticas do seu tempo e as relações de poderhistoricamenteconstituídasnãoseajustamaesseconceito.Aopensarapolíticaapartirdocontrato,Rousseauapensadopontodevistadecomoeladeveriaser,nãodecomoelaé.Seupontodevistaénormativo,nãodescritivo.

RetratodeJean-JacquesRousseau,porMauriceQuentindeLaTour,1753.MuseuAntoineLécuyer,Saint-Quentin.

Opontodevistanormativoécomumatodosos contratualistas,aindaqueasua adoção implique, entre eles, diferentes graus de idealização da política.Enquanto Hobbes pensa poder legitimar com sua teoria do contrato qualquerpoderdefatoinstituídoeLockepensaquealgunssãolegitimáveiseoutrosnão,Rousseau parece se comprometer com a tese de que nenhum poder de fatocorrespondeàideiadecomoopoderpolíticodeveser.EmRousseau,ocontratoopera como uma ideia a partir da qual medimos o grau de legitimidade dasinstituiçõeshistóricas,emcontraposiçãoaomodocomoelasdefatosão.Écomouma ideia reguladora que Kant, a partir de Rousseau, pensará o contrato,insistindonodesnívelentreosplanosnormativoedescritivo.

Assim,umaspectofundamentaldasteorias contratualistaséqueelasoperamnoníveldeumaficção,deum comose.Esseéumtraçodistintivodomodocomoo Contratualismo pensou a questão da legitimação da política, a sua questãofundamental. Ao recorrer à noção de contrato, nenhum dos contratualistas

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pretendeu descrever como de fato se originaram as instituições políticas, mascomo se pode pensar que elas tenham se originado para que possam serconsideradaslegítimasouparaquepossamselegitimar.Oesquemadocontratopode ou não se aplicar às instituições efetivas, legitimando-as ou não. Seja lácomo for, o importante équeo esquemade legitimaçãonão é retiradodeumadescriçãodasinstituiçõesconcretasehistóricas,masdaideiadecontratotomadacomoum ensfictionis, umente fictício.Dizerqueo contrato éum ens fictionisnãoimplicadizerqueeleéirreal,masquegozadeumarealidadeprópria,queéarealidadejurídicaenquantopertencenteaoplanodaideiaedopensamento.

Esse modo de pensar contrasta com um outro, que consiste em retirar dahistóriaosprincípiosnormativosdapolítica, tal como fazCícero,porexemplo.Comoos contratualistas,Cícero considera que a vidapolítica funda-se sobreoconsentimento comum acerca do justo. Segundo ele, “a república é a coisa dopovo”eopovo“areuniãodeumamultidãodeindivíduosassociadosemvirtudede um acordo sobre o direito ( juris consensu) e de uma comunidade deinteresses” (CÍCERO, 2002, I, xxv). A fundação do corpo político é, dessemodo,pensadanostermosdeumacordoemtornodoqueéjusto.Esseacordo,porém, não tem a forma e a estrutura jurídica de um contrato. Trata-se de umacordoouconsentimentotácitoemtornodecertosvaloreseprincípioscomunsdeconvivência.Além disso, trata-se de um acordo efetivo e não de um como se.Trata-se do acordo que certos homens fizeram em tais e tais circunstânciashistóricas,maisprecisamente,oacordoqueosromanosfizeramnomomentodafundação de Roma e os acordos que a este se somaram ao longo da históriaromana. Pois é Roma, enquanto uma Cidade concreta e histórica, o ponto departida de Cícero para pensar a política e suas formas de legitimação. O jurisconsensusdequeelenosfalanãoé,portanto,um ensfictionisenãotemaformajurídicadeumcontrato.

Também para Maquiavel a história efetiva tem uma importância decisiva.NãosódeRoma,masdetodoexemplohistóricoeleprocuraretiraralgumalição,sendoahistóriaimportanteparaelenãoapenasporqueforneceexemploseregrasparaaaçãopolítica,masporqueperfazasubstânciamesmadapolítica.Apolíticaé,paraMaquiavel,umaatividadeconcreta,inseridaemcircunstânciasparticularesecontingentes,entreasquaisseprocuraordenar,commaioroumenorsucesso,uma vida comum. Para Maquiavel, como para Cícero, a política tem umanaturezahistórica.Poisbem,nãoéassimqueaveemos contratualistas.

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Folhaderostodaediçãode1762de OcontratosocialouPrincípiosdeDireitoPolítico,deJean-JacquesRousseau.

Hobbes,mesmoqueprofundamenteinteressadonahistória,tendotraduzidoparaoinglêsa HistóriadaguerradoPeloponeso,deTucídides,etendoescritoumahistóriadaguerracivilinglesano Behemoth,nãopensaquesepossaretirardelaoconhecimentodapolítica,muitomenosqueapolíticatenhaumanaturezahistórica.Elepretendefazerdapolíticaumaciênciaracionaledocorpopolíticoumconstrutodarazão,oquequerdizerquetantooconhecimentoquantoaaçãopolíticadependemdapercepçãodecertasrelaçõesnecessáriaseuniversaisentreas ideias, pois é nissooque consiste a razão, segundoomodelomatemático apartirdoqualfoipensadanosquadrosdoracionalismocartesiano,comoqualafilosofia de Hobbes manteve estreitas relações. A história não oferece senãorelações contingentes e particulares. Dela se podem retirar apenas conjecturas,nãoumaciência,quevemaserumdiscursoemqueseencadeiamproposiçõessegundorelaçõesnecessárias.

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A matemática é uma ciência exemplar. Nela, parte-se de definições bemconstruídasdasquaisseretiramconsequênciasnecessárias.Assim,porexemplo,umafiguracomootriânguloédefinidacomoumafiguradetrêsângulosedessadefinição se retira a consequência de que a soma de seus ângulos é 180º(HOBBES, 1974). A conclusão vale necessária e universalmente para todotriângulo porque está analiticamente contida na definição.Domesmomodo sepodeprocedernapolítica,deacordocomHobbes.Partindo-sedocontrato,queéuma forma de definição – a definição da vontade dos contratantes – pode-seretirar dele, como consequência, os direitos e deveres das partes contratantes,analiticamenteembutidosnasdefiniçõesdasvontadesquecompõemocontrato.E,assimcomoseriaumacontradiçãoafirmarqueotriângulotemtrêsângulosequeasomadeseusângulosequivalea70º,éumabsurdodeclararavontadedeumacertamaneiraeagirdemodocontrárioàsaçõesqueestãoimbricadasnessadefinição. Hobbes considera que a injustiça, que consiste para ele no nãocumprimento dos contratos, é uma forma de contradição lógica. Segundo ele,“assim como se considera absurdo contradizer aquilo que inicialmente sesustentou, assim também no mundo se chama injustiça e injúria desfazervoluntariamenteaquiloqueinicialmentesetinhafeito”(HOBBES,1974,p.83).

É enquanto um cálculo racional dessa natureza, um cálculo pelo qual seretiramconsequênciasnecessáriasdedefiniçõespreviamenteassumidas,comosefaz na matemática, que Hobbes pensa a política.A política enquanto ciência,cujos princípios ele se pretende o primeiro a expor, consiste no cálculo dosdeveresedireitosqueseseguemdoatocontratual instituidordocorpopolítico.Trata-seassimdeumaciênciaque,comoasmatemáticas,seconstróinumespaçológico,nãohistórico.Dois edois sãoquatroontem,hojee sempre.Domesmomodo, certos deveres se seguem dos termos de um contrato: sub specieaeternitatis.

Pode-seassimconheceraestrutura jurídico-racionaldasociedadepolíticaapartirdaideiadecomopodetersidoocontratodesuainstituição,deummodotalqueessa estruturapermaneceválida e igual a simesma, independentementedoque os homens tenham feito ou deixado de fazer e de como compreendam osprincípioseasrazõesqueosengajamnavidapolítica.Sejamquaisforemdefatoasmotivações dos homens, seja lá como tenham se constituído as relações depoder entre eles, o contrato permite pensar, independentemente de qualquerexperiência empírica e qualquer saber histórico, quais deveriam ter sido essasmotivaçõesecomodevemseressasrelações.Eisanaturezadocontratoenquantoumarealidadedepensamentoeumentederazão.

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Mas isso que se aplica a Hobbes aplica-se de maneira geral aoContratualismo?Lockeparececonsiderarocontratodeummododiverso,aosededicar a responder longamente, no Segundo tratado sobre o governo, duasobjeções de ordem histórica, dirigidas por Robert Filmer4 às suasteses contratualistas.Filmerobjetaque1.nãoseencontramexemplosdehomensemestadodenatureza;eque2.todososhomensjánascemsobavigênciadeumdeterminadogoverno.Emsuaresposta,Lockeparececonsiderarocontratocomoumarealidadehistórica,nãocomoumaficçãojurídica,aomododeHobbes.

No entanto, as considerações de Locke sobre a história têm um carátermarginal no argumento contratualista do Segundo tratado. Provavelmente osparágrafos em que elas são desenvolvidas (os parágrafos 100 a 122, capítuloVIII) foram escritos e acrescentados posteriormente à composição original daobra,comoapontaP.Laslett,seueditor.Elasdesempenhamumpapelpolêmico:trata-se de responder a um autor, Filmer, que, tomando o contrato como umarealidade histórica, pensa poder retirar da história argumentos que derrubem atese contratualista.Mas os argumentos históricos que Locke contrapõe aos deFilmer não fazem parte do núcleo do seu próprio argumento a favor doContratualismo.QueoargumentodeLockenãosejafundamentalmentehistórico,mostra-oo conteúdomesmodas suas consideraçõeshistóricas, nodiálogo comFilmer.

Contraaobjeçãodequenãoseencontramexemplosdehomensdoestadodenatureza,LockeserefereaRomaeVenezaenquantodoisexemploshistóricosda“uniãodevárioshomenslivreseindependentesunsdosoutros,entreosquaisnãohavia nenhuma superioridadeou sujeiçãonaturais” (LOCKE,2005, p. 474).Éassim que a literatura republicana que remonta aCícero trata dos exemplos deRoma e Veneza, como duas repúblicas que se fundaram por meio de umconsentimento de seus cidadãos em torno de certas instituições fundamentais,consentimento este que se supunha ter ocorrido numdeterminadomomento dahistória. Sendo assim, não há como negar que, antes da fundação dessasrepúblicas, o que se tinha (embora não se tenham registros desse momentohistórico) eramhomens vivendo num estado de natureza.Acrescente-se a isso,diz Locke, os relatos dos viajantes acerca dos habitantes da América, onde,parece, vive-se semnenhumgoverno.Locke, porém, apresenta esses exemploscomumaressalva:“emboraumargumentobaseadonoquefoi,emvezdenaquiloquedeveriapordireitoser,nãotenhamuitaforça”(LOCKE,2005,p.475).

Aressalvaé fundamental.Eladarácauçãoparaaconcessãoqueele faráa

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seguir a seu adversário, ao admitir que, em boa parte das vezes, os governostiveram início, não do consentimento expresso, como nos casos das repúblicassupracitadas,masnaautoridadenaturaldopai(LOCKE,2005).Essatese–atesepatriarcalista–é justamenteaqueladefendidaporFilmerem OPatriarca e queLocke pretende rebater nos Dois tratados sobre o governo. O que Lockeconcede a Filmer é que os governos podem até efetivamente ter nascido dessamaneira na maior parte das vezes, mas, justamente, essa concessão de ordemhistórica não invalida a tese de que o que legitima e funda a autoridade dosprimeiros governantes (que, segundo a concessão, provavelmente eram ospatriarcas) é o consentimento dos homens que o obedecem, mesmo que estesjamais tenham parado para pensar nas razões pelas quais acataram essaautoridade.Oimportanteéque,seemalgummomentovieremaseperguntarporessas razões, como fizeramos ingleses em funçãoda crise de legitimidadequeabalouamonarquiainglesanasegundametadedoséculoXVII,encontrariamnoconsentimentoumaresposta,demodoqueumgovernohistoricamenteconstituídocomoodeJaimeII,que,navisãodeLocke,pretendeusefurtaraoconsentimentoe fundar sua autoridade alhures, deve ser destituído, como de fato ocorreu naRevolução Gloriosa, o contexto ideológico em que se inscrevem os Doistratados.

ComoHobbes,Lockefundamentaodireitopolítico,nãonahistória,masnarazão, entendida como um conjunto de relações necessárias entre as ideias. Énumarelaçãodessaordemqueconsisteparaeleodireitonatural,namedidaemque pode ser conhecido pela razão. Segundo ele, as ideias de pessoa, trabalhoe propriedade estão relacionadas entre si demodo a evidenciar que cadaumépor natureza proprietário de certos bens. Pois cada homem tem direito sobre aprópriapessoa,nosentidodequesuapessoapertencesóaeleeamaisninguém;logo, cada um tem direito também ao produto do trabalho realizado por suapessoa,umavezque,pelotrabalho,mistura-sealgodeseuàscoisasdanatureza,que são assim transformadas em sua propriedade (LOCKE, 2005).O direito àpropriedadeénessamedidaestabelecidopelasimplesconsideraçãodasrelaçõesinternasexistentesentreasideiasde pessoa, trabalhoe propriedade,relaçõestãonecessáriasquanto2e2são4.TambémparaLockeasrelaçõesmatemáticassãomodeloderacionalidade.E,namedidaemqueobedeceaessemodelo,odireitonaturalpodeserperfeitamenteestabelecidoeconhecidopelarazão.

É para assegurar esse direito que, segundo Locke, os homens instituem ogovernocivil.Pois,senoiníciodahistória,semquefosseprecisoamediaçãodenenhumgoverno,apropriedadedecadaumerarespeitadaeodireitonaturalse

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mostrava suficiente para regular a vida em comumdos homens, como tempo,conforme as relações de propriedade foram se tornando mais complexas econtrovérsias surgiram a seu respeito, foi preciso criar um governo que asregulasse, garantindoque se dessememconformidade comodireito natural.ÉassimqueLocke,comoHobbes,pensaocontrato:comoum ensfictionis–tudose passa como se os homens tivessem instituído o governo visando garantir odireitoàpropriedade.Mas,àdiferençadeHobbes,Lockeestabeleceumarelaçãoentre essa ficção e a história da humanidade, pois é, segundo ele, num certomomentodahistória,nomomentoemqueasrelaçõesdepropriedadeatingiramumdeterminadograudecomplexidade,queoshomensseviramnanecessidadedepensarsuasrelaçõesrecíprocasapartirdoconhecimentodasrelaçõesracionaisqueperfazemodireitonaturalepolítico.

OmesmoocorreemRousseau,paraquemigualmente importa relacionaroesquemaracionaldocontratoaosfatosdahistóriahumana,procurandoidentificarna história as razões pelas quais os homens devem pensar e normatizar suasrelações políticas segundo a ideia do contrato. Pode-se dizer que paraLocke eRousseau o contrato, guardando seu estatuto de ente fictício, está numa certarelação com a história.A diferença está em que, para Locke, a referência aocontratopermiteaoshomensreencontrararacionalidadeperdidadesuasrelaçõesprimitivas, enquanto para Rousseau, a referência ao contrato é o que permiteinstaurararacionalidadeeamoralidadequeasrelaçõeshumanasnuncativeramequesópodemter,comoveremos,pormeiodocontrato.

No Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre oshomens,Rousseaucontaahistóriadahumanidadenos termosdeumasucessãodeacasos,deeventosquenãopodemsercompreendidoscomosetivessemsidoconduzidospelavontadeepelarazãohumana,namedidaemquesãocontráriosao que se pode pensar ser essa vontade. Que homem pôde querer se pôr sobgrilhões e perder sua liberdade, que é o queRousseau entendequeos homensfizeram ao se submeterem aos governos efetivamente existentes? “Os homensnasceramlivreseportodaparteseveemsobgrilhões”(ROUSSEAU,2006,I,1).Sendoassim,entendendo-seahistóriadaformaçãodosgovernosnostermosdahistória da dominação e da desigualdade entre os homens, a história não é enunca foi racional. Racional é a sociedade que os homens podem formar emacordocomassuasvontades,queéprecisamenteoquesepretendedescreverporreferênciaànoçãodecontrato.

A perspectiva adotada por Rousseau o leva a estabelecer quase que umaincompatibilidadeentreahistóriaefetivaeaideiadocontrato.Poisahistórianão

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caminhaparaseajustaraoesquemajurídicodocontrato.Fazeresseajusteseriacomo trocar os trilhos sobre os quais corre o carro da história com ele emandamento,umproblemaquenãosecolocaparaHobbeseLocke,paraosquaisaestruturajurídicaea-históricadocontratoseaplica,semresistências,àsrelaçõeshistóricaseefetivas.ParaRousseau,porém,essaaplicaçãorestaproblemática,umproblema que será depois explorado porKant, ao fazer do contrato uma ideiareguladora, que os homens devem manter no horizonte, como um fim a quebuscameparaoqualdirigemassuasações,aindaque talvez jamaisvenhamaalcançá-lo.Oqueimportadopontodevistakantianonãoéresolvercomoafinalsepodeconformarahistória aodireitodeduzidoda ideiadocontrato,masqueessaideiaofereçaprincípiosnormativosparaaaçãopolítica.

Eis então o que está em jogo na sintaxe contratualista: o contrato é umesquema jurídico que, aplicado às relações de poder entre os homens, permitelegitimá-laseracionalizá-las.Noentanto,quandosefalaemContratualismo,nãosepensaapenasnessasintaxecomumàsfilosofiasdeHobbes,LockeeRousseau.Pensa-se tambémnodebate vivo e pungente que se estabeleceu entre elas, umdebatecuriosojáqueoschamados contratualistasnãosereconhecemenquantogrupo,nãosefiliamexplicitamenteunsaooutros,mas,aocontrário,fazemusodeumamesmasintaxeparasecriticaremunsaosoutros.

Locke não cita nominalmente Hobbes, que não é o seu interlocutorprivilegiado, e sim Filmer, nos DoisTratados. Mas, evidentemente, a obra deHobbes está no subsolo dessa obra, não apenas por causa da sintaxecontratualista, mas porque, assim como às teses realistas de Filmer, com elatambém se rebate as de Hobbes. Na discussão constitucional que dividiu aInglaterraemdoispartidos,opartidodoReieodoParlamento,HobbeseFilmerestão do lado doRei (ainda que por caminhosmuito diversos), Locke está dolado doParlamento.Locke eHobbes são, assim, inimigos políticos.Rousseau,porsuavez,criticaexplicitamenteaconcepçãohobbesianadoestadodenatureza(ROUSSEAU,2005)e se refereaopacto tal comoconcebidoporHobbes–opacto pelo qual se institui umgoverno tendo emvista a segurança no gozo dapropriedade – como um passo na história da desigualdade, pelo qual os ricosfizeram de uma usurpação (a propriedade) um direito, e deste direito uminstrumentode sujeiçãodospobres (ROUSSEAU,2005).Com isso,Rousseaunão apenas critica Hobbes, como põe em cheque a tese lockeana de que apropriedade é um direito natural. O quanto não teria ganho a humanidade,raciocina ele, seoshomensnão tivessemaceitoo atopeloqual alguém“tendocercadoumterreno,atreveu-seadizer:issoémeu”(ROUSSEAU,2005,p.203).

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Pode-se dizer que à mesma sintaxe correspondem diferentes orientaçõespolíticas entre os expoentes do Contratualismo (BOBBIO; MATTEUCCI;PASQUINO, 2010). Porém, mais importante do que reconhecer que doContratualismo se fizeram diferentes usos políticos é perceber que o quechamamos de Contratualismo se consolidou na forma de um debate real econcreto,queoContratualismonãoé,portanto,umaposiçãoabstrata,estanque,àqual podemos aderir de um ponto vista filosófico e politicamente neutros,mascertofundocomumadeterminadasteoriaspolíticas,quetravaramumricodebateentresiesecontrapuseramumasàsoutras.

Ouseja,cabeolharparaoContratualismomenoscomoumrótuloaderenteàsfilosofiasquepartilhamdaideiadocontratoemaiscomoumtermoquedesignacertadiscussão levadaacabopordeterminadospensadoresdosséculosXVIIeXVIIIemtornodoconteúdojurídico-racionaldapolítica.Neste,comoemtantosoutrosdebatesdahistóriadafilosofia,osentidodostermosnãoéunívoco.Nãoapenas o termo contrato altera significativamente de função e sentido, comotambém outras noções fundamentais a ele correlatas,como vontade, liberdade, direito, bem como a própria política. Daí por queconvenha por vezes colocar os “ismos” de lado para observar como o seuconteúdoseconstróiapartirdasfilosofiasqueoanimam.Assim,tendofaladodasintaxecomumaos contratualistas,tratemosagora,namedidadopossível,dessedebatequeosunenumfeixederemissõesrecíprocasedistorçõesdesentido.

***UmatesefundamentaldoContratualismodeHobbeséadequeocontratosó

écapazdefundarocorpopolíticoenquantoumsistemadedireitosedeveres,seforsustentadoporumpodersoberano.Essepoderdácauçãoaocontrato,quesóéválidonacondiçãodehaveressepoder.Hobbesretiraessaconclusãodeumateoriageraldocontrato,expostanocap.XIVdo Leviatã.

SegundoadefiniçãodeHobbes,ocontratoéumatovoluntáriopeloqualseefetuaumatransferênciamútuadedireito(HOBBES,1974).Dizerqueocontratoéumatovoluntáriosignificadizerqueseesperadelealgumbem,jáqueumatovoluntário sedefine,precisamente,por serumatopeloqual sevisaaumbem.Issosignificaqueumcontratodoqualnãosepodeesperarnenhumbemnãoéumcontrato,emesmoqueeletenhasidocelebrado,aspalavrasqueocelebramsãoocasenãocriamobrigação:ocontratoénulo.Dessemodo,

“[...]ninguémpoderenunciaraodireitoderesistiraquemoataquepelaforçaparatirar-lheavida,dado

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queéimpossíveladmitirquepormeiodissovisealgumbenefíciopróprio”(HOBBES,1974,p.84).

Pela mesma razão, “quando se faz um pacto em que ninguém cumpreimediatamentesuaparteeunsconfiamnosoutros(...),qualquersuspeitarazoáveltornanuloessepacto” (HOBBES,1974,p.86).Arazãoestáemqueninguémpode esperar algum benefício em celebrar um contrato sem garantia dereciprocidade.Donde nenhum contrato é válido sem a garantia de que o outrocumpriráasuaparte.

Hobbesacrescentaaessastesesretiradasdeumateoriadocontratoatesedeque, no estado de natureza, antes da instituição de um governo comum, oshomenstêmboasrazõesparadesconfiaremunsdosoutros.Afunçãodogoverno,ou,maisprecisamente,dopoderdoEstadoégarantirqueaspartescumpramoscontratos, coagindo “aqueles que de outra maneira violariam a sua fé”(HOBBES,1974,p.86).Dessamaneira,opoderdoEstadoseapresentacomocondiçãodavalidadedoscontratos.Servindodefiadoraoscontratos,eleconferevalidade a esses atos que, de outro modo, não poderiam ser pensados comovoluntários, não instituindo obrigação e não passando de um amontoado depalavras,proferidasemvão.Umcontratonessascondiçõesseriacomoumamádefinição da vontade, da qual não se pode retirar analiticamente nenhumaobrigaçãocomoconsequência.

Assim,oscontratossóinstituemobrigaçõesnointeriordoEstado,emvirtudedoseupoderdecoação.Hobbesencontraumabela fórmulaparaexprimiressaideia– ospactos,semaespada,nãopassamdeconversafiada5–eretiradaíajustificativaparaocontratopolítico:eleéocontratopormeiodoqualseinstituiopoder que dá caução aos contratos celebrados, validando-os e possibilitando acriaçãodevínculosjurídicoseobrigaçõesapartirdasquaisoshomenspassamaregularasuaconduta.Assim,seoshomenstêminteresseemfazercontratos–eHobbes argumenta que os homens têm esse interesse, pois fazer contratos é acondiçãodapaz,queatodosinteressa–então,têminteresseemcriaressepoder.

Esse poder é criado pelo contrato político, o contrato dos contratos, ocontratoqueinstituiacondiçãodevalidadedetodososcontratosedesimesmo,formuladoporHobbesnosseguintestermos:

“[...]écomosecadahomemdissesseacadahomem:cedoetransfiromeudireitodegovernar-meamimmesmoaessehomemouaestaassembleiadehomens,comacondiçãodetransferiresaeleteudireito,autorizandodemaneirasemelhantetodasassuasações”(HOBBES,1974,p.109).

Há muitos elementos nessa formulação que merecem comentário.Ressaltemos dois. Primeiro, a ideia de que o contrato se dá nos termos de um

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contratodeautorização(ideiaquenãoestápresentenasobraspolíticasdeHobbesanteriores ao Leviatã).Autorizar ou conferir autoridade é conferir o direito depraticar determinadas ações (HOBBES, 1974). Hobbes entende que por meiodesse ato de autorização os cidadãos de um Estado reconhecem as ações daautoridadeassimconstituídacomosefossemsuas.Nessesentido,essaautoridadeosrepresenta.Épormeiodaunidadedorepresentante,enãodosrepresentados,quesãomuitosediversos,queocorpopolíticoadquireunidadeeidentidade.Ainstituição de uma instância representante equivale, portanto, à instituição docorpopolítico.

Folhaderostodaediçãode1651de OLeviatã,deThomasHobbes.

Nocasodaautoridadepolítica,confere-seaela–esseéosegundopontoquequeremosressaltar–odireitodepraticar“ todasassuasações”.Trata-seassimdeuma autoridade absoluta, o que significa que não se pode negar ao Estado ouàquelesquedetêmasuapessoaodireitodepraticarsejaláqueaçãoentenderporbem praticar.Além de uma autoridade absoluta, e por isso mesmo, o Estadodetémumpodersoberano,ouseja,umpoderqueestáacimadetodososoutros,namedidaemquepodecontarcom“aforçaeorecursode todos”(HOBBES,

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1974,p.110).Hobbespõeanoçãodecontratoaserviçodeumajustificaçãodasoberania

doEstado,fazendoderivardostermosdocontratoacimamencionadososdireitosabsolutosdasoberania.Quandoamultidãoreunidapactuademodoacederaumhomem ou assembleia de homens o direito de representá-la, ou, o que dá nomesmo, quando autoriza todos os atos desse homem ou assembleia como sefossemseus,elaestá,porestemesmoato,reconhecendoqueestepodernãopode:1. ser transferido para outrem sem seu consentimento; 2. ser confiscado; 3. serprotestado pela minoria uma vez tendo sido declarado pela maioria; 4. seracusadode injúria; 5. serpunido.Noconjunto, taisdireitos conferemaopoderpolítico um caráter absoluto, posto que juridicamente incontestável, no queconcerneaodireitodeexercertodososseusatos.OEstadoéessepodersoberanoeabsolutonamedidaemqueinstituídoporederivadodocontrato.

Dessemodo,opoderdoEstado,aomesmotempoqueécriadojuridicamentepor contrato, é condiçãode todocontrato edopróprio contratoqueo cria.Ouseja, o campo jurídico em que consiste o Estado, o conjunto de deveres eobrigaçõescriadospelopactopolíticopeloqualamultidãoseunificanumcorpopolítico,ésustentadopoliticamentepelopoderdoEstado.ForadoEstadonãoháobrigaçõesemsentidopróprio,poisestassãoconsequênciasdecontratosenãohácontratos ondenãohouverEstado.Assim, pode-sedizer queodireito (tomadoaquiemsentidoamplo,nãoapenascomoumsistemadenormaspositivas,mascomoosparâmetros, seja láqual for suanatureza, pelosquais se faz apartilhaentreolegítimoeoilegítimo)éfundadopoliticamente.

Locke,porsuavez,empregaoargumentocontratualistaparadefinirdeumamaneira radicalmentediferentea relaçãoentreopoderpolíticoeodireito.Poishá, para ele, umpadrão natural de legitimidade, anterior à instituição do poderpolíticoeatodocontrato,queéaleinatural.Hobbestambémfalaemleinatural,mascomoumconjuntodepreceitosdarazão–dentreosquaisosprincipaissãoprocurarapaz, fazerecumprircontratos–quenãoobrigampropriamente,masaconselhamaadotarcertaconduta.ParaLocke,contudo,aleinatural,nãosendoapenasumpreceitodarazão,masummandamentodeDeus,obrigaemsentidoestrito. Da lei natural se derivam as obrigações de constituir propriedade pelotrabalhoerespeitaraspropriedadesassimconstituídas.

ParaLocke,assimcomoparaHobbes,certoconteúdosóconstituiobrigação,seaoseunãocumprimentoestiverassociadaumapunição.DaíporqueHobbesdigaqueos taispreceitosdarazãoqueeledenomina leinaturalnãoconstituempropriamente obrigação, salvo se forem considerados a palavra de Deus

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(HOBBES, 1974), posto queDeus temdireito demando sobre os homens, namedidaemquetemopoderdepunirosquenãolheobedecem.MasHobbesnãoparecequerer se comprometer comessa tese, deixandoemaberto aquestãodesaber se os preceitos da razão são ou não mandamentos de Deus. Locke, aocontrário, se esforça por mostrar que as leis de natureza que determinam aconstituição da propriedade é ummandamento deDeus, o que para ele é umaforma de mostrar que elas constituem obrigação e que há, portanto,contrariamente aoquedizHobbes,obrigaçõesnaturais epré-contratuais. Isso éimportante porque, como veremos, nesse caso, a lei natural pode servir comoprincípiodelimitaçãodopoderpolítico,oqueelanãoéparaHobbes.

O poder de punição que sustenta as obrigações naturais não é paraLockeapenasopoderdeDeus,mas tambémopoderde todoequalquerhomem,quedetém, segundo ele, o poder executivo da lei de natureza, ali onde nenhumgovernofoiinstituído.“Cadaumtemodireitodepunirostransgressoresda[leidenatureza]emtalgrauqueimpeçasuaviolação”(LOCKE,2005,p.385).Temdeserassim;docontrário,raciocinaLocke,aleidenaturezaseriavã.Aideiaéquetodaleiimplicaobrigaçãoetodaobrigaçãoimplicaopoderdefazê-lavaler.Deusconsistenessepodernoqueserefereàleinatural,masestenãoéumpodercomoqualsepossacontarnessemundo.Assim,Lockediráquealeidenaturezaobrigaantesmesmodainstituiçãodopoderpolítico,porquetodohomemtempornaturezaopoderdesuaexecução,ouseja,opoderdepunirseustransgressores.

Seria certamente incorreto dizer que, ao conferir a cada homem o poderexecutivodaleidenatureza,LockeestivessepensandoemHobbesequevisassea responder a tese hobbesiana de que não há em sentido próprio obrigaçõesnaturais.MasofatoéqueesteéumpassoimportantenaargumentaçãodeLockeparaqueelepossadizer,contrariamenteaHobbes,queháobrigaçõesnaturaisemsentido próprio. A lei natural obriga no estado de natureza porque o seudesrespeito não resta impune – e não apenas porque Deus punirá seustransgressoresnomomentodojuízofinal,masporqueoshomens,emcujasmãosse depositam a responsabilidade de sua execução, também punirão seustransgressores.A lei denaturezanãodepende, portanto, dopoder políticoparaobrigareregularasrelaçõesentreoshomensnestemundo.

Assim,há,paraLocke,antesmesmodaconstituiçãodocorpopolítico,umconjuntodedevereseobrigaçõesquevinculamoshomensunsaosoutros,nãoainda numa sociedade política, mas no que ele denomina uma “comunidadenatural”.Oestadodenaturezanãoédessemodoumestadodedispersão,masumestado em que os homens estão naturalmente ligados uns aos outros pelos

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vínculos racionais dodireito natural.Todohomempode conhecer, pelousodarazão, o dever de constituir e respeitar a propriedade. Esse reconhecimentovinculaoshomensunsaosoutrosnumasériederelaçõesdepropriedade,relaçõesestas que não apenas são relações jurídicas (relações de direito e dever), comoeconômicas, relações de trabalho e de produção de bens. Esses vínculoseconômicosejurídicos(e,todavia,nãopolíticos),sãoosvínculosdoshomensnacomunidade natural a que pertencem enquanto seres de razão, capazes deorganizaravidasegundorelaçõesdepropriedade.

RetratodeJohnLocke,porSirGodfreyKneller,1697.StateHermitageMuseum,SãoPetersburgo.

O contrato político não cria, portanto, para Locke, como paraHobbes, oslaços de dever e obrigação. Sua função é outra: a de evitar que esses laços,existentesnoâmbitodanatureza,deixemdeseraquelespelosquaisoshomenssepautamemsuasrelaçõesrecíprocas,oqueocorrequandooestadodenaturezasedegeneranumestadodeguerra,quandoasrelaçõesentreoshomensdeixamdeserrelaçõesdedireitoedever,pautadaspelaleinatural,parasetornaremrelaçõesde puro poder.Aomencionar o estado de guerra e ao dizer que evitá-lo “é agranderazãopelaqualoshomensseunememsociedadeeabandonamoestadode natureza” (LOCKE, 2005, p. 400), o autor está evidentemente em diálogocomHobbes.

Hobbes entende que o estado de guerra é o estado em que os homens

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naturalmente se encontram em virtude da ausência de restrições naturais, nãocontratuais, ao uso do seu poder. Segundo Hobbes, todo homem possui pornatureza o direito ou a liberdade “de usar seu próprio poder, da maneira quequiser, para a preservação de sua própria natureza, ou seja, de sua vida”(HOBBES,1974,p.82).Issosignificaqueoshomensnãotêmnenhumagarantiadequeos outros nãousarãodo seupoder demodo a lhe fazer obstáculoou aimpedirquerealizemosseusfins,dentreosquaisoprincipaléapreservaçãodesuavidaenatureza.Naausênciadessagarantiaconsisteprecisamenteacondiçãodeguerra,caracterizadaporHobbescomoumacondiçãonaqualoshomensnãopodemcontarsenãocomoprópriopoderparasegarantirnaeventualidadedeosoutrosusaremseupodercontraele.Asoluçãoparaessasituaçãojásabemosqualé:fazercontratosecriarobrigaçõesquelimitemodireitoaousodopoder,paraoqueserequerainstituiçãodopoderdoEstado.

Lockeentendedeoutromodooestadodeguerra.Paraele,oshomensnãotêm direito a usar o próprio poder como quiserem no estado de natureza,masapenasodireitodeusardoseupoderemacordocomaleinaturaledemodoafazê-la valer diante de seus transgressores.Assim, o que ocasiona o estado deguerranãoéodireitodoshomensausardoseupodersemrestrições,masofatode que as restrições naturais ao uso do poder possam ser transgredidas. É atransgressãoda lei natural, a transgressãodos laçosdedever, e não a ausênciadeles,oquecolocaoshomensemestadodeguerraunscomosoutros.

SegundoLocke,ostransgressoresindicampelasuatransgressãoquenão“[...]estãosubmetidosàleicomumdarazãoenãotêmoutraregraquenãoadaforçaedaviolência,e,portanto,podemsertratadoscomoanimaisdepresas,criaturasperigosasenocivasqueseguramentenosdestruirãosecairmosnoseupoder”(LOCKE,2005,p.396).

Ouseja,atransgressãodaleinaturalcriaumasituaçãoemqueosvínculosdedever e obrigação estabelecidos por ela são justificadamente substituídos porrelaçõesdepuropodereviolência.Otransgressortrocouumvínculopelooutro,justificando que os outros façam o mesmo com relação a ele. Com isso, acondição natural, que é, para Locke, uma condição em que os homens estãoligados uns aos outros numa comunidade natural por uma série de vínculosjurídicoseeconômicos,sedegeneranumacondiçãodeguerra.

Paraevitaressaconsequência,oshomensinstituirãoporcontratoogovernocivil,aquemconfiamopoderexecutivoda leidenatureza.Mas,nessecaso,opodercivilnãoseapresenta,comoemHobbes,comoacondiçãodosvínculosdedireitoedeverquesecolocamnolugardasrelaçõesnaturaisdepodereviolência,mascomoopoderexecutivodeumconjuntodevínculosdedireitoedeverque

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preexistemasuainstituiçãoecontraosquaisessepodernãopodeagirsemquesecoloque,elemesmo,emestadodeguerracomosseussúditos, justificandoquecontra ele se use da violência. Ou seja, a lei natural será, para Locke, uminstrumentode limitaçãodopoderpolítico:cabeaeleexecutá-lae sedealgummodotrairaconfiançaneledepositada,seagircontrariamenteàleidenatureza,deveráserdestituído.Locke,portanto,usoudaideiadocontratoparadefiniremtermos completamente diferentes de Hobbes a relação entre o poder civil e odireito.

Para Rousseau, em contrapartida, todo direito é político e convencional,todasasmaneirasdefazerapartilhaentreolegítimoeoilegítimosãopositivaseinstituídas,comoparaHobbes.Pornatureza,istoé,antesdequalquerinstituiçãohumana,nãohádireito,ouseja,nãoháleis,devereseobrigações.Mesmoporqueoshomensnãodispõemnaturalmentedasluzes,istoé,doentendimentoerazãonecessáriosparaguiarsuacondutaporprincípiosnormativosdessaordem.Esseentendimentoéelemesmoadquirido–enãoportodososhomens–aolongodahistória.Assim, na origem, no ponto zero da história (que é como Rousseaucompreende a noção de natureza), as relações humanas não são reguladas porprincípios normativos, e os filósofos que, como Locke, identificaram taisprincípios na natureza, na forma de uma lei natural, passarammuito longe decompreendernoqueconsisteanaturezadohomem.

Não se vá, porém, retirar daí, isto é, do fato de que não há por naturezaprincípios normativos, a consequência retirada por Hobbes de que as relaçõesnaturais entre os homens tendem, portanto, à guerra e à disputa constante pelopoder.Nãohádireitoou leinatural,comoquisLocke.Masdissonãosesegueque a natureza nos impulsione a criá-lo, como quis Hobbes. Por natureza, oshomens não precisam de um sistema normativo para regular suas relaçõesrecíprocas.Seus sentimentos naturais são suficientes para engajá-los numavidatranquila e pacífica. No seu instinto, o homem encontra o que precisa paragarantir a sobrevivência. Suas paixões são simples e fáceis de satisfazer e ossentimentos tenros que nutrem pelos seus semelhantes garantem que aconvivênciasejapacífica.Ouseja,oestadodenaturezaéumestadoemqueasrelações entre os homens, não sendo jurídicas, mas puramente passionais eafetivas,encontram-seadespeitodissomuitobemreguladaseequilibradas.IssoquerdizerqueRousseaudeverá forneceroutras razões,quenãoasdeHobbes,parajustificarainstituiçãodocorpopolíticopeloatocontratual.

Sejacomofor,comoemHobbes,eàdiferençadeLocke,paraRousseauodireitoécriadonomomentodainstituiçãodocorpopolítico.Eleéinstituídopor

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contrato e é coextensivo ao Estado. Mais precisamente, como em Hobbes, odireitofunda-separaRousseausobreopodersoberanodoEstado.AsoberaniaéapessoapúblicadoEstadoconsideradaenquantoumapotênciaativa,opoderdefazer e impor leis, que, estando acima dos indivíduos, submete-os às decisõescoletivas.Semela,odireitonãodispõedeautoridadeecapacidadedeseimpor.

Maisqueisso:semela,odireitonemsequerexiste.Poistododireitoédireitolegítimoeodireitosóélegítimoseforaexpressãodavontadegeraloucoletiva,postaacimadasvontadesindividuais.Àsdecisõesdessavontadeosindivíduosseentregaminteiramente,pormeiodocontrato.Eporqueessaalienaçãosefazsemreserva “a união é tão perfeita quanto possível”, não restando nenhum poderindividualdeforadasoberaniaqueaelapudessesecontrapor.Asoberaniaretiradaínãoapenasaforçacomqueaplicaodireito,comooprincípioapartirdoqualocria,nãohavendodireitosenãooqueépostoporela.

Masse,comoHobbes,Rousseaureportaodireitoàsoberania,eleofazdeumaformamuitoparticular,demaneiraacircunscrevercomprecisãocirúrgicaocampo emque o poder soberano se exerce com legitimidade. “O soberano, sópelo fatodesê-lo,é sempre tudoaquiloquedeveser” (ROUSSEAU,2006,p.24),escreveRousseau,nummododedizerqueasoberaniaseconfundecomoprópriodireitoequetodososseusatossãolegítimos.Noentanto,nemtodoatodegovernopodeserentendidocomoumatodasoberania,istoé,comooatodeuma vontade coletiva. É o que ocorre toda vez que as ações do governoexprimem um interesse particular. A noção de contrato circunscreve assim ocampo de legitimação das ações políticas, não porque limite o exercício dasoberania submetendo-a a uma lei superior aos seus decretos, mas porquedeterminaoquepodeeoquenãopodeserconsideradoatosdasoberania.

SegundoRousseau,oproblemafundamentaldocontratoéodecomoformarumcorpopolíticosemdominação,comoencontrarumaformadeassociaçãoquenãoenvolvaasubmissãodavontadedeunsàvontadedeoutros.

“Encontrarumaformadeassociaçãoquedefendaeprotejacomtodaaforçacomumapessoaeosbensde cada associado, e pela qual cada um, unindo-se a todos, só obedeça, contudo, a si mesmo epermaneçatãolivrequantoantes:esseéoproblemafundamentalcujasoluçãoéfornecidapelocontratosocial”(ROUSSEAU,2006,p.21).

Assim, busca-se pelo recurso à ideia de contrato uma formade associaçãoquenãoenvolva equevenhamesmoa expurgar adominação.Éprecisamenteissooquefaráocontrato,pensadonostermosdeumatopeloqualosindivíduossedão inteiramenteàcomunidadeenãose submetemsenãoàvontadecoletivaquedesteatoseorigina.Submeter-seaocoletivonãoéomesmoquesesubmeter

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àvontadedeumoumais indivíduos.“Cadaum,dando-sea todos,nãosedáaninguém” (ROUSSEAU, 2006, p. 21). Ao submeter-se ao coletivo cadaindivíduonãoobedecesenãoasimesmo,enquantomembrodocorposoberanoquequeravontadegeral.

Trata-se com isso de criticar omodo comoHobbes eLocke, entre outros,pensaramaformaçãodocorpopolítico:comoumpactodesubmissãodaprópriavontade à vontade do governante ou damaioria. Todo o raciocínio político deRousseaupartedaconstataçãodequeadominaçãoéumfato.Elaé,segundoahistórianarradano Discursosobreadesigualdade,oestágiomaisavançadodadesigualdade, quando a desigualdade de bens e reputação, que se estabeleceuentreoshomensaolongodeumlentoegradualprocessohistórico,engendrou,emoutrocapítulodessahistória,adesigualdadeentregovernantesegovernados.Trata-se,contudo,demostrarque,serelaçõesdessetipodefatoseestabeleceramnahistória,nempor issopodemserconsideradas legítimas.Antesdisso, todooesforço de Rousseau vai no sentido de mostrar que a dominação é um fatocontrárioàrazão.

É pelamedida do contrato queRousseau pode fazer essa afirmação. Se ocorpopolíticotemorigemnumcontrato, talcomosustentamseusinterlocutores,seeleé instituídoporumatovoluntáriodessanatureza,sua instituição temqueestaremacordocomavontadequeoestabelece.Ora,avontadedohomemnãopodeserpensadacomovontadedesubmissãoàvontadedeoutrem.Querazõesos homens teriampara isso?É comoummeio de dramatizar essa questão semrespostaqueRousseaudescrevea condiçãooriginaldahumanidadecomoumacondiçãodeindependênciarecíprocaeplenasatisfação.Querazãoohomemteriapara ter deixado essa situação em favor de outra em que perdeu suaindependência? Nenhuma. A história da dominação não pode, portanto, sercontada nos termos de uma história conduzida pela vontade humana. Nessesentido,elaéirracional.

A ideia do contrato, por outro lado, oferece a solução do problema. Elaindicaoquedeveserocorpopolíticoparaquesecoloqueemconformidadecomavontadehumana,entendidacomoafontedetodoodireito.Ele temdeser talcomosetivessesidoformadopeloatodealienaçãototaldosindivíduosaocorpocoletivo. Só assim a formação desse corpo não envolve dominação e pode serpensada como tendo sido formada pela vontade dos homens. Só assim ela éracional.

Assim, de um lado há a história da desigualdade e da dominação, que éalheiaaodireitoedaqualnãobrotanenhumpoderlegítimo.Tudooquehánessa

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históriasãorelaçõesdeforça,eaforça,insisteRousseau,nãocriaodireito.Dooutrolado,háaideiadecontrato,pensadaapartirdavontadehumana,que,estasim, cria o direito.Mas por issomesmo essa instituição não pode ser qualqueruma.Elaobedeceaumaregra:elatemquepoderserpensadacomooprodutodavontadedoshomens.

Assim, embora instituído, o direito tem um fundamento natural, que é avontade.Oquevemaseressavontadeéalgoquesósepodevislumbrarporumesforçodeabstraçãodetudooqueohomemacrescentouàsuacondiçãooriginal,peloquesetransformouapontodequasechegaraesquecersuanatureza.“Éessaignorância da natureza do homem que lança tanta incerteza e obscuridade naverdadeira noção de direito natural” (ROUSSEAU, 2005, p. 152). O direitonatural não se expressa na formade uma lei de natureza.Nempor isso é umanoção dispensável. Pois o direito funda-se na vontade do homem tal comopensadaapartirdanatureza,comoavontadepelaqualohomem teriadeixadosua condição natural por uma condição política. Essa vontade é definida pelanegativano Discursosobreadesigualdade:trata-sedavontadedenãosedeixardominar.Seohomemnãogozamaisdesualiberdadenatural,seeleseinteressapelosbensdacivilizaçãoenãomaispodeviversemeles,sejánãopodemaissedesfazerdosvínculosqueosprendemaosoutroshomensnumavidacivilizada,trata-seentãodesaberquaispodemserasinstituiçõesdessavidacomum,talquepossam concordar com a vontade humana. Eis o problema fundamental que ocontratotemderesolver.

Ao fundar o direito na vontade e ao procurar determinar o que seria anaturezadessavontade,Rousseaubuscananaturezaumprincípiodelegitimaçãododireitopolítico.Nisso,alinha-seaLockecontraatesehobbesianadequepornatureza todas as ações são legítimas. Vê-se assim que nossos autores têmposições divergentes sobre a relação entre direito, política e história e que oContratualismonãoé,portanto,uma teoriaunívoca,masumdiálogoemabertosobreosentidodessasrelações.

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2.Porexemplo,“Docontratooriginal”(Hume,1973).

3.Porexemplo,Foucault(2005).

4.RobertFilmeréautorde OPatriarca,ouopodernaturaldosreis ,obraqueLockesededicaarefutarnoprimeirodos Doistratadossobreogoverno.

5.SegundoasugestãodetraduçãodeBentoPradoJr.,mantendoarimadooriginal:“Convenants,withoutthesword,arebutwords”( Leviathan,London:PenguinBooks,1981p.223).

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OLiberalismoClássicoAriRicardoTankBrito

Introdução:aorigemepermanênciadasideiasliberais

Bibliografia

Introdução:aorigemepermanênciadasideiasliberais

OLiberalismocontinuanaordemdodia?A resposta,depoisdeum longoperíodo de incerteza, só pode ser positiva.As questões ainda prementes sobreliberdades,direitoscivis,separaçãoentreospoderescadavezmaisparecemquedevemser,eestãosendo,respondidasdeummodoliberal.Talnãodeveserumasurpresaparaninguém:omundoécomoéhojeemdiabasicamentedevidoaoaparecimento,desenvolvimentoeaplicaçãodeideiasliberais,epelasoposiçõesaelas:foidoassimchamadoLiberalismoclássicoqueasconcepçõesatuaisdoquevema ser umavida social e política se originarame se desenvolveram,muitasvezes por direções que os pensadores responsáveis pelo estabelecimento dasprincipaisideiasliberaisnuncaimaginaramquetomariam.Issoexplica,deumasóvez, duas características do pensamento político (e econômico) liberal clássicoque, de imediato, chamam a atenção: a sua proximidade com as nossas

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preocupaçõese,aomesmotempo,comoestamosdistantesdeles,istoé,comoasmudanças posteriores nos separam desse tipo de pensamento. Essas duascaracterísticas serão exploradas mais adiante, mostrando como as diferenças esemelhançasnosdãoaomesmo tempoumavisãodaatualidadedoLiberalismoclássicoedoquenos separadele.AsênfasesdoLiberalismoclássico incidem,comosesabe,nadefesadosdireitosdocidadãoàsuavidaesuapropriedade,nanecessidadedatolerânciapolíticaereligiosaenalutaporumsistemapolíticoquenãocentralizetodoopodernumasómão.Cadapensador,emcadadeterminadomomentopolítico,privilegioualgunsaspectosdoLiberalismo,emdetrimentodeoutros,certamente,masostrêsitensarroladosformamcomoqueumpadrãogerale praticamente obrigatório que pode ser encontrado no pensamento liberalclássico, e pode ser utilizado para identificar um pensamento como tendo umcunholiberal.Porém,deve-sesempreatentarquedopensamentoliberalclássiconãodevenuncaseresperadoqueapresenterespostasaosproblemasatuais.Muitoemborapossahaversemelhançasentreasquestõesdeantigamenteeasatuais,emuitoemborapossaserfeitoumcaminhoentreasrespostasclássicaseasatuais,essecaminhonãoéumarotaharmoniosaesemsobressaltos.Pelocontrário,alémdevoltasedesvios,háumainterrupçãonessa jornada,marcada justamentepelacrisedoLiberalismoclássico,tãopatentenopensamentodeJohnStuartMill.OLiberalismoclássicotevesuaépocaefezsuacaminhada.Essaéumarotaquenoslevará de Thomas Hobbes, filósofo inglês do século XVII, até Aléxis deTocqueville, filósofo francês do século XIX, duzentos anos de história quemarcamdefatoosurgimentodeumpensamentopolíticoeoseuapogeu.

5.1.Uminícioperigoso:Hobbes,oLeviatãeasegurançadecadaum

O filósofo inglês Thomas Hobbes (1588-1679) publicou o Leviatã, oumatéria, forma e poder de um estado eclesiástico e civil, sua obra maisimportante,em1650naversãoemlínguainglesae1670naversãoemlatim.

Queoprimeiropensadora ser tratadodentrodo temaLiberalismoclássicoseja alguém que defendeu que o Estado tem todo o poder nas mãos, que oSoberano possa fazer o que lhe der na telha, semque se possa tugir oumugircontraasordensemanadasdoSoberano,comumaúnicae importanteexceção,nãodeixadeparecerparadoxal.Nãodevesersurpresaquejustamenteaexceção

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indicadasejatidacomoobilhetedeentradadopensamentodeHobbesparaoroldospensadoresliberais.

Comovimosnocapítuloanterior,HobbeséumdosdefensoresdateoriadoContrato social. Para que as bases da vida social e política fossem sólidas ecapazesdereceberleisseguras,foipropostoqueoestadopolíticoteveseuinícioquandoumContrato,ouPacto,foiacordadoentreaspessoasqueviviamemumpretendido“estadodenatureza”,istoé,semleisoutrasqueasnaturais.Comoeraavidanesseestadodanatureza,sepéssimaouboa,sehaviaounãoalgumtipodeobrigação trazida por algum acordo particular era motivo de disputa entre osteóricos.NoquetodosconcordavameraqueoPactoentrepessoaslivres,enãosujeitasaleisnosentidomaisestrito,fezsurgiroEstadoesuasleis,oPactosendosempreumaconcordâncialivreemútuadequedaliemdianteseriamseguidasasleis criadas por um Legislador que, além de fazê-las, teria condições deimplementá-las.QuemseriaoLegislador,seumoualguns,nãointerferianomaisimportante: o Legislador faria as leis, e as pessoas, mantidas em vínculo peloPacto,asobedeceriam.Quemnãoofizesse,seriapunidopelaaplicaçãodalei.Naversão de Hobbes, os seres humanos antes do Pacto viviam uma vida curta,sórdidaebrutalemumestadodenaturezaondeaquaseúnicacertezaeraadeumamorte violenta. Sem que a humanidade carregasse consigo algum tipo dedisposiçãosocialinata(pelocontrário, Ohomeméolobodohomem,segundoafrasefamosadeHobbes),somenteumPactonoqualtodossevissemimpedidosdeatacarunsaosoutrospoderiateralgumaserventia.OmedodamorteviolentalevaaoPacto,essemesmomedoomantémeessemesmomedo,veremosadiante,pode anulá-lo. O Pacto que instaura a Sociedade tem intenções privadas: sódepoisdoPactocadaumpodecomeçarasesentirseguro.Nãoporquepromessasforammutuamenteoferecidas, jáquepromessaspodemserquebradas,mas simporqueapromessaválidadoPactoéadequecadaumvaisedespojardopoderpróprioquecadaserhumanopossuidesemantervivo,eentregaressepoderaumSoberano,quepassaráentãoater,eapenasele,essepoderdevidaemorte.SóoSoberanopoderá,deacordocomasleisqueelemesmoproclamará,exerceresseimpério.OmomentodoPactoéomomentodainstituiçãodoSoberano,desuas leis, e das armas que garantirão o cumprimento dessas leis. É também omomento da instituição de um corpo político, de uma Comunidade( Commomwealth).Apartirdessafundação,aspessoasestarãoprotegidasumasdas outras, sob o amparo das leis vindas do Soberano, e apenas deste. ParaHobbes,nãohádireitospolíticossenãoaquelesqueasleisconcedemeesses,sesequiserevitaradissoluçãodocorpopolítico,nãovãomuito longe.Liberdade

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mesmoéapenasaquiloquealeinãoproíbe.AliberdadenegativadeHobbesestácontidanafrase: Aliberdadeéapenasosilênciodasleis.Aquestãoseriaadeapontar quaisquer limites para a amplitude das leis,mas não os há.De fato, olimite das leis promulgadas pelo Soberano é decidido por este mesmo, tãosomente, e apenas o intuito de autoconservação do Soberano é que podeaconselharatéondeir,emtermosdelegislação.

RetratodeThomasHobbes,porJohnMichaelWright,1969-1970.NationalPortraitGallery,Londres.

UmsistemadessesnãoparecemostrarnenhumsinalquepossasercolocadosobrearubricadoLiberalismo.UmSoberanotodo-poderosoecidadãosquenãopossuemdireitos é bemo que se toma por ditadura hoje emdia. E, de fato, ofuncionamentodoLeviatãpreconizadoporHobbesnãoseriamuitoliberal,masoseufundamentosim.Eesseéoxisdaquestão:ParaHobbes,nãohárealmentedireitos,massimpoderes.OqueoPactocriaéumSoberanocomplenospoderes,que lhe são passados pelos contratantes. Porém, como o motivo do Pacto é,primeiramente,omedodamorteviolenta,cadaqualconservaparasiopoderderesistiraela.Ditodeoutraforma,alguémtransfereoseupoderdeagircontraosoutrosparaoSoberano,queemtrocalhegarantequenãousaráessepodercontraele, de forma incoerente, pois se o fizer o Pacto estará anulado. Omotivo doContrato sendo a autoproteção individual de cada um, e não amanutenção deumaSociedade, pode-se perceber aqui uma ideia tida como liberal, a de que a

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razãodaexistênciadaSociedadeéacimadetudoamanutençãodoqueépróprioaumserhumano:asuavidaeoquelhepertence.Vidaepropriedadesacabamsendo, portanto, não só o motivo para o Pacto (no estado de natureza nãohavendogarantiasparanenhumadelas),mas tambémarazãodeserdoEstado.Se entendermos poderes como direitos, então a razão de ser do Leviatãhobbesianoseenquadra,mesmoquecomalgumasdificuldades,noLiberalismo,pormaisquecertasideiasdeHobbesseafastemdoideárioLiberal.OSoberano(que,paraHobbes,podeserumoumuitos,compreferênciasendodadaaumsó),afinal,podeagircontraoscidadãos,enãoháumdireitoderesistência.Nãoquenãosepossalutar:essepodernuncapodesertirado,ediantedeumasentençademorte dada pelo Soberano, o condenado pode fazer o que puder para escapardela.Enãocabeaínenhumaquestãodejustoouinjustamentecondenado.JáqueoSoberanomantémtodaaforçaemsuasmãos,eaquitrata-sedeforçaarmada,opoderde lutar contra suasordensé, emsituaçõesnormais, ínfimoe ineficiente.QuandomuitosresistemordenadamenteàsordensdoSoberano,estácriadaumasituaçãodeguerracivilededissoluçãodoCorpoPolítico.EsseograndemedodeHobbes, o que aliás explica porque seu sistema é tão duro, tão sem “direitos”.Mesmoassim,nemporissodeixouHobbesdecolocarcomobasedaexistênciado Estado o que posteriormente será entendido como direitos mantidos peloEstado e transformados em sua razão de existir e agir: o direito à vida e àpropriedade.

5.2.Ocaminhoparaatolerância:JohnLockeeaseparaçãodospoderes

OfilósofoInglêsJohnLocke(1632-1704)escreveumuitasobrasimportantessobrefilosofia,entreasquaiso EnsaiosobreoEntendimentoHumano (1690).Sobre a Filosofia Política sua obra mais importante é Dois Tratados Sobre oGovernocivil,publicadaem1690.

Se pode haver alguma dúvida a respeito da inclusão do pensamento deThomasHobbesentreosautoresliberais,jásobreopensamentodeJohnLockenãopairanenhumadúvida:comsuaobra,LockedefatoinauguraeconsolidaopensamentoliberaldentrodaFilosofiaPolítica.OsgrandestemasdoLiberalismo,orespeitoàvidaeàpropriedade,atolerânciapolíticaereligiosa,aseparaçãodospoderesdoEstado,sãoporeleapresentadosedefendidos.Desdeentão,quando

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setratadaquestãodeliberdadescivisepolíticas,odebatetemcomoumdeseuspolosasideiasdefendidasporLockeeseusseguidores.

John Locke, assim como Hobbes, também era um contratualista, isto é,tambémdefendiaqueumContratoentreaspessoashaviadadoorigemaoEstado.Mas, ao contrário deste,Lockepensavaqueo estadodenaturezanão era umasituaçãoondenãohavianenhumaleiousegurança.Noestadodenaturezavigiamjáleisnaturais,dadasaoserhumanoporDeus,queindicavam,ebem,comosedeveriaagirecomonão.Odireitonaturalindicavaquepromessastinhamdesercumpridas,ecadaumjátinhadireitoàsuavidaeaosfrutosdoseutrabalho.Apassagem, viaPacto, do estado de natureza para aSociedadeCivil se faz paramelhoraregarantirmelhorasbenessesdoEstadodeNatureza,sendo,portanto,mais um aperfeiçoamento do que uma ruptura. Os seres humanos, sendosociáveis por natureza, não precisam de modo nenhum de uma autoridadetotalmenteseparadadaSociedadeparaviverememconjunto.AautoridadequeoPactoforma,oSoberano,naverdadesecriaapenase tãosomentepormeiodoconsensodoscidadãos,osquais, semabdicarnenhumdosdireitosque têmporseremhumanos,criamumSoberanoparamelhorfazervigirasleis,Soberanoestequeestásobreocontroledoscontratantes.OSoberanonãopodequebrarasleisquetodosfizeramedevemseguir,poisperderásualegitimidade,seofizer.Essesdois pontos importantes, o dos direitos naturais (e, portanto, inalienáveis) e aquestãodalegitimidadedogoverno,quedeveseguirasleis,semarbitrariedades,estarãosemprenapautadasdiscussõespolíticasposteriores,tendoformadopartedoideárioliberalpormuitotempo.

Na sua principal obra de Filosofia Política, Locke escolheu como oadversárioa serbatidonãoas ideiasdeHobbes,mas simasdeumapostura jáquase esquecida, a que dava ao governante (o rei, de modo geral) todos ospoderes porque este era um sucessor do primeiro homem,Adão. Patriarca dafamília humana, Adão teria recebido de Deus os poderes para governar suafamília,eosgovernantesfuturosteriamosmesmosdireitosdeAdão,sendovistoscomochefesdafamíliaqueeraoEstado.Essateoria,chamadadePatriarcalismo,servia na época deHobbes para defender as pretensões do absolutismo real, atentativa na realidade bem-sucedida em larga escala dos reis europeus deconcentraremtodosospoderesemsuasmãos,diminuindoassimcomopoderdossenhoresfeudais(osnobres),quedurantemuitotempohaviamdesafiadoopoderdos reis.A crítica ao patriarcalismo ocupa todo o primeiro dos Dois Tratadossobre o governo. O adversário é Robert Filmer, autor de O Patriarca, ou opodernaturaldosreis(1680).

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NaInglaterradeLockeatentativadeimplantaroabsolutismoacabouporsermalfadada:oreidadinastiaStuart,CarlosI,tevesuacabeçadecepada,depoisdeuma longaguerra civil, e o poder passou àsmãosdeum comum (nãonobre),OliverCromwell,quegovernousobotítulodeProtetor.Comamortedesteeaqueda do Protetorado, o filho deCarlos I, então exilado, subiu ao trono comoCarlosII,semjamaisousargovernartãodespoticamentecomoseupaihaviafeito.Em1685ascendeaotronoinglêsoirmãodeCarlosII,JaimeII.Esserei,alémdeser suspeito por ser católico, o que era um problema para um país protestante,onde o rei era o chefe oficial da IgrejaAnglicana (o que quer dizer: inglesa),aindaporcimatinhaideiasabsolutistas,quetentoucanhestramenteimplementar.Em 1688, foi também derrubado, numa revolução incruenta chamada de ARevolução Gloriosa: Jaime II fugiu do país e foi sucedido por Guilherme deOrangedaHolanda,casadocomumafilhadeJaimeII.Nocomboiodenaviosque levou o novo rei e rainha desde aHolanda para a Inglaterra veio tambémJohn Locke, por muitos anos exilado em terras holandesas por motivo deperseguiçãopolítica.

AnovasituaçãopolíticacriadapelaRevoluçãoGloriosafoivistademaneirasdiferentespelosatorespolíticosdomomento.AojulgamentodequeoreiJaimehaviasidolegalmentedeposto,equeseusucessor,apesardesermaridodeumafilha sua, teria sido escolhido como rei pelo povo inglês por meio de seusrepresentantes, o Parlamento (Câmara dos Comuns e Câmara dos Lordes), secontrapunhamduas outras visões, a de que oRei Jaime não poderia nunca tersido destituído do trono (a visão dos católicos ingleses de modo geral), nãoimportando o que tivesse feito ou planejado fazer, e outra, a da nova corte denobresemagnatas,adequeadeposiçãodoReiJaimeforalegítima,masasubidaaotronodeGuilhermetinhasedadodeacordocomasleisdinásticas.Aprimeiravisão, que corresponde à do “Rei no Parlamento”, acabou sendo a vencedora,comodecorrerdotempo,parece-semuitocomasproposiçõesdeLockesobreopoderdoSoberanoecomoessedevemantersualegitimidadediantedeseupovo.Vencedora afinal, mas não parecia tão certa essa vitória depois de Locke terretornado do seu exílio holandês. Haveria ainda muitos debates pela frente, eLocke,mesmosendocautelosocomoescritor,nãodeixoudeparticipardeles.

Como expoente do Liberalismo, Locke deixou sua marca defendendo aresponsabilidadedoSoberanodiantedossúditos.Nemodireitodivinodosreis,dadoporDeus,nemavisãohobbesianadeumSoberanotodo-poderosofeitoporContrato, mas sim um Soberano que é mais um gerente do Estado do quequalqueroutracoisa.UmSoberanoéimportante,naverdadeimprescindível,mas

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deveepodesercontrolado.Asoluçãoaventadaparaessecontroleéaseparaçãodos poderes do Estado em dois: um, a cargo do Soberano, executará as leis erealizaráosjulgamentossobreasinfraçõesdestas.ExecutivoeJudiciáriounidos,portanto.Outropoder,esóele,faráasleis,oLegislativo,Este,representandoopovo, se comporá de homens com propriedade, que escolherão representantes.Lockenãopropôsosufrágiouniversal,queconcedeatodasaspessoasodireitoaovoto,massimumamelhoria,noseupontodevista,dosistemavigente.OquesequebraaquiéaideiadequeaSoberaniatinhanecessariamentedeserúnica,comoqueriaHobbes.

Como vimos no capítulo anterior, a teoria contratualista de Locke écaracterizada pela defesa do direito natural de propriedade. Por propriedade,Lockenãoentendeapenasosbensquealgumhomempossui,masdiz tambémque“cadahomemtemumapropriedadeemsuaprópriapessoa”,alémdepossuiro “trabalhodo seu corpoe aobradas suasmãos”(LOCKE,1998,p. 409).Aspossesqueumhomemtememsuaprópriapessoasãobensinalienáveis.AterraéumbemconcedidoaohomemporDeus,deformaindiscriminada,é,portanto,umbemcomumatodososhomens.Contudo,aotrabalharsobredeterminadaporçãodeterra,ohomemfixapropriedadeeaseparadocomum.Assim,Lockeafirmaqueoquedáinícioàpropriedadeéoatode“tomarqualquerpartedaquiloqueécomumeretirá-ladoestadoemqueadeixaanatureza”(LOCKE,1998,p.410).Seria o trabalho, portanto, aquilo que dá direito à propriedade a quem faz usoconvenientedaquiloquetodososhomenspossuememcomumqueéanatureza.Essa mesma natureza, para Locke, teria fixado também os limites para apropriedadeprivadadetalformaqueninguémpodetertudoetodospodemteroque precisam uma vez que “a mesma lei de natureza que por este meio nosconcede a propriedade, também limita essa propriedade” (LOCKE, 1998, p.412).

Para Locke, então, o homem em estado de natureza deve defender suapropriedadedosataquesexternose,alémdisso,possuiopoderexecutivoda leide natureza, isto é, o poder de julgar e punir qualquer um que ataque apropriedade, não só a delemesmo como a de terceiros. Locke faz questão deafirmarqueoestadodenatureza,porquantosejaumestadodeperfeitaliberdade,não é um estado de licenciosidade, pois ninguém tem o direito de destruirqualqueroutrapessoaouasimesmo.Sendoaleidenaturezaaúnicaquedeveser consultada, todos teriamaobrigaçãodepreservarnão só a simesmocomotambém todo o restante da humanidade. O homem que transgride a lei denaturezadeclara-seinimigodahumanidadeetodosquedesejamprotegê-latêmo

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direitodecastigá-lo,tornando-seassimexecutoresdessalei.Apesardaexistênciadedireitoseleisnaturaisnoestadodenatureza,surgeaíumproblemaquetornanecessária a instituição da sociedade política. O problema é que uma vez quetodososhomenstêmopoderexecutivodaleidenatureza,elespodemcomeçarajulgar em causa própria levando toda a sociedade a um estado de confusão edesordem.Écontraessemalqueasociedadepolíticadeveráservirderemédio.Dessa forma, é necessário que cada um dos membros de uma comunidaderenuncieaopoderexecutivodaleidenatureza,passando-oàsmãosdasociedadeque formará um corpo político que semoverá de acordo com os desígnios damaioria.Sóassimpoderáhaverum juiz imparcialque julgueconvenientementetodasascontrovérsiasquepossamsurgirevitandooestadodeguerra.

Vemosentãoque,segundoLocke,ohomemabandonaoestadodenaturezaapesar de sua liberdade porque só assim poderá ter garantias sobre suapropriedadeesegurançacontraataquesexternos.Oobjetivoprincipaldaentradados homens num estado político é a preservação da propriedade. Essa é acaracterísticamarcantedopensamentoliberaldeLocke.

OutramarcadopensamentodeLockeéasuadefesadatolerânciareligiosa.As discussões políticas em sua época sendo caracterizadas por um tomextremamente religioso, qualquer excursão na área da tolerância era semprerecebidacommuitoalarde.Locke,emsua Cartasobreatolerância,propôsquetodasascrençasreligiosasquenãoatentassemdiretamentecontraaexistênciadoEstado deveriam ser toleradas.Como a função de uma religião é apenas e tãosomente ajudar a salvar a alma de cada indivíduo, as crenças religiosas nãodeveriam se imiscuir na política. Não fazendo isso, qualquer crença religiosapoderiaedeveria ser tolerada,mesmoasquenão fossemcristãs.Uma igrejaé,paraLocke,nadamaisnadamenosdoqueumclube,ondeseentraporvontadeprópriaedoqual se sai tambémporvontadeprópria.Dentrodeuma igreja,osfiéis devem seguir as regras indicadas, desde que elas não violem as leis dasociedadepolíticaoucivil.Discussõessobrerituais,sobreoquecomereoquevestir não são, na maioria dos casos, assuntos que o Soberano (que devepermanecerneutroemquestõesreligiosasdessetipo)devaseintrometer.Masnasua proposta de tolerância, Locke coloca dois senões,mostrando os limites datolerância:umaigrejanãopodeseguirumsenhorestrangeiro(areferênciasendo,nessecaso,àIgrejacatólicaeaoPapado),poiselaseriaentãoumcorpoestranhoàcomunidade,enaverdadeestandoobrigadaatentarsubverteressacomunidade,já que segue outras leis. Em relação aos católicos, Locke é bem cauteloso,portanto.Seoscatólicos,porexemplo,cindissemsuasligaçõescomRomatudo

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poderiairbem...Masnenhumacautelaseapresentadiantedosegundocaso,paraoqualnenhumatolerânciaédevida.Trata-sedosateus,osquenãotêmnenhumaféreligiosa.Paracomessesnenhumatolerânciavale.Nãoporquesendoincréusestariam perdidos para Deus, mas, sim, porque, não tendo nenhum tipo dedivindade,osseuscompromissosnãoteriamvalor.Istoé,umasociedadesefazcom pactos, mas o que valeria o Pacto com alguém que não tivesse umadivindadeparaaqualjurar?NavisãodeLocke,valornenhum.

As ideias de Locke, aproveitadas e modificadas, formam a base dopensamentopolíticoliberal.AcompanharahistóriadoLiberalismoclássicoé,decerta forma, acompanhar como essas ideias foram sendo implementadas,transformadasemleis,constituiçõesenumavisãomoral.Osiluministasfranceses,comoVoltaireeMontesquieu,assimilaram-nasepropuseramquefossempostasemprática.Ambosseinspiraramnasituaçãopolíticainglesa,quecadavezmaisparecia destinada a transformaros preceitos defendidosporLocke em lei e emcostume.Certamente,hámaisnasalteraçõesinglesas,tãovisíveisapartirdofinaldo séculoXVII,doqueuma tentativadeaplicar as ideiasde JohnLocke,masessas ideias se casavam tão bem com o momento, que seria, como foi, quaseimpossívelnãosetomarLockecomooprofetadaquelesnovostempos.

5.3.Visõesduras:MandevilleeHumeAs ideias de Hobbes e Locke, apesar das diferenças, estão baseadas num

pontocomum:odequeasociedadehumanaexisteparasalvaguardaroindivíduo.O bem comum seria a soma dos bem-estares individuais. Seja o Leviatãhobbesiano,sejaasociedadeciviloupolíticadeLocke,opressupostobásicoéoindivíduo e o que lhe é próprio, isto é, seus bens. Essa pressuposição decorrediretamentedoqueé assumidopela filosofiamodernadoSéculoXVII sobre anaturezahumana,asaber,ossereshumanosacimadetudosepreocupamconsigopróprios.Éessacaracterísticaincontornávelquesedevelevaremcontaquandose pensa a vida social e política. Desde sempre os seres humanos foram tidoscomoessencialmenteegoístaspornatureza,masdurantemuito temposepropôsqueessacaracterísticapoderiasermodificadaoupelomenosdiminuída,pormeiode um grande esforço individual e coletivo, normalmente ligado a religiões oualgum tipo de civismo.O amor aDeus e/ou o amor a Pátria seria um tipo deantídotoaoegoísmohumano(chamadodeamor-próprio)sempresubjacente.Essasolução é rejeitada pelos filósofos do período moderno (definido normalmente

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comoindodeFrancisBaconatéKant,umperíododemaisoumenosduzentosanos, abrangendo os séculos XVII e XVIII), que propõem, ao invés, umasociedade humana baseada sim no conhecimento, esclarecida e livre, masconstruída sobre o que os seres humanos têm em comum, e não em algo, narealidade fictício, fora deles. Sendoguiados às ações pelas paixões, e não pelarazão, deve-se ao mesmo tempo canalizar estas e ampliar os limites doconhecimentoracional.Portanto,serásomentesobreasatisfaçãodaquiloqueaspessoas compartilham, o amor-próprio, que uma sociedade esclarecida poderáexistir.Emboraasênfasesdecadapensadorvariem,quandosetratadotemadoamor-próprio, é sobre este, primeiramente, que recai a responsabilidade de, sebem dirigido, guiar bem as pessoas e as sociedades. Tornando qualidades(virtudes) como altruísmo, benevolência, piedade e outras como geradas peloamor-próprio, esses pensadores criaram a figura de um indivíduo, do serparticularquepensaprimeiroemsimesmoequeconsideraqueasociedadeexistepara que ele tenha pelo menos uma boa chance de satisfazer nela os seusinteresses. Para isso, é necessário que haja um amplo grau de liberdade desseindivíduo,paraconseguir seusobjetivos.Noentanto, comooqueumquer éoque todos querem, isto é, ter uma boa vida, a busca desse objetivo levaria aconflitos pela obtenção de bens escassos. Sem leis fortes e sem um Soberanoatentoaoseucumprimento,essabuscapelaautossatisfaçãoacabariagerandoumasituaçãonaqualosmaisforteseespertosimporiamaosoutrososseusdesejos.

Não por acaso esse esquema é uma boa aproximação daquilo que osmodernos admitiam como tendo sido a razão da criação dos Estados. Todosquerendoomelhorparasi,aalternativaaumaguerradetodoscontratodosteriasido a de alguns se unirem para que, em força conjunta, dominassem osincontáveis outros.Mas não se tratava apenas de um domínio via força bruta.Esta, sem dúvida, era utilizada amplamente, mas para que os que não teriammuitas(ounenhuma)possibilidadedesedarbem,algomaisteriadeserdadoemtroca.Algo que pudesse manter tranquilos aqueles que não estavam entre osprivilegiados, pelo menos a maior parte do tempo. O temor da morte nãoparecendo ser o suficiente em todos os momentos para acalmar a multidão,passou-separaopassoseguinte,o temorpelapós-vida.Explorandoomedododesconhecido,doquepoderiavirapósamortedecadaum,surgiramasreligiõesque,pormaisqueprometessempuniçõese recompensasparaocomportamentodurante a vida, punições e recompensas vindas de Deus, eram, na verdade,criaçõeshumanas,formasdesubmeteraspessoasarestriçõesesofrimentosqueelas não queriam,mas que trocariampor umbemmaior, umaboa vida após a

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morte. Embora sendo criação humana, essas sanções religiosas não eram tidascomotaissequerpelosqueseaproveitavamdela,jáqueomedododesconhecidoe da anulação eram os mesmos, seja para a elite, seja para os outros, e aimaginaçãoseencarregavadecriarhorroresebenessesnamentedosvivossobreseudestinofuturo.Asreligiõestinham,afinal,umcréditodesmesurado:nascidasdo medo e da exploração, seriam irracionais, levando a muito sofrimento emisériaabsolutamentedesnecessários.Omedoeadefesadeprivilégios(quenemsequerpodiamserentendidoscomotais)levavamaofanatismo.

RetratodeDavidHume,porDavidMartin,1770.Coleçãoparticular.

Os primeiros filósofos liberais não eram ateus, mas sim deístas, isto é,acreditavam emDeus, mas em relação às Igrejas, ou propunham uma religiãoestatal, como Hobbes, ou defendiam que (quase) todas valiam, desde queajudassemohomemasalvarsuaalma,comoLocke.HaveriaumDeus,maseste,depoisdedarorigemaomundo,nãomaisintervirianele.Sendoassim,oquesetemsãoorganizaçõeshumanas.EquenodecorrerdaHistória, teriamprecisadode outra organização humana para se sustentar e se desenvolver: o Estado.Aunião da Igreja com o Estado era na realidade a maior responsável pelolamentável estado de coisas que se via então: guerras religiosas, perseguições,execuções. Para terminar com isso, essa união deveria terminar. Ou com asIgrejas subordinadas ao Estado, ou livres, mas sem poderem intervir na vidapolítica.Ofimdopoder teológico-político,porém,não trariaoutrosproblemas?

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Pois todoesse sistema foramontado, afinal,para tornaros sereshumanosmaismaleáveis, mais propensos para aceitar sofrimentos e privações. Sem ele, nãoestariaotecidodasociedadedestinadoaserrasgado?Semomedodaspuniçõesdivinas, seria o temor para com as leis suficiente para manter uma sociedadeorganizada?Nãoseriamosvícioshumanos, tãocombatidos, inevitáveis?Comomanterasvirtudesnecessáriasparaumavidaemcomum,então?

Essasquestõesnãoeramdepoucamonta:Jáqueoserhumanoagebaseadoemsuaspaixões,sendoopapeldarazãoorientá-las,demodoaalcançaremseusobjetivos sem prejudicar o portador das paixões (isto é, a pessoa), e já que oreconhecimento de que o instinto de autopreservação é o que torna todos oshomens iguais, sendo a única base sólida para construir a sociedade, o modoesperado para se controlar as paixões (sem nunca anulá-las) e levar os sereshumanosàcooperaçãomútuaserialhesensinandoalgumasvirtudes.Apenasumser humano contido seria confiável. E nada conteria melhor, nada impediriamelhorosdesregramentos,queumaspoucaseboasvirtudescivis.Asociedadeestariafundamentadanoegoísmo,masoqueafariafuncionaracontentoseriaodificultosoexercíciodevirtudes.

Mas, e se não fosse assim? E se o que amantivesse uma sociedade bemordenada não fosse a contraposição das virtudes como egoísmo primário?TaltesefoilevantadaedefendidaporummédicoholandêsqueresidiugrandepartedesuavidanaInglaterra.BernardMandeville(1670-1733)apropôsemsuaobraA fábula das abelhas: vícios privados, benefícios públicos.O próprio título jádeixaverosentidodesuaideiamestra:oquetornaumasociedadeboanãosãoasvirtudes,mas os vícios privados. Isto é, o que nos faz querer uma vida boa éjustamenteoquepermitequeelaoseja.Aprocuradesatisfaçõespessoaislevaasociedade a ter uma vida melhor, em termos de confortos e luxos. Cada qualquerendo seu próprio bem ajudaria ao bem comum, independentemente daintençãopessoaldecadaum.

Uma tese paradoxal.Mandeville não estaria defendendo um contrassenso?Comoafirmarquedomalnasceriaobem?Acontecequeasmudançaspropostaspor Mandeville no sentido do que vem a ser vício tornam a tese bem menosparadoxal do que parece (o que não quer dizer, obviamente, que tornema suatese correta): basta significar por vício tudo o que advém do amor-próprio, daautoconsideração, e está feita amudança.Na Fábuladasabelhas o autor nãotemmuitasdificuldadesemdemonstrarqueoquesechamadevirtudestambémadvém do amor-próprio, o que oblitera a antiguíssima distinção entre vício evirtude.Se todasaspaixões, tudooquenos fazagir, têmumaorigemcomum,

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não há como distinguir entre vícios e virtudes. O que interessa, porém, é aquestão da compreensão social disso. Não haveria pessoas inerentementevirtuosas,massimpessoas consideradasvirtuosas.

Mandevillenãonega,porém,quehajadiferençasentrevíciosevirtudes.Jáqueháumadistinçãoaceita,ele trabalhaessadistinção,queéfavorávelàssuasintenções. Tomando ao pé da letra as definições verbais de virtude e vício, asdefiniçõesdedicionário,elenãosótentaencontrá-las,masatéasdefende.Penaqueoresultadosejatãoacabrunhante:veja-seocasodoluxo,porexemplo.Viverluxuosamenteéumtipodevício(noutraacepção,umpecado).Comovício,devesercombatido,eavirtudeoposta,afrugalidade,deveriaserincentivada.Tratar-se-iaentãodeviverumavidasimples,semluxos.Masoqueviriaaseressavidasimples? Uma vida que nada contivesse de supérfluo, isto é, apenas oabsolutamentenecessárioparasecontinuarvivendo.Todoequalquersupérfluoseria um luxo.Assim, praticamente todas as pessoas viveriam viciosamente, jáque ninguémde fato escolhe viver apenas comomínimopossível.Mandevillenãoseesquecedequecadaumapontaoseupróprio mínimo,oseupadrãodeumavidasimples.Quemuitaspessoas,inclusiveasquepossuemumaltopadrãode vida, argumentam que vivem da maneira mais simples possível na suasituação,éalgoquesepodeconstatar.Mas,paraserrealmentevirtuosaumavidasimples não poderia estar ligada a um status social. Haveria um tipo de vidasimples que todos poderiam compreender (e no qual ninguém quereriapermanecer...), e é apenas esse padrão que valeria como virtude. O mesmoaconteceria com todas as virtudes: haveria para cada umaumpadrão,mas queninguém seguiria.A argumentação de Mandeville é, portanto, dupla: vícios evirtudes têmamesmaorigem,eassegundas,apesardeexistiremcomopadrão,nãosãoencontradasna realidade.Ficaapergunta:paraqueserviriamentão, sepraticamenteninguémassegue?

Algo pode não ser facilmente seguido, mas pode servir de ideal decomportamento, uma meta inatingível, mas sempre buscada. Fosse assim,Mandeville não teria a sua colmeia, mas uma comunidade religiosa. O que aspessoasquerem,muitomaisdoquetentaralcançaroimpossível,eleafirma,éserreconhecidascomovirtuosas,mesmoquandonãosepossuanenhumavirtude.Serelogiadoporvirtudesamplamenteinexistenteséalgoquetodosprocuram.Servepara reforçar o amor-próprio e é uma amostra do reconhecimento das outraspessoas. Portanto, não há nenhuma vantagem em tentar ser virtuoso, mas hámuitaemparecersê-lo.Esseopapeldasvirtudes.Eosdosvícios?Estespossuemuma importância fundamental: a realização deles é o que impulsiona a vida

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humanae,pormeiodainteraçãohumana,asociedade.Osvíciossãoasfontesderiquezas,demelhorias,detudooquetornaavidamaisconfortáveleagradável.Por isso, são benefícios. E públicos: da busca individual por satisfação, e nãonumainútiltentativadeorientaraspessoasparavidasdevirtuosarestriçãoéquenasceumasociedadeforte,bemconstituída.

Oquepareciaparadoxalacabaporsemostrarmaisumaquestãosemântica:nãofosseousodesignificadosbemrestritosdaspalavras virtudee vícios,ateseprincipal,adequeosvíciosprivadospropiciamoaparecimentodobemcomum,nãoseriatãocontundente.Bastaria,aoinvésde vícios, terutilizado propensõesindividuais,eorecadodeMandevillepoderiapassarsemmuitoescândalo,poisestariadeacordocomprincípiosliberaisamplamentedifundidos.Talcomoasuateseéapresentada,noentanto,elaéescandalosa.Mesmoquefosseabandonadaaideiadequeoqueéfundamentalparaumaboavidasãoasantigasvirtudes,equefosse aceita a ideiadeque abusca individualdosprazeresnão é em simesmadestrutiva, ainda assim as ideias expostas n ’A fábula das abelhas seriammaisradicais do que amaioria dos pensadores compendor liberal estaria disposta aaceitar.ComDavidHume se pode encontrar um filósofo que, tendo lido e atéelogiadoMandeville,ocorrige,tornandoasideiasdestemaispalatáveis.

O filósofo escocês David Hume (1711-1776) tratou amplamente em suasobras de ideias sobre moral e ética. O essencial desse seu trabalho pode serencontradonoseu Tratadodanaturezahumana:umatentativadeintroduzirométodoexperimentalderaciocínionosassuntosmorais:“Arazãoé,edeveserapenasescravadaspaixões,enãopodeaspiraraoutra funçãoalémdeservireobedecer a elas” (HUME,2002,p. 451).A razão servindoaspaixões,masdequeforma?Encontrandoomelhormeiodesatisfazê-las,certamente.Eaísetratanãodecontraporaspaixõesàrazão,massimdesubstituirumapaixãoporoutra:só uma paixão pode fazer o trabalho de outra paixão, nunca a racionalidade.Agimos pelas paixões, com a razão nos indicando o caminho para que a açãochegueabomtermo.Apesardenaaparênciadefenderumateseirracional,Humeestálongedisso.Seapenasexistissemaspaixões,semarazão,namaiorpartedasvezes as ações humanas estariam fadadas ao fracasso.É a razão, em forma deprudência,quenosalertaqualomomentocertodeagir,equandosedeveesperar.Natesedopredomíniodaspaixõesjásepercebedelinearaquestãodointeressebemcompreendido, que farámuito sucessodentre os pensadores liberais.Mas,paraHume, acima de tudo se colocam as paixões. Se paraHobbes a principalpaixão era o medo (o que a tornava a paixão basicamente responsável pelatentativadeseviveremsociedades),eseparaLockeeraalgocomoumabonomia

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natural,paraHumeapaixãoqueconectaossereshumanosentresiéasimpatia:“Nãohánanaturezahumanaqualidademaisnotável,tantoemsimesmacomoporsuasconsequências,que nossa propensão a simpatizar com os outros e a receber por comunicação suas inclinações esentimentos,pormaisdiferentesouatécontráriosaosnossos.”(HUME,2002,p.351).

Essasimpatiadeveserentendidacomohojeseentendeapalavraempatia,enãopelo sentidomaiscomum.Quantoàsquestõespolíticaspropriamenteditas,Hume era tido como conservador (um tory, como são chamados osconservadoresatéhojenoReinoUnido),nosentidodequenãoapoiavamaioresmudançasconstitucionais,algoquecomeçavaaserpropostocomforçacadavezmaior.Humepertenceàquelaclassedepensadorescujafilosofiaéextremamenteradicalemmuitoscampos,masqueapoiaumapráticapolíticaquetendemaisaconservardoquea transformar. Issode formanenhumao impediadepensarosocial de modo bem diferente do de outros pensadores de sua época. Porexemplo, em relaçãoàquestãodasvirtudesevícios,numensaiopublicadoem1752, Sobreorefinamentonasartes,HumecriticoutambémMandeville,oalvopreferidodosmoralistasdaépoca.PelomenosnaGrã-Bretanha,haviasetornadoumaespéciederitualobrigatórioquetodoescritorquequisesseexcursionarpeloscampos da política e da moral tivesse de apresentar suas críticas às ideias deHobbeseMandeville.Apresentadaacrítica,podia-seseguirsub-repticiamenteasideias condenadas. Como no caso do ensaio de Hume mencionado acima: aquestão principal do ensaio é se o aumento do luxo faz surgir, ou aumenta, acorrupçãomoral das pessoas e da sociedade, questão que recebe uma respostanegativa.OinteressanteéqueeletragaàtonaideiasdefendidasporMandeville,paraatacá-las,quandoMandeville teriaconcordadoemgeralcomarespostadeHume:não sóo luxonãoproduznenhuma fraqueza, em termosmorais, como,além disso, aumenta a força dos habitantes de um país, que não entra emdecadência pela introdução de refinamentos na arte de viver. Justamente o queMandeville havia exposto na sua Fábula das abelhas e Hume acaboureafirmandoemseuensaio.

Assim, não há ameaça alguma de que o mero aproveitar da vida, secomedido,possaservistocomovicioso.Eosvícioscausadospeladesproporção,pelodesregramento?Essesnãoseriamtãoruins,queexigiriamumaintervençãoqueafetasseatémesmoosprazeresnãoviciosos?Essaéoutraameaça,queHumeafasta mostrando como os vícios também têm o seu lado positivo. Impedir osvíciosdeexistirseriameritóriosetodospudessemserimpedidosdeumasóvez.Não podendo isso acontecer, tentar acabar comum faria aflorar outros (p. ex.,tentarimplementarumavirtudedecontinênciaestritalevariaaaparecercommais

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forçavíciosviolentos).Oquesetem,então,emHume,éumavisãoquenãopodeserchamadademoralista,massimdepragmática,noqueconcerneaopapeldosvícios na vida social. Os vícios existem, e acabam tendo um papel positivo,principalmente no que diz respeito àmelhoria das condições de vida. Pode serumapenaqueassimseja,masassimé.Apenasospapéispositivosdosvíciosnãodevemlevarninguémaafirmarqueovícioévantajosoparaopúblico,comofezMandeville, pois chamar o que é positivo para a sociedade de vicioso nãopassariaentãodeumacontradiçãoemtermos.

5.4.Anovaeconomia:AdamSmithAdamSmith(1723-1790)nasceunaEscóciaeescreveusobrefilosofiamoral

e economia. Sua obra Teoria dos sentimentos morais , publicada em 1759,apresentaváriasdiferençasemrelaçãoaopensamentodeMandevilleedeDavidHume; aliás, deste último Adam Smith era amigo. Essa sua obra específicaapresenta um tom moralista que lembra os princípios estoicos daAntiguidadegreco-romana.Jáaobrapelaqualémaisconhecido, Ariquezadasnações,étidacomomaisdura,menosrelacionadacomasvirtudes.Conciliarosensinamentosdaprimeiraobracomosdasegunda,criandoumúnicopadrão,peloqualateoriamoral e econômica de Adam Smith poderia ser conhecida é tarefa quaseimpossível.Resta, então, explicar brevemente as questões políticas e éticas dasduas obras separadamente, demonstrando ao mesmo tempo a importância dasideiasdeAdamSmithcomorepresentantedoLiberalismoclássico.

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RetratodeAdamSmith.Publicadoem“TheNationalandDomesticHistoryofEngland”,porWilliamAubrey,1890.

Aocontráriodospensadoresvistosanteriormente,AdamSmithnãosobrepõeaforçadaspaixõesàsvirtudes.Aspaixõespodemedevemsercontroladas,oquetorna sua posição distinta das de Hobbes ou de Mandeville.As virtudes quelevam ao autocontrole e ao domínio sobre as paixões, as virtudes das boaspaixõesdevemserestimuladas,easpaixõesquelevamaovício,reprimidas.Maisimportante, existiria nos seres humanos “um amor à virtude, a mais nobre emelhorpaixãodanaturezahumana,oamorporfamaereputação”.Aocontráriodavanglória,oamoràvirtudenãoéumavaidade,mas,sim,abuscadefamaereputaçãomerecidas,quecabemnumaboaalma.Umavidasocialsóépossívelsehouvervirtude,eafaltadestaperturbaenormementeaordemdasociedade.Smithrejeitatantoo LeviatãdeHobbesquantoa ColmeiadeMandeville,emrelaçãoaovícioeàvirtude.Se,comoeleescreveu,olharmosasociedadededeterminadaperspectiva, pode-se até encontrar características nela que a aproximariam dasdescriçõesfeitasporMandeville,masissosedeveàexageradaimportânciaquesedá a essas características, que não explicariam tudo nem estariam em todas aspartes.Asociedadehumanaéuma grande,imensamáquina,cujosmovimentos

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regulareseharmoniososproduzemmilresultadosagradáveis,eessesresultadosseriam promovidos pela virtude, não pela busca desenfreada da satisfação daspaixões. Para que seja assim, a principal qualidade humana seria a da simpatia(mais uma vez, como no caso de Hume, mais bem entendida como sendo aempatia),quepermitiriaquenospuséssemosnolugarumdosoutros,diminuindoassim o chamado amor-próprio e permitindo a existência de uma colaboraçãoentre as pessoas que não visasse apenas e tão somente a um ganho próprio eexclusivo.

Além de teorizar sobre a moral, Adam Smith escreveu um dos livrosfundamentais das ciências econômicas, A riqueza das nações, publicadooriginalmente em 1776. Nessa obra, ele faz um levantamento, descreve ofuncionamentoeapontaofuturodeumnovosistemaeconômico,queestavanumprocesso de consolidação diante de seus olhos. Produzir, acumular e distribuirriquezascontinuavamsendoatividadestãoimportantesquantoantes,mashaveriaagora novos modos de movimentação econômica, que precisavam seresclarecidos, isto é, postos sob uma perspectiva científica. Que havia algo denovono ar em termosde crescimentode riqueza econômica estava evidente jádesde osmeados do séculoXVII.Não foi pormera retórica que Locke entãoescreveuqueum trabalhadorna Inglaterraviviamelhor,commaisconforto,doque um cacique indígena nas Américas. Na visão de Locke e de outros, oaumentovisívelnacirculaçãodemercadoriastinhacomoconsequêncianãosóoaumento das riquezas do país, mas também o acúmulo de bens por parte daspessoas.Mesmoquesegundopadrõesposterioresesseaumentodebenspessoaistivesse sido ínfimo para grande parte da população, pelo menos para a classemédiadasociedadeinglesadosséculosXVIIeXVIIIelefoidegrandemonta.Odebatesobreopapelenfraquecedordoluxonamoralsedeuemambienteeépocaem que o conforto físico de viver estava nitidamente aumentando. Por que ecomoesseenriquecimentogeralocorria,eseiriacontinuar,eatéquando,foramalgumas das preocupações tratadas por Adam Smith em sua obra. Dentre asideias principais expostas em A riqueza das nações está a defesa do livre-comércioentreasnações.Aoinvésdeumdeterminadopaísproduzirtudooquepuder,venderomaispossívelecompraromenospossível,naobraseargumentaqueadivisãodotrabalhoentreasnaçõesnãosótornariatodasmaisprósperas.Omesmo princípio da divisão do trabalho que se via cada vezmais nas fábricasaindanascentes,comcadaqualcumprindoapenasumafunção,edotrabalhodetodos, reunido, dando origem amaismercadorias emais lucro, é aplicado porAdam Smith à conjuntura internacional. Nessa obra encontra-se a famosa

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referência à mão invisível, que faria com que o mercado internacional secomportassedeumaformaracional,apesardasintençõesperfeitamenteegoístasde seus participantes.A mão invisível, termo tão utilizado posteriormente paraexplicarofuncionamentodomercadocomoumtodo, temafunção,naobradeAdam Smith, de substituir justamente o que ele pensava ser a qualidade maisimportante da vida social, a simpatia. Pois como não há simpatias visíveis nomundodomercado,algoteriadesubstituí-lo,casocontráriooqueexistiriaseriauma guerra sem fim. Todavia, a substituição não é completa, a mão invisívelpermanecendo situada em outro nível que a simpatia.A convicção de que omercadodeumaformaoudeoutraseajeitaémaisumaconstataçãodoqueumaproposiçãoteóricadapartedeAdamSmith.Senãohávirtudesnomercado,eseele funciona tão bem, algo deve causar, ou ajudar a causar, essa harmonia. OinteressanteaquiéqueAdamSmithnão tenha tentadocolocaràforçaas ideiasporeleexpostasna Teoriadossentimentosmorais nouniversodasrelaçõesdemercado. Como se a vida privada e a vida do trabalho, compra e venda nãotivessemmuitoemcomum.

5.5.Depoisdatormenta:JohnStuartMilleAlexisdeTocqueville

Osdois pensadores seguintes, ao contrário dos anteriores, escreveram suasobras políticas tendo diante de si regimes democráticos que existiam efuncionavam de fato. O Reino Unido (Inglaterra, Escócia, Gales e Irlanda)passouduranteoséculoXIXporváriasreformaseleitorais,queaospoucosforamtransformando o parlamento, principalmente a Câmara dos Comuns numainstituiçãocadavezmaisparecidacomosparlamentosatuais,easexperiênciasdeTocqueville na França e nos EstadosUnidos deram ao escritor francêsmuitaspossibilidadesparadescobrircomoumademocraciapoderia,ounão, funcionar.Ambos se beneficiariam de seu momento histórico, e de dois acontecimentosrelativamente recentes, a IndependênciadosEstadosUnidosdacoroabritânica,declaradaem1776,eaRevoluçãoFrancesa,de1789emdiante,quederrubouamonarquia francesa por um bom período. Uma vantagem que os outrospensadores aqui apresentados não tiveram. Mas contrabalançada por umadesvantagemséria:opensamentopolíticodeMilleodeTocquevillepertencemauma época de crise, quando os pressupostos liberais estão sendo colocados à

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prova,enãoestãosesaindomuitobem.

RetratodeJohnStuartMill.

O filósofo britânico John Stuart Mill (1806-1873) escreveu extensamentesobretodososassuntostidoscomoimportantes.Algumasdesuasobras,comoaLógica,Sobrealiberdade,Sobreasujeiçãodasmulheres,Consideraçõessobreogovernorepresentativo se tornaramclássicosemsuasáreas.Certamente,Millfoi um dos principais filósofos de sua época, e um dos maiores pensadoresliberaisdetodosostempos.

Mill foiumfilósofoutilitarista.Outilitarismo,escola filosófica fundadaporJeremyBentham (1748-1832), tinha comoprincípiobásicoo fatodequeo serhumano foge da dor e se aproxima do prazer.Dito dessa forma, o utilitarismodeveria ser uma filosofia hedonista, baseada na busca dos prazeres.Mas nadaestariamais longedaverdade:osutilitaristassenotabilizarampelasuacontínualuta por grandes reformas políticas e sociais.Aproximar os seres humanos dafelicidade possível não era uma tarefa que poderia ser realizada apenas com odesfrute dos prazeres da vida. Mudanças profundas, por meio de novaslegislações, seriam necessárias, para que o princípio racional da felicidadeprevalecesse.Comoevitaradoreusufruirprazereséoquebasicamentelevaosseres humano à ação, seria totalmente racional que os ditames éticos e as leis

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seguissem a propensão humana. E completamente irracional que se fizesse ocontrário, privilegiando as dores e sofrimentos. Como não há garantias de queessa busca da felicidade tenha qualquer sucesso, se as condições vigentes nãoauxiliam nessa procura, é necessário que o poder estatal se incline na direçãoutilitarista. E isso, embora difícil, pela resistência oferecida por poderesinteressados na manutenção do status quo, não é impossível. Mais do queinúmerosplanosde reformasemtodososcamposdavidasocial,osutilitaristascomo Bentham tinham algo mais a oferecer: um cálculo para a felicidade.Chamadode cálculo felicífico, esse cálculo permitiria saber quando e quanto aquantidade de felicidade numa dada situação, ou instituição, superava ainfelicidade. Teria permitido, aliás, se fosse possível realizá-lo. Como concluiuposteriormente John StuartMill, discordando de Bentham e de seu pai, JamesMill, também filósofo utilitarista, há mais na felicidade do que quantidade: aqualidade deve ser levada em conta. E a entrada da qualidade na equação asubverte,poisquandosepensaem termosqualitativossobrea razãodeviveraquestãodaescolhaética se impõe,emuito facilmente sepodeconcluirqueemváriosmomentossedeveescolhernãoafelicidade,masodever.Maisainda,umafelicidade tola não é de modo nenhum preferível a um estado de infelicidadeconsciente.Ou,comoafirmouMill,nãohánadadeintrinsecamenteruimemserum“Sócratesinsatisfeito”.

AposturaéticadotipodeutilitarismopropostoporMilléacompanhadaporumaprofundapreocupaçãocomaliberdadehumana.Noprimeirocapítulodeseulivro Sobre a liberdade, ele apresenta um princípio de liberdade que causougranderepercussão:

“[...]oúnicofimpeloqualsepermitequeahumanidade,coletivaou individualmente, interfiracomaliberdadedeaçãodequalquerumdosseusnúmeroséaautoproteção.Queoúnicopropósitopeloqualopoderpodeserexercidodeformajustasobrequalquermembrodeumacomunidadecivilizada,contraavontadedele,éodeprevenirdanosaosoutros”(MILL,2010,p.49).

Aparentemente,esseprincípioéantesumprincípioderestriçãodaliberdade,jáqueMilltratadaliberdadecivilousociale anaturezaelimitesdopoderquepodeser legitimamenteexercidopelasociedadesobreo indivíduo.Mas issosedeveaopapeldaliberdade:emprincípioelaéirrestrita,eoqueprecisa,defato,serpostoàluzéquandoelapodeedeveserrestringida.Obviamente,nodecorrerde sua argumentação Mill demonstra porque a liberdade é importante para oprogressohumano,ecomoapenasquandoelaéracionalmenteexercidasepodeconseguir para todos uma vida melhor. O que quer dizer, mesmo sendo umprincípio,a liberdadenãopodeserexercidasemlimitações.Millexemplificaos

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casosnosquaisoseuprincípioseaplicariatotalmente,equaisnão.Atéquandopodeumpaidefamíliagastarasuarendaembebidas?Nãopodegastarmuito,seessegastoprejudicarobem-estardosseus.Jáumhomemsolteiroesemligaçõespoderia gastar o quanto quisesse, já que o único prejudicado seria elemesmo.ParaMill,aúnicapenaaceitávelparaessesegundocasoseriaareprovaçãomoraldasociedadecontraogastador.

Em Sobrea liberdade,o interessemaioréa liberdade individual,exercidaporpessoasconscientes,adultasebem-educadas.Sãoseusgostos,seusmodosdevida e suas ideias que devem ser protegidos em primeiro lugar. Pois essaspessoas,sendoasmaisautônomasdentretodas,são osaldaterra,éaelasquesedevemasartes,asciências.Nãoquenãoerrem,poisnãosetratadecontraporsimplesmente o conhecimento de poucos contra a ignorância demuitos. Essaspessoas,quepensamporsimesmas,podemexperimentarnovosmodosdevida,podempropornovassoluçõesparaosproblemas,nãopermanecendoligadasaoantigo e superado. E, como propõe Mill na sua obra Considerações sobre ogoverno representativo (1861), é tão importante que se proteja e se dêimportânciaa essaspessoasqueovotodelasdeveriavalermaisdoqueovotoúnicodocomumdosmortais.Aproteçãoàliberdadeimplicaacontinuidadedodesenvolvimentoe,portanto,apossibilidadedeampliarnãosóasliberdades,maso usufruto das benesses trazidas pelo progresso à maioria da população. Aodefenderoquepoderiaparecernasuaépocaproblemáticoeperigoso,asaber,aliberdadedequalquerumfazeroquequiser,desdequenãoprejudiqueosoutros,Mill está defendendo não só asmelhores pessoas das ameaças de perseguição,mastambémabreumapossibilidadeparaqueasoutraspessoasvenhamtambémseautoaperfeiçoar.Essadefesada liberdade temcertocusto, jáquea liberdadeassimgarantidaserácertamentemalutilizadaporalgumaspessoas.Masesseéumpreçoquedeveserpago,poishaveriatambémvantagens,eahumanidadeseriaamaiorganhadora,aopermitirquecadaqualvivacomomelhorlheapetecer.

A liberdadedepensamentoedegostodeveserpraticamente irrestrita,masnãoaliberdadeparaagir,jáque“ninguémdefendequeasaçõespossamsertãolivresquantoasopiniões”.Asações,afinal,têmconsequênciasquepodemestaraocontroleesersujeitasàrepressãodasleis.Tambémaliberdadedeexpressãode opiniões não é irrestrita: o que pode ser exemplificado em uma situação naqualalguémproclame,numarodadeamigos,quetodapropriedadeéumroubo.Quanto a isso, nenhum problema maior. Mas expressar a mesma opinião aosbrados, acompanhado de uma multidão enfurecida, diante da mansão de umapessoaricaébemoutracoisa.Falarempúblicoé,decertaforma,agiroulevarà

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ação.Easmásconsequênciasdaaçãooudafaladeumadeterminadapessoanãosãoprotegidaspeloprincípiodaliberdade,estandoalémdeseuslimites,jáqueasconsequências dos atos devem caber às pessoas que praticam uma ação, e asociedade,porvias legais,podeedevepunirseveramenteaquelesqueporseusatosprejudicamoutraspessoas.

Millestáinteressadoemampliarademocracia,muitoemboraafirmequeháum tempo certo para que ela possa se estabelecer. A questão é manter omomento,oimpulsodemudanças,enãotentartransformartudodeumasóvez.Umademocracianãose fazapenascom leiseleitorais,naverdadeestasdevemacompanharomomentoéticodecadapopulação,poissetrata,acimadetudo,deassumirresponsabilidades,adevotarcorretamente,emescalanacional,edeagiremconjunto,emescalasmenores,quepoderíamoschamardistritais.Parase terumgovernorepresentativonãoseriaocasodequecadapessoaobtivessedireitoaovoto(homensemulheres,Milllutousemprecontraasujeiçãopolíticaesocialdasmulheres),poisissosignificariaquepessoasquenãotêmcondiçõesdecuidardesivotariamsobordensdeoutrem.Tambémnãoéocasodevotosecreto:elestêm de ser dados às claras, o que, em sua visão, ajudaria a impedir quemauscandidatosfossemeleitos.

Dentro de uma perspectiva atual, as ideias deMill parecem mais duras emenosliberaisdoqueeramemsuaépoca.Deve-seatentar,porém,contraquaissituaçõeselesecolocavanasuaépoca.E,maisainda,aofatodeque,apesardetantasrestrições,oobjetivoprincipaleraodeaumentarcadavezmaisoexercíciodemocrático,demodoquetodossebeneficiassem.Umavisãoutilitarista,enfim.Afinal,JohnStuartMillnãofoichamadodeoSantodoUtilitarismoporacaso.

O pensador francês Aléxis de Tocqueville (1805-1859) tem sua famagarantida nos anais da Filosofia Política por duas grandes obras.A primeira, amaisfamosa,temcomotítulo AdemocracianaAmérica(1835)easegunda, OAntigoRegime e aRevolução (1856).Essas duasobras bastarampara tornar aleitura de Tocqueville obrigatória para os que se interessam pela questão dademocraciaedaliberdade.

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RetratodeCharlesAlexisHenriClereldeTocqueville,porTheodoreChasseriau,1850.ChateaudeVersailles,Versailles.

Tocqueville escreveu A democracia na América depois de viajarextensamentepelosEstadosUnidos,emcompanhiadeumamigo;oobjetivodaviagem era estudar as prisões norte-americanas. Nessa obra, Tocquevilleapresenta,emdoisvolumes,umcompletoretratodosEstadosUnidosdaépocadesua visita, concentrando-se no que havia de novo no sistema político e socialnorte-americano. Procura mostrar como um país fundado sobre princípios tãodiferentes daqueles que fundamentavam as constituições dos países europeuspodiafuncionar,efuncionarmuitobem. A democracianaAméricaéumaobraque apresenta um estudo sobre as condições e modos de um novo sistemapolítico, e reflexões sobreopresente eo futurodesse sistema,oqual, segundoTocqueville,estavadestinadoaseespalharpelomundo.

DentreaquiloqueTocquevilleobservounosEstadosUnidosdediferenteoque lhe chamoumais a atenção foi a ausência de uma aristocracia, natural oueletiva.Sendoelepróprioumaristocrata,seriadeseesperarquedefatonotasseaausência de seus contrapartes norte-americanos. Porém, o relevante foi aconclusãoqueTocquevilletiroudisso:anovarepúblicaera,maisqueopaísdaliberdade,opaísdaigualdade.Eranaigualdadeentreoscidadãosqueestavasuaforça.Semdúvida,aspessoaseramlivresnosEstadosUnidos(excetuando-seos

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negros escravizados, evidentemente), livres para mudar de lugar, livres paramudardeemprego,masoquemantinhaopaísunidoeraum tipodeconsensosocial sobre o que era correto e o que era incorreto. Havia uma pressão dasociedade sobre seus membros que, mais do que as leis, fazia com que secomportassem de acordo com o que era esperado deles. Tocqueville viu nanascente democracia a possibilidadedeumnovo tipodegoverno autoritário, odespotismodamaioria,doqualaigualdadeseriaamarcamaior,enoqualtodosseriamobrigadosaseconformaremseguiropadrãogeraldasociedade.Semumaaristocraciaque indicasseoqueeraomelhor,amediocridadeseria rampante,enos próprios Estados Unidos Tocqueville percebeu que nem sequer entre ospolíticoshaviaumaelitedominante.Pelocontrário,parasuasurpresa,notouqueoscidadãosqueconseguiamsedestacarnãoprocuravamumacarreirapolíticaeque isso nem sequer era visto como necessário ou meritório. As pessoas sevoltavamparaseusafazeresparticulares,edeixavamogovernoparaalgunsqueseapresentavamcomocandidatos,massemimaginarqueessescandidatosteriamdeserosmelhorescidadãosdopaís.

Essa obra deTocqueville foi tida, desde a sua publicação, como amelhordescriçãoexistentenãosódeumdeterminadopaísnumdeterminadomomento,mas como a melhor descrição e análise da democracia. Já outra obra deTocqueville, OAntigoRegimeeaRevolução,nãotevetantaacolhida,masnemporissodeixadetergrandeimportância:nelaTocquevilletentamostrarcomooprocesso revolucionário francês dos finais do séculoXVIII nadamais fez queexacerbar tudo aquilo que em termos legais e administrativos o regimemonárquico francês, de caráter absolutista, vinha realizando há tempos. Acentralizaçãoadministrativafrancesafoiobrado AntigoRegime(comopassouaser chamada a monarquia derrubada), o que implicaria, na verdade, que pelomenos em parte a Revolução Francesa não tinha sido algo necessário.Parcialmente, apenas, já que na questão da liberdade e igualdade dos cidadãosquasetudoaindaestavaparaserfeito.AquestãodaigualdadefoiidentificadaporTocquevillecomoagrandeobradaRevoluçãoFrancesa.Mas,eaquirefletindooque ele percebeu nos Estados Unidos, num mundo de iguais, onde estaria aliberdade?OLiberalismoclássiconãoofereciasaídasviáveisparaessaquestão:seriamnecessáriasoutrasformasdepensamentopararespondê-la.

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Créditosdasimagens–JohnMichaelWright–DavidMartin

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–WilliamAubrey–Bettmann/Corbis/Latinstock–TheodoreChasseriau

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Moralidade,SociedadeCivileEstadoKanteHegel

FlamarionCaldeiraRamosIntrodução

6.1.1.Éticaedireito6.1.2.Autonomiaeesclarecimento6.1.3.Afilosofiadahistória:garantiadoprogresso

6.2.1.SociedadecivileEstadoBibliografia

IntroduçãoNosúltimoscapítulosvimosqueumdospontoscentraisdadiscussãosobre

osfundamentosdaaçãopolíticaéaquestãodarelaçãodestaúltimacomaética.Se emAristóteles e Platão a relação entre ética e política era estreita, pois opensamento sobre o bem era inseparável da reflexão sobre o bem comum, amodernidade se inaugura com a separação que Maquiavel estabelece entre asduas. Tratada como uma atividade que tem como objeto questões diferentesdaquelas tratadaspela filosofiamoral,aciênciapolíticaganhaplenaautonomia.Comovimosnoquartocapítulo,boapartedadivergênciaentreHobbes,LockeeRousseauconsistianomodoemquecadaautorconcebiaarelaçãoentreaéticaeapolítica:paraHobbes,porexemplo,asnoçõesdebememal,justoeinjustosão

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inteiramenteconvencionais,inexistentesnaausênciadeumpodersoberano;paraLockeeRousseau, essesvalores já existemnoestadodenatureza eo contratosocial serve em boamedida para assegurá-los.Neste capítulo veremos como arelaçãoentreéticaepolíticaépensadapordoisautores importantíssimosparaodebate político contemporâneo: Kant e Hegel. Enquanto Kant formulou umafilosofiapráticaemqueamoral forneceasbaseseasdiretrizesparaa reflexãosobre os principais temas da política,Hegel, por sua vez, ao criticar a filosofiakantianaeateoriadocontratosocial,procurarápensarapolíticanãomaisapartirda noção de moralidade, ou de valores morais, mas a partir do seu conceitode eticidadeou vidaética, quediz respeito aosvalores e costumescristalizadosem instituições da sociedade a que pertencem.Assim, em sua teoria sobre oEstado,Hegel elaborará uma noção importantíssima para a história da filosofiapolítica: a noção de sociedade civil. Pela primeira vez a sociedade civil serácompreendida como uma instância distinta do Estado, como um momentoanterioraele.Poroutro lado,a importânciada filosofiapolíticadeKant seráainvençãodecertoidealrepublicanocapazdefundamentaroEstadodedireitoeaideiadeumafederaçãodospovosqueconduzisseàpazentreasnações.

Portanto, os nomes de Kant e Hegel não poderiam estar fora dessaapresentação das principais ideias políticas da história. De fato, Kant e Hegelforam profundamente marcados pelo principal evento político da época: aRevoluçãoFrancesa.Amboselaboraramduas filosofiasdaliberdade articuladascada uma delas com uma diferente concepção da racionalidade. São duasfilosofias representativas do chamado iluminismo alemão. O iluminismo (emalemão Aufklärung), também traduzido como ilustração ou esclarecimento,termo que designa um período da história marcado pelo racionalismo e pelosideaisdeprogressoeemancipaçãopolítica.Procurandorefletirsobresuaprópriaatualidade, Kant e Hegel desenvolverão uma abordagem da política emperspectiva histórica.Àquestão política pertencerá agora uma reflexão sobre osentido da história universal. Embora a visão da história de cada um sejadiferente,elaépensadaporamboscomoodesenvolvimentoprogressivodaideiade liberdade. Questões fundamentais da teoria política – como a questão dodireito,daopiniãopública,a independênciadasociedadecivildiantedoEstadoentreoutras– serão levantadas apartir dodebate filosófico entre esses autores.Contudo, dadas a riqueza e a amplitude de suas respectivas filosofias políticas,apresentaremoscadaumadelasseparadamente.

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6.1.Kant:acríticadarazãoeafundamentaçãodamoral

A filosofia de Immanuel Kant (1724-1804) é caracterizada como filosofiacrítica.Issonãosedeveapenasaofatodequeastrêsprincipaisobrasdesseautorsãochamadas trêscríticas–a Críticadarazãopura (1781),a Críticadarazãoprática (1788) e a Críticado juízo (1790).O que constitui o caráter crítico dafilosofiadeKantésuaposturadiantedosobjetostradicionaisdafilosofiaquenãosão mais aceitos antes de uma análise rigorosa das condições que os tornampossíveis:

“Anossaépocaéaépocadacrítica,àqualtudotemquesubmeter-se.A religião,pelasuasantidadeealegislação, pela suamajestade, querem igualmente subtrair-se a ela.Mas então suscitam contra elasjustificadas suspeitas e não podem aspirar ao sincero respeito, que a razão só concede a quem podesustentaroseulivreepúblicoexame”(KANT,1993b,p.5).

Assim,sóquemsesubmeteaoexame públicopodeadquirirrespeito.Nessesentido, Kant expressa o espírito do iluminismo: tudo deve ser esclarecido,trazidoapúblico,abertoàclaridade.Esseprincípio–oprincípiodapublicidade–nãodeixarádeterimportantesconsequênciaspolíticas.Paraexaminá-lo,caberiaantesanalisarosistemafilosóficoquelhedásustentação.

A obra crítica de Kant no domínio da teoria do conhecimento teve umresultadonegativo:afilosofiadarazãopuraservecomouma“disciplinaparalhedeterminar os limites e, em vez de descobrir a verdade, tem apenas o méritosilencioso de impedir os erros” (KANT, 1993b, p. 633).Assim, a Crítica darazãopura procurou estabelecer os limites de todo o conhecimento possível emostrouqueemboraoconhecimentooriundodasciênciasnaturaisrepresenteumefetivoeverdadeiroconhecimentodanatureza,ametafísica,queeraaciênciadosobjetos que estariam para além da experiência, seria impossível e deveria serrejeitada.Odestinodarazãohumanaéseratormentadaporquestõesqueelanãopode resolver, pois se vale de princípios que ultrapassam toda e qualquerexperiência,caindoassimemobscuridadesecontradições.Aessasquestõesumapretensa ciência chamada metafísica tentava dar respostas. Pela importância deseuobjeto,queincluiaquestãodaexistênciadeDeusedaimortalidadedaalma,mereceuotítulode“Rainhadasciências”.Mas,depoisdeumreinadodespóticosob a hegemonia dos dogmáticos, seu domínio foi abalado pelo ataque doscéticos. O cético David Hume (1711-1776) despertou Kant de seu “sonodogmático”aomostrarqueconceitoscomoode“causalidade”queestavamnabasedametafísicanãoexpressavamumarelação necessáriaentreascoisas,mas

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eram apenas frutos do hábito associativo da mente humana. Com isso, Humerejeitou a metafísica e colocou em xeque todo conhecimento que tivesse apretensão de ser universalmente necessário. Todavia, para Kant, não se podeafetar indiferença perante questões metafísicas “cujo objeto não pode serindiferenteà razãohumana” (KANT,1993b,p.5).O filósofoprocurará,dessaforma,estabeleceroslimitesdousoválidodarazão.

RetratodeImmanuelKant.EscolaFrancesa,séculoXVIII.BibliotecaNacionaldaFrança,Paris.

A crítica kantiana da razão salva o conhecimento do ataque cético. Oconhecimentodasciências (comoa físicaeamatemática)épossívelporqueaodadodaexperiência,àmatériaquedáconteúdoaoconhecimento,seacrescentauma forma que lhe confere necessidade e universalidade: esse é o elemento apriori, anterior à experiência, constituído pelas formas puras de nossasensibilidade e pelas categorias do entendimento.É esse elemento apriori queconfere certeza ao conhecimento, pois a forma, sendo imposta ao objeto pelosujeito,deveráserreencontradaemtodososobjetosportodoequalquersujeitopossível.Essesujeito,semprepressupostoemqualquerrelaçãodeconhecimento,éo sujeitotranscendental,aquelequeécondiçãodoconhecimentoobjetivo,poisumobjeto só pode ser dado a um sujeito e esse sujeito aplica necessariamentesuasformasaoobjeto.

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Segundo Kant, todo conhecimento tem início na experiência, pois eladesperta e põe em ação nossa faculdade de conhecer. Seu pensamento está,portanto, de acordo inicialmente com a concepção empirista e com a ciênciamodernaqueéfundamentalmenteexperimental.Masse“todooconhecimentoseinicia com a experiência, isso não prova que todo ele derive da experiência”(KANT, 1993b , p. 36). Isso significa que cronologicamente nenhumconhecimentoantecedeaexperiência,mas“aprópriaexperiênciaéumaformadeconhecimentoqueexigeoconcursodoentendimento,cujaregradevopressuporemmim antes de me serem dados os objetos” (KANT, 1993b, p. 20). Dessaforma, Kant pretende superar a oposição entre racionalismo e empirismo,demonstrando que o processo do conhecimento inclui necessariamente umelemento aposteriori – que é aquele fornecidopelos sentidos e que constitui amatériadoconhecimento,eumoutroelemento apriori,queéa formadadaaoobjetopelosujeitoanteriormenteàexperiência.Aoconhecerumobjeto,osujeitodo conhecimento já o filtra incluindo nele primeiro as “formas puras dasensibilidade”,oespaçoeotempo,eentãoas“categoriasdoentendimento”,osconceitos puros (anteriores à experiência e não dela derivados), como os deunidade e pluralidade, causa e efeito, substância e acidente etc. Assim, oconhecimentoépossívelquandotemosaligaçãodeumdadodossentidosaumconceitodoentendimento.Nãoépossível,poroutrolado,umconhecimentoqueprescinda do dado da sensibilidade ou que não esteja submetido às formas doentendimento.

“Sem a sensibilidade, nenhum objeto nos seria dado; sem o entendimento, nenhum seria pensado.Pensamentossemconteúdosãovazios;intuiçõessemconceitossãocegas”(KANT,1993b,p.89).

Por conseguinte, o conhecimento científico é possível porque em sua baseestáumaligação sintéticaentreumelemento apriorieodadodaexperiência.Jáametafísicanãoépossível,poisseusconceitosnãoseaplicamàexperiência,masprocuram aquilo que está para além de toda experiência. Pormeio da razão, ametafísicaprocuraconhecero incondicionado,aquiloquenãoestásubmetidoàscondições da experiência. Sua matéria são as ideias, conceitos aos quais nãocorrespondenenhumaintuição.Assim,a ideiade mundoconsideradocomoumtodo é uma ideia da razão; da mesma forma, a ideia de alma, como umasubstância existente em si mesma; por fim, a ideia de Deus, o incondicionadoabsoluto,condiçãodetodasascondições,causadascausas,éoIdealsupremodaRazão. Mas dessas ideias não há nenhuma experiência e, portanto, nenhumapossibilidadedeprovar sua existência.Por essa razão,dizKant, “tive, pois, de

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suprimirosaberparaencontrarlugarparaacrença”(KANT,1993b ,p.27).Portanto,aohomemsóédadoconheceromundotalcomoseapresentapara

suaestruturacognitiva:osfenômenossãoascoisastaiscomoasconhecemos.Oque as coisas são em si mesmas permanece algo desconhecido. Não podemosconhecer aquilo que não nos é dado em nenhuma experiência, como Deus, aAlma,oMundocomototalidadeoumesmoaliberdadequenãopodeserprovadapelaexperiência.Maspodemos pensarnessas ideiasefazerusopráticodelas.Énouso práticodarazãoqueKantirásalvaguardarumresultado positivoparasuacrítica. Kant chama de prático “tudo aquilo que é possível pela liberdade”(KANT,1993b ,p.636).ParafundarousopráticodarazãoafilosofiadeKantdeverádemonstrarapossibilidadedeumuso livreda razão,não submetidoaosimpulsos da sensibilidade, isto é, que seja capaz de determinar a priori osprincípiosdaação.

Kantdedicaráumasegundacrítica,a Críticadarazãoprática (1788), pararesolver o problemamoral. Essa obra seria a base do seu sistema de filosofiamoral que deveria incluir a Metafísica dos costumes (1797). Mas, além dasegundacrítica,Kantpublicououtraobraquetinhacomoobjetivobuscarefixaroprincípiosupremodamoralidade.Estaobraéa Fundamentaçãodametafísicados costumes (1785). Por apresentar o princípio fundamental da moralidade apartirdaanálisedoconhecimentomoralcomumessaobraservecomointroduçãoà suaconcepçãode liberdade.Sãoessas as trêsobras emqueKantdelineiaosprincípiosdesuafilosofiamoralcomoumtodo,queinclui,comoveremos,aéticae a política, a doutrina da virtude e a doutrina do direito. É a elas que nosremeteremosagoraparaapresentarsuafilosofiaprática.

Segundo a concepção comum de liberdade, ser livre seria fazer o que sequer, sem seguir nenhuma regra ou princípio preestabelecido. A concepçãokantiana aponta no sentido contrário da concepção do senso comum: liberdadenão é agir sem nenhuma regra,mas ser capaz de seguir uma regra livrementeimposta pela própria razão. Para isso ele a funda na noção de autonomia davontade.Comissoelemostraqueavontadequeobedeceàleimoralnãodeixa,contudo, de ser livre, pois obedece apenas àquela lei que elamesma se impôs.Paraestabelecer isso,Kant temdemostrarquea razãopodedar-sea simesmaleisindependentementedasinclinaçõesexternas(vindasdasensibilidade),eque,jáqueessasleissãoracionais,éosujeitoopróprioautordaleimoral.Épossível,dessa forma, aomenospensar a liberdadee fundar assimumamoral autônomaquenãosedeixadeterminarsenãopor leis racionais.Se forassim,porquesuaética toma uma forma tãomarcantemente imperativa, com conceitos tais como

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dever,obrigaçãoerespeito?

Oiluminismoalemãoprivilegiouareflexãosobrealiberdade. Aliberdade,alegoriadeArnoldBöcklin,séculoXIX.

Na CríticadaRazãoPrática,Kantquermostrarquearazãopurapodeserprática, e daí conferir realidade objetiva à ideia da liberdade.A liberdade é acondição de possibilidade damoral, sua razão de ser ( ratio essendi): “se nãoexistisseliberdadealguma,aleimoralnãoseriademodoalgum encontrávelemnós”(KANT,2008,p.6).Issosedeveaofatodequealeimoralimplica,desdeoinício,queavontadehumanasejacausa livre,poisodeverexigequenósnosdeterminemos por um motivo puramente racional, desembaraçado de todomotivodasensibilidade,oquevemaseraprópriadefiniçãode liberdade:“aliberdade,nosentidopráticoéaindependênciadoarbítriofrenteàcoaçãodosimpulsosdasensibilidade”(KANT,1993b).1Poroutrolado,ésomentepelaleimoral que nos tornamos conscientes da liberdade; ela é então a razão deconhecimento( ratiocognoscendi)daliberdade.

Kantreconhecequenanaturezatudoacontecesegundoleisnecessárias.Masum ser racional pode agir segundo a representação de leis, isto é, segundoprincípios.ÉnessesentidoqueKantdizquesóohomemtemuma vontade:elaé

“[...] uma faculdade de se determinar a simesma a agirem conformidade com a representação decertasleis.Eumatalfaculdadesópodeserencontradaemseresracionais”(KANT,2009,p.237).

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Que a razão possa bastar a si mesma para determinar a vontade ficaráprovadopeloconceitodeliberdade.

Oquedeterminaavontadesãoprincípiospráticos,quepodemsersubjetivosou objetivos. Quando são subjetivos são máximas e quando são princípiosobjetivos são leis práticas válidas para todo ser racional. Só podem existir leispráticas se a razãopuder conter emsi um fundamentoprático suficientepara adeterminação da vontade.Os princípios práticos que pressupõemumobjeto dafaculdade de desejar são empíricos e não podem fornecer nenhuma lei prática.Umprincípioquesefundasomentenacondiçãosubjetivadareceptividadeaumprazer ou a um desprazer pode servir apenas demáxima,mas não de lei. PoressasrazõesKantirádescartarafelicidadecomofinalidadeúltimadaaçãomoral.Assim,osprincípiospráticosmateriais,queseclassificamousoboprincípiodoamor-próprio ou sob o princípio da felicidade, colocam o princípio dedeterminação da vontade naquilo que Kant chama de faculdade de desejarinferior em oposição à faculdade de desejar superior. Só pode haver umafaculdade de desejar superior se existirem leis puramente formais dedeterminação,istoé,quandoarazãosedeterminaasimesma.

Um ser racional só pode conceber suasmáximas como leis gerais práticasquandoastomacomoprincípiosquedeterminamavontadesegundoaforma,enãosegundoamatéria.Asimplesformada leienquantoprincípiodeterminanteda vontade não é um fenômeno nem nenhum objeto dos sentidos.Assim, dizKant,

“[...]senenhumoutrofundamentodeterminantedavontadelhepodeservirdelei,anãoserapenasessaforma legislativa universal, uma tal vontade deve conceber-se como totalmente independente da leinatural dos fenômenos nas suas relações recíprocas, a saber, da lei da causalidade. Uma talindependência, porém, chama-seliberdade no sentidomais estrito, isto é, transcendental. Logo umavontade, à qual unicamente a simples forma legislativa damáximapode servir de lei, é umavontadelivre”(KANT,2008,p.48).

Arazãoépráticaquandorealizaoraciocínioqueestabeleceumaleiparaavontade. Essa lei é o princípio ou proposição fundamental da ética kantiana, ecabe agora saber qual é o seu conteúdo. O imperativo categórico é a lei queresultadesseprocessodepensamentoeamatériadessaleiconsistenasuaprópriaforma, que não é senão sua própria legalidade. Esta, por sua vez, consiste emvalerparatodos,portanto,nasuauniversalidadequeé,assim,oconteúdodalei.Essaleiproclama:“Agedetalmodoqueamáximadetuavontadepossasemprevaler ao mesmo tempo como princípio de uma legislação universal” (KANT,2008,p.51).

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O imperativo categórico é necessário devido ao conflito que existe entre arazãoeosprincípiosdedeterminaçãosensíveis.Arazãopráticaésomenteapura(que é livre) e não a razão empiricamente limitada. A razão limitada pelaexperiênciasensívelforneceregrasdedestrezaouconselhosdeprudência,istoé,imperativos hipotéticos que representam a necessidade de uma ação possívelcomoummeiodealcançardeterminadofim.Abuscapelafelicidade,asregrasdeprudência,asprescriçõesmédicassãoimperativosquepressupõemocálculodarelação entre meios e fins. Eles dependem da realização, não são bons por simesmos. Quando um assassino recorre a um veneno para matar sem serpercebido,elesevaledeumimperativohipotético.Jáumimperativocategóricoébom por si mesmo porque pode ser universalizado, independente dascircunstâncias ou de sua realização.Assim, para Kant, uma boa vontade “é afaculdadede escolher sóaquilo que a razão, independentemente da inclinação,reconhece comopraticamente necessário, isto é, comobom” (KANT, 2009, p.183). É porque somos seres racionais finitos que devemos obedecer ao“mandamento da razão”, ao imperativo, pois não possuímos uma vontadeabsolutamente boa, mas, sim, uma vontade que nem sempre obedece aosprincípios racionais.Uma ação praticada por dever tem o seu valormoral nãopelo propósitoquecomelasequeratingir,nemdependedarealidadedoobjetodaação,massomentedo princípiodoquerersegundooqualaaçãofoipraticada.Odeveréentão“anecessidadedeumaaçãoporrespeitoàlei”(KANT,2009 ,p.127).

Daí, portanto, a necessidade das noções de dever e obrigação na éticakantiana:

“Devereobrigaçãosãoasúnicasdenominaçõesquetemosdedarànossarelaçãocomaleimoral.Defato,somosmembroslegislantesdeumreinodamoralpossívelpelaliberdade,representadopelarazãoprática para o nosso respeito, mas ao mesmo tempo seus súditos, não o seu soberano, e odesconhecimento de nossa posição inferior como criaturas, bem como a negação, por presunção, derespeitoàleisanta,éjá,segundooespírito,umadeserçãodela,mesmoquesualetrafosseobservada”(KANT,2008,p.133).

Essa submissão à lei moral não retira do homem sua dignidade, pelocontrário,enquantoessasubmissãotemaformadaautonomiaelaéo fundamentodadignidadedanaturezahumanaede todoserracional. Issoporquesóoserracionalpodeparticiparnalegislaçãouniversal,sendoassim

“[...] apto a sermembro de um possível reino dos fins, para o que ele já estava destinado pela suapróprianaturezacomofimemsie,exatamenteporisso,comolegisladornoreinodosfins,comolivrearespeitodetodasas leisdanatureza,obedecendosomenteàquelasqueelemesmosedáesegundoasquais as suasmáximas podem pertencer a uma legislação universal (à qual ele aomesmo tempo sesubmete)”(KANT,2009,p.269).

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VemosentãoqueoprincípiomáximodafilosofiapráticadeKantsupõedecerta forma a ideia de uma comunidade ética que constitui a totalidade de umreino dos fins – é a ela que se refere o procedimento de universalização dasmáximasqueestánabasedoimperativocategórico.Tendoemvistaessecaráteruniversalista, já é possível vislumbrar as consequências políticas da filosofiamoralkantiana.Emseusescritos sobredireito,política,históriae religião,Kantprocuroudarnovoscontornosaseuconceitofundamentaldeautonomia.

6.1.1.ÉticaedireitoAntesdevercomoKantampliaseuconceitodeautonomiaparaasesferasda

política e da história, valeria a pena observar como em sua Metafísica doscostumes o autor estabelece a distinção entre a ética e o direito, ou diferencia,segundosua terminologia, aquestãoda virtude da questãodo direito.Veremosqueacadaumadessasáreascorrespondeumadiferenteformulaçãodoimperativocategórico e compreenderemos porque sua reflexão sobre a questão política éinseparáveldesuafilosofiamoral.

Deacordocomadistinçãoentreateoriaeaprática,Kantdistingueasleisdanatureza (que correspondem à filosofia teórica) das leis da liberdade (quecorrespondem à filosofia prática). Na Introdução geral da Metafísica doscostumes,dizKant:

“Essasleisdaliberdadesãochamadasmorais,paradistingui-lasdasleisdanatureza.Namedidaemqueelasdizemrespeitoapenasàsaçõesexterioresesuaconformidadealeis,chamam-sejurídicas;mas,seexigemtambémqueessasmesmasdevamserosprincípiosdedeterminaçãodasações,elassãoéticas,ediz-se:oacordocomasprimeiraséalegalidadedasações,oacordocomassegundas,amoralidadedasações”(KANT,1902-1923,v.6,p.214).

Portanto, a constituição da filosofia prática em Kant deve se dar em doiscaminhos:umodaliberdadeexterna,quetemavercomalimitaçãorecíprocadoarbítrio,paraquealiberdadedecadaumpossacoexistircomaliberdadedetodosos outros segundo uma lei universal (sendo essa a própria formulação doimperativocategóricododireito–cf.KANT,1902-1923,v.6,p.230);ooutroodaliberdadeinterna,enquantocapacidadequetemoindivíduodedarasimesmofinspropostosporsuaprópriarazão.Aduplafacedaliberdade(internaeexterna)seapresentacomooprincípiodadistinçãoentreéticaedireito.

A partir disso, temos então a divisão fundamental da Metafísica doscostumes. O direito trata da justiça e a ética da virtude. O direito trata dacoexistênciada liberdadedecadaumcomade todososoutros;aética tratadaliberdade que cada um dá a si mesmo.A forma tematizada pela doutrina do

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direito é a da limitação recíproca das liberdades; a matéria da ética é o fimpropostopelarazão,queéaomesmotempoumdever.Seráentãonodomíniododireito que trata da questão do justo queKant formulará sua doutrina política.Nãosurpreenderá,portanto,quesuateoriadoEstadoconsistiránaformulaçãodeumaconcepçãonormativadochamado Estadodedireito:oEstadoquetemcomofunção principal e específica a instituição de um estado jurídico, ou seja, a“instituiçãoeamanutençãodeumordenamento jurídicocomocondiçãoparaacoexistênciadasliberdades”(BOBBIO,1997,p.135).

As leis jurídicas sãocoercitivas, isto é, elasobrigama agir dedeterminadamaneira para garantir a coexistência das liberdades. Essa coerção poderia sercontrária à ideia de autonomia se nãohouvesse em seu fundamentouma razãopráticaatuante.Essa,porém,seráainterpretaçãodeBobbio,paraquemavontadenoâmbitojurídicoéheterônoma,poisnãoobedeceàleiquedeuasimesma,masa um imperativo hipotético (BOBBIO, 1997, p. 63).A separação estrita entreéticaedireito(oumoraledireito,nostermosdeBobbio)fazcomqueodireitoemKant esteja determinado por uma concepção apenas negativa da liberdade.Nodireito parecia haver uma prioridade de relações meramente externas entre asliberdades.Masnãoéoimperativocategóricoquefundamentaodireitosegundouma lei universal da liberdade?A autonomia não estaria também operando noplanododireitojáqueeleestáfundadonoimperativocategórico?OequívocodeBobbio seria o de tomar como correlatos os pares moral/direito emoralidade/legalidade.ComoassinalaRicardoTerra(1995,p.77),“umaleituraqueosidentificasselevariaaumaseparaçãoentredireitoeéticasemapontarparaos elementos comuns”.2 Vê-se assim que amoral, em sentido amplo, englobatantoaéticaquantoodireitoeque,poressarazão,nãosedevetomaravontadejurídicacomoheterônoma.Apartirdisso,aoesclarecer,naIntroduçãoà Doutrinadavirtude, aespecificidadedaética,Kant semprese remeteaoparética/direitoparadeterminá-losapartirdesuas respectivasdiferenças, semcriar,porém,umabismo entre ambos: “como divisão da doutrina dos costumes (da moral), odireitoseopõeàética(doutrinadavirtude),enãoàmoral,queémaisamplaqueesta”(TERRA,1995,p.77).

Éaprópriarazãoquefornecealeiaqualelamesmasesubmete.Kantsupõeentãoumavontadegeralquecoordenaasvontadesparticularesnaesferajurídicaquesedásobleisuniversaisdaliberdade,pois todosparticipamdalegislaçãoàqualsesubmetem.Naprática,issoacarretaaexigênciadeparticipaçãodetodosnalegislação,oqueremeteaRousseaueàideiadesoberaniapopular(TERRA,

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1995,p.91).ÉnessecontextoqueKantrecuperaráatradiçãodo direitonaturaleirá seguir o modelo contratualista para pensar o Estado. No fundamento dalegislação exterior deverá haver um direito natural que lhe dê autoridade. Odireitonaturalnãoéestatutário,masé“cognoscível aprioripelarazãodetodososhomens”(KANT,1902-1923,v.6,p.296).Odireitonaturalservirádepadrãoideal para o direito positivo. Isso significa que a ideia de uma constituição deacordocomodireitonaturaldoshomens, istoé,queaquelesqueobedecemàsleis devam reunidos legislar, deve estar na base de todas as formas deEstado.ComissosetemumcritérioparaaformaçãodoEstado,paraosmelhoramentosda constituição e para a elaboração das leis positivas: “as leis que o povo nãopodepromulgarparasimesmo,olegisladornãopodeproclamá-lasparaopovo”(TERRA,1995,p.94).IssoaproximariaKantdorepublicanismo.

Com o conceito de direito natural, Kant pode elaborar sua concepção doEstadodeacordocomoesquemadateoriadocontratosocial.Esseesquemadeveser compreendido como uma ideia da razão e não como uma hipótese sobre aorigemfactualdoEstado.Ohomempassadoestadodenaturezaparaoestadocivilmedianteumcontratopara realizara ideiade justiça,ausentenoestadodenatureza.Oestadodenaturezaresultarianumestadodeguerrapelaausênciadeumaautoridadepúblicaouumtribunalquedetermineoquecompeteacadaum.Daíaexigênciapuramenteracionaldepassarparaoestadocivil:

“Dodireitoprivadonoestadodenaturezaprovémopostuladododireitopúblico:tudeves,emvirtudedarelaçãodeumacoexistênciainevitávelcomtodososoutros,sairdesteestadoparaentrarnoestadojurídico,ouseja,naqueledejustiçadistributiva”(KANT,1902-1923,v.6,p.307).

AinstituiçãodoEstadotambéménecessáriaparaagarantiadapropriedadeprivada.ParaKant,somentenumestadojurídico,numestadocivilemquehajaumpoderpúblico,pode-seteralgoexteriorcomoseu:

“[...]umapossenaesperaepreparaçãodeumtalestado,quesópodeserfundadonumaleidavontadecomum,queassimestádeacordocomapossibilidadedaúltima,éumaposseprovisóriaejurídica,emcompensaçãoaquelaqueseencontranumtalestadoseriaumaposseperemptória”(KANT,1902-1923,v.6,p.257).

Danoçãododireitonaturalqueestánabasedesua teoriapolíticaKant irádeduzir seus dois principais postulados: a constituição civil de todo e qualquerEstadodeveserrepublicanaearelaçãodosEstadosentresi,noâmbitodeumafederação cosmopolita, deve ser pacifista. As obrigações jurídicas devemasseguraraliberdadecivilnoplanointernoeapazmundialnoplanoexterno.Aordemplenamentejustaéaquelaemqueacoerçãonãoseexercemaisnaformadadominação,masnadaautonomiaracional.Comisso,Kantformulaumateoria

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do Estado baseada no princípio da autonomia. Isso está de acordo com seuprojetosegundooqual

“[...]averdadeirapolíticanãopodedarnenhumpassosemteranteshomenageadoamorale,emboraapolíticasejaemsimesmaumaartedifícil,auniãodelacomamoralnãoénenhumaarte,poisestacortaonóqueaquelanãoconseguedesatar,quandoentreambassurgemdiscrepâncias”(KANT,1995,p.163-164).

Comoesseidealpolíticoseefetivanapráticaéoqueveremosaseguir.

6.1.2.AutonomiaeesclarecimentoVimosqueaautonomiasedáquandoavontadenãosesubmeteanenhuma

regra senão àquela que ela mesma estabelece e acata como norma geral. Oexercício dessa autonomia, porém, não é tão simples, pois supõe a “decisão ecoragemdes ervir-sedesimesmosemadireçãodeoutrem”(KANT,2005,p.63). Portanto, o que se exige para a autonomia é a liberdade e, sobretudo, aliberdadedepensamento.Estaúltimasedefinecomoacapacidadedepensarporsimesmo, isto é, procurar em sua própria razão a definitiva pedra de toque daverdade. Toda a época de Kant clamava por essa emancipação da razãoconsideradacomoumapassagemdastrevasdoobscurantismoparaaluznaturaldoconhecimento.OséculoXVIIIéchamado SéculodasLuzesemreferênciaaesse ideal: daí suas diversas versões – Lumières na França, Enlightment naInglaterra e Aufklärung na Alemanha. A expressão Aufklärung é traduzidacomumente por “esclarecimento”, mas deve-se observar que mais do que umconceito filosóficoordinário,aexpressãose referea todaaconsciênciadeumaépoca. Dentro desse contexto, Kant irá responder à pergunta “o que é oesclarecimento?” (num texto de 1784 que tem esse título) por meio de umareflexãosobresuaprópriaépoca.

Kantdefineoesclarecimentocomooprocessode“saídadohomemdesuamenoridadedaqualelepróprioéculpado”,poisamenoridadeéa“incapacidadede fazer uso de seu entendimento sem a direção de outro indivíduo” (KANT,2005, p. 63). Assim, já que a menoridade não se encontra numa falta deconhecimentos, mas na preguiça e na covardia para pensar por si mesmo, ohomemdeve ser consideradooculpadopor esseestadoepode sairdelepor simesmo.Aautonomiaseráentãoachaveparaarealizaçãodoesclarecimento.Estaautonomia superaaheteronomia, istoé, a submissãoaumpoder tutelar alheio.Porexemplo,quandoumlivrotomaolugardenossoentendimento;quandoumdiretorespiritualfazasvezesdaconsciência;equandoummédicodecidesobre

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nossopróprioregime.Comoamenoridade,pormeiodapreguiçaedacovardia,se torna quase uma segunda natureza, e chega-semesmo a criar amor a ela, édifícil para um homem particular desvencilhar-se dela. Mas é perfeitamentepossível que um público se esclareça já que se encontrarão sempre algunsindivíduoscapazesdepensamentopróprio

“[...]quedepoisde teremsacudidodesimesmoso jugodamenoridade,espalharãoemredordesioespírito de uma avaliação racional do próprio valor e da vocação de cada homem em pensar por simesmo”(KANT,2005,p.65).

Esse esclarecimento será mesmo inevitável se esse indivíduo, que seesclareceu, puder fazer um uso público de sua razão, se tiver a liberdade depensamentonecessáriaparaespalharogermedoesclarecimento.Éaquique seinsereacélebredistinçãokantianaentreusopúblicoeusoprivadodarazão.Ummesmo indivíduo tem, por um lado, o dever de funcionar como parte daengrenagem,deobedecernoexercíciodeuma funçãoprivada (comosacerdoteousoldado,porexemplo)e,poroutro,temodireitodefazerusodesuaprópriarazãoedefalaremseupróprionome,quandoforadoserviço:

“Entendo, contudo, sob o nome de uso público de sua própria razão aquele que qualquer homem,enquantosábio,fazdeladiantedograndepúblicodomundoletrado.Denominousoprivadoaquelequeosábiopodefazerdesuarazãoemumcertocargopúblicooufunçãoaeleconfiado”(KANT,2005,p.66).

Nãoépostaemquestão,portanto,a obediênciacivil,poisoesclarecimentosedáemoutroterritório:noâmbitododebatepúblicodeideias.

Dessaforma,liberdadedepensamentocoincidecomliberdadeparapublicar,pois um pensamento que não fosse comunicado não serviria para oesclarecimento. Como nota Habermas: “no Iluminismo, pensar por si mesmocoincidecompensaremvozalta,assimcomoousodarazãocoincidecomsuautilizaçãopública”(HABERMAS,1984,p.128).Retirardoshomensaliberdadedepublicarsuasideiasseriaomesmoquelhesimpedirdepensar.Poroutrolado,uma vez concedida a liberdade de pensamento, todas as restrições à liberdadecivilnãoapenasnãoimpedirãooadventodoesclarecimentocomoatémesmoofavorecerão. Há algumas restrições que são propícias ao desenvolvimento doespírito.Senãohouvessenenhumarestriçãoàliberdadecivil,nãosedariaolentoprocessodoesclarecimento:

“Umgraumaiorde liberdadecivilparecevantajosoparaa liberdadedeespíritodopovoenoentantoestabelece para ela limites intransponíveis; um grau menor daquela dá a esse espaço o ensejo deexpandir-setantoquantopossa”(KANT,2005,p.71).

Somenteumpúblico esclarecidopoderáterliberdadedeagir;antes,deveria

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haverumaverdadeira reformadamaneiradepensar,nãouma revoluçãoqueselimitaria a substituir preconceitos antigos por novos. Essa será uma das razõesparaareprovaçãokantianadaRevoluçãoFrancesa.Acondiçãodepossibilidadedoesclarecimentoserá“amaisinofensivaentretudoaquiloquesepossachamarliberdade,asaber:adefazerum usopúblicodesuarazãoemtodasasquestões”(KANT,2005,p.65).

Mas como assegurar um uso público da razão? O esclarecimento ouiluminismonãodevesercompreendidoapenascomoumaobrigaçãoprescritaaosindivíduos,mascomoproblemapolítico.Aquestãoquesepõeagoraéadesabercomoousoda razãopode tomara formapúblicaque lheénecessária,comoaaudácia de saber pode se exercer em pleno dia (FOUCAULT, 1994, p. 567).Paragarantiraqueladistinção,aquelavozdecomandoquediz“raciocinai,tantoquantoquiserdes,esobreoquequiserdes, masobedecei!”, seria necessário umpríncipequesendoelemesmoilustrado“nãotemmedodesombraseaomesmotempo tem à mão um numeroso e bem disciplinado exército para garantir atranquilidadepública”(KANT,2005,p.71).Assim,aoresponderàpergunta“ oque é o esclarecimento?”Kant indica qual o processo político que garante suarealização: eledependedo soberano,no casoFrederico II, ogrande,odéspotaesclarecidoque“pelaprimeiravezlibertouogênerohumanodamenoridade,pelomenos por parte do governo, e deu a cada homem a liberdade de utilizar suaprópriarazãoemtodasasquestõesdaconsciênciamoral”(KANT,2005 ,p.70).Dessa forma, é o despotismo ilustrado a condição do esclarecimento. Esseaparenteparadoxo,queconsisteno fatodeoexercíciopúblicoe livreda razãodependerdeumdéspota,écaracterizadoporFoucaultcomo

“[...]ocontratododespotismoracionalcomalivrerazão:ousopúblicoelivredarazãoautônomaseráamelhor garantia da obediência, sob a condição entretanto, que o princípio político que deve serobedecidosejaelemesmoconformeàrazãouniversal”(FOUCAULT,1994,p.567).

Para explicar esse paradoxo é necessário mais uma vez ressaltar que aliberdadedepensamentoouautonomianãoseidentificacomo livrepensamento,o uso sem lei da razão ou o princípio de não reconhecermais nenhum dever.Umavezquesemnenhumaleinada,nemmesmoomaiorabsurdo,podeexercer-se por muito tempo, a razão que não aceita se submeter à lei que ela dá a simesma teriaque acabar se curvandoao jugodas leis queumoutro lhedá.Ouseja,umarazãoaindamenor,quenãosesubmeteuàcrítica,nãopodeser livre.Pelocontrário,somenteumarazãoqueprocedecriticamenteequepode,assim,estabelecer seus próprios limites e deveres é madura o suficiente para seesclarecer,pois,comodizoautorna Críticadarazãopura,

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“[...]semestacríticaarazãomantém-se,decertomodo,noestadodenaturezaenãopodefazervalerougarantirassuasafirmaçõesepretensõesanãoserpelaguerra”(KANT,1993b,p.604).

Portanto,aconsequêncianecessáriadenãosereconhecernarazãohumanauniversalojuizparaseusprópriosconflitosseriaaperdadefinitivadaliberdadedepensar.Issoporque,umavezquesóhádesordemnodomíniodopensamento,aautoridadepoderá intervira fimdequeosprópriosassuntoscivisnãoentrememtaldesordemealiberdadedepensamentoficariasubmetidaaosregulamentosdo país. Assim, somente a orientação crítica pode colocar a razão rumo àrealizaçãodasuaprópriatarefa:oprogressocontínuodaespéciehumana.

6.1.3.Afilosofiadahistória:garantiadoprogressoSegundo Kant, a determinação original da natureza humana consiste no

avanço ilimitado no caminho do esclarecimento. Dessa forma, é necessárioencontrar na história um curso regular que evidencie um desenvolvimentocontinuamente progressivo, embora lento, das disposições originais da espéciehumana. O descobrimento desse fio condutor daria um sentido para o devirhistórico.Mascomoahistóriahumanaéahistóriadesereslivresquenãoagemapenasinstintivamentenemcomorazoáveiscidadãosdomundo,

“[...] o filósofo não pode pressupor nos homens e seus jogos, tomados em seu conjunto, nenhumpropósito racionalpróprio, ele não tem outra saída senão tentar descobrir, neste curso absurdo dascoisas humanas, umpropósito da natureza que possibilite, todavia, uma história segundo umdeterminadoplanodanaturezaparacriaturasqueprocedemsemumplanopróprio”(KANT,1986,p.10).

Emprimeirolugar,Kantcolocaqueasdisposiçõesnaturaisdeumacriaturaestãodestinadasaumdia sedesenvolvercompletamenteeconformeaumfim.Masnohomem,enquantoúnicoserracional,asdisposiçõesvoltadasparaousodarazãodevemdesenvolver-secompletamentenaespécieenãonoindivíduo.Arazãonecessitade

“[...] uma série talvez indefinida de gerações que transmitam umas às outras as suas luzes parafinalmente conduzir, em nossa espécie, o germe da natureza àquele grau de desenvolvimento que écompletamenteadequadoaoseupropósito”(KANT,1986,p.10).

O objetivo dos esforços humanos deve ser atingir esse momento, casocontrário, as disposições naturais seriam vistas como inúteis e sem finalidade.Alémdisso,segundoKant,anaturezaquisqueohomemtirasseinteiramentedesimesmotudooquepodetornarsuavidaagradável.Aodotarohomemderazão,elatambémfezquestãodelheoferecerumasériededificuldadesafimdeque,aoretirá-lodapreguiçaedobem-estar,elealcanceoaperfeiçoamentocontínuodas

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suasfaculdadesracionais.Paragarantirodesenvolvimentodetodasassuasdisposições,anaturezase

serve do antagonismodasmesmas na sociedade.Esse antagonismo é chamadoporKantde insociávelsociabilidadedoshomens,ouseja,a“tendênciaaentraremsociedadequeestá ligadaaumaoposiçãogeralqueameaçaconstantementedissolver essa sociedade” (KANT, 1986 , p. 13). O homem tem, ao mesmotempo,umainclinaçãoparaassociar-sepelodesenvolvimentodesuasdisposiçõesnaturais,eumaforte tendênciaaseparar-se,poisencontraemsiumaqualidadeinsociável que o faz querer tudo para seu próprio proveito, ficando assim emoposiçãoaosoutroshomens.Assim,entrandoemconflito,movidopelabuscadeprojeção,pelaânsiadedominaçãooupelacobiça,ohomemélevadoasuperarsuatendênciaàpreguiça.Enessecaminhoqueolevadarudezaàcultura

“[...]teminício,pormeiodeumprogressivoiluminar-se,afundaçãodeummododepensarquepodetransformar, com o tempo, as toscas disposições naturais para o discernimentomoral em princípiospráticosdeterminadoseassimfinalmentetransformarumacordoextorquidopatologicamenteparaumasociedadeemumtodomoral”(KANT,1986,p.13).

Portanto,ainsociabilidadeéacondiçãoparaodesenvolvimentodostalentoshumanos,quepermaneceriameternamenteescondidosseoshomensdecidissemviverumavidapastoral,emperfeitaconcórdiaunscomosoutrosefossemdetãoboaíndolecomoasovelhas.SegundoKant,devemosagradeceranaturezapelaintratabilidade, pela vaidade que produz a inveja competitiva e pelo desejoconstantedeteredominar:“ohomemqueraconcórdia,masanaturezasabemaisoqueémelhorparaaespécie:elaqueradiscórdia”(KANT,1986,p.13).Éanatureza, então, que garante a formação da sociedade, pois somente nela ahumanidade pode alcançar omaior desenvolvimento possível de todas as suasdisposições.

“Assimumasociedadenaqualaliberdadesobleisexterioresencontra-seligadanomaisaltograuaumpoder irresistível,ouseja,umaconstituiçãocivil perfeitamentejustadeveseramaiselevadatarefadanatureza para a espécie humana, porque a natureza somente pode alcançar seus outros propósitosrelativamenteànossaespéciepormeiodasoluçãoecumprimentodaquelatarefa”(KANT,1986,p.15).

Porconseguinte,acondiçãofactualdamoralidadeéoconflitoqueobrigaoshomensaseuniremnumtodoreguladoporleisemquealiberdadedecadaumesteja asseguradademodoa coexistir coma liberdadedosoutros.VemosaquiqueKantsegueomodeloliberaldesociedade,segundooqualaordemsocialseestabelecenojogoentreosvíciosprivadoseobenefíciopúblico(HABERMAS,1984,p.134).

Masoquedefatoindicaesseprogressogeraldogênerohumano?Kanttenta

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responderaessaquestãoem Oconflito das faculdades (1798).Nessaobra, eletenta responder, entre outras, à seguinte questão: “Estará o gênero humano emconstante progresso para o melhor?”. A resposta será possível desde que seencontrealgoquereveleaexistênciadeumacausamoralatuantenahistóriaemvistadarealizaçãodoidealdaautonomiaplenanapolítica.Oquesebusca,então,é um acontecimento que indique a possibilidade de realização do progresso nahistória, um acontecimento com valor de signo. Esse acontecimento é aRevolução Francesa, não pelo processo que ela desencadeia, que pode atéfracassar,mas,sim,peloqueelaprovocanosespectadores.Elaéinteressantenãoporaquiloquetemdegrandeoupequenooupelos“brilhantesedifíciospolíticos”que se sucedem por meio dela, mas pelo sentido da história humana que elarevela:

“Ésimplesmenteomododepensardosespectadoresquese traipublicamente neste jogodegrandestransformações,emanifesta,noentanto,umaparticipaçãotãouniversale,apesardetudo,desinteressadados jogadores num dos lados, contra os do outro [...] [o que] [...] demonstra assim (por causa dauniversalidade) um caráter do gênero humano no seu conjunto e, ao mesmo tempo (por causa dodesinteresse), um seu carátermoral, pelomenos, na disposição, caráter que não só permite esperar aprogressãoparaomelhor,masatéconstituijátalprogressão,namedidaemquesepodeporagoraobteropoderparatal”(Kant,1993a,p.101-102).

Assim,a reaçãodosespectadoresprovaocarátermoraldahumanidade.Oacontecimento só tem sentido pela simpatia, pelo entusiasmo que provocanaqueles que o observam.O entusiasmo pela revolução revela a existência deumacausamoralqueatuanahistóriarumoaoprogresso, istoé,àrealizaçãodaliberdadepormeiodaconstituiçãorepublicanaedapazperpétua.Masissopodee deveserfeitomediante reformaspelasquaisoEstado,tentandoaevoluçãoemvez da revolução, avançasse de modo permanente para o melhor. Esseentusiasmo,portanto,nãoésuficienteparaqueKantapoiearevolução.Emborasejasagrado,odireitodopovodesercolegisladorpermanece,contudo,

“[...] sempre apenas uma ideia, cuja realização está restringida à condição da consonância dos seusmeios com a moralidade, que o povo não pode transgredir – o que não pode ter lugar mediante arevolução,queésempreinjusta”(KANT,1993a,p.104).

Portanto, amelhor constituição política é, segundoKant, uma constituiçãorepublicana que conserve a liberdade de todos coexistindo com a liberdade decada um. Mas a passagem para essa constituição não pode ser feita por umarevolução, que desconsidera os deveres morais, mas, sim, por uma reformagradual do Estado. Essa reforma deve ser lenta e acompanhar o processo doesclarecimento do povo e dos governantes que reconhecerão a necessidade demelhorarasociedade.EsseprocessonãosedásomentedentrodeumEstado,mas

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deveacontecercomelesomesmoqueaconteceucomosindivíduos.Porvirtudedo mesmo mecanismo que obrigou os indivíduos a moralizarem-seprogressivamente apesar da discórdia reinante, as nações se unirão numafederaçãotendoemvistaapazentreelas.Deacordocomanaturezadascoisas,aprópriaguerracolocaoshomensrumoàpazperpétua,poiselaétãoterrívelquetorna necessário que os homens venham a ser razoáveis e trabalhem tendo emvista acordos internacionais que o conduzam à paz. É a própria natureza quesubministraessagarantiaaofazertranspareceremseucursoumafinalidade:“pormeio da discórdia dos homens, fazer surgir a harmonia, mesmo contra a suavontade” (KANT, 1995, p. 140). No entanto, é preciso ver que não há umanecessidadeabsolutaquedeterminequeoshomensajamdessaforma.Aapostano progresso é antes de tudo um postulado: uma hipótese suficiente parapropósitospráticossemnenhumapreocupaçãodeordemteórica:

“[...]anaturezagaranteapazperpétuapormeiodomecanismodasinclinaçõeshumanas;semdúvida,com uma segurança que não é suficiente paravaticinar (teoricamente) o futuro mas que chega, noentanto,nopropósitoprático,etransformanumdeverotrabalharemvistadestefim(nãosimplesmentequimérico)”(KANT,1993a,p.149).

Dessaforma,vemosqueháumatensãonopensamentohistóricoepolíticodeKant, pois o progresso moral é garantido pelo antagonismo: é dele e de seusdesdobramentos que surgem uma sociedade cosmopolita, organizada numaconstituição universal que evite toda guerra ofensiva. Se no plano ideal ainstituiçãodoEstadodedireitosedádeacordocomosprincípiosnormativosdamoral,afundação efetivadoEstadodedireito,porém,sedápeloconcursodeummecanismonatural.Damesmaforma,énojogoentreaestritaobediênciacivileairrestritaliberdadedepensamentoquesedaráaemancipaçãodohomem:

“Se, portanto, a natureza por baixo desse duro envoltório desenvolveu o germe de que cuidadelicadamente, a saber, a tendência e a vocação aopensamento livre, este atua em retornoprogressivamentesobreomododesentirdopovo(comoqueestesetornacapazcadavezmaisdeagirde acordo com a liberdade), e finalmente até mesmo sobre os princípios dogoverno, que achaconvenienteparasiprópriotratarohomem,queagoraémaisdoquesimplesmáquina,deacordocomasuadignidade”(Kant,2005,p.71).

6.2.Hegel:adialéticaeosistemada“vidaética”

A filosofia posterior aKant será profundamente influenciada pela reflexãosobreorumodahistóriauniversal.Masa ideiadequea razãopossuiria limites

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paraoconhecimentodoabsolutoeraoobstáculoasersuperado.Énessecontextoque surge o idealismo alemão, que podemos caracterizar como um período nahistóriadafilosofiaqueprocurouesgotaraspossibilidadesdafilosofiamoderna,especialmenteaquelaqueKanthaviaexposto.AutorescomoFichte,SchellingeHegel procurarão reformular o conceito kantiano de razão tendo em vista arealizaçãoda liberdade.Desses,aquelequeelaborouumafilosofiapolíticacommaiorrepercussãofoisemdúvidaG.W.F.Hegel(1770-1831).Aobrapolíticamais importantedeHegel são suas Linhas fundamentais da filosofia dodireito,de 1821. Ela faz parte, porém, de um rigoroso sistema filosófico expostoresumidamente pelo autor em sua Enciclopédia das ciências filosóficas, (quetevetrêsdiferentesedições,1817,1827e1830).Oquecaracterizaessesistemaéochamado métododialético,umaespéciede lógicaconcretaquepretendedarcontadadinâmicadomundoemsuasdiferentesesferas.

OmétododialéticoéconcebidoporHegelcomoumaestratégiaparasuperaras cisões damodernidade.A filosofia é necessária para superar as oposições erestauraraunidadeconcreta.Segundoele,todaaépocamodernaécaracterizadapelaoposiçãogeralentresujeitoeobjeto,indivíduoesociedade,leieética,féesaber,naturezaeculturaetc.Essascisõessãofrutosdeumpensamentoabstratoqueanalisaasparteseseesquecedotodo.Umafilosofiaquepudesseresgataratotalidadeteriadedarcontadarealidadeconcreta,aquelanaqualháaunidadedesujeitoeobjeto,idealereal.Masessaunidadenãodeveseralcançadapormeiode uma intuição genial que unisse todos os opostos; o interesse da filosofia ésuperar as oposições fixas sem ignorar que a cisão faz parte da vida e que atotalidadeéjustamenteaquelaquecontémemsiascisões.Ouseja,aunificaçãotemdeaparecercomooresultadointernodadinâmicaoperadapelaprópriacisão.ÉessemecanismodeautossuperaçãoqueHegelchamadedialética:omovimentoque faz com que as coisas apareçam isoladas do todo para depois seremrecolocadas em seu contexto total. É o movimento da contradição que seestabelecepelaabstraçãodaspartesdeumtodoeareabsorçãodaspartesnessetodo.Masessemovimentonãoéumaabstraçãodofilósofo,comosefosseumainvenção sua,mas o processo concreto das próprias coisas. É o entendimento,enquanto “força do limitar” que fixa uma oposição e se desgarra do todo.Arazão, por sua vez, coloca-se contra a fixação absoluta da cisão por meio doentendimento. Hegel vê o problema daquilo que ele chama de “cultura doentendimento” no fato de que essa cultura transformaria aquelas oposições emdadosabsolutos,deixandodeseelevaraumaconcepçãoespeculativadafilosofiaeabandonandoseuinteressemáximoqueéodasupressãodetaisopostos.Oque

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ele critica, em suma, nisso que ele chama de cultura do entendimento (pois éo entendimento e não a razão que se fixa nas cisões) é seu dualismo e suatentativadebloquearqualqueracessoaoabsoluto.Todaafilosofiailuministateriaessa característica, especialmente a deKant.Nela o conhecimento do absolutoteria sidoabandonadoporqueoentendimentose fixouemsuasprópriascisões.Resgataratotalidadeétambémresgatarapossibilidadedeumsaberdoabsoluto,osaberdatotalidadeestilhaçadanaexperiênciaemoposiçõesqueoentendimentofixousemmaisconseguirenxergarotodo.

RetratodeGeorgWilhelmFriedrichHegel,porJakobSchlesinger,1831.SMB,AlteNationalgalerie,Berlim.

A dialética é, assim, o movimento das próprias coisas, tanto no mundoquanto em nossos pensamentos sobre ele. À filosofia cabe a tarefa decompreensãodessadinâmicaeocuidadodenãosedeixarfixarpelasaparentesoposições. Esse procedimento da razão, que se eleva acima de uma identidadeabstratadeopostos,Hegeldenomina especulação.Essaespeculação,longedeserapresentadaporHegelcomoumaascesemística,énaverdadeapenasummododeconhecimentoquerelacionaosopostosdareflexãoaoabsolutoetornavisívelsua relação com a totalidade. Daí também a necessidade de umpensamento sistemático, pois é só por meio do sistema que a razão pode darcontadetodasasoposiçõeseresgataraunidadepresentenelas.Oentendimento

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humano se fixa emposiçõesdeterminadas e não reconhece suaparcialidade.Éissoquepossibilitanãoapenasdiferentesvisõesdemundo,masacisãodomundoem classes sociais que não reconhecem as outras, facções políticas quereconhecemapenasseusprópriosinteresses.ÉoqueHegelchamadeconcepçãoabstrata da liberdade como a afirmação de si em detrimento dos outros, datotalidade.

Serána Fenomenologiadoespírito(1807)queHegelcolocaráemjogo,pormeiodaapresentaçãodocursohistóricoqueelevaa consciênciaà suamáximaconsciência de si como espírito, esse processo negativo de dissolução dasimagens que para si mesmo o entendimento humano se faz. O trabalho donegativosefazpresentenahistóriacomoaniquilamentosucessivodasilusõesdaconsciência,trabalhoqueaelevaàconsciênciarealizadadesimesma.Cadaetapadoprocesso de formação é umanova figura da consciência.Ela abandona suaforma anterior, mas esse processo não é exclusivamente negativo. O resultadodessa experiência que faz a consciência é um novo conteúdo, mais rico edesenvolvido. Assim, o Estado moderno, por exemplo, será a síntese e asuperaçãodassuasformasiniciaisnaAntiguidadeenaIdadeMédia.Essenovoconteúdo supera e conserva o anterior. Isso não apenas no mundo humano,espiritual,mastambémnanatureza:aárvoredesenvolvidaéanegaçãodoqueerainicialmente um gérmen,mas contém o gérmen.O filho torna-se pai,mas nãodeixadeserfilhoetc.Cadaetapanoprocessodialéticoémaisverdadeiraqueaanterior,porquemaisdesenvolvida.Somenteotodoéverdadeiro,suaspartesoumomentos são falsos quando isolados e afirmados como completamenteindependentes.Oindivíduoéfalsoseécompreendidoabstraídodasociedadequeoconstitui.AsociedadenãopodeserabstraídadoEstadoquelhedáfundamento.A coisa corretamente compreendida é seu conceito. Um verdadeiro Estado éaquelequecorrespondeaoconceitodeEstado,assimcomodizemosdeumbomamigoque ele é um verdadeiroamigo.A verdadeira liberdade corresponde aoconceitodeliberdadeenãoaoquecadaumentendeporliberdade.

É de acordo com essa filosofia especulativa que Hegel pensará a questãopolítica. Por isso temos que ter emvista o lugar sistemático da política em seusistema.Aprimeirapartedessesistemaéconstituídapela lógica,aexpressãodomovimento dialético das categorias lógicas e ontológicas tomadas aqui comopuros conceitos. É uma forma concreta do absoluto, pois a lógica aqui não écompreendidacomodeterminaçõesdepensamentoindependentedascoisas,mascomo determinações das próprias coisas. Essa ideia lógica do absoluto seexterioriza na natureza, tema da filosofia da natureza. Mas é na filosofia do

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espírito que teremos a manifestação mais concreta do absoluto. O espírito écompreendido em três momentos: como espírito subjetivo, composto pelasubjetividade individuale suascaracterísticasnaturais (aalma, suassensaçõesesentimentos), pela consciência e pelas características propriamente espirituais (opensamento,avontadeetc.);como espíritoobjetivo,constituídopelasinstituiçõessociais e políticas; e finalmente como espírito absoluto, isto é, o conhecimentocomo arte, religião e filosofia.Assim, o lugar sistemático da filosofia políticahegeliana é a filosofia do espírito objetivo, aquele que se manifesta eminstituiçõessociaisepolíticas.

Portanto,afunçãoprópriadafilosofiapolíticaéamediação:épormeiodelaquesetornapossívelaoespíritosubjetivosairdesi,criarummundoechegaraomáximoconhecimentode si comoespírito absoluto.Dessa forma,o direito – éassim que Hegel se refere à questão política de ummodo geral que inclui ostemasdamoral,daeconomiaedapolítica–nadamaiséqueoprocessopormeiodo qual o espírito se efetua. E assim como a dinâmica geral é animada nummovimentodialéticotriádicodetese,antíteseesíntese,tambémo direitoterátrêsmomentos:odireitoabstrato,amoralidadeeaeticidade.ComosempreemHegel,cada momento conterá o momento anterior, conservando algo dele, massuperando-opormeioda riquezade suasdeterminaçõesconcretase aquiloqueaparecenofinal(nocasooEstado)semostrarápresentedesdeoiníciocomonumcírculo.

Antesdeapresentaressestrêsmomentosdafilosofiapolíticahegeliana,valedizeralgomaissobreaestruturadeseusistemaespeculativoeaimportânciaquenele tem a reflexão sobre a realidade política e social. A filosofia hegelianapretende fornecer a compreensão racional do que existe efetivamente. Só seriapossível conhecer a realidade se ela em simesma já fosse racional. Por isso, afrasetãomencionadadoprefácioà FilosofiadoDireito:“oqueéracional,istoéefetivo;eoqueéefetivo,istoéracional”(HEGEL,2010,p.41).Estáemjogoaquiadiferençaentreefetividadee realidade.A realidadeécompreendidapelareflexãolimitadadoentendimentocomoumdadoexterno,umobjetodadodesdesempre e sem vida, isto é, sem ummovimento próprio.A essa concepção darealidadeHegelopõea efetividade ou realidadeefetiva,queé aquela emquearacionalidadeestáincluídaporqueéauniãodosujeitoedoobjeto.Essarealidadeefetivaseriamaisconcretadoqueaconcepçãoabstratadarealidade.Arealidadeefetiva é aquela completamente desenvolvida, desdobrada em todos os seusmomentosequeofilósofopodeconhecerpormeiodaespeculação,ummododeconhecimento que não se detém em momentos particulares, mas os pensa de

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acordo com a totalidade. É com esse espírito que Hegel analisa os diferentesmomentosdavidaéticaepolítica.

A esferamais abstrata e por isso amenos efetiva da vida ética é o direitoabstrato, a primeira parte da Filosofia do direito. Os indivíduos sãocompreendidos aqui enquanto pessoas dotadas de posses e propriedades e queestabelecemcontratoscomasdemais.Apropriedadeéformadaporaquelesbensmateriais e imateriais que constituem a identidade de cada indivíduo. Se seconsideraesseindivíduoabstratamente,separadodetodasascomplexasrelaçõessociaisepolíticasqueotornampossível,setemochamado atomismosocial,umasociedadepensadaapartirde indivíduosparticularesque formamumpactoemvista da defesa de certos interesses.Ainda que se justifique a reivindicação dedireitos particulares, isto é, a observação da liberdade individual, seria um errosegundoHegelcompreenderasociedadeapartirdesseindivíduo.Esseteriasido,segundoofilósofo,oerrodasteoriascontratualistasquepartiramdahipótesedeumindivíduoisoladoqueentranumarelaçãocontratualcomosdemais.Apróprianoção de contrato só é possível pela mediação de instituições sociais jáestabelecidas. Já a vida ética começará, como veremos, não por indivíduosparticulares,maspelafamília,primeiraemaisbásicaformadevidasocial.

Antes de avançar para a segunda esfera da vida ética, amoralidade, cabemencionar como Hegel compreende a formação das comunidades políticas ecomo o indivíduo luta pelo reconhecimento de seus direitos.O homemnão seforma isoladamente, mas por meio de uma luta de vida e morte porreconhecimento. Só é consciente de si mesmo ou de sua própria liberdade namedida em que é reconhecido, como consciente e livre, por outras pessoasconscienteselivres.Cadaumafirmasualiberdade,negandoemsimesmoseusernatural e afirmando sua racionalidademuitas vezes ao preço da liberdade e dadignidade do outro.Daí surge a escravidão, o senhor submetendo o escravo àservidão porque o venceu numa batalha de vida e morte. O escravo preferiuconservar a vida a arriscá-la para ser reconhecido e com isso submeteu-se aooutro. Esse conflito é anterior ao surgimento histórico doEstado.Correspondeàquilo que a tradição contratualista descrevia como o estado de natureza. Pormeiodele,oindivíduo–nocasoosenhor,afirmaoseudireitoeéreconhecido.Oescravo terá que formar-se, por meio do trabalho e constitui o mundo dopensamento e da técnica.Ele reprime seus desejos, nega a natureza, trabalha apartirdenoçõesgeraiseabstratas,desenvolvealinguagemeopensamento.Emsuma,a lutaentreosenhoreoescravoengendraumadialéticaqueéoprópriodesenvolvimentodahistóriahumana.ParaHegel,oEstadosurgedesseconflito,

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masoseuprincípionãoestánesseprocessoviolento,masnalógicaqueconduzoprocessoàsuacompletude:

“Alutadoreconhecimento,easubmissãoaumsenhor,éofenômenodoqualsurgiuavidaemcomumdoshomens,comoumcomeçardosEstados.Aviolência,queéfundamentonessefenômeno,nãoéporisso fundamentododireito, emborasejaomomentonecessário elegítimo na passagemdoestado daconsciência-de-sisubmersanodesejoenasingularidadeaoestadodaconsciência-de-siuniversal.Éocomeçoexterior,ouocomeçofenomênicodosEstados,nãoseuprincípiosubstancial”(Hegel,1995,p.204).

O papel do Estado será o de resolver esses conflitos. A verdadeiraconciliação não é possível sem o Estado, pois nem o senhor nem o escravotiveram o reconhecimento que desejavam, isto é, o reconhecimento por outraconsciêncialivre.OEstado,porém,nãoserápensadocomoumelementoexterioraplicado para conciliar os opostos, mas como a resolução de uma dialéticainerenteaessesopostos.Elevaiprocurarsintetizarodesejode reconhecimentoemumatotalidadeéticanaqualosindivíduosalcançariamaverdadeiraliberdadeeteriamseusdireitosefetivosenãoabstratosplenamentereconhecidos.

Tendo sido reconhecidos numprimeiromomento, o do direito abstrato, osdireitosdosindivíduosenquantodotadosdepossesepropriedades,osindivíduosreconhecemtambémosseusdeveresesuasresponsabilidadesenquantosujeitos.Esse é o âmbitoda moralidade.O núcleo dessa segunda parte da Filosofia dodireitoéformadopelareflexãosobreaconsciênciamoral.Trata-sedaliberdadede um sujeito que reflete sobre o sentido de suas ações, que questiona suascrenças e que assume suas responsabilidades.Aqui está em jogo uma vontadeaindasubjetivaqueépensadaseparadadasinstituiçõesenãooimpactoobjetivode suas ações. É o terreno das intenções, desejos e valores. Mas essascaracterísticas só adquiremaspectomoral quando sãopensadasuniversalmente,quando são reconhecidas e compartilhadas pelos outros. Por isso, o terreno damoralidadeémais concretoqueododireito abstrato.Enquanto esteúltimodizrespeito apenas à lei, sem se preocupar com as intenções e interesses dosindivíduos,amoralidadeserefereaosprincípiossubjetivosqueguiamasações,isto é, a vontade do sujeito. Por meio da referência à vontade, os indivíduospodemserresponsabilizadosporsuasações.Masavontadeécompreendidaaquiemseuaspectosubjetivo,aindaquenão individual,poisamoralidade lidacomnormas e deveres universais e está referida à vontade dos outros. Enquantoreferida às máximas das ações das consciências, a moralidade permanece noterreno subjetivo, pois na objetividade a vontade se cristaliza em instituiçõessociais e políticas que estabelecemmediações entre as vontades particulares.Amoralidade é assim apenas um momento no processo de desdobramento e

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determinação do princípio da liberdade.Os propósitos e intenções dos sujeitosdotados de uma vontade referem-se aos aspectos subjetivos do agir humano.Segundo Hegel, Kant teria permanecido nesse nível de reflexão, já que amoralidade é a base de sua filosofia política. Hegel contesta o formalismo damoralkantiana,pois, segundoele,nãoseriapossível separara formadasaçõesmorais de seu conteúdo concreto.A consideração damoralidade independentedosinteressesdossujeitosseriaofrutodeumasériedecontradiçõesnafilosofiadeKant.Paraevitaressascontradições,Hegelpensacomoinstânciamáximadafilosofia prática não amoralidade, a determinação dos princípios subjetivos daação,masa eticidade,atransformaçãodavontadesubjetivaemvontadeobjetiva.

Cabe aqui esclarecer a diferença entre moralidade e eticidade, uma dasnovidadesqueopensamentohegelianotrouxeàfilosofiapolítica.Asexpressõesmoralidade (em alemão, Moralität) e eticidade ( Sittlichkeit) são habitualmentetomadascomosinônimos.MasparaHegeléimportantedestacaradiferençaentrea moral ou ética pensada abstratamente sem referência à vida socializada e amoral ou ética considerada concretamente tal como se manifesta nos costumese instituiçõesvisíveis.Apalavraalemã Sittlichkeitvemdosubstantivo Sitte, quesignifica o costume no sentido de um hábito da vida coletiva que reúne osindivíduosemseucomumpertencimentoaummesmomododevida. Sittlichkeitsignifica aquilo que “entrou para os costumes” (LEFEBVRE; MACHEREY,1999,p.21).Elapodesertraduzidapor eticidadeou vidaética apenaspara serdiferenciadada moralidade no sentido emqueHegel entende esta última.Se amoralidadepodeser reduzidaaumafórmulaabstrataquepodeseraplicadaemdiversas situações, a eticidade para Hegel é um conjunto de conteúdosdeterminadoseexpressoseminstituiçõessociais,políticas,religiosaseartísticas.A vida ética se realiza plenamente com a conciliação da vontade subjetiva e avontadeobjetiva,éa“identidade concretadoBemedavontade”(Hegel,2010,p.165).ParaHegelaeticidadeouvidaéticaéaformaacabadadodireito,aquelana qual a liberdade semostra em sua verdade, não de forma limitada e parcialcomono direitoabstratoouna moralidade.Nelaavidapolíticaépensadaparaalémdadivisãoemsujeitoeobjeto.Trata-sedeummododeexistênciaquenãosedácomoconsequênciadeumaescolhaindividual,subjetivaecontingente,masquesedánahistóriaemfigurasconcretasquerepresentamosespíritosdospovos,emsuareligiãoeemsuaconstituiçãoestatal.Éaformaconcretademanifestaçãoda liberdade para Hegel. Isso não significa que toda instituição social seja amanifestação da liberdade. Só corresponde ao conceito de eticidade aquelaefetividadequerealizaplenamenteoconceitodevidaética,istoé,aunificaçãoda

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vontadesubjetivacomaobjetiva.Omomentodamoralidade,assimcomoododireitoabstrato,estáincluídonomomentodaeticidade.Éracionalsomenteavidaéticaquerealizaasíntesedasvontadesparticulareseavontadeobjetiva.

6.2.1.SociedadecivileEstadoAeticidade,assimcomoodireitoemgeral, tambémpossui trêsmomentos.

São as figuras de manifestação da vida ética: a família, a sociedade civil e oEstado. Para Hegel é a família, e não o indivíduo, a forma elementar da vidaética.Ela representaa forma imediatadavidaéticabaseadanosentimento,noslaçosdeafetividade,numaespéciedesociedadenatural.Emboraestejaligadaaosentimento, a família tem a função espiritual de assegurar a integração doindivíduo na medida em que o forma para a vida coletiva. Ela forma umatotalidade organizada, cujo sistemaprecede e condiciona a existência particulardosindivíduos.NafamíliaoindivíduosesabemembrodeumacomunidadeepormeiodelaépreparadoparaagircomomembrodasociedadeciviledoEstado.Épormeioda educaçãoque essapreparaçãoé feita, quandoo indivíduodeixa afamíliaeentraemsociedadecomosoutros.

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KanteHegelforamprofundamentemarcadospeloprincipaleventopolíticodaépoca:aRevoluçãoFrancesa.ALiberdadeguiandoopovo,deEugèneDelacroix,1830.MuseudoLouvre,Paris.

É nesse ponto queHegel elabora a noção de sociedade civil. Embora nãotenhasidooprimeiroautoraseutilizardaexpressão,foioprimeiroqueelaborouo conceito de sociedade civil como uma instância diferente do Estado. Natradiçãocontratualistaasociedadeciviloupolíticaeraaquelaquesecontrapunhaaoestadodenaturezaapósopacto. JáHegeldistingueoconjuntodas relaçõessociaispresentesnaesferadasociedadecivildasrelaçõespropriamentepolíticasinstituídaspeloEstado.ComomomentointermediárioentreafamíliaeoEstado,asociedadecivilmanifestarárelaçõesmaiscomplexasqueaquelasquesedãonafamília,masnãotãobemarticuladasquantoaquelasquetêmlugarnoEstado.Nahistória das ideias políticas, a sociedade civil é o lugar em que surgem e sedesenvolvem os conflitos econômicos, sociais, ideológicos, religiosos, que asinstituiçõesestataisprocuramresolver(BOBBIO,1987,p.35-36).Deve-senotarqueesseconceitoéformuladoemHegelpelaexpressão bürgerlicheGesellschaft,

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quetambémpodesertraduzidapor sociedadeburguesa.Veremosquedefatoasociedadecivilécaracterísticadasociedadeburguesa,inexistindosemessaclassesocial e, portanto, a tradução sociedade civil-burguesa tal como adotada pelatradução brasileira da Filosofia do Direito é bastante adequada. A noçãode sociedade burguesa passará a ter uma acepção diferente por meio dainterpretaçãomarxistadeHegel,comoseveránopróximocapítulo.ParaHegel,asociedade civil-burguesa já corresponde a uma forma de Estado, ainda queimperfeita,enquantoparaMarxelaserefereaumacategoriaanterioraoEstado(BOBBIO,1987,p.42).

Asociedadecivil-burguesarepresentaomomentodadiferenciação,dacisão.Acriançasaidafamíliadepoisdesereducadaeformadaparaavidacomunitáriae tentaviver foradelaumaexistência independente.Nessaexistênciaautônomasurgeo indivíduoparticular que trava relaçõesde trabalho, de troca, e torna-semembrodeumacoletividademais amplaque a família.Esse indivíduoé entãoum sujeito econômico pertencente a um “sistema de carecimentos”, isto é, umsistema baseado em relações de troca em que as necessidades de cada um sãosatisfeitas por intermédio das necessidades dos outros.Aqui os indivíduos queestabelecem relações contratuais com os outros procuram satisfazer suasnecessidadeseseusinteresseseoEstadoépensadoapenascomoaquelainstânciaqueinterfereminimamentenessasrelaçõesdetroca.Éaqui,noníveldasociedadecivil-burguesa,queHegelidentificaatradiçãocontratualistaqueteriaprocurado,emsuasdiversasformulações,pensaroEstadocomonecessáriopararesolverosconflitos entre os indivíduos tomados como proprietários de bens e do direitonatural de afirmar sua vida e sua liberdade. Nesse âmbito e por meio dasinstituições da sociedade civil temos o lugar de efetivação dos direitos civis,expressosprincipalmentecomoliberdadedepensamentoedeimprensa.ÉnesseprocessoquesurgeaopiniãopúblicaquecorrespondeàquiloqueKantchamoude“mundoleitor”idealmentepensadocomooespaçodeesclarecimentopelousopúblicodarazão.MasparaHegel,comoasociedadecivil-burguesaéregidapelanecessidadeepelointeressedosindivíduosparticulares,aopiniãoédegradadaesubordinadaaessesinteresses.Apesardedesenvolveraautonomiadasociedadee de seus indivíduos, Hegel não vê na opinião pública o espaço para oesclarecimento,masparaosurgimentodetodotipodemanipulaçõesideológicasque refletemas contradiçõesda sociedade civil-burguesa.Amais agudadessascontradiçõeséaquelaqueestabeleceoabismoentrediferentesclassessociaisqueimpede a sociedade civil-burguesa de estabelecer uma verdadeira harmonia deinteresses.

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Nesse âmbito surge um Estado que Hegel chama de “Estado inferior”,porque nessa sociedade os indivíduos existem como burgueses e não comocidadãos:elesprocuramapenasasatisfaçãodesuascarênciasenãoaconstruçãodoEstadoperfeito.NessaformadeEstado jáháumaunião,poisos indivíduosinteressados em suas satisfações mantêm entre si uma relação social quedetermina sua existência em referência a normas coletivas.Mas o elemento dauniversalidadeocupa aqui umaposição apenas subordinada, poismediadapelointeresse.Hegel tambémchamaesseEstadode“Estadoexterior”poisarelaçãoentreseusmembroséumarelaçãoexteriordeinteressesseparados;esseEstadoémovidopelanecessidade. JáoverdadeiroEstadopode ser chamadode interiorpois temcomo tarefa a adesão íntimadocidadãoà totalidadedeque fazparte.Antes de passar à consideração desse Estado superior, cabe fazer algumasobservaçõessobreaestruturadasociedadecivil-burguesa.

Asegundaseçãodaterceiraparteda FilosofiadoDireito(a Eticidade) quetem como tema a sociedade civil-burguesa está divida em três momentos: osistema dos carecimentos ou necessidades; a administração do direito (a esferajurídica); e a administração pública e a corporação. Se o primeiromomento serefereàesferadasrelaçõeseconômicas,osegundoeoterceirolidamcomtemastradicionalmenteligadosàdoutrinadoEstado.Porisso,omomentoda sociedadecivil-burguesa já representa o primeiro momento de formação do Estado, oEstado jurídico administrativo que tem como tarefa regular relações externas.SegundoHegel,oerrodosteóricosdodireitonaturalfoiteremidentificadoessaforma de Estado como o verdadeiro Estado, quando ele estaria na verdadesubordinadoaosinteressesdeindivíduosparticulares.

“SeoEstadoéconfundidocomasociedadecivil-burguesaesesuadeterminaçãoépostanasegurançaenaproteçãodapropriedadeedaliberdadepessoal,entãoointeressedossingularesenquantotaiséofimúltimo,emvistadoqualelesestãounidos,edissosesegue,igualmente,queéalgodobel-prazersermembro do Estado.Mas ele tem uma relação inteiramente outra com o indivíduo; visto que ele é oespíritoobjetivo,assimoindivíduomesmotemapenasobjetividade,verdadeeeticidadeenquantoéummembrodele”(Hegel,2010,p.230).

SomentenoEstadoplenamenteconstituídoteríamosacompletarealizaçãodavida ética segundo Hegel. Só nele os indivíduos se realizariam plenamenteenquanto cidadãos.OEstado é caracterizado pela constituição e pelos poderesconstitucionaistaiscomoopodermonárquico,opodergovernamentaleopoderlegislativo. Tanto a esfera econômica quanto a jurídica ficam a cargo dasociedadecivil.AoEstadocabeaadministraçãopolíticaconstituídaporinstânciasburocráticasprofissionais,cujosmembrossãoselecionadospelacompetênciapormeiode concursospúblicos.A teoriahegelianadoEstado foi objetodemuitas

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críticasqueviramnessaconcepçãoaabsorçãocompletadafamíliaedasociedadecivilnoEstado.ParaHegel,porém,afunçãodoEstadonãoseriaadeabsorverasesferasanteriores,masdar-lhesverdadeiraefetividadepormeiodaconciliaçãodesuascontradições.EssaconciliaçãoépossívelporqueoEstadonãoseesgotaemsua função administrativa, mas sintetiza tudo o que caracteriza uma nação, oscostumes,areligiãoeasinstituiçõespolíticas.ComoénoEstadoquearazãoserealiza, a história universal é compreendida como a sucessão das formas deEstado que se manifestaram no mundo. Mas para encontrar o verdadeiro fiocondutordahistóriauniversalnãosedeveriadeixardeconsideraramanifestaçãodo espírito absoluto na arte, na religião e na filosofia.As histórias da arte, dareligião e da filosofia oferecemoutros aspectos da dinâmica histórica, umavezque nessas esferas que constituem o espírito absoluto encontraremos ofundamentoéticoabsolutodospovos.

ComessecomplexosistemaespeculativoHegelpretendiacruzarmetafísicaehistória. Esta última é pensada especulativamente como o palco da realizaçãoprogressiva da liberdade. Desenvolvendo uma ideia já presente em Kant, ahistória seria feita independente da consciência dos indivíduos por meio daastúcia da razão: os indivíduos aparentemente submetidos ao jogo de suasinclinaçõespassionaisacabamdesenvolvendoahistóriadoespírito.Osinteressesfazemcomqueohomemrealizeumplanoquenãoestavadadopreviamente,masquepodeserrememoradocomoodesdobramentocompletodarazão.Assim,asatividades baseadas no interesse e no egoísmo tornam-se atividades sociais,contribuiçãoparaasatisfaçãodasnecessidadesdetodos.Essaastúciadarazãonahistória gerou a sociedade civil-burguesa e o Estado moderno, assim como areligiãocristãprotestanteeafilosofiadoidealismoalemão.Hegelenxerganessasfigurasmanifestaçõesdarealizaçãoplenadarazão,oquelevoumuitosintérpretesacompreenderqueeleestariavaticinandoofimdahistória.Porissotambémfoicriticadoporservistocomoofilósofoquejustificousuaépocaeprincipalmenteoregimepolítico daPrússia.Não cabe aqui defenderHegel de seus críticosmasnotara importânciadeseupensamentoqueseráapropriadopelasmaisdiversasescolas. Após a morte do filósofo em 1831, seus discípulos dividiram-se emhegelianos de esquerda e de direita. Cada partido acentuará os aspectosprogressistasouconservadoresde seupensamentode acordocomos interessespolíticos de cada um deles. Dos hegelianos de esquerda surgirá Marx e opensamento socialista, enquanto dos hegelianos de direita surgirá uma longalinhagem de pensamento conservador que teve em Carl Schmitt um dos seusprincipais nomes. Mesmo nos séculos XX e XXI o pensamento de Hegel

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inspirará autores preocupados com a questão dos conflitos sociais, da mesmaformaqueservirádeinspiraçãoparapensamentosliberaisdecunhoconservador.Seessasmúltiplasleituraspodemseratribuídasàdificuldadedecompreensãodafilosofiahegeliana,elasatestamtambémariquezadesuaspossibilidades.

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Créditosdasimagens–EscolaFrancesa–ArnoldBöcklin–Album/Akg-Images/Latinstock–EugèneDelacroix

1.Estaéadefiniçãodeliberdadenosentidonegativo:aindependênciaarespeitodetodaa matériadalei.Nosentidopositivoaliberdadeéconcebidacomoadeterminaçãodolivre-arbítriopelasimples forma legisladorauniversal,istoé,aautonomiadavontade.

2.Bobbio(1997,p.63)seriaumdosautoresqueseparammoraledireitoquandodizque“acreditamosqueavontadejurídicapossaserconsideradasomentecomo vontadeheterônoma.Enquantolegalidade,avontadejurídicasediferenciadavontademoralpelofatodepoderserdeterminadaporimpulsosdiversosdorespeitoàlei:eestaédefatoaprópriadefiniçãodeheteronomia”.

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OSocialismoentreaReformaeaRevoluçãoJonasMarcondesSarubideMedeiros*

Introdução

ConclusãoBibliografia

Introdução1O socialismo, mais do que um corpo coerente de ideias políticas, é um

movimento, um campo em disputa em torno da definição teórica e prática decomorealizaralibertaçãodossereshumanosdeexploraçõeseopressõesdetodososgêneros.Dentreasinúmeraspossibilidadesdetratamentodotema,elegemosaEuropa como espaço geográfico privilegiado, o movimento operário comomovimento socialista central e a figura de Karl Marx como a pessoa quetransformouahistóriadosocialismoparasempre.Ocapítulosedivideemquatroseções.Aprimeirabuscarealizarumapontecomocapítuloanterioreoidealismoalemão,ocupando-sedarupturadeMarxcomafilosofiahegelianadoEstado.AsegundainsereosocialismodeMarx,estruturadopelasnoçõesdepráxiselutadeclasses, no interior do contexto revolucionário de 1848, bem como nas suasdisputas com as seitas utópicas socialistas. A terceira aprofunda a concepçãomarxista de socialismo científico a fim de apresentar o seu conflito com oanarquismo acerca dasmelhores estratégias para as lutas da classe operária.A

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quarta,porfim,tratadarupturaentreascorrentesreformistaerevolucionáriadosocialismo, um cisma que teve como um de seus resultados a emergência noséculo XX de regimes totalitários que derrotaram historicamente as aspiraçõeslibertáriasdomovimentooperário.

7.1.AcríticadeMarxàfilosofiapolíticahegeliana

EmboraMarx(1818-1883)tenhasidoopensadorsocialistamaisimportantedoséculoXIX,oiníciodesuacarreirateóricaepolíticaémarcadoporumcaráterdemocrata-radical; a sua entrada no movimento socialista foi construída aospoucos,condicionadapelasituaçãodeseupaísdeorigem,aAlemanha,epelosdiversos projetos políticos que ali diferentes classes sociais representavam. Nadécadade1840,aAlemanhaaindanãoexistiacomoumpaísunificado(oquesóaconteceria em 1871), mas somente como uma confederação de reinados eprincipados, com um predomínio político da Prússia e da Áustria, dois paísescujosregimeseramdecaráterabsolutista.AssimcomoaRevoluçãoFrancesafoiresponsável pela abolição de uma série de privilégios feudais, muitos alemãesapostavam que uma revolução política semelhante pudesse combater ascaracterísticas autoritárias do absolutismo prussiano, a fim de instaurar umaConstituição liberal que respeitasse os direitos políticos de representação e osdireitoscivisdeliberdadedeexpressão.

Em1840,ascendeaotronoprussianoumnovorei.MuitosfilósofosquesediziamdiscípulosdeHegelapostavamqueeleavançariareformasliberaisqueaospoucos pudessem instaurar uma transição do absolutismo em direção a umamonarquia constitucional ou mesmo uma ruptura política que levaria àproclamação de uma república alemã. Contudo, já nos primeiros anos de seureinado, ficouclaroqueoprojetopolíticodo rei não era compatível comessasexpectativas, visto que os filósofos críticos ao seu governo eram perseguidos:muitosforamexpulsosdesuascátedrasnasuniversidadesalemãs(comoomentoracadêmicodeMarx,BrunoBauer)eoutrosforamobrigadosaseexilaremoutrospaíses (como um colaborador de Marx, Arnold Ruge). O único meio desobrevivência material se tornou a colaboração para jornais liberais, nos quaispuderamexercerasuacríticapolíticaaoregimeprussiano.Em1842,éfundadoojornal AGazetaRenana,produtodauniãodefilósofosconhecidoscomo“jovens

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hegelianos”eaburguesia liberaldaRenânia–regiãolocalizadanonoroestedaAlemanha em torno do rio Reno, onde a industrialização se encontrava maisdesenvolvida. Essa aliança entre intelectuais e industriais que financiavam ojornalbuscavapressionarporreformasdemocratizanteseantiabsolutistas,jáqueo reinãocaminhariapor suaprópriavontadenestadireção.Contudo,o regimenão cede às reivindicações e passa a censurar a imprensa oposicionista. Osfilósofoshegelianosapostavamqueosempresáriosrenanospudessemexercerumpapeldeliderançaprogressista,mas,comocrescimentodastensõespolíticas,osindustriais abandonam a postura original do jornal, passando a defender umalinha editorial tão moderada que deixava de ser crítica ao absolutismo. Marxhavia se tornadoeditordo jornal,mas asdivergências tomaramumaproporçãotamanhaque ele pede demissão de seu cargo; empoucosmeses, o jornal seriafechado pela censura prussiana. A burguesia liberal começa a revelar a suaverdadeira natureza: a ameaça à liberdade de imprensa mal é condenada,indicandoqueoseuliberalismoeramuitomaisdecarátereconômico(liberdadede indústria e de comércio para realizar lucros) do que político (liberdade deexpressãoederepresentaçãoparainstaurarumregimemaisdemocrático).

RetratodeKarlMarx,fotógrafodesconhecido.Acredita-sequeafotosejadoiníciodadécadade1880.KarlMarx-HausTrierMuseum,Trier.

Cadaumdosfilósofoshegelianosreagedemaneirasdiferentesà frustraçãode que a burguesia pudesse liderar naAlemanha um processo revolucionário

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semelhante à Revolução Francesa.Alguns, como Bauer, retiram-se do debatepúblico e se isolam em discussões puramente teóricas, condenando o povoalemãopornãoter-semobilizadoemdefesadosintelectuaisperseguidoseagidocomocidadãos;outros,comoRuge,seguememdefesadosvaloresrepublicanosedemocráticos,mascaememumestadodedesilusãoedesespero,semconseguirencontrar um substituto para depositar as suas esperanças políticas. Estes doisgrupostêmemcomumacrençadequeaAlemanhanecessitavadeumareformaouumarevoluçãopolíticas;ofundamentodestatomadadeposiçãoéafilosofiadoEstadoexpressanos PrincípiosdeFilosofiadoDireito(1821),deHegel.Ali,asociedadecivileraapresentadacomoumreinodasnecessidades,dosinteressesmateriais e egoístas próprios à esfera privada, ou seja, do mercado; a fim deresolveresuperarosconflitosinevitáveisdecorrentesdacompetiçãoeconômica,a única esfera capaz de realizar princípios éticos seria o Estado racional. ParaHegel, a sociedade civil é um âmbito falso que só encontra a sua verdade nainstância superior do Estado moderno. Todos os jovens hegelianos sãocontinuadores desta doutrina: a luta antiabsolutista naAlemanha exigiria umatransformaçãonoEstado,quedeveriapassaraexistirdeacordocomosvaloresda igualdade e da liberdade.Assim, toda crítica direcionada ao absolutismo daPrússia implica a comparação da realidade política alemã com a idealizaçãofilosóficaeabstratadeumEstadoracional.Noquadrodessafilosofiapolítica,éimpossível superar a frustração com a paralisia da burguesia liberal, pois seimaginavaqueessaseriaaclassesocialcapazdecombateretransformaroEstadoautoritário, embora se tenha percebido que esses empresários não estavamdispostos a lutar pela realização de princípios políticos emorais universalistas,massomenteadefenderosseusinteressesparticularesdeclasse.

É nesse contexto de indefinições que Marx parte para uma crítica dessafilosofia do Estado racional. Para superar este dilema dos jovens hegelianos,MarxbuscaauxílionafilosofiadeLudwigFeuerbach(1804-1872).Porcausadavisãoteocêntrica(centradaemDeus)deHegel,Feuerbachseafastadeleerealizaumacríticadasreligiõesedateologia,apontandoquenãofoiDeusquecriouohomem,mas justamente o contrário: foi o homem que criouDeus,mas, ao seesquecerdesseatodecriação,ohomempassouaacreditarqueDeuséocriadorde tudo e, assim, perdeu-se a si mesmo. Feuerbach chamou essa inversão darelaçãoentreoprodutoreoseuprodutode alienação,algoquelevaohomemase esquecer de sua essência humana. A filosofia deve ser um processo dedesalienaçãoemdireçãoàliberdade,dereencontrodohomemconsigomesmoedepercepçãodequeoshomenssãoocentrodetudo.

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Marxbuscouaplicareexpandiroconceitofilosóficodealienaçãoparaalémdoâmbitodafilosofiadareligião,partindoinicialmenteparaoestudodafilosofiapolíticadeHegel.Assim,eledescobrequetodosos jovenshegelianoscaemnomesmo equívoco que a teologia e a filosofia hegeliana da religião cometeram,invertendo a essência e a aparência. Na sociedade moderna, o homem não éalienadosomentenarelaçãoqueasreligiõesestabelecementreeleeDeus,mas,também,noprimadodoEstadoanteasociedadecivil.OEstadonãoseriaparaMarx uma esfera independente e superior, que ao se tornar racional resolveriatodos os problemas da sociedade, mas, sim, dependente e subordinada comrelaçãoàsociedadecivil,istoé,dasrelaçõessociaiscapitalistas.Oequívocodosjovens hegelianos seria apostar que o interesse universal pode ser efetivado noEstado,independentementedosconflitospróprioseinerentesàsociedadecivil.AfilosofiahegelianadoEstadoracionalnãoécapazdecompreenderaverdadedosprocessossociaisdasociedademoderna:sãoosinteresseseosantagonismosdeclasse que definem, no interior do capitalismo, a natureza doEstado; nenhumamudançareformistadaformapolítica(absolutismo,monarquiaconstitucionalourepública) pode superar por si sóos problemas sociais, apenas a transformaçãorevolucionária do conteúdo social (a abolição da sociedade de classes). ParaMarx,oabsolutismoalemãosóserásuperadopormeiodeuma revoluçãosocial,não por uma revolução política (muito menos uma mera reforma); em outraspalavras:nãoseráoliberalismooresponsávelpelaaboliçãodesseregime,esimosocialismo. Essa conclusão leva Marx a romper com os jovens hegelianos(inclusive Feuerbach) e a se afastar da filosofia alemã, passando a estudareconomistasinglesesefranceses.Noseuentender,afilosofiapolíticaeadoutrinadoEstadoracionaldevemsersubstituídaspela economiapolítica,poissomenteessaciênciaécapazdecompreenderadinâmicaeofuncionamentodonúcleodocapitalismo, que consiste na produção de mercadorias e nas relações entre asclassessociaisfundadasnaquestãodapropriedadeprivada.

Devido às suas posições políticas contra a monarquia prussiana, Marx éforçadoaseexilarnaFrança(1843-1845)edepoisnaBélgica(1845-1848).EmParis,centrorevolucionárioeuropeudurantetodooséculoXIX,Marxélevadoadescobertas teóricas fundamentais conforme ele toma contato com outro gruposocialparaalémdorestritocírculoalemãoconstituídopeloEstadoabsolutista,aburguesia liberal e a intelectualidade hegeliana: a classe operária europeia e osseusmovimentossociaismaisdesenvolvidos,ofrancêsoinglês.SeMarxhaviaconcluído que a realização da liberdade e da igualdade era impossível seconsiderada somente a esfera do Estado, restava, então, compreender como se

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poderiam efetivar as promessas emancipatórias da Revolução Francesa. AeconomiapolíticajáhavialevadoMarxaencontraraexplicaçãoparaaausênciade ímpetos progressistas na classe capitalista: antes de ter valores liberais, aburguesia é uma classe com interesses particulares fundados na propriedadeprivada.Marx,então,depositaasuaesperançaporumatransformaçãosocialnosnão proprietários: a classeoperária. EmParis, ele conclui que esta é a classecapazdesuperaraalienação,agoraentendidaporMarxcomoperdadaessênciahumananoâmbitodotrabalhoassalariadoedaexploraçãoeconômica, jáqueooperário é obrigado a produzir para o enriquecimento do patrão.A revoluçãosocialéapontadacomoomeiodadesalienaçãoelibertaçãodotrabalhador.

SãoduasasrazõesparaMarxatribuiressepotencialrevolucionárioàclasseoperária. Em primeiro lugar, na década de 1840, a chamada 1ª RevoluçãoIndustrialalcançaoaugedasuaexpansão,comumadegradaçãoinacreditáveldascondições de vida damaioria da população. Jornadas de trabalho praticamentesem limites,uso intensivodamãodeobra femininae infantil, baixos salários econdiçõesperigosasde trabalholevamaclasse trabalhadoraaviverumdeseuspiores momentos na história da humanidade, com um número incontável deoperáriosquesofreramcomadesnutrição,adeficiênciafísicaeatémesmocomamorte. Em segundo lugar, mesmo com todas essas dificuldades, diferentesmovimentos operários buscam se organizar nacionalmente a fim de defenderreivindicaçõeseconômicasepolíticas,comdestaqueparaaInglaterraeaFrança,masatémesmocomlevantesnaAlemanha.

MarxdiscordadadefesadoshegelianosdeumareformapolíticaqueinstaureoEstadoracional(republicanoedemocrático)comoocaminhoparaarealizaçãoda liberdade da humanidade, pois, para ele, esse projeto político não passa deuma ideologia, ou seja: transformao interesseparticulardaburguesia (que é aessência por trás do Estado moderno) falsamente em um interesse universal,contribuindoparaacontinuidadedadominaçãodessaclassesobreasoutras.Comasuaaproximaçãodaclasseoperária,Marxaderedefinitivamenteaosocialismo,sendo obrigado a romper com a intelectualidade hegeliana que continuavaapostando na burguesia e em uma reforma política republicana e democráticacomosoluçãoparatodososproblemasdaAlemanha.Marx,porsuavez,passaacompreenderqueosproblemas sociaisde todosospaíseseuropeuspassamporuma revolução social liderada pela classe operária. A sua concepção desocialismo será estruturada por dois conceitos-chave: de um lado, a luta declasses,oconflitoentreproprietáriosedespossuídos,aburguesiaeoproletariado;deoutro,apráxisrevolucionária,ousodaviolênciaporpartedosexploradose

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oprimidos para abolir a propriedade privada e a sociedade de classes e seautolibertar.

7.2.OsocialismoutópicoeasRevoluçõesde1848

Ao mesmo tempo que Marx se convence de que o movimento operáriopoderiaseroagentedatransformaçãoedaemancipaçãodasociedade,eletevedeconfrontarasdoutrinaspolíticasqueseconsolidaramnoseuinteriornodecorrerdas primeiras décadas do séculoXIX e que não necessariamente concordavamcomsuaspropostasteóricasepráticas.ComoavançoeaexpansãodaRevoluçãoIndustrial,surgemmuitosautoresepropostasdecarátersocialistaecomametadesolucionar os problemas sociais daí resultantes. Um dos primeiros dessespensadoresfoiRobertOwen(1771-1858),umdefensordaregulaçãodomercadode trabalho e realização de direitos sociais e trabalhistas (assistência médica,educação,moradia popular). Owen passou grande parte de sua vida buscandoinspirar a criação de comunidades utópicas isoladas e realizando açõesfilantrópicas com trabalhadores e empresários e ingleses influentes paraconvencer os mais ricos e os mais pobres da necessidade de uma sociedadeindustrialmaisracionalehumana.

ComoaInglaterrafoinoséculoXIXopaísmaisavançadoindustrialmentedomundo,foiláquesedesenvolveuoprincipalmovimentooperáriodaépoca,oqualcomeçoucomacriaçãodesindicatosvisandoàorganizaçãodegrevespormelhoressaláriosedepoisconstituiuumpartidopolíticochamado cartismo,porconta da apresentação de cartas e abaixo-assinados listando a reivindicação daclasseoperáriapordireitospolíticos–a lutapelademocratizaçãodamonarquiaconstitucionalinglesaouatémesmopelaproclamaçãodarepública–esociais–aluta por melhores salários e pela limitação legal da jornada de trabalho. Ocartismosedividiaemduasalas:amaismoderadaerachamadadeForçaMoral,pois apostava que por meio de reuniões públicas, jornais, panfletos e petiçõesparlamentaresasociedadepoderiaserconvencidadanecessidadedeumareformasocialqueprivilegiasseaeducaçãomoraldoscidadãos.Jáaalamaisradicaleraconhecida por Força Física, já que defendia o uso da violência caso a classeburguesa e a elite política da Inglaterra resistissem às suas demandas. OsdiscípulosdeOwenbuscaramdialogarcomosetormaismoderadodocartismo

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para enfraquecer o mais radical, pois se posicionavam totalmente contrários aqualquerusodeviolência,advogandoumcaminhopacifistaegradualista.

O desenvolvimento da concepção socialista de Marx, conhecida comocomunismo,dar-se-átantotendoocartismocomoparadigmacomoemconfrontocom duas correntes que se encontram bem representadas nos movimentospolíticos na França: os grupos conspiratórios inspirados no jacobinismo (a alamais radical da Revolução de 1789) e as seitas utopistas. O principalrepresentante da primeira corrente foi o revolucionário francês LouisAugusteBlanqui (1805-1881). Tendo participado de organizações secretas republicanasnaFrançamonárquica,eledefendiaqueumaeliteesclarecidaliderasseumgolpede Estado pormeio de uma conspiração ilegal, instaurando uma ditadura comobjetivos igualitários. Durante a sua vida, Blanqui alternou períodos deencarceramento e participação em levantes golpistas. Ele acreditava que aredistribuiçãoda riquezanão tinhacomosujeitopolíticoaclasseoperária,mas,sim,umpequenogrupoformadoporrevolucionáriosextremamenteorganizadosededicados à causa de estabelecer por meio do uso da violência uma ditaduratemporária.Somenteapósofimdaordemsocialburguesaopovopoderiadeteropoder político, mas ele sempre se preocupou muito mais com a realizaçãoimediatadeumarevoluçãopolíticasocialistadoquecomaimaginaçãodecomoseriaafuturasociedadeigualitária.

UmdosmaioresrepresentantesdooutropolotambémcombatidoporMarx–osocialismoutópico–foioescritorepolíticofrancêsÉtienneCabet(1788-1856).Seu livro mais famoso, Viagem à Icária, descreve uma sociedade utópicaperfeita. Cabet recrutou artesãos e camponeses para fundar uma comunaigualitária tal qual a que ele havia imaginado, o que se concretiza em 1848,quandoseguidoresdesuasideiasabandonamaFrançaepartemparaosEUA.

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Condiçõesprecáriasdosoperáriosindustriais:mulheresecriançastrabalhandoemfábricadeconservasemBaltimore(EUA),1912.

O comunismo defendido por Marx busca se opor tanto às seitasconspiratórias e ditatoriais de caráter jacobino quanto às seitas utópicas epacifistas.Comojáapontamos,osdoisconceitosteóricosepráticospormeiodosquaiselepropõeumasuperaçãodofalsodilemaentreessesdoissocialismossão:a lutadeclassesea práxisrevolucionária.

NoentenderdeMarx,oequívocodossocialistasblanquistaséareduçãodarevoluçãosocialaumarevoluçãomeramentepolítica(atomadadoEstado),assimcomoo rebaixamentodapráxis revolucionária à açãodeumaminoriagolpista,ignorandoopapelda lutade classesna constituiçãoda classeoperária comoosujeitocoletivodoprocessorevolucionário.OcomunismodeMarxentendequeousodaviolênciarevolucionáriasedánãoporumaminoria iluminada,maspelamaioria da população no interesse dessa própriamaioria, o que significa que averdadeirapráxisnadamaisédoquea autoemancipaçãodaclasseoperária,nãopor um grupo externo a ela, mas sim por suas próprias forças e interessesuniversalistas.

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Jáossocialistasutópicos(Owen,CabeteoutrosautorescomoSaint-SimoneCharlesFourier)erramaonãoreconhecerqueasociedadecapitalistaémarcadapeloantagonismoviolentoeopressorentreburguesiaeproletariado,ouseja,pelalutadeclasses.Nessecontextosocial,aapostaemumprogramapolíticomarcadopor reformas graduais e pacíficas acaba se configurando como uma ideologia,umavezqueapelaouparaafilantropiaeaharmoniaentreclassesirreconciliáveis(os dominantes e os dominados) ou desiste de disputar a sociedade a partir dedentro para construir comunidades isoladas. Somente a práxis visa a umatransformaçãototaldasociedade,pois,seaexploraçãosefundanapropriedadeprivada, apenas uma revolução que abolisse a sociedade de classes poderiaalmejaroenfrentamentodointeressedeumaminoriaburguesaealibertaçãodamaioriaoperária.

Tendo em mente a análise da luta de classes como o meio teórico paradesvendar a essência da sociedade capitalista e a defesa do uso da violênciarevolucionária como meio prático para a socialização dos meios de produção,Marxiniciaumaatuaçãonomovimentooperárioalemãosemabrirmãodeumapolítica internacionalista de contato com outros movimentos operários,notadamenteo francês eo inglês.OsobjetivosdeMarx, comFriedrichEngels(1820-1895), seu amigo e colaborador intelectual e político durante toda a suavida, eram a constituição de um partido comunista alemão e o combateintransigente contra tendências socialistas utópicas que ainda influenciavam aclasseoperáriaalemã.Em1846,MarxcriaemconjuntocomoutrostrabalhadoreseexiladosalemãesoComitêdeCorrespondênciaComunista;seusobjetivoseramaaproximaçãoeacolaboraçãoentreossetoresmaisavançadoseconscientesdomovimento operário europeu. Em 1847, Marx e Engels são convidados paraentrar na Liga dos Justos, uma sociedade secreta de trabalhadores artesãos eoperáriosalemães.Essaassociaçãooscilavaentreossocialismosconspiratórioeutópico: depois de ter participado da fracassada tentativa blanquista de golperepublicanodeEstadoemParis, aLiga se exilou emLondres e sevoltouparainiciativaspacifistasemorais.Marxbuscouinfluenciara transformaçãodaLigados Justos em uma Liga Comunista, escrevendo em 1848 com Engels umprograma político para ela: omundialmente famoso Manifesto comunista.Ali,eles estabeleceram as diretrizes para o movimento comunista, indicando anecessidadedesepensararevoluçãosocialpartindonãoapenasdalutadeclassese da práxis,mas, também, de umponto de vista internacionalista. Durante osanos de 1848-1849, Marx e Engels participam ativamente das mobilizaçõessociaisrevolucionárias,democráticaseantiabsolutistas;sãoexpulsosdaBélgica,

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viajamprimeiroparaaFrança revolucionária,depoisparaaAlemanha; fundamum jornal revolucionário chamado NovaGazetaRenana e passama atuar nãoapenas nos órgãos políticos dos movimentos operário e republicano comotambém buscam realizar uma cobertura dos acontecimentos políticos e dosprocessossociaisemoutrospaíseseuropeus.

NoentenderdeMarx, aRevoluçãoeuropeia sópoderia terdois resultadospossíveis: de um lado, revolução social liderada pelo cartismo na Inglaterra,proclamaçãoderepúblicassociaisnaFrançaenaAlemanhaedeindependêncianacional na Polônia, Itália e Hungria; de outro, derrota de todos essesmovimentos sociais progressistas e fortalecimento contrarrevolucionário dosregimes absolutistas da Prússia, Áustria e Rússia. Emancipação ou opressão,libertaçãoouescravidão,enfim:revoluçãooureação.

7.3.A1ªInternacionalentreomarxismoeoanarquismo

O cartismo inglês, embora fosse a principal aposta política de Marx, é oprimeiromovimento social a ser reprimidopormeiodeprisões e perseguições,logonoiníciode1848.Emjunhodessemesmoano,osoperáriosdeParistentampressionar oGoverno Provisório que havia substituído amonarquia francesa afim de avançar um programa socialista; os trabalhadores foram brutalmentereprimidos, com milhares de insurgentes mortos, abrindo o caminho para atransformação da recém-proclamadaRepública na ditaduramilitar deNapoleão3°.OabsolutismoaustríacotemsucessotantoemreprimironacionalismoitalianoquantoemderrotararevoltademocráticadetrabalhadoreseestudantesemViena;seuúnicofracassofoicomrelaçãoà revoluçãohúngara, tendodeapelarparaaintervenção militar russa. Isolada com relação a todos os outros movimentosoperários e nacionalistas, a Revolução Alemã é sufocada pelo absolutismoprussiano.Como triunfo esmagador da contrarrevolução internacional,Marx eEngelssãoforçadosaabandonarprimeiroaAlemanhaedepoisaFrança;assim,são obrigados a se exilar na Inglaterra, ondemorarão pelo resto de suas vidas.SeránestepaísqueMarxencontrarámaterialteóricoeempíricoparaaprofundarsuaconcepçãodesocialismo,partindodeumacompreensãocientíficadasleisdomovimentodocapitalismo.

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BarricadasnaRuaSoufflot,Paris,25dejunhode1848,deHoraceVernet,1848-1849.DeutschesHistorischesMuseum,Berlim.

Emumaprimeiraanálisehistórica(em LutadeclassesnaFrança,de1850)acerca das razões pelas quais o período revolucionário de 1848 não conseguiuconquistarastransformaçõesaqueosmovimentossociaisenvolvidosaspiravam,Marxpercebequeaascensãoeaquedadopotencialrevolucionáriodessesanosestavammuitocondicionadaspelocicloeconômico,ouseja:osperíodosdecriseeconômicapoderiamsertransformadosemmovimentospolíticosrevolucionáriose progressistas, enquanto os períodos de recuperação e expansão econômicasresultariamemmovimentoscontrarrevolucionárioseconservadores.Durantetodaa década de 1850, Marx estuda os principais autores da economia política,acompanhandotambémasoscilaçõesdecurtoprazodasfinançaseuropeias,como objetivo de aprofundar os seus conhecimentos acerca do capitalismo. Suaexpectativa era que a análise científica do funcionamento das crises periódicaspermitiriaaprevisãodapróximaaberturarevolucionária,apontandobrechasparao movimento operário intervir prática e politicamente na direção da revolução

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social.Marxrealizauma críticaàeconomiapolíticacomointuitodediferenciaro

queháneladerealmentecientíficoeoquehádeideológico.OseconomistasqueMarxchamadevulgares são incapazesdedar contada essênciadosprocessossociais,permanecendosemprenasuperfíciedosfenômenoseconômicos;elessesatisfazem,porexemplo,emdescreveromovimentodospreçosqueoscilamdeacordo com a relação entre a oferta e a demanda. Já os economistas clássicos,comoAdamSmith(1723-1790)eDavidRicardo(1772-1823)sãoconsideradosporMarx os mais científicos que surgiram até a sua época, uma vez que seuesforço teórico se direciona para a descoberta do que está por trás dessesmovimentos aparentes, a fim de encontrar umamedida fixa que condiciona namédia os preços das mercadorias; eles nomearam a essência dos preços comovalor e descobriram que este é determinado pelo tempo de trabalho socialnecessárioparaproduzirasmercadorias.

Contudo,mesmoesseseconomistasmaisavançadosaindanãosãocapazesdedarcontadatotalidadedosfenômenosdeumaeconomiacapitalista.SegundoMarx, a razão para essa insuficiência teórica se encontra na eternização dasrelações capitalistas: a economia política burguesa esconde que o capitalismo éhistórico,apresentando-ocomofrutodanaturezahumana,comosefosseprópriodaessênciadohomemproduzirmercadoriasquesejamtrocáveispeloseuvalor.A existência do valor como uma medida social que permite a equiparação,comparaçãoetrocaentreosmaisdiferentesprodutosdotrabalhohumanoéumaexclusividade histórica do modo de produção capitalista, uma vez que a suacondiçãoéa transformaçãoda forçahumanade trabalhoemumamercadoriaaser vendida no mercado. Essa mudança histórica só ocorre quando ostrabalhadoresdeixamdeserproprietáriosdeseusmeiosdeprodução,quandoosservoscamponeseseosartesãosmedievaissãoexpropriadosdesuasterrasedesuasferramentasesãocoagidosavenderaúnicapropriedadequelhessobrou:asuacapacidadedeproduzirede trabalhar.Elesse tornamoperáriosepassamavenderasuaforçadetrabalhoporum salário,umaquantidadedeterminadadedinheiroquegarantaasuasobrevivênciamaterialeadesuafamília.

Ovalorsósetornahistoricamentepossívelquandooprocessoprodutivosebaseia,comonamodernalinhadeprodução,emumtrabalhosimpleserepetitivo,o qual Marx denomina trabalhoabstrato.A indústriamoderna transformou otrabalhohumanoemtrabalhoabstrato:asuacaracterísticaconcretaéindiferente(seéproduçãodelã,desapatosoudemáquinas),oúnicoelementoqueimportaéareduçãodetodosessestrabalhosconcretosaumamedidatemporalqueostorne

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comparáveis e equiparáveis entre si.A condiçãopara esse tipode trabalho é osurgimentodeumagrandemassadetrabalhadoresnãoproprietários,ouseja,daclasseoperáriaurbana,bemcomodeumdesenvolvimentotecnológicoindustrialnoqualasmáquinaspassamaseroprincipalinstrumentodetrabalhoeditamumritmodeproduçãoquesejacalculávelpelaquantidadedehoras.SmitheRicardoignoraramque somentenomododeproduçãocapitalista, como surgimentodapropriedade privada moderna, é que o valor como medida de troca dasmercadoriaspodeexistir.O resultadodisso éobscurecernãoapenas a essênciahistóricadocapitalismocomoaexploraçãoeconômicaquefundaessasociedade.

A eternização das relações capitalistas não decorre apenas da percepçãosubjetiva dos economistas burgueses, mas de que a realidade econômica docapitalismo se apresenta objetivamente como algo natural. Marx chamou essefenômeno de fetichismo: as relações sociaisentrepessoasaparecemcomoumarelação natural entre coisas. Marx busca superar o limite teórico da economiapolítica clássica em apreender a verdade dos fenômenos sociais essenciais docapitalismopormeiodoconceitode mais-valia.

Dopontodevistadoseconomistasburgueses,ocapitalismosecaracterizariapela troca livre e igual entre proprietários de mercadorias (por produtos quecontenhamamesmaquantidadedetempodetrabalho).Anossasociedadeseriaoreinoda liberdadeeda igualdade,pois aspessoas se encontrariamnomercadopara vender mercadorias por dinheiro com o objetivo de comprar com essemesmo dinheiro outras mercadorias que são, para elas, úteis, necessárias oudesejadas.Contudo,arealidadedocapitalismoébemoutra:aspessoasnãosãomerosindivíduos,mas,sim,integrantesdedeterminadasclassessociais,eatrocamais importante que existe nessa sociedade é aquela entre o proprietário dosmeiosdeprodução(ocapitalistaindustrial)eoproprietáriodaforçadetrabalho(ooperáriourbano).

Comojávimos,aúnicamercadoriaqueooperáriopossuiparavenderéasuaprópriaforçade trabalho,oqueelefazemtrocadesalário.Osalário,preçodamercadoria forçade trabalho, édeterminadodamesmamaneiraqueovalordetodas as outrasmercadorias: pela quantidade de tempo de trabalho socialmentenecessário para a sua produção.No caso da força de trabalho, isso significa aprodução e a reprodução da vida do trabalhador: alimentação, vestuário,habitação, enfim, tudo aquilo que garanta a continuidade da sua existênciamaterialeespiritual.

O segredo do capitalismo é a diferença entre o valor total produzido pelaforça de trabalho e o seu valor de troca, pois, via de regra, a quantidade de

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dinheiropagapelocapitalistaaooperárionaformadesalárioémenordoqueaquantidade de dinheiro que ele ganhará ao vender todas as mercadoriasproduzidas durante a jornada do trabalhador. O nome dessa diferença entre ovalortotalproduzidoeovalordeterminadodosalárioé mais-valia,umtempodetrabalho que não é pago ao operário, mas, sim, apropriado pelo industrial.Aprincipal forma de extração de mais-valia se dá por meio do investimento eminovações técnicas e científicas, como máquinas, para desenvolver aprodutividadedotrabalho,poisassimseaumentaaquantidadedevalorqueseráproduzido,semaumentarajornadadetrabalhonemosalário.Podemosperceberque a compra da força de trabalho por um salário não é mera troca deequivalentes, mas uma relação de exploração, na qual o capitalista extrai dotrabalhadorumvalormaiordoquepagaaele.Oconceitodemais-valiadesvendaoproblemadofetichismo,poisdemonstraaverdadedarelaçãosocialquecadamercadoriacontémeexplicaaexistênciaeareproduçãodasclassessociais,poisé a extração de um excedente de valor que viabiliza a perpetuação de umasociedadedivididaentreumaclassedominanteeumaoutradominada.

ApóstermosapresentadoalgunsdosprincipaisconceitosdeMarx,podemosfinalmentetratardateoriaqueeledesenvolveacercadas criseseconômicasedatendência do capitalismo de entrar em colapso. A crise se dá porque odesenvolvimento técnico-científicopromovidopelocapitalismoparaaumentar aextraçãodemais-valiaentraemcontradiçãocomapropriedadeprivadadosmeiosdeprodução.Ocapitalistasópodeencerrarocicloeconômicodesuaatividadeembuscadelucroquandoasmercadoriaschegamaomercadoesãoconsumidasporproprietáriosdedinheiro.Contudo,emumasociedadecapitalista,amaioriados consumidores são necessariamente operários, pois a situação social daburguesia é restrita a uma minoria que detém a propriedade monopólica dosmeiosdeprodução.Comoa tendênciadocapitalismoéproduzircadavezmaismercadoriasemcadavezmenostempograçasàciênciaeàtecnologia,oaumentoda produtividade resulta na substituição de trabalhadores por máquinas e,portanto,emdesempregocrescenteemercadoconsumidordecrescente.Ascriseseconômicas são manifestações cíclicas e periódicas deste conflito entre odesenvolvimentodasforçasprodutivas(ciênciaetecnologiagerandomais-valiae,portanto, expandindo o lucro) e as relações de produção (mais-valia gerandodesempregoe,portanto,impedindoolucro),evidenciandoqueocapitalismonãoénaturalnemeterno,masumasociedadehistoricamentelimitadaetransitória.

Anosdepoisdoperíodocontrarrevolucionárioquesucedeociclopolíticode1848, o ressurgimento do movimento nacionalista polonês propicia a

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reaproximaçãodosmovimentosoperáriosinglêsefrancês,quefundamem1864aAssociaçãoInternacionaldosTrabalhadores(A.I.T.),tambémconhecidacomoa 1ªInternacional.Empoucotempo,Marxseaproximadessainstituiçãosurgidadaauto-organizaçãodosoperáriosepassaainfluenciá-lateóricaepraticamente.Como já vimos, a classe operária e o seumovimento social são, paraMarx, osujeito histórico da revolução social. Entretanto, o sucesso de sua açãorevolucionária encontrariaumobstáculonosoutros socialismosquedisputavamespaçona1ªInternacionalnasdécadasde1860e1870,poisnãocompreenderiamcorreta e cientificamente a relação entre o econômico e o político. Somente acrítica da economia política seria capaz de desvendar a verdade dos processossociais e, por isso, constituir-se-ia em uma arma fundamental do movimentooperário. Marx reconheceu a importância da luta econômica reformista pormaiores salários e uma menor jornada de trabalho e, assim, buscou fundar osocialismoapartir desta açãoque já era real dentrodomovimentooperário daépoca. Porém, Marx nunca deixou de apostar que esse ponto de partida setransformaria progressivamente em uma luta política revolucionária, com aconstituição de partidos políticos operários independentes das outras classesdominantesequevisassemàtomadadoEstadopelamaioriadapopulaçãoparaabolir a sociedade de classes e instaurar uma democracia real. O núcleo dosocialismocientíficodeMarxresidejustamenteemapontaraunidadeentrea lutaeconômica e a luta política do movimento operário, entre a reforma e arevolução. Uma compreensão científica do capitalismo possibilita, para Marx,desvendaroqueestáocultonarelaçãosalarial:emboraamelhoriadascondiçõesdevidadosoperáriossejafundamentaleindispensável,aexploraçãoeconômicaeaalienaçãodotrabalhadornuncaserãosuperadasporessemeio,poisamais-valiaéumadominaçãoqueaprisionaooperárionasuacondiçãodeoprimido.Apenasa práxis revolucionária, a abolição do trabalho assalariado pelo própriotrabalhadorpodegarantirasuaemancipaçãoelibertação.

O primeiro adversário de Marx na A.I.T. foi o socialista francês Pierre-Joseph Proudhon (1809-1865), o primeiro autor a se declarar anarquista. SeMarxdefendiaaaboliçãodapropriedadeprivadaeasocializaçãodosmeiosdeprodução, Proudhon acreditava que a propriedade privada poderia sertransformadaemmeraposse,eostrabalhadoresdeveriamseassociarlivrementeem cooperativas de produção para trocar mercadorias por preços justos,instaurando relações de igualdade. Essa utopia econômica seria completada naesfera política pela substituição do Estado-nação por uma federação formadapelascomunidadesdetrabalhadores.Todasessasmudançassedariamcomuma

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reformagradual,pormeiodecooperativasereformasmonetárias.Marxcombatevigorosamente estas ideias nos primeiros congressos da A.I.T. tanto porqueencaravaatransformaçãodocapitalismopormeiodeumprocessopacíficocomoalgo impossível quanto porque os proudhonianos negavam ao movimentooperário a luta econômica – todo aumento salarial geraria para eles apenasinflaçãoenenhumamelhoranavidadostrabalhadores–ea lutapolítica–poistodadisputapeloEstadocentralizadoeraincompatívelcomametaanarquistadeumafederaçãodescentralizada.

Conformea forçadosproudhonianosseesvaino finaldadécadade1860,serácontraMikhailBakunin(1814-1876)queMarxtravaráoprincipalconfrontodesuavidanointeriordomovimentosocialista.Bakuninenxergavaonúcleodetodaaexploraçãonahistóriadahumanidadenãonaeconomia,masnapolítica,ouseja,noEstado.Paraele, todoEstadoéopressor, independentementedasuaforma política (por mais democrática que seja), já que a existência de umainstânciaestatalsuperioràsociedadejásignificariaaescravidãodeumamaioriaem proveito de umaminoria.A teoria anarquista do Estado é inaceitável paraMarx, porque para ele o fundamento da exploração moderna é de carátereconômico.Todosocialismoquenãoadmitiramais-valiacomoachaveparaateoria e a prática do movimento operário não é científico. Como a opressãopolíticaéderivadadaeconômica,oEstadosóseriaverdadeiramenteabolidoapóso fim da propriedade privada, pois esse é o núcleo da libertação da classeoperária.Bakunin tambémnão pode aceitar os termos deMarx, pois oEstadodeveriaserdestruídoimediatamentepelarevoluçãosocial,jáqueeleseriasempresinônimodeditadura:nãohaverialiberdadepossívelenquantoeleexistir.

Essa disputa inconciliável entre anarquistas e marxistas no interior da 1ªInternacionalexplodenodecorrerdadécadade1870,dificultandoodiálogoentrediferentes movimentos operários nacionais. Após a Guerra Franco-Prussiana(1870-1871),aclasseoperáriadeParisserevolta,retomandoalutarevolucionáriade 1848. Surge a Comuna de Paris, um governo democrático e horizontalformadoportrabalhadoresqueavançoueminúmerosdireitossociaisesignificouuma importante experiência política para a história do socialismo mundial. Osexércitos prussiano e francês esmagaram a Comuna, prendendo, exilando eassassinando mais de 50 mil operários que dela participaram. O início de umnovo período contrarrevolucionário, commuita repressão militar e policial daslutassociaisdosmovimentospopulares,simultaneamenteàrupturapolíticaentreosseguidoresdeMarxedeBakunininviabilizarama1ªInternacional,extintaem1876.

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7.4.Entreareformaearevolução:a2ªea3ªInternacionais

Paraencerraranossabrevehistória,elegemosaAlemanhaeaRússiacomoospalcosnacionaisondeacreditamosqueosrumosdosocialismonoséculoXXforamdefinidos.Acompanharemos o contexto histórico desses dois países e asdiferentes concepções de socialismo que ali buscaram influenciar omovimentooperário.

ARevolução de 1848 naAlemanha termina como fracasso da unificaçãonacional. Nos anos seguintes, o nacionalismo alemão perde o seu caráterdemocráticoerepublicano(defendidopelaclasseoperáriaepelasclassesmédias)parasercadavezmais identificadocomoumaideologiaconservadora(próximada monarquia e da aristocracia proprietária de terras). Essa transformação foiincentivadapelapolíticadaPrússiade reuniros reinadoseprincipadosalemãessob a sua hegemonia, o que foi alcançado por meio de três guerras contra aDinamarca,aÁustriaeaFrança.Em1871,oImpérioAlemãoéproclamadocomuma aparência de um regime constitucional,mas, para prevenir uma revoluçãoque se inspirasse naComuna de Paris, são criadas as leis antissocialistas, quebaniram a representação política dos partidos socialistas e censuraram seusjornais.OSPD(siglaemalemãoqueusaremosparanosreferiraoPartidoSocial-Democrata alemão) se desenvolveu nesse contexto histórico como o primeiropartidoinspiradonasideiasdeMarx.

Nesseínterim,naRússiafoicoroadoumnovotzar(rei),que,parapreveniraevolução dos descontentamentos sociais para uma revolução camponesa queameaçassecontestaroregimeabsolutista,decideem1861aboliraservidãoeosprivilégios feudais. Essa medida tem dois resultados fundamentais:economicamente,liberoudaprisãodaterragrandepartedostrabalhadoresrurais,os quais se tornaram assalariados urbanos, fundamento do crescimento daindústriacapitalista;politicamente,estabeleceuasbasesparaodesenvolvimentodoprimeiromovimentosocialistanaRússia,chamadode populismo.

Professores e estudantes russos, decepcionados que o fim da servidão nãoamadureceu condições para um despotismo esclarecido nemparao avançodereformas liberaiseconstitucionaisnaRússia,criaramomovimentopopulistanadécada de 1870, buscando o apoio da classe camponesa para questionar o

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absolutismotzarista.AsliderançaspopulistasmantiveramcomMarxumcontatoteóricoepolíticopormeiodecartas;porcontadessediálogo,aprimeiratraduçãodo Livro I d’ O capital foi a da língua russa. Embora Marx tenha sempreencaradoaRússiacomoumasociedadeeconômicaepoliticamenteatrasada,elese posicionou ao final de sua vida ao lado do socialismo defendido por essesintelectuais, baseado na aposta de que a propriedade comunal da terra docampesinatorussopoderiaserabaseparaumasociedademaisjustaeigualitária,bem como a revolução russa poderia ser o estopim para a eclosão de levantesrevolucionáriosnaEuropaocidental.Entretanto,omovimentode“idaaopovo”afimdeesclarecer e liderarocampesinato fracassa, tantopor contada repressãopolicialemilitarquantopor resistênciasdosprópriosservos recém-libertos,quemantinham uma relação de gratidão para com o tzar, visto como o paibenevolentedosrussos.Ospopulistassãoforçadosamudarasuatática,passandoadefenderoterrorismocomooúnicomeiodecombateroregimepolítico.Elesacreditavamque, se o tzar fosse assassinado, os camponeses passariam a vê-lonãomais comouma figuraquasedivina e apoiariamum levante socialista.Em1881,otzaréassassinado,masoscamponesesnãosesolidarizamcomoatentadoterrorista, permanecendo fiéis ao regime absolutista, que passa a reprimirfortementeaslutassociais,causandoumretrocessodomovimentosocialistanospróximosanos.

ComamortedeMarxem1883,Engelssetornaoprincipalherdeiroeteóricodomarxismo,assumindoafunçãodedivulgarasobraseasideiasdeseuparceirointelectual.Engelsnãoapenaseditouepublicouobraspóstumas,comoosLivrosII e III d’ O capital, mas, também, encorajou pensadores de outros países adesenvolver o socialismo científico. Georgi Plekhanov (1857-1918) foi quemrealizouaponteentreomovimentosocial russoeaobradeMarxedeEngels.Emboratenhaparticipadodopopulismo,Plekhanovrompecomasuateoriaeasuatáticaterrorista.Paraele,onúcleodateoriadeMarxeraaapresentaçãodeleiseconômicasobjetivasdahistória,oqueresultouemumaconcepçãomecanicistaevulgardomarxismoeemumadefesa intransigentedo etapismo,anecessidadeinescapável de todas as sociedades passarem por uma série rígida de etapashistóricas: feudalismo, capitalismo, socialismo, comunismo. A principal liçãopráticaparaumpaíspredominantementeruralcomoaRússiaseriaocrescimentodo capitalismo industrial como o único caminho para o desenvolvimento dosocialismo,umaetapaposterior.Ospopulistasseequivocariamaofundaroseumovimento social na classe camponesa e esquecer as etapas da história.Ignorando que no fim de sua vida Marx tinha visto no campesinato russo

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possibilidadesdeaçãorevolucionária,Plekhanov,baseadoemumaleituraparcialde suas obras, passou a defender que o sujeito da revolução só poderia ser aclasse operária urbana e que a única luta social antiabsolutista coerente com osocialismo científico de Marx seria a defesa de uma revolução burguesarepublicanaparaavançarodesenvolvimentodocapitalismoindustrialnaRússiaeprepararasbasesparaummovimentooperárioque,no futurodistante, liderariauma revolução socialista. Essa concepção etapista de socialismo estabeleceu asbasesdadoutrinaoficialtantodasocial-democraciarussaquanto,maistarde,doPartidoComunistarussoedaprópriaUniãoSoviética.

Em 1889, partidos operários de inúmeros países se unem para criar aInternacionalSocialista,tambémconhecidacomoa 2ªInternacional,cujamissãoeraretomarodiálogoealutaconjuntadosmovimentosoperáriosnacionais,quehaviamsido interrompidoscomaextinçãodaA.I.T.SePlekhanoveraomaiordivulgador do marxismo na Rússia, o principal interlocutor de Engels naAlemanhaseráKarlKautsky(1854-1938).NoanodamortedeMarx,elecriaumjornal chamado ONovoTempo , que será o órgão teóricomais importante doSPD.ApósamortedeEngels,Kautskyse transformaránomaior representantedochamado“marxismoortodoxo”, tambémconhecidocomoomarxismoda2ªInternacional. Para se ter uma noção do peso de suas formulações, é precisoconsiderarquenaviradadoséculoXIXparaoXXosescritosdeKautskyforamlidosmuitomais do que os originais deMarx.Essa concepção demarxismo éclaramente expressa no programa do SPD de 1891, muito inspirado por seupensamento e escrito logo após o fim das leis antissocialistas. Enquanto omarxismovulgardePlekhanovsecaracterizavaporummecanicismoetapista,omarxismodeKautskyeramarcadamenteevolucionista(comumaforteinfluênciado pensamento de Darwin) e defendia que o socialismo não seria produto dapráxis revolucionária da classe operária, mas, sim, fruto do desenvolvimentonecessário das leis objetivas da história. Por essa razão, a tarefa da social-democracia deveria ser apenas a melhoria das condições de vida da classeoperáriapormeiodereformassociaisatingidaspelaparticipaçãopolíticalegal.Omovimentooperárionãoprecisariaagirrevolucionariamente,masapenasesperarpassivamenteodiaemquearevoluçãochegariaporcontadainevitabilidadedocolapsodocapitalismo.

Nos últimos anos do século XIX, o teórico e político alemão EduardBernstein(1850-1932)lançaráumasériedeartigos,iniciandoumapolêmicaquesetornouconhecidacomoodebatesobreo revisionismo.ColaboradortantodeEngels quanto de Kautsky, Bernstein questionou algumas teses marxistas e

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propôs novas estratégias para omovimento operário alemão.A dificuldade emenxergar a aproximação do colapso do capitalismo devido ao desempregotecnológico e a constatação de que a polarização violenta entre burguesia eproletariadonão foiverificadaporcausadaconsolidaçãodeumagrandeclassemédia, levaram Bernstein a recusar as teorias do valor e da mais-valia, vistascomonãocientíficas,poisteriamsubstituídoaobservaçãodefatosempíricospormerasdeduções.Oresultadopráticodessedescartefoiapropostarevisionistadeque o SPD abandonasse de vez o seu programa revolucionário.No seu lugar,Bernstein defende um socialismo evolucionista, ou seja, uma crençamoral deque o capitalismo pode ser mudado não a partir da violência, mas, sim, dereformassociaisgraduaisepacíficasequeessedesenvolvimentolevaráàcriaçãodeumasociedadesocialista,justaeigualitária.Ocernedorevisionismoeraumaaposta na democracia parlamentar a fim de obter direitos sociais com anecessidade,inclusive,detrabalharcomoutrospartidospolíticosalemães.

Kautsky foi o primeiro teórico a se posicionar contra o revisionismo deBernstein,criandoumrachanoSPD.Comovimos,entretanto,oevolucionismodeKautsky só diferia do deBernstein pormanter uma retórica revolucionária:durantetodaasuacarreiraeleraramentedefendeudefatoaçõesrevolucionáriasporpartedopartidooperário.ArespostateóricamaisconsistentecontraBernsteinfoi formulada pela economista e ativista polonesa Rosa Luxemburgo (1871-1919), a qual se tornou nas duas primeiras décadas do século XX a principalrepresentante da ala esquerda do movimento operário alemão. Como RosapermaneceufielaométododeMarx,eladenunciavaoequívocodeBernsteinemtransformaromeiodalutadeclasses(areformasocial)emumfimemsimesmo,abandonando o verdadeiro objetivo final do socialismo (a revolução social).Assim como Marx, Rosa nunca deixou de sublinhar a relação entre a lutaeconômicareformistadomovimentooperárioeasualutapolíticarevolucionária.Emseulivro Aacumulaçãodocapital,RosaprocuroucontinuaropensamentoeconômicodeMarxnoquesitododescompassoentreproduçãoeconsumo.Marxhavia concluído que o colapso do capitalismo era inevitável devido aodesempregotecnológico;jáRosabuscouapontarqueocapitalismopoderiaadiaresta tendência pormeiodo imperialismo, umavezqueaproduçãovisandoaolucro poderia continuar se expandindo se países capitalistas conquistassemregiõesnãocapitalistas,asquaiscomprariamasmercadoriasproduzidasquenemburgueses nem operários seriam capazes de consumir. Entretanto, como essaexpansãomundialtransformaprogressivamenteassociedadesnãocapitalistasemcapitalistas, as potências industriais são obrigadas a avançar ainda mais a

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colonização do globo terrestre, resultando em guerras imperialistas e noesgotamento das regiões para onde seria possível exportar mercadorias. Noentender de Rosa, o capitalismo estaria condenado ao colapso, justamente aconclusão oposta á de Bernstein; enquanto este acreditava que o revisionismoprovavaqueocapitalismoerailimitado,oquefundamentariacientificamenteumatática reformista,Rosa insiste na tese deMarx de que o capitalismo tem claroslimites históricos, reabilitando um programa revolucionário para o SPD.Comoveremos,arupturaentrereformistaserevolucionáriosnointeriordomovimentooperário se dará justamente em torno da questão do imperialismo e da guerramundial.

VoltemosaodesenvolvimentodosocialismonaRússia:apósanosdepesadarepressãodoabsolutismoàslutassociais,odesenvolvimentoindustrialdecorrenteda transformação dos servos feudais em trabalhadores urbanos possibilita aconsolidaçãodomovimentooperário.OmarxismodePlekhanovpassaaserumabase teórica mais influente no interior do movimento socialista do que opopulismo, e o Partido Social-Democrata russo é criado no final da década de1890.LogonosprimeirosanosdoséculoXX,otzarismoiniciaaGuerraRusso-Japonesa e é derrotado, demonstrando a sua fraqueza externa e interna. Osoposicionistas burgueses aproveitam para se mobilizar em prol de reformaspolíticasconstitucionaisporliberdadesbásicas,aomesmotempoquesoldadosserevoltam e greves operárias de massa eclodem durante 1905, quando surgemconselhospolíticosformadosportrabalhadores,conhecidoscomo soviets.Nessaépoca, a social-democracia russa se encontrava dividida entre duas facções: osbolcheviques (o que significa “maioria” em russo) e os mencheviques(“minoria”).OgrandeprotagonistadesserachaseráVladimirIlyichLenin(1870-1924). Integrante da intelectualidade russa, ele começa a participar daorganizaçãodaclasseoperária russaedefendeem Oquefazer?queexisteumabismo intransponível entre a luta econômica e a luta política do movimentooperário. Seria necessário que intelectuais radicais oriundos da burguesialiderassem e esclarecessem os trabalhadores das tarefas revolucionárias e danecessidadedeseabolirarelaçãosalarial,poissozinhoselesnãoseriamcapazesde ultrapassar reivindicações reformistas. Daí resulta uma concepção quaseblanquista de socialismo, cujo núcleo é uma teoria do partido-vanguarda, noqual um pequeno número de revolucionários profissionais deve organizarsecretamenteuma tomadadoEstado.Enquantoosbolcheviquesadotama linhaformulada por Lenin, os mencheviques defendem uma noção ampliada epluralistadoquedeveriaserumpartidooperário,voltadomaisparaalutasindical

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e osmeios legais de participação política.Mas ambos seguiam omarxismo dePlekhanov e entendiammecanicamente que o socialismonaRússia deveria serprecedido pelo aprofundamento do capitalismo na Rússia com uma revoluçãoburguesaquesubstituísseoabsolutismoporumademocracia.Masumadiferençafundamental entre essas duas frações estava justamente nas classes sociais queelesapostavamcomocapazesdelideraressaetaparepublicanapró-capitalista:osmoderados mencheviques advogavam uma aliança dos operários com setoresprogressistas da burguesia, enquanto os radicais bolcheviques defendiam aliderança da classe operária apoiada pela classe camponesa, pois desconfiavamdoslaçosdaburguesiarussacomoabsolutismotzarista.AúnicaexceçãoaessedebatefoiointelectualeativistarussoLeonTrótski(1879-1940),quejádefendiaoprogramaquese tornouonúcleodaRevoluçãoRussade1917:aliançaentreoperáriosecamponesesnãoparafazerumarevoluçãoburguesa,mas,sim,umarevolução socialista, queimandoetapas, independentementedeaRússiaserumpaísatrasado.

APrimeiraGuerraMundial(1914-1918)foiumeventoquetransformouparasempre a história do movimento operário europeu. Na Alemanha, o SPDalcançousucessoseleitoraisexpressivosdepoisdeser legalizado,apontodesetornar o partido político mais popular do país; contudo, de acordo com aConstituição da época, o seu peso no legislativo nunca foi transformado eminfluência no executivo. O seu avanço se deu com o abandono do programarevolucionárioecomaadoçãodorevisionismodeBernstein.EssanovafasefoimarcadapeloapoioàparticipaçãodaAlemanhanaguerra,selandoaderrotadasmissõesda2ªInternacionaldepromoverasolidariedadeinternacionalistaentreasclassesoperárias anteosnacionalismosmilitaristas.RosaLuxemburgoe algunsoutrospolíticosdopartidosemantémasúnicasvozesoposicionistasnoImpérioAlemãocontra a catástrofehumanaque foi aPrimeiraGuerra (comcercade9milhõesdevidasperdidas);seuantimilitarismonãoétoleradopelopartido,queosexpulsa.

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EsquadrãodeexecuçãodaPrimeiraGuerraMundial:vendados,dejoelhosedispostosemsemicírculo,iugoslavosnaSérvia,próximosàsfronteirasaustríacas,sãoexecutados.

Parteconsideráveldosmencheviques,inclusivePlekhanov,tambémapoiaaparticipação russa na guerra. Lenin, por sua vez, chocado com a derrota dointernacionalismooperário,volta-separaestudoseconômicosedesenvolveasuaprópriateoriadoimperialismo.Leninenxerganaconquistademercadoscoloniaisporpartedospaísesindustrialmentemaisavançadosumaformadeocapitalismoanular a sua tendência de colapsar. Os lucros vindos do imperialismo teriamtornado possível subornar a parte mais abastada da classe trabalhadora,constituindooqueLeninchamoudearistocraciaoperária.AdivisãodomundoentreEstadoscolonialistaseempresasmonopolistas sópode tercomoresultadoum conflito militar mundial. Lenin vê nesse contexto uma oportunidade dedesenvolver a partir daRússia uma revoluçãooperária de caráter internacional.Assim, ele abandona o programa dos bolcheviques de 1905 da revoluçãoburguesaemfavordoprogramaformuladoporTrótski.

Noiníciode1917,eclodeaRevoluçãodeFevereironaRússia,naqualotzarfoi deposto e um Governo Provisório formado por liberais, remanescentes dopopulismo emencheviques assumiu o poder. Seu programa era uma revolução

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burguesa: proclamação da república, convocação de uma AssembleiaConstituinte para garantir liberdades básicas e consolidação do capitalismo naRússia. Enquanto a maior parte dos bolcheviques continuava presa àquelemarxismo etapista, Lenin apresentou o resultado prático de sua teoria doimperialismo.Paraele,aRevoluçãodeFevereirocomsuareformapolíticaseriaumretrocesso,sendooverdadeiroavançoarevoluçãosocialeaproclamaçãodeu m a república soviética, constituída pela união de soviets, conselhosrevolucionários de operários, camponeses e soldados, eleitos diretamente.Estesseriam uma forma política mais democrática do que a república parlamentarliberal.AgrandeexperiênciapolíticaqueLenin tinhaemmentenãoeramaisogolpismo de Blanqui, mas a Comuna de Paris, com sua ambição de abolir oexército, a polícia e a burocracia e estabelecendo a igualdade salarial entre umoperário e um funcionário público, a fim de abolir a hierarquia entre Estado esociedadeeinstaurandorelaçõespolíticashorizontaisentreostrabalhadores.Porfim,Leninpropunhaoficializararupturacomatáticanacionalistaeimperialistadasocial-democraciareformista,adotandoonome comunismoparadenominaroprogramarevolucionáriorussoe internacional,oqueinclusiveculminarácomodesligamentodosbolcheviquesda2ªInternacionaleafundaçãodaInternacionalComunista, conhecida também como 3ª Internacional.Aos poucos, os outrosbolcheviquessãoconvencidosaadotaralinhadeLenine,nofinalde1917,elestomam o Estado com o apoio do exército, cansado do esforço militar, e dossoviets,formadosportrabalhadoresquesofriamcomamisériaeafomecausadaspelaguerramundial.FoifundamentalparaosucessodarevoluçãoapropostadeLenin de repartição dos grandes latifúndios de terra, prometendo a suadistribuição para os camponeses e conquistando o seu apoio. O programa daRevolução deOutubro consistia em: fim imediato da guerra, reforma agrária etodopoderaos soviets.

Enquanto isso,naAlemanha, tantoossocial-democratas reformistasquantoosseguidores revolucionáriosdeRosaproclamama república,em1918.ComomaiorpartidopolíticodaAlemanha,oSPDassumeopoderexecutivo,eseulídersetornaoprimeiropresidentedaRepúblicadeWeimar(onovonomedoEstadoalemão). Em 1919, o grupo de Rosa, renomeado Partido ComunistaAlemão(KPD, em alemão) por conta da Revolução Russa, busca tomar o poder doEstado,maséviolentamentereprimido,comRosaeoutrosrevoltosostendosidoperseguidos e assassinados. Inúmeras tentativas de organizar a classe operáriaalemãparaumprogramarevolucionáriosãoigualmentefracassadasederrotadasnospróximosanos.OSPDseguenocomandodopoderexecutivo,contribuindo

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tanto para esmagar omovimento operário revolucionário quanto avançando napropagaçãodealgunsdireitosquefaziampartedeseuprogramadereformasociale demelhoria das condições de vida dos trabalhadores: redução da jornada detrabalho,seguro-desemprego,educaçãoesaúdepúblicasetc.

O racha entre social-democratas e comunistas terá graves consequênciasconformeorganizaçõesdeextremadireita,surgidasdesdeaderrotadaPrússianaguerraenostálgicosdobelicismoimperialistadasdécadasanteriores,passamaterforteapoiodapopulaçãoalemãe,em1933,opartidonacional-socialista,lideradoporAdolfHitleredefensorda ideologianazista,baseadaemmedidasracistasemilitaristas, toma o poder executivo, em uma escalada de violência política eperseguiçãodecomunistas, judeuseoutrosoposicionistasque levaráao fimdaRepúblicadeWeimareàinstauraçãodeumregimetotalitário.

EmboraaRevoluçãoRussativessecomoumdeseusobjetivosimediatosofimdaguerra,asoutraspotênciasenvolvidasnoconflitose recusaramaaceitarnegociações de paz, uma vez que encaravam a derrota daRepública Soviéticanãoapenascomoumanecessidadegeopolítica,mas,principalmente,ummeiodeeliminar a primeira revolução socialista nacional bem-sucedida da história eimpedirqueelasealastrasseparaoutrospaísesdaEuropa.AGuerraCivilRussaduroude1918a1921eexauriuaindamaisascapacidadesmilitareseeconômicasdo país. Lenin foi o líder da recém-formada URSS (União das RepúblicasSoviéticas Socialistas) e o responsável por implantar, por necessidade, umcomunismodeguerra,noqual,apesardeareformaagráriaterdistribuídoterraspara os camponeses, estes eram obrigados a ceder compulsoriamente a suaproduçãodegrãosparaalimentarosoperáriosdascidades.Trótskifoiolíderdoexércitovermelhonadefesaexitosada revoluçãocontraoschamadosexércitosbrancos,decarátercontrarrevolucionário.ComavitóriamilitardaURSS,Leninpropõeumamudançade180ºcoma NovaPolíticaEconômica,aqualalmejavauma recuperação da economia por meio de uma flexibilização que permitiaalgumas medidas pró-capitalistas, como, por exemplo, a liberdade de ostrabalhadores rurais comercializarem seus excedentes nomercado.No entenderde Lenin, tratava-se de uma medida temporária, enquanto outras revoluçõessocialistas não eclodiam nos outros países da Europa ocidental. Lenin nuncaabandonou o internacionalismo deMarx, tanto no plano teórico (como na suateoria do imperialismo) quanto no prático: o socialismo só poderia ser umfenômeno internacional, o que se tornou evidente após a Primeira Guerra, aGuerra Civil Russa e, por fim, a derrota ou mesmo ausência de focosrevolucionários em outros países da Europa Ocidental. Todos esses fatores

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contribuíramparaosdescaminhosdocomunismorusso.Conforme Lenin abandonou o terreno político para se concentrar na

reorganizaçãoeconômicadopaís,JosefStalin(1878-1953)passouacontrolarporconta desse vácuo de poder as indicações do segundo escalão burocrático dopartido e do Estado, tornando a sua hegemonia inquestionável. Essa situaçãopermitiuqueStalinprevalecessesobreTrótskinadisputaqueseinicioudentrodopartidoapósamortedeLenin,em1924.

SeTrótskieraigualmentepartidáriodointernacionalismooperário,oqueficaevidente na sua teoria da revoluçãopermanente, segundo a qual o sucessodarevoluçãorussadependedoavançodeoutrasrevoluçõessocialistas,Stalinpassaadefenderem termosestritamente realistasadoutrinado socialismoemumsópaís. Stalin eramais comprometido com o seu poder no interior da burocraciaestatal e com as potências estrangeiras do que com a emancipação da classeoperáriaearealizaçãodaliberdadeemumplanointernacional.Porisso,eleviaaeclosãodeoutrasrevoluçõessocialistascomoameaçasàestabilidadegeopolíticada URSS. Além de defender a ampliação internacional da revolução social,TrótskiadvogavaumareformapolíticainternaàRússia,comoresgatedopapeldos sovietseofortalecimentodademocraciainternaaopartido,quepassouaserliderado por Stalin de forma autoritária. Porém, o programa de Trótski foiduplamente derrotado: tanto as revoluções sociais no resto da Europa nãoavançaram no decorrer da década de 1920, como, por volta de 1927-8, Stalininicia um expurgo de todas as lideranças bolcheviques originais, por meio deexpulsões,exílios,prisõeseassassinatos,emumprocessoquenodecorrerde10anosconsolidouseupoderabsolutonaURSS.Simultaneamenteaessasmedidaspolíticas,StalinencerraapolíticaeconômicainiciadaporLenineasubstituiporum programa de coletivização da agricultura e de intensa industrialização,retomando o marxismo vulgar mecanicista que colocava em primeiro plano odesenvolvimento industrial antes da libertação social. O primeiro ponto marcaumarupturacomaaliançapropostaporTrótskieLenindaclasseoperáriacomocampesinato, pois retrocede no quesito da reforma agrária ao estabelecer aestatização da propriedade da terra. No decorrer da década de 1930, oscamponesesrussosbuscamresistirmassãobrutalmentereprimidos,commilhõesdeles tendo sido assassinados.Ao final desses processos político e econômico,Stalin havia transformado a república soviética russa, a qual almejava umaadministração horizontal da sociedade, em um dos regimes totalitários maisviolentosdahistória.

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VladimirIlitchLeninacenandoparamultidãonaPraçaVermelha,emMoscou,duranteaRevoluçãoRussa.Em26-10-1917,ogovernobolcheviquefoiestabelecidocomaliderançadeLenin.

ConclusãoComovimos,osocialismoéfeitodeumaricahistóriadedebates,conflitos,

evoluções e reviravoltas. A complexidade do mundo contemporâneo só écompreensívelseconsiderarmosasideiaseaslutaslevadasacaboporteóricoseativistasnointeriordemovimentossociaisconstituídosporoperários,camponesese intelectuais.Tanto as conquistas duradouras (comomuitos direitos políticos esociais)quantoasderrotasirreversíveis(comoosciclosrevolucionáriosde1848ede1917)ensinamqueocaminhoparaarealizaçãoconcretadaemancipaçãodaexploraçãoedaopressãoétortuoso,mas,senãofortrilhadoinsistentemente,asoportunidades históricas que se abrem podem se ver ameaçadas por reaçõesconservadoraseautoritárias.Muitosmorreramlutandoparaquehojesepudessevivermaisdignamente,assimcomotantosoutrosforamassassinadosparaqueainjustiça ainda permanecesse como um elemento fundante de nossa sociedade.

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Caberáàsgeraçõesfuturasdecidirseestessacrifíciosforamounãoemvão.

BibliografiaCHÂTELET,F. Históriadasideiaspolíticas.RiodeJaneiro:Zahar,1997.CORNU,A. KarlMarxetlaRévolutionde1848.Paris:PUF,1948.ENGELS,F. RevoluçãoecontrarrevoluçãonaAlemanha.Lisboa:Avante,

1981.ENGELS, F.; MARX, K. Manifesto comunista. São Paulo: Expressão

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Global,1989._______. Oestadoearevolução.SãoPaulo:ExpressãoPopular,2007._______. Oquefazer?SãoPaulo:Hucitec,1978.LOUREIRO,M. I. RosaLuxemburgo:osdilemasdaação revolucionária.

SãoPaulo:Ed.Unesp,1995.LÖWY,M. AteoriadarevoluçãodojovemMarx.Petrópolis:Vozes,2002.LUKÁCS,G. Históriaeconsciênciadeclasse.SãoPaulo:MartinsFontes,

2003.LUXEMBURGO,R. Aacumulaçãodocapital.SãoPaulo:AbrilCultural,

1985.MARRAMAO,G. Opolíticoeastransformações.BeloHorizonte:Oficina

dosLivros,1990.MARX,K. Amisériadafilosofia.SãoPaulo:ExpressãoPopular,2009._______. Críticaà filosofia dodireito deHegel – introdução. São Paulo:

Boitempo,2005._______. GuerracivilnaFrança.SãoPaulo:Global,1986._______. LutasdeclassesemFrança.Lisboa:Charantes,1984._______. Manuscritoseconômico-filosóficos.SãoPaulo:Boitempo,2004._______. O 18 Brumário. In: Marx. São Paulo: Abril, 1978. (Os

Pensadores.)_______. Ocapital.SãoPaulo:NovaCultural,1985a.v.1.

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_______. Ocapital.SãoPaulo:NovaCultural,1985b.v.2._______. Teorias da mais-valia . Rio de Janeiro: Civilização Brasileira,

1980.NOBRE, M. Introdução: modelos de teoria crítica. In: _______. (Org.).

Cursolivredeteoriacrítica.Campinas:Papirus,2008.ROSDOLSKY,R. GêneseeestruturadeOcapitaldeKarlMarx.Riode

Janeiro:Ed.Uerj/Contraponto,2001.

Créditosdasimagens–ArtArchive/OtherImages–LewisHine/GrangerCollection/OtherImages–Album/Akg-Images/Latinstock–Underwood&Underwood–PrintCollector/Diomedia

1Agradeço os comentários, sugestões e correções feitos porAntonia JunqueiraMalta Campos durante aelaboraçãodotexto.

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PorumaSociologiaPolíticaCríticaOdebateemtornodosconceitosdepoder,dominaçãoeresistência

EnioPassiani

Bibliografia

EscreversobreSociologiaPolíticanãoétarefafácil,umavezquesetratadeuma ramificação da Sociologia que pode abraçar uma lista extensa de temas,como:aformaçãoeaatuaçãodoEstado,opapelefuncionamentodospartidospolíticos, sindicatos e grupos de pressão, os fundamentos das democraciasmodernas,acrisedetaisdemocraciaseaascensãodosregimestotalitários,esepoderiaencompridarocatálogodeassuntosafeitosaessadisciplinaporumbomtempo. Soma-se a tal dificuldade uma segunda: embora a Sociologia Políticaconstitua uma área relativamente autônoma no interior da Sociologia – e dasciências sociais como um todo –, pois dispõe de um corpo teórico próprio, demétodos de análise específicos, de objetos de investigação peculiares (como,aliás,abrevelistamencionadajá indica),elapodeserconvertidanumasubáreade pesquisa de outras Sociologias particulares. Para sermos mais claros:dependendo do que se pretende analisar e interpretar no interior de campossociais determinados que compõem o que chamamos genericamente desociedade, épossível realizarumaSociologiaPolíticadaeducação,dacultura,da comunicação, da arte, e assim sucessivamente, tantos quantos forem oscampos identificáveis no interior das estruturas sociais. Nesse caso, nosdepararíamos, novamente, com uma lista exageradamente variada de temas equestões,colocando,assim,problemassériosparaquempretendedefiniroqueéSociologiaPolítica.

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Ainda que haja problemas, eles não são, absolutamente, incontornáveis. Epor uma razão até bastante simples. Desde os considerados fundadores dessadisciplinaacadêmicaeáreadepesquisa,KarlMarxeMaxWeber(RUNCIMAN,1966;LIPSET,1967), algunsconceitosparecemfundamentaisparaoexercíciodaanálise,dadiscussãoedaexplicaçãodos fenômenos sociopolíticos.Tantoéassim que tais conceitos insistem em reaparecer tanto na obra dos sociólogosclássicos (além de Marx e Weber, Auguste Comte, Herbert Spencer, ÉmileDurkheimeTalcottParsons)comonadoscontemporâneos(entreoutros,PierreBourdieu, Jürgen Habermas, Niklas Luhmann, Ralf Dahrendorf e AlainTouraine). São os conceitos de poder, dominação e, mais recentemente, o deresistência.Demodogeral,éapartirdelesqueseelaboramosmodelosteórico-interpretativos que servem de referência para a discussão de fenômenos einstituiçõespolíticos comooEstado, a democracia, os partidos, osmovimentossociais,asociedadeciviletc.

Sem pretender construir uma história da Sociologia Política que passeobrigatoriamente por todos aqueles autores que se preocuparam em defini-la –alguns jámencionadosemuitosoutrosalémdeles–,estecapítulosedeteránaselaboraçõescentraisdosconceitosde poder, dominação e resistênciaapontode se tornarem uma referência praticamente obrigatória para todo aquele queapenasseinteressasobreotemaoupretendeinserir-senessaáreadepesquisa.

Para encerrar esta introdução, três alertas, acreditamos, ainda se fazemnecessários:

1. é importante sublinhar que este capítulo não se preocupa em listar todos aqueles autores que sedebruçaram sobre os conceitos que aqui se pretende discutir,mas apresentar aquelas definiçõesmaisdebatidasnasciênciassociais,oque,evidentemente,obrigaacitarmosumconjuntorestritodeautores;2.deveficarclaroqueacentralidadedealgumasdefiniçõesconceituaisnãosignificasuamaiscompletaaceitação;aocontrário,umconceitopode,edeve,passarporumprocessodediscussãonointeriordacomunidadeacadêmicaecientíficaqueleveàsuaatualização,ouseja,àmanutençãodealgunsdeseusaspectoseàmudançadeoutros,revelando,aísim,todaasuarelevância;3. quanto à periodização histórica, este capítulo se preocupará em discutir as formas de poder,dominação e resistência que caracterizam as modernas sociedades capitalistas, primordialmente doséculoXIX emdiante, e os regimes democráticos que se configuraram em seu interior, deixando delado,portanto,aquelesautoreseobrasqueseocuparamdeperíodosmaisdistantesno tempoouqueconcentraram o seu foco de análise nas sociedades totalitárias ou nos Estados autoritários – muitoemboraosconceitosaquitratadospermitamtambéminvestigareinterpretaressescasos.

***RenatoPerissinotto (2008) alertaparao fatodequeo conceitodepoder é

dosmais controversos nas ciências sociais, dada sua pluralidade de definições,

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suajustaposiçãoousuapoucaaplicabilidadeempírica.Levando-seemconsideraçãooavisodePerissinotto(2008),cremosqueuma

discussãosobreasnoçõesdepoderedominaçãoexigeumretornoàsdefiniçõeselaboradasporMaxWeber(1864-1920),nãosóporqueWebertalveztenhasidoo primeiro sociólogo a tentar definir de modo mais rigoroso e sistemático osconceitos, mas, também, porque, acreditamos, sua definição permite combinaroutras perspectivas sem causar uma espécie de curto-circuito conceitual emetodológico, possibilitando, por conseguinte, praticar um dos seus própriosconselhos,asaber,o“pluralismometodológico”.

DeacordocomWeber,adominaçãodesempenhaumpapeldecisivotantonoregimedagrandepropriedadequantonaexploraçãoindustrialcapitalista,e,alémdisso, configura “um caso especial do poder”. Se a dominação é “um casoespecialdopoder”,logo,énecessáriodefinir poder.Poder,paraWeber,significaa “possibilidade de impor a própria vontade sobre a conduta alheia, dentro deuma relação social” (WEBER, 1983, p. 10), contra qualquer resistência equalquerquesejaofundamentodessapossibilidade.

A dominação pode se apresentar nasmais diversas formas.Weber destacadois tipos distintos de dominação: 1. a dominaçãomediante interesses, que semanifestaespecialmenteemsituaçõesdemonopólio (debenseconômicos,bensculturais epoderpolítico); e2. adominaçãomediante a autoridade,queocorrequando existe poder de mando e dever de obediência. Os dois tipos podemfacilmenteseconverterumnooutro–ouatémesmosecombinar.Emresumo,deve-seentenderdominação,esclareceWeber,comoapossibilidadedeencontrarobediênciaaummandatodedeterminadoconteúdo,entredeterminadaspessoas,que demonstram obediência em virtude de atitudes arraigadas. Ou seja, adominação e o exercício do poder precisam encontrar, entre os dominados,legitimidade.Weber,então,estabelecetrêstiposdedominaçãolegítima:alegal,atradicionaleacarismática.

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RetratodeMaxWeber,1910.

Otipomaisautênticodedominaçãolegaléaburocrática.Nela,seobedecenãoàpessoaemvirtudedeseudireitoprópriooudesuaspossíveishabilidadesmágicas,masàregraestatuídaou,maisusualmente,à lei.Mesmoquemordenadeve obedecer a essa lei. Corresponde ao tipo de dominação legal a estruturamoderna do Estado. As relações de dominação aqui não são definidas pelatradição ou por direito divino, mas racionalmente por intermédio da lei ou deregulamento.A dominação tradicional, por seu turno, se deve “em virtude dacrençaedospoderessenhoriaisdehámuitoexistentes”(WEBER,1989,p.131).Seutipomaispuro,nosesclareceWeber,éadominaçãopatriarcal:háum senhorqueordena–podeserosenhorfeudaldaEuropamedievalouosenhordeterrasdo Brasil colonial – e um conjunto de pessoas que obedece, que podem serclassificados, conforme o contexto histórico, como súditos ou servidores. Aobediência é santificada pela tradição e se expressa pormeio da fidelidade dodominado em relação ao dominador. Por fim, a dominação carismática ocorrepela devoção afetiva à pessoa do senhor e a seus dotes supostamentesobrenaturais, particularmente sua virtual capacidade de efetuar revelações eexibir faculdades mágicas. A autoridade exercida nesse caso é chamada decarismática.Nessecaso,deacordocomWeber,otipoquemandaéo líder,eo

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que obedece é o apóstolo; eaobediência sedeveexclusivamenteàpessoadolíderporsuasqualidadesexcepcionais,semnenhumaligaçãocomatradição,sejaelaqualfor,oucomalei.

De todo modo, o exercício do poder, em qualquer um dos casosmencionados,necessitadecertofundamento,istoé,deumabaseouumrecurso.Nesse sentido, o poder não constitui um recurso por si só, mas uma baseprovável para o seu exercício. Logo, quem controla dados recursos tem aprobabilidadedeexerceropodersobrequemnãoospossui,casoassimdesejar.Na definição weberiana, portanto, os recursos representam uma condiçãonecessária,mas não suficiente para o exercício do poder, pois é preciso que oagenteestejadispostoamobilizartaisrecursosnointeriordeumarelaçãosocialafimdeobterdeoutroocomportamentodesejado.Masopoderimplicaumaformaespecíficadeobterdooutroocomportamentodesejado: a coação,pormeiodaviolência física ou simbólica, é essa forma. É a “imposição da vontade”, nostermos deWeber, que pressupõe uma intencionalidade no exercício do poder,efetuado a partir de um cálculo estratégico, a fim de atingir objetivosdeterminados,vinculados,necessariamente, aos interessesdaquelequeexerceopoder.

GérardLebrun(1930-1999)retomaadefiniçãodeWebereacrescentaumasutil diferença. Segundo Lebrun (1984), no domínio das relações políticas, apotência – não de tornar-se,mas de exercer-se – é a única que interessa. Parailustrar: se um partido político tem peso político, é porque tem força paramobilizarcertonúmerodeeleitores(pormeiodeseuprogramadegovernooudapropaganda, pouco importa nesse caso); se um sindicato tem peso político, éporque temforçaparadeflagrarumagreve.Apolítica,defineLebrundemodomuitopróximoaodeWeber,nãodeixadeseraatividadesocialquesepropõeagarantir, pela força, numa democracia fundada no direito, a segurança externa(contrapossíveisinvasores)eaconcordânciainternadeumaunidadepolíticaemparticular(sejaoEstado,sejaumpartidoouumsindicato).Adiferençaentreeles–eparece,seobservarmoscomcuidadoarealidadesocialquenoscircunda,queLebruntemrazão–équeaforçanãosignificanecessariamenteapossedemeiosviolentosdecoerção,masdemeiosquepermitam influirnocomportamentodeoutra pessoa.1Nesse sentido, a força é a canalização da potência; e o uso dopoder tem como objetivo impor a sua própria vontade sobre a de outros,caracterizando,assim,adominação.

Comoalertamosnaintroduçãodestecapítulo,umconceitosofre,aolongode

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sua história, uma série de leituras e releituras, ganhando redefinições que oraenfatizam um dos seus aspectos, ora os abandonam. É o que fez o sociólogonorte-americanoTalcottParsons (1902-1979)emrelaçãoànoçãode poder, deMaxWeber. Parsons define o poder como “a capacidade que a sociedade temparamobilizarseusrecursosno interessedeseusobjetivosdefinidoscomoalgosancionado de maneira mais positiva do que permissiva pelo sistema [social]comoumtodo–objetivosquesãoafetadospelointeressepúblico”(PARSONS,1970,p.9),emsuma,opoderédefinidoporParsonscomoacapacidadedeumsistemasocialdemobilizarrecursosafimdeatingirmetascoletivas.Aquantidadedepoderdisponívelaserutilizadaemproldosbenefícioscoletivoséumatributodo sistema social total e não de um ou alguns grupos em particular (como asclassessociais,porexemplo).Obomfuncionamentodosistemapolíticodepende,segundoele,dealgumasvariáveis:1.oapoioparaaquelesqueexercemopoder;2. os privilégios a que têm acesso; 3. a legitimidade conferida às posições dosdetentores do poder; e 4. a lealdade que a população demonstra para com asinstituiçõespolíticasquefazempartedasociedadeaqualpertencem.Percebe-se,nomodelo parsoniano,acomunicaçãoentreosistemasocialeopolítico,istoé,obomfuncionamentodesteúltimodepende,emúltimainstância,dalegitimidadeconferidapeloprimeiro.Tallegitimidadearticuladanosistemasocialconcedeaopolítico a autoridadenecessáriapara a articulaçãodasmedidasnecessáriasparaalcançar o já citado bem público. Para utilizarmos a própria terminologia deParsons,podemosafirmarqueseformaentreosdoissistemasummecanismodeinputs(entradas)e outputs(saídas).Umbomexemplode inputéoapoioqueasociedadecivilmanifestaemrelaçãoadeterminadogoverno–cujamanifestaçãomaiscomumnumsistemapolíticodemocráticoéovoto–,que retribuioapoiopelo canal de output sob a formada liderança e tomadasdedecisão– semprevisando,ébomlembrar,aobenefíciodasociedadecivil.

NoesquemaanalíticodeParsons,quemdáoapoio,asociedadecivil,fazumsacrifício,poisperdeocontroleimediatodasdecisõescoletivasqueafetamseuspróprios interesses, e delega esse controle aos detentores do poder que seencontramno interiordoEstado, recebendo,como retribuiçãoàquele sacrifício,as melhorias públicas efetuadas pelo governo que se exerce por meio dosaparelhos de Estado num determinado momento, capaz de realizá-las porquemobiliza grandes quantidades de recursos (como os econômicos).2 Emcontrapartida, a legitimidade do aparelho estatal depende de sua capacidade depreencherasnecessidadesdasociedadecivil.

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Dopontodevistalógico,suateorianãopareceapresentarproblemasgraves.Sem dúvida esperamos do Estado esse tipo de comportamento, cujaspreocupações se dirijamprimordialmente para a sociedade civil, que, em troca,oferece seu apoio aos governantes. E do ponto de vista concreto, tambémnãodeixadeteralgumarazão:afinal,quandoobservamosqualquerEstadomodernodemocrático percebemos que seu funcionamento, muitas vezes, segue asdiretrizesformalmentedescritasporParsons.Vejamos:osgovernosqueocupamossistemasestatais,conservadoresouprogressistas,viaderegra,decertomodosão obrigados a elaborar e oferecer inúmeras políticas públicas almejandomelhoriasparaoconjuntodasociedade:aofertadaeducaçãoesaúdepúblicas,oasfaltamentodasruas,sistemadeáguaencanadaeesgoto,a iluminaçãopúblicaetc., tudo conseguido graças aos recursos obtidos pelo Estado mediante opagamento de impostos realizados pelos contribuintes. Se o governo falha naexecução de suas funções, o sistema social pode reagir por meio do voto,negandosuareeleiçãoeelegendonovosgovernantes.Logo,asmelhoriasdevemser buscadas pelo Estado, senão pelo ideal de bem público, ao menos paraconquistaralegitimidadeperanteasociedadecivil,daqualdependeaautoridade(ouafaltadela)dosgovernos.

Oleitor,aestaaltura,deve,comrazão,estarseindagando:masequantoàqualidade dos serviços públicos oferecidos? E a demora na implementação dedeterminadas políticas públicas? E o desvio de verbas? A corrupção? Osprivilégios ilegítimos das elites políticas?Esse tipo de questionamento, de fato,não é levado em consideração por Parsons, o que constitui, indubitavelmente,uma falha na sua definição de poder. Isso ocorre, em boa medida, porque aanálise de Parsons desconsidera as questões relativas à dominação e os efeitosqueelapodeproduzirnagestãopúblicadosrecursossociaiseeconômicos.AocontráriodeWeber,Parsonsnãoencaraopodercomoumaformadedominação,pois,paraele,opodernãoselimitaaumaespéciedejogodesomazeroemqueoacréscimodepoderdeA(ApodeseroEstado,umgruposocialouumaclassesocial)nãoimplica,obrigatoriamente,odecréscimodepoderdasoutrasunidadesB,C,D,eassimsucessivamente.Ouseja,se,porexemplo,umgruposocialtemmaispoder,issonãosignificaqueosdemaistêmmenospoderoupodernenhum,pois o poder é sempre relacional, quer dizer, o poder é sempre exercido emrelaçãoaalguém(indivíduooucoletividade)eessealguémaceitaesseexercício,concordacomele,garantindo,pois,asuaautoridadelegítima.

AdefiniçãodeParsonsminimizaopapeldacoerçãoenfatizadoporWebereeliminaocaráterassimétrico,nãoigualitárioehierárquicodopoder,diluindo,por

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conseguinte, a dimensão do conflito nas relações de poder e, assim, deixa deencarar as relações de dominação e resistência que permeiam as modernassociedadescapitalistas.

ContraParsons,masseguindoatrilhaabertaporWeber,seposicionououtrosociólogo dos Estados Unidos, Charles Wright Mills (1916-1962), que,desconfiado dos aspectos meramente formais da democracia norte-americana,defendequeos setoresexecutivosdogoverno sãocompostosporum tripéquecompreende as elites política, econômica e militar, cujos membros, de formageral,possuemamesmaorigemétnica,econômicaesocial,conferindo-lhescertahomogeneidade que tem em sua base os seguintes fundamentos: a identidadesocial e econômica entre os membros que as formam, as relações pessoais eoficiaisentresi,desuasafinidadesideológicaseatépsicológicas,bemcomosuaorigem social, carreira e estilo de vida. As trajetórias similares entre oscomponentes dessas três elites acabam aproximando-os. Por compartilharemorigens sociais comuns, universos simbólicos (principalmente amoralidade), ospontos de vista e expectativas uns dos outros, dificilmente, apontaMills, essaselites entrarão numa rota de colisão que comprometa a sua unidade e, porconseguinte,suadominaçãosobreoconjuntodasociedade.

Atéesteponto,parecenãohavernenhumadúvidaquantoaofatodequeoEstado moderno se define, de modo geral, por duas grandes características, omonopóliodousodaforçaeopatrocíniodeobrasdeinteressepúblico.Logo,oqueseobservaéaconfiguraçãocontraditóriadoEstadomoderno,principalmenteao longo do século XX: de um lado, o Estado contribui para a instituição emanutençãodaprópriasociedadeaogarantireprotegerosdireitosindividuaispormeiodasleis,mas,poroutro,éumainstânciaque,aomesmotempo,éprodutoeprodutoradeumaassimetriaquantoàdistribuiçãodopoder.Ora,aexistênciadoEstadoeasfunçõesquedesempenhadependemereproduzemadistinçãoentregovernantes e governados. A rigor, aquelas duas características mencionadascontribuem para a sobrevivência de uma contradição que sustenta o Estado.Assim,eliminá-laimplica,paradoxalmente,eliminaropróprioEstadomoderno–ou,pelomenos,aversãoatualdoEstadomodernoqueconhecemos,noslevandoa indagar, então, sobre as possibilidades referentes à sua remodelação, à suareestruturação,criandoumaversãodiferentedeEstadoqueconduzaegarantaumsistemapolíticoesocialsubstantivamentedemocrático.

De todo modo, se o Estado assim se comporta e funciona, a SociologiaPolítica tem a obrigação de questionar o quanto ele não compromete a própriademocracia.EfoioquefizerampensadorescomoRobertMichels(1876-1936),

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GaetanoMosca(1858-1941)eVilfredoPareto(1848-1923).Paratodoseles,nosregimes chamados democráticos é clara a distinção entre governantes egovernados,entredominantesedominados,sendoqueosgovernantesconstituemumapequenaelitequeemváriosmomentos lembraumaespéciedearistocraciadopoder.Poucomaiscuidadosoqueosoutrosdois,Paretoafirmouqueaeliteésubdividida entre elite governamental (aquela que exerce diretamente o poderpolítico)enãogovernamental(comoaseliteseconômicas),sendoqueaprimeirajamaiséfixaeimutável,pois,jáqueaselitesestãosujeitasaumconstanteciclodedecadênciaerenovação,acabaocorrendosuacirculação,suatrocadetemposemtempos.Independentementedofatodehaverumacirculaçãodaselitesouseas elites governantes constituem realmente as melhores elites, como acreditavaPareto,osgovernos,afirmamostrêsautores,comportam-secomooligarquiase,portanto,asdemocraciasnãosãomaisdoquefraudes.

Pormaistentadoraquesejaaprovocação,temosquetercuidadoquantoaoseu alcance analítico e explicativo. Primeiro, nenhum deles é suficientementeclaroquantoàfontedopoderdaselites.Afinal,oqueastornaelitespolíticasougovernamentais? O que possuem que os demais setores da sociedade ou asdemais elitesnão têm?Doquedeterminadogrupo social precisapara se tornarclassedirigente?

Nesse sentido, KarlMarx (1818-1883) e seu amigo e parceiro em algunsescritos, Friedrich Engels (1820-1895), obtiveram mais êxito com seu modeloteórico,pois,aoidentificarcomprecisãoafontedopoder,tornaram-secapazesderesponder, ainda que parcialmente, às dúvidas anteriormente lançadas.Principalmente com Marx, nasce a oportunidade de investigar de modo maiscuidadosoeacuradoaquelaqueé,provavelmente,umadasprincipaisformasdedominação das sociedades capitalistas modernas, a dominação de classe. Adominação de classes é possível, por um lado, devido à posse desigual derecursoseconômicos.

Marx,aoanalisara formaçãodasociedadecapitalistanocontextoeuropeu,particularmenteoinglês,observaqueaacumulaçãoprimitivadocapital libertouos indivíduos dos laços de dependência, lealdade e dominação estamentais,típicosde formações sociais feudais, criando, assim, as circunstânciashistóricasnecessárias para a criação do trabalho livre e assalariado – livre entre aspas,porqueotrabalhadorestavaprontoparasertragadopelaexploraçãocapitalistadotrabalho. Tal exploração depende do modo como se organiza o trabalho nasformações capitalistas industriais; o modo de produção capitalista institui umadivisão social do trabalho que acabou produzindo duas classes sociais

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antagônicaseemluta:aburguesia,quedetémapropriedadeprivadadosmeiosdeprodução,eoproletariado,cujaúnicamercadoriadequedispõeparavenderéaprópria força de trabalho.Aposse dosmeios de produção permite à burguesiaexplorar a força de trabalho da classe operária e dela extrair a mais-valia,garantindo a acumulação de capital e a reprodução material da sociedadecapitalista.

Para entendermos o que é amais-valia e como se dá a sua expropriação,antes devemos compreender como o trabalho gera valor. Marx começa suaexplicaçãosugerindocomosedavaacirculaçãosimplesdemercadorias,circuitoque caracteriza as sociedades pré-capitalistas, como a sociedade feudal.Imaginemos dois artesãos que produzam duas mercadorias diferentes, mesas ecadeiras. Cada um se dirige aomercado a fim de vendê-las para, em seguida,comprar uma mercadoria da qual necessitam e não produzem. A primeiraobservaçãoaserfeitaéadequeodinheiroobtidopeloartesãocomavendadesuamercadorianãoé acumulado,mas se encontra emcirculaçãoconstante–oartesãosempreutilizaodinheiroparacompraralgo.ÉporessarazãoqueMarxafirmaquenacirculaçãosimpleséquasecomosenãohouvesseaintermediaçãodo dinheiro na troca, e esta se desse diretamente entre as mercadorias.Esquematicamente, assim Marx define o circuito: M – D – M, sendo M amercadoria,eD,odinheiro.LembremosqueMarxnãoafirmaqueodinheironãoexiste,maseleémenos importantequeamercadoriae funcionacomomeiodetroca num contexto cujos agentes econômicos não estão preocupados emacumular dinheiro; por isso é quase como se ocorresse uma troca direta entrebens:M–M. Imaginemos,agora,queoartesãoque fabricamesasvai trocaroseu produto por cadeiras. Inevitavelmente surge a pergunta: quantas cadeirasvalemumamesa?Comoencontrarumdenominadorcomumentreasmercadoriasquefuncionecomoequivalenteda troca?Aresposta,deacordocomMarx,éotrabalho.Seoprodutordemesasgastouumasemanaparafabricarumamesa,eoprodutor de cadeiras emuma semana fabricou dez cadeiras, então umamesa éigualadezcadeiras.Poraísepercebe,complementaMarx,queaquantidadedeforçadetrabalhogastaparaaproduçãodeumbemdeterminaoseuvalor.

Oqueocorre,então,nacirculaçãocapitalistademercadorias?MaisumavezbaseadosnailustraçãodeMarx,propomososeguinteesquema:numajornadadetrabalhodedozehoras,otrabalhador,aoproduzirumadadamercadoria,gastousuaforçadetrabalhoegerouvalor.Umapartedessevalorretornaaotrabalhadorsob a forma do salário – veja que o salário não é oferecido pelo patrão, masconstituídopeloprópriotrabalhadoràmedidaquetrabalha.Essesaláriodeveser

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o suficienteparagarantir a sobrevivênciado trabalhador,masnãopode ser tãoalto que exima o operário de comparecer à fábrica no dia seguinte. Digamos,agora, que esse valor mínimo que garante a sobrevivência do trabalhador sejagerado em dez horas de trabalho. Porém, se a jornada é de doze horas, issosignificaqueotrabalhadorgerouduashorasdevalorquenãolhesãopagas,massão abocanhadas pelo capitalista. Esta é a mais-valia tomada pelo burguês aotrabalhador. Logo, as relações de produção firmadas entre proletariado eburguesiaconfiguramumprocessodeexploraçãodaforçadetrabalho.

Comosenãobastasse,aclassetrabalhadoraéduplamenteexpropriada,poislhe é retiradaparte dovalor queproduz ao longodoprocessode trabalho, e amercadoria produzida pela sua própria força de trabalho também não lhepertence,mas é propriedade tambémdo capitalista.O trabalhador corresponde,conforme Marx, ao “indivíduo-nu”, isto é, despojado de tudo, de suaindividualidadeeatédesuahumanidade,umavezquefoireduzidoàcondiçãodecoisa, simplesmercadoriaque,comooutras,participadeumamplocircuitodetroca.

Mas,seháumdespojamentodetalamplitude,porqueaclassetrabalhadora,desde o princípio, não se rebelou contra a dominação e a exploração que apropriedadeprivadadosmeiosdeproduçãopossibilita?

Aburguesiadevegarantiralegitimaçãodadominaçãoeconômica,alcançadapormeiodaideologiaedecertasilusõesqueelaácapazdeproduzir.Poderosailusão que provê a legitimidade necessária para a dominação burguesa, poisesconde,comoummanto,asdesigualdadeseconômicasdasociedadecapitalista,éaquelafornecidapelasestruturasjurídicas:aigualdadeformaldosindivíduos.Agenérica concepção de cidadãos, circunscrita ao plano jurídico-político, cria oefeito ideológico da suposta autonomia, liberdade e igualdade dos indivíduos,ocultando aquele despojamento completo que se realiza objetivamente no níveldas relaçõesdeprodução.Seemtermos jurídicos (formais)somos todos iguais,em termos práticos, não, já que certa desigualdade é produzida na sociedadecapitalistaindustrialapartirdeumadivisãodotrabalhoqueopõeproprietáriosenãoproprietários.EmMarxeEngels,portanto–assimcomoparapraticamentetodatradiçãomarxista–,apossederecursosmateriaisgaranteapossederecursossimbólicos(asleis,osdesejos,osvaloresmoraiseatémesmooconhecimento),eambos,porsuavez,consolidamadominaçãoburguesanosplanoseconômicoeideológico, pois viabilizam a realização dos seus interesses de classe. Marx eEngelsafirmamqueasideiasdominantessãoaexpressão,nocampodasideias,

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das relações materiais dominantes, que correspondem àquelas relações deproduçãotípicasdedeterminadasociedade.Portanto,senasociedadecapitalistaaprodução de mercadorias é organizada de modo a criar duas classes sociaisantagônicasedesiguais,aclasseeconomicamentedominante temaprerrogativade produzir aquelas ideias e valores morais que se tornarão igualmentedominantes, isto é, aceitos por todos. A burguesia, nesse caso, assegura suadominação porque possui os meios de produção (máquinas, terra e renda) e,justamente por isso, é capaz de universalizar seus interesses, ideias e valoresparticulares. SeMarx e Engels estão corretos, então a dominação não aparececomotal,comoprodutohistóricodedeterminadotipodesociedade,acapitalista,mascomoumarranjonaturaldomundodoshomens.

A propriedade privada dos meios de produção econômica, afirmou umfamosomarxista italiano,AntonioGramsci (1891-1937), garante à burguesia apropriedade privada dos meios de produção simbólica, assegurando-lhe acondição de classe hegemônica. Não está claro na teoria de Marx e Engels,todavia,comotaldominaçãoseconverteemdominaçãopolítica,emdominaçãopormeiodoEstado.Pontocegoemsuaobra,somentecertatradiçãomarxistajáno séculoXX tenta dar conta da questão. Omarxista gregoNicos Poulantzas(1936-1979) teoriza que oEstado assume a função demanter a ordempolíticanos conflitos políticos de classe (originalmente, proletariado de um lado eburguesia do outro), constituindo um fator de coesão da unidade social. Emoutraspalavras,aoimpediraexplosãodoconflitopolíticodeclasse–quepoderialevaràrevoluçãoimaginadaporMarxquesubverteriaaordemsocial,políticaeeconômica do capitalismo –, o Estado mantém a unidade da formação socialcapitalista,queestánaorigemdopróprioconflitoentreasclasses,umavezque,comovimos,éessaformaçãoquesebaseiaeconcomitantementereproduzumataldivisãosocialdotrabalhoqueacabacolocandodeumladoos despossuídosdosistemaedeoutroaclasseproprietária.Aoimpediraaniquilaçãodasclassespela via revolucionária, o Estado não deixa acontecer o aniquilamento dasociedade capitalista. Ainda de acordo com Poulantzas, o Estado capitalistamantém a unidade de uma formação social no interior da qual as contradiçõesentre os diversos níveis se condensam numa dominação política de classe, e,nesse sentido, a função política doEstado cumpre comuma função social queestánabasedaprimeira.Écomoseosconflitosentreasclassesquesedãonainfraestruturaeconômicadasociedadeeascontradiçõesgeradasporela,comoaimensa produção de riqueza e sua profunda concentração, fossem apanhados edevidamentegeridospeloEstado,garantindoobomfuncionamentodasociedade

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capitalista e protegendo os interesses da burguesia. Nos termos propostos porPoulantzas, o poder de Estado nada mais é que a capacidade que uma classesocial tem de realizar seus interesses mais objetivos por meio dos aparatos doEstado (as instituições que, juntas, compõemoEstado, comooParlamento, osministérios,osistemajurídico,asForçasArmadasetc.).

Podemosconcluir,apartirdoexposto,queaburguesiaexercediretamenteopoder político? Não necessariamente. O teórico nascido na Bélgica e depoisradicado na Inglaterra, Ralph Miliband (1924-1994), afirma que a classecapitalista,comoclasse,nãogovernarealmente,mas,demodogeral,seencontrabem representada no interior do sistema estatal, podendo, inclusive, participardiretamentedogovernoedaadministração,muitoemboraconstituaumaminoriarelativamente pequena da elite estatal. Miliband quer nos dizer que há umadiferençaentreeliteseconômicaseelitesestatais,sendoquemembrosdaprimeirapodemfazerpartedasegunda,masumanãosereduzàoutra,poisacomposiçãodoEstado tendea sermaisheterogênea, abrigandoelementosdeváriasorigenssociais.Adespeito dessaheterogeneidade, omesmoMiliband reconheceque aelite estatal,majoritariamente, é formada pormembros das classes altas e pelasporções superiores das classes médias, todos, portanto, de extração burguesa,compartilhando um conjunto de valores e interesses comuns – tese que seavizinhadaqueladeMillsapresentadaanteriormente.

O predomínio burguês no sistema estatal se explica graças às hierarquiaseconômicas e sociais que existem fora do sistema estatal e do sistema político.Segundo ele, a desigualdade das oportunidades educacionais característica dosistema capitalista (aos mais ricos, as melhores escolas; aos mais pobres, aspiores)eoslaçossociais,aproximidadeideológicaeatéafetivaentreosmembrosdaselitestornamacomposiçãodosistemaestatalquasearistocrática.Mesmocomapluralidadedosagentessociaisearelativademocratizaçãodossistemaspolíticoeestatal,quepermitiuepermiteaascensãodemembrosdaclassetrabalhadoraaambos,édifícilacreditar,afirmaMiliband,emsuademocratizaçãomaisprofundaeampla.Milibandtambémcompartilhaaideiadequeademocracianadamaisédo que uma ilusão. Afinal, a burguesia, como classe economicamentehegemônica,dispõedeconsiderávelinfluênciasobreoEstado,e,acrescentemos,comoparteconstituintedeleexerceumgraudecisivodopoderpolítico.OEstado,segundo a interpretação de Miliband, se reduz a um instrumento político daburguesia.

Para além da apresentação e discussão teórica dos conceitos, é importantecontrapô-los à sociedade empírica a fim de testar o seu alcance analítico e

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interpretativo. Munidos desse propósito, quando observamos rapidamente aconstituiçãodosEstadosdasmodernassociedadesocidentais,percebemosqueasteorias marxiana emarxista3 nos ajudam a compreender parcela da realidadequenosrodeia:dificilmenteosgovernosdeixamdecontemplarosinteressesdosempresariados nacionais; as elites econômicas e políticas são portadoras deprivilégiosqueofendemedesrespeitamaprópriaConstituição,deixandodúvidassobre a saúde democrática dessas sociedades; as burocracias estatais e asadministrações públicas dificilmente deixam de contar com a participação dosagentes oriundos dos extratos socioeconômicos mais elevados; as classes bemposicionadaseconomicamentegeralmentetêmacessoabensculturais(educação,informaçãoelazer,entreoutros)eestilosdevidanegadosàquelesqueocupamasposiçõesmais rebaixadas na estrutura da sociedade, propiciando oportunidadesdesiguais aos diferentes agentes e coletividades. Entretanto, as perspectivasteóricasdeMarxedosmarxistasemgeralsãoosuficienteparaseabordartodaacomplexidadedoreal?Écertoquenão.

Marxeosmarxistasemgeral,comalgumaspoucaserarasexceções,acabamreduzindo a política à economia, subtraindo completamente a autonomia daprimeira esfera, uma vez que as relações de dominação instituídas nainfraestrutura econômica da sociedade capitalista acabam determinando osconflitoselutaspolíticos,aorganizaçãodoEstado,ousodopodereesquecendoque existem outras formas de dominação e lutas além das econômicas queperpassamtodootecidosocial.Porconseguinte,aseliteseconômicasassumemopapel de protagonistas das sociedades capitalistas, esvaziando, com isso, aimportânciadasdemaiselites(política,militarecultural),comovimosemMills,bemcomodosgrupossubalternos,reduzidosàcondiçãodecoadjuvantessociais.

Para tentar abordar essa questão demodomais cuidadoso, devemos,maisumavez,voltaraWeber.Umadesuaspreocupaçõescentraiseraelaborarumaexplicação sociológica das diferenças sociais, particularmente aquelas geradaspelo capitalismo moderno. Weber reconhece que nas sociedades capitalistasmodernasapropriedadedecertosbenseapossibilidadedeusá-losnomercadoconstituemumdosdeterminantesfundamentaisdasposiçõessociaisdaspessoas.Destarte,nassociedadescapitalistas,opredomíniodocampoeconômicotornouariquezaeaspropriedadesosprincipais fundamentosdaposição social.Noutrostermos, Weber admite que é comum utilizar os meios econômicos a fim deconservar a dominação. Todavia, embora o poder e a dominação possam serexercidos pormeios econômicos, nem sempre é o caso,mesmo se tratando da

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dominaçãodeclasse.No iníciodo séculopassado,MaxWeber inaugurouumasegunda tradição

no campo das ciências sociais acerca dos estudos sobre a estrutura de classes.Baseadonasuatesesobreaseparaçãodasesferasdavidanasociedademoderna,Weber, ao contrário de Marx, procura distinguir o poder condicionadoeconomicamentedopoderdeterminadoporfatoresnãoeconômicos.Weberoperaumaseparaçãoentreaordemeconômica,alegaleasocial,que,emboradistintas,influenciam-se mutuamente. Weber reconhece que a distribuição do poder édesigual na sociedade, gerando diferenças econômicas que definem as classes;diferençasdepoderpolítico,quegeramospartidos;easdiferençasdeprestígio,que definem o status (ou simplesmente estilos de vida). A estratificaçãoeconômica e a estratificação por status resultam em interesses de classe e degrupo distintos, que podem ser representados pelos partidos políticos. Weber,pois, reconhece não somente os conflitos de classe na sociedade modernaindustrial, como também os conflitos entre os grupos de status e entre asassociações políticas (os partidos e até mesmo os Estados-nação), que podemestarrelacionados(eprovavelmenteestarão),masguardamcertaautonomiaentresi. De todo modo, o que se percebe no enquadramento weberiano é que asclasses sociais, os partidos políticos e os grupos de status são fenômenos dadistribuição (desigual) de poder que se manifestam na luta cotidiana. E apossibilidade de dominar, paraWeber, está vinculada à capacidade de dar aosvalores,aoconteúdodasrelaçõessociais,osentidoqueinteressaaoagenteouaosagentesemluta.Éacoaçãopormeiodaviolênciasimbólica,ousimplesmenteajámencionada imposiçãodavontade.

TantoemMarxquantoemWebernotamosqueadominaçãobaseia-senumsistemadediferenciaçõesquemoldaarealidadesocialcomoumacomplexaredede estruturas de dominação, que jamais pode ser exercida sem a sua devidalegitimaçãolegal-racional.Ambasasperspectivasnosmotivamtambémaduvidardos consensos, já que eles já podem ser o resultado das relações de poder, deinterações que levam os dominados a desejar coisas que de outro modo nãodesejariam. O consenso legitima a dominação ao produzir uma adesão dosdominados aos valores dominantes, demodo que a relação de dominação nãofosse percebida como tal, mas como um acordo (tácito) em torno dos valoresconsideradosverdadeirosportodos.

São outros dois teóricos da sociedade, ambos franceses, Michel Foucault(1926-1984) e Pierre Bourdieu (1930-2002), quem talvez melhor teorizaram arespeito da produção dos consensos que garantem a coesão social e mesmo a

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dominação.BourdieueFoucaultpreocuparam-seemestabelecer,cadaumaseumodo,as relaçõesentreopoder,adominaçãoeaproduçãodosconsensos,ou,noutros termos, o exercício de um poder simbólico que permite a dominação(prática e simbolicamente). Em suas respectivas teorias, os autores tambémdesconfiam dos consensos que caracterizam as relações sociais nas modernassociedades capitalistas devido às desigualdades que se encontram na base dadistribuiçãodosrecursossociais.BourdieueFoucault,aopartilharemapercepçãodequeasociedadeestáestruturadaapartirdadistribuiçãodesigualderecursos,dividem também a suposição de que a continuidade de uma situação assim sedeve amecanismos de poder que convencem os dominados a aceitarem a suaposição inferior no sistema de diferenciações. Noutros termos, trata-se de umpoderquenãoproduzameaças,masoconvencimentoeasubmissãosimbólicaaoestadodascoisas.Ambos,então,tratamdeuma invisibilidadedopoderqueagedemaneirasutilecotidiana.Daíaimportância,paraosdoisautores,deinvestigarosmecanismossociaisqueproduzemumaespéciedeadesãosinceradetodososagentes às regras do jogo. Poder que, de acordo com essa perspectiva, reside,sobretudo, na aceitação, por parte de todos os agentes, da distinção entre opensável e o impensável, entre o dizível e o indizível, distinções que acabamlegitimando a estrutura de relações de força vigente. E se há uma estrutura depoder,significaafirmarqueasrelaçõestransitóriasdepoderpodemdarorigemarelaçõesmaisestáveisdedominação.

De fato, épossível aproximarBourdieueFoucault quanto às suas análisessobre o poder. Primeiro, para ambos, o poder não é posse, mas um exercícioconstante,queserealizadeváriasmaneiraseemlugaresdistintos,nãopodendo,assim,serumatributoexclusivodoEstado.Opodersemanifestacotidianamentenasrelaçõessociaisqueseconstroemnointeriordafamília,naescola,nofazercientífico etc. Diferentemente de Marx e dos marxistas, mas, em certo grauretomando e aprofundando Weber, a dominação, mesmo a de classe, nãoaconteceapenasnasregiõesmacrossociológicasdasociedade,comooEstadoeas classes sociais, mas ocorre e é reproduzida nos microcosmos sociais, nospequenos espaços sociais imperceptíveis que podem estar ligados às formas dedominaçãoeaosconflitosmaisestruturaisdeumaorganizaçãosocietária.

As instituições sociais, nas óticas de Bourdieu e Foucault, estabelecemregimesdeverdade a partir dediscursos reconhecidos como legítimos, comooartístico, o escolar, o científico etc., uma vez que tais discursos gozam deautoridadeparaconstruirtodoumsistemadeclassificações.Mas,quefiqueclaro,os discursos e seus efeitos não estão soltos no ar, mas inscritos histórica e

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socialmente.Ocorre, portanto, uma luta entre agentes e agências sociais para oestabelecimento dessas verdades. Luta desigual, posto que há uma distribuiçãodesigual entre os recursos econômicos, políticos e culturais, que permitem aprodução,adistribuiçãoeacristalizaçãodosregimesdeverdade.

Se,porum lado,BourdieueFoucault concordamquantoao fatodequeopoderestádisseminadopelasociedade,semumfocooriginalapartirdoqualelesedissipa, poroutro, é em relaçãoàmesma ideiaque encontramosopontodediscordância entre eles, pois, se para um, Foucault, não existe um sujeito quepraticaopoder,paraoutro,Bourdieu,épossívelreconheceraautoriasocialdosdiscursosdopoder.

Em Vigiarepunir,porexemplo,Foucault (1987)abordaosdiscursossemjamaisprecisarquemosenuncia,jáqueatravessamtodososcorposeinstituições.Foucault preocupa-se com as “formas mais regionais e concretas do poder”(FOUCAULT,1987)quesemanifestamnasinstituiçõeseganhammaterialidadeemcertastécnicasdedominaçãoqueafetamarealidademaisimediataepalpáveldosindivíduos,oseuprópriocorpo;opoderpenetranavidacotidianaeassumeaformadeummicropoder,istoé,poderesperiféricosemolecularesquenãoforamconfiscados e absorvidos pelo Estado. Com isso, Foucault não desconsidera aimportância do Estado no exercício do poder e da dominação, mas chama aatençãoparaofatodequeoEstadonãoéoórgãoúnicoecentraldopoder.Seopodernãoseencontraemnenhumpontoespecíficodaestruturasocial,entãoeleatuacomoumaredededispositivosemecanismosqueatodosatinge.Essaredenão possui uma fronteira definida, mas atua minuciosamente sobre todos oscorpos, sobre seus hábitos, gestos, posturas etc., de forma a discipliná-los.Apositividadedopoderéperversa,nosdizFoucault,pois,senãopretendeexpulsaroshomensdavidasocialouimpediroexercíciodesuasatividades,pretende,sim,aumentar ao máximo sua eficiência e utilidade econômicas, procurandointensificar sua capacidade de trabalho a partir do gerenciamento da vida doshomens–ou,comoafirmaosociólogoportuguêsBoaventuradeSouzaSantos,apartirdaadministraçãodassubjetividades–,neutralizando,consequentemente,osefeitosdecontrapoder.Opoderpossui,nostermospropostosporFoucault,umaforçadisciplinadoraqueagesobreoscorpos,moldando-oseproduzindo-os.Háadominação política do corpo, cujo objetivo é tornar o homem útil (em termoseconômicos) e dócil (politicamente). Porém, o poder não constitui apenas umaforça repressora, mas possui também uma face criativa, uma vez que produzsaberes,práticas,significadoseatémesmoaindividualidadedoshomens.

JáparaBourdieu,éprecisomostrarondeequemexerceopoder(simbólico),

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tornando visível o que é invisível, especificando quem o exerce e, logo, quemenunciaosdiscursos.NocasodeBourdieu, importareconstituiro“campo”dosagentesemissoresdosdiscursoseaposiçãoquecadaumdelesocupanoespaçosocial em que se inscrevem. Os “campos” correspondem a espaços sociais delutas e disputas entre agentes e agências sociais específicos a cada campo, ocientífico, o artístico, o literário, o religioso, o econômico, o político etc.Cadacampopossui,assim,umaautonomiarelativadiantedosdemaisoudequalquertipode influênciaepressãoque lhe sãoexternas,umavezqueas regrasqueoconstituem e organizam são elaboradas pelos agentes e instituições que ocompõem,atribuindoacadaumdelesumalógicasocialdiferenciada.Ocampo,segundoformulaçãodopróprioautor,éumcampodeforçasqueatraierepudiaesses agentes e agências sociais, formando, com isso, alianças e adversários,todoselesdisputandoaprerrogativadefazerasregrasquegerenciamocampo,bem como os regimes de verdade (política, estética, científica etc.) que oscaracterizam.Conquistaralegitimidadedodiscurso,seuestatutodeverdadeque,inclusive, rompeos limitesdecadacampoealcançao todosocial,dependedomonopóliodosbenstípicosdecadacampoemparticular.Nocasodocampodaprodução simbólica (que reúne subcampos, como o literário, o artístico, oacadêmico, o científico, o filosófico), os bens correspondentes são os benssimbólicos, oprestígio, a autoridade,o respeito, o reconhecimento, e suaposseconcedeaoseupossuidoroprivilégiodeelaboraredifundirverdadeirossistemasdeclassificação:qual amelhorobraeomelhorescritor,qual a teoria científicamais apropriada, inclusive a prerrogativa de definir o que é e o que não éliteratura, ciência, e até o que é a verdade; em suma, o poder de definir oscânones de cada campo. O interesse de Bourdieu é descrever e interpretar ascondições sociaisdeproduçãoe recepçãodasobras, oque exige, por suavez,revelarocontextosocialdentrodoqualosenunciados (os regimesdeverdade)sãoproduzidose reproduzidos.ParaBourdieu,pois, sóépossívelcompreenderas diferentes visões de mundo, representações e discursos quando se tornapossívelcircunscreverquemosestápronunciando,deondeoestáfazendoequalseuinteresseaofazê-lo.

As disputas no interior dos campos nos mostram que se há vencedores eperdedorese,mais, seaparticipaçãoemdeterminadoscamposépermitidaparaalguns e não para outros, é porque existe uma distribuição desigual de capitalentre os agentes, o que implica, logicamente, posições distintas: dominantes edominados. Os campos, portanto, são espaços sociais objetivamente definidospelas posições dos agentes, determinadas pelas posses desiguais de capital

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(econômico,simbólicooupolítico).Torna-senecessário,então,especificarquemsãoosagentes,quaissuastrajetórias,quetipodecapitalacumularamdurantesuascarreiras, ou seja, reconstruir suas biografias sociais para que se esclareça agênesedesuasposiçõeseosignificadodesuastomadasdeposição.

Ao reconstruir as biografias e trajetórias dos agentes que participam doscampos e das instituições que os compõem, Bourdieu recoloca em pauta adiscussãosobreaestratificaçãodas sociedadesmodernascapitalistasemclassessociais,problemaquepassaaolargodaspreocupaçõeseanálises foucaultianas.Vê-sequeaidentificaçãodaautoriadosdiscursossociaisnãorepousaapenasnoscampos,masnasprópriasclassessociais.

Quanto à distribuição do capital cultural, condição indispensável para aparticipação dos agentes nos campos da produção simbólica, ela está,provavelmente, afirma Bourdieu, vinculada à distribuição desigual de capitaleconômico.Aincorporaçãodocapitalculturaldepende,primeiro,deumalógicade transmissão por parte da família que o acumulou e o deixou como herançaparaasgeraçõesmaisjovens,e,segundo,dotempolivrededicadoàacumulaçãoeinteriorizaçãodetalcapital,quesedaránasexperiênciasextraescolaresapartirdepráticasculturaisqueconfiguramoqueBourdieuchamade“culturalivre”:afrequência aos museus, teatros, viajar, a prática da leitura, o hábito de ouvirmúsica clássica etc.A transmissão ocorre de modo inconsciente, sem nenhumesforçometódicoou açãomanifesta, o que reforça certa ideologia dodomquenaturalizaedisfarçadesigualdadesquesãosociaisehistoricamenteconstituídas.

Em Adistinção,Bourdieu(2007)procuramostrarqueasocializaçãoemtaiscondições permite a formação e a internalização de um habitus, sistema dedisposições duráveis, transmissíveis e não imutáveis, muito favorável àquelegostoestéticoconsideradolegítimo.O habitusé,nessesentido,umesquemadepercepçãoeapreciação(inclusiveestéticas)domundosocial.Ogostoestéticoéencarado por Bourdieu como a expressão de um estilo de vida associado aoespaço das posições sociais, ou seja, o gosto estético forma-se a partir de umadisposição estética que, por sua vez, exige uma “competência específica”, cujaaquisição e desenvolvimento, em grande medida, dependem da posição socialque o indivíduo ocupa na estrutura de classes. A competência adquirida porintermédiodeumasocializaçãoespecíficaensejaumacapacidadedejulgamentoouapreciaçãoestéticaque reforçaoqueBourdieuchamade“cultura legítima”,isto é, aquela formulada nos campos da produção simbólica.Vemos, portanto,que a cultura e o gosto estético nas formações capitalistasmodernas tornam-seelementosdedistinçãosocialeinstrumentosdedominaçãosimbólicadasclasses

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efraçõesdeclasse.Adespeitodadominaçãoedopodersimbólicosexercidosporgrupossociais

específicos, Bourdieu não acredita que os discursos produzidos nos camposequivalemaumaespéciedefalsarealidadeouumarealidadeinvertida,dadoqueasideiasproduzidascorresponderiamafalsasideiasacercadomundosocial.Aocontrário,FoucaulteBourdieucompartilhamaperspectivadequeosdiscursosdopoder apresentam uma positividade, ou seja, não sãomeros epifenômenos dasestruturas sociais ou reflexo de uma suposta luta de classes que se dá nainfraestruturaeconômicadasociedadecapitalista,massãoautênticosprodutoresda realidade social, pois lhe atribuem algum sentido. É possível perceber emFoucault, pensamos, certa ressonância dos conceitos de poder e dominação deMax Weber, ao passo que em Bourdieu observamos o esforço de combinarWeber eMarx, namedida em que Bourdieu tenta traçar os nexos entre gostoestético,estilosdevida–elementosquesereferemao status–eadominaçãodeclasse que ocorre a partir do acúmulo de capital econômico que permite,provavelmente, a acumulação do capital cultural. A dominação de classe, naproposiçãodeBourdieu,ocorrecotidianamente,poismoldaasformasdeagirdosagentes;ealutadeclassesnãoseencontraapenasnaesferaeconômica,masseexpandeatéadimensãocultural.

Embora diversos em suas abordagens teóricas e nos métodos de pesquisautilizados, é possível aglutinar Marx e Engels e toda tradição marxista, Mills,Mosca, Pareto, Michels e mesmo Bourdieu numa vertente conhecida econsagrada como crítica elitista, pois todos esses autores atribuem às elites afunçãodominante,poispossuemumlequesortidoderecursosquelhesgarantemoexercíciodopodereasubmissãodosdemaisgrupossociaisdominados.Nessesentido,enempoderiaserdiferente,taisautoresvislumbramademocraciacomoilusão ou farsa, dedicando toda a sua obra e esforço intelectuais a fim dedesmascararosmecanismosdedominaçãoconstituídosnasmodernassociedadescapitalistas. Deve-se reconhecer que em relação a tal proposta todos eles nãodeixaram de alcançar sucesso. O sucesso não foi pleno porque, apesar depoderosas, rigorosas e profundas, suas críticas não deram conta de todos osproblemasqueenvolvemaformaçãoeofuncionamentodosEstados,governos,partidospolíticosedasociedadecivil.

Comojáafirmamos,essasperspectivasnãodeixamdesertentadoras.Esãoporque justamente ajudam a enxergar o mundo social de modo mais nítido,tornam mais claras as engrenagens do poder e da dominação que fazem asociedade em que vivemos girar. Contudo, por outro lado, escondem outros

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aspectosquetambémdevemserconsiderados.Sesuasperspectivaslançam,comrazão,dúvidassobreoalcancedademocracia,seráentãoqueaconclusãoóbviaéque não há democracia nenhuma? Não haveria defesa possível dos cidadãoscontraopoderquaseoligárquicodosgovernantes?

O sociólogo inglês Walter Garrison Runciman (1934-), em defesa dossistemas políticos democráticos e da democracia representativa, afirma,lembrandoWebereParsons,queaselites,deumamaneiraoudeoutra,têmquerepresentar os cidadãos e estes devem, obrigatoriamente, reconhecer se estãosendo representados ou não. Se não, têm como dever cívico não reelegerdeterminados partidos e governantes. O sistema democrático, portanto, permiteumarotatividadedaselitesdeacordocomosinteressesdoscidadãos.Ademais,asquestões e os problemas políticos, para sua condução e solução, requeremaproximações, alianças, coalizões, conformea conjuntura, entre asvárias elites,entreestasecertossetoresdasociedadeciviloriginalmenteadversários.O jogodemocráticoé tãodinâmicoqueobrigaosdiversosagentes sociaisepolíticosànegociação e ao acordo, diluindo, por conseguinte, os efeitos da dominaçãovertical e horizontalizando o exercício do poder ao colocar em contato, pelomenoscircunstancialmente,membrosdogovernoedasociedadecivil.

NaóticadeRuncimanedosociólogoalemãoRalfDahrendorf(1929-2009),a dominação não se faz ao bel prazer das elites, mas conta com o aval e alegitimaçãodasociedadecivil,portadoradepodersuficienteparaempreenderamudançasdas elites nopoder.Alémdisso, ambosos autores concordamque acomposição plural dos Parlamentos, a heterogeneidade das elites estatais e aprópriaburocraciaestatalservemcomofreiosparaoabusodopoder.Àmedidaque as várias áreas do poder governamental se dividem entre diversas pessoasdiferentes, pertencentes a partidos políticos diferentes ou às vezes a partidonenhum,oriundosdesetoresdiversosdasociedade,maioraprobabilidadedequeessegovernoatueemproldointeressecomum.Nadaingênuos,reconhecemqueaumentaraprobabilidadenão significaconstruirumacerteza,masafirmamqueapenas os regimes democráticos apresentam tantos meios para disciplinar aatuação das elites governantes. Por isso, Dahrendorf escreve que as própriasregrasdojogodemocráticoservemparainibiremesmocoibirousoabusivodopoder.Em suma, nos regimes democráticos o exercício do poder não se dá demaneira absolutamente descontrolada, mas há, a fim de evitar a ruptura dossistemas político e social, resistências que semanifestam demodos diversos –comoveremoslogoadiante.

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Outra crítica endereçada aomodelo elitista é a de que existem pressões edemandasoriginadasforadosistemapolíticoequeexercemsobreeleprofundainfluência(DAHL,1970).OsgruposdepressãopodemserjáinstitucionalizadoseagirnointeriordoEstadooupodemseformarnasociedadecivil,pressionandoogovernoapartirdeforacomsuasreivindicações.Aparticipaçãopolíticaémaisumindicadorimportantedarobustezdemocráticadeumasociedade.Equandosediscute a participação política, alerta o filósofo social alemão JürgenHabermas(1929-),háqueseprestaratençãonãonaquantidadedessaparticipação(quantaspessoas, quantos grupos sociais, quantas ONGs), mas, principalmente, na suaqualidade. É a participação política, nos dizHabermas, que pode alçar o jogodemocrático para além de suas regras instituídas, para além de seu marcoinstitucional. Quer dizer, a democracia não deve jamais ficar limitada ao jogoinstitucional,quedetermina,deumlado,governantese,deoutro,eleitores,quereduzaparticipaçãoaovotoeencerraasdecisõesimportantesdentrodoslimitesdoParlamento.Se isso acontecer, temeHabermas, a democracia enfrentará, nofuturo,sériosriscos.

Narealidade,jáosenfrenta.AsdemocraciasaolongodoséculoXXenesteinício do XXI sofreram algum enfraquecimento devido ao afastamento dospartidos políticos de seus eleitores e à sua transformação em instrumentos paraformar,artificialmente,avontadedo povo,deixandodeatuarcomoporta-vozesde suas vontades. Os partidos, em geral, só se interessam pelos cidadãos nomomento da eleição: “Os partidos são instrumentos de formação da vontadepolítica,porémnãoemmãosdopovo,senãodaquelesquedominamoaparelhodo partido” (HABERMAS, 1984, p. 384). Os marcos institucionais dademocraciaopõemagarantiajurídicadeigualdadepolíticapresenteemqualquerconstituiçãomodernaeadesigualdadeefetivanadistribuiçãodeoportunidadesdeparticipação política ativa, provocando um descompasso entre a crença naliberdadepolíticaeaeficáciadaintervençãodocidadão.

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AsociedadecivilresistindoàsformasdedominaçãoengendradaseempregadaspeloEstadoepelaselitesdirigentes.RevoluçãodeMaiode1968:estudantesconstroembarricadaspróximasàPlacedelaBastille,emParis,comosinaldeprotesto.24-5-1968.

Noentanto, a própria democracia cria os anticorpos contra osmales que aassolamaopossibilitaroalargamentodaparticipaçãopolíticapormeiodeoutroscanais, além dos partidos políticos, objetos da desconfiança deHabermas e dosociólogo francêsAlain Touraine (1925-).Após a década de 1960, Touraineretoma o conceito de “sociedade civil” e mostra como é pertinente tratá-lo deforma independente em relação ao Estado e ao mercado econômico,demonstrandoacapacidadequeessasociedadeciviltemderesistiràsformasdedominaçãoengendradas e empregadaspeloEstadoepelas elitesdirigentes.Doseio da sociedade civil brotam movimentos sociais capazes de organizar osgruposhistoricamentemarginalizados–comoosjovens,asmulheres,osnegros,os homossexuais, os favelados etc. – em relação aos padrões de normalidadeinstituídos socialmente com o intuito de persuadir o conjunto da sociedade apropósito da justiça de suas reivindicações e direcioná-las ao Estado. Por

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mobilizaremprincípioséticosemorais, sentimentosenovasposturaspolíticaseideológicas,osmovimentossociaissetornam,afirmaTouraine,porta-vozesmaislegítimos das demandas, necessidades e conflitos sociais que qualquer partido,sindicatoouclasse social.Osmovimentos sociais, nesse sentido, sãoproduto eprodutores da democracia, que é, antes de tudo, nos termos de Touraine, “oregime político que permite aos atores sociais formar-se e agir livremente”(TOURAINE, 1994, p. 345). A vinculação entre autogestão e democracia,termosquesealimentammutuamente,estáimplícitaemseupensamento.

A autogestão da sociedade pode elevar os indivíduos acima de seusinteresses e necessidades egoístas, estimulando os vários grupos ao respeitomútuoeconduzindo-osaobemcoletivo,e,justamenteportalrazão,limitandoouso institucional do poder. É fácil reparar que Touraine não enxerga umacontradiçãoentreaorganizaçãoeaaçãodosmovimentossociaiseademocraciarepresentativa,porqueéessearranjopolíticoeinstitucionalquepermiteaosatoressociais canalizar suas reivindicações aos partidos políticos e ao Estado e, aomesmo tempo, vigiá-los, aprimorando tal arranjo. Somente por meio dosmovimentos sociais é que as pessoasdestituídas depoder poderiamconfrontar,em algum pé de igualdade, e lançar desafios àquelas que se consideram e secomportamcomoas“donasdopoder”.BemsevêqueTouraineapresentaumanoção de democracia que vai além de seus aspectos formais e jurídicos,encarando-aedefinindo-acomoumalutacontraopodereaordemestabelecidos,criandoascondiçõesparaonascimentoeodesenvolvimentodoatorsocialcomoSujeitode suahistória.EaoconstituiroshomenscomoSujeitos, transforma-osemcriadoresdesimesmos.Ofortalecimentodosmovimentossociais–logo,dademocracia – resulta importante porque implica a limitação do poder praticadopeloEstado,sem,necessariamente,colocarasuaexistênciaemrisco.

As teorias sobre os movimentos sociais enxergam a sociedade civil comocapazdeseorganizareresistiraosusoseabusosdopoderporpartedoEstadoe/ouqualqueroutrainstituiçãopolíticaformal,atribuindo-lheumpapelativonosconfrontos políticos, e não apenas passivo; e percebemna sociedade civil umamultiplicidadedeconflitospolíticosparaalémdaslutasdeclasse,comoosraciais,osreligiosos,asdisputasentreosgênerosquecolocamsobsuspeitaadominaçãomasculinaetc.Orespaldohistóricodesse tipodeabordagemsociológicamostraquenãosetratadesimplesesperançautópica.

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MartinLutherKing,líderdedireitoscivis,acenaparasimpatizantesem28-8-1963,durantea“MarchaemWashington”,consideradaumadasmaioresdemonstraçõesdeliberdadenahistóriadosEstadosUnidos.Kingfoiassassinadoem4-4-1968.

Ao longo do século XX, principalmente no pós-Segunda Guerra, odesenvolvimentoeconômiconorte-americanoeobomdesempenhodas sociais-democracias europeias resolveram vários problemas de ordem material,melhorando,demodogeral,ascondiçõesdevidadostrabalhadoreseampliandosua participação política; garantiram a expansão do sistema escolar; e aestabilidade política e econômica possibilitou o crescimento das novas classesmédias e umamobilidade social ascendente. Tais mudanças provocaram certonivelamentosocial,eaalternativarevolucionáriacomosoluçãoparaosconflitosde classe, como imaginouMarxeparcelada tradiçãomarxista, foi se tornandobastante remota. Os conflitos ainda existiam (e existem), mas eles foram seinstitucionalizandocadavezmais,eospartidostrabalhistas(decentro-esquerda)eos sindicatos acabaram abrindo mão da luta revolucionária e optaram pelasbarganhascoletivas (GIDDENS,1975;DAHRENDORF,1982).Se,noséculoXIX, o antagonismo entre capital e trabalho era evidente – o que tornava oconflito entre as classes algo palpável –, no XX, o deslocamento das classessociaisdoepicentrodaslutaspolíticaspermitiu,inclusive,perceberapluralidadedosconflitosparaalémdasclassessociaiseperceberoutrastantaspossibilidades

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de organização da sociedade civil e reivindicação, como, por exemplo, osmovimentos feministas na Europa,América do Norte e do Sul; a mobilizaçãopara ampliação dos direitos civis iniciada pelos negros norte-americanos emmeadosdosanos1950econtinuadanadécadaseguinte;aorganizaçãoestudantilno final da década de 1960 na Europa e nos Estados Unidos; as lutas peladescolonização, comprofundo teor étnico e religioso, levadas adiantepelas ex-colôniaseuropeiasnaÁfricadesdeosanos1950;osmovimentosambientaisquecomeçama tomarumcorpomais robustoapartirdosanos1970eatingem,noatual contexto, a sua maturidade política; os movimentos populares de basesurgidos no Brasil a partir de 1978, cuja participação no processo de aberturapolítica nãopode ser completamentedesconsiderada; a amplamobilização, quechegouaoconfrontoviolento,noiníciode2011,dassociedadesdaTunísiaedoEgitocontraasditadurasquecomandavamessespaíseshádécadas;[4]emuitosoutrospodemsercitados.Deve ficarclaroque,emboraasclassessociaisaindasobrevivam, que os interesses entre elas (as dominantes, representadas pelaselites, e as dominadas) persistam e sejam divergentes, o que conduz,inevitavelmente, a uma espécie de conflito, outras reivindicações, outrosconfrontoseformasdemobilizaçãoeaçãocoletivaqueultrapassamoslimitesdasclasses sociais e dos sistemas político e governamental mais formais tambémexistemeajudamaestruturarasmodernassociedadescapitalistas,contribuindo,em algum grau, para a redefinição dos regimes democráticos e suas formas derepresentação.Aexplosãodosmovimentossociaisaoredordomundoduranteoséculo XX, com toda a mobilização de recursos materiais e humanos queempreendem, com toda a sua heterogeneidade, coma força de pressão políticaque foi adquirindo – a ponto de conseguir colocar boa parte de sua pauta dereivindicações nas agendas públicas e políticas –,mostra que a sociedade civilpode,sim,resistiràaçãoestataledaselitese,ainda,criarnovosmecanismosdemobilizaçãoeluta.

Osmovimentossociaisreais,historicamenteconcretos,sãoaprovadequeasteoriasquesurgemparacompreendê-losnãosãoingênuasfantasiasintelectuais.Ejustamenteporqueumadasfunçõesdoconhecimentoédescobrirosnossosolhosdos véus daquela ingenuidade que provoca a ignorância, é que não podemosachar que, se as teorias da dominação são incompletas, então as da resistênciaexplicamtudo.Se,porumlado,tesesacercadaselitesdirigentesnãoconseguemenxergaroscaminhosqueaprópriademocraciaforneceparaasuaautocríticaerecriação, chegando a acusá-la de farsa, por outro, a vertente conhecida como

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pluralista,preocupadaem refletir sobreosmecanismosdeexercíciodopoder–inclusivesobreessacapacidadequeosistemasocialtemdereagiredialogarcomosistemapolítico–,seesquecedeindagarsobreasfontesdopoder(econômico,político,militaremesmocultural)eadesigualdadedesuadistribuição,que,porconseguinte,resultanadesigualdadequantoàsformasdeparticipação.

Mecanismodemobilizaçãoelutasocial:passeatadacampanha“DiretasJá”.1984.ViadutodoChá,SãoPaulo.

Melhor compreender a sociedade, para até preparar-se para melhor nelaintervir,depende,pois,daarticulaçãoadequadadasmuitasperspectivasteóricas,atualizando os conceitos, adaptando-os a contextos sociais diferentes,promovendosuaprópriacrítica,assimmelhorando-as;suadevidacombinaçãosórefina o olhar emelhora nossa capacidade de ler omundo e interpretá-lo, nosdesviandodos dogmas e ideologias que embaçama visão, alimentam as váriasmanifestações da intolerância, pervertem as explicações e naturalizam osproblemasdeummundoquenãoénatural,mashistoricamenteconstituído.

Bibliografia

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1.Nostermosatéagorapropostos,podemospensaroexercíciodopodereadominaçãotantonumnívelquepodemos chamar demacrossociológico, como, por exemplo, aquele poder e dominação exercidos de umEstadosobreoutrooudeumaclassesocialsobreoutra;mastambémnumpatamarmicrossociológico,istoé,opodereadominaçãoexercidosdomaridosobreamulher,dospaissobreosfilhos,dosprofessoressobreosalunosetc.Dessaforma,aprópriaideiadepolíticadeveser(re)pensadanosdoisníveissociais,omacroeomicro.

2.Quanto à estruturaçãodo sistemapolítico, é útil esclarecermos a distinção entreEstado eGoverno: emlinhasgerais,oprimeiropossuiumaestruturamaisoumenosfixa,comseusministérios,secretarias,sistemadecobrançasdeimpostosemonopóliodousodaviolênciafísica(pormeiodasforçasarmadas),quepermiteminimamenteofuncionamentodoGoverno,cujasprincipaisdiretrizesemetasvariamconformeosetordaclassepolíticaqueocompõe;porexemplo,seoGovernoforexercidoporumpartidooualiançadepartidoscomumperfil ideológico de centro-esquerda, espera-semaior cuidado com as políticas sociais; por outrolado,seoGovernoéexercidoporpartidooupartidosliberaisouneoliberais,épossívelprever,entreoutrascoisas,umapolíticadeprivatizaçõesdealgumasempresaspúblicas.Evidentemente, tratamosaquide tiposideaisdegovernosdecentro-direitaecentro-esquerda,oquenãoimpede,naprática,quehajaumainversãodecomportamentospolíticosoumesmosuacombinação.

3. Marxiana diz respeito à teoria elaboradapelopróprioMarx, emarxista fazmenção a uma tradiçãodepensamentoqueseseguiuaMarxeotomoucomoprincipalreferência.

4. O caso das sociedades muçulmanas citadas é mais complexo, pois, se houve, de fato, uma profundaorganizaçãodosváriossetoresciviscontraosregimesditatoriaisaliinstalados,mesmoassim,pelomenosatéomomentoemqueestaslinhassãoescritase,provavelmente,aindaporalgumtempodepois,nãosepodeafirmarquetaismobilizaçõesproduzirãosuairrevogáveleinquestionáveldemocratização,umavezquesuasparticularidadeshistóricasdeixamdúvidassobreaatuaçãoeaforçapolíticaqueasorganizaçõesmuçulmanasmaisortodoxas,equecontamcomrepresentatividadepolítica,aindapossuemequalograudeparticipaçãoeinfluênciaque terãonaconfiguraçãoestatalegovernamental futura.Dependendodoquesuceda,ocenáriopoderánãosertãootimista,criandoumclimademaiorintolerânciareligiosaemaisbeligerante.

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ASoberaniaRevisitadaCarlSchmitt,Foucaulteaquestãodopoder

BrunoCostaSimõesIntrodução

9.1.1.Osemblanteeadeformaçãohistóricadopolítico9.1.2.Influênciasereformulações9.1.3.Inimigos9.1.4.Normativismoversusmovimentosbruscos

9.2.1.Dométodooudasuaausência9.2.2.Esboçodeumagenealogiadopoder9.2.3.Avançossociaiseironiasdahistória9.2.4.A“eradobiopoder”9.2.5.Poder,dispositivodesexualidadee“sexo”9.2.6.Inversãodosdesvios

Bibliografia

IntroduçãoAs duas partes deste capítulo estão voltadas para a noção de soberania

segundoas leiturasdeCarlSchmitteMichelFoucault.Trata-sedeformulaçõespolíticasnãomuitoconvencionais,quandocomparadascommarcos teóricosdo

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passado filosófico-político, a exemplo da conhecida trindade contratualistadelineadaporHobbes,LockeeRousseau.Abemdizer,SchmitteFoucaultmaisreavaliamcriticamenteolegadodopensamentopolíticomodernodoqueerigemumnovosistemapolítico.Issonãoinviabiliza,todavia,certoparaleloteóricoqueambosacabamtraçando.Pelocontrário,ainterpretaçãodecadaumdelessobreacondiçãoatualdasoberaniaserevelaradical.

Em tempos atuais, em que a autoridade política de Estados independentes(membros da comunidade internacional) é posta em xeque, seja por pressõeseconômicas, disputas territoriais ou violações dos direitos humanos, torna-sebastantepertinenteingressarnacríticaquelançam,cadaqualaseumodo,contraumpanoramadedominaçãocadavezmaisabrangente, identificadoemSchmittna hegemonia política do liberalismo, e em Foucault nas estruturas de poderdisseminadasnasociedade.

Da parte de Schmitt, entra em cena a retomada de diversos conceitosfundamentaisdafilosofiapolíticamoderna(progressivamentedesvencilhadosdesua raiz teológica devido ao amplo processo de secularização), almejando, apartirdaí,umgolpeteóricoautoritárioparareafirmaranecessidadedo políticoerestabelecer a unidade soberana do Estado. Posto que o modo como osagrupamentoshumanosseorganizamsebaseiafundamentalmentenoconflito(ena manutenção da existência da unidade política), a resposta que o poderexecutivo estatal deve então lançar, em contraposição ao cenário liberal deneutralizações e despolitizações da vida política ocidental, é de forte apelorealista e, como veremos, contrário a qualquer tentativa de normatização dasdecisõespolíticas.AosolhosdeSchmitt,oque importaéoextraordinário (queescapaàregra)davidaemgeral,nãoanormalidadeestabelecida(que tendeaoesmorecimento).

Já emMichelFoucault encontraremosuma abordagembastante singular, oque não diminui a proximidade do objeto de estudo da soberania analisadoanteriormente por Schmitt. Para Foucault, com a transferência do direito deproteção dos indivíduos para asmãos centralizadoras da instituição política doEstado,noperíodoclássicoqueseinicianoséculoXVII,umanovaformulaçãojurídicaconsagra-seàautoridadesoberana.Éinaugurado,então,umprocessodedominação de tamanho alcance, que, a despeito daminimização da instituiçãopolítica central e, consequentemente, da abertura democrática para maiorparticipação da sociedade civil nas diretrizes políticas, a base da estruturacontroladoradopoderpolíticomostra-sedisseminadanasmaisdiversasformasdeorganizaçãodasociedade.

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EmcontraposiçãoàautoridadecentraldefendidaporSchmitt(que,navisãodeste último, estava gravemente ameaçada na primeirametade do séculoXX),vemosqueodiagnóstico lançadoporFoucault desmascara as estruturas sociaisquepermanecemabsorvendoacondiçãojurídicaelementarsegundoaqual,paraque o indivíduo seja protegido e tenha confirmada a garantia legal dos seusinteresses, é necessário obedecer às leis e segui-las.A obediência, porém, nãoestámais atrelada àordemdeumpoderpolítico absoluto.Demaneira indireta,portanto, o poder dominador do Estado ramifica-se num inesgotável espectrocontrolador, assimilado pela própria organização social, em que o contratooriginal de proteção da vida do indivíduo torna-se precursor de uma diretrizcalculistaeimperiosadeplanejamentoeproduçãodavida.

SeasabordagensdeSchmitteFoucaultmostrampouquíssimaafinidadenomodocomo,porassimdizer,avaliamseuobjetodeinvestigação,nãodeixadeserrelacionado,ounomínimocoincidente,quesuaspreocupaçõesacabematestandoa profunda modificação que o estatuto da soberania política veio sofrendo aolongodamodernidade.Nãoobstanteadominaçãogeral,pormeiodoexercício(diretoouindireto)dopoderpolítico,aindasejaumarealidadeinquestionável,aformacomoasoberaniapassaaatuarsobreasdiversasconfiguraçõessociaisnacontemporaneidadeprecisaserrevisitada.

9.1.CarlSchmitt1A gama de leituras sobre o jurista alemão Carl Schmitt comporta osmais

distintosmatizes, seja para condená-lo por sua franca defesa da autoridade doEstado, seja para justificar sua teoria decisionista pensada à época comosalvaguardaconstitucionaldaRepúblicadeWeimar,seja,ainda,paradepreender,nasuainterpretaçãodaexistênciaconcretado políticoedo estadodeexceção,aprofundidade da sua crítica ao liberalismo constitucional e ao normativismojurídico.Contudo,quaisquerquesejamotomeopropósitodaabordagem,nãosepodeignorarapassagembiográfica(indeléveleconturbada)deSchmittquandodesuaadesãoaonazismo,de1933a1936.Paraumautorquetantosalientouotemadaautoridadeedaquestãodo quemdecide–situaçãoradicaleúnicasobreaqualnenhumainstânciaexternaàautoridadeexerce influência–nãodeixadeser no mínimo irônica a irresponsabilidade oportunista de Schmitt nessa suadecisãopolítica.

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Nosso interesse, entretanto, não é depreciá-lo, justificá-lo ou exaltá-lo,masminimamentecompreendê-loapartirdealgumasdesuasnoçõesfundamentais.

9.1.1.OsemblanteeadeformaçãohistóricadopolíticoDeinício,destaca-seocaráterpoliticamenteavessoeexaltadodeSchmittno

diagnóstico que lança contra seu tempo. À diferença da institucionalizaçãofuncional do Estado liberal europeu (garantidor de direitos e meios para oindivíduo realizar livre e privadamente suas aspirações),Schmitt entendequeo“Estado soberano” ainda preserva, quando ameaçado nas suas determinaçõesbásicas,aautoridadeparaexigirdocidadãoa“prontidãoparaamorte”.

A feição do soberano reveste-se de traços personalistas com propósitosautoritários. Entra em cena um protagonista impregnado de caráter executor,prontoparaagirdemaneiraimperiosasobreavidadosindivíduos,tendoemvistaapreservaçãodoEstado.Comoparticipantedodebateacaloradodasdécadasde1920 e 1930 na Alemanha pós-Primeira Guerra Mundial, Schmitt propõe oquestionamentosobre quem,afinal,podedeterminarquandooEstadoencontra-seounãosalvaguardadonasuaunidadepolítica,bemcomosobre quemdecide,dadasasconturbaçõesdomomento,seaordemjurídica,entãodissolvida,podevoltaravigorar.

Nos seus subsídios históricos, tal personalismo é tributário de uma extensalinhagemda filosofiapolítica,principalmentede filósofospolíticosdo iníciodoperíodomoderno (como JeanBodin,ThomasHobbes,SamuelPufendorf), queempenharamesforçosparadeterminaraunidadesoberanadoEstado.MasjánocomeçodoséculoXVII,comadiretrizpolíticadeunificaçãodoEstado-nação,observaoolharcríticodeSchmitt,inicia-setambémaafamada secularizaçãodosconceitos teológicos da vida política. Em Teologia política , publicadooriginalmente em 1922, Schmitt (2006) lança uma de suas principais teses arespeito da evolução da políticamoderna: “todos os conceitos significativos dateoriamoderna do Estado são conceitos teológicos secularizados” (SCHMITT,1985,p.36).Algunsanosdepois,comapublicaçãode Oconceitodopolítico,em 1927, o diagnóstico de Schmitt (2008) se aprofunda; sua crítica àsecularização revela que a finalidade do Estado tornou-se completamentesubsidiária do seu funcionamento administrativo, voltado para o consumo eprodução, isto é, para o conforto da sociedade – o que, do ponto de vistapolítico,denunciaatotalincapacidadedeoEstadolutarpelasuaexistência.

Graças à diretriz de acordos internacionais, a exemplo do Tratado de

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Versalhes,eàconsequentesupressãoda arenadeembates(emqueacausapelaqual se lutava no passado, como a Guerra Santa, foi sofrendo os efeitosapaziguadoresdavigênciadoracionalismoclássicoedosavançosdatécnica),aféemDeus,outrorapresentenajustificativadaexistênciado político,mostra-secomprometidapela fénatecnologia.

“Dadaa irresistível sugestãode semprenovase surpreendentes invençõese realizações, surgiuentãouma religiãodoprogresso técnicoqueprometeuque todososoutrosproblemas seriam solucionadospelo progresso tecnológico. Essa crença era autoevidente para as grandes massas dos paísesindustrializados. Passou-se por cima de todos os estágios intermediários típicos do pensamento dasvanguardas intelectuais, transformando-se a crençanosmilagres eno além–que éuma religião semestágiosintermediários–numareligiãodosmilagrestécnicos,dasrealizaçõeshumanasedadominaçãoda natureza. Uma religiosidade mágica transformou-se numa tecnicidade igualmente mágica”(SCHMITT,2007c,p.84-85).2

Desse modo, ao mesmo tempo que denuncia a desfiguração crescente daautoridade política, por força da qual o poder soberano foi diminuído, Schmittretrocede na história moderna, comparando e reconstruindo a base teológicapresente no Estado: a onipotência legislativa do autor das leis (o monarca)conferiapesodecisivoàinstituiçãopolíticaduranteoséculoXVIIeaindaemboapartedoXVIII;aopassoque,comainstauraçãodadivisãodepoderesnoXIX,ficacadavezmaisinviáveloreconhecimentodapresençateológica– análogoàexceçãoqueSchmittanalisanodomíniodajurisprudência,opoderinterventordeDeus (como o milagre que suspende as leis da natureza) foi desfalcado domundo,e,no lugarda essênciadivina,estabeleceu-seo seu conceito, já entãoafastadodarealidadepolítica.

Questiona-se assim a validade das forças decisórias do legislador (outroraonipotente).Comas doutrinas contratualistas, quepassamaproteger racional elegalmente a vida do cidadão, o esquema regulador da lei parece adquirir vidaprópria,tornando-seautônomoemrelaçãoaopoderexecutivo.Odireitoganhaasua teoria moderna e, independentemente da realidade política vivida, passa adefinir atributos e funções daquele que governa.Consolida-se, pois, o domíniojurídicodalei,queprocuraser–senãosuperior–aomenosdemesmaextensãoqueapessoasoberana.

Sob pressão dos avanços da democracia liberal e da instituição de umparlamentofirmadonaConstituição,ochefedeEstadoexpõe-seanovasformasde controle. Ao fim do século XIX, o Estado legislador (ou de direito)representaparaSchmittoacabamentofinaldapresençaedosefeitosda técnicasobre a lei; a razão jurídica é encarada pelos representantes do povo (oparlamento)àluzdeexigênciasformais,queavaliamoprocedimentoapartirdo

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qual ela deve ser elaborada. Por representar o povo, o parlamento é alçado àcondiçãomaisimportantedoEstado,trazendoparaodebatepolíticoosinteressesde distintos grupos sociais partidariamente organizados, que descentralizam aunidade soberana, levando à perda do “sentido do político”.Ao contrário daantigasujeiçãoincondicional,quegarantiaaexistênciaemanutençãodoEstado,ocomprometimentodopovoencontra-sedispersonessasocializaçãodoEstado,cujosrepresentantesvêmapúblicoparausufruirdopolíticoe,comonum jogo,disputarinteressesparticulares.

RetratodeCarlSmith,1932.

Numsentido elementar, a tendência políticamoderna segueo ideal liberal,limitando a ação do Estado, e ao mesmo tempo depende da norma (aConstituição)queconferevalidadeaosprocedimentosinstituídos,istoé,legitima-os:alegalidadedalei,comoprocedimentoformaleracional,é, grossomodo,oque a legitima. Em suma, a tendência liberal encontra na democracia a formalegítima de vida política, que, pela Constituição, desautoriza a concentraçãoexcessivadepoderdosoberano.PoucoapoucoafiguradochefedeEstadovaisendo questionada, reformulada e democratizada, cedendo espaço àsreivindicaçõessociais,que,porsuavez,determinamumnovoescopodeatuaçãodoEstado.

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9.1.2.InfluênciasereformulaçõesAlémdodiagnósticodasecularizaçãodapolíticamoderna,éprecisodestacar

queSchmittestáembevecidocomadoutrinadasoberaniadeHobbes(queapontajustamente para uma assombrosa, embora pouco considerada, fenda no sistemajurídico, por onde Schmitt depreenderá o “estado de exceção”), exacerbando,como nenhum outro pensamento político, a “forma pura” do poder soberano.“ Auctoritasnonveritasfacitlegem”(aautoridade,nãoaverdade,fazalei),rezaoconhecidoadágiohobbesianoadotadoporSchmitt.No Leviatã,de1651,obraescritanodesenrolardaguerracivil inglesa,Hobbesquer instauraraordememplenoterrenodeconflitosdeinteressespolíticos;paratanto,concentraeafirmaasuperioridade do poder soberano diante da lei instituída. Nesse sentido, éimprescindível considerar que o soberano hobbesiano tem poderes absolutos,situando-se acima da judicatura, por força da própria necessidade política dereformularaleiconformeastransformaçõesconjunturais.

Todavia, mesmo admitindo a primazia da autoridade do soberanohobbesiano, podemos identificar um equilíbrio de forças na busca da pazalmejada pelo Estado, em que o uso da violência se encontra politicamenteadormecido.EmHobbes, assimcomoa renúnciade cadaumaodireito sobretodas as coisas (o direito natural) visa a eliminar, pormeio do pacto, o riscopermanente de morte e legitimar a ação protetora da autoridade Estatal, assimtambémosoberanointervémnamedidaemqueaestruturapolíticaestáameaçadapela guerra ou pela desobediência civil. No final das contas, a intervenção dosoberano, tidapelo ideal liberal comoumexcessodeautoridadepolítica, segueem Hobbes as diretrizes da proteção da vida, deparando-se com uma barreiraincontornávelnousodeseupoder–comaexigênciadesegurança,ficapatenteque a sociedade não está mais sujeita a toda e qualquer medida imposta pelosoberano.

Já na grande ordem estatal pensada por Schmitt, tanto as forças armadasquantoaburocraciainstitucional(bemcomoevidentementeaprópriasociedade)devem posicionar-se a favor da autoridade política. Essa forte hierarquizaçãosubordinada aoEstado tem emvista não necessariamente a irresistível sujeiçãodas associações à investidura da autoridade soberana, mas, num sentido maisurgente, a própria garantia de que elas se preservem como tais: a estabilidadesocial depende mais de seu alinhamento com a prerrogativa da existência doEstado do que da ação direta do soberano sobre a sociedade, que é meraconsequênciadoesfacelamentodaordempúblicadesgastada.

Nesse realismo schmittiano (como conflito e possibilidade de se declarar

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guerraemnomedapreservaçãodeumagrupamentohumano),vigora,portanto,uma relação estreita entre proteção estatal e obediência civil. Não à toa, noConceitodopolítico,Schmittreelaboraoutratesehobbesiana,aoenunciarquearelação íntima do “ protego ergo obligo”, delimitada por Hobbes, é,cartesianamentefalando,o“ cogitoergosumdoEstado”.Ouseja,aexistênciadoEstadoresultadessarelaçãoíntima,emqueopoderdeproteçãodependedoquanto se está disposto a obedecer à autoridade instituída. No Conceito dopolítico,éobservadoque,

“[...][ao]Estado,comoumaentidadeessencialmentepolítica,pertenceojusbelli,istoé,apossibilidaderealdedecidir,numasituaçãoconcreta,sobre[aquestãodo]inimigo,eahabilidadeparaenfrentá-loemfunçãodopoderqueemanadaentidade.[...]Ojusbellicontémtaldisposição[declararguerraedisporda vida dos homens]. Isso sugere uma dupla possibilidade: o direito de exigir de seus membros aprontidãoparamorrereparamatarsemhesitaçõesseusinimigos”(SCHMITT,2007c,p.45).

Entretanto, somente no caso limite, extremo e sério – ou, tecnicamentefalando, somente “em caso de emergência” ( Ernstfall ou no extremusnecessitatis casus) – o poder ilimitado do soberano se manifesta para aplacaraquilo que entende como a insídia pública. Mas se Schmitt legitima o poderabsoluto do soberano pormeio da própria força política, é preciso notar que arazão (ou o aparato do sistema jurídico regulador) pouco tem a ver com alegitimidade desse ato político que se impõe sob a forma pura da vontade dosoberano. De fato, no campo hobbesiano, é sempre a paz que está em jogoquando se empreende a reunificação das tendências sociais dispersas. Schmitt,porsuavez,pareceiralémdeseuprecursor:nãohámaisemSchmittos ditamesdarazão(ouas“leisdenatureza”enunciadasporHobbes,que,como“teoremas”,presidiriam as ações do soberano e da própria sociedade, no sentido da suaacomodaçãoesuperaçãodoconflito).

Como veremos mais à frente, com a prescrição do estado de exceçãoschmittiano, a vida em sociedade está completamente sujeita a um poder queprescindederegrasracionalmenteestabelecidas,pois,dadaasuaforçaincontida(atopurodavontadepolítica),nãovêlimitesparaseuexercício.Alegitimidadedo ato executivo depende, portanto, da própria legitimidade das práticas dasociedadeque,porsuavez,instauramosoberano.Afinal,asociedaderespondediretamente pelas suas bases constitutivas (constitucionais), o que para Schmitttem um sentido fortemente fundacionista. Por isso, deve-se ter em conta aespecificidadedanoçãodelegitimidadenaconcepçãoschmittianadeEstado,istoé: uma justiça que, nos seus propósitos últimos, alcança uma normalidadefirmemente alicerçadapelopoder interventor do soberano.No final das contas,

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porparadoxalquepossaparecer, todaessaconcentraçãodepodernasmãosdosoberano, que age livremente, visa justamente evitar a sua intervenção nasociedade.

Entretanto, quaisquer que sejam os pontos em que Hobbes e Schmittparecemseafastarumdooutro,éinegávelqueaquestãodaexistênciadoEstadoe do estatuto superior deste em relação à ordem jurídica constitui uma diretrizpolítica fundamental,paraaqualambosconvergemde imediato.Curiosamente,embora o problema da sobrevivência do indivíduo hobbesiano (do seu direitoinalienável à vida) desapareça da exposição de Schmitt (já que para este adisposição política de um agrupamentohumano é a prontidão para a morte),pode-seaindaassimreencontrá-loreformulado,quandoSchmitt(2006)advogao“direito de autopreservação”, não do indivíduo,mas sim do Estado – situaçãoessaque,porsisó,exibea“decisãosobreaexceção”,daqualtrataremosmaisàfrente, mas que, em resumo, corresponde à suspensão da lei em nome damanutençãodaexistênciapolíticadoEstado.

9.1.3.InimigosEm Oconceitodopolítico,Schmitt(2008)ofereceumtratamentodosmais

polêmicos ao fenômeno de desmantelamento político de seu tempo. O Estadoconcentraemsiaautoridadedecisória,nãoseperdendonosmeandrosjurídicos,edistingueo amigodo inimigo.Taléacondiçãofundamentalquerespondepelo“critério do político” – não propriamente, frisa Schmitt, como definição ouessênciasubstancialdopolítico,mascomorealidadequeseexacerbanumacriseinstitucional. Para tanto, o Estado reúne forças que, como resultado desse“monopólio da decisão”, exigem de seus cidadãos, como dito anteriormente, aprontidão para a morte. Do contrário, o Estado seria apenas um Estadoenfraquecido,dispersoem“dilemashamletianos”trazidospeloliberalismo.

Háumgraveapelorealistanaabordagemschmittiana,deacordocomoqualos Estados constituídos definem seus rumos à luz da permanente iminência deconflito,sejanoâmbitoexternocomoutrosEstados,sejanocontextointernodaautoridade soberana enfraquecida que, como sintoma da crise institucional,prenuncia a guerra civil. Em resposta a essas ameaças, Schmitt entende que osoberanocontacomumpoderdeatuaçãoque,emboralegalmenteformuladonaConstituição, extrapola o que a própria lei autoriza.Nesse sentido, admitidos aconcretude e o caráter inescapável da condição de conflito, as prerrogativasexecutivas incidem, para Schmitt, não sobre a vigência da lei, mas sobre a

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preservaçãodoEstado.Se a crise denuncia a perda de força da lei (que deixa de ser lei), então a

estabilidadepolíticaalcançadapelosoberanoéque,revigorandotalforça,validaaordemjurídica–eis,porassimdizer,opropósitoprimáriodosoberano,queseconfundecomaprópriatarefadesalvaroEstadoeque,biograficamente,pareceimpregnaralgunsesforçosteóricosdeSchmitt,duranteadécadade1920,quandodeumacontendainterpretativasobreoartigo48daConstituiçãodeWeimar.3

Para esmiuçarmos um pouco mais a fundo o lastro autoritário do qual osoberano está investido, consideremos ainda que em A ditadura, de 1921,Schmittcaracterizaesquematicamentedoistiposdeditadura:

• a comissária, que, seguindo a normalidade anterior ao período de crise, visa restabelecer aConstituiçãoeaordempública;e•a soberana,paraaqualaditadurainstauradaanula,porforçadacrisesocial,aConstituiçãoatual,epropõe,dopontodevistadosoberano,acriaçãodeuma verdadeiraConstituição.

Nesse sentido, o artigo 48 da Constituição de Weimar seria de ordemcomissarial,poisosdispositivosconstitucionaisemvigornãopermitiramanulá-laemdefinitivo,masapenassuspendê-laprovisoriamente–oqueparaSchmittjáésinalsuficientedeenfraquecimentodaautoridadesoberana.

Comefeito,abasedoEstado(oseualicercepolítico,institucionalejurídico)é a Constituição, que jamais teria por finalidade a sua própria dissolução. Demodo que, mesmo seguindo o modelo liberal, o sistema pluripartidário de umEstadonãopodesecomprometercomoutraConstituiçãosenãocomaquelaqueautoriza a existência da arena pluripartidária sem excessos ou desmandos denenhumadaspartesenvolvidas.Paraimpedirausurpaçãodeumsistemaeleitoralreconhecidopeloregimedemocrático,exige-se,pois,queospartidosobedeçamàConstituição em vigor, vetando-se, por outro lado, as tendências radicais deesquerda e de direita, que se lançariamna esfera pública e se promoveriamnacondiçãodopróprioEstado.Asinstituiçõespúblicas,tambémreconhecidamentelegítimas pela Constituição, tendem à separação de poderes e à diminuição daautoridade do Estado. Contudo, é preciso pressupor que o poder político dosoberano as preserva. Portanto, a arena deliberativa compreendida no regimedemocráticodeve,nodesembaraçodosconflitosdeinteresse,acatar(oumesmosofrer)adecisãodosoberano.OcondicionamentoentreEstadoesociedadecivil,por ser mútuo, almeja a unidade política do construto soberano, e impede, dopontodevistadeumavontadegeral,essaseparação.Afinal,ouoEstadoexistecomoumavontade singulardaquele (oudaquilo)queo constitui, ounãoéum

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Estado.Emsuma,oEstadonãoexistesemasociedade;aopassoqueestapodetentarmanter-secoesasemapresençaefetivadeumaliderançaqueincorporeasaspirações populares – até que outro agrupamento organizado conquiste essasociedadedispersa.

“Seumpovonãomaispossuiaenergiaouvontadeparamanter-senaesferadopolítico,nãoéopolíticoquedesaparecedomundo.Desapareceapenasumpovofraco”(SCHMITT,2007c,p.53).

Oriscodesubversão,queSchmittvênaaberturaliberal,implicaaurgênciade uma reação política radical – medida essa que não segue mais a puralegalidade jurídica, mas sim a legitimidade que apela, de fato, para umaperspectiva realista, pois reage, sem hesitações, aos ares das ameaçasrevolucionárias: pela decisão sobre a exceção, determina-se quem são osinimigos da política, suprimindo-os. Uma reestruturação da ordem civil querestauraaordemresulta,portanto,deumcontextoconturbado.Maisdoqueisso,dizSchmittem Teologiapolítica :“aoseafastardanormajurídica”aautoridadedoEstado(determinadanasuadecisãopolítica)“provaque[oato]deproduzirleinãoprecisasebasearnalei”(SCHMITT,1985,p.13).

9.1.4.NormativismoversusmovimentosbruscosSeria inconcebível um estado de coisas juridicamente ordenado sem antes

conceber a própria ordem num sentido muito mais fundamental. Da parte daTeoriapuradodireito ,de1934,concebidaporHansKelsen,umdosprincipaisalvos da crítica de Schmitt em Teologia Política , a ordenação jurídicacorresponde à emancipação da ciência da lei, cujo fundamento último é o danorma. Contudo, do ponto de vista de uma “verdadeira teoria política”,pretendidaporSchmitt, não sepodeadmitirquea ciênciadodireito se encerrenelamesmanemqueosresultadosnormativoscientificamenteauferidostenhampesomaiordoqueasdecisõespolíticas.Aautoridadedomandosoberanoéquese afirma schmittianamente como um começo de tudo, emergindo da maiscompletadesordem, tornando-se a fonte legítimadodireito, apurapositividade(ouafirmaçãodoato)diantedocaosquedesmantelaoEstado.

Nesse sentido, não há como a lei equivaler, determinar ou regrar o atosoberano, já que a restauração da ordem depende de um caminho livre, nãoestorvado por prescrições legais que, no fundo, não possuem nenhum atributocapaz de determinar qual a ação a ser executada numa situação que, por nãopoder ser antecipada, escapa à regra da lei. Por definição, o soberano não estásujeito ao constrangimento da lei, já que é dele a posse do direito. Em outras

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palavras,paradecidirsobreasuspensãodaConstituição,osoberano“coexiste”comestaúltima.Noentanto,paraqueadecisãoseefetue,elesesitua“fora”do“sistemajurídiconormalmenteválido”.

Denadaadianta,dizSchmittem Teologiapolítica,insistirnaprecedênciadaideiadodireito,umavezqueestanãose efetuaporsimesma.Tampoucovaleapena lançarmãodos decretosemergenciais de umaConstituição liberal, comoera o caso na república de Weimar, visto que não é o construto jurídicoestabelecido em tempos normais que define adequadamente a soberania, ou,comodizSchmitt,que“faz justiçaaoseuconceito”.Emvezde tal remissão,oapeloà vidaconcreta(sujeitaadesacertoseconflitosnãoprevistospornenhumsistema legal) permite pôr de lado a autonomia e a sistematicidade teóricas dadoutrina normativa do direito, suplantando-as, numa situação verdadeiramentedeemergência,peladecisãodosoberano–este, sim, tratadoporSchmittcomoumaespéciederebentosingulareexcepcional,prontoparasublevar-sedarotinalegal, partindo para ações extraordinárias. E é nesse contexto que, numa dasformulaçõesmaisdesconcertantesdopensamentopolíticodoséculoXX,Schmittenuncia, na primeira sentença de Teologiapolítica : “o soberano é aquele quedecidesobreoestadodeexceção”(SCHMITT,1985,p.5).

Como dito, com a divisão conceitual entre ditadura soberana e comissária,Schmitt considera que a Constituição liberal pretende dar conta e cabo dasperturbaçõespormeiodeumajurisprudênciaatinenteaoordinário,queestipulamedidasemergenciaisesuspendealgunsdireitosbásicos.Atéaqui,trafega-senoâmbitoprevisívelpararetomaroquadronormal.

Com a entrada em cena da exceção, porém, o sentido fundamental eimperiosodaordemfazcomqueaditadurasoberanatomeformaplena,apartirdo que a existência doEstado assume primazia e a lei retrocede: “a ordemnosentidojurídicoaindaprevalece”,ponderaSchmitt,“mesmo[quetalordem]nãose dêmais no sentido ordinário”. Quanto ao sentido lógico da exceção – queescapaaonormativismo–,aarticulaçãodeSchmitt entreabaseexistencial eocaráterdaaçãoexecutivaéirretocável:

“Adecisãosobreaexceçãoéumadecisãonosentidoverdadeirodotermo.Postoqueumanormageral,conformerepresentadaporumaprescriçãojurídicaordinária,nãopodenuncadarcontadeumaexceçãototal, a decisão segundo a qual existe uma verdadeira exceção não pode, portanto, ser inteiramentederivadadessanorma”(SCHMITT,1985,p.6).

Ora,sobtal precondição,aexceçãosalientaosantagonismosimiscuídosnavidaordinária,istoé,trazàbailaoproblemapolíticoaserenfrentado,conferindoao soberano uma competência jurisdicional ilimitada, que interfere e suspende

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tanto a Constituição quanto os impasses presentes num quadro de amplaparticipação social. Se, por um lado, todos os membros do Estado parecemconcordar quanto à necessidade de um bem geral, diante das mazelas dasdisputas interstícias, por outro tal acordo já equivale, para Schmitt, à própriasituaçãohobbesianadaguerrade todoscontra todos (“ bellumomnium contraomnes”),emquetodos–“umaburocraciamilitarista,umcorpoautossustentávelcontroladopeloespíritocomercial,umaorganizaçãopartidária radical”– teriamuma opinião particular e diversa sobre o que constituiria a ordempública e asegurança. Nesse sentido, a decisão soberana, como solução da disputa, é aúnicaquesesustentapropriamentecomodecisão,demodoqueaaçãoexecutadaderivadadecisão,enãodaquiloquea normaautoriza.

ParaSchmitt,aregradaleinãosebaseia,emúltimainstância,numa normafundamental( Grundnorm),comopretendiaonormativismo.Alémdomais,seabasedasbasesqueasseguraanormafundamentalé hipotética,comoopróprioKelsenadmitia,entãoasdeterminaçõesjurídicasnãosãoautossuficientes,istoé,aobjetividadequeasvalidanãoderivadelasmesmasnempode,porconseguinte,sesatisfazercomuma Teoriapuradodireito .Naverdade,dizSchmitt,asleissesustentamporforçadaimplacávelrealidadedopolíticoque,comoconflito,ensejaa tomadade decisãodequem,no limite, terádedecidire intervir.Esteúltimo,portanto,alémdeconcentraropoderque,aoinstauraraordemgeral,tornaválidaa ordem jurídica que preside à lei num contexto estável, ordenado, em suma,normal,transcendeapróprialei.

ParaKelsen,emcontrapartida,mesmoconsiderandoqueaexecuçãopráticadaleiderivadadecisãojudicial,avalidadedanormasesustentasistematicamenteno seu corpo teórico puro. Tal decisão tem que ser vinculada ao estofohierárquico,cujofundamentoúltimorepousananormafundamental:adecisãodojuiz (como ato político de interpretação autêntica da norma) se enquadra noslimitesestabelecidospelaúltimaConstituiçãohistórica,que,porsuavez,instituiasnormasdedireitopositivo,marcandooiníciodaordemjurídicavigente.

A crítica de Schmitt enfatiza, pois, a precariedade da base jurídica quepretendesustentaressaformalidadeconstitucionalque,paraKelsen,validariaporsi só a sanção da lei. Na normalidade kelseniana, a lei faz (e preenche) todosentido;eoregramentodaordemnãoenfrenta(nemsequerconsidera)lacunas: opermitido constitui aquilo que a lei não proíbe (aquilo sobre o que ela não semanifesta).Mas,poroutrolado,comosustentaraseparaçãoeautonomiadateoriapuradodireitodiantedosfatosexcepcionais“nãocodificados”,dizSchmitt,pelaordemjurídicaexistente?Sealeiécriadatendoemvistaasuaexecução,asua

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validadesóseráatestadanasuaeficáciaprática(estabelecimentodaordem),nãonoseufundamentoteóricoúltimo.Eoqueépior:comolidarcomoimprevistoque,mesmoexistindopotencialmente,nãopodeserenunciadoenquantonãosemanifestar? Ora, a sanção da lei no decisionismo de Schmitt é pura esimplesmenteobra,nãodeumaderivaçãonormativa,masdadecisãodapessoainvestida de autoridade, isto é, cuja existência justifica a aplicação da lei.Entretanto, mais do que ingressar criticamente nos meandros teóricos donormativismo,aindagaçãoschmittianaacercade“quemdecidenumasituaçãodeconflito” trespassa tal sistema e, de certa maneira, reclama liberdade para adecisãodosoberano,umavezqueo interessedoEstadoestáemjogo.Abemdizer,aindaquea liberdadepossaserpensadacomodesimpedimentodanormapara a realização plena do ato político decisório, a ação executiva surge daindeterminaçãoabsoluta,daimprevisibilidadedocontextodecrise,contraoqualo soberano deverá se lançar segundo sua vontade, “que destrói a norma naexceção”.

Masdoquesetrata,afinal,quandosepensanaindeterminaçãoabsoluta?Aincursão de Schmitt na teologia dá subsídios primordiais ao decisionismo que(justamente por ser fruto do caos) lida com a anormalidade. Para tanto, éimprescindívelteremmenteosentidoealcancedessaforçaabrupta–espéciedecondenação epilética a que o corpo político está sujeito (a doença sagrada,inevitáveleimprevisível;a epilhyiadosgregos,segundoaqualoindivíduoemconvulsãoera,nosentidoliteraldotermo, pegodesurpresa,sofriaaintervençãodeumdeuse,emseguida,eraabandonado,semdeixarrastrosdesuapassagemdivina).

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RetratodeHansKelsen.OsterreichischeNationalbibliothek,Vienna.

Uma força restauradora (recolhida em situação de paz) que quandorevivescida dá sentido à norma, isto é, ao que estava completamente abalado,fragilizado e em crise. Se a convulsão social transtorna a norma, abalando ocarátermandatóriodesta,somenteaforçaexcepcionaldosoberano,insurgidadedentro do caos, pode partir da exceção e superá-la, isto é, pode confirmar aregra, restituindo o sentido da norma. Portanto, o vínculo entre a norma e aexistência concreta, na teoria decisionista de Schmitt, responde aos âmbitosnormativos de Kelsen que estavam, até então, estancados na teoria pura dodireito.Nessesentido,odireito,comonorma,encontrasuaafinidadeefetivacomarealidadeconcretadadecisão.Porcontadaexceção,talvínculoépreenchido,odireitoadquirevalidadecomoumtodo,jáqueanormadependeemúltimaanálisedadecisãodaautoridadedoEstado.

Donde a intervenção de um poder especial, diferente da regra da lei: “aexceção”, diz Schmitt, em contraposição ao normativismo universalizante deKelsen,“éoquenãopodesersubsumido”,razãopelaqualaconcretudedaslutasnãopodeser juridicamenteantecipada,sancionadanemrepreendida.Adecisão,na sua purezaabsoluta, suspende a ordem jurídica que padece dos efeitos dodesmancheocasionaldaordem.Asuspensãodaordem jurídica tornaestamaissignificativaapartirdomomentoemqueaexceçãooperacomopossibilidadede

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furtar-sedahomogeneidadedanormapararevelaraespecificidadedosoberanoeassegurar,peladecisãodeste,quea validadeimanentedodireitopodevoltaravigorarnumasituaçãonormal.

“Umafilosofiadavidaconcretanãodeveseprivardaexceçãoedocasoextremo;pelocontrário,deveseinteressarporissonograumaiselevado.Aexceçãopodesermaisimportantedoquearegra,nãoporcausa de uma ironia romântica voltada para o paradoxo, mas sim porque a seriedade de umconhecimento vai mais a fundo do que as generalizações claras inferidas a partir do que se repeteordinariamente.Aexceçãoémaisinteressantedoquearegra.Aregranãoprovanada;aexceçãoprovatudo: ela confirma não apenas a regra, mas também a existência desta, que deriva tão somente daexceção.Naexceção,opoderdavidarealrompeacrostadeummecanismoquesetornouentorpecidopelarepetição”(SCHMITT,1985,p.15).

9.2.MichelFoucault4ÉinstiganteaanálisesobreopodersoberanoelaboradaporMichelFoucault

(1976)noensaio“Direitodemorteepodersobreavida”,aofimde Avontadedesaber–primeirovolumede seuambicioso,monumental e inacabadoestudointitulado Ahistóriadasexualidade.Nesseensaio,umadasprincipais tesesdeFoucault – sustentada, por exemplo, em As palavras e as coisas, de 1966 –segundo a qual o sujeito não existe (o indivíduo moderno não passa de umainvençãodas ciênciashumanas),mostra-se emplenoexercício.Apesardisso, apossibilidadedesabermoscontraquemFoucaultsedirigeou,poroutrolado,emnomedoqueéfeitaadenúnciadopapeldominadordasestruturasdepoderestásimplesmente fora de questão. A cada tentativa de determinar um supostorepressor que busca dominar e um reprimido que quer se libertar, uma novareposiçãodopodersefazpresente,eosdoispolosdadisputaexibem-se,nofinaldoembate,aserviçodeumamesmaecontínuarelaçãodepoderque,pornãosesituar num centro específico, tudo envolve. Na condição de um estudofoucaultianoaprofundado(compontosdevistabastanteoscilantes),nãoparecesetratar, pois, de defender nem de acusar. Busca-se, antes, vasculhar diversoselementosque,demaneirainstável,dispersaeignoradarespondempelarealidadeproblemáticadeseutempoe,talvez,detodosostempos.

9.2.1.DométodooudasuaausênciaAntesde ingressarmosem“Direitodemorte epoder sobre avida”, vale a

pena considerar brevemente a importância marcante que a abordagemgenealógica tememFoucault.Paraentenderahistóriadasestruturasdepoder,

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Foucaultdesenvolveumaapreciaçãodiferente,utilizando-sedasdiversas idasevindas, sobressaltos e sobreposições, emergências e alternâncias, rupturas eincrementosdeformasdeorganizaçãodasociedade.Masquantoaosentidoquepreencheria ou constaria como resultado final dessa reunião de estilhaços dahistória,nãohámuitoquedizer:

“[...][as]forçasemjogonahistórianãoobedecemnemaumadestinação,nemaumamecânica,masaoacaso da luta. Elas não se manifestam como formas sucessivas de uma intenção primordial; comotambém não têm o aspecto de um resultado. Elas aparecem na área singular do acontecimento. Àdiferençadomundocristão,universalmentetecidopelaaranhadivina,contrariamenteaomundogregodivididoentreoreinodavontadeeodagrandebesteiracósmica,omundodahistória‘efetiva’conheceapenasumúnicoreino,ondenãohánemprovidência,nemcausafinal,massomente‘asmãosdeferrodanecessidadequesacodeocopodedadosdoacaso’”(FOUCAULT,1979,p.28-29).

Grossomodo, oque sepodecommuita cauteladelimitar comoométodogenealógico empregadoporFoucault é tributário deNietzsche.NumestudodeFoucault (1979), “Nietzsche, a genealogia e a história”, reunido na coletâneaintitulada Microfísicadopoder, entende-semelhor a necessidadedeo filósofocompreender a história dilapidando-a. À luz do pensamento de Nietzsche,Foucault questiona a possibilidade de se estabelecer um registro sucessivo defatoscronologicamenteordenados,istoé,dotadodeuma pretensacontinuidadede acontecimentos, viabilizando, assim, a despeito do caos manifesto, umaconsideração no mínimo linear e assentada numa necessidade estável daevolução histórica – como se a investigação usual do historiador estivessecomprometida de antemão com um sentido preestabelecido, em que todo olevantamentodedadosempreendidonãofossemaisdoqueumacomprovaçãodoquejásesabia.

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RetratodeMichelFoucault.Paris,1984.

Contrariamenteàabordagemtradicional,Foucaultentendequetantoo valorprimeiroeúltimo quanto sentidofinaldahistóriasãorompidospormeiodesseolhar nietzschiano que, ao evocar diversos pontos de vista, põe em xeque opróprio conceito de origem( Herkunft).No lugardeelementosempregadosnaleiturahistórica–diga-sedepassagem,defortecunhopositivista–,aabordagemgenealógica assume o risco de formular uma interpretação “sem referências” einconsequente, emque se assina, emvezdeum sentido coeso, as dispersões e“miríades” dos acontecimentos. Em outras palavras, os fatos narrados pelahistória não são meras decorrências do passado. Pelo contrário, a ousadia dogenealogistaestá justamenteemapontar,darvisibilidadeaoesparramadoesemmuita continuidade, para então selecionar, organizar, de maneira maissignificativa, as diferentes linhagens que impõem sua força, estabelecem seudomínioeseafirmamcomoum acontecimento.

Nomomentomesmo em que se vivencia o declínio de forças vigentes dopassado(crenças,ideáriosfilosoficamentesustentados,instituições...),atesta-seagenealogia de um acontecimento, vale dizer, uma contínua sobreposição depoderes em permanente embate. De modo que não é possível delimitar aexistênciade umahistória,jáqueoqueexistesãoapenasosacontecimentos.Emcontrapartida, as diversas acepções dos termos reexaminados por Foucault, e

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empregados por Nietzsche para criticar o dogma conceitual da origem e osentidodahistórianassuas intençõesprofundas,permitem-nosassumir,noquediz respeito à genealogia do poder, aquilo que Foucault chama de a históriaefetiva.De acordo com tal procedimento, a efetividadedessahistória salienta adeformaçãodeacidentescongregadosnum acontecimento,equesevisívelpormeiodeummétodoquedizmaissobreaquiloquenãopretendeestabelecerdoquesobreacertezaúltimaaquesebuscariachegar.Quefiqueclaro,porém,quenão há, de nossa parte, a intenção de afirmar que não existe um método emFoucaultouqueodesordenamentoemquestãoflertapuraesimplesmentecomaexaltação do irracional. Pelo contrário, a partir de alguns elementosgenealogicamente trazidos à baila, torna-se patente a presença de um estudorigorosocujoprocedimentoé racionalmente interpretado.Todavia,nãoobstanteessa presença, consideramos que nem o estabelecimento de ummétodo nem oresultadoporeleauferidosãodefinitivosemFoucault–maisdoqueestabeleceromodopeloqual se deve lerFoucault, lançamospara nósmesmos a questãodecomolerFoucault.

9.2.2.EsboçodeumagenealogiadopoderEm“Direitodemorteepodersobreavida”afiguradosoberanodestaca-se

pelo aspecto específico que esse novo ser jurídico adquire na assim chamadaIdadeClássica (queparaFoucaultvaido iníciodo séculoXVIIatémeadosdoXVIII).Característicodesseperíodo,osoberanoestáinscritonocontextodeumtipohistóricodesociedade,noqual,regrageral,oexercíciodopoder,efetivadopelos mecanismos de controle da vida dos súditos, apropria-se das riquezas,extorquindo bens, produtos e serviços. O contexto social no qual essa novafórmula jurídica adquire primazia, estabelecendo sua autoridade política, exibe,no direito de posse, aquilo que permite ao soberano se apoderar de todas ascoisas,articulandoeexercendo,pormeiodo poderdematarededeixarviver,seudomíniosobreasociedade.

Surge aí um direito inovador e centralizado, a serviço da legitimação dopoder do soberano.Mas quando se pensa tal poder como composto de forçasreunidaseintegradasàsuaautoridade,eleexibepropriedadesbastantediferentese, a bem dizer,maiores do que os elementos simples e constitutivos do corpopolítico: o corpomoral,ouoEstadoqueorepresenta,nãoexpressaoconjuntosocialnemtemamesmamoralidadedossúditosqueoconstituem.

Aomesmotempo,sepensarmosnaconhecida“guerradetodoscontratodos”

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e no “estado de natureza” tematizados por Hobbes, constatamos que, no atoinaugural da instauração racional do Estado civil, o caráter voluntarioso dosoberano, permitindo-lhe eliminar ameaças políticas e proteger seus súditos,reflete e remonta ao passado da condição natural. Nessa situação, o indivíduosobrevive por conta própria, sem o auxílio de nenhum poder político, e suavontadedeviver é a únicagarantia dedefesa contra os inimigos empotencial,permitindo-lheseantecipareeliminartudoaquiloquelheparecerperigoso.Ora,noiníciodaIdadeClássica,observaFoucault,opodersoberanoaindaétributáriodo patriapotestas do direito romano, no sentido de que a autoridade políticadeveprotegeroEstado: talautoridadecarregaconsigoresquíciosdeumregimedepoderque,pelasuaconcentraçãodeforça,provêavidadeseussubordinadosdependentesepode,sobcertascondições,delestirá-la.

De qualquer modo, já se inicia aí um processo de relativização do podersoberano.Oobjetoemjogo(emtornodoqualasociedadenegociapoliticamenteseusbenefícioseponderasuasperdaseganhosprivados)éo direitoàvida.Pelaprimeiraveznahistóriapolítica,oficializa-seainstituição–pormaisinexpressivaquepareça–deumlimitejurídicoparaatuaçãodosoberano.Mas,nãoobstanteesteja atenuado, o direito do soberano preserva e revela sua violência quandosua existência está ameaçada. Por um lado, não é mais absoluto o direito dosoberanosobreavidadossúditos(estespodemserecusaraobedecê-loquandoasubmissão implica a morte); por outro lado, a autoridade do governante lhepermite,comonumabarganha,regularavidaemsociedade.

Ficaestabelecidoumnovocritérioparaaobediênciacivil.Parapreservarobomfuncionamentodopoderpolítico,sósetêmgarantiassuficientes(oupoder)paraprotegerumpovonamedidaemquesecontacomodireitodeeliminartudoaquilo que representa um risco para o Estado. Entretanto, Foucault depreendenesseacordoentregovernados(que,parasobreviver,entendemqueomelhorésesubmeteraogovernante)umaprofunda dissimetrianopodersoberanoexercidopor antecipação. No interior de uma ordem jurídica que busca abrandar asrelações entre Estado e sociedade civil, busca-se ainda assim legitimar apossibilidadedeseexigiraprontidãoparaamorte(emcasodeguerra)eocastigoexemplar (a pena de morte) para os súditos que se rebelarem contra a ordempública.Dessemodo,mesmoquenãosetratemaisdeumdireito incondicionalsobre a vida do indivíduo, o gládio (a espada de dois gumes) afirma-se comosímbolo do poder sobre a vida. Mais do que uma ação direta condenandosúditos rebeldes àmorte, salienta-se já nessemomento – e commuita sutilezapolítica–queoqueestáemquestãoé,comodizFoucault,um“direitoindiretode

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vida e demorte”, ou seja, um ordenamento da sociedade à luz da permanenteimagemameaçadoraàdisposiçãodosoberano.Édessadissimetria,portanto,queseconsegueterinfluênciaconstantesobreocomportamentodosquevivemsobanovaregrajurídica.

Diferentemente da atuação direta que eliminava possíveis ameaças, ocontroleindiretoassumeaformadeumaumentoprogressivodeordenamentodavidaemgeral.Oqueeravistocomolimitepolítico(delimitandoatéquepontooindivíduoestádispostoasesubmeteraopodersoberano)sofreumdeslocamento,incorporandoodireito demorte – que ameaçavadiretamente seus súditos – nagarantiadavida,quetambémpodeserlidacomoaregulaçãoeanormatizaçãodavida.De fato, na letra da lei, lê-se direito à vida, comoumagrande conquistapolíticaesocial,enadasedizsobretalcontrole–emboraeste,porserindireto,ajamaisdiretamente.

Osemblanteaterradordamorte–outroraaserviçodopodersoberanoedamanutençãodainstituiçãopolítica–transfigura-senaexigênciajurídicadavida,reivindicada pela sociedade, que passa a estabelecer assim a razão de ser e afunção que o poder deu a si mesmo, qual seja gerar a vida. Comocontrapartida histórica, porém, nunca houve guerras tão sangrentas, nunca aproteçãodeseusmembros,sobpretextodamanutençãodavida,levouatamanhoholocausto social.A guerra é feita, sentencia o genealogista, nãomais para adefesa do soberano, mas “em nome da existência de todos”, e “populaçõesinteiras são levadas a sematar reciprocamente emnomeda suanecessidadedeviver”(FOUCAULT,1976,p.177,178,179,180).

9.2.3.AvançossociaiseironiasdahistóriaMascomoentender a relaçãocomplementar, enraizadanopoder soberano,

classicamente estabelecida entre “ fazer morrer e deixar viver” ( faire mourrir/ laisservivre),equese transmutaapartirda IdadeModerna(doséculoXVIIIatéhojeemdia)no“ fazer viver”eno“lançarnamorte” ( faire vivre / rejeterdans la mort)? Em outras palavras, quais as razões para que o alcance anteslimitadodopoderpolíticotenharesultadonamorteemproporçõesmassacrantes,porsinal,muitomaioresdoquequandoosoberanopuniaseussúditos rebeldescom a morte, ou quando, na guerra, contava-se com a disposição de seuscidadãosparaamorteemnomedasegurançadoEstado?

Ascores fortescomqueFoucault realçaoquadrodosefeitosdadefesadavida–àprimeiravista,comoumaconquistapolíticadepeso–evidentementenão

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encerram a questão.Demaneiramuito íntima, é possível considerar que, entremortoseferidos,nãoseriaconcebívelumpoderdemortedessasproporçõesnãofosse a reunião de esforços cada vezmais aprimorados em defesa da vida.Aafirmaçãodavida,portanto,acarretaerecrudesceodireitodemorte.Desenha-seumparadoxo:oprocessojurídicodelegitimaçãodavida,atravessadopelosmaisdiferentestiposdecontrolesocial,atingeoseuápicenamodernidadeatual;dentreas conquistas de proteção da vida, o poder de morte mais inequívoco éidentificadonaconstruçãodabombaatômicaque,agindoemdefesadeumpovo,culminanapossibilidadedaextinçãototaldahumanidade.

Senadissimetria jurídica anterior (dodireito soberano) limitava-seopoderpolítico,namedidaemqueseautorizandoapenasodireitodecombater localeexternamente as ameaças, o resultado desse podermaior doEstado, entretanto,transbordaalegitimidadedalei,abrangendo,muitoalémdoraiodeaçãopolíticaem torno da proteção estatal dos indivíduos, a própria existênciabiológica. Odomíniopolíticosobreavida–queaospoucosvaiseconfundindocomopoderdeproduziravida–introjeta-seemdiversossegmentossociais.Ofracionamentoem grupos, classes e raças repercute-se namultiplicação demodos e práticassociais afastados da ação política. Nesse sentido, o próprio indivíduo tambémpassa a tomar parte na delimitação das fronteiras desse poder – donde o fato,comocontrapartidadaproduçãodavida,deasciênciashumanassedefrontaremno século XIX com a expansão do fenômeno social do suicídio.Amatriz dopoder, antes concentradano soberano,dispersa-se emnovas formasde atuaçãosobreavida.

9.2.4.A“eradobiopoder”Essedeslocamentodopapeldosoberanolevou,damaneiramaisabrangente

possível, ao controle da vida como um todo. O foco político centrado naadministraçãodavida(queaomesmotempo recobreaintimidaçãoeobediênciapolíticas pela morte) permite a Foucault assinalar dois polos entrecruzados, apartir dos quais o exercício do poder adquire uma nova feição, como uma“grandetecnologiadedupla-face”:

•opolo“anatômico-políticodocorpohumano”,voltadoparaa“performance”doindivíduo;e•oda“biopolíticadapopulação”,atinenteao“processodavida”daespécie.

Oprimeiroencontra-senasformasmecânicasde“adestramento,aumentodeaptidões, extorsão de forças, de crescente paralelo de utilidade e domesticação,integração aos sistemas de controle eficazes e econômicos”, em suma, na

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disciplina incessante do corpo humano. Já o segundo atua, de modocomplementar,expansivamente,orientando-sesegundoestimativasdemográficasque intervêm e regulam a população: “a proliferação, os nascimentos e amortalidade,oníveldesaúde,alongevidade...”(FOUCAULT,1976,p.183).

Aolongodamodernidade,ainvenção,oaperfeiçoamentoeoagenciamentodessas técnicas – seja na disciplina do corpo promovida, por exemplo, pelasforçasarmadas,nasescolas(emesmonafamíliaenamedicina),sejaaindanosíndicesdecrescimentopopulacionalatreladoaocálculoderecursos–constituemelementosdecisivosparaaquiloqueFoucaultinterpretacomoa eradobiopoder,querepresentariaafeiçãogeraldassociedadesmodernasnaesteiradassequelasdas duas guerras mundiais, e que ainda podem ser atestadas hoje em dia naeconomiaglobaldeconsumo.Porsinal,afiguramaisacabadadoincrementodasformasdedominaçãoéoregimecapitalistadeprodução;nele,empreende-secomperfeição a gestão distributiva das forças do corpo vivo e a organização dasociedade por meio de técnicas políticas progressivamente ajustadas àsexigências de mercado. O resultado de tal ajuste é o aumento do crescimentopopulacionalque,porsuavez,respondeàdemandadocrescimentoeconômico.Por um lado, o aumento da produção de alimentos, como efeito doaperfeiçoamento de técnicas agrícolas, parece ter sanado o problema da fome.Mas,poroutro,aurgênciadademandaprodutivapassaadominarodecorrentecrescimentodemográfico:

“Ohomemocidental aprendepoucoapoucooque é serumaespécievivanummundovivo, ter umcorpo,ascondiçõesdeexistência,asprobabilidadesdevida,umasaúdeindividualecoletiva,asforçasquesepodemmodificareumespaçoondesepodereparti-lasdemodootimizado”(FOUCAULT,1976,p.187).

Todaumagamadecriaçõeshumanasaserviçodamelhoriadavidacontém,noseupróprioatocriador,adiretrizempreendedoradas técnicasdepoder. Eaideia de um poder controlador se torna mais predominante por conta doempreendedorismo politicamente protegido pelos aparelhos de Estado eimplicitamente viabilizado conforme a necessidade autônoma dodesenvolvimento econômico. Com isso, a ameaça da morte mostra-se de fatodiminuída, pois o saber dedicado amelhorias conhece, determina e domina ociclo natural da vida, transformando-a num procedimento controlável. O queantesdaIdadeClássicaaindaeraaceitocomoum inacessívelmistériodavida–fruto do acaso ou da fatalidade – passa a ser cientificamente dissecado,mecanicamenteregulado,refletindo,dessemodo, obiológiconopolítico:

“Ohomem,durantemilênios,permaneceusendoaquiloqueeleeraparaAristóteles:umanimalvivoe

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capazdeumaexistênciapolítica;ohomemmodernoéumanimalnapolíticacujavidadeservivoestáemquestão”(FOUCAULT,1976,p.188).

O incremento das técnicas de poder (esse estar em questão do indivíduomoderno,que redefine constantemente a sua condição) incidenumaduplicaçãodo conhecimento de si: de um lado, ele é considerado segundo seu estatutoexterior de ser vivo nos moldes de uma história biológica; de outro, a suahistoricidade humana é a todo tempo questionada. Trata-se de um homemproblematicamenteduplo.Novasdescobertas sobreavidavêmapúblico sobaforma de lições, de diretrizes empreendedoras, determinando, pois, odirecionamentodoaprendizado.Masparaquesepossa entenderalição,conta-secomaadesãoda vontadedesaberdoindivíduo,comofatodeeleaceitar,nojogoduplodesuaautodeterminaçãoedeserdeterminado,queexisteumasupostaverdadeasedescobrirpormeiodessasformascontroladas.

RetratodeFriedrichNietzsche,1900.

MasoqueFoucaultexibeéquetalé averdadequevigora atéentão,istoé,tal é o conjunto de referências e dados que sustenta, no interior de umquadrohistórico,asnovasexpansõesdosaberqueultrapassamafronteiradomeramente

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jurídico (da proteção inicialmente conferida ao sujeito de direito), abrangendoqualquer fenômeno relacionadoaocorpo.Nãoà toa, numaentrevista intitulada“Verdade e poder” – também presente em Microfísica do poder – Foucaultachincalhademodomordazasvestesenaltecidasdoquesetemcomoverdade:

“[...]averdadenãoexisteforadopoderousempoder.[...]Averdadeédestemundo;elaéproduzidanelegraçasamúltiplascoerçõeseneleproduzefeitosregulamentadosdepoder.Cadasociedadetemseuregime de verdade, sua ‘política geral’ de verdade: isto é, os tipos de discurso que ela acolhe e fazfuncionar como verdadeiros; os mecanismos e as instâncias que permitem distinguir os enunciadosverdadeirosdosfalsos,amaneiracomosesancionaunseoutros;as técnicaseosprocedimentosquesão valorizados para a obtenção da verdade; o estatuto daqueles que têm o encargo de dizer o quefuncionacomoverdadeiro”(FOUCAULT,1979,p.12).

Ora, seopoder soberanosofreumabrandamento jurídico, tornando-seporcontrato protetor e gestor da vida em troca da obediência de seus súditos, aomesmotempo,ocaráterproibitivodaleideve,emcontrapartida,controlarmuitomais as ações dos indivíduos. Mesmo que relativize e condicione o podersoberano, o papel de advertência e de correção conferido à lei faz esta vigorarcomoorecursoúltimoque,preservandootomameaçadordagravidadedamorte,constrangeavida.A iminênciadessaameaça,porém,nãopodeserdiretamenteexpressanosseusatosmaisviolentos,comoumaespéciede marketingpolítico,sob pena de perder eficácia e de ser rejeitada;mas deve estar, antes, contida eespalhadaemtodasasformasde apreciaçãoe hierarquizaçãodoindivíduoedasociedade.

ParaFoucault,antesmesmodoestabelecimentojurídico,a norma,queestáfora da esfera institucionalizada, determina o conteúdo da lei. Nos seusinfindáveis embates, a norma afirma a vida e, por outro lado, sobrepõe-se aodireito à vida. É que o vigor da norma deriva da contínua distribuição deutilidadese valoresatinentesàvida.Operfeitofuncionamentodeumagrandeemúltiplamáquinasocialacabada(emviasdeorganizaçãototal)constitui-seumasociedade normalizada que, a fim de consolidar o poder de proteção da vida,delimita a função de cada uma das instâncias internas à sociedade, sejam elasjurídicas,administrativasoumesmomédicas.

NãosevênessanarrativagenealógicadeFoucaultareconstituiçãoedificantede uma sociedade livre, inscrita num processo de busca de realizaçõesemancipatórias coletivas ou individuais. Junto às realizações – até certo pontoimportantes–desmascara-seotraçodeformadoda biopolítica,doempregofirmeeabertodeumvastoconhecimentosobreocorpo,agindonosentidodocálculoda vida humana. Uma vez confirmada a eficácia do cálculo, este se torna aprópriacondensaçãodopoder–quedelefazemosparteeque,portanto,domina

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demodo irresistível tudoaquiloque lhe favorecee atémesmoque tenta se lheopor. A bem dizer, a vida parece seguir, sem escapatórias, as regras de ummanual de instrução, ilustrado com os desenhos de encaixe de plugues erespectivas tomadas: inventado, revisado e reformulado pela vida e para elamesma–conformeolançamentoeaspromoçõesdenovasparafernálias.

Nasuaacepçãopolítica,asidasevindasgenealógicastraçadasporFoucaultdescrevem que o ideal da vida – expresso, por exemplo, na reivindicação denecessidadesfundamentais,naalegadaedesenfreadarealizaçãoda plenitudedopossível (mesmo como mera utopia) – representa expansivamente um golpebaixoefataldesferidocontraaestruturadapolíticasoberana.

9.2.5.Poder,dispositivodesexualidadee“sexo”Mas,afinal,oqueesseselementosconstitutivosdopoder têmavercomo

projetofoucaultianoda Históriadasexualidade?Grossomodo,nacondiçãodeumestudosobreaformadisciplinarpormeio

da qual a noção de sexo foi sendo diferentemente empregada ao longo dostempos, a História da sexualidade propunha-se a vasculhar uma espécie demutualismo (entre a opressão pelo poder e a expansão do poder) identificadojustamenteno sexo,nãopropriamente comoalgoefetivo,mas comoa questãodasexualidade.Énessevastotratamento,ou,comodizFoucault,no“regimedepoder-saber-prazer”, que estão envolvidas as instâncias mais meticulosas esingularesdapsicofisiologiahumana(noadestramentodocorpo)easregrasmaisgeraisdecontrolepopulacional(aregulaçãodocrescimentodepopulações);nelasé que se reconhece a gama infindável de medidas de incitação crescente( técnicasdisciplinarese procedimentosreguladores),quepoucoapoucoforamsubordinandoavidado corpoeda espécieaodiscursodasexualidade.

Como duplo, a ideiadehomempermitepensá-lo como responsávelpor simesmo.Sejapelasideologiasmoralizantesederesponsabilizaçãodoindivíduo(asexualizaçãocomprometedoradecrianças,ahisteriadasmulheres,aintervençãopsiquiátrica apontando o caráter pervertido e de desvio comportamental), sejapelas intervenções econômicas que mobilizam ou freiam o crescimentopopulacional, a questão da sexualidade encampa um discurso normalizantedirigidoàresponsabilidadedafamíliaeàcondutasocialcomoumtodo.AqueleatopolíticoinicialdaIdadeClássicaparaproteger-sedamorte,delegadoàsmãosautoritáriasdopodersoberano,transmuta-se,afinal,numimpulsoproliferadordavida.E,comovimosnacríticadeFoucaultaodiscursosobreaverdade,paraque

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tal controle seja eficiente, conta-se com a adesão social, não mais pelasubordinação política à autoridade central,mas pela disciplina do corpo e pelocontroledapopulação.

Estrategicamente falando, entra em jogo a política do sexo ou aorganizaçãodezonaserógenasdocorposocial:

“[...]osexotorna-seumalvocentralparaumpoderqueseorganizaemtornodagestãodavidaemvezdaameaçadamorte”(FOUCAULT,1976,p.193).

No lugar previsível de um processo rigidamente restritivo que reprime eergue tabus, o foco do poder volta-se, dispersivamente, para toda umamiríadediscursiva acerca da sexualidade: “saúde, progênie, raça, futuro da espécie,vitalidadedocorposocial–opoderfala dasexualidadeeàsexualidade;estanãoémarcaousímbolo,elaéobjetoealvo”(FOUCAULT,1976,p.194).

ParaFoucault, a dinâmicadopodermobilizadapela sexualidadeoperaummovimentoduplo:porumlado,asuaexpansãoincitaocorposocial(ouexcitaoórgão sexual) a renovar continuamente o seu ato; por outro, a necessidade dofuncionamento correto da máquina dominadora reforça o ordenamento, isto é,nãopermitequeaexpansãodavida,pormaisdesmesuradaquepareça,fujaaseucontrole. Nos meandros de um discurso tradicional, moralmente dirigido àrepressãosexual,équeFoucaultdesenlaçaa proliferaçãodavidadodiscursodasexualidade.

Comoumdos casosmais exemplares dessedesenvolvimento interstício dodispositivo da sexualidade, o fenômeno político e biologizante do racismoadquire legitimidade.Apoiado na ideia de pureza da raça, o racismo alavancatodaumarededeapreciaçõeseintervençõesnocorpo,bemcomoevidentementede controle social, que, a exemplo da eugenia do nazismo, busca proteger apretendidaautenticidadeesuperioridadedeumpovoque,paraseutriunfo,nãosedevedeixarcorromperedegenerar.Nofundo,ocaráterrepressordaleicontinuasendo importante. Pois o direito demorte do soberano da IdadeClássica estámodernamente presente tanto no poder disciplinador sobre o corpo quanto nobiopoder regulador da sociedade.Aquilo que, na ordem política juridicamentealicerçada, autorizavaocastigopelamorte, está introjetado,porassimdizer,naconsciência moral do indivíduo: a restrição legal imposta pelo soberano, numsentido negativo, se repõe agora no poder disciplinador e na sexualidadeproduzida,nãomaiscomorepressão,mascomonormapositiva.5

Há,portanto,uma ideiadosexoque,segundoFoucault,sedesenvolveuemdiferentes dispositivos de sexualidade.A complexidadedessedesenvolvimento

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setornaaindamaioràmedidaqueaespeculaçãoteórica,atestadaprincipalmentenoséculoXIX,delimitaaexistênciadeumainstânciaalémdocorpo:umdomíniorecôndito, comportando leispróprias, queobedece a uma causalidade secretana infânciaesemanifestademodomaisevidentena faseadulta.Segundoessaleitura, o sexo seria desde o início independente da anatomia e da constituiçãofisiológicadocorpohumano.

Ofenômenodahisteriadasmulheresilustrabemtalproblema:umavezque,paraaciência,osexoécausadahisteria,eleétratadocomo princípioafirmativodo desejo e como falta causadora dele. Em outras palavras, o sexo e todaexcitação decorrente é um atributomasculino, embora não se faça presente namulher,anãoserpelafunçãoreprodutora.Nessedeterminismo,aprecocidadedodesejo sexual na criança – assinalada apenas de maneira latente – acarretaria,quando em condições fisiológicas suficientes de realização, a esterilidade, aimpotência, a frigidez...; omesmo acontecendo com a masturbação e comocoitointerrompido,emqueseconstatariaapresençaocultadessaleiinternadosexoquenãocumpririaseupropósitode reprodução.Diantedessessintomas,aciênciadaépocaconsegueestabeleceranormalizaçãoouoajusteentreodesejosexual,afunçãobiológicadesteeoaparelhoanatômico-fisiológicodocorpo.Aomesmotempo,comoinvestigaçãoteórica,anoçãodesexosatisfaznãoodesejohumano,mas simo âmbito cognitivo das concepções científicas emvigor, queentendiamasexualidadepelasuafinalidadereprodutiva.

Permanecendo incólume o aspecto instintivo do sexo (o seu lado oculto),consegue-se alavancar o discurso da psiquiatrização das perversões pautadopela inadequação biológica. Com isso, novamente se elabora uma formacientificamente institucionalizada para dar conta da transgressão socialidentificada nos desvios sexuais, cristalizados, segundo Foucault, sobretudo nofenômeno do fetichismo – cujo sentido está em estreita concordância com odesenvolvimentodasanálisescientíficas,compressupostosestabelecidossegundoosmoldes das análises da sexualidade (segundo uma lei real que determina afunção reprodutiva do sexo), embora a todo instante se depare com odescompasso de uma lei própria e insondável do sexo (o prazer), que tentacontornarasfunçõescorporais.

Compropósitosnormalizantes,aconcepçãodeumabasesexualreal,dotadade uma função anatômica devida e de uma finalidade própria, está, aomesmotempo, atrelada ao âmbito do oculto, do instinto, da falta e do prazer. Paraautenticar uma unidade artificial de um princípio causal para todos essescomponentes,sanciona-seocontrolesobreoinstintoapartirdeuma teoriageral

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dosexo.Ouseja,emboraessateoriaconsiderearecônditaautonomiadodomíniolibidinoso do sexo, a linhadecontato entreosdispositivosda sexualidadeeoconhecimento biológico permite considerar tal domínio à luz de princípios denormalidade – ao que talvez pudéssemos hoje em dia relacionar o estranho, ecadavezmaispredominante,discursoda altaoubaixaqualidadedevidasexual.

9.2.6.InversãodosdesviosValeapenadepreenderdessasconsiderações foucaultianasessaespéciede

trampolimconceitualqueosexo,comoum acontecimento,acarretanamaneiradesepensaravidamoderna.Evice-versa,istoé:amaneiramodernadepensartecnicamenteavidapermitiuosaltomortaldanoçãodesexo.Contudo,ambasasvias são por demais enviesadas se nos lembrarmos de que elas sucumbem àinterpretação ortodoxa mantida presa à história, procurando origens eperguntandopelosentido.

De todomodo, tal acontecimento não se expressa apenas conceitualmente,pois toda a ramificação instrumental e material alcança uma concretude nuncaantesimaginada.Écomose“ osexo”–expressãoqueFoucault fazquestãodepôr entre aspas – passasse a responder por desdobramentosmuito abrangentes.Tal mapeamento realça a campanha que o demarca como alvo diretamenterelacionadoaoconhecimentodavida.Masseriamuitaimprudênciaentenderessacampanhacomoumatomadadedecisãoquemudadealvoconformeosideáriosconjunturais.Omáximoquesepodedizeréquenesseacontecimentoespecíficodá-se azo ao sexo como algoquesedevedominar,masqueaomesmo temporesistedealgumamaneiraaopoder,oqueemcontrapartidaconfereumasupostaverdadeaosexo:algo!algo?algo!?algo...Algoquesemanifestacomopodereque se resguarda como segredo da verdade íntima do ser humano; algo queconfere à sua teoria umespaço ideal de especulação, para o qual se voltamosdispositivosdasexualidade.

Essa virada, portanto, não pode ser vista de maneira gratuita, comomeroesbarrão ou casualidade do poder que teria encontrado no sexo um meio degarantir sua expansão. Não há como ignorar o peso que, em termos gerais, acensura exerceu sobre a noção de sexo ao longo dos séculos, tratado comoestigmae,emcasosmaisexacerbados,como loucura.Oproblema,porém,estána intensidade da contrapartida com que o sexo passou a ser alardeado,assumindo os ares de uma resposta up to date (das mais baratas às maiselaboradas) para todas as questões relacionadas à subjetividade e realização

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pessoaldoindivíduo.Dopontodevistaestratégicodosqueseapropriamcognitivamentedosexo

como instância libertária, encarando-o como desejo reprimido, como algoindubitavelmenteproblemático e queprecisa ser solucionado, como sintomadeuma irregularidade que precisa ser regulada, com vistas, em última análise, acontestar o poder de dominação das estruturas repressoras, enfim, do ponto devista dosque–na expressãodeFoucault – se prestama “alugar suas orelhas”paraqueseusconfessoresencontremjustificadastantoavontadedefalardesexoquantoaexpectativaquenutrememrelaçãoàquiloquetêmaconfidenciar,nãohá como ignorar a reposição dos dispositivos de sexualidade, que tentam darsentidoaessassupostasenergiasdispersas– talvez inúteisparaasociedade–eencaminhá-las,apartirdeumsentido,aumfuncionamentodevidamenteajustado.NaIdadeClássica,observaFoucault,o sodomitaéapenasum infrator,aopassoque, na Idade Moderna, umdoente. Eis uma passagem bastante ilustrativa dosujeitodedireito(balizadopelopodersoberano)paraosujeitomoraldisciplinadoebiopolitizado,partindodaordemjurídicaechegandoao serdoindivíduo.

Damesmamaneiraque,antesdaIdadeClássica,aconcepçãoelevadaquesetinhado amorserviaparacompensarosilênciodamorte,ahipótesedeFoucaultsobre a expansãodopoder equilibra a noçãodo sexo entre a expansãodo seudesejo e a produção da vida, “atravessado” a um só tempo “pelo instinto demorte” (FOUCAULT, 1976, p. 206). Dado o fascínio que os dispositivos dasexualidadecriamnoelementoimaginárioereveladordosexo,torna-sepossível,parafraseandoFoucault,ouvirosexomurmuraramorte.

Aonoscondicionarmoscredulamenteaconhecê-lonosseusrecônditosmaisíntimos, ao acreditarmos que em função do seu exercício nos livramos dosinstrumentosdepoder,emsuma,aoacedermosao sexo,passamosanosentregarmaisafundoaosdispositivosdesenvolvidosaolongodeumahistóriaque,abemdizer,criaaficção,afixaçãoe,sobretudo,odesejodosexo.Nessesentido,afaltaconstitutiva(aquiloquejustificaanecessidadedepreenchimentoequeexacerbaadinâmica irrefreável desse desejo) denuncia a idealização do discurso dasexualidade, atestando a própria reposição do poder. Mas o discurso dasexualidadenãoé,paraFoucault,meraartimanha ilusóriaepreconcebidapelosdetentores depoder.Pois isso redundaria numa ilusão aindamaior do sexo, nacondição de objeto especulativo da teoria geral do sexo. Dadas as reposiçõessociaisereformulaçõesteóricas,tantoodiscursosobreosexoquantooseuobjetoespecíficoadquirema concretudemais inquestionávelque sepode imaginar.Adependência histórica da sexualidade exibe tal especulação, mostrando a

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ramificaçãodediversasformasdeconhecimentosexual,comoumdadoobjetivo,que, para seu funcionamento, necessita da noção de sexo.A relação é, pois,inescapavelmentemútua.

Éprecisonotarotom,decertomodo,gozadorcomqueFoucaultconcluiseuensaio,“Direitodemorteepodersobreavida”.Aofazerumaprojeçãoacercadoqueaspessoaspodemvirnofuturoapensarsobreocultodosexo(quetãobemdefine a atualidade), nosso autor parece ridicularizar todo esse estardalhaçocausado pela eloquente liberdade sexual do séculoXX, cheia de convicções ediretrizes contrárias à repressão de uma moralmilenar – como se tivéssemosencontradoapartirdessaaberturaarespostapara todososproblemas,comose,politicamente, tivéssemos desbravado, afinal, um caminho certeiro para aliberdade.

Em vez de um passado cristão repleto de ditames puristas, abnegando econduzindoaumaconcepçãoavessaaocorpo;nolugardeumdesenvolvimentohistórico, perpassado por uma moral castradora que, de maneira abrupta, teriasidointerrompidaedissolvidanaemancipaçãohumanapormeiodosexo(enumacerta culpa por desconhecê-lo), Foucault destrincha a ossada de um projeto dedominação( deestratégiasdesaberepoder),quesevolta justamentepara darvozaosexo,paratornardesejáveloseuconhecimento,paranos fazeracreditarna soberania de sua lei, como instrumento de libertação, que, em suma, nossubmeteà monarquiadosexo.

BibliografiaFOUCAULT, M. A hermenêutica do sujeito. São Paulo:Martins Fontes,

2004._______. Aspalavraseascoisas:umaarqueologiadasciênciashumanas.

SãoPaulo:MartinsFontes,1999._______. Históriadasexualidade.RiodeJaneiro:Graal,1984-1985.3.v._______. Lavolontédesavoir.Paris:Gallimard,1976._______. Microfísica do poder. Tradução e organização de Roberto

Machado. Rio de Janeiro: Graal, 1979. (Biblioteca de Filosofia e História dasCiências.)

KELSEN,H. Teoriapuradodireito.SãoPaulo,MartinsFontes,2006.KERVÉGANJ.F. Hegel,CarlSchmitt–opolíticoentreaespeculaçãoea

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positividade.Barueri:Manole,2005.MACEDOJR.,R.P. CarlSchmitteafundamentaçãododireito.2.ed.São

Paulo:Saraiva,2011.SCHMITT, C. Political theology: four chapters of the concept of

sovereignty. Introduction and translation byGeorge Schwab. Cambridge:MITPress,1985.

_______. Teologiapolítica.BeloHorizonte:DelRey,2006.v.2._______. Legalidade e legitimidade. BeloHorizonte: Del Rey, 2007a. v.

11._______. OguardiãodaConstituição.BeloHorizonte:DelRey,2007b.v.

11._______. The concept of the political. Introduction and translation by

GeorgeSchwab.Chicago:TheUniversityofChicagoPress,2007c._______. Oconceitodopolítico–TeoriadoPartisan.BeloHorizonte:Del

Rey,2008.SIMÕES,B.C. Arecusateimosa:ensaiossobreopensamentoconservador.

2010.209 f.Tese (DoutoradoemFilosofia)–FaculdadedeFilosofia,Letras eCiênciasHumanas,UniversidadedeSãoPaulo,SãoPaulo,2010.

Créditosdasimagens–UllsteinBild/OtherImages–OsterreichischeNationalbibliothek–RogerViollet/TopFoto/GrupoKeystone–Bettmann/Corbis(DC)/Latinstock

1.Meus agradecimentos a ThiagoMagalhães da Silva, cujos comentários “kelsenianos” e críticas foramfundamentaisparaestetexto.

2.DesdobremosumpoucomaisasecularizaçãopolíticaapontadaporSchmitt.Segundooseuensaio Aeradas neutralizações e despolitizações, 1929 – posteriormente adicionado às reedições de O conceito dopolítico(SCHMITT,2008)–,talprocessohistórico,emboranãosejaestritamentelinear,orienta-sesegundoo“domíniocentral”quedeterminaarazãopelaqualos“agrupamentoshumanos”lutam:daarenadeembatesda “teologia”, o centro decisório é transferido para a “metafísica” (séculosXVI eXVII), desta para a da“moralhumanitária” (séculoXVIII), transfigurando-se,por fim,na“economia”(séculoXIX)ena“eradatecnologia” (séculoXX).O resultado final dessas transições culmina na elaboração de uma ampla esfera“neutra”,reflexodaemergênciadasciênciasnaturaissurgidasnoiníciodamodernidade.

3.Conforme esclarece o estudioso americanoGeorgeSchwab, na “Introdução” à sua tradução inglesa deTeologiaPolítica,a letradoartigo48autorizava,em casodeemergência ,que“opresidentedarepública

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[ Reichspräsident]podesuspendertemporariamente,emparteouinteiramente,osdireitosbásicos”.Àépoca,talenunciadogerouumadificuldadeinterpretativasobreoalcancedas“medidasnecessárias”àsegurançadoEstado. Para reforçar a autoridade soberana por meio da ditadura, ante as pressões pluripartidárias doparlamento alemão ( Reichstag), Schmitt alega que a formulação do artigo 48 foi alterada por diferentescomitêsresponsáveispelaAssembleiaConstituinte.OriginalmenteaCartaestabeleciaqueo“presidentepodeintervir[...]comaajudadasforçasarmadasetomarmedidasnecessáriaspararestaurarasegurançaeordempúblicas”.Posteriormente,o receio legalistaquantoaousodas“forçasarmadas”fezcomqueoenunciadofosse reformulado: “o presidente pode tomar medidas necessárias para restaurar a segurança e ordempúblicas, e se necessário pode intervir com a ajuda das forças armadas”. Ao destacar os autos dessacontenda,Schmitt entendequeo segundoperíododoartigo“nadadiz sobreoquepode ser feito alémdesuspender[alguns]direitosbásicos[devidamenteenumerados]”.Detodomodo,paraSchmittoraiodeaçãodo presidente mostra-se comprometido e limitado, pois ignora a imprevisibilidade das crises políticas,momentos esses em que as forças partidárias poderiam valer-se da legalidade instituída para ascender aopoderedissolveraprópriaConstituição.Aquestãodainterpretaçãodaleivaialémdoslimitesestabelecidospelalei,naquiloqueSchmittvêdeprementeedeurgente,istoé,naquiloqueaconjunturadeameaçatornapatenteanecessidadedeaumentodopoderpresidencialparaconteros“inimigos”doEstado.

4.MeusagradecimentosàProf.ªThelmaLessadaFonsecaeàCarolinaNoto(Caru),cujoscomentáriosecríticasforamindispensáveisparaestetexto.

5.Foucaultassinalaainda,comconjunturadaemergênciadoracismo,ocontrapontodeste, identificadonosurgimentodapsicanálisefreudiana.MesmoqueFreudtenhadenunciadoopapeldarepressãodosdesejosnaspatologiashumanas,dandovazãoatodaumaenergiasexualcontida(ourecalcada)pelafigurado pai-soberano,aindaassimapsicanálisesevêorientadaapensarosexoàluzdeinterditos,istoé,deesquemasqueremontamàlógicapolíticadaleiimpositiva,quecoageosindivíduosporforçadopoder(FOUCAULT,1976).No final das contas, o peso do poder parece incidirmais sobre o furor impositivo que fomenta asexualidadedoquesobreasuarepressão:maioroseuconstrangimentodenunciadopelahistória,maioréoentrelaçamento biológico emaior o incremento de técnicas que o absorvem, redundando numa diretriz deexcitação. Isso não ocorre propriamente como um ato sexual em resposta às necessidades biológicas docorpo, mas como sintoma da instrumentalização, segundo uma história do corpo, que difundeirrestritamenteadomesticaçãodavida.

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OLiberalismoContemporâneoeseusCríticosDenilsonLuisWerle

Introdução

Bibliografia

IntroduçãoGrande parte das discussões na filosofia política contemporânea

(particularmente aquelas do universo anglo-saxão) é marcada por questõesnormativas, como foco voltado predominantemente para a fundamentação dosprincípios de justiça e dos ideais de liberdade e de comunidade que deveriamorientar os diagnósticos críticos e as propostas de reforma ou de modificaçãoradicaldosprocessospolíticosedasprincipaisinstituiçõessociais,econômicasejurídicasqueafetamnossasvidasdeformapersistenteedeváriasmaneiras.Najustificação desses princípios normativos e na especificação de seu sentido naorganizaçãoracionaldeumasociedadejusta,oLiberalismotemsidooparadigmadominantenodebate,paraobemouparaomal.Naverdade,pode-sedizerqueoLiberalismoéaformareflexivadaprópriamodernidadepolítica.Háobviamentemuitas formas de Liberalismo, com diferentes elementos fundamentais, mas opredomíniodesuaagendanafilosofiapolíticanormativanasdécadasrecenteséalgonotávelenaverdadereconhecidoatémesmopelosváriosenfoquescríticos

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aoLiberalismo.Porém,assimcomonocasodopredomíniopraticamenteunânimedos ideais da democracia, não é nada fácil fornecer uma definição breve doLiberalismo,talcomonãoéfácildefinircomclarezaoconceitodedemocracia.MuitoseescreveafavorecontraoLiberalismo,esquecendo-se,namaioriadasvezes, do caráter multifacetado e ambíguo do Liberalismo. É relativamentesimplesnomear filósofosdenominados liberais,comoosclássicosJohnLocke,Adam Smith, John Stuart Mill, Aléxis de Tocqueville, Benjamin Constant, econtemporâneos como Isaiah Berlin, Friedrich Hayeck, John Rawls, RobertNozick,CharlesLarmore,RonaldDworkin,paracitaralguns.Masémaisdifícildizer o que têm em comum. Como qualquer outra tradição de pensamentopolítico, o Liberalismo é marcado por controvérsias internas em torno deconceitoseideaiscentrais,bemcomopordivergênciascomseuscríticos.1

UmbomcaminhoparaapresentaroLiberalismocontemporâneoparece-nosser aquele que caracteriza o Liberalismo muito mais como uma problemáticacomum do que uma concordância em torno de conceitos fundamentais. DesdeseusurgimentonoséculoXVIIoLiberalismosegueaquelascorrentesdafilosofiapolíticaquebuscammanteroexercíciodopoderpolíticoesocialsobaégidedeprincípiosmorais, argumentando a favor deumconstitucionalismodemocráticosegundo o qual o poder político e social somente é legítimo quando estiverfundamentado na soberania popular, no rule of law (império do direito), naproteção de direitos e liberdades básicas dos indivíduos; se obtiver oconsentimento racional de pessoas autônomas, livres e iguais no pleno usopúblico de sua razão. Pode-se dizer que a preocupação central do Liberalismoconsisteemsaberqualosentidoecomoassegurarsociale institucionalmenteaautonomiados indivíduos.Liberdade igual, autonomiados indivíduos, impériodalei(ouestadodedireito),justiçaedemocraciacompõemagramáticamoraldasreflexõesdosliberais.

NocasodoLiberalismocontemporâneo,essapreocupaçãoclássicadecomoevitaraarbitrariedadedopoder,assegurandoaautonomiadosindivíduoslivreseiguais, passou a ser pensada a partir de uma das características centrais damodernidade:ofatodequeaspessoasrazoáveistendemadivergirsocialmenteediscordarpoliticamentesobreanaturezadavidaboa.Essadivergênciarazoávelentre as pessoas faz comque os interesses, vontades e valores de indivíduos egrupossecruzemechoquememdiferentesesferasdavidaemsociedade.Comisso, os conflitos na vida social e política se tornam incontornáveis. Se nãoexistiremprincípioseregrasqueasseguremaconvivência,coordenemasaçõese

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estabeleçam parâmetros públicos para julgar as reivindicações nos casos deconflito,perde-seaprópriaautonomiadosindivíduoslivres.Àluzdopluralismode planos de vida individuais e formas de vida culturais, a questão central doLiberalismocontemporâneopassaaser,então,sabercomoépossívelexistirumasociedade justa, boa e estável de cidadãos que estão divididos entre si porinteressesevaloresnãoapenasdivergentes,mas,porvezes,irreconciliáveisentresi.Comojustificarmoralmenteostermossobosquaisaspessoaslivreseiguaispodemviverjuntasnumaassociaçãopolítica?Narespostaaessaquestão,retoma-seumconjuntodetemasclássicosdamodernidadepolítica:ainstitucionalizaçãodosdireitoshumanos,ossentidosdademocracia,asconcepçõesde indivíduoede comunidade, os conceitos de liberdade e de igualdade, a separação entreEstadoereligiãoeoslimitesdatolerância,arelaçãoentreEstado,sociedadecivilemercado.

Não há nenhum exagero em dizer que a publicação, em 1971, de Umateoria da justiça, de John Rawls (1921-2002), reatualizou essa questão nasreflexões da filosofia política contemporânea. Ao retomar a tradição doconstitucionalismodemocrático,queencontraumadesuasraízesnadoutrinadocontrato social (Locke,Rousseau eKant),Rawls reacende a discussão sobreoidealdeuma sociedade justade cidadãos livres e iguais, deslocandoa reflexãosobre os temas clássicos da filosofia política moderna (análise da natureza dopoder,daorigemelegitimidadedoEstadoedalei,oconceitodesoberania)paraaquestãodecomorealizarefetivamente–tantodopontodevistadascondiçõesmateriais(derendaeriqueza)quantodopontodevistadascondiçõesformais–os ideais de liberdade e igualdade da cidadania democrática. Com a crise doLiberalismodebem-estarsocialedosocialismoreal,ecomoquesepodechamarde“esgotamentodasenergiasutópicas”(Habermas)vinculadasàquelesprojetosde organização da sociedade, a teoria da justiça de Rawls deu novo ânimo àsreflexõesdefilosofiapolíticanormativaeaodebatesobreosfundamentosdeumasociedadejusta.

AcentralidadedateoriadajustiçadeRawlsnodebatecontemporâneodeve-se não apenas à sua proposta de fundamentar a organização de uma sociedadejustano idealdeautonomiaplenados indivíduos.Ela tambémseevidencianasvárias críticas que lhe foram dirigidas pelos próprios liberais (como RonaldDworkin,BruceAckerman,CharlesLarmore, JoesphRaz,WillKymlicka)quetambém procuraram articular melhor os fundamentos da moralidade políticaliberal-igualitária;porteóricos libertarianios(comoRobertNozick),paraquemateoriadeRawlsnãoésuficientementeliberal,poisdefendeumanoçãodejustiça

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social que interfere arbitrariamente na liberdade individual entendida de formamais radical; e, de forma mais enfática, recebeu críticas acirradas dos teóricoscomunitaristas (Michael Sandel, Charles Taylor, Michael Walzer, AlasdairMacIntyre) que retomam argumentos aristotélicos-hegelianos para fazer umdiagnóstico crítico da modernidade política liberal.A teoria da justiça acabouinfluenciando, ainda que de forma indireta, a retomada das reflexões sobre aliberdade, a justiça e a democracia em outras tradições teóricas, como a domarxismo analítico (Jon Elster, G. A. Cohen, John Roemer) e dorepublicanismo (Philip Pettit, Cass Sunstein, Frank Michelman, QuentinSkinner).2

No escopo deste capítulo não nos será possível abordar todos os tipos deLiberalismocontemporâneonemtodaavariedadedecríticasaeledirigidas.Porrazões óbvias, a discussão ficará restrita, então, às principais ideias doLiberalismo político igualitário desenvolvidas na concepção de justiça comoequidadedeJohnRawls(I),paraemseguidaapresentarosváriosníveisdeumadas correntes teóricas críticas aoLiberalismo: o comunitarismo (II). Por último,faremos algumas observações sobre o livro Liberalismopolítico, originalmentepublicado em 1993, de Rawls (2000) como uma resposta às críticascomunitaristas. Esse recorte,mesmo com todas as omissões, ainda possibilitaráuma compreensão ampla das várias dimensões envolvidas na discussão doproblema da justiça em nossas sociedades democráticas contemporâneas,complexas e plurais,marcadas não só por crescentes desigualdades de renda eriqueza,mas,também,pelapluralidadedeplanosdevidaindividuaisedeformasde vida culturais que geram conflitos profundos acerca dos critérios de justiçadistributiva e dos direitos e deveres que temos de reconhecer reciprocamentecomo membros de uma comunidade política de livres e iguais.Ao final, serápossível ter uma visão mais ou menos esquemática e crítica dos principaisconceitos, ideias morais e formas de argumentar usados por liberais ecomunitaristasparadefendersuasposiçõessobrediferentestemas:oconceitodepessoamoral;aneutralidadedoEstadodedireitoeapolíticadobemcomum;oethos de uma sociedade democrática; e a possibilidade de uma justificaçãouniversalistadosvaloreseprincípiosmorais.

10.1.JohnRawls:justiça,liberdadee

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democraciaUm dos objetivos centrais da teoria da justiça de Rawls consiste em

fundamentar uma concepção filosófica da justiça para uma democraciaconstitucional.AesperançadeRawls

“[...]éadequea justiçacomoequidadepareçarazoáveleútil,aindaquenão totalmenteconvincente,para umagrande gamade orientações políticas ponderadas e, portanto, expresse o núcleo comumdatradiçãodemocrática”(RAWLS,2008,p.xxxvi).

Aideiaéestabelecerumvínculonecessárioentreajustiçaeaestruturabásicadeuma sociedadedemocrática.Para isso, a filosofiapolítica temcomoumadesuas tarefas básicas fornecer uma base pública de justificação para acordospolíticos,entreospróprioscidadãos,sobreasquestõespolíticasfundamentaisquedizem respeito aos seusdireitos edeveres recíprocos comomembrosplenosdeumacomunidadepolíticaeàdistribuiçãodosbenefícioseencargosresultantesdacooperação social voltada para vantagens mútuas de todos. É importanteconsiderarqueRawlsnãopretendeelaborarumaconcepçãomoralabrangentedajustiçaaplicávelaoamplolequedequestõespráticas,desdeações,juízosmoraisquotidianosatéosproblemasmais intrincadosda relaçãoentremoral,políticaedireitoemsociedadescomplexaseplurais.Seupropósitoémaislimitado:

“[...]oobjetoprimáriodajustiçaéaestruturabásicadasociedade,oumaisexatamente,amaneirapelaqualasinstituiçõessociaismaisimportantesdistribuemdireitosedeveresfundamentaisedeterminamadivisãodevantagensdecorrentesdacooperaçãosocial”(RAWLS,2008,p.8).3

A teoria da justiça de Rawls pretende fornecer um conjunto de princípioscapazdeevitaraarbitrariedademoralnadeterminaçãodosdireitosedeveresdoscidadãos e fornecer um ponto de vista comum a partir do qual reivindicaçõesconflitantes dos cidadãos possam ser julgadas. Portanto, pretende oferecer umpadrãomoralapartirdoquepossamseravaliadososaspectosdaestruturabásicaquando questões políticas fundamentais estiverem em jogo.4 Esse padrão nãodeve ser estendido para os princípios que definem outras virtudes morais daspessoas.Trata-se,portanto,deumpadrãovoltadoparaasprincipais instituiçõesda sociedade, e apenas indiretamente para os indivíduos, à medida que estesviveme levamadiante seusplanosdevidasobas regraspúblicasestabelecidasporaquelasinstituições.

O alcance limita-se à formação de um juízo político sobre dois tipos deproblemasfundamentais,quesereferemaduas circunstânciasdajustiça:

a. questões de justiça distributiva que decorrem do problema da escassezmoderada e referem-se ao

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modo de estabelecer os termos equitativos que determinam a partilha dos encargos e benefíciosdecorrentesdacooperaçãosocial.Essasquestõesnãopodemserresolvidaspelosimplesjogodolivremercado,maspormeiodeprincípiossubstantivosdejustiçaaplicadosàestruturabásicadasociedade;e>b.questõesdatolerânciadecorrentesdofatodopluralismodasformasdevidaculturaisedosplanosdevidaindividuais.Osprincípiosdejustiçasãonecessáriosnãoapenasparaespecificartermosequitativosde cooperação social, mas também para especificar os direitos e deveres de cidadãos que, além deperseguireminteresseseplanosdevidadiferentes,estãotambémprofundamentedivididosentresiporumadiversidadededoutrinasfilosóficas,religiosas,moraisepolíticasabrangentes.

Nadefiniçãoejustificaçãodeumateoriadajustiçaquepossalidarcomessesdoisâmbitosdeproblemas,Rawlsrecorreaumadasideiascentraisdamoralidadepolíticaliberal:a prioridadedajustiçaemfacedobem.

“Essa prioridade do justo sobre o bem acaba sendo a característica principal da concepção da justiçacomo equidade. Isso impõe certos critérios à moldagem da estrutura básica como um todo; essescritérios não devem gerar propensões e comportamentos contrários aos princípios de justiça [...] edevemgarantiraestabilidadedasinstituiçõesjustas.Assim,impõem-secertoslimitesiniciaisaoqueébom e quais formas de caráter sãomoralmente dignas, e também aos tipos de pessoas que os sereshumanos devem ser. Ora, qualquer teoria da justiça define alguns limites desse tipo, isto é, limitesnecessários para que seus princípios primeiros possam ser satisfeitos nas circunstâncias vigentes”(RAWLS,2008,p.38-39).

A tese da prioridade da justiça sobre o bem pode ser entendida de duasmaneiras, ambas retomam um estilo de argumentação utilizado por Kant nafundamentação do princípio supremo da moralidade: a liberdade comoautonomia.Aprimeiraconsisteemdefenderaideianormativada inviolabilidadedapessoa:

“Cadapessoapossuiumainviolabilidadefundadanajustiçaquenemobem-estardetodaasociedadepodedesconsiderar.Porisso,ajustiçanegaqueaperdadaliberdadedealgunssejustifiqueporumbemmaiordesfrutadoporoutros.Nãopermitequeossacrifíciosimpostosapoucossejamcontrabalançadospelo número maior de vantagens de que desfrutam muitos. Por conseguinte, na sociedade justa asliberdadesdecidadaniaigualsãoconsideradasirrevogáveis;osdireitosgarantidospelajustiçanãoestãosujeitosànegociaçãopolíticanemaocálculodeinteressessociais[...].Porseremasvirtudesprimeirasdasatividadeshumanas,averdadeeajustiçanãoaceitamcompromissos”(RAWLS,2008,p.4).

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RetratodeJohnRawls,porFredericReglain.Paris,1987.

A autonomia dos indivíduos não pode ser violada por consideraçõescoletivasdebem-estarsocial,dobemcomumououtrofimcoletivo.Isso,porém,não transforma Rawls num defensor da liberdade negativa que privilegiaexclusivamente a autonomia privada. O objetivo da justiça é assegurar ascondições sociais, políticas e jurídicas indispensáveis (com veremos adiante, alista de bens básicos) ao exercício da autonomia dos cidadãos consideradospessoasmoraislivreseiguais.

Asegundamaneiradeentenderatesedaprioridadedajustiçasobreobemconsiste no princípio da neutralidade de justificação do Estado, ou àneutralidade ética do direito, frente às concepções particulares do bem e asdoutrinas abrangentes.A ideia éque, emuma sociedademarcadapelo fatodopluralismo, os princípios de justiça que devem regular a vida em comum nãopodemseapoiaremqualquerconcepçãoparticulardevidaboaouemdoutrinasmorais,filosóficasereligiosasabrangentes.OEstadodedireitonoLiberalismosefundamenta na tolerância e na neutralidade ética que assegura um conjunto deliberdadesbásicas iguaiseprocedimentospolítico-jurídicosderealizaçãoefetivadessas liberdades.Umavez que os princípios da justiça para a estrutura básica

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estabelecemumasériedelimitesquerestringemodesenvolvimentodosplanosdevidaindividuaiseasformasdevidaculturais,estabelecendonormaseregrasquedevemserobedecidasobrigatoriamenteportodos,oqueatesedaprioridadedojustosobreobomexigeéqueosprincípiosdejustiçasejamjustificadospormeiode razões que todos os cidadãos, imersos em eticidades diferentes, poderiamaceitar (oupelomenospor razõesqueninguémpoderia razoavelmente rejeitar),independentementedorecursoàcoerção.

“A ideia norteadora é que os princípios da justiça para a estrutura básica da sociedade constituem oobjeto do acordo original. São eles os princípios que pessoas livres e racionais, preocupadas empromover seuspróprios interesses, aceitariamemuma situação inicial de igualdade comodefinidoresdascondiçõesfundamentaisdesuaassociação”(RAWLS,2008,p.13-14).

Para configurar a formadesse acordo,Rawls articula amoralidadepolíticaliberal num esquema de justificação que amarra dois níveis de validaçãonormativa:oda posiçãooriginal,queéaexpressãodopontodevistaabstratodamoralimparcial,eodo equilíbrioreflexivo,quearticulaosprincípiosdejustiçacomnossasintuiçõesmoraiscotidianas.

Comaideiadeposiçãooriginal,Rawlsgeneralizaelevaaumnívelmaisaltode abstração a teoria tradicional do contrato social (Locke, Rousseau e Kant).Nãosetratadeumcontratoquefundaasociedadecivil–portanto,nateoriadeRawls,nãoexisteopressupostodoscontratualistasmodernosdeum estadodenaturezae,muitomenos,apassagemdesteparaasociedadecivil-jurídica,mas,sim,trata-sedeumprocedimentodeescolhaaplicadoaosprópriosprincípiosdejustiça, que devem orientar a estrutura básica de uma sociedade democráticaconstitucional jáinstituída.

Ao usar a linguagem do contrato social, o que interessa a Rawls não éexplicar, como nos contratualistas clássicos, a origem legítima de um poderpolíticoorganizado juridicamente,mas, sim,apresentaroprincípio racional (umprocedimento) de justificação pública inscrito no modelo do contrato social.Semprelembrandoqueaideianorteadoradateoriadajustiçaéqueosprincípiosde justiça para a estrutura básica da sociedade sejamo objeto de um consensooriginal. São esses princípios que pessoas livres e racionais, preocupadas empromoverseusprópriosinteresses,aceitariamnumaposiçãoinicialdeigualdade.Apesardosváriosusosdapalavra contrato,alinguagemdocontratotrazemsiasideiasdeaceitabilidaderazoáveledepublicidadedosprincípiosdejustiça.Sãoprincípios escolhidos não apenas em função de uma racionalidade instrumentalvoltadaàpromoçãodoautointeresse,mas,também,porrazõesmoraisquepodemserpublicamentereconhecidaseaceitasreciprocamente.

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Ousodalinguagemdocontratoparadesenharoscontornosdoprocedimentodejustificaçãonaposiçãooriginaltemopropósitodemostrarqueosprincípiosdejustiça são o resultado de uma situação de escolha equitativa.Os cidadãos (ouseusrepresentantes),comopessoaslivreseiguais,sujeitasarestriçõesrazoáveis,escolhem demodo racional certos princípios para regular a estrutura básica dasociedade, entendida como um sistema equitativo de cooperação social paravantagem mútua. Rawls modela na posição original várias restrições que oconceitodejustoimpõeaobem:acondiçãodegeneralidade,deuniversalidade,depublicidade,deordenaçãodaspretensõesconflitantes,eacondiçãodecaráterúltimo.Essas condições devem situar equitativamente as pessoas como livres eiguais,demodoqueosprincípiosde justiçaescolhidosexpressemumpontodevistamoralimparcialpublicamenteaceitávelparatodos.Issosignificaquedevemser excluídas ou colocadas em suspenso aquelas desigualdades consideradasmoralmente arbitrárias (como as desigualdades socioeconômicas e asdesigualdadesnaturais).Alémdisso,nãodeveserpermitidoquealgumaspessoastenham maior poder de barganha ou informações privilegiadas em relação àsoutras;devemtambémserexcluídosousoda força,da fraude,doenganoedacoerção.Todasessasrestriçõesestãosintetizadasno véudeignorância.5

O objetivo principal do véu de ignorância é garantir que na escolha dosprincípiosdejustiçaninguémsejafavorecidooudesfavorecidopeloresultadodoacaso natural ou pela contingência de circunstâncias sociais.Assim, o véu deignorância significaqueaspartesnão conhecemseu lugarpresente e futuronasociedade,aposiçãodesuaclasse,o statussocial,nemasortenadistribuiçãodetalentos e habilidades naturais. Além disso, presume-se que as partes sãomutuamente desinteressadas, no sentido de que não se movem por nenhumsentimentodebenevolênciaoualtruísmo.

Com esses pressupostos, a posição original assegura a imparcialidade eequidadenaescolhadosprincípios,demodoquesuajustificaçãonãodependaderazõeséticasparticulares,dascaracterísticasecircunstânciasparticularesdeumaeticidade particular. O véu de ignorância explicita as condições razoáveis quedelimitam o espectro de razões e informações moralmente válidas, isto é, quepodem fundamentar princípios de justiça numa sociedade marcada pelopluralismo.Nessesentido,para justificaraescolhadosprincípios,aspartesnãopodemcontarcomboasrazões,sejaasuaposiçãoparticularnasociedade,sejaofato de professarem uma doutrina religiosa, filosófica oumoral abrangente, ouuma concepção particular do bem. Também têm de ser excluídas informações

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sobrearaçaeogrupoétnico,diferençasdegêneroeosdiversostalentosnaturais.Éimportantedestacarqueaposiçãooriginaléumprocedimentode testee,

comotal,temumanaturezahipotéticadedutiva.“Aposiçãooriginal éapenasumartifíciode representação:descreveaspartes, cadaqual responsávelpelosinteressesessenciaisdeumcidadãolivreeigual,numasituaçãoequitativa,alcançandoumacordosujeito a condições que limitam apropriadamente o que podempropor como boas razões” (RAWLS,2000,p.68).

Como artifício de representação, qualquer acordo feito nessa situação seriajusto,comonumaespéciede“geometriamoral”(RAWLS,2008,p.147).Rawlschegaadizerque

“[...] a posição original é caracterizada de modo que o acordo a ser alcançado pode ser realizadodedutivamentepeloraciocínioapartirdecomoaspartesestãosituadasedescritas,asalternativasabertasaelas,eoqueaspartescontamcomorazõeseinformaçõesdisponíveis”(RAWLS,2001,p.17).

Na posição original, as partes são igualmente representadas como pessoasdignas, e o resultado da deliberação não é condicionado por contingênciasartificiais ou pelo equilíbrio relativo das forças sociais. Segundo as restriçõesrazoáveisdovéude ignorância,ninguémpodeser favorecidooudesfavorecidonaescolhadosprincípiospeloresultadodoacasonaturaloupelacontingênciadascircunstânciassociais.

Alémdessasimetriadasrelaçõesmútuas,asseguradapelovéudeignorância,a posição original é equitativa para os indivíduos entendidos como pessoasmoraislivreseiguais.Opontodevistadaposiçãooriginalrepresentaumaideiade pessoa moral implícita na própria razão prática como também presente naculturapolíticapúblicadeumasociedadedemocrática.Quandomencionaaideiade pessoa moral, Rawls (1992, p. 37) refere-se a “alguém que pode ser umcidadãoplenamentecooperativodasociedadeaolongodeumavidacompleta”.Trata-sedeprivilegiarumaconcepçãodepessoaquesejaadequadaàideiamaisfundamental de sociedade entendida como sistema equitativo de cooperaçãosocialentrecidadãoscomolivreseiguais.Assim,paraRawls

“[...]aideiaintuitivabásicaéadeque,emvirtudedoquepodemoschamarsuascapacidadesmorais,edascapacidadesdarazão–opensamentoeo juízo,associadosaessascapacidades–dizemosqueaspessoas são livres. E em virtude de possuírem essas capacidades em grau necessário a que sejammembrosplenamentecooperativosdasociedade,dizemosqueaspessoassãoiguais”(RAWLS,1992,p.37).

As pessoas são iguais no sentido de que se consideram reciprocamentecomotendoodireitoaoigualrespeitodedeterminaredeavaliarpublicamente,apartirdareflexãojusta,osprincípiosdejustiçapelosquaisaestruturabásicadasociedade vai ser governada. E as pessoas são livres, e reconhecem

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reciprocamente a liberdade um do outro, de diferentes formas: são livres pararealizar demodo reflexivo suas concepções do bem; reconhecem um ao outrocomo fontes de pretensões válidas; e reconhecem um ao outro como pessoasresponsáveisporseusfinsouconcepçõesdobem.

Em virtude da ideia de sociedade como sistema equitativo de cooperaçãosocial,Rawlspressupõeapessoamoralcomodotadacomduascapacidades:adeterumsensodejustiçaeadeterumaconcepçãodobem.

“Osensodejustiçaéacapacidadedeentender,deaplicaredeagirapartirdeumaconcepçãopúblicadejustiçaquecaracterizaostermosequitativosdacooperaçãosocial.Acapacidadedeconcepçãodobeméa capacidade da pessoa de formar, de revisar e racionalmente perseguir uma concepção da vantagemracional,oudobem”(RAWLS,1992,p.37-38).

Aposiçãooriginalvisa,portanto,anãoexpressarumadadasituaçãohistóricareal ou como uma condição primitiva da cultural, mas expressar esse ideal depessoa moral, e suas duas capacidades morais. Ela é um artifício derepresentação,umprocedimentode justificaçãoquesintetiza todosos requisitosdarazãopráticaemostracomoosprincípiosdejustiçaresultamdosprincípiosdarazão prática conjugados às concepções de sociedade e pessoa, também elasideias da razão prática. Ela formaliza o ponto de vista moral imparcial quepossibilitaaescolhadeprincípiosparajulgarquestõespolíticasfundamentais.

Como uso domodelo do contrato para formalizar o ponto de vistamoralimparcial,Rawlspretendedarumaexpressãoprocedimentalaoconceitokantianode autonomia moral. Segundo Rawls, o principal objetivo de Kant foi o deaprofundarejustificaraideiadeRousseaudequealiberdadeconsisteemagirdeacordocomumaleiquenósestabelecemosparanósmesmos.Eisso,paraRawls,

“[...]conduznãoaumamoralidadedeobediênciaaustera,massimaumaéticadeautoestimaerespeitomútuo.Aposiçãooriginalpode,então,serdescritacomoumainterpretaçãoprocedimentaldaconcepçãokantianadeautonomia,edoimperativocategóriconosquadrosdeumateoriaempírica”(RAWLS,2008,p.318).

A descrição da posição original de deliberação sob o véu de ignorânciapretendeexplicaremquesentidoagircombasenosprincípiosassimescolhidosexpressa nossa natureza de pessoas racionais iguais e livres. ParaRawls, essasideiasteriamvínculosidentificáveiscomacondutamoralcotidiana.Emparte,éissoqueométododo equilíbrioreflexivoquermostrar.

Ajustificaçãopúblicadosprincípiosdajustiçaé,então,complementadacoma introdução de um segundo nível de validação normativa: o método doequilíbrio reflexivo. Este é introduzido por Rawls “para tornar a ideia desociedadebemordenadamaisrealistaeajustá-laàscondiçõeshistóricasesociais

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dassociedadesdemocráticas,queincluemofatodopluralismo”(RAWLS,2001,p.32).Osprincípiosdejustiçadevemmostrarsuarazoabilidadenacomparaçãocom os pontos fixos de nossos juízos ponderados em diferentes níveis degeneralidade.Oobjetivoéaproximarprincípiosdejustiçadenossosensomoralcotidiano.Oquetemdeserexaminadoéemquemedidaosprincípiosseaplicamàsinstituiçõesdemocráticasequaisseriamseusresultados,e,consequentemente,emquemedidaseencaixamnapráticacomnossosjuízosponderadosemreflexãodevida.Osprincípiosde justiçanãosãofundamentados intuitivamente,masporjuízos bemponderados sobre o que émais razoável para nós fazermos, aqui eagora.Oimportanteéquehajaumprocessodeafinaçãoreflexivaentreprincípiosde justiça, intuições morais e juízos políticos. Estes têm de ser refinados eadaptadosnoprocessodeidasevindasdadeliberaçãopúblicareflexivaentreoscidadãos.Issosignificaque

“[...]podemosmodificaracaracterizaçãodasituaçãoinicialoureformularnossosjuízosatuais,poisatéos juízosqueconsideramoscomopontos fixosprovisórios estão sujeitos a reformulação.Comessesavanços e recuos, às vezes alterando as condições das circunstâncias contratuais, outras vezesmodificandonossosjuízosparaqueseadaptemaosprincípios,suponhoqueacabaremosporencontraruma descrição da situação inicial que tanto expresse condições razoáveis como gere princípios quecombinemcomnossosjuízosponderadosdevidamenteapuradoseajustados.Denominoesseestadodecoisascomoequilíbrioreflexivo.Éequilíbrioporquefinalmentenossosprincípiosejuízoscoincidem;eéreflexivoporquesabemosaquaisprincípiosnossosjuízosseadaptameconhecemosaspremissasquelhesderamorigem”(RAWLS,2008,p.24-25).

Seosprincípiosdajustiçacomoequidadeconseguirempassarpordiferentesníveisdejustificaçãopoder-se-ia,naopiniãodeRawls,considerarasuateoriadajustiça a melhor descrição de nosso senso de justiça, de nossa sensibilidademoralcomocidadãosvistoscomopessoasmoraislivreseiguais.

Contudo, a teoria da justiça de Rawls não consiste somente numprocedimentodejustificação,mas,também,ofereceumaconcepção substantivadajustiça.Rawlsexplicitaquaisosprincípiosdejustiçaseriamescolhidosnoseuprocedimentodejustificação,atribuindoumconteúdoàsuaconcepçãodejustiça:alistadebensbásicos.

Rawls apresenta dois princípios da justiça sobre os quais haveria umconsenso na posição original e quemelhor se aproxima de nossos juízos bemponderados.Sãoeles:

a. todas as pessoas têm igual direito a um projeto inteiramente satisfatório de direitos e liberdadesbásicasiguaisparatodos,projetoessecompatívelcomtodososdemais;e,nesteprojeto,asliberdadespolíticas,esomenteestas,deverãoterseuvalorequitativogarantido;eb. as desigualdades sociais e econômicas devem satisfazer dois requisitos: primeiro, devem estarvinculadasaposiçõesecargosabertosatodos,emcondiçõesdeigualdadeequitativadeoportunidades;e, segundo, devem representar o maior benefício possível aos membros menos privilegiados da

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sociedade.

Democraciasconstitucionaisdevempoderserpublicamentejustificadassegundoprincípiosdejustiça. JulgamentodeJean,DuquedeAlençonportraiçãodiantedoReiCarlosVIIemVendome,1458,deJeanFouquet.BayerischeStaatsbibliothekMunich,Munique.

Rawlsconsideraoconteúdodestesdoisprincípiosumcasoespecialdeumaconcepção mais geral da justiça, que é expressa numa lista de bens sociaisbásicos:todososvaloressociais–liberdadeeoportunidade,rendaeriqueza,easbasessociaisdoautorrespeito–devemserdistribuídosigualitariamenteanãoserqueumadistribuiçãodesigualdeumoude todosessesvalores tragavantagenspara todos.Essa lista de bens básicos, dentre os quaisRawls considera que asbases sociais do autorrespeito como o bem básico mais importante, forma aconcepção do bem implícita na justiça como equidade. Os bens básicos sãocaracterizadoscomoaquiloqueaspessoasnecessitamparadesenvolversuasduascapacidadesmorais(adeterumaconcepçãoracionaldobemeadeterumsensodejustiça)nasuacondiçãodecidadãoslivreseiguais,edemembrosplenosdeuma sociedadeentendidacomosistemaequitativode cooperação socialvoltadapara as vantagens mútuas de todos. É precisamente isso que um sistema dedireitos fundamentais individuais deve assegurar a cada pessoa,independentementedaeticidadeemqueaspessoasestãoimersas.

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Masatéquepontoéplausívelsustentarajustificaçãodosprincípiosdejustiçaemumprocedimentodetestetãoabstratocomoodaposiçãooriginal?Seráqueosprincípiosassimescolhidosfazemjusàsnecessidadesconcretasdaspessoas?Osprincípiosde justiça são realmenteuniversaisouexpressamumaconcepçãoparticular de vida boa: a concepção liberal de vida boa?Não se introduz umaconcepção particular de vida boa ao falar de uma cesta de bens básicos comocondiçõesnecessáriasparalevarumavidaautônoma?Umateoriadajustiçanãodeveria justamente começar a se perguntar o que é a vida boa e a partir daídefinirseusprincípiosdistributivos?Esseéopontodoscríticoscomunitaristas.

10.2.AcríticacomunitaristaaoLiberalismo:oselfeticamentesituadoeaprioridadedapolíticadobemcomum

Ocomunitarismoéummovimentopolíticofilosóficosurgidonosanos1980,predominantemente no mundo anglo-saxão, como reação ao domínio doLiberalismo.Retomandoargumentosaristotélicos,hegelianos,dorepublicanismoclássico, rousseaunianos e românticos, a crítica comunitarista de autores comoMichael Sandel, Charles Taylor, Michael Walzer, Alasdair MacIntyre visa aapontar os equívocos e os problemas negligenciados pela moralidade políticaliberal em geral, e a de Rawls em particular. A alternativa proposta peloscomunitaristasépensaraquestãoda justiçaapartirdefundamentosnormativosmais sensíveis à autocompreensão cultural das pessoas, recorrendo a fontesmoraissupostamentemaisapropriadasparalidarcomasnecessidadesdaspessoasedascomunidadesconcretas.Nãohánenhumargumentoevidenteparaarazãopráticadarprioridadeàjustiçadiantedobem,istoé,àspráticaseinstituiçõesquepreferencialmente protejam a liberdade individual diante de políticas do bemcomum, como querem os liberais. O argumento comunitarista é o de que ascondiçõesdassociedadesmodernaspluraisexigemumalargamentodohorizontede reflexõesda razãoprática: é preciso expandi-la para o conjuntomais amplodaquilo que dá sentido à autorrealização pessoal. Uma teoria da justiça deve,antesdemaisnada,buscarumaconcepçãodobemqueprotejaavulnerabilidadedaspessoasconcretas,inseridasemcontextoscomunitáriosparticulares.Paraisso,uma teoria da justiça não deve querer fundamentar-se em princípios abstratosescolhidos a partir de um ponto de vista moral imparcial por pessoas livres e

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iguaispordetrásdeumvéudeignorância,descoladosdoscontextossimbólicoseculturais, dos laços de solidariedade e dos valores das comunidades que dãosentidoàvidadaspessoas.Deve,sim,perguntar-sepelascondiçõesconcretasdesocialização e de autorrealização pessoal, com o foco voltado à proteção doscontextos comunitários de formação da identidade pessoal nas relaçõesintersubjetivas de reconhecimento em horizontes de valores sociaiscompartilhados.Umateoriadajustiçadeveriaconsiderarnãoprincípiosabstratos,masosvaloresconcretosdacomunidadepolítica;nãoapessoamoralindividualisolada,masaspessoaseticamentesituadas,comsuasconcepçõesdevidadignaenecessidadesconcretas;nãoumapolíticafundadaapenasnaproteçãodedireitosfundamentais individuais,mas, também, principalmente nas > avaliações fortessobre o que é o bem comum da comunidade política. Portanto, a função dafilosofia prática deveria ser não a de fundamentar um suposto pontoarquimediano para avaliar a estrutura básica da sociedade, mas, sim, a deprocurar fornecer linguagensdearticulaçãomais sutise ricasquepermitamaospróprioscidadãos,semteremderenunciaràssuasidentidades,valoresefiliaçõescomunitárias mais densas, encontrarem formas de resolver seus conflitos naprópriapráticacomumdedeliberaçãopública.

Uma dificuldade que enfrentamos ao querer examinar esta alternativasugerida pelos comunitaristas é a de que ela não se encontra sistematizada demodopositivoemnenhumautorcomunitarista.Naverdade,ospróprios filósofoscomunitaristasrelutamemfazê-loe,aocontráriodosfilósofosliberais,inclusivetomam um certo distanciamento reflexivo ao analisar o debate entre liberais ecomunitaristas.6 As reflexões comunitaristas sobre a moralidade, os direitosfundamentais e a legitimidade democrática são apresentadas muito mais nosentido de uma contraposição crítica ao Liberalismo do que num esforçosistemático de fundamentação. Aqui, vou me deter nas questões relativas àformaçãodaidentidadepessoalnasrelaçõesdereconhecimentorecíproco,enasexigências normativas que daí decorrem; nas questões que dizem respeito àrelação entre a justiça e o bem comum e o problema da neutralidade dajustificação; e a configuração do ethos da democracia e o conceito de políticademocrática.Para tanto, emvezde falardocomunitarismoemgeral, consideromais frutífero seguir as objeções de um autor comunitarista, Michael Sandel(2005), que se dirigem, às duas ideias centrais do Liberalismo de Rawls: aconcepção atomista da pessoamoral e a prioridade da justiça (ou dos direitos)diantedobemcomum.

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Segundo Sandel, a ideia de pessoa moral e a do procedimento neutro dejustificação que estão no centro da teoria de Rawls são duas ideiasempobrecedoras da vida social, pois tornam impossível apreender aspectosfundamentais da formação da identidade pessoal e do modo como as pessoasjulgam e agemmoralmente. Consequentemente, tornam impossível conceber ocidadãocomoalguémparaoqualénaturalunir-seaosoutrosparaperseguirumaação comum ou para realizar o bem comum da comunidade política. SandelpropõedemonstrarqueoconceitoatomistadepessoalevaRawlsaadotarateseda prioridade da justiça diante do bem e que isso o impede de reconhecer anecessáriaprioridadedobemnareflexãosobreajustiça.Essaprioridadedobemcomum teria de levar a uma ampliaçãodamoralidadedoEstado constitucionaldemocrático, remetendo também o conceito liberal-igualitário de cidadania aoplano da autorrealização pessoal e do autoesclarecimento ético da comunidadepolítica. O argumento de Sandel consiste em demonstrar que a moralidadepolíticadoEstadoconstitucionaldemocráticonãopodeestarfundadaemideaisedireitosabstratos,massimemconcepçõessubstantivasdobemcomum.Osentidoda justificação pública e dos conteúdos dos direitos fundamentais só pode sercompreendido em termos de sua contribuição para o florescimento do que osmembrosdacomunidadepolítico-jurídicaconsideramumavidadigna.

AcríticadeSandelpodeserdivididaemduasetapas.Primeiro,demonstraocaráterinapropriadodoconceitodepessoapressupostonasteoriascontratualistasem geral. Em oposição ao conceito rawlsiano de self, Sandel propõe que ossujeitosnãosejamdescritosnaposiçãooriginalcomosefossemindependentesdeseusobjetivosdevidaeorientaçõesdevalor.SandelargumentaqueaconcepçãodepessoadefendidaporRawlsévazia,queelaferenossaautopercepção,ignoranossaincorporaçãoempráticascomunitárias,desconsideranossanecessidadederecebermos o reconhecimento social de nossas identidades individuais. Emcontraposição a isso, afirma que a identidade de cada pessoa deveria serentendida a partir da sua inclusão na práxis cultural de uma comunidade, nohorizontesignificativodevalores,tradiçõeseformasdevidaculturais.Portanto,aidentidadedapessoanãoéanterioraosseusfins,comoteriaafirmadoRawls,masforma-senasocializaçãocomosoutrosenovínculocomumaconcepçãodevidaboa.Nessesentido,anormatividadedassociedadesmodernasnãopoderiapartirdeumconceitoinverossímildepessoadesincorporadaeneutraeticamente.Pelocontrário,teriadepartirdepessoasquejáestão situadasradicalmente.Istoé,depessoas que se autocompreendem como pessoas situadas no horizonte deconfigurações de valores específicos e que julgam e agem no interior dessas

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configurações.Dadoqueaconfiguraçãodevaloresésomenteadquiridaintersubjetivamente

nos processos de socialização cultural e integração social mediadoscomunicativamente,opressupostosubjacentedesujeitosindependentesqueestãoisolados uns dos outros seria insustentável em termos teóricos. Por maisindividualizadaquesejaumapessoa,elaextraisuaautocompreensãodesimesmaa partir do contexto cultural de orientações valorativas compartilhadasintersubjetivamente.Seriaimpossívelconcebero selfcomoumsersolipsista,pré-social.

AsegundaetapadacríticadeSandelémostrarquetodamoralidadepolíticaliberal está ancorada neste conceito equivocado de pessoa. O argumento deSandelconsisteemmostrarqueoequívocodaideiadaprimaziadajustiçaedosdireitosfundamentais–consequentemente,daneutralidadedejustificaçãoética–sobreobemeaconcepçãodevidaboadecorredofatodeestarapoiadanafalsapremissaantropológicadeum selfisoladoedesincorporado.ParaSandel,ateseliberal da prioridade da justiça – a prioridade dada para a proteção legal daliberdade de escolha pessoal e para a lista de bens primários como o cernenormativo invioláveldeumasociedade justa– só faz sentidoseaspessoas sãoconsideradas indivíduos que escolhemmonologicamente seus planos de vida eobjetivos.Sóassimosindivíduosprecisamdaproteçãodesuaautonomiapessoaldiantedasinfluênciasdacomunidade.Osdireitosfundamentaisformariamentãoum aparato protetor neutro, já que não envolveriam nenhuma definiçãoabrangente da vida boa, deixando a cada sujeito individual a possibilidade detomar suas próprias decisões. Segundo Sandel, essa representação liberal dosdireitos fundamentais básicos seria o complemento necessário ao conceitoatomistadepessoamoral.

“De acordo com a ética baseada em direitos, é precisamente porque somosselves separadosessencialmente, independentes,queprecisamosdeumaestruturaneutra,umaestruturadedireitosquenegaescolherentreobjetivosefinsconcorrentes.Seoselféanterioraosseusfins,entãoodireitodeveseranterioraobem”(SANDEL,2005,p.5).

A crítica de Sandel consiste em apresentar razões que mostrem que oindivíduo está sempre situado no interior de uma eticidade concreta, pela qualforma sua identidade e seus planos de vida. Portanto, o que a justiça deveriaprotegernãoéumconceitoabstratodepessoa,masapessoaconcreta.Osujeitodeveserapreendidocomoumsujeitosocializadocomunicativamente,queformasuaidentidadenasestruturasintersubjetivasdereconhecimentomútuo.Portanto,nãoescolhesimplesmenteseusobjetivosdevida,masosbuscaeosdescobrena

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interação social com os demais sujeitos. Se assim o compreendermos, então arelaçãoliberalentreosdireitosindividuaisfundamentaiseaideiadobemcomumdacomunidadedeveserinvertida:paraobterumacompreensãoapropriadadesimesmo,livredeconstrangimentos,arealizaçãodaliberdadedoindivíduoexigeopressuposto da pertença a uma comunidade de valores intacta na qual podecertificar-se da solidariedade e do reconhecimento dos outros. O êxito daidentidade pessoal depende da inserção em redes cada vez mais densas dedependências sociais. O que a justiça deve procurar proteger e promover é aintegridadedotecidovitalderelaçõesdereconhecimentorecíproconasquaisaspessoas formam suas identidades. Desse modo, o conceito de pessoa situadaradicalmente fundamenta a primazia normativa dos valores compartilhados porumacomunidadeético-culturaldiantedosdireitosfundamentais.Então,nãoumapolítica fundada nos direitos individuais fundamentais, mas uma políticafundamentadanobemcomumdeveriaserapreocupaçãodafilosofiapolítica.

ParaSandel,odebateentreliberaisecomunitaristasémalformuladoquandovisto como uma discussão entre aqueles que prezam a liberdade individual eaqueles para quem os valores da comunidade ou a vontade damaioria devemprevalecer; entre os que privilegiam os direitos humanos universais e os queconsideramosvaloresdasdiferentesculturasetradições.Opontoimportantedacontrovérsia “não é saber se os direitos são importantes, mas sim saber se osdireitospodemseridentificadosejustificadosdeummodoquenãopressuponhaumaconcepçãoparticulardavidaboa”(SANDEL,2005,p.10).Oqueestáemcausanãoéseasexigênciasindividuaisouasexigênciasdacomunidadedevemterprioridade,mas,sim,seosprincípiosdejustiçaqueorientamaestruturabásicadasociedadepodemserjustificadosdeformaneutra,semrecorreraconcepçõesdevidaboadoscidadãosmembrosdasociedadepolítica.Aquestãofundamentalésabercomoojustoeobomestãorelacionados.

AposiçãodeSandeléadequenãoépossíveljustificarumaconcepçãodejustiçasemrecorreraumaconcepçãodavidaboa.Podemosentenderovínculoentreojustoeobomdeduasformas:

a. a maneira comunitarista afirma que a força moral dos princípios de justiça deriva dos valorescomumentecompartilhadosnumacomunidadeoutradiçãoconcretas.Sãoosvaloresdacomunidadequedefinemoqueéojustoeoinjusto.Ajustificaçãopúblicadeprincípiosdejustiçanãopodeprescindirdos ideais éticos implícitos, e muitas vezes não realizados, de uma comunidade, tradição ou projetocomum;eb.outraforma,nãocomunitarista,consisteemdizerqueavalidadedosprincípiosdejustiçadependedobem intrínseco das finalidades que servem: eles realizam um bem humano considerado fundamental.Trata-sedeumargumentoteleológico,dotipoaristotélico.

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Omodo comunitarista de vincular o justo e o bom lhe parece claramenteinsuficiente,poiscorreoriscodetransformarajustiçanummeroprodutodeumaconvenção, o quediminuiria seu caráter crítico.ParaSandel (2005, p. 12), “osargumentosacercadajustiçaedosdireitosacarretaminevitavelmenteumjuízodevalor”.Algodoqualseesquivamtantoosliberais,quedefendemqueajustiçaeos direitos devem ser justificados independentemente de doutrinas abrangentes,quantoos comunitaristas, quedizemque a justiça e os direitos devemdecorrerdosvaloressociaisdominantes.“Ambosprocuramevitaremitirumjuízodevalorsobre as finalidades promovidas pelos direitos”. Existe, portanto, uma terceirapossibilidade entre liberais e comunitaristas, “segundo a qual a justificação dosdireitos depende da importância moral das finalidades que estes servem”(SANDEL,2005,p.12).

Aestruturadelinhasparalelas,interrompidaemvárioslocaisporbarrasinclinadas,dividindooscamposhorizontais,assemelha-seàideiadequeofatodopluralismoremeteàimagemdeumacidadaniaigualitáriacompostaporindivíduosquepersistememsuasdiferenças.Monumentonopaísfértil,dePaulKlee,1929.

Sandeldiscuteumcasoespecífico:odireitode liberdade religiosa,nãoporacaso,umaquestãoqueestánaorigemdatradiçãoliberal.“Porquerazãoéquealiberdade de prática religiosa deve gozar de uma proteção constitucionalespecial?”(SANDEL,2005,p.12).Aresposta liberaldiria“é importantepelas

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mesmasrazõesquealiberdadeindividualemgeral,istoé,porquepermitequeaspessoas sejam livres de viver autonomamente, escolhendo e perseguindo seusprópriosvalores”(SANDEL,2005,p.12).Adefesadessedireitoestábaseadanorespeitomoralàspessoascomoindivíduosautônomose independentes,capazesdefazersuasprópriasescolhasde todo tipo.Nãose trataderespeitara religiãoem si, mas, sim, a pessoa e sua capacidade de escolher de forma livre evoluntária.Porém,essanãoéamelhormaneiradedefenderodireitoàliberdadereligiosa, como se ela fosse “um caso particular do direito mais geral deautonomia individual, ao direito geral de cada um selecionar os seus valores”(SANDEL,2005,p.13).SegundoSandel(2005,p.13)isso

“[...] descreve mal a natureza das convicções religiosas e obscurece as razões pelas quais se deveassegurarumaproteçãoconstitucionalespecialaoexercíciolivredapráticareligiosa.Construirtodasasconvicçõesreligiosascomoprodutodeescolhapoderáconduziraquesepercadevistaopapelqueareligião desempenha na vida daqueles para quem o cumprimento de deveres religiosos se apresentacomoumobjetivoconstitutivo,essencial,paraoseubemeindispensávelàsuaidentidade”.

Devemos respeitar uma convicção religiosa não pelo fato de ter sidoescolhida, mas, sim, pelo “lugar que ocupa face à vida boa, as qualidades decaráter que promove, ou (de um ponto de vista político) a sua tendência paracultivar os hábitos e as disposições que produzem bons cidadãos” (SANDEL,2005,p.13).Nemtudopodesercolocadonacestadeescolhasdeumindivíduoindependente: temosdemanteradistinçãoentreasexigênciasmaisprofundaseosmerosinteressesepreferênciasmaisimediatos.Semessadistinção,confunde-se o cumprimento de deveres com a busca demeras preferências.No caso daliberdade religiosa, não se pode ignorar “a situação particular daqueles que, deforma consciente, se encontram sob a alçada de deveres que não podemrenunciar, nem sequer perante obrigações legais que colidam com eles”(SANDEL, 2005, p. 14).O argumento a favor do direito à liberdade religiosapassaporumjuízodevalor:

“[...] os princípios religiosos, tal comoos que se praticamgenericamente numa sociedade específica,produzemmodosdeseredeagirmerecedoresdehonraseestimas–sejaporseremadmiráveisemsimesmos, ou por proporcionarem qualidades de caráter enformadoras de bons cidadãos” (SANDEL,2005,p.14).

Temos razões para acreditar que os princípios e as práticas religiosascontribuemparamodosdevidamoralmenteadmiráveis.“Oargumentoemproldeumdireitonãopodeser totalmentedesligadodeumjuízosubstantivoacercadovalormoraldapráticaqueessedireitosepropõeaproteger”(SANDEL,2005,p. 15). Portanto, não basta a referência a princípios universalistas abstratos.Areferênciaaumaconcepçãodobeméessencialparaoraciocínioprático:semela,

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oraciocíniomoralepolíticoéindeterminadoenãoforneceumguiaparaoquedevemosfazer.

Mas, como formar um juízo moral substantivo acerca dos objetivospromovidos pelos direitos? Como fazer nos casos em que a pessoa sente-seconstituídapordiferentescontextoscomunitários(família,povoado,classe,tribo,naçãoetc.)que,comosabemos,impõemlealdadeseobrigaçõesconflitanteseporvezesnãoconciliáveis?Ofórumprivilegiadopararesolveressesconflitos,dizemoscomunitaristas,nãoéa consciência individual,mas, sim, a esferapúblicadeparticipaçãoededeliberaçãodemocrática.Consequentemente,oscomunitaristasapontam para a necessidade de uma ampliação do ideal da razão pública emdireção a ummodelo republicano de deliberação política, no qual a formaçãodialógicaereflexivadojuízoéocritériodelegitimaçãodasnormasmoraisedosvaloreséticosquedevemregularavidaemcomum.Ocontextoda justificaçãodeve ser o das avaliaçõesfortes sobreavidaboa,oquenãoexcluiumamplousopúblicodarazão.

Enquanto o Liberalismo entende primordialmente a cidadania como umarelação entre pessoas privadas com um status jurídico de liberdades subjetivasigualmente asseguradas, o comunitarismo caracteriza a cidadania como umarelaçãoconstituídaeticamenteepordeterminadasvirtudesorientadasparaobemcomum. Consequentemente, enquanto a posição comunitarista compreende aintegração política e social como a produção de uma ordem social a partir devaloresético-culturaiscompartilhados,quevinculamaidentidadedossujeitoseaidentidadedacomunidadepolítica,aposiçãoliberalassumeapenaspressupostosmínimossobreaunidadesocial,contentando-seemexplicá-lacomocooperaçãopormeiodeprincípiosprocedimentais,devalorespolíticosneutrosedaafirmaçãorecíproca de direitos fundamentais. Em suma, para os comunitaristas, acomunidade política é entendida como uma comunidade ética integrada naautocompreensãoculturalquevinculaasidentidadespessoaiseapráxisculturalda identidadecomunitária,àsvezesentendidacomounidadepré-política,outrasvezes como unidade construída na participação política. Para os liberais, acomunidadepolíticaéentendidacomocooperaçãosocialqueseconstituiapartirdeumapluralidadedesujeitoscomdireitosindividuaisepretensõesrecíprocas–nocerne,comocomunidadejurídica(FORST,2010).

Nãoobstanteessasdiferenças,ambosentendemalegitimaçãopolíticaapartirdoideáriodemocrático,istoé,segundoaideiadeumarazãopúblicaqueprocuralevaremcontaacircunstânciadequeasdimensõesacimanão são rigidamenteopostas,mascomplementares.Oqueacríticacomunitaristacolocaemdúvidaéa

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prioridade que liberais atribuem aos princípios de justiça (e seu engessamentonum conjunto de direitos e liberdades fundamentais) em detrimento dasavaliaçõesfortessobreavidadignadacomunidadedevalores.Segundoacríticacomunitarista, não se trata então de negar a importância da linguagem dosdireitos, mas de criticar os limites em que a moralidade liberal a situou. Alinguagemdosdireitoseocontextode justificaçãodevemsercompreendidosapartir do mapa moral fornecido pela autocompreensão cultural da identidademoderna,queseriamuitomaisricoediversificadodoquesupõeoLiberalismo.Nesse sentido, o Liberalismo é uma ética da inarticulação, para usar umaexpressão de Taylor, que leva a um estreitamento do âmbito da razão práticamoderna, restringindo-a às questões da justiça ou do dever ser, suprimindo asquestõesdavidaboa,doquetornaavidaplena,daautocompreensãoéticaedaautenticidade de cada indivíduo e comunidade. Nesse sentido, a justiça liberalacabaporsobrevalorizarapenasumadimensão–adaautonomiadosindivíduos–daquiloquepertenceaoconjuntomaisamplodaculturamodernadaliberdade.Eesseestreitamentodoâmbitodamoralidadeedaliberdadeteriacomoresultadooempobrecimentodossujeitosedavidasocial.

Vale repetir, não se trata de trazer o plano das avaliações fortes dosindivíduos e das comunidades numa relação de concorrência com o plano dosprocedimentos e direitos individuais fundamentais. A questão é como melhorreconciliarasduasdimensões.Paraoscomunitaristas,oproblemafundamentaldarazão prática é encontrar um conjunto de formas de reconhecimento recíprocoquepossibilitema realização amplada liberdade (comoautonomia individual eautorrealização pessoal) e da igualdade complexa.E, como tal, trata-se devercomo os direitos individuais fundamentais e a estrutura básica da sociedademelhorpodemrefletiraautocompreensãoético-culturaldaspessoasquenelesseidentificamecomelesregulamsuaconvivênciacomum.Àfilosofiapráticacabemostrar como isso é possível, e apontar para fenômenos que exigem umarearticulação entre o universalismo dos direitos individuais fundamentais e oparticularismodaautocompreensãodacomunidadedevalores.

10.3.Observaçõesfinais:oLiberalismopolíticodeRawlscomorespostaàcríticacomunitarista

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No Liberalismopolítico,podemosencontrarumareaçãodeRawlsaodebatedosliberaisecomunistaristas.Rawlsdenominaasuaconcepçãodejustiçacomoequidade não mais como uma teoria moral da justiça, embora ainda tenhafundamentos morais.Agora, a justiça como equidade é situada no interior doLiberalismopolítico,qualificando-acomoumaconcepçãopúblicaepolíticadajustiça.Aescolhadestestermosnãoéarbitrária.Elatemopropósitodedistanciaro Liberalismo político de outras versões da moralidade política liberal, tantoclássicas (comoosLiberalismos éticos deMill eKant) quanto contemporâneas(como o Liberalismo perfeccionista de Raz e o Liberalismo igualitarista deDworkin);detentarcorrigiralgunsproblemasinternosàjustiçacomoequidade:osuposto déficit de realidade da descrição das condições de estabilidade de umasociedade bemordenada e a não separação entre a justiça como equidade e asdemais doutrinas morais abrangentes;7 e de defender sua teoria das objeçõescomunitaristas de que a justiça como equidade permanece cega diante dasparticularidades das pessoas e da diversidade de formas de vida culturais, dosvalores, da tradição e do bem comum da eticidade democrática realmenteexistente.

Para fazer frente a essas objeções, Rawls insiste na defesa das principaisideias da moralidade política liberal. A despeito das modificações, Rawlscontinua a identificar a primazia da justiça diante do bemcomume o valor daneutralidade do Estado diante de concepções do bem distintas como os traçosessenciais de uma concepção política da justiça. Essa é a única maneira de,segundoRawls,organizaraconvivênciapolíticajustaeestáveldesociedadesnasquaisoscidadãosestãoprofundamentedivididospordoutrinasmorais,religiosase filosóficas razoáveis, embora incompatíveis. O pluralismo razoável, comocaracterísticapermanentedaculturapolíticapúblicademocrática,seconvertenopanodefundoquejustificaaapostananeutralidade.Mastrata-sedeumaapostaqueserestringeaocampodopolítico,sem,contudo,excluiraspretensõesmoraisda teoria.8O desafio que se coloca para uma concepção política e pública dajustiça,comoadeRawls,éodeencontrarumabasecomumdejustificaçãoentredoutrinas abrangentes razoáveis, que preencha, ao mesmo tempo, tanto ascondições de aceitabilidade racional quanto as condições de aceitação fática.Nessesentido,porumlado,abasecomumdejustificaçãopúblicaedeformaçãodoacordosobrequestõespolíticasfundamentaisdeveserbuscada maisalémdasdiversas concepções do bem; por outro lado, somente podemos fazê-lo a partirdedentrodasprópriasconcepçõesdobem,umavezqueoscidadãosnãoestão

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dispostos a renunciar facilmente às concepções de vida boa configuradoras desuas identidadeseformasdevidacultural.Nessascircunstâncias,umateoriadajustiça conseguirá apresentar princípios que possam ser compartilhados peloscidadãos como um fundamento comum de acordo político à medida queconseguiralcançarum pontodeequilíbrioentreasexigênciasdeuniversalidade–aquiloque todosestariamdispostosaaceitar–easexigênciasparticularesdecadaconcepçãoabrangentedobem.Essaéaideiaqueestánocernedoconceitode overlappingconsensus:umacordorazoávelemtornodeprincípiosdejustiçaevalorespolíticoscomosquaisoscidadãospodemseidentificar,masporrazõesdiferentesemantendosuasdiferençasdecrençaseestilosdevida.

Para preencher as exigências do contexto de justificação colocado pelopluralismo das sociedadesmodernas, Rawls introduz algumasmodificações naformadeinterpretarajustiçacomoequidade.Apesardemanteraduplaestratégiade justificação introduzida em Uma teoria da justiça, o artifício derepresentação da posição original de deliberação sob o véu de ignorância e orecursoaométododo equilíbrioreflexivo,nasúltimasformulaçõesdesuateoriaRawlsse inclinamaisfavoravelmenteparaométododoequilíbrioreflexivoeajustificaçãopública(ouousopúblicodarazão)comoinstânciasprivilegiadasdefundamentação de seus princípios de justiça. Como resultado, os princípios dajustiçapassamaserpreferencialmente justificadosapartirdeuma razãopráticaque reconstrói as intuições morais mais profundas e os ideais normativos daeticidade política presentes na cultura política pública e nas instituições dasdemocraciasconstitucionaismodernas,equeapostanacapacidadedeoscidadãosencontrarem,medianteaformaçãopúblicadojuízo,umpontodeequilíbrioentreosprincípiosdejustiçaeessesideais.Nessaperspectiva,háumenfraquecimentodaestratégiadejustificaçãodotipo transcendentaloukantiana,predominantenaTeoriadajustiça, fundamentadana representaçãoprocedimental enoconceitointersubjetivodeautonomiapessoal,enoconceitodepessoamoral,presentesnaposiçãooriginal, em favor do fortalecimentodeuma estratégia quepoderíamosqualificar de reconstrutivismo hegeliano, ou pragmático, fundamentada nosajustes e reajustes do método de equilíbrio reflexivo entre juízos particulares,princípios de justiça e ideais implícitos na eticidade concreta das sociedadesdedemocraciaconstitucional.9

É preciso notar que se trata de certa tensão na teoria de Rawls, e não doabandonounilateraldeumaestratégiadejustificaçãoafavordeoutra.Aindaquea distinção não seja muito clara, Rawls mantém a pretensão de aceitabilidade

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racionaldosprincípiosaoladodapretensãodesuaaceitaçãofática.Issoporqueoacordosobreprincípiosdejustiçanãoseconcebecomoummero modusvivendientre as diferentes doutrinas abrangentes, como se fosse o produto de umanegociaçãooucompromissoentreelas.Aconcepçãopúblicaepolíticadajustiçaécertamentenãometafísica,mascontinuasendoumaconcepçãomoral.Portanto,deve ser reconhecida e aceita por motivos morais – e não apenas racionais-estratégicos – derivados do uso público da razão. Nessa perspectiva, todoprincípio,normaouvalorqueaspiraaumavalidadegeraldevemsubmeter-seàprova da intersubjetividade: a força vinculante deve se apoiar em razões quetodospoderiamaceitarou,pelomenos,ninguémpoderiarazoavelmenterejeitar.Nesse sentido, para Rawls, a razão prática está, por assim dizer, inscrita nopróprio espaço público de seu uso. O que confere objetividade às convicçõespolíticaséaperspectivacompartilhadadousopúblicodarazão.Oprocedimentodousopúblicodarazãoéa instânciaprivilegiadaparaasseguraravalidadedasafirmaçõesnormativas,bemcomoparagerarasuaaceitação.Mantém-se,assim,o duplomovimento de justificação: a concepção de justiça deve ser aceita nãoapenasporseraquelaque,apóso juízobemponderadonareflexãopública,oscidadãos defatocompartilhamnassociedadesdemocráticas,mas,também,comoaquelaqueoscidadãos devemaceitaraopretenderemrealizaroidealpolíticodaautodeterminação e autogovernar-se de forma justa e democrática. Assim, areconstrução, que Rawls propõe, das intuições morais e ideias intuitivas, queestão subjacentes aos princípios de justiça, não tem apenas umvalor descritivoparaaculturademocráticaliberal,mastem,também,umapretensãouniversalista,derivada da própria razão prática. Se não fosse assim, como a teoria da justiçapoderia exercer sua função crítica, não se limitando a ser uma sistematizaçãoracionalideológicadoquejáexiste?

Éevidentequeessa tensãonoprocedimentode justificaçãoabreosflancosparadiversascríticasemal-entendidosacercadateoriadeRawls.Qualé,afinal,ocritério de razoabilidade da razão pública: a posição original ou o método doequilíbrioreflexivo?Quaisos limitesdaapresentaçãoediscussãodasdiferentesconcepçõesdobem?Ousopúblicodarazãosomenteintervémumavezqueosprincípiosdejustiçajátenhamsidopropostosouescolhidosnaposiçãooriginal,cabendoaoscidadãosreferir-seaelesnaformaçãodojuízopolíticoediscutirsuaaplicação adequada, ou a razão pública funciona também como contexto dedescoberta das razões que justificam os próprios princípios de justiça? Seescolhermosaprimeiraopção,aconstruçãodopontodevistamoralimparcial(aposiçãooriginal) determinaajustiçadosresultadosdasdeliberaçõespúblicas:a

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argumentaçãomoraléindependentedasdeliberaçõespolíticas.Aquestãoaquiésaber, então, qual o espaço ao debate de questões éticas de avaliação forte emuma esfera pública sujeita às restrições damoral. Se optarmos pela segunda, arazãopúblicadesempenhaumpapelmaisdinâmicoeinclusivo,promovendoumaponderação reflexiva e crítica entre a argumentação moral e as deliberaçõesético-políticas.Neste último sentido, a justificação reflete as condições, sempreobscuraseimperfeitas,dadeliberaçãopúblicaemumasociedadedemocrática.Oriscoaquiéodeseperderadimensãodaaceitabilidaderacionalnotorvelinhodasdeliberaçõespolíticas,perpassadasporconflitosdeinteresseserelaçõesdepoder.Essa tensão na teoria de Rawls parece-nos ser um dos traços permanentes deteoriasquenãoseresignamaseremumamerasistematizaçãodoqueévigenteebuscamoferecerumpadrãocrítico-normativoparaorientarastransformaçõesdosprocessospolíticosedasprincipaisinstituiçõesdaestruturabásicadasociedade.Vale dizer, um padrão que é simultaneamente imanente e transcendente aocontexto das sociedades modernas. E cada vez mais autores liberais ecomunitaristas procuram refinar seus argumentos (afinal, o debate ainda semantémemaberto)paradarumarespostarazoávelparaaquestãodajustiçanumasociedade democrática marcada pela crescente complexidade social, pelapluralidade de estilos de vida e formas de vida culturais e por profundasdesigualdadesderendaeriqueza.

BibliografiaDEVITA,Á. Ajustiça igualitáriaeseuscríticos. SãoPaulo:Ed.Unesp,

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manualdefilosofiapolítica.TraduçãodeAlonsoReisFreire.SãoPaulo:MartinsFontes,2008.

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Créditosdasimagens–Rapho-Gamma/GettyImages–ArtArchive/OtherImages–PaulKlee

1.Porexemplo,osideaisdeliberdadeindividual,igualdadepolítica,atolerância,asvirtudesdademocraciaedo império da lei são centrais na moralidade política liberal, mas adquirem sentidos diferentes em cadafilósofo, e por vezes conflitantes, gerando dúvidas se de fato podemos dar uma definição unívoca doLiberalismo(RYAN,2001;DWORKIN,2001).

2.Sobreessedebate,hábonslivrosemportuguês(algunstraduzidos)quefazemumaboareconstruçãododebateoude alguns temasdesenvolvidosnele.Cf.FORST (2010),KYMLICKA (2006),VANPARIJS(1997),DEVITA(2000,2008),GARGARELLA(2008).

3.Oconceitodeestruturabásicaé,comoreconheceopróprioRawls,umtantovago.Nemsempreficaclaroquaisinstituiçõesouquaisdesuascaracterísticasdeveriamserincluídas.Numadefiniçãoaproximada,Rawlsentende por instituições mais importantes “a constituição política e os principais arranjos econômicos esociais. A proteção legal da liberdade de pensamento e de consciência, os mercados competitivos, apropriedadeparticularnoâmbitodosmeiosdeproduçãoeafamíliamonogâmicaconstituemexemplosdasinstituiçõessociaismaisimportantes”(RAWLS,2008,p.8).

4. Essas questões referem-se aos “elementos constitucionais essenciais” (os princípios fundamentais que

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especificamaestruturageraldoEstadoedoprocessopolítico;asprerrogativasdolegislativo,doexecutivoedojudiciário;oalcancedaregradamaioria;osdireitoseliberdadesfundamentaiseiguaisdecidadaniaqueasmaiorias legislativas devem respeitar, tais como o direito ao voto e à participação política, a liberdade deconsciência, a liberdade de pensamento e de associação, assim como as garantias do rule of law) e “àsquestõesdejustiçabásica”(adistribuiçãodosbenssociaisbásicos).

5. “Entre as características essenciais dessa situação está o fato de que ninguém conhece seu lugar nasociedade, sua classe ou seu status social; e ninguém conhece sua sorte na distribuição de dotes ehabilidadesnaturais, sua inteligência, força e coisas semelhantes.Presumirei atémesmoqueaspartesnãoconhecemsuasconcepçõesdobemnemsuaspropensõespsicológicasespeciais”(RAWLS,2008,p.14-15).

6. Esse, por exemplo, é o caso de Charles Taylor. Não obstante se declare explicitamente favorável àsproposições antropológicas e normativas do comunitarismo, Taylor (2000) vê certa confusão no debateliberaisecomunitaristaseformulaumainterpretaçãomuitopeculiardocomunitarismo,dandomotivosparasuspeitardaprofundidadedessaadesão.

7.VeraintroduçãodeRawls(2000).

8.Odomíniodopolíticorefere-setantoaoobjetodateoriadajustiça–aestruturabásicadasociedade–,àsquestões–os fundamentosconstitucionaiseasquestõesde justiçabásica–eaomodode justificação–ateoriarestringe-seaosvalorespolítico-morais,emoposiçãoàmetafísicaeaosprincípiosverdadeiros.

9. São vários os textos de Rawls que ilustram essa sua guinada hegeliano-pragmatista. Mas o maissignificativo parece-nos ser “Justiça como equidade: uma concepção política, não metafísica” (RAWLS,1992),originalmentepublicadoem1980.

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TeoriasContemporâneasdaDemocraciaEntrerealismopolíticoeconcepçõesnormativas

RúrionMeloIntrodução

Bibliografia

IntroduçãoConsiderar democrático um regime político significa entendê-lo como uma

forma ideal de governo em que o povo governa.A realização desse ideal doautogoverno,contudo,dependedeumasériedecondiçõespolíticasefetivasquenosremeteàmacroestruturainstitucionaldasdiversasDemocraciasexistentes.Ateoria e a prática democráticas, seja relacionadas ao cotidiano de nossa vidapolítica ou às rigorosas teorias que as analisam, exprimem uma tensãoconstitutivaentreaDemocraciaidealeaDemocraciareal.PensaraDemocraciaimplica uma tarefa de articulação entre intuições normativas e observaçõesempíricas,etalarticulaçãoéextremamenteintrincadaesuscitaquestõescentraispara o pensamento político contemporâneo. As instituições de Democraciasrealmenteexistentestêmalgoemcomumcomosideaisdesoberaniapopularede

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autonomia política? Em que sentido se pode afirmar que tais instituições sãolegítimas?As concepções normativas de Democracia se encontram ligadas dealgummodocomaspráticasempíricas?Ambasasperspectivas,aidealeareal,permitem corroborar a afirmação de que aDemocracia parece legitimar a vidapolíticamoderna.

A despeito do recente comprometimento geral em relação à Democracia,quandosetratadejustificarracionalmenteosregimesconsideradosdemocráticos– o que equivaleria a apresentar uma justificação racional para as críticaslevantadasaregimesnãodemocráticos–odebatecontemporâneo,marcadoporperspectivas concorrentes, não oferece respostas triviais. Recorreremos a duasposições distintas, embora igualmente complementares, para compor nossaexposição das principais concepções contemporâneas e suas respectivasjustificações sobre os sentidos daDemocracia.Mostrarei neste capítulo que osteóricosdaDemocracia se colocaramem relaçãode oposição ao apresentaremargumentos realistas ou normativos: com os primeiros, sublinharam-se ascaracterísticascomplexasepluraisdeDemocraciasreais,acompetiçãodaselitespelo poder, o sistema político-administrativo do Estado e o primado doautointeresse na descrição do jogo político; com os últimos, reforçaram-se osprocedimentosdemocráticosparaas tomadasdedecisãocoletiva,aparticipaçãopolítica, os processos de formação da opinião e da vontade e a deliberaçãopúblicaentreoscidadãos.Alémdeabordarintrodutoriamenteessaoposição,estecapítulotemointuitodemostrartambémqueambasasconcepçõesseencontramem relação complementar: os realistas nunca abdicaram de atribuir umajustificaçãoracionalàsinstituiçõesdemocráticaseavaliá-laspositivamentediantede regimes autoritários; as concepções normativas, por sua vez, procuraramexplicitar aquilo que os realistas apenas pressupuseram de forma implícita, ouseja,apontaramfagulhasdeumarazãoexistentenasprópriaspráticaseprocessospolíticosdescritosempiricamente.

11.1.ElitismodemocráticoA distinção contemporânea entre uma abordagem realista da política e

concepções normativas surge do interior do próprio discurso das teoriassociológicas daDemocracia.As ficções ouos mitosdascorrentesclássicasdafilosofia política foram combatidos pelos realistas paralelamente às suasdescrições empíricas dos processos políticos efetivos, levando muitas vezes a

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conclusões inesperadas em relação às representações mais comumente aceitassobrecomodeveriaserumgovernodemocrático.Poisnãosóahistóriadasideiascomo também alguns acontecimentos históricos marcantes – tais como asRevoluçõesAmericana e Francesa – definiram a autocompreensão política dassociedades modernas de maneira decisiva como um espaço republicano deautogoverno dos cidadãos do Estado. Para todos aqueles que orientaram suasexpectativas teóricas e práticas norteados por tais acontecimentos e ideais, odesenvolvimento político progressivo dos regimes de governo democráticospoderia acabar em algummomento realizando os aspectos mais desejáveis domodelo democrático e da cidadania ativa, tais como o do bem comum, dasoberaniapopularedaparticipaçãodireta.Naverdade,apretensãodeaceitaçãouniversal do modelo do autogoverno pareceu altamente plausível mesmo paraaqueles desconfiados diante das utopias democráticas, umavez que associaramtais caracterizações normativas gerais à questão fundamental do caráterdemocrático do exercício da autoridade e da legitimidade do poder (HELD,2006).

Avisãopartilhadapormuitosdaquelesrealistasquesededicaramaoestudoda Democracia no século XX levou a conclusões diversas (por vezespessimistas)sobreaplausibilidadedeseencontrarefetivadososclássicosideaisdemocráticos. Max Weber e Joseph Schumpeter, dois dos autores maisrepresentativos dessa corrente, ofereceram análises das Democraciascontemporâneasemqueaparticipaçãodemocráticaeoidealdasoberaniapopularderamlugaraosmecanismosinstitucionaisformaiseaprocessosdeconcorrênciapelopoder.Aperspectivado realismopolíticoestáancoradanodiagnósticomaisamplodeumamodernidadepolítica caracterizadapela existênciade sociedadesaltamente complexas e pluralistas. Sociedades complexas (compostas por umEstado burocratizado, por uma economia demercado desenvolvida e por umasociedade civil fragmentada em grupos de interesse) possuem um alto grau dediferenciação funcional que acompanha a racionalização do direito, aconcentração das empresas e a extensão da intervenção estatal sobre os maisdiversosâmbitosdaatividadehumana.Sociedades plurais,quenãocontammaiscomumaeticidade tradicionalecomum,são regidasporumamultiplicidadedevaloresedeinteressesquenamaiorpartedasvezessãoirreconciliáveisentresieensejam uma individuação cada vez mais radical de formas de vida: cadaindivíduo assume radicalmente a responsabilidade de avaliar os valores queorientarãosuasdecisões(WEBER,2008).

É importante notar que, embora Weber e Schumpeter tenham adotado o

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realismopolíticocomopressupostometodológicodesuasanálises,seriaumerroafirmar que eles se limitaram a uma descrição normativamente neutra dofuncionamentodosistemapolítico.Cadaumdosautoresnosofereceferramentasteóricascomasquaispodemosdistinguirregimesautoritárioseantidemocráticosdaqueles legítimos e democráticos. Curiosamente, o realismo político semprepretendeu ser mais coerente do que as concepções normativas na suapreocupaçãoemapresentarjustificaçõesracionaisplausíveisparaumadefesadaDemocracia. Se a racionalização do Estado moderno, como veremos, impõelimites aos ideais igualitáriosda liberdadepolítica– ideais considerados vagos,segundo o vocabulário realista –, aspectos institucionais das Democraciasexistentes ainda assim possibilitam uma justificação do governo democráticosegundodefiniçõesmínimas, tais como amanutenção de eleições periódicas, oprincípio da maioria e procedimentos de tomadas de decisão razoavelmenteconsensuais. Para tais autores, o núcleo liberal instaurado nos mecanismos defuncionamentodo sistemapolítico épassívelde justificaçãoporquepromoveriaprocedimentalmente a pluralização dos valores e a organização democrática daconcorrência entre os grupos de interesse, fomentando, assim, o princípio daliberdadedeescolhasobascondiçõesdeummundoracionalizado.

Porém,longedeassumirosideaisdemocráticosdasdoutrinasclássicas,elesmostraramtambémqueosprocessospolíticosmodernoscontradizemoprincípioda soberania popular. Primeiramente porque, seguindo a posição deWeber, ocampo do político a que se restringe a perspectiva realista compreendeu asociedadepolíticacentradanafiguraprivilegiadado Estado.Eemvezdedefini-lo,comoofizerammuitasdascorrentesjurídico-políticasmodernas,procurandoentendersuafinalidadecombaseemconceitosnormativamentecarregados(bemcomum, vontade geral, autonomia pública etc.), Weber preferiu entendê-losegundo os meios empregados para estabelecê-lo: o Estado não é senão umagrupamento político que “reivindica o monopólio do uso legítimo da forçafísica” (WEBER, 2005, p. 56), passando a ser a única fonte de direito àviolência. O objetivo daqueles que participam da política, considerando taldefinição,consistirábasicamentenoesforçodeconquistadopoderdessa figuraquedetémousolegítimodaforça.Poressarazão,“todohomemqueseentregaàpolíticaaspiraaopoder”(WEBER,2005,p.57),poisa lutadosgrupossociaispara influenciar a divisão de poder do Estado se caracteriza pela relação dedominaçãodohomemsobreohomemfundadanaviolênciaconsideradalegítima.E a existência do Estado simplesmente estaria comprometida se homensdominadosnãosesubmetessemàautoridadedosdominadores.

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Uma das teses fortes de Weber consiste em entender que a dominaçãoorganizada necessitou de um poder administrativo altamente racionalizado. Aafirmaçãodaautoridadenaconduçãodavidapolíticade sociedadescomplexaspassoupara asmãosde políticosprofissionais, funcionários e especialistas queadministram o aparato burocrático do Estado. Os interesses coletivos dacomunidade política ficam restritos, assim, às condições de competição políticapelo poder administrativo, de sorte que o objetivo de assegurar o ideal dasoberania popular é desmentido pelo modo como o poder administrativo setransformanum fimemsimesmo.Destarte, aorganizaçãodavidapolítica ficafadada a uma crescente burocratização e à centralização administrativa. EssaredefiniçãorealistadaDemocracia–queacabaadotandoumaseparaçãoentreoconjunto de cidadãos comuns (o povo) e o primado da lógica do poderadministrativo (o Estado racional) – assumirá o diagnóstico inevitavelmentepessimistadeumaascendentedominaçãodaburocracia.

Schumpeterlevaadianteimportantesaspectosdaposiçãoweberianasobreacomplexidadesocialeopluralismoparacombateroquechamade duasgrandesficções da clássica doutrina democrática. A primeira ficção é aquela do bemcomum,ouseja,aconcepçãodeDemocraciadeacordocomaqualafinalidadedogovernodemocráticoconsistirianarealizaçãodosinteressesevalorescomunsde uma comunidade política. As decisões consideradas democraticamentelegítimasseriamaquelasancoradasnavontadecomumdopovo,pressupondo-seque “todo o povo pudesse concordar ou ser levado a concordar por força deargumentos racionais” (SCHUMPETER,1975,p.251).Contudo,essa imagemde um corpo político unificado contradiz abertamente o diagnóstico de umasociedadepluralista.Aspessoaspossuemantesdiferentesvontades e sustentamdiferentes valores. Como saber se uma decisão política de fato realiza o bemcomum de toda a sociedade (seus desejos, interesses e valores) quando, porexemplo, enfrentamos problemas concretos de política pública? Aplicamosnossos recursos para sanar as necessidades de transportes, saúde ou educação?Com base em quais valores últimos ou valores políticos comuns podemosorientarumadecisãoigualmenteválidaatodos?

Asegundaficção,porsuavez,encontra-sejá implicadanaprimeira.Aoseapoiar na ideia de uma vontade comum, o modelo clássico está pressupondotambémavontadede indivíduosracionais.OataquedeSchumpeterà vontadedopovoestáligadoaoseuceticismoquantoàpossibilidadedequeopovosejadefatocompostoporindivíduoscapazesdeconduzirejustificarsuasaçõesdemodoautônomoeracional.Aficçãodosindivíduosracionaisfoidesmentidaapartirde

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estudossobreamassificaçãourbanaeporinvestigaçõesdepsicologiasocialquese dedicaram a compreender a lógica do comportamento de indivíduosmassificados.Taisestudos,voltadosoriginalmenteparaadinâmicadomercado,apontaram a fragilidade dos consumidores diante das manipulações exercidaspelas intervenções publicitárias. A suscetibilidade dos indivíduos perante asinvestidas mercadológicas serviria para exemplificar o comportamento doscidadãosperantepartidospolíticosegovernos.Oscasosmaisextremos,contraosquais se dirige essa análise schumpeteriana, são os dos regimes totalitários(Nazismo, Fascismo, Comunismo) sustentados por discursos ideológicos queconquistaram a lealdade irrefletida dasmassas.Não reconhecer que o discursosobre a “vontade do povo” pode ser resultado de uma manipulaçãoideologicamenteorientadasignificacolocaremperigoaprópriaDemocracia.

Estamos vendo que, segundo Schumpeter, uma autodeterminação políticapela totalidade dos cidadãos estaria fundada não apenas em bases altamenteirrealistas, mas também perigosas. No entanto, se há um enfraquecimentonormativosubstancialnessaconcepçãodemocráticarealista,dequemodoaindaépossível, como pretende Schumpeter, avaliar a justificação racional daDemocracia? Encontramos ao menos duas respostas significativas a essapergunta.

AprimeirarespostaconsisteempensaraDemocraciacomoum métododeseleção e reduzi-la a um procedimento minimalista. A utopia daautodeterminação pública se restringiria aos procedimentos formais deorganizaçãodacompetiçãoentreospartidosegovernoseselimitariaaosmerosarranjos institucionais que regulam as decisões políticas. A Democracia éentendidaassimcomo“oarranjoinstitucionalparachegaradecisõescoletivasemquecertosindivíduosadquirem,pormeiodeumadisputacompetitivapelovotopopular,opoderdedecidir”(schumpeter,1975,p.269).PensarnaDemocraciacomo método significa basicamente limitar o princípio de justificação aoprocedimento de seleção de governantes pretensamente capacitados. Pois adefinição da qual devemos partir para compreender a Democracia éextremamente simples e se resume ao seguinte: “a Democracia significasimplesmente que o povo tem a oportunidade de aceitar ou recusar os homensque os governam” (schumpeter, 1975, p. 284-285). Isso significa que osprocedimentosqueregulamojogopolítico-democráticoorganizamacompetiçãoentreelitespolíticaspelo votodoscidadãos,eoúnicomecanismoracionalmentejustificáveldeparticipaçãoaqueoscidadãostêmrealacessoéovoto.Devidoàirracionalidadedasmassaseàimpossibilidadedeobterconsensosracionaisentre

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indivíduos autointeressados, a participação política não poderia ir além domomento da escolha das elites políticas. Por essa razão, a ideia central efortemente influente da investigação schumpeteriana consistiu no modo comolíderes e eleitores se comportam e se influenciam reciprocamente, ou seja, nométododeseleção.

Manifestação:caras-pintadasnaavenidaPaulista,emSãoPaulo,pedemo impeachmentdoentãopresidenteFernandoCollordeMello.25-8-1992.

A segunda resposta confere consequentemente o ônus da racionalidadepolítica–emoposiçãoàirracionalidadedasmassas–aosmembrosdaselitesnospartidosecargospúblicos.Substitui-seaquiaquelesentidodotermoDemocraciaque significa literalmente o governodopovo, e que namaior parte das vezesorientou os modelos filosóficos clássicos, pelo novo sentido atribuído pelainterpretação realista, a saber, o “governo dos políticos” (schumpeter, 1975, p.285). Se somente as elites são portadoras da racionalidade inscrita nasDemocracias realmente existentes, então é nas mãos dos especialistas que acondução da vida política precisa ser colocada. Cunhou-se nesse contexto otermo elitismodemocráticoparacaracterizarjustamenteaprioridadeatribuídaàselites políticas e líderes de partidos e governos para o real funcionamento e

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estabilidade da Democracia. O cerne procedimental a ser mantido preservaexatamente a competição eleitoral levada a cabo pelas elites para que estaspossam exercer seu poder e, evidentemente, almejar seu principal objetivo queconsisteemconquistarumapossívelreeleição.

O elitismo expurga do referencial político-democrático a orientaçãorepublicanaclássicaemquetodososcidadãosdevemparticiparecomporavidapública. Cidadãos comuns não estão capacitados para conduzir a comunidadepolítica porque a condução efetiva da vida pública requer um complexoconhecimento das regras, instituições e funcionamentos necessários para aadministração política da sociedade. A vocação política para administrar oaparelhoburocráticodoEstadonãorequernenhumtipodevirtudecívicaoualgoparecido.OelitistaconcebeantesaDemocraciacomouma tecnocracia,ouseja,pressupõe burocratas independentes e especialistas tecnicamente bemcapacitados. As práticas administrativas estão nas mãos de grupos de líderespolíticosquesãocompetentesparatomardecisõeseintervirnosproblemas reaisdapolítica.

Schumpeteranalisa,assim,traçoscaracterísticosdassociedadesdemocráticasliberaistípicasdoOcidentecapitalistaqueorientaramgrandepartedosestudosdateoriapolítica contemporânea: a competiçãoentrepartidosporpoderpolítico; afunção das burocracias estatais; o papel das lideranças políticas; o primado datecnocracianas tomadasdedecisãoquecompetemaosespecialistas.Oelitismodemocrático estabelece um solo comum a partir do qual abordagens realistas ediscussõesnormativasdafilosofiapolíticacontemporâneapassarãoadisputarossentidosdaDemocracia:paraosprópriosrealistas,faltariaexplicitaragênesedoconceito de racionalidade atribuído aos procedimentos minimalistas queasseguramaconcorrência;paraosquelançammãodeconcepçõesnormativas,ospressupostos racionais que justificam a concorrência não teriam sidoadequadamentefundamentadosnoquadrodorealismopolíticoemgeral,eemsuaversão do elitismo democrático em particular. No final das contas, ambas ascríticas nos levariam à conclusão de que Weber e Schumpeter parecem“incapazesdeconciliarorealismodométododemocráticoporelespropostocomoapelonormativodaideiadaDemocracia”(AVRITZER,1996,p.109).Ateoriarealistaprecisariaesclarecerospressupostosnormativosqueestãodealgummodoapoiando a defesa do pluralismo e das regras do jogo democrático: o elitismoenxuga o pluralismo diagnosticado e também deixa de esclarecer por que aspolíticasdaselitesprecisamsatisfazeros interessesquenãosãoosdasprópriaselites.Mesmoqueoelitismodemocráticojustifiqueaincompatibilidadedoideal

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do autogoverno a partir do poder administrativo e da pluralidade de valores eorientações individuais de vida, omodelo não assume a justificação normativadosprocedimentosdemocráticosqueprocuroudefendercontraoutrasformasnãodemocráticasdegoverno.

11.2.TeoriaeconômicadademocraciaUma estratégia alternativa de fundamentação teórica da concepção elitista

surgidanoperíododopós-guerrafoidesenvolvidaporAnthonyDownsemseulivro Uma teoria econômica da democracia. Downs pretendeu responder aoseguinte dilema encontrado em Schumpeter: como compatibilizar osprocedimentos racionais do revezamento das elites no poder com ocomportamento considerado irracional dos eleitores? Não deveríamos antesidentificaraideiaderacionalidadecomaqueladeindivíduosracionaiscapazesdemaximizar os benefícios que retiram do sistema político? Para resolver aspretensões da teoria democrática schumpeteriana, Downs complementou oelitismodemocráticocomumateoriadaracionalidadeindividualporqueentendeuque faltavaàmetodologiado realismopolíticopressupor indivíduoscapazesdeescolher racionalmentediantedealternativasdiversas,deavaliar reflexivamentetais alternativas e hierarquizá-las ao optarempor opções consideradasmelhoresnumcontextodeterminado.Casocontrário,aconcorrênciaentrepartidoseelitespelo poder, cuja institucionalização resguardaria o único núcleo defensável daDemocracia em sociedades complexas e pluralistas, não poderia serracionalmentejustificávelnostermosdorealismopolítico.

Com base em um individualismometodológico, o conteúdo normativo daDemocracia se dirige para o comportamento racional dos participantes doprocesso democrático em torno do voto e de tomadas de decisão. Pretende-seexplicar com tal metodologia sistemas macrossociais (o mercado, o Estado, odireito etc.), porém, a explicação do funcionamento de todos esses sistemassociaisdependedoesclarecimentoedasaçõesdosatoresindividuaiscapazesdeproduzirsentido.Emqualquerumdessescontextos,pretende-seexplicarasaçõesem termos de crenças e desejos individuais, de informações e preferências(ELSTER,1982).Oquesenotanessaabordageméqueosindivíduosnãofazemescolhasmeramentealeatóriasdedeterminadosfins,mas,sim,quesecomportamcomo agentes racionais em um sentido bem específico, a saber, sãomaximizadoresdeutilidade.ParaDowns,oteóricoprecisapressuporoprimado

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deuma racionalidadeconscienteporpartedosagentespara“calcularaviamaisracionalpossívelparaqueoagentedecisórioalcanceseusobjetivos”e“assumirque de fato essa via foi escolhida porque o agente decisório é racional”(DOWNS,1957,p.4).

Um dos conceitos centrais para a compreensão da escolha racional dosagentes é o de otimização, entendido aqui comomaximização da utilidade ouminimizaçãodecustos.Podemosmediraracionalidadedaescolhadeumagenteao percebermos que o comportamento considerado racional sempre maximizaestrategicamente as diferenças entre custos e benefícios. Com a noção deotimização, pretende-se explicar problemas sobre a generalidade das normas epadrões vinculados à racionalidade prática. Entretanto, se a gênese filosóficadessateoriademocráticaseencontranoutilitarismoliberal,amatrizprincipaldateoria da escolha racional no campo das ciências sociais é, sem dúvida, aeconomia. Da ciência econômica conservou-se, em especial, o conceito deutilidadeesperadacomoumaformadeunificarumateoriaquepretendeexplicarocomportamentoeconômico.Apretensãodestateoriaconsistiuemmostrarqueos agentes econômicos são maximizadores que escolhem uma ação ou umconjuntodeaçõesdesejandoobteramáximautilidadeesperadaemrelaçãoasuaspróprias preferências. Uma explicação realista conseguiria, assim, averiguarpadrõesconsideradosracionaissemsubstancializarcarências,valoreseprincípiosque poderiam motivar determinado comportamento, já que o teórico nuncapoderiamedirumaescolharacionaldessemodo.Downslembraque

“[...]não levamosemconsideraçãoapersonalidade totaldecada indivíduoquandodiscutimosqual épara ele um comportamento racional [...]. Retomamos da teoria econômica tradicional, na verdade, aideia do consumidor racional.Assim como se considerou no caso dohomoeconomicus [...], nossohomopoliticuséo‘homemcomum’quecompõeoeleitorado,o‘cidadãoracional’denossomodelodedemocracia”(DOWNS,1957,p.7).

Downs lançamãodessemodelodecomportamento racional, admitidopelateoria econômica e pretensamente aplicável a qualquer âmbito (social, jurídico,político), para entender as regras de comportamento generalizáveis epretensamenterealistasdegovernosdemocráticos.Amesmaexplicaçãooferecidapelas teorias econômicas para descrever a dinâmica entre consumidores eprodutores é aplicada aosprocessospolíticos que envolvemeleitores e partidospolíticos: os eleitores direcionam seus próprios interesses ao sistema político, eaqueles que administram tal sistema trocam os votos que podem obter doseleitorespordeterminadosbenefícioseofertaspolíticas.Mesmoqueoconteúdonormativo fique restrito à maximização da utilidade, a teoria econômica da

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Democracia acredita poder justificar um sistema que regula a distribuiçãoalternada do poder entre governo e oposição com base no comportamentoracional dos eleitores, expressando-se, assim, uma atitude autointeressada eesclarecidadoscidadãos.

Tal como no elitismo schumpeteriano, também com a teoria econômicaocorre a primazia do ponto de vista de uma Democracia caracterizada pelaconcorrênciapolíticaentrepartidospelopoder.Oganhoemrelaçãoàabordagemschumpeterianaconsisteemfazeraracionalidadedosistemaserperpassadanãoapenaspela lógicadecisória das elites,mas, também,pela lógicada tomadadedecisãodoseleitores.Downsnãodiferedaabordagemrealistaquantoàavaliaçãodopapeledos interessesdosgovernantesnamanutençãodopoderpolítico.Ospartidosnãovencemeleiçõescomafinalidadedeformularumasériedepolíticaspúblicasquepossamsatisfazerascarênciasdapopulação,mas,antes,“formulampolíticas públicas para vencer eleições” (DOWNS, 1957, p. 28). No entanto,mesmo que o objetivo dos governos seja a manutenção do poder, essa lógicaunilateral do autointeresse, que esgota normativamente a prática política,apresentaumadimensãomaisoumenos estável e seguradeumpontodevistainstitucional. Pois a satisfação das necessidades daqueles que não compõem aspróprias elites e partidos acaba sendo fator decisivo para o objetivo dosgovernantes de conquistar a reeleição. O oferecimento de benefícios tem umaduplaface:aquiloqueàprimeiravistaaparececomovantajosoparaapenasumadas partes (a reeleição, por exemplo) é, na verdade, condicionado pelo jogopolítico,ouseja,pelaexpectativadequeosinteressesdosoutrosatoresemjogotambém poderão ser igualmente satisfeitos. A descrição sugerida se limita aapresentararacionalidadedosprocessospolíticosreaisapartirdesuahipótesedamaximização do voto como explicação generalizável das ações dos atorespolíticos em uma Democracia para poder distinguir, assim, o que é umcomportamento irracional na política de um comportamento racional. Pode-seafirmarqueosregimesdemocráticossãoracionalmentejustificáveisporque,parasemanterem no poder, partidos e governos procurammaximizar os benefíciosque são capazes de oferecer para os eleitores. Estes, por sua vez, agemracionalmente na medida em que decidem de forma refletida qual partido ougovernopoderámaximizarosbenefíciosquelhesserãooferecidos.Essareflexãoracionalmente ponderada leva em consideração os ganhos e perdas atrelados adeterminadastomadasdedecisão.

Se pressupusermos que os eleitores escolhem com base em um padrãoracional otimizador, podemos concluir que as decisões tomadas expressam

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expectativas e interesses que procuram ser satisfeitos no jogo político. Essaconclusão é justamente aquela a que as próprias elites chegam ao procurarempreveroscomportamentosdoscidadãos;por issoser tãoimportanteomomentoinstitucionalizado do voto para omodelo em questão.As escolhas feitas peloseleitoresfuncionamcomo manifestaçãodepreferênciasparaaqualestávoltadaa atenção das elites. O voto de um eleitor pode manifestar meramente umapreferência individual,mas, quando entendemos que a somatória dos votos emumaeleiçãopodeser interpretadacomomomentodeagregaçãodepreferênciasdoseleitores,apercepçãodaconcorrênciapelopoderporpartedasorganizaçõespartidáriassedefineracionalmentediantedacomposiçãodemaiorias.Oprocessode tomadadedecisãoqueocorrenomomentodovotoconduzàagregaçãodaspreferênciasdoseleitoresquesemanifestamnaescolhadoslíderesdosgovernos.O princípio de legitimação desse modelo justifica-se na medida em que oresultado de uma eleição manifesta a preferência da maioria dos cidadãos.Pressupõe-se que os indivíduos possuem preferências variadas sobre o que asinstituições devem assegurar. Nesse sentido, a Democracia se torna um livreprocesso competitivo em que partidos e candidatos oferecem plataformas eprocuramsatisfazeromaiornúmerodepreferênciaspossível.Os indivíduos,osgruposde interesseeosprópriosrepresentantespúblicosagemestrategicamenteajustandoaorientaçãodesuas táticasealiançasapartirdesuaspercepçõesdaspreferências em competição. Parece evidente que a única obrigatoriedade emsatisfazê-las vem do axioma do autointeresse que os atores (governantes eeleitores)possuemaocalcularaestratégiadeotimizaçãodesuasações.

Voltando à questão que me interessa nessa reconstrução dos modeloscontemporâneos, como se pode compreender melhor a articulação entre orealismodasdescriçõesapresentadaseosaspectosnormativosnaperspectivadateoriaeconômicadaDemocracia?Doispontosserãonecessáriosparanosajudararesponderessapergunta:acaracterizaçãodojogopolíticopropriamenteditoeseu processo de institucionalização. Os estudos que compreendem ocomportamento político racional a partir da lógica econômica partem de umanoção minimalista de Democracia inspirada na complexa teoria dos jogos(HEAP; VAROUFAKIS, 1995). Um jogo é descrito como qualquer tipo deinteraçãoentreagentesgovernadoporumconjuntoderegrasqueespecificamospossíveismovimentosesuasrespectivasconsequênciasparacadaparticipante.Ede acordo com tal teoria, a Democracia representa, assim, um conjuntoinstitucionalizado de regras válidas igualmente a todos que asseguram oestabelecimento da incerteza sobre os resultados do jogo político. O essencial

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consiste emmanter o jogo operando, ou seja, as estratégias e negociações nodecorrerdojogo,quepodemlevaradecisõeslegítimasdemaioriasorganizadasvoltadasaosucesso,nãopodemferiro princípiodecompetitividadesemoqualasprópriasregrasquegovernamojogodeixariamdeexistir.Pormaisparadoxalque pareça a seguinte formulação, a estabilidade democrática depende dainstitucionalizaçãoda incerteza.Eseháestabilidade, istoé,umsistemapolíticoque funciona de maneira eficiente, então esse sistema pode ser consideradoracional(DOWNS,1957).

Tudoindicaque,aoestarasseguradaacompetitividade,ojogopolíticopodeser considerado racional e democrático porque os partidos que concorrempelopoder – assim como pela autoconservação do poder adquirido – não colocamtudo a perder.A conhecida tese realista, segundo a qual “o objetivo de todopartidoévenceraseleiçõeseconseguirsereeleger”,nãocontradizevidentementeessapeculiarinterpretaçãodoprincípiodacompetitividadebaseadonaincerteza,mas antes o corrobora. Vejamos. Um governo democrático é periodicamenteescolhido por meio de eleições populares em que dois ou mais partidosconcorrem pelos votos dos eleitores. Todas as ações dos partidos visam àmaximizaçãodosvotos,easpolíticaspúblicasposteriormenteimplementadassãosimplesmente meios para obter novamente a vitória nas urnas. Mas o quepressupõe esse objetivo aparentemente tão unilateral da busca pelo poder?Adespeito da vitória nas urnas, o jogo político se tornaria democraticamenteinviávelcasoalivrecompetiçãoeolivreajustamentonegociadoentregovernoseeleitores fossem interrompidos. Em outras palavras, a vitória nas urnas deveocorrer por meio de um processo aberto de ajustamento dos interesses epreferências.Poisoexatoopostodo jogo–deum jogodesejavelmente incertoquantoaosseusresultados–consistiriaemterminá-looudecidi-losimplesmenteapartir de uma vontade que, mesmo advindo do interior do processo político,impor-se-iasobreasregrasecondiçõesquesustentamacompetitividadeinerenteao próprio jogo. O autoritarismo poderia ser interpretado como uma situaçãopolítica em que não há espaço para incertezas. Logo, colocar em risco aDemocracianãosignificaacabarcomaincerteza,jáque,nolimite,issoimplicariaasubordinaçãoaumavontadepolíticaautoritáriaepretensamentehegemônica.

Mas, se o jogo político depende de regras justificáveis de competitividade,não seria necessário rever a prioridade epistemológica de uma racionalidadeotimizadorapresentenomodeloenosatentarmosàscondiçõesdemocráticasdebarganha e negociação? A preservação do jogo democrático não implicariaconteúdos normativos implícitos que pressupomos para assegurar as condições

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procedimentais desejadas de uma livre concorrência razoavelmente equilibrada,as quais extrapolariam a perspectiva egoísta de indivíduos que escolhemracionalmente e de partidos que anseiam pelo poder? O princípio dacompetitividade não demandaria formas de negociação que exigem umadisposiçãocooperativadospartidosqueagemvoltadosaosucesso?Emsuma,aestabilidade democrática pretendida pelomodelo deDowns não dependeria deprocedimentosqueregulamasnegociaçõesdeumpontodevista imparcial,emqueopoderdenegociação,institucionalmentedisciplinado,podemanter-secombasenadistribuiçãoigualdascondiçõesdelivreconcorrênciaentreospartidos?

Tais perguntas permanecem em aberto se forem respondidas a partir domodelodownsiano.Oqueo realismodeuma teoriaeconômicadaDemocraciaacaba por pressupor são os aspectos normativos típicos de concepções liberais:afirma-se a pretensão à liberdade individual entendida como livre escolharacionalmente fundamentada; no entanto, a justificação racional das regras dojogo democrático se reduz à dinâmica do livre mercado, levando a umemagrecimento normativo. Podemos duvidar, ainda assim, de que a pretensãosociológica rigorosa das descrições teóricas tenha produzido uma neutralidadenormativa tão rígida a ponto de tornar fracassada toda tentativa de justificaçãoracional da Democracia. Verifica-se uma oscilação entre o caráter descritivo-realistadomodelodateoriaeconômicadaDemocraciaesuadimensãonormativaimplícita.Geralmente,ummodelocientíficopretendesermeramentedescritivo,eisso significa que não afirma como as pessoas devem operar no jogo político.Contudo, os conceitos utilizados em abordagens empíricas da Democraciaacabamapresentandodiferentesníveisdeconcretudeeretirandodapráticarealasregras que justificam a racionalidade do próprio sistema. O jogo pode sim serincertoquantoaosresultados,masateoriapressupõesemprequeosatoresqueojogamagemimplicitamentedeacordocomasregrasqueelesmesmosajudamamanteremoperação,desortequeadistinçãoentre sere deverserseconfunde:oqueregulaojogopolíticonasuaefetividadeéanecessidadedeassegurarumespaço individual de autodeterminação racional.Mas não estaríamos diante deuma concepção liberal de Democracia que escamoteia a defesa da liberdadeindividualaodescreverasoperaçõespretensamenterealistasdojogopolítico?

Nãoseriaumproblemaseaveriguássemosqueabaixodorealismodefendidoseescondempretensõesnormativasliberaisnãoexplicitadas.Oproblemaconsisteantes em reduzir a própria realidade da vida política à dimensão parcial domercado, ou seja, fazer da política um epifenômeno da economia.Alémdisso,continua-sedandomuita ênfase às elites.Fica evidente, assim, a confinaçãoda

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racionalidade política a uma dimensão egoísta e utilitarista da razão prática e asubordinaçãodoconceitodopolíticoàlógicadomercado.Aexpressão mercadopolítico,tãocaraaomodelo,escancaraessecondicionamento.Sepressupusermosque governantes e eleitores se limitam meramente a calcular o grau deaceitabilidadeaoofertaremcertosbenefícios,reduzimosadinâmicacomplexadapolítica à previsibilidade estratégica que, geralmente, definiu a dimensão domercado capitalista. Por conseguinte, o homem político fica subordinado aohomemeconômico.Pois

“[...] ohomopoliticus, não sendo senãoohomoeconomicus transpostopara certa arena especial deproblemas, caracterizar-se-ia pela busca de manipulação eficiente das condições que lhe oferece oambientedemaneiraaviabilizararealizaçãodeseusobjetivos”(SANTOS,2000,p.96).

Seria realista a ideia de que todo comportamento político tem de serconcebidocomoaçãootimizadoraemeramenteestratégicanojogoentrepartidose eleitores? Por um lado, a teoria econômica desconsidera o ponto de vistasimétricodosinteresseseexcluiquestõesaxiológicasligadasavalores;poroutrolado, deixa de abarcar processos políticos fundamentais para a Democraciacontemporâneaconstituídospelapluralizaçãodosmovimentos sociaisedeumasociedadecivilativa.

11.3.PluralismodemocráticoOs dois modelos anteriores de Democracia apresentados descreveram os

processospolíticospriorizandobasicamentedoisatoresrepresentativos:aselites,de um lado, e os eleitores, do outro lado. No caso da teoria econômica daDemocracia, a justificação para fundamentar a legitimidade do regimedemocrático se ancorou prioritariamente na racionalidade individual. Umaexplicação predominantemente utilitarista mostrou que indivíduos maximizamseusinteresseseagregamsuaspreferênciasparaalcançarseusobjetivos,porém,apráxis política coletiva se subordinou ao ajuntamento de ações meramenteindividuais. Se emSchumpeter há pouco ou nenhum espaço entre os cidadãosindividuaiseoslíderespolíticos,emDownsadinâmicadaspolíticasdegrupofoilimitadaporumaorientaçãoradicalmenteindividualista.

Os defensores do pluralismo democrático acreditam diferentemente queambasasexplicaçõesrealistassãoincompletaseparciais:adeficiência,nosdoiscasos,consisteemdesconsideraros gruposintermediáriosnadescriçãodojogodemocrático e na justificação da legitimidade da Democracia. O termo

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pluralismodemocrático advém desse primado atribuído à dinâmica das açõescoletivasnaestruturaçãodojogopelopoder,nosprocessosdetomadadedecisãoe nas regulamentações jurídicas: não se trata simplesmente de aplicar as açõesindividuaisdohomemeconômicoàvidapolítica,poisapersecuçãodeinteressesindividuais não abarca a natureza das ações coletivas de indivíduos quemaximizam,antesde tudo,seusvariados interessescomuns.RobertDahl,autorreconhecidamentemaisimportanteentreospluralistas,dedicou-seamostrarqueos diagnósticos apresentados pelos realistas implicariam sim repensar asorientaçõesnormativasinsuficientementevagas,porém,opróprioindividualismoseriaincompatívelcomasdescriçõesinstitucionaisdasDemocraciascompetitivaseplurais.Maisimportantedoquesublinharqueojogopolíticoestariaconstituídopor partidos voltados ao sucesso e à conquista do poder, a definiçãocontemporânea da Democracia precisaria atentar às condições procedimentaisqueasseguramumaestabilidadejustificávelparaaconcorrência.ÉporessarazãoqueDahl entenderá aDemocracia como “um processo de tomada de decisõescoletivas” (DAHL, 1989a, p. 5) que precisa ser legitimadoperante os próprioscidadãos. Para tanto, temos de especificar e justificar racionalmente umprocedimentoadequadoparaastomadasdedecisõespolíticas.

UmpontoaserlogodestacadoconsisteemidentificarolugarintermediárioqueDahlocupaentreosrealistaseosnormativistas.Esselugarintermediáriosedeve tanto aos conteúdos considerados como aos aspectos metodológicos. Emrelação aos conteúdos tratados, veremos logo adiante que sua justificaçãonormativaparaaDemocraciachegaaassumirumpontodevistamoralque,aosolhos dos realistas, seria excessivamente idealista. Por outro lado, para asconcepções normativas deDemocracia,Dahl ainda pensa a sociedade centradanoEstado, ou seja, restringe suas análises àsmacroestruturas institucionais dosregimesconsideradosdemocráticos.Talvez issoocorra em funçãodaexigênciametodológicadesuateoria.DahlnãonegaadicotomiaentreDemocraciarealeideal.Naverdade,semabrirmãodecertosideaisdemocráticos,Dahlpartedetaldicotomia para assumir uma posição com a qual acredita encontrar critérios dejustificação suficientemente realistas.Sistemaspolíticos ideais não existem,masas práticas democráticas existentes podem fornecer elementos para que todatentativa de justificação se aproxime o mais possível da Democracia ideal. Opróprio autor acredita que sua justificaçãopara aDemocracia, aindaque céticaemcomparaçãocomasutopiasdemocráticasformuladaspelasfilosofiaspolíticas,poderia sermais convincente do que as justificações ancoradas em argumentosapenasfilosóficos(DAHL,1989a).

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Alémdisso,aatençãovoltadaàsaçõescoletivasquecompõemadinâmicapolítica contemporânea precisa ser compreendida tanto de um ponto de vistadescritivocomonormativo.Opluralismopermiteabrangernanegociaçãopolíticauma variedade de atores e grupos que buscam efetivar suas demandas. Essacomposição coletiva enriquece as descrições rigorosas de um ponto de vistasociológico e fornece a orientação normativa para a avaliação dos regimesdemocráticos analisados na medida em que a existência de diversos interessescompetitivosconstituiriaabasepolíticadoequilíbrioedalegitimidadeexistentesnasDemocracias.

Reforçando o caráter pluralista das Democracias liberais modernas, Dahlcriouotermo poliarquiaparadesignarumasituaçãoabertadeconcorrênciaentrepartidos,gruposeindivíduosqueenriqueceavariedadedeminoriasexistentesecujas preferências precisam ser levadas em consideração pelos líderes naformulaçãodesuaspolíticas(DAHL,2005).Apoliarquia,nãosendoummodelomeramente ideal, resulta da sobreposição de procedimentos democráticospresentes em Democracias (ou poliarquias) realmente existentes: caracteriza-seemreferênciaaumasériedeinstituições,práticasedireitosefetivosque,apartirdas RevoluçõesAmericana e Francesa, acabaram se impondo cada vez maissobreosestadosnacionaismodernos.Assimsendo,Dahlnãoprecisa recuperarelementos normativos em concepções substantivas de autodeterminaçãodemocrática,bastandouma implementaçãoaproximativaentre ideiae realidade.Ocernedoquepodemosadotar comovalor intrínsecodaDemocracia consistenaspráticas,arranjoseprocessosgarantidosinstitucionalmenteequeasseguramamanutençãodaspoliarquias.

Oscritériosquepermitemjustificarosprocessosconsideradosdemocráticossão derivados justamente das instituições necessárias às poliarquias, as quaispoderiam ser resumidas como segue: o processo democrático precisaproporcionar: a. o controle sobre as decisões governamentais tomadas por seusrepresentantes;b.eleiçõeslivreseperiódicas;c.ainclusãodetodasaspessoasegrupos envolvidos; d. chances reais de participação no processo políticorepartidas equitativamente entre os grupos interessados; e. igual direito ao votonastomadasdedecisão;f.direitosiguaisnoquedizrespeitoàescolhadetemasemanutenção da agenda política; e g. condições de publicidade e transparênciapara que todos os interessados possam compreender asmatérias controversas aseremregulamentadas(DAHL,1989a).Essascaracterísticasgeraisdosprocessosdemocráticos são do interesse simétrico de todos os grupos e, portanto, válidasparatodasasminorias.

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Maisumavezoqueparece constituir negativamenteohorizonteutópico aserabandonadoéacompreensãoclássicadaautodeterminaçãodemocráticaedobemcomum.Aspoliarquiasimplodemaideiadesoberaniapopulartantonoquediz respeito aos aspectos homogêneos da interpretação republicana quanto àcompreensãodaDemocraciarepresentativacomoogovernodamaioria.Ambosos casos seriam problemáticos porque “o caráter democrático de um regime éasseguradopela existência demúltiplos gruposoumúltiplasminorias” (HELD,2006, p. 163), de modo que a própria Democracia pode ser definida comogoverno das minorias (DAHL, 1989b). Se, de um lado, temos a imagemamplamente difundida da soberania democrática da maioria, os pluralistas, deoutrolado,defendemaqueladeumgovernodasoposiçõesdemúltiplasminorias.Para ser relevantenacompreensãopolíticamoderna,o idealnormativodobemcomumligadoànoçãodesoberaniapopularprecisasersituadonoscontextosdaspoliarquiasedopluralismoqueasacompanha.Obemcomum,queaindapodeserconsideradoumidealdemocrático,nãopodeserconcebidosegundoomodelode um governo unificado e homogêneo. O público que compõe o povo éconstituídopor diferentes públicos, cadaqual com seu conjuntode interesses econcepções de bem. Porém, são os direitos e oportunidades institucionalizadosnosprocessosdemocráticososúnicoselementosconsiderados bemcomum nascondições das poliarquias, ou seja, o verdadeiro bem comumdasDemocraciasrealmente existentes consiste nas práticas e instituições das poliarquias quedeterminamoprocessocomotal.

Essavisãoprocedimentalemquesefundaalegitimidadedemocráticapossuimaiselementosnormativosdoqueorealismopolíticopermitever.Aspoliarquiaspressupõemnosprocessospolíticosquecadacidadãodevepossuiroportunidadesiguais e adequadas para validar suas decisões com base nos seus própriosinteresses. O horizonte dessa pressuposição consiste na vinculação entreDemocracia e o princípiodaautonomiamoral (DAHL,1989a).Talprincípio,entretanto, não se reduz à operação da escolha racional baseada apenas noautointeresse, mas remete às condições equitativas para o exercício de umacidadaniaplenamente livre.Dá-seaquiumpassoadiantenacomparaçãocomateoria downsiana, uma vez que a justificação se volta agora na direção dascondições procedimentais de barganha e negociação que viabilizamdemocraticamenteosprocessosdetomadadedecisãocoletiva.Insistoquenãosetratadederivaressepontodevistamoralparaajustificaçãodemocráticademerosideais ou de categorias abstratas; trata-se, antes, de reconstruir ainstitucionalização das poliarquias e suas condições para a estabilidade da

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concorrênciaedopluralismoexistentes.Onúcleonormativodaspráticasefetivasoperadeacordocomoprincípiodeque todososmembrossãosuficientementequalificados para participar nas decisões coletivas vinculando-se às associaçõesqueafetamsuasconcepçõesdebemeinteresses.

O pluralismo democrático preocupa-se, assim, em articular as condiçõespolítico-institucionais que asseguramumgovernoplural compostoporminoriascom princípios imanentes de liberdade política e de cidadania igual. Asinstituições poliárquicas – direitos civis, liberdade de expressão, liberdade deassociação; um sistema de pesos e contrapesos ( checks and balances) entreexecutivo,legislativoejudiciário;umsistemaeleitoralaltamentecompetitivoetc.–sãoresponsáveispelosprocedimentosqueestabilizamelegitimamasregrasdojogodemocráticopassíveisdejustificaçãoracional.Entretanto,nãoédifícilnotarque a abordagem de Dahl se mantém abertamente no campo institucional,deixando de lado a dinâmica crucial dos grupos da sociedade civil e de umaesfera pública ativa que se colocam em relação direta, e por vezes conflituosa,com o Estado e outras instituições que o compõem. Esse seria um déficit nãoapenasdescritivo,masprincipalmentenormativoquandonosperguntamosondese funda a legitimidade de tais práticas, direitos e instituições. Em vez de asinstituiçõeslegitimaremoprocedimentodemocrático,nãoserianecessário,antes,encontrar a gênese democrática das próprias instituições? E o procedimentodemocráticonãoimplicariaa qualificaçãodaparticipaçãopolíticaedaformaçãodaopiniãoedavontadenastomadasdedecisãocoletiva?

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Asdemocraciasdemassaacirraramoproblemadalegitimaçãodopoderpolítico. Fencedin,aquareladeDianaOng.

11.4.DemocraciadeliberativaJürgenHabermas,autorvinculadoàtradiçãodepensamentodateoriacrítica,

pretendeu reconstruir a gênese democrática das instituições políticas também apartir do núcleo procedimental que as constitui. Contudo, para que oprocedimento democrático pudesse ser qualificado como fonte normativa dalegitimidade democrática, sua interpretação não poderia contar apenas comdeterminados traços institucionais. Habermas acredita que o modelo dahlsianoacabacaracterizandooprocedimentosegundoelementosquecompõemosistemapolítico e que precisam assegurar as condições mínimas de igualdade política,desdeodebatepúblico,passandopelascondiçõesdeumpluralismoculturaledecondiçõeseconômicasesociais favoráveis,atéaanálisedasconstituiçõesedossistemas eleitorais. E estes envolvem práticas, procedimentos, instituições eprocessos que são operacionalizados em níveis diferentes do que aqueleentendido por Habermas como o núcleo procedimental da Democracia. Ajustificação da validade da Democracia depende, antes, das condições de

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aceitabilidade racional que tal institucionalização torna possível. Entende-se,assim, o processo de tomada de decisão coletiva como um arranjodemocraticamente justificável apenas se condiz com determinados princípiosnormativamente exigentes baseados em liberdades políticas de expressão,associação,direitodevoz,formaçãodaopiniãoedavontade,entreoutrascoisasque os procedimentos eleitorais e legislativos da Democracia requerem. Oexercício da cidadania ativa, em que o cidadão realiza amplamente suaautonomia,traçaoscontornosdesseprocessodeinstitucionalizaçãoeexplicitaonúcleo normativo da autodeterminação política emque se apoia a aceitação dojogo democrático. A medida de legitimidade das instituições do EstadodemocráticodedireitoresidenaradicalizaçãodaprópriaDemocracia.

Entre as teorias democráticas contemporâneas, tornou-se conhecida acorrente chamada de Democracia deliberativa, a qual, em contraste com aconcepção pluralista dos grupos de interesse e com o elitismo democrático,entende que a legitimidade das decisões e acordos políticos se fundamenta nosprocessos de deliberação pública (MELO; WERLE, 2007). O modeloprocedimental apresentado pela teoria de Habermas está vinculado a talconcepçãodeliberativadapolítica.Seafirmarmosqueumainstituiçãooudecisãopolítica é legítima, isso significa que é aceitável ou justificável e precisa seravaliada segundo sua validade. Para a concepção deliberativa, legitimidadedemocrática requer legitimidade deliberativa, ou seja, determinadosprocedimentos democráticos ou determinadas formas de deliberação públicaconstituem uma condição necessária de legitimidade de um sistema político: alegitimidade de uma ordem política é produzida a partir da realização dosprocessos deliberativos da formação política da opinião e da vontade(HABERMAS,1997).A legitimidadedopoder e dosprincípios e normasqueregulama vida coletiva depende da aceitação ou da recusa das razões que sãooferecidas para justificá-la: todos os concernidos devem poder oferecer razõesque possam ser publicamente reconhecidas por cidadãos livres e iguais. Porrepresentar uma interpretação normativa de legitimidade, omodelo deliberativoevoca os ideais de uma legislação racional, da participação política e daautonomiapúblicabaseadosno usopúblicodarazãodeseuscidadãos(MELO,2011). Mas, antes de apresentar as particularidades do modelo procedimentalhabermasianodiantedeoutrasconcepçõesnormativas,éprecisoressaltaralgumasdiferenças fundamentais em relação às concepções realistas anteriormentediscutidasnoquedizrespeitoaseuspressupostosmetodológicos.

O derrotismonormativo, no qual desembocam as várias versões de uma

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sociologia política, parece ser menos fruto de evidências concretas do que do“usodeestratégiasconceituais falsas”(HABERMAS,1997,p.58).Opretensorealismo normativamente neutro sugere, por um lado, que somente podem serdescritos racionalmente os comportamentos de indivíduos e grupos que agemestrategicamente; por outro lado, os realistas parecem selecionar de antemão ocampodosprocessospassíveisdeseremdescritosracionalmente,criandoafalsacorrelação necessária entre realidade política e ações estratégicas. Importantesestudosmostraramque escolhas racionalmenteponderadas emvista do sucessopodem se mostrar equivocadas em relação àquilo que os indivíduos pensaramobter.Consequentemente,oqueosindivíduospreferemeprocuramotimizaremsuasaçõesterminasendoumfundamentofrágilparaqueopadrãoutilitaristadaescolharacionalpossaseconstituircomomodelomaisadequadodaracionalidadepolítica.Diferentementedoconsumidorquefazsuaescolhanaesferadomercadoeprocuraretirarvantagensimediataseemcurtoprazodesuasações,naesferadapolíticaosefeitossãodifusosedispersos.Apolíticarealenvolve,assim,umtipodeatividadepúblicaquenãosereduzàsescolhasprivadasdosconsumidoresnomercado (ELSTER, 2007). Os cidadãos devem ser persuadidos a adotardeterminadapolíticaporquenãopodemsimplesmenteescolherdeacordocomosefeitos imediatosqueperseguem.Aoabarcarmososprocessosemsuadinâmicacomplexa, as escolhas e preferências não seriam, em grande medida,transformadasnoprocessopolítico?

Ao lado de uma ação estratégica, dirigida pelas preferências e voltada aosucesso,teríamosdepressuportambémuma açãoreguladapornormas, jáqueninguém conseguiria utilizar estrategicamente normas sem supor oreconhecimento intersubjetivo delas. E tal pressuposição precederia os próprioscomportamentosestratégicostantodeumpontodevistalógicocomosociológico:ascondições intersubjetivasdeaceitabilidadedenormasnosprocessospolíticosseriamanterioresàs(edeterminantesdas)orientaçõesmaximizadoraseegoístas.Nessesentido,oscritériosdevalidadecomqueseoperaojogopolíticoacabamintroduzindo,navisãodeHabermas,umanovaconcepçãonormativapressupostapara a coordenação das ações. Os partidos poderiam aderir a um acordonegociado com vistas à obtenção de seus interesses específicos; porém, todoacordo produzido argumentativamente – em ações estratégicas que seentrecruzam nas barganhas – tem de apoiar-se em argumentos capazes deconvencerospartidos.Segundooautor,asestratégiasdenegociaçãoebarganhaestãoatreladasaosmecanismosequitativosdeformaçãodaopiniãoedetomadade decisão, e o que assegura a formação do acordo seria o procedimento

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democráticoemqueasnegociaçõesserealizam.Os próprios modelos realistas permitem a localização de pretensões

normativas que perpassam suas descrições empiricamente fundamentadas. Noentanto, tais pretensões normativas precisam ser reconstruídas por um modelomais abrangente que seja capaz de apontar a parcialidade do realismo político,bemcomoseuspressupostosnãoexplicitados.Habermasnãoprecisaexcluirdacompreensão dos processos políticos estudados a dimensão estratégica que osconstitui, porquanto as ações voltadas ao sucesso descrevem uma parte bemconsiderável do jogo político. Mas, além disso, a concepção deliberativa depolítica permite reconhecer que as idealizações de equidade do jogo e delegitimidade das decisões estão presentes nas disputas estratégicas guiadas porinteresses.“Nãopretendodesdobraressaquestão”,comentaHabermas,

“[...]seguindoomodelodeumacontraposiçãoentreidealerealidade,poisoconteúdonormativo[...]está inserido parcialmente na facticidade social dos próprios processos políticos observáveis”(HABERMAS,1997,p.9).

Aseparaçãoentreseredever-serérepostanostermosdeuma tensãoentrefacticidade e validade, pois de um ponto de vista apenas empírico não seriapossível reconstruir as razões que os cidadãos poderiam assumir para amanutenção das regras do jogo democrático. Por haver, assim, um sentidonormativo presente em todas as práticas e compreensões intuitivas deDemocracia, mesmo naquelas privilegiadas pelas abordagens realistas, o jogopolítico, quando pretende ser descrito empiricamente, não poderia sercompreendido de modo adequado sem a consideração do ponto de vista dalegitimidade.

AdelineaçãonormativadeumateoriadaDemocracianãosignificaentãoquesetenhadedescartaraperspectivaempirista.Pretende-semostrarqueaspráticasexistentes nasDemocracias, na verdade, podem ser legitimadas por uma visãoempirista que leva em consideração as pretensões normativas dos própriosparticipantesnojogodemocrático.Habermasdistingue,assim,teoriasempiristasque assumem apenas a perspectiva do observador daquelas normativas queconsideram ainda a perspectiva dos participantes: no primeiro caso, édesconsideradaanecessidadedelegitimaçãoaserpreenchidapelascondiçõesdeaceitabilidade racional;nosegundocaso, trata-sede reconstruirosprocessosdejustificação pública por parte dos cidadãos e de seus representantes. Nessesentido,seasprópriasabordagensempiristasnãoconseguemevitaraspretensõesdejustificaçãodasregrasdojogodemocrático,eseaindaoproblemadarelaçãoentreidealerealidade,oumelhor,entrenormaefacticidadenãofoisolucionado

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pelasdescriçõessociológicas,entãonosrestasomenteadotarmetodologicamentea perspectiva dos participantes e retornar às concepções normativas deDemocracia para reconstruirmos os processos responsáveis por produzirem aforçalegitimadoradagênesedemocráticadosistemapolítico.

Habermas distingue seu modelo procedimental de política deliberativa deoutras duas concepções normativas amplamente difundidas em nossa culturapolítica, a saber, as concepções liberal e republicana de Democracia(HABERMAS, 2002). A diferença fundamental entre tais modelos reside nacompreensão implícita que cada um deles tem sobre o papel do processodemocrático. Na concepção liberal, a Democracia cumpre a função deprogramar o Estado para a realização dos interesses individuais dos cidadãos.Privilegia-seaquioautointeresse,alinguagemdosdireitossubjetivoseadefesada autonomia privada. O primado da participação ativa dos membros dasociedadenavidapolítica,poroutrolado,constituiumdosprincipaisaspectosdomodelo republicano.Acondiçãodacidadanianãoédeterminadaporliberdadesnegativas que podem ser reivindicadas pelos cidadãos como pessoas privadas.Concebe-se a política antes como uma forma privilegiada para a realização dobemcomumeparaoreconhecimentomútuoentrecidadãosque,aoassumiremopapel demembros de umamesma comunidade política, realizam coletivamenteseusobjetivosatreladosaumcontextodevidaético.

Habermas acredita poder assimilar com sua teoria do discurso aspectoscomuns dos outros modelos normativos e integrá-los no conceito de umprocedimento de deliberação e de tomada de decisão. Ou seja, liberais erepublicanos, cada qual a seu modo, explicam por que princípios e normasconsideradosdemocráticossãoaquelesquepoderiammereceroassentimentodetodos os cidadãos. Habermas atribui ao processo democrático conotaçõesnormativasmais fortes doque aquelas assumidaspelomodelo liberal; contudo,taisconotaçõesseriammaisfracasdoqueomodelorepublicanopressuporia.Oprocedimentodemocráticocarregao fardoda legitimaçãoporquediz respeito àinstitucionalização das práticas de aceitabilidade racional condensadas nosprocessosdedeliberaçãopública,istoé,asinstituiçõesprecisamestarestruturadasdemodoqueopoderpolíticoretiresualegitimidadedosprocessosdedeliberaçãocoletivaconduzidosdemodoracionaleequitativoentrecidadãoslivreseiguais.E tais processos, reconstruídos por Habermas com o auxílio de uma teoria dodiscurso,passamasercompreendidoscomoainstitucionalizaçãodediscursosenegociaçõescapazesdefundamentarasuposiçãoderacionalidadeparatodasastomadas de decisão realizadas conforme o procedimento. “A política

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deliberativa”,afirmaoautor,“[...]obtémsuaforçalegitimadoradaestruturadiscursivadeumaformaçãodaopiniãoedavontade,aqualpreenchesuafunçãosociale integradoragraçasàexpectativadeumaqualidade racionalde seusresultados. Por isso, o nível discursivo do debate público constitui a variável mais importante”(HABERMAS,1997,p.28).

Para reconstruir os procedimentos deliberativos de legitimidade, dizHabermas, é preciso lançar mão da razão prática em toda a sua extensão.Asformas de comunicação que garantem o caráter discursivo da prática deautodeterminaçãopodem ser elaboradas a partir dosdiferentes questionamentosque surgem no processo de deliberação e que estabelecem um nexo entrediscursos pragmáticos, éticos emorais.Discursos pragmáticos surgem quandotemosdeprocurarosmeiosmaisapropriadospararealizarmospreferênciasefinsjá previamente estabelecidos. Eles representam aquele tipo de racionalidadeutilitária predominante nomodelodownsiano.Discursos éticos surgemquandouma comunidade política coloca em primeiro plano questões que envolvem osideaisevaloresqueorientamseusprojetoscomunsdevida.Discursos morais,por fim, surgem quando examinamos a possibilidade de regular nossaconvivência no interesse simétrico de todos.Nota-se, assim, a preocupação domodelo deliberativo em ser mais inclusivo na sua compreensão dos processospolíticosde formaçãodavontadedoquedeixamverosmodelos anteriormentedescritos. Os discursos práticos incluem diferentes formas de justificação namedidaemquenãoanulamnemadimensãodaaçãoestratégicanemquestõesdevaloresemqueaargumentaçãoracionalsevoltaàproduçãodeumacordoacercado bem comum. A legitimidade dos acordos e compromissos políticos, noentanto, fica subordinadanecessariamenteàscondiçõeseaosprocedimentosdeformação da opinião e da vontade política, cuja reconstrução é condensada naformulação do princípiododiscurso: “sãoválidas as normasde ação às quaistodos os possíveis atingidos poderiam dar o seu assentimento, na qualidade departicipantesdediscursosracionais”(HABERMAS,1997,p.142).

Há ainda outro problema crucial que o modelo deliberativo pretendeenfrentar. Diante do fato do pluralismo, a legitimidade das instituiçõesdemocráticas precisa encontrar um fundamento que assegure a imparcialidadedas justificações normativas, caso contrário as decisões coletivas não seriamigualitárias em relação aos valores e interesses de todos os cidadãos. Essepressupostodeimparcialidadesomentepodeserpreenchidosetaisdecisões,emprincípio, forem abertas a todos em processos de deliberação pública. Acompreensão procedimental da política deliberativa busca reconstruir as

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condiçõesjustaseequitativasimplícitasnoprocessodedeliberação,eoprincípiododiscursoespecificaumprocedimentodeaceitabilidaderacionaldeacordocomoqualo reconhecimento intersubjetivodasnormaspossavalercomouma forteexigência normativa de sua respectiva validade. A formação de um acordopolítico entre cidadãos que endossam visões demundo, concepções de bem einteresses tão diferentes pressupõe as condições imparciais para que se possalevaracabooprocessodedeliberação.SegundoSeylaBenhabib,umdosmaisimportantesnomesentreosdemocratasdeliberativos,oprocessodedeliberaçãosustenta a pretensão de validade do acordo alcançado com as seguintescaracterísticas:

“1) a participação na deliberação é regulada por normas de igualdade e simetria; todos têm amesmachance para iniciar atos de fala, questionar, interrogar, e abrir o debate; 2) todos têm o direito dequestionarostópicosfixadosnodiálogo;3)etodostêmodireitodeintroduzirargumentosreflexivossobre as regras do procedimento discursivo e o modo pelo qual são aplicadas ou conduzidas”(BENHABIB,2007,p.51).

Énecessárioassegurarrelaçõesintersubjetivasnãobaseadasnacoerção,umavez que só serão consideradas válidas aquelas normas que puderam ser aceitaspor todos os concernidos enquanto participam da deliberação. Não há regraspriorizandoamatériaaserconsideradaoulimitandoocampodequestões,muitomenos uma especificação de quem deve poder participar (seja a identidade doindivíduo ou do grupo), e por isso funcionam como constrições para apreservaçãodaigualdadedecondiçõesedeinclusão.

Oprocedimento explicita tambémanecessidadedeos indivíduospoderemrever suasposiçõeseaprendercomasposiçõesdefendidaspelosoutros.Nessesentido, o modelo deliberativo é compreendido como um processo deaprendizado para a formação da opinião e da vontade, sublinhando não adeterminaçãodavontade,massimaformareflexivadeconstruçãointersubjetivade um juízo político. Por essa razão, os processos deliberativos seriam tãoimportantesparaaracionalidadedosprocessosdetomadadedecisãocoletiva:porum lado, não pressupomos que o indivíduo já possui uma ordem coerente depreferências ao adentrar a arena política; por outro lado, entendemos que aracionalidade que confere legitimidade à formação da vontade perpassaessencialmenteprocessosdeliberativosque comunicam informação.NovamentesegundoBenhabib,“ainformaçãonovaécomunicadaporque:

“1)nenhumindivíduosingularpodeantecipareprever todaavariedadedeperspectivaspormeiodasquaisquestõesdeéticaedepolíticaserãopercebidaspelosdiferentesindivíduos;e2)nenhumindivíduosingularpodetertodaainformaçãoconsideradarelevanteparaumacertadecisãoqueafetaatodos.Adeliberaçãoéumprocedimentoparaserinformado”(BENHABIB,2007,p.53).

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Umaproposição(queestarialigadaaumaperspectivaouinformação)podeser aceitapelopúblico aque está sendoendereçadaemdeterminadomomento.Claro que se caso alguém não compartilhar dessa perspectiva, então não seráconvencidopelos argumentospropostos.Mesmoassim, quando as perspectivasde cada um dos indivíduos se tornam públicas, eles podem modificar suasopiniõesdemaneiramaisreflexiva.Aaceitabilidaderacionalécondicionadapeloprocesso de troca de informações e argumentos e na articulação das razões noespaço público. Por isso, durante a deliberação, os indivíduos adquirem novasperspectivasnãoapenascomrespeitoàs soluçõespossíveis,mas, também,comrespeito a suas próprias preferências.A deliberação que se passa publicamentepossibilitaacadaumpesarseusprópriosargumentos,bemcomoosargumentosdosoutros,ampliandoa informaçãodosparticipantesecapacitando-os,nofinaldas contas, a descobrir suas próprias preferências. Se a legitimidade políticarequer uma multiplicidade de pontos de vista e/ou argumentos, a deliberaçãotenderáaaumentarainformaçãoealocalizaraspreferênciasdosindivíduos.Enamedidaemqueoindivíduoescutaosargumentosformuladospelosoutros,podetambémalargar seuprópriopontodevista e se tornar cientedecoisasquenãohavia percebido no início.Os argumentos não são verdadeiros ou falsos em simesmos,mas apenasmais fortes oumais fracos para convencer os envolvidospelaforçadaargumentação(MANIN,2007).

ADemocraciadeliberativaafirma,assim,quearacionalidadedadeliberaçãoé a base da legitimação dos processos democráticos. Seu propósito consiste naformação ampla da vontade política, do juízo sobre questões políticasfundamentaisedarealizaçãodoidealdeautodeterminaçãopúblicadoscidadãos.A compreensão procedimental da deliberação não pode ser restringida nem àpersecução individual de interesses ou aos discursos ético-políticos, nem aosistemapolítico-estataleaoseumododeoperacionalização,massimestáligadaaos procedimentos imparciais e pressupostos comunicativos da formaçãodemocráticadaopiniãoedavontade.Poressarazão,oprincípiodelegitimidadedemocráticaconsistenainstitucionalizaçãodediscursosenegociaçõesque,comoauxíliode formasdecomunicação,devempoder fundamentara suposiçãoderacionalidade para que os cidadãos aceitem ou recusem as regras do jogodemocrático.

11.5.Breveconsideraçãofinal

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NabuscapeloesclarecimentodossentidosdaDemocracia,adescriçãomaisadequada é aquela que mostra os ideais democráticos operando de formaimanente nos processos políticos efetivos. Enfatizamos que as concepçõesnormativas de Democracia pretendem ser mais abrangentes e inclusivas naavaliação dos processos empíricos e na explicitação de seus conteúdosnormativos do que o realismo político: o questionamento sobre a gênesedemocrática das práticas, instituições e direitos considerados compreende tantoum conceitomais rico de razão prática como uma interpretação dos processospolíticosnãoconcentradossomentenoEstado,ouseja,processosqueincluemopontodevistadousopúblicodarazãodetodososcidadãos.

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Créditosdasimagens–EderChiodetto/Folhapress–Superstock/GettyImages

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IntersubjetividadeeConflitoOreconhecimentoeseususosnopensamentopolíticocontemporâneo

FelipeGonçalvesSilvaIntrodução

Bibliografia

IntroduçãoQuando utilizamos em nossa comunicação cotidiana a palavra

“reconhecimento” – dizendo, por exemplo, que não nos consideramosadequadamente reconhecidos por determinados trabalhos realizados ou pelossentimentos e esforços dedicados a amigos e pessoas amadas – não estamosfazendoafirmaçõesquenosajudemsimplesmentea sermelhorcompreendidos,mas protestando contra certas injustiças envolvidas na maneira como somostratados em virtude mesmo dessa má-compreensão. E ao dirigirmos nossosprotestosereclamaçõesaopróprioagentedessasinjustiças,istoé,àquelesanteosquaisnãonossentimosdevidamentereconhecidos,buscamoshabitualmentenãoapenas expressar nosso sentimento de indignação, mas alterar os padrões decondutasegundoosquaisnosrelacionamos.Se,pelocontrário,resignamo-nosenos mantemos inertes a esses padrões heterônomos de relacionamento –

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acostumando-nos à falta de reconhecimento – podemos experimentar umadiminuiçãodenossaautoconfiançaeautoestima,abandonarprojetoseconvicçõespessoaisaindanãorealizadoseesquecerdimensõessignificativasdenósmesmosemvirtudedesuainvisibilidadesocial.

Esses usos cotidianos da expressão guardam certos paralelos com seusignificadonovocabuláriofilosóficocontemporâneo.Apartirdeles,podemosjádizer que o reconhecimento nos remete a certas pretensões intersubjetivas deordemtantocognitivaquantoprática,asquaisvinculamamaneiracomoosujeitoconstróisocialmenteaprópriaidentidadeaexigênciasnormativassobreomodocomo busca ser devidamente tratado. Temos aqui, pois, uma luta pelatransformaçãodepadrõesderelacionamentosocial.Essaluta,entretanto,nãoseencontrapautadaemmeros interessesegoístasouutilitários,masempretensõesdejustiçaerespeitosocialquebuscamrestauraraintegridadeferidadegruposeindivíduos.Anormatividadeexpressadanaformade exigênciase pretensõesdejustiça, por sua vez, não deve ser compreendida como um dever-ser abstrato,desenraizado,frutoderacionalizaçõesacessíveistãosomenteaumaconsciênciafilosófica superior. Em vez disso, trata-se de uma normatividade mundana,inscrita e trabalhada na própria realidade social e exigida pelas condiçõesmodernasdeindividuação.E,justamenteporisso,nãoseriacasualencontrarmossimetriassignificativasentreosusoscotidianosefilosóficosdaexpressão.

Adinâmicadoreconhecimentoexerceuumpapelcentralnasobrasdealgunsdosmaiores representantesda filosofiamoderna, tais comoRousseau,Fichte e,principalmente,Hegel.Nas últimas décadas, a categoria volta a ganhar grandenotoriedadeno interiorda filosofiaacadêmica, sendoali reinseridapormeiodeatualizações de sua herança conceitual elaboradas à luz de problemas político-sociaiscontemporâneos.Semdúvidanenhuma,oreavivamentoatualdacategoriade reconhecimento acontece, sobretudo, pela via de sua vertente hegeliana.Diferentes intérpretes da obra de Hegel julgam encontrar em suas múltiplasformulaçõesdalutaporreconhecimentopotenciaisdereflexãoecríticaaindanãoplenamente explorados, os quais representariam uma saída ao atomismo eutilitarismo reinantes nopensamentopolítico e social.1 Entre os trabalhos quecompartilhamessemesmoímpetoteórico-interpretativo,olivrodeAxelHonneth,Luta por reconhecimento. A gramáticamoral dos conflitos Sociais, de 1992,ocupa certamente uma posição de destaque. Ele fixa um modo particular deatualização dessa categoria de pensamento constantemente revisitado pelabibliografia posterior, seja para desenvolvê-lo em diversas de suas aplicações

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práticas, seja para remetê-lo às próprias limitações. Com efeito, se Honnethelaboraaatualizaçãomaisdifundidadacategoriadereconhecimento,elanãoéaúnicanemaceitademodosemprepacíficoentreseusleitores.Apósumprimeiromomentodereconstruçãogeraldesseconceito,elepassaafigurarnadiscussãodealguns dos principais tópicos do pensamento político contemporâneo, emapropriações que ou se opõem à formulação honnethiana ou vão alémde suaspreocupações iniciais mais explícitas. Autores como Charles Taylor, JürgenHabermas e Nancy Fraser agregam ao debate posturas próprias, consolidandoumadisputaemtornodessacategoriaeampliando-acomoumcampodereflexãomultifacetado.Opercursoqueseguiremosaquiprocuraintroduziressecampodedebates em alguns de seus momentos mais significativos. Partiremos daatualização categorial promovida em Luta por reconhecimento para, depoisdisso, apresentarmoscertas aplicaçõesdoconceitonosdebates concernentes aomulticulturalismoeàredistribuição.Aofinaldopercurso,indicaremosumlequemais amplo de suas repercussões bibliográficas, procurando salientar adiversidadedeseususosnointeriordopensamentopolíticocontemporâneo.

Questõesdedesigualdadeentreosgênerosmobilizaramasmulheresalutarporreconhecimento:maisde50.000pessoasparticiparamdemanifestaçãonasruasdeRomaemprotestoàviolênciacontraamulherdiasantesdoDiaInternacionalparaEliminaçãodaViolência.22-11-2008.

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12.1.ReconhecimentoelutasocialAxelHonnethmobilizaem Lutaporreconhecimentotemasepreocupações

dediversos camposdisciplinares.Naquiloque se referemaisdiretamente à suainserçãonopensamentopolítico,aobranosapresentaumaquestãocentral:comoexplicar os aspectosmotivacionais responsáveis pelas lutas sociais ainda hoje?Formulandodeoutramaneira:oquemotivariaoengajamentodasociedadecivil,composta em suamaior parte por políticos não profissionais, em processos decontestação extremamente longos, complexos e que, com frequência, não serevertem em benefícios diretos, quantitativamente mensuráveis, a seus atoresindividuais? Honneth nos mostra que os modelos explicativos hegemônicosapresentam tais lutas como disputas em torno de interesses particulares, cujosucesso semantémvinculadoàcapacidadedeagregarumnúmero significativode atores sociais e ampliar seu poder de barganha política. Essa resposta éconsiderada pelo autor extremamente insatisfatória por diferentes ordens demotivos. Consideremos aqui alguns deles: em primeiro lugar, o modelo nãoconseguiria explicar aquilomesmo a que se propõe. Toda a ênfase domodeloutilitário repousarianos interessesemdisputa, semque,noentanto, fossecapazdedescreveradequadamenteaprópriagênesedosinteressesnomeados.Elessãoapresentados ali como interesses dados, fixados de maneira pré-política,derivados diretamente de condições sociais de escassez material. Para o autor,essenexoestabelecidodemaneiranaturalizadaentrecarênciassociaiseinteressespolíticos seria responsável por uma grande lacuna teórica na qual repousa aprópriamediação da luta social, retirada por completo do campo de visão.Emsegundo lugar, além de obstruir a compreensão de seu objetomais central, talrespostaéconsiderada implausívelemseuspróprios termosexplicativos, jáquedificilmente conseguiria justificar, segundo a própria hipótese adotada, apreferênciadadaaosmeiosextremamentegravososdapráxispolítica.Querdizer,a hipótese utilitarista que sustenta esse tipo de leitura, a qual reduz a atividadepolíticaaostermosdeumaestratégiadeaçãoinstrumental,teriadificuldadesemexplicar a mobilização de atores no interior da sociedade civil, haja vista oprofundodescompassoentreosônusatuaisdamilitânciaeseusganhosfuturoseincertos.Essemodelotalvezapresentassealgumaplausibilidadenadescriçãodosprocessos políticos institucionalizados, mas, segundo Honneth, dificilmenteconseguiriaabarcarosentidoprópriodaatividadepolíticacomo lutasocial.

AoriginalidadedeHonnethnãoestáexatamenteembuscaragênesesocialdalutapolítica.Nessepontoeleacompanhaumlargomovimentodateoriacrítica

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da sociedade que se desenvolvia concomitantemente à sua obra.2 O que odistingue é a maneira de fazê-lo: ao afastar as hipóteses utilitaristas quecaracterizam o engajamento político aos moldes de uma mera disputa deinteresses, Honneth vai explorá-lo nos termos de uma teoria social de cunhonormativo, a qual explica amobilização individual à luta comouma resposta aexperiências de sofrimento moral, geradas pelo desrespeito particular aexpectativas de reconhecimento amplas e socialmente arraigadas. Taisexpectativas,porsuavez,estariamligadasàsprópriascondiçõesdeformaçãodaidentidade pessoal, uma vez que se referem, como veremos, à aceitaçãointersubjetivadasqualidadesdeum“serhumanoautônomoeindividuado”.Daíoautornosdizerquesuanegaçãopoderepresentaruma“mortesocial”àquelequea sofre. Dessa forma, a resposta do sujeito às experiências de desrespeito,fundamentalsegundoHonnethàcompreensãodeseuengajamentopolítico,seráapresentada como uma luta por reconhecimento capaz de recompor suaintegridadeferida.

A reconstrução das expectativas de reconhecimento que perpassam toda aobra é realizada por meio de atualizações da filosofia do jovem Hegel(principalmentedeseu Sistemadaeticidade)cumpridasàluzdediversosramosdas disciplinas empíricas, entre os quais ganha destaque a psicologia social deHerbert Mead. Entre os diversos paralelos encontrados nos trabalhos dessesautores,Honneth retiradelesduas intuiçõesmaiscentrais.Emprimeiro lugar,atesedequeaindividuaçãoautônomadosujeitoécumpridaemmeioaprocessosdesocialização intersubjetivamenteconstituídos. Istoé,quea livre formaçãodeuma personalidade autônoma e individuada não ocorre no isolamento, emoperações de consciência realizadas de formamonológica e autocentrada,mas,sim,emrelaçõessociaisdeaprendizagemmútua,nasquaisosujeitoé levadoareconheceremseusparceirosdainteraçãoasmesmasqualidadesdeautonomiaeindividuaçãoque reclamapara simesmo.Nesse sentido,o indivíduoautônomonãoexistepreviamenteàsinteraçõessociaisnasquaistomaparte,masseconstituiesetransformamedianterelaçõesdereconhecimentorecíprocotravadasemseuinterior.Emsegundo lugar,Honneth julga serpossívelnomearapartirdaobradesses autores as três dimensões do reconhecimento que conduzem toda suaexposição: o amor, o direito e a solidariedade. Essas dimensões doreconhecimento, como veremos, revelam conflitos constitutivos entre avinculaçãonecessáriadosujeitoaredesinterpessoaisdesocialização(percebidasna forma do afeto amoroso, do respeito jurídico e da estima social) e sua

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autorrealização pessoal. A compreensão das maneiras peculiares como essesconflitos se estabelecem e se resolvem revela um processo de alargamentoprogressivodasexpectativasdereciprocidadeinscritasnotecidosocial,pormeiodasquaisosujeitoencontracondiçõestantodeseafirmarcomoumserautônomoeindividuadoquantodenunciarpublicamenteseudesrespeitoaformasilegítimasdesocialização.

As relações amorosas são apresentadas como um primeiro contexto desocialização no qual vivemos a experiência do reconhecimento. O que sereconhece aqui é, em primeiro lugar, a dependência mútua de um sujeito emrelação ao afeto do outro. O amor é tratado como uma relação de afeto tãoprofunda que opera uma fusão das subjetividades envolvidas, vale dizer, uma“fusãodeslimitadoracomooutro”.Nessesentido,aoamarmos,experimentamosuma diluição das fronteiras entre alter e ego; assumimos uma parcela darealidade exterior como parte constitutiva de nós mesmos, sem a qual nossentimos lesados em nossa própria integridade. Ao mesmo tempo, temos norelacionamentoamorosoumimpulsoquenoslevanãoàfusão,masaseuoposto:à delimitação das subjetividades envolvidas, ou melhor, ao reconhecimentomútuo da individualidade dos amantes. Trata-se não de uma força externa,contráriaaoamor,masosegundodeseuspolosconstitutivos:paraefetivar-se,oamorexigeoreconhecimentodeumoutroconcreto,autonomamentedesejadoeautonomamente desejante, sem o qual a intersubjetividade da experiênciaamorosa perder-se-ia em formas patológicas de egocentrismo ou dependênciasimbiótica. Nessa sua tensão constitutiva, o relacionamento amoroso oferece aocasiãoparaumprimeiroâmbitodaindividuaçãopessoalafetivamentemediada:aquelequeamareconheceaparticularidadedooutrocomoobjeto insubstituíveldeseuafeto.Eaquelequesesabeamadoganhaconsciênciadesimesmocomoobjeto particular do afeto de outro. Nesses termos, o amor operaria umaexperiência recíproca de “saber-se-no-outro”. Além disso, embora oreconhecimento alcançado aqui seja considerado limitado em seu conteúdo eextensão–umavezquerestritoa“relaçõesafetivasfortesentrepoucaspessoas”,taiscomoasfirmadasentrepaisefilhos,parceirossexuaiseamigosíntimos–elerevela-seumacondiçãonecessáriaàcontinuidadedoprocessode individuação,uma vez que o sentimento de ser reconhecido e aprovado em sua naturezainstintivaparticularfaznascernosujeitoamedidadeautoconfiançanecessáriaàparticipaçãonavidapúblicadesuacoletividade.

Honnethprocuramostrarqueessareconstruçãofilosóficadoreconhecimentoamoroso encontra respaldo em estudos psicanalíticos recentes. As obras de

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Donald Winnicott e Jessica Benjamin interessam ao autor por representaremvertentespsicanalíticasancoradasnasexperiênciasafetivasdacriançacomseusprimeiros parceiros de interação – evitando, assim, a perspectiva monológicaqueenxergavaonúcleodosprocessosdeindividuaçãonoconflitointrapsíquicoentre pulsões libidinosas e suas formas internalizadas de controle. Quando asinterações afetivas são colocadas verdadeiramente no cerne da explicaçãopsicanalítica,osprocessospelosquaisacriançacomeçaaseconcebercomoumsujeito autônomo passam a depender de um equilíbrio entre simbiose eautoafirmação intersubjetivamente mediado. Para Honneth, no momento dessavirada intersubjetiva das análises psicanalíticas, seus paralelos com a teoria doreconhecimentomostram-seexplícitos.

Opasso inicialdessaviradaconsisteemvincularadependênciadacriançaemseusprimeirosmesesdevidaàcodependênciadamãe.SegundoWinnicott,não é apenas o recém-nascido que semostra tão integralmente dependente doscuidadosdamãeapontodeapresentar-seincapazdeumadiferenciaçãoparacomela.Amãe tambémvivenciao estadode carência absolutadobebê comoumaextensão de seu próprio estado psicológico, uma vez que se identificouprojetivamente com ele já no período de gravidez.A satisfação de sua própriacarênciaafetivaéemgrandemedidaalcançadapormeiodocontatofísicocomobebê nas práticas de assistência e cuidado prestadas em tempo quase integral.Winnicott chama esse estado simbiótico de dependênciaabsoluta, no qual osparceiros da interação dependem inteiramente do outro na satisfação de suascarências, semestar emcondiçõesdeumadelimitação individual em facedele.Essafasedaunidadesimbióticachegaatermo–semdemarcarofimdarelaçãoamorosa–quandoambososparceiros reconhecema independênciadooutro eadquiremparasicertograudeautonomia.Nosquadrosmaisrecorrentes,amãeéinicialmentelevadaaromperesseestadodecoisascomaretomadadasrotinasdocotidiano e a ampliação de seu campo de atenção social, deixando a criançasozinha pormaiores intervalos de tempo.A solidão é primeiro vivenciada pelacriança comdesespero e destrutividade, não apenas por se sentir amputada emsua existência anterior, mas porque testa agora a resistência da nova realidadecircundanteaseusprópriosdesígniosevontades.NaspalavrasdeWinnicott,namedidaemqueapessoafantasiadaatéentãocomopartedeseumundosubjetivoescapagradativamentedeseucontroleonipotente,acriançaélevadaaoperarum“reconhecimento do objeto como um ser com direito próprio” (WINNICOTTapud HONNETH, 2003a, p. 168). Apenas quando é capaz de vivenciar aausênciadamãenãocomoabandono,mascomooafastamentotransitóriodeum

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ser-outro independente, a criança passa a superar suas fantasias narcísicas deonipotênciaedesenvolverascompetênciaspessoaisexigidasporuma realidadeexterior que não satisfaz suas necessidades de maneira imediata. De formasimilar,amãeapenasconseguedarcontinuidadeaoalargamentodeseusespaçosde ação na medida em que aceita, de maneira igualmente conflituosa, aindependência progressiva de seu defrontante, percebida inicialmente nos atosagressivosqueacriançalhedirigeacontragosto.

Segundo Winnicott, entretanto, o desenvolvimento das competênciaspessoaisdacriançaapenasédevidamentecumpridocomacapacidadeprimáriade estarsó,adquirida,porsuavez,pelasolidificaçãodaconsciênciade saber-seamada. Quer dizer, a espontaneidade requerida para o desenvolvimento dacriatividade infantil exige certa tranquilidade para reagir produtivamente aosmomentos de solidão, a qual decorre da certeza da dedicação damãe e de seramadaporelamesmoqueàdistância:

“[...]acriançasóestáemcondiçõesdeumrelacionamentocomosobjetosescolhidosnoqual ‘elaseperde’quandopodedemonstrar,mesmodepoisdaseparaçãodamãe,tantaconfiançanacontinuidadedadedicação desta que ela, sob a proteção de uma intersubjetividade sentida, pode estar a sósdespreocupada;acriatividadeinfantil,emesmoafaculdadehumanadeimaginaçãoemgeral,estáligadaao pressuposto de uma ‘capacidade de estar só’, que por sua vez se realiza somente por meio daconfiançaelementarnadisposiçãodapessoaamadaparaadedicação”(HONNETH,2003a,p.172).

Temosaqui,portanto,nãoadestruiçãodarelaçãoamorosa,masasuperaçãodafaseestritamentesimbiótica–oquemarcaapassagemparaorelacionamentoafetivo maduro. Honneth encontra passagens na obra de Winnicott que opermitemexpandiressacompreensãodadialéticaamorosaparainteraçõesalheiasà relação entremãe e filho. Para ele, o relacionamento afetivo entre adultos émarcado pela mesma tensão entre fusão e delimitação das subjetividades, porpráticas contínuas de se perder e se encontrar no outro. O saber-se amadocontinuaria sendo fundamental, ao longode todaavida,paraumaautorrelaçãoprodutiva do indivíduo consigo mesmo, uma vez que a aceitação da pessoaamada confere uma medida necessária de autoconfiança para a busca dereconhecimento em esferas sociais mais amplas. Como confirmação negativadessatese,HonnethencontranaobradeJessicaBenjaminvínculosterapêuticosentrecertosbloqueiosàcapacidadedeinteraçãohumana,verificadosemdiversasáreasdasocializaçãoadulta,eexperiênciastraumáticasdeausênciaourupturadoreconhecimentoamorosoaolongodetodaahistóriadevida.

Honnethconsideraterassimoperadoumainflexãoempíricaàtesefilosóficadaimprescindibilidadedoamorcomodimensãoprimáriadoreconhecimento.Atéaqui,entretanto,nãoestamospropriamentenoterrenodaslutassociais.Faltaao

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reconhecimentoamorosoocaráterpúblico-políticoquelheépróprio.Osimplesfato de ter sido apresentado como condição necessária à participação na vidapública da comunidade já denota a limitação do reconhecimento amoroso emsatisfazer plenamente a integridade pessoal. Assim, a compreensão dasexpectativasmoraisquecaracterizamintegralmenteumserhumanoautônomoeindividuado exige a consideração de dimensões supervenientes doreconhecimento. O direito opera uma ampliação do universo intersubjetivo etransformaçõessignificativasdesuasexpectativasdereciprocidade.Emprimeirolugar,elenãoselimitaaogruporeduzidodepessoascomasquaisseestabelecemvínculosafetivosdiretos,masexpandeasexpectativasdereconhecimentoatodaacomunidade.Alémdisso,elegeraexpectativasderespeitoanônimas, travadasentrepessoaspotencialmentedesconhecidas.Independentementedasrelaçõesdeafetooupredileçãoestabelecidasentreosmembrosdacomunidade jurídica,eleexige seu reconhecimento como pessoa de direito, como portador dasmesmasfaculdades e obrigações formalmente atribuídas a todos, possuindo, assim, umabase universalista e impessoal. O conflito constitutivo entre simbiose eindependência é aqui substituído por uma nova dialética entre liberdade e sualimitação:paraquecadaumpossaserconsideradolivre,énecessárioorespeitorecíproco às esferas de decisão individuais, protegidas coercitivamente contrausurpações e intervenções não autorizadas.Apenas quando as obrigações paracomooutrosãoreconhecidascomoorespeitoacompetênciasdedecisãoracionaljuridicamenteasseguradas,aslimitaçõesdocomportamentonelasimplicadasnãosão sentidas como constrições individuais, mas como condições para oestabelecimento intersubjetivoda liberdade.Sendoassim,ésomentemedianteo“respeitoparacomooutro”queadquirimos“autorrespeito”comoumapessoadedireitolivreemoralmenteimputável.

Honneth insiste que essa dialética da liberdade apenas acontece pelamediação de uma ordem jurídica legitimamente aceita. Nos contextos pós-tradicionaismodernos,alegitimidadedasnormasjurídicasévinculadaaofatodeteremsidoproduzidaspelosseusprópriosdestinatáriosemprocessospúblicosdeformaçãodemocráticadavontade.Emoutraspalavras,paraqueaslimitaçõesdocomportamentosejamconsideradascondiçõesmesmasdaliberdadeinterpessoal,elasdevempoderseraceitaspeloscidadãoscomodeterminaçõesautonomamenteproduzidas das esferas de ação que regulam horizontalmente sua vida comum.Segundo Honneth, essa exigência de legitimação público-política transforma aordemjurídicaemobjetopermanentedereflexãoecríticaporpartedetodososseusmembros, tornando-aabertaàcontestaçãode todosaquelesque se sentem

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lesadospelaconfiguraçãodedireitosemvigor.EfazendousodetrabalhosdeT.H. Marshall e E. P. Thompson, o autor procura mostrar que essas lutascontestatórias, motivadas pela frustração das expectativas de reconhecimentojurídico,têmcomoresultadooalargamentohistóricodasdimensõesdaautonomiaabarcadasnostatusde pessoadedireito:

“A institucionalização dos direitos civis de liberdade inaugurou como que um processo de inovaçãopermanente, o qual iria gerar no mínimo duas novas classes de direitos subjetivos, porque sedemonstrourepetidasvezesnasequênciahistórica,sobapressãodegruposdesfavorecidos,queaindanãohaviasidodadaatodososimplicadosacondiçãonecessáriaparaaparticipaçãoigualnumacordoracional:parapoderagircomoumapessoamoralmenteimputável,oindivíduonãoprecisasomentedaproteção jurídica contra interferências em sua esfera de liberdade, mas também da possibilidadejuridicamenteasseguradadeparticipaçãonoprocessopúblicodeformaçãodavontade,daqualelefazuso,porém,somentequandolhecompeteaomesmotempoumcertoníveldevida.Porisso,nosúltimosséculos, [...] acrescentou-se às propriedades que colocam um sujeito em condições de agirautonomamente comdiscernimento racionalumamedidamínimade formaçãocultural ede segurançaeconômica”(HONNETH,2003a,p.192-193).

Dessa maneira, a autonomia é expandida no âmbito do reconhecimentojurídiconãoapenasnoqueserefereaocírculodeparceirosdainteração,alargadoem direção a toda a comunidade, como em relação às competênciasreciprocamente atribuídas a cada um de seus membros: a pessoa de direito éreconhecidacomoumserhumanocapazde tomarpartenosprocessospúblicosdeformaçãoracionaldavontadeededecidirautonomamenteseusplanosdeaçãoem respeito às liberdades intersubjetivamente compartilhadas – tudo issoacompanhadodeexigênciasligadasaoestabelecimentodecondiçõesculturaisemateriais suficientemente igualitárias entre todos. Entretanto, seguindo aargumentação de Hegel sobre a abstração constitutiva do direito, Honnethconsiderao respeito jurídicoumadimensãoainda incompletanaexperiênciadoreconhecimento. Isso porque a esfera jurídica é incapaz de particularizar ashistóriasdevidaindividuais.Emseuinterior,osujeitoéreconhecidomeramentepelascompetênciasgeraisquecaracterizamumserhumanoautônomo,dotadodediscernimentoracional,enãopelasrealizaçõespessoaiscumpridaspeloexercíciodessas mesmas competências, as quais implicam sua definição como umagrandeza biograficamente individuada. Para Honneth, o reconhecimento dasparticularidades que definem o indivíduo em meio a seus esforços deautorrealizaçãoexigeapassagemparaoâmbitodaestimasocial.

Nesteúltimoâmbitodoreconhecimento,pois,osujeitobuscanãoorespeitoanônimodesuaintegridadepessoal,masavaloraçãopositivadasparticularidadesqueodefinemcomoserindividuado,distintodetodososdemais.Aexemplodoqueacontecianasetapasanteriores,aautoafirmaçãodosujeitonãoaconteceaqui

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em seu completo isolamento, mas depende constitutivamente das relações queestabeleceemumuniversodeinteraçãosupraindividual:osplanoserealizaçõesqueconfiguramumprojetodevidaparticularencontram-sesemprevinculadosacomplexossimbólicoseaxiológicosnosquaiseleseencontra inserido,osquaisservem de mediação necessária para que o sujeito consiga se referir tanto aomundo exterior quanto a simesmo. Para Honneth, as realizações pessoais sãocumpridas por meio de interpretações particulares e originais dos valores quepermeiam a vida social, os quais, por sua vez, encontram na vinculação docomportamento individual as condições para que sejam repostos e atualizados.Daíanecessidadedo reconhecimentocomoestimasocial:namedidaemqueaindividuação é operada por meio de elaborações particulares de conteúdosaxiológicosintersubjetivamentecompartilhados,asinovaçõescumpridasalicomoriginalidadedevempodersercomprovadasemtermosigualmentevalorativos.Éna apreciação positiva de suas realizações pessoais que o sujeito individuadorecebe a confirmação de sua existência no interior de uma ordem social devalores.Honnethpretendemaisumaveztraduziressanecessidadecategorialnostermosdasciênciasempíricas:fazendousodeestudosempsicologiasocial,comoos deHelenLynd eNathanielBranden, o autor descreve as consequências dadepreciaçãopúblicadecomportamentoseconvicçõespessoaiscomosentimentosd e vergonha ou degradação que levam o sujeito ao isolamento e àmarginalização. Concomitantemente a isso, verifica-se a diluição das redes derelacionamento necessárias para que os conteúdos performativos de umaidentidade minimamente consolidada possam ser colocados em prática. Oenfraquecimento da autoestima em virtude do desprestígio e isolamento social,por fim, acaba por minar projetos de autorrealização futuros. A saída dessecírculoviciosoexigemaisumaveza luta social, entendidaaquinãocomo lutapor direitos (uma vez que não se limita à tolerância ou inclusão formal), mascomo uma luta pela transformação dos valores hegemônicos que permeiam aautocompreensãoculturaldeumasociedade.3Paraoautor,grandepartedaslutassociais contemporâneas – tais como as encampadas por afro-descendentes,mulheres, minorias étnicas e religiosas – encontra-se pautada nesse tipode conflitocultural.

Honneth, assim, apresentao reconhecimentocomoexpectativasnormativasdereciprocidadeinscritasemâmbitoselementaresdainteraçãosocialmoderna,asquais são responsáveis pela individuação autônoma do sujeito em dimensõesprogressivamente mais alargadas e cujas frustrações explicam a motivação

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pessoal para seu engajamento na luta política. Em seu argumento, o nexoexplicativoentreodesrespeitoàsexpectativasdereconhecimentoeamobilizaçãoà luta é pautado em motivos significativamente fortes, na medida em que secoloca ali em jogo a própria existência social do sujeito lesado (ameaçada porexperiênciasnegativascomoasdeviolação,privaçãodedireitosedegradação).Alémdisso,aocontráriodahipóteseutilitaristaanteriormenteconsiderada,alutasocialnãoéassumidapelosujeitocomoumsimplesmeioparaoalcancedeseusobjetivosegocêntricos,mascomoumadimensãoconstitutivadoreconhecimentoa ser resgatado, uma vez que, já em seu ato positivo de protesto, é capaz dereafirmarpublicamente aspropriedadesde autonomiae individualidadeque lheforamnegadas.

Aindaemrelaçãoàhipóteseutilitaristacombatida,cabeaquiinsistirmosemdois outros deslocamentos significativos: a autorreferência de grupos que agemestrategicamente em vista de interesses próprios é substituída por uma práxisdestinada à aceitação recíproca, a qual tem como resultado a transformação depadrõesintersubjetivosdeinteraçãosocial.Nãoqueosgrupossociaisenvolvidosdeixemdereivindicarcertasmetasqueosbeneficiemparticularmente,taiscomoocombate a situações de escassez material ou depreciação simbólica que osatingemdemaneirapeculiar.Maso impulsoque levaà suaelaboraçãopolíticanos remeteaosentimentode injustiçageradopela frustraçãodeexpectativasdereciprocidadesocialmentearraigadas.Nessesentidomesmo,Honnethnosfaladoreconhecimento como “a gramática moral dos conflitos sociais”. Por fim, anaturalização dos grupos envolvidos é diluída namedida emque passam a sercompreendidoscomoumprodutomesmodamobilizaçãopúblico-política;istoé,comooengajamentodeindivíduosqueinterpretamsuasprópriasexperiênciasdesofrimentocomoformascomunsdedesrespeito,passandoareivindicar,emumalutaconjuntamenteoperada,relaçõesdereconhecimentoampliadassocialmente.

“Quemprocura hoje reportar-se à história da recepçãodo contramodelo hegeliano, a fimde obter osfundamentosdeumateoriasocialdeteornormativo,dependesobretudodeumconceitodelutasocialquetomaseupontodepartidaemsentimentosmoraisdeinjustiça,emvezdeconstelaçõesdeinteressesdados.[...][Alutasocial]refere-seaoprocessopráticonoqualexperiênciasindividuaisdedesrespeitosão interpretadas como experiências cruciais típicas de um grupo inteiro, de modo que elas podeminfluir, como motivos diretores da ação, na exigência coletiva por relações ampliadas dereconhecimento”(HONNETH,2003a,p.257).

12.2.Reconhecimentoemulticulturalismo

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Comojáditodeinício,acategoriadereconhecimentoestruturaimportantescampos de debate envolvendo temas particulares do pensamento políticocontemporâneo.O primeiro e talvez principal deles nos remete ao estatuto dasdemandasmulticulturaisnointeriordoEstadodemocráticodedireito.Demaneirainicial, podemos dizer que as exigências multiculturalistas vêm defender anecessidade do Estado democrático de direito reconhecer a diversidade dasformas de vida e visões de mundo no conjunto de suas múltiplas instânciasoperacionais, tais como as instituições políticas, jurídicas, educacionais emidiáticas.Esseobjetivogeral,cujaformulaçãoemabstratodificilmenteencontraobjeções explícitas no campo acadêmico, mostra-se sujeito a dificuldades dediversas ordens quando analisado em face de contextos políticos concretos.Alistadosconflitosmulticulturaisnointeriordasdemocraciasexistentesébastanteextensa, envolvendo, por exemplo, a disputa ideológica e territorial entrediferentessubgruposculturais,asdiscrepânciasentreformasdevidatradicionaisedireitos constitucionalmente assegurados, as fragilidades de gruposminoritáriosdiantedavontadedamaioriademocrática,osriscosdedesagregaçãodasculturasnativas diante da hegemonia das heranças coloniais etc. A recorrência eintensidade de tais conflitos levamo pensamento político a sair de suamoradaconsensual e disputar o sentido e as implicações das expectativas dereconhecimentomulticultural.

Uma dessas disputas de maior repercussão no debate acadêmico pode serencontrada no volume Multiculturalism: examining the politics of recognition(TAYLOR;GUTMANN,1994).Nessaobra,vemosconsolidadaspolarizaçõessignificativas, constantemente revisitadas pelo pensamento políticocontemporâneo, envolvendo ali dois de seus principais representantes: osfilósofosCharlesTayloreJürgenHabermas.

No texto “Política do reconhecimento”, Taylor defende a preservação dasculturasameaçadasdeextinçãocomoumametadereconhecimentoquepodevira reclamar legitimidadeprópria, isto é, uma formade legitimação independentedas regras que configuram a fixação da vontade democrática no interior doEstadodedireitoliberal,forçandosuasestruturasinstitucionaisaseadaptaremademandascoletivasquenãopodemserintegralmentesatisfeitaspelaigualdadededireitos individuais. Sua tese pode ser entendida em dois passos subsequentes.Emprimeiro lugar,Taylordefendequeadiversidadeculturaldeveseradmitidacomo um valor em si mesmo, uma vez que enriqueceria o universo decontribuiçõessimbólicasaseremabarcadaseusufruídasportodaahumanidade.Com efeito, o contato entre culturas distintas produziria processos de

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aprendizagemmútuos, vinculados não apenas ao conhecimento que cada umaganhadeseuoutro,como,sobretudo,àcompreensãoquepossibilitaacercadesimesma. Em outras palavras, no confronto com seu outro significativo, umuniversoculturalabreperspectivasdeautoconhecimentoinexistentesnacondiçãode isolamento, assumindo a consciência de suas próprias particularidades namesma medida em que as expressa exteriormente. Esse processo de trocassimbólicas, que engrandece o substrato cultural a ser acessado por toda ahumanidade, apenas pode ser levado a cabo ao se assumir, como pressupostomesmo da interação, o igual valor de cada uma das culturas existentes e suaprerrogativadesobrevivência.

A sobrevivência de certas espécies culturais, entretanto, pode vir a serameaçada em contextos nos quais isso menos se espera. Em um segundomomentodesuaargumentação,Taylorprocuraavaliarafragilidadecaracterísticavivida por minorias culturais no contexto das democracias liberaiscontemporâneas. Essa fragilidade pode ser inicialmente apreendida da própriadinâmicadasregrasdemocráticasqueestabelecemasuperioridadedavontadedamaioria, deixando os gruposminoritários em posição de risco ou desvantagemante os fluxos da política oficial. Para o autor, contudo, é namaneira como oEstado de direito liberal fixa os resultados da vontade democrática queencontramos o elemento definitivo na configuração de seu estado de nãoreconhecimento. Sob as premissas da neutralidade e da não discriminação, oliberalismo político, tal como disseminado no mundo anglo-americano,estabeleceriao formatodos direitosindividuaisiguaisentretodoscomopadrãoúnicoaserutilizadonaregulamentaçãodavidasocial.ParaTaylor,taispremissasdevem ser consideradas questionáveis – e suas consequências, potencialmenterepressoras.Oautornosapresentaacusaçõesdequeasformashegemônicasdoliberalismo contemporâneo não se constituem como um campo culturalmenteneutro,valedizer,comoum“terrenodepossívelencontrodetodasasculturas”.Em vez disso, elas seriam a expressão política de uma gama determinada deculturas, sendo sobremodo incompatíveis com outros universos culturais emdiversosdosaspectospeculiaresquecaracterizamsuasformasdevida(taiscomoos hábitos matrimoniais, religiosos e estético-expressivos de grupos islâmicosalojadosemEstadosliberaisdemaioriacatólica).Aseguir,oautordefendequeopretenso universalismo das liberdades individuais iguais seria incapaz deabsorverplenamenteasexigênciasde reconhecimentoapresentadasporculturasameaçadasdeextinção.Issoporque,namedidaemquebuscamapreservaçãodeformas de vida compartilhadas e específicas, suas exigências não se encontram

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pautadasemmetasindividuais,mascoletivas,nempretendemefetivarumestadodeigualdade,mas,sim,apreservaçãodesuadiferença.

“[Há] uma forma de política de igual respeito entre todos, tal como entronizada no liberalismo dedireitos,queéinóspitaàdiferença,umavezqueinsistenaaplicaçãouniformedasregrasquedefinemesses direitos, sem qualquer tipo de exceção, e que suspeita dos fins coletivos. [...] Eu a consideroinóspita à diferença porque ela não pode acomodar aquilo a que aspiram de fato membros decomunidadesdistintas,asaber,suasobrevivência.Essaéumametacoletiva,quequaseinevitavelmentepedealgumavariaçãonostiposdeleisquejulgamospermissíveisdeumcontextoculturalparaooutro,comomostracomclarezaocasodoQuebec”(TAYLOR,[1994,p.60-61],2000,p.265-266).

ParaTaylor,pois,oreconhecimentodeformasdevidaetradiçõesculturaisameaçadasexigiriagarantiasdesobrevivência incompatíveiscomomodeloqueobriga,irrevogavelmente,umadistribuiçãodeliberdadesindividuaisiguaisentretodos. A reivindicação de respeito pelas formas de vida, práticas e visõespeculiaresdemundodemandariaaconsideraçãodeparticularidadesque,segundoTaylor, o suposto universalismo dos direitos individuais parece abstrair.Deveríamosadmitir,assim,umaconcorrênciaentreessaestruturadedireitoseoasseguramento de identidades coletivas, demodo que, no caso de uma colisãoentreessasduasorientaçõesnormativas,seriaprecisodecidirsobreaprecedênciaaserdadaaumadelas.Comoexemplodaminoriafrancófonacanadense,Taylorpretende mostrar a existência de tais colisões e a incapacidade do modelonormativo que prescreve incondicionalmente direitos subjetivos iguais emabsorver reivindicações sociais de bens coletivos. A minoria francófona quehabitaaprovínciadoQuebecreclamariaodireitodepreservaçãodaintegridadedesuaformadevidamediantepolíticasquevisamàadesãocompulsóriaàlínguafrancesa. Isso se observa em regulamentações que proíbem a populaçãofrancófana e imigrantes de matricular seus filhos em escolas inglesas e queobrigamousodalínguafrancesaemdeterminadosestabelecimentoscomerciais.Taylor defende o formato de tais regulamentações protetivas como políticasnecessáriasàpreservaçãodeespéciesculturaisameaçadasdeextinção,umavezque buscam “gerar novosmembros da comunidade” que possam se identificarcom a língua francesa e dar continuidade a suas tradições específicas.ContestandoasupostaneutralidadeéticadoEstadoedodireito,oautordefendeuma forma distinta de liberalismo que esteja munida da possibilidade defomentação ativa de determinadas formas de vida, a qual reconheça asobrevivência de espécies culturais como um imperativo político tão valiosoquantoaprópriaestruturaigualitáriadedireitossubjetivos,podendomesmooptarpelaprimaziadosobjetivospreservacionistasnoscasosdecolisão.

“Creioqueessaformadeliberalismoéculpadadaacusaçãofeitapelosproponentesdeumapolíticada

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diferença. Felizmente, entretanto, existem outras formas de sociedade liberal. [...] Elas se dispõem asopesar a importância de certas formas de tratamento uniforme com relação à importância dasobrevivênciacultural,eoptarcertasvezesporestaúltima”(TAYLOR[1994,p.61],2000,p.266).

EmsuarespostaaTaylor,Habermasafirmaconcordarcomasdenúnciasdefalsa neutralidade dirigidas ao Estado de direito liberal e, sobretudo, com anecessidade de fomentação da diversidade nas democracias estabelecidas.Entretanto,Taylorestariaaindamuitopresoaoprópriomodelocombatido,istoé,a uma forma de Estado liberal que distribui de modo paternalista direitosindividuais em completa desconexão aos processos coletivos de formaçãodemocráticadavontade.Emvirtudedisso,Taylorseria incapazdeabsorveremsua exposição as lutas por reconhecimento que se desenrolam no interior doEstadodemocráticodedireito,sendo,assim,obrigadoaencontrarsoluçõesquesedistanciamdoprópriocampodemocrático.

AcandidaturadeBarackObamadespertouaquestãodoreconhecimentodeminorias:emviagempelointeriordosEstadosUnidos,Obamadiscutemaneirasdemelhoraraeconomiaecriarempregos,ouvindodiretamenteoscidadãosamericanos.17-8-2011.

Habermasconsideraqueacompreensãodereconhecimentoculturalutilizadapor Taylor é traçada demaneira excessivamente estática e essencialista, isto é,comoumembatedeeticidadessubstantivasfixas,cujorelacionamentoencontra-se pautado nos objetivos primordiais de autoconhecimento e preservação.Com

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isso,Taylornegligenciariaocaráterdinâmicodosencontroseembatesculturais,osquaisproduzemtransformaçõesespontaneamentegeradasnoconjuntodesuaspráticaseseussignificados.Comonosdizoautor,

“[...]amudançaaceleradadassociedadesmodernasmandapelosarestodasasformasestacionáriasdevida.As culturas só sobrevivem se tiram da crítica e da cisão a força para uma autotransformação”(HABERMAS[1994,p.132],2002,p.251).

Nessa linhadepensamento,pois,asobrevivênciadeumaculturaparticularnão é incompatível, mas, ao contrário, pressupõe transformações. Taistransformações, por sua vez, apenas podem ser consideradas autonomamenteproduzidascasoosprópriosintegrantesdecontextosculturaisparticularespossamseenvolveremprocessoscomunicativos isentosdecoerção,nosquais lhessejapermitidotantooacessoanovasformasdevidaquantoareformulaçãoreflexivade seus universos culturais de origem. Segundo Habermas, os contextosnecessários a esse tipo de encontro intercultural exigem o livre fluxo deargumentos e contribuições, próprio dos debates democráticos, bem comoliberdades individuais de consciência e decisão, asseguradas pelos direitosfundamentaismodernos.

Paraoautor,portanto,aoconsiderarmosas lutasporreconhecimentocomoumprocessoqueunemetasde autotransformaçãoàquelasdeautoconhecimentoepreservação,oEstadodemocráticodedireitoapresenta-seaelenãocomoumaameaça,mascomoseuuniversopráticomaispropício.Trata-sedeuma lutaporreconhecimento, em primeiro lugar, porque os subgrupos culturais têm de sercapazesdeconvencerosprópriosintegrantesarespeitaredarcontinuidadeasuasformas de vida ao longo das gerações, ainda que para isso seja necessárioreconstituirreflexivamentesuasnormasinternaseincorporarnovossignificados.Nessecaso,temosumalutapelalealdadedosmembros,aqualdevesedesenrolarem respeito a suas liberdades individuais de pensamento e ação. Em segundolugar, essa luta se estabeleceperante a comunidade jurídicamais ampla, aqualtem de ser convencida, mediante processos públicos de formação política davontade, acerca das formas de tratamento jurídicomais adequadas à regulaçãoigualitária do comportamento comum.Nesse caso, temos uma luta por direitosencampada democraticamente. Em ambos esses processos de luta, a integraçãosocialmediadapeloEstadodemocráticodedireitoéexplicadacomoumtipodesolidariedade derivada do entendimento mútuo – promovendo o debate e adisputaconstantessobreosdireitosedeverescapazesdegarantiro respeitoeareproduçãoautônomadesuasformasdevida,tantoindividuaisquantocoletivas.

ApóscombateraconcepçãodereconhecimentoculturalutilizadaporTaylor,

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Habermaspassaadiscutirmaisdiretamentesuasconsequênciaspolíticas.Comovimos anteriormente, Taylor subscreve a utilização de medidas políticas querestringemaestruturadas iguais liberdades individuaisemnomedafomentaçãoativa de determinadas formas de vida. Segundo Habermas, essa contraposiçãoentreobjetivosético-culturaisparticulareseaestruturaigualitáriadedireitosserianãoapenasequivocadaemtermosdescritivos,comoinaceitáveldeumpontodevista normativo. Com efeito, os discursos éticos, caracterizados pelaautocompreensãodecoletividadescom laços identitárioscomunsepela fixaçãode seus objetivos coletivos, comporiam os debates democráticos ao lado deconsiderações de ordem moral e pragmática.Assim, a referida oposição seriainadequada à caracterização dos processos de luta, porque a própria gênesedemocrática do sistema jurídico já seria responsável por sua inevitávelimpregnaçãoética.Alémdisso,aexigênciade igualdadededireitos,casonãosejaentendidanosestritos termosda igualdadeformal,permiteapositivaçãodeliberdades específicas e prestações socioestatais a grupos que comprovemcondiçõesdesiguaisdeexercíciodascompetências jurídicas–comoseobservanos casos de ações afirmativas a culturas historicamente marginalizadas. ParaHabermas, assim, as estruturas do Estado de direito possibilitariam opçõesregulatórias suficientemente amplas para abarcar as demandas particulares dossubgrupos culturais considerados ameaçados ou em desvantagem, desde quemobilizadas adequadamente segundo uma luta por reconhecimento travadademocraticamente.Segundooautor,asúnicasmedidasdeproteçãoexcluídas apriori da comunidade jurídica seriam aquelas contrárias à liberdade de seusmembros.

Énessecampodainadequaçãonormativaaum“sistemadedireitosquetempor objetivo promover a liberdade” que encontramos as críticas mais durasdirecionadasaTaylor.Habermascaracterizacomo“fundamentalistas”asmedidasdestinadas à preservação de espécies culturais incompatíveis com as liberdadessubjetivas de ação, uma vez que representam tentativas de conferirultraestabilidade a um universo cultural específico fazendo uso de restriçõesdiscursivas por parte do poder político-estatal. Quando regulações jurídicaspretendem evitar modelos dogmáticos ou fundamentalistas de reproduçãocultural,elaspodemapenas possibilitaraapropriaçãoecontinuidadedeformasdevidae tradiçõesculturais,masnãoobrigaraadesãodeseusmembros.Cadaintegrante de comunidades culturais, em sua individualidade, deve possuir aliberdadededizersimounãoàapropriaçãoemanutençãodesuastradições.Sobcondiçõesreflexivasdereproduçãocultural,tradiçõeseformasdevidasópodem

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ser mantidas com a vinculação de seus integrantes e o convencimento destessobre seu valor, deixando aberta a possibilidade de aprenderem ou mesmomigrarem para outros universos simbólicos. Segundo Habermas, um modelonormativo que compete com as liberdades individuais não concede aosindivíduos a possibilidade de assumir reflexivamente a cultura de origem,transformá-laemseusconteúdosouabandoná-laporcompleto,detalformaqueaforça de manutenção da coletividade fica alojada não no posicionamentoautônomo de seus integrantes, mas em formas de preservação burocrática decaráterautoritário(HABERMAS[1994,p.134],2002,p.252).

Oembate travadoentreTaylor eHabermasconsolidaposiçõesquepodemser consideradas paradigmáticas no interior dos debates multiculturais: de umlado,temosummodelodereconhecimentopautadonapreservaçãodastradiçõesculturais, o qual encontra nos grupos ameaçados seu principal agente de luta eque suspeita do alegado universalismo da igualdade de direitos, defendendo anecessidade de afirmação das formas de vida coletivas mesmo que à custa darelativização das garantias individuais. Esse tipo de multiculturalismo forteencontra grande adesão nos debates contemporâneos que vinculam pós-colonialismo e pluralismo jurídico, nos quais representações de culturashistoricamente marginalizadas (tais como a de povos indígenas, ex-escravos eimigrantes) alegam que a continuidade de suas formas de vida depende doreconhecimentodeestruturasnormativasconsuetudinárias,asquaisdivergemdodireito estatutário e podem vir a se chocar com garantias individuaisconstitucionalmente asseguradas.4 De outro lado, temos um modelo demulticulturalismo que condiciona o reconhecimento de grupos culturais aorespeitodasliberdadesindividuaisdeseusmembros.Aspretensõesuniversalistascontidas na estrutura igualitária de liberdades subjetivas não são aquiconsideradas incompatíveis com a afirmação da particularidade de gruposculturais, mas condições mesmas para a reprodução não autoritária de seuscostumes e tradições. Sendo assim,metas coletivas de cunho ético-cultural sãosubmetidasaexigênciasdelegitimaçãomaisrigorosas:elastêmdesecomprovarpublicamente como parte das condições intersubjetivas que possibilitam a livrepersecuçãodeprojetosdevida individuais.Sua legitimidade,pois,nãopodeseancorarnosimplespostuladode igualvalordasdiferentesculturas,masderivado próprio procedimento democrático de que tomam parte, o qual exige umaatualização constante das normas que asseguram a igualdade e liberdade entretodos. Podemos dizer que esse modeloprocedimental consolida-se hoje como

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um dosmodelos teóricos predominantes no interior dos debates multiculturais,ainda que agregue em seu interior uma disputa ininterrupta sobre as formasconcretasdecompatibilizaçãoentrepreservaçãoculturaleestruturadedireitos.5

12.3.ReconhecimentoeredistribuiçãoEmvirtudedarecorrênciacomqueacategoriadereconhecimentoéacionada

para estruturar debates envolvendo conflitos multiculturais, ela logo vem a serconsiderada por um número significativo de autores um princípio normativovoltadoaocombatedeinjustiçasdecunhoestritamentesimbólico-valorativo–ecomotal,passaasercombatidacomoumparadigmateóricolimitado,incapazdeacessar as desigualdades de ordem econômica que acometem as sociedadescapitalistasatuais.6Aversãomaisdifundidadessacríticaérealizadapelaautoranorte-americana Nancy Fraser. Em seu livro Justice interruptus, de 1997, aautora procura caracterizar as teorias do reconhecimento contemporâneas como“ideologiasdaerapós-socialista”.

Fraser defende ali um âmbito de análise que parte das demandas políticasreivindicadaspelosmovimentos contestatórios contemporâneos.Enesse âmbitodeanálise,achamada condiçãopós-socialistaseriafortementemarcadaporumadiferenciação das frentes de luta. De um lado, teríamos reivindicações porredistribuiçãodirigidasàsuperaçãodasinjustiçasgeradasnaestruturaeconômicadasociedade,taiscomoaexploraçãodotrabalho,amarginalizaçãoprofissionaleosdiferentesníveisdeescassezmaterialqueconfiguramsituaçõesdepobreza.Deoutro, encontraríamos demandas por reconhecimento pautadas no combate àsdiferentes formas de injustiça alojadas nos padrões de reprodução simbólica dasociedade,taiscomorepresentaçõesdepreciativasdegrupossociais,asubmissãode culturas a padrões heterônomos de interação e sua estigmatização ouinvisibilidade nos veículos de comunicação pública. Segundo Fraser, essadiferenciação de demandas encontra-se intimamente vinculada à ascensão dosmovimentosidentidárioscontemporâneos:elesexpressariamoabandonodeumaluta social centrada exclusivamente em metas econômicas, afirmando aparticularidade de reivindicações por reconhecimento cultural e a recusa emcontinuarconsiderando-asdemandasdesegundaordem,asquaisteriamantesdepermanecersuspensasatéomomentodasupressãototaldabasematerialqueasproduz. Observaríamos, assim, uma diversificação dasmetas políticasmarcada

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pelodesacoplamentodedemandasculturaisdaquelascentradasnaredistribuiçãoeconômica.

Noâmbitodo imagináriopolítico,entretanto,essadiferenciaçãodasfrentesdelutaseriaocultadaemnomedefalsastotalizações:asideologiaspós-socialistasseriamcaracterizadasporelaboraçõesteóricasqueapresentamoreconhecimentocomoaúnicacategoriacapazdedescreverasinjustiçassociaiscontemporâneas,apesardeumcrescimentoagudodadesigualdadematerialobservadomesmonaseconomias mundiais mais desenvolvidas. Teríamos, assim, um completoofuscamento das exigências por igualdade material: aos olhos dessa novaideologia, a luta por reconhecimento pareceria substituir as lutas porredistribuição, como se estas não fossem mais necessárias ou politicamentevigentes. Em vez de salientar a ampliação das demandas reivindicatórias nopanorama político contemporâneo, a ideologia pós-socialista apresentariaredistribuição e reconhecimento comometasmutuamente excludentes, optandoseletivamentepelaúltima:

“Entrelaçadoscomcertosdesenvolvimentoshistóricos[comoaascensãodemovimentosidentitários,adescentralizaçãodaslutasdeclasseeaproliferaçãodoneoliberalismo]encontramosdiversascorrentesdaideologia‘pós-socialista’.Algumascelebramapassagemda‘redistribuiçãoaoreconhecimento’comose lutas por justiça redistributiva não fossemmais relevantes.Outras lamentam o descentramento daclasse,oqueidentificamaodeclíniodasreivindicaçõeseconômicasigualitárias,comoselutasporjustiçaracialedegênerofossem‘meramenteculturais’enãotambémendereçadasàdistribuição.Juntas,essascorrentes elaboram um panorama da política contemporânea nos termos de uma simples questão deescolha”(FRASER,1997,p.2-3).

AobradeFrasertorna-seemblemáticanãoapenaspelascríticasdirigidasàsteorias do reconhecimento, como por sua tentativa de agregar ambas as metasreivindicatórias em um programa político abrangente. A traços largos, essatentativaémarcadapelocombatedasestratégias afirmativasdereconhecimentoe redistribuição, isto é, de metas vinculadas à afirmação da particularidade degrupossociais,sejaemvistadarevalorizaçãodesuasidentidadescoletivas,sejaem vista da realocação de bens e oportunidades em benefício dos gruposeconomicamenteprejudicados.Paraaautora, emboraesses remédiosnãosejampor princípio autoexcludentes, suas consequências tendem a prejudicar um aooutro a longo prazo. A realocação assistencial de bens e recursos tenderia areforçar ou mesmo criar novas estigmatizações depreciativas, ligadas àincapacidade laboral e à dependência em relação a poderes tutelares. Dessamaneira, certos ganhos do ponto de vista da redistribuição reverter-se-iam emperdas do ponto de vista do reconhecimento. Esses construtos simbólicosdepreciativos, por sua vez, contribuiriam não apenas com a degradação da

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imagempúblicadosgruposbeneficiários,mas,também,comsuamarginalizaçãonomercadodetrabalho,criandoumcírculoviciosodediscriminaçãoepobreza.SegundoFraser,aformamaispromissoradecombinarmetasdereconhecimentoeredistribuiçãoseriapormeiodeseusremédios transformativos.Querdizer,pormeio de políticas que, por um lado, buscam não a afirmação das diferençasculturais, mas a desconstrução dos estereótipos e construtos simbólicos queestabelecem a própria diferenciação de grupos; e, por outro, voltam-se não àrealocaçãodebens,masàtransformaçãodasestruturaseconômicasquegeramadesigualdadematerial(SILVA,2008).Paraaautora,emvezdeprejudicaremumaooutro,osremédiostransformativosdereconhecimentoeredistribuiçãodevemserconsideradosmedidasnecessariamentecomplementares:

“Desconstrução se opõe ao tipo de sedimentação ou engessamento da diferença que ocorre numaeconomiapolíticainjustamentesectarizadaentregêneros.Essaimagemutópicadeumaculturanaqualasconstantes novas construções da identidade e diferença são livremente elaboradas e rapidamentedesconstruídassomenteépossível,acimadetudo,nabasedeumaigualdadesocialampla”(FRASER,1997,p.30).

FraserapresentaAxelHonnetheCharlesTaylorcomoosprincipaisteóricosdoreconhecimentoasuplantaremideologicamenteadimensãomaterialdaslutassociais contemporâneas. Essa acusação repercute em uma série de artigostravados entre Honneth e Fraser, publicados na coletânea Redistribution orrecognition? A political-philosophical exchange. Embora Fraser faça alimodificações substanciais em seu próprio repertório teórico, as críticasendereçadas aHonneth permanecem em seu cerne pautadas no combate a ummodelo unilateralmente culturalista das lutas sociais contemporâneas.7Para osobjetivos deste capítulo, interessam-nos, sobretudo, as novas explicitações dadimensãomaterial contidanacategoriade reconhecimento.Comefeito, emseudebate com Fraser, Honneth defende a categoria de maneira contundente,afirmandoqueelaénãoapenas capazdeabarcarasdemandasporredistribuiçãoeconômica enfatizadas pela autora, como também necessária a sua adequadacompreensãonointeriordosprocessosdelutasocial.

Honneth ressalta todo o tempo que sua teoria não trata o reconhecimentocomo uma demanda política particular, mas como fontes sociais dedescontentamento e resistência quemotivam os processos políticos em sentidomais amplo. Quer dizer, a categoria tem a pretensão de expressar a basemotivacional para as lutas sociais em seu todo, independentemente de estaremmaisintimamentevinculadasainjustiçasdecarátersimbólicooumaterial:

“[...]aestruturaconceitualdoreconhecimentotomaumaimportânciacentralnosdiasdehojenãoporque

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expressaosobjetivosdeumnovotipodemovimentosocial,masporquecomprovouconterferramentascategoriais apropriadas para descortinar as experiências de injustiça como um todo. Não é a ideiaparticularde‘coletividadesoprimidas’–independentementedeseremounãocaracterizadasnostermosda‘diferença’oudo‘reconhecimentocultural’–queprocuraproveratualmenteasbasesparaaestruturanormativadeumateoriadoreconhecimento.Aoinvésdisso,oquedáorigem–edefatocompele–aumatalrevisãocategorialsãoasinúmerasdescobertasjácompiladasconcernentesàsfontesmoraisdaexperiênciadedescontentamentosocial”(HONNETH,2003b,p.133).

EmreaçãoàscríticasdeFraser,Honnethdedica-seamostrarqueasmetasredistributivasnomeadaspelaautorapodemserconsideradasabarcadasemambasas dimensões políticas do reconhecimento já elucidadas, o direito e asolidariedade. Na dimensão do reconhecimento jurídico, as demandasredistributivas são exigidas principalmente na forma de direitos sociais. Comovimos anteriormente, as expectativas de reciprocidade inscritas no âmbito dodireito moderno encontram-se ligadas ao estabelecimento de condiçõesigualitáriasparaoexercíciodaautonomia.Emseudesenvolvimentohistórico,taisexpectativas deixam de dizer respeito apenas às competências de açãoformalmente asseguradas entre os membros da comunidade, estendendo-se àscondiçõesmateriais para seu efetivo aproveitamento.Nesse sentido, os direitossociais passam a compor os códigos jurídicos como uma forma de combaterlimitações aoexercício igualitárioda cidadania entre todos, exigindoprestaçõespúblicaspositivasemdomíniossociaisdistintos,comonasáreasdaeducação,dasaúde, do trabalho e da moradia. A delimitação desses direitos é realizadamediante uma luta por reconhecimento na qual os próprios cidadãos, expondosuas experiências de desrespeito e exclusão, buscam convencer publicamente acomunidade jurídica acerca da incapacidade de os direitos vigentes cumpriremadequadamente a expectativa normativa que exige a igualdade de tratamentojurídico entre todos. Segundo Honneth, a referência a essa expectativa deigualdade, socialmente arraigada em contextos democráticos, faz com quecondições de escassez material possam ser denunciadas não apenas comosituaçõesdecarênciaounecessidadequevitimizamgrupospeculiares,mascomoexperiências de injustiça normativamente inaceitáveis, de cuja superaçãodepende a legitimidade de toda a ordem jurídica. Para o autor, Fraserdesconsideraria esse referencial normativo inscrito na gramática dos direitos,tornandoarbitráriastantoadefesadasmetasredistributivasquenomeiaquantoasressalvascomrespeitoaseusformatosantidemocráticos.

Noâmbitodasolidariedade,porsuavez,asuperaçãodascondiçõessociaisque geram a desigualdade econômica vincula-se à transformação da ordeminstitucionalizada de valores que estrutura a divisão social do trabalho. Para

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Honneth, a divisão do trabalho está longe de ser operada de forma puramentetécnica, vale dizer, como uma “ordem econômica valorativamente neutra”.Aocontrário, a demarcação das profissões e de suas respectivas formas deremuneraçãoencontrar-se-iaprofundamenteligadaàautocompreensãoculturaldeuma sociedade, a qual escalona, segundo uma ordem valorativa própria, acapacidadeprodutivaespecíficadegruposeestratos,bemcomosuasdiferentescontribuições para o funcionamento da vida social. Segundo o autor, as lutascontraadepreciaçãodascapacidadesprodutivasdamulheresuamarginalizaçãoem setores do trabalho remunerado evidenciam tanto o embricamento entre areproduçãomaterialesimbólicadasociedade,quantoosefeitoseconomicamenteperversosdacondiçãodenãoreconhecimento.Honneth,assim,vinculamaisumavez as demandas redistributivas a experiências de injustiça verificadas emrelações assimétricas de reconhecimento.Trata-se aqui, entretanto, nãomais dareivindicação por um “mínimo de bens essenciais garantidos a cada cidadãoindependentementedesuaprodução”,masdeexigênciasdereconhecimentopelotrabalhoefetivamente realizadoporgrupos sociais específicos eprodutivamenteativos. Nesse sentido, a luta contra as diferentes formas de exploração emarginalização do trabalho – levadas a cabo não apenas pelo movimento demulheres como pela maior parte dos grupos que lutam atualmente peloreconhecimento de suas capacidades produtivas – exige a transformação dospadrões valorativos tradicionais envolvidos na distribuição desigual deremuneraçãoe status.

ParaHonneth,portanto,ateoriadoreconhecimentonãoseria“culturalista”,no sentido declarado por Fraser, já que elementos simbólicos e materiais seimiscuem em ambos os momentos de sua luta política. No último pontoapresentado, entretanto, o autor procura não apenas inscrever as metasredistributivas no interior da luta por reconhecimento, como combater umadistinção rígida, analiticamente produzida, entre cultura e economia. Essadistinção, que Fraser herdaria da separação habermasiana entre interaçãocomunicativae interaçãosistêmica,esvaziariaosistemaeconômicodequalquerexigênciadelegitimidade,impedindoosprocessosprodutivosdeseremdescritoscomo“processosabertosa transformaçõesnormativas” (HONNETH,2003c,p.250). Para o autor, a explicitação das dimensões simbólicas que estruturam adivisãosocialdotrabalhodeveseradmitidacomoumacondiçãomesmadesuacrítica imanente. Ela revela que o funcionamento da esfera econômica, assimcomo já acontecia na ordem jurídica, encontra-se atrelado à satisfação deexpectativas de legitimidade que a obriga a se abrir a críticas e avaliações

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públicas. Segundo Honneth, o descumprimento dessas expectativas delegitimidade, vinculadas ao reconhecimento pelo trabalho realizado e por suascontribuições particulares na reprodução da vida social, impulsionariam umatransformação normativa da ordem econômica conduzida pelos própriostrabalhadores lesados.Anegligênciaemrelaçãoaesse impulsonormativo fariacom que a teoria se resignasse perante as desigualdades econômicas ou, nomelhor dos casos, defendesse sua transformação aos moldes de uma disputautilitáriaporinteresses.Emambososcasos,insisteoautor,perderíamosacessoaoarcabouço normativo que nos permite nomear as diferentes roupagens daexploraçãodo trabalhocomo formas injustificáveisdeestruturaçãodas relaçõesprodutivas, cuja transformação seria impelida não pela simples força de umaagregaçãodeinteresses,masporexigênciasde justiçavinculadasaexpectativasdereconhecimentosocialmentearraigadas.

Demandasporredistribuiçãomaterialejustiçasocialcontinuamnaagendadosmovimentossociais:comcartazesclamandopor“Empregoscomjustiça”,centenasdepessoasdediferentesgruposdedireitostrabalhistasfazemmanifestaçõesnosEstadosUnidosparaquearedeWalmartassegureseusdireitos,semretaliações.5-8-2011.

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12.4.ParasabermaisProcuramosintroduziracategoriadereconhecimentoemalgunsdeseususos

mais proeminentes. Sua relevância no interior do pensamento políticocontemporâneo, entretanto, vaimuito alémdopercursoque acompanhamos atéaqui.Apóssuareinserçãonodebateacadêmico(paraaqualostrabalhosdeAxelHonneth,CharlesTaylor,JürgenHabermaseNancyFrasercumpremumpapeldecisivo), o reconhecimento se consolida como uma das categorias de maiordestaque tanto no campo da teoria política quanto na análise de processospolíticosconcretos.Aabrangênciadesuaspotencialidadesteórico-analíticaspodeser apreendida com a leitura de importantes coletâneas a ela dedicadas, tendoespecialatençãoàsobrasorganizadasporJulieConnolly,MichaelLeacheLucasWalsh ( Recognition in politics: theory, policy and practice, New Castle:Cambridge Scholars, 2007), Bert van den Brink e David Owen ( Recognitionandpower.AxelHonnethandthetraditionofcriticalsocialtheory ,Cambridge:Cambridge University Press, 2007) e Hans-Cristoph am Bush e Cristopher F.Zurn( Thephilosophyofrecognition.Historicalandcontemporaryperspectives,Plymouth:Rowman&LittlefieldPublishers,2010).Paraumacompreensãomaisabrangente das críticas direcionadas às teorias do reconhecimento, conferir ostrabalhos de Simon Thompson ( The political theory of recognition. A criticalintroduction, Cambridge: Polity Press, 2006), Alexander Düttman ( Betweencultures: tensions in the struggle for recognition,London:Verso, 2000) eLoisMcNay( Againstrecognition,NewYork:PolityPress,2008).

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–JoeRaedle/GettyImages–ChipSomodevilla/GettyImages

1.Cf.Taylor(2005),Habermas(2002),Honneth(2003a),Pippin(2008)eWildt(1982).

2.Cf.CoheneArato(1992),Benhabib(1992),Young(1990)eHabermas(1997).

3.Honnethmencionarapidamenteem Lutaporreconhecimentoqueaslutasporestimasocialvinculamnãoapenas a transformação da autocompreensão cultural da sociedade, como também suas estruturas dedistribuição de renda. Como veremosmais adiante, entretanto, é apenas em obras posteriores do autor –principalmente em seus debates comNancy Fraser – que as relações entre estima social e redistribuiçãomaterialserãomelhordesenvolvidas.

4.Cf.Glenn(2007),Shah(2005),Sieder(2002),Giraudo(2007)eUribe-Urán(2007).

5.Cf.Benhabib(2002e2004),Tully(1999),Valadez(2001)ePhillips(2007).

6.Fraser(1997),Tully(2000),Zurn(2005)eFraser(2003).

7.ParaumaanálisedetalhadatantodastransformaçõesdopensamentodeFraserquantodeseudebatecomHonneth,conferirBressiani(2010)eMattos(2006).