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Mateus göettees 1 - livro de mateus

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Quando tudo que parece normal se transforma em dúvidas, as verdades aparecem.

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O Livro de

Mateus

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índice.

idade: mês-dia

à morte, ................................................................................................. 12

Inari 36:09-29 ......................................................................................... 19

Mateus 35:11-12 .................................................................................... 29

Mateus 36:09-30 .................................................................................... 35

Mateus 24:04-27 .................................................................................... 39

Mateus 06:07-21 por Tiago..................................................................... 45

Inari 36:10-01 ......................................................................................... 51

Mateus 36:10-04 .................................................................................... 59

Mateus 05:10-04 .................................................................................... 60

Mateus 36:10-07 .................................................................................... 67

Mateus 36:10-10 .................................................................................... 80

Mateus 27:05-01 .................................................................................... 89

Mateus 36:10-12 .................................................................................... 95

Mateus 36:10-13 .................................................................................. 105

Mateus 32:06-20 .................................................................................. 109

Mateus 36:10-15 .................................................................................. 116

Mateus 12:07-12 .................................................................................. 128

Inari 36:10-15 ....................................................................................... 132

Inari 36:10-29 ....................................................................................... 142

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Mateus 36:10-29 .................................................................................. 149

Mateus 36:03-30 .................................................................................. 157

Mateus 36:04-18 .................................................................................. 165

Inari 36:11-01 ....................................................................................... 169

Mateus 11:11-11 .................................................................................. 188

Mateus 36:11-05 .................................................................................. 192

Mateus 36:11-12 .................................................................................. 198

Mateus 36:11-15 .................................................................................. 204

Inari 36:11-17 ....................................................................................... 215

Mateus 36:11-17 .................................................................................. 223

Mateus 36:11-08 .................................................................................. 235

Mateus 36:11-22 .................................................................................. 241

Inari 36:11-25 ....................................................................................... 249

Inari 36:11-26 ....................................................................................... 261

Juroo 111:05-30 .................................................................................... 273

Bibliografia. .......................................................................................... 283

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Um livro dedicado ao Deus

que está em cada um de nós,

dedicado, então, a todos. Por

mim, por nós, para todos.

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Quando eu pensei em escrever,

não imaginei que algumas folhas soltas do que

pretendia ser um diário poderiam se tornar um livro. Sempre

quis registrar as minhas experiências e com elas, segundo as

exigências da minha biografia – porque eu não consegui

encontrar ninguém mais interessante, ou seja, cheio de

problemas –, rememorar as principais divagações e torná-las

vivas mais uma vez.

Hoje, depois de quase dois anos, descobri

profundamente que sei que nada sei, cada explicação é seguida

de uma torrente incontinente de novas dúvidas, como se

houvesse cortado uma das cabeças da hydra. Portanto eu

assumi uma postura submissa diante do inevitável, porém o

inevitável começa a se parecer com o desejado. O medo, as

angústias, a raiva não passam de perturbações que criamos

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porque não compreendemos. E não compreendemos porque

não temos todas as respostas. Por isso julgamos em vez de

discernir.

Estou tentando lutar contra ilusões criadas e mantidas

por minha mente. Causa e efeito que dependem

exclusivamente de uma realidade que não compreendo e que

defino segundo as minhas crenças.

Depois de reler o que escrevi, várias vezes seguidas,

comecei a entender o quanto nos iludimos com certas verdades

flexíveis, nos condicionamos a reagir às regras do jogo. Desta

observação, dos escombros do meu ego, tentando me

autoconhecer, deparei-me comigo mesmo. E fui ludibriado e

levado a acreditar que eu não era assim para que, ao admitir a

minha ignorância, tivesse que evoluir. Destas leituras e suas

impressões, hoje eu compreendo o quanto negava as minhas

inépcias. Só uma doença incurável poderia mudar isto.

Mateus Göettees, outubro de 2013.

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Todos temos um compromisso com a verdade.

Esta verdade dependerá das suas escolhas e estará

intimamente ligada com às suas capacidades. Na verdade não

dependerá das suas capacidades pois elas jamais nos

impediriam de saber a verdade. O que nos impede de ver a

verdade, seja porque acreditamos que as nossas capacidades

são incompetentes ou porque a verdade está oculta, não passa

de uma ilusão.

A verdade é intrínseca. Somos nós que repetimos e

acreditamos que ela deve ser encontrada. Uma busca eterna

pelas respostas que sempre terão perguntas inesgotáveis. No

fim, a verdade jamais será encontrada enquanto acreditarmos

que o Todo é finito.

É uma boa premissa para que possamos evoluir,

aprimorar nossas capacidades e chegar sempre mais perto da

verdade. No entanto negligenciamos quem somos ao aceitar

que temos falhas a serem corrigidas. Proponho que, antes de

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sair atrás da verdade, encontre quem você é. Submeta-se a si e

encontre as suas verdades.

Ao se recolher em si, um processo de

autoconhecimento dispara o gatilho da transformação. Esta

transformação ampliará a sua autoestima e esta auxiliará

progressivamente a transformação. Muitas ferramentas

poderão ser usadas como meio, são meios hábeis, para que o

conhecimento de si seja inimaginável. A meditação poderá ser

uma profunda concentração se quiser, mas também poderá ser

um exercício de discernimento.

A intuição e a inspiração serão bússolas tão poderosas

que farão a lógica e as leis humanas caírem por terra.

Os relacionamentos serão conexões.

O espírito controlará o ego.

Basta observar.

Tiago.

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“Quando o Sol se derramar em toda a sua essência. Desafiando o

poder da ciência, para combater o mal. E o mar com suas águas bravias, levar

consigo os pós dos nossos dias, vai ser um bom sinal. Os palácios vão desabar

sob a força de um temporal e os ventos vão sufocar o barulho infernal. Os

homens vão se rebelar dessa farsa descomunal. Vai voltar tudo ao seu lugar,

afinal. Vai resplandecer, uma chuva de prata, do céu vai descer. O esplendor

da mata vai renascer e o ar vai ser de novo natural. Vai florir e em cada grande

cidade, o mato vai cobrir. Das ruínas um novo povo vai surgir e vai cantar,

afinal. As pragas e as ervas daninhas, as armas e os homens do mal vão

desaparecer nas cinzas de um carnaval”. Clara Nunes - As forças da natureza.

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1944

“A piedade é a virtude que mais vos

aproxima dos anjos; é a irmã da caridade,

que vos conduz até Deus...” A piedade,

capítulo XIII, Evangelho Segundo o

Espiritismo.

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à morte,

à tolice e ao orgulho.

Amanhecia sob a luz onipresente que se irradiava

através das nuvens lilases. E a longa aurora ainda se dispersava

entre alguns dos meus pensamentos mais perturbadores.

O céu de um azul intenso procurava se mesclar, no

horizonte, ao oceano que se esparzia brutal lançando-se aos

céus. Em ondas espumosas e brancas ela se debatia contra os

derradeiros penedos da terra-mãe. Para mim, estas costas azuis

seriam as primeiras comprovações de terra nada firme, uma

morada fragmentada pela cruz gamada que desprezava

infatigável, a tudo. E o vento zunia produzido por mim

enquanto o sol já se equilibrava nos quadrantes superiores.

Nada me levava ao desejo de contemplar a vida

letárgica logo abaixo, a alguns pés. Para mim ela estava se

tornando distraída e sem sentido, até mesmo eu, alguém que

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diziam expressa-la além das expectativas da imaginação. Quem

poderia matutar que os apaixonados também se

esmoreceriam?

Por instantes retornei ao meu pequeno mundo

mecânico.

Os giros constantes dos motores de meu aeroplano

davam às hélices um aspecto quase tangível e o ritmo

monótono de seus roncos pareciam me hipnotizar. Os

instrumentos pareciam estar em ordem, com seus ponteiros

sempre nas mesmas posições de que tudo andaria bem. Os

controles reagiam ao leve movimento e as asas guinavam e

sacolejavam ao arrasto. Desta vez eles não estariam

endurecidos pelo frio das altas altitudes e nem a respiração do

cordão umbilical, opressiva.

E ainda dedilhava os mostradores só por precaução

cerimonial.

Em minha cabeça já não estava certo se os ponteiros

indicavam alguma precisão. Só tentava lembrar-me do meu

parco quarto arrefecido, onde as labaredas de um aquecedor

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dançavam, me embalando em sonhos infactíveis.

Havia escrito cartas, muitas delas acabaram maiores e,

irrefreáveis, espalhavam ideias. Mas havia escrito muitas cartas,

algumas – inevitavelmente – para minha mãe. Contudo poucas

teriam tanto peso em meu destino quanto às que acabei de

pousar no console de minha escrivaninha.

Só eu quem as acabaria descobrindo.

Todo o peso da minha frustração engolia-me em

divagações incontroláveis. Um frenesi ensurdecedor causado

pela minha arrogância indiscriminada. Um poder inexistente

concedido pela voz, um sussurro sem rosto, que me

transformou em uma marionete das inépcias humanas. Eu que

podia levar os homens a chorar diante da ferocidade em que os

seus irmãos se mostravam. Uma empatia acolhida de simples

parágrafos de linhas negras. A vida sem cor que podíamos

absorver, chorar e esquecer sem sermos arrastados para

dentro.

Infelizmente eu era o criador que acabara devorado

pela criatura e amassado como os papéis que considerava tão

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importante, jogado pelos cantos. Com sorte poderia aquecer

algum coração, mas os homens ainda não estavam preparados.

E a sorte seria se acabasse mantendo algum fogo acesso de uma

noite fria desta contenda.

Eu também não estava pronto.

A minha prepotência estava em me considerar a voz

acima das outras, a que lutaria por todos. Neste instante a

máquina despencou dentro de uma corrente de ar tirando-me

de minhas maldições. Como ninguém me atendia? Onde

estavam aqueles que me bajularam e em tapinhas depositavam

todos os seus prestimosos e incondicionáveis apoios? Que tolo

eu fui.

Derrotado pela minha ilusão.

Mais uma vez fui despertado pelo mundo real, parecia

que outra corrente me atirava para o lado. Porém senti uma

vertigem tépida. De minhas pernas escorria a vida. Guinei e

constatei que estava sendo caçado. Um pavor pelo qual jamais

me preparei. Estava voando muito baixo e logo deveria ser

como um reflexo para o inimigo.

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Reagi conforme o medo, pensei que poderia escapar

pousando em terra quase neutra de Vichy. Dando-me sem

reação. Esmorecido pelo meu ego inflado.

Fui vencido pelos meus medos. Uma dor profunda

alimentava minha frustração, minha tristeza. Não pensei mais.

Abaixei o manche rumo ao mar da tranquilidade e no momento

do impacto temi a morte e pousei adiando o trauma.

Atordoado afundava devagar, mergulhando na

escuridão insonhável. O pavor respondia pela minha tentativa

de me salvar. Mas as pernas dilaceradas e a cabine travada

adiaram o inevitável. Morria apavorado.

Um suicida incógnito.

O herói da nação um covarde diante de sua maior

prova. Para os homens que leriam seu obituário, o maior entre

os maiores.

Um suicida. E ninguém jamais saberia.

Só eu e a minha consciência.

Em algum lugar, um porto seguro, um amigo esperaria

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além do limite de suas esperanças. Acenderia outro cigarro

enquanto a noite despertava em estrelas de magnitude.

Com olhar inconsolado verificava as cartas enquanto

as recolhia para um bolso interno. Nelas estavam as minhas

últimas palavras para o mundo. Amargas e duras, quase uma

despedida.

Pude perceber que ele olhava para o alto e pensava

em pequenos planetas com um sorriso de garoto. Descartava o

cigarro e retornava para o seu gabinete aquecido, de labaredas

gentis e envolventes...

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1

“Aqueles que passam por nós, não vão sós,

não nos deixam sós. Deixam um pouco de si,

levam um pouco de nós”. Antoine de Saint-

Exupery.

Inari 36:09-29

O vento galgava os prados com intensa mansuetude,

friccionando os seus corpos etéreos no campo florido que

crescia ao cume da colina desgastada. Dividia-se em línguas que

usurpava o templo, soando os guizos de algumas centenas de

proteções divinas. As bandeirolas se retesavam e emitiam um

halo de pigmento alaranjado que se impregnava nos monstros

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invisíveis enquanto as faces pétreas das estátuas de raposas

eram avivadas pelo bailado de seus cachecóis vermelhos.

As lanternas japonesas eram fustigadas a engasgar-se

pela ferocidade da ventania que percorria os antros divinos,

irrompendo pelas frestas antes de se digladiarem nas florestas

eternas de bambus.

Com os olhos fechados sentia o estrondo e o

movimento destes dragões sibilosos e sinuosos. Antigos amigos,

originários do ar que brincavam com a terra, a água, o fogo e a

madeira. Despregavam o tecido de minhas vestes como se eu

fosse um navio em águas tormentosas. Um acariciar táctil que

dizia a mim que eu existia, onde quer que eu esteja.

Com os pés descalços fincados no manto verde

derramado, agitava as pontas dos dedos como se jamais tivesse

experimentado algo parecido. O tempo já se abeirava do ocaso

com nuvens lilases e sol em ouro velho. Poucas ocasiões seriam

tão demoradamente prazerosas quanto esta. Olhei para os tênis

com suas línguas de meias soltas enquanto alguns aldeões se

preparavam para algum acontecimento. A colina estava sendo

avivada pela liberdade de muitas pipas, empinadas por crianças

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enfeixadas por quimonos coloridos. A animação fortuita

intensificava a paisagem que tomava as cores de uma gravura.

Era a hora de me despedir e caminhar ao encontro dos

meus demônios. A noite seria preenchida com cantos e risos de

festejos ao redor de fogueiras e contemplações de luz e

sombras em danças embriagadas. De crianças correndo em

brincadeiras que gostaria de correr e delícias devotadas aos

deuses do templo da montanha. Apesar disso estaria longe

demais para só escutar, carreado pelo vento, o instante em que

o vozerio adormecesse. Teria ainda alguns instantes sagrados,

observando o manto perfurado da noite, refletido no espelho

de águas límpidas de um lago, às margens de pedras à borda da

floresta mágica.

Mas algo em mim dizia que não.

Sentei-me aos primeiros degraus de madeira

acinzentada e primorosamente esculpida em seus encaixes

milenares. Pus os tênis assistindo uma criança se aproximar de

costas em vigília de sua acanhada irmã atrás de borboletas

caladas dentro do campo de flores do campo. Uma

circunstância imprevista por mim, para quem não sabia se

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relacionar com alguém daquelas paragens.

Cumprimentei-o simplesmente balançando a minha

melhor cabeça cerimoniosa de costumes adversos e recebi um

sorriso. Devolvi o presente e subi pela escadaria já me

adiantando alguns passos quando recebi uma reprimenda.

― Não deveria pôr os pés no lugar mais sagrado para

nós!

Intrigado porque alguém havia falado comigo, girei os

calcanhares guinchando o plástico da sola e, boquiaberto, não

sabia o que responder.

Vislumbrei mais uma vez o vale, com sua cidade

despertada, viviam centenas, talvez milhares, de sombras

minhas. O mundo germinou da minha compulsão de me

conhecer melhor. Antes eu só ia até o lago. Aos poucos cunhei o

templo que me abrigava das ilusões perturbadoras.

Com aquela indisfarçável sensação de que não correria

até os intermináveis degraus de uma escadaria rústica,

bordejada por torii vermelhos em ideogramas indecifráveis, que

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me levaria compulsoriamente até o lago.

Mantinha o olhar perdido, entre duas escolhas.

Decidi-me. Avancei dois passos e saltei algumas braças

para cair flexionado ao lado do averiguador. Não podia perder a

oportunidade de me exibir. Ele não se abalou com esta

demonstração pueril e desdenhou-me de face impassível.

― Quem é você?! ― como se eu não o soubesse, pelo

menos é o que eu supunha.

― Agora eu sou chamado de Juroo.

Uma resposta que fundia a dúvida de palavras ditas

com impressões minhas sobre aquela ficção. Eu me

experimentava muito bem em sua presença e o ato de que não

sabia exatamente como agir diante de quem tem uns treze anos

não me causava o constante nervosismo. E eu bem sabia o

porquê.

Voltei-me para o vale onde, a pouco, o sol se abrigava

por entre os picos mais altos. Que era serpenteado por um

riacho que se perdia de vista à oeste. Talvez a impressão breve

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de que todos deviam viver como pescadores, com os seus

rostos abrasados, teria reescrito a paisagem. Agora o sol

mergulhava num eterno oceano, que engolia-nos em garras de

sombras em meio ao nevoeiro que se adensava no horizonte e

uma brisa úmida e salobra chegava até os meus sentidos.

Maravilhado cai-me de lótus.

Com o silêncio pude fixar os olhos em mim, melhor.

Estava esplêndido com a minha revigorada adolescência; cabelo

negro e mais comprido e liso que deixava alguns fios atacar a

minha fronte serena. Vestia um moletom leve de cor ocre

emoldurada por trechos escuros como admirava em usar algum

dia. Ele quebrou o silêncio; quase me esquecia de que as

sombras podiam me ver.

― Acredita mesmo que nós somos tão insossos? ― e

mirou-me fixamente por algum tempo que eu não soube

precisar. ― E como devo te chamar?

― Eu não sei. Sinto-me ridículo falando com...

― Aqui, todos te chamamos de Inari. E não me chame

de sombra de sua imaginação ou como gostaria de dizer, mas

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supõe que eu não compreenda, de projeção do subconsciente.

Eu sabia que ainda me chamava Mateus, mas estava

escandalizado e muito apreensivo, apesar de me manter firme

diante dele. Com quem eu estaria conversando? Não era uma

subversão do que eu imaginava? Isto tudo não era nada mais do

que um tratamento para o meu espírito enfermo.

― Então o quê está se passando? ― certo de que em

algum momento entre a ideia e a criação, nascia a vida.

Curioso que você não a saiba, pois eu esperava que me

dissesse. ― comentava Juroo-kun.

Olhava para a menina saltitando por entre as flores

fartas enquanto pensava. Em minhas memórias renasciam as

formas daquele mundo, onde guardaria a profundeza de meu

ser. A mim, ou pelo menos àquele a quem eu seria. Um lugar

por onde eu corporificaria os meus desejos intensos de minhas

convicções perseverantes. Convicções que me assolavam como

ondas e pouco ainda me davam para o que refletir de suas

insinuações.

Em pouco tempo o santuário surgia e, em sua

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ilimitada dilatação, um lago. As vilas abandonadas, como reflexo

do meu desmoronamento do espírito, seriam invadidas por

centenas de trabalhadores que seguiam estas novas convicções.

Precisava me restaurar das ruínas de mim mesmo.

Mas, mesmo antes de chegar ao fim, o garoto me

apontava sua ideia de liberdade através da menininha que já

corria sem sopro em risos eternos. ― Sabe, todos nós somos

partes de quem você é.

Sabia, porém eu não estava pronto para a verdade. ―

E como soube?

― Não somos tão diferentes assim. Sou sua melhor

parte. Esta que atingiu algo ainda mais elevado.

Estas pessoas que se afunilavam rumo às trilhas que

levariam para algum acontecimento insonhável, passavam

indiferentes por nós. Desconhecendo os seus destinos,

confiados às ilusões.

De olhar arqueado, Juroo-kun sempre deixava

transparecer sua dúvida. ― Que ilusões?!

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Fui acometido de surpresa, pois não conseguia definir

o que era realidade ou ilusão. Não para ele, muito menos para

mim. No entanto percebi que a resposta seria dúbia para

aqueles que quisessem entender onde estão.

E ele sorriu concordando.

Ele estava me testando? ― Juroo-kun, você é a melhor

parte de mim?!

― A melhor, aquela que transcende todas as barreiras.

E o que considera o melhor de ti.

― Aquela que está unida ao Todo, que está acima. ―

divaguei em voz alta.

― Quer dizer, com Deus?

Não podia negar. ― Sim.

― E você também é uma parcela deste Deus?

Sorri. ― Sim, sempre. ― E só recentemente me dei

conta disso.

Estava me deparando com a parte de mim que atingiu

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seu Todo, eu. Pois eu havia atingido o meu, Deus. E esta

revelação me deixou eufórico. Ele chegou à mesma afirmação.

― Somos aqueles que se conectam com que está

acima e...

Rematei, pois eu era o intermediário. ― abaixo.

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2

“A probidade [integridade] nunca está

perdida para sempre, a menos que a

abandonemos... se ela parece desaparecer é

porque nós estamos perdendo a retidão de

nossa própria mente”. A Doutrina de Buda.

Mateus 35:11-12

Estava inquieto diante das voltas dadas pelo destino

que me colocou naquela casa de saúde. Pois eu mesmo não

saberia como nomeá-la, os residentes falavam em uma casa de

apoio ao paciente com câncer e doenças degenerativas, com

grifo de interesse meu. O primeiro vislumbre era de que estava

sendo enfiado num destes leprosários do século antepassado.

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Quartos brancos, camas metálicas e asseadas preenchidas de

almas entorpecidas, contidas em seu desespero de gritar a

plenos pulmões. Contudo, todos estávamos por vontade e

coação de nossos egos em estertores.

O ego, que em aflição, digladiava-se entre perpetuar o

seu domínio sobre a alma ou destruir-se, por mais absurdo que

isto soasse. Provocado por doenças incontroláveis e incuráveis

que exigiam dele novos paradigmas. Um paradoxo que poderia

provocar o seu extermínio. Porém ele era mais forte do que

supunham, e sua aflição era quase injustificada. Os hábitos

sempre voltavam.

Caminhei vacilante. Anoitecia e a pouca luz parecia dar

ao lugar ares de lampião em casas sertanejas. Tomava um traje

com fresta nas costas e aguardava ser chamado. Não estava

preocupado, até aquele instante.

Fui assaltado de tremendo pavor, não justificado.

Compreendia o que estava acontecendo, conhecia o processo,

havia visto em mais de uma oportunidade o que seria feito em

mim. Mas jamais o havia experimentado.

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Em poucos minutos seria submetido a uma cirurgia

espiritual. Como a doença distinguia-se como incurável, onde

mais eu encontraria uma esperança! Começava a ver o quanto

estava me enganando. Acreditei em médicos que nos dizem

aquilo que outros doutores perpetuam. Os médicos não passam

de técnicos – altamente especializados – daquilo que os

pesquisadores descobrem, desenvolvem ou supõem. Tão

somente baseado naquilo que consideram existir.

É verdade, sou espírita.

Acredito em todas as inépcias que a humanidade

apregoa. Senão, como eu acreditaria em medicina ou

tecnologia. Aceitar a versão da história das coisas e renegar a

fantasia que, sutil e ambígua, nos diz quem somos e molda

nossa personalidade por demais complicada.

O meu corpo estava definhando. Braços e pernas não

respondem mais aos meus apelos. Não sentia o meu mundo.

Estava enfaixado por substância imponderável que restringia o

meu tato. Órgãos internos agiam como autômatos, produzindo

as suas versões precárias de funcionamento, indiferentes ao

corpo e seus intricados mecanismos de equilíbrio. Excessos e

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deficiências de glândulas e neurônios. Estava literalmente me

consumindo em banho-maria.

O coração palpitava desconfortável quando surgiu

uma mão amiga que, num apertar singelo, soube me

tranquilizar. O seu sorriso largo dissipou o temor que se

transformou em algo indefinível. Sentia-me como um enviado

que estava na linha de frente de uma grande descoberta.

Carregado por uma cadeira de rodas, fui levado até o

ambiente cirúrgico que era coordenado por alguns médicos sem

instrumentos visíveis. Certifiquei-me antecipadamente que não

haveria facas, bisturis, agulhas ou ferramentas pontiagudas ou

afiadas que me dessem a certeza de que não deveria estar lá.

Não suportava a ideia – nem cogitava imaginar – de

ter as córneas raspadas com faca de cozinha, mas acreditava no

poder da fé. Ainda que a minha estivesse sendo aperfeiçoada.

Tinha inveja de quem se submetia ao procedimento confiando

tão somente na providência divina. Eu já havia passado deste

ponto; sem retorno.

Cogitava repensar, confiança em quem?!

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33

Não presenciei o momento mais importante de minha

existência porque estava de costas, com o rosto enfiado em um

travesseiro. E o tempo excepcionalmente ambíguo, como se

estivéssemos em um tempo paralelo, um instante quase eterno

que durou menos que um minuto. As impressões foram

intensas e intrincadas e, de todas as palavras que eu me

recordava, boas ou más, usei a mais inesperada para a situação.

A nunca dita e pouco ouvida, quase perfeita quando a expressei

por pensamento brusco e inaudível – assim pensei – que, em

frações de segundo, estagnou o vira e mexe que faziam por

toda a espinha, mais o bulbo e o cérebro desmielinizados.

Puta que pariu! – perdão pela expressão.

Rápida e impensadamente desculpei-me em

pensamento e os médiuns prosseguiram, sem jamais saber se

me escutaram. Foram as mais estranhas sensações que ficaram

marcadas por nenhuma dor e algumas cicatrizes que pareciam

ser costuras que eu senti passar por debaixo da coluna cervical

como se eu fosse feito de tecido preso à máquina de costurar.

Quis me levantar, e entendi o porquê da cadeira de

rodas. Como estava internado seria posto em meu catre com

Page 34: Mateus göettees   1 - livro de mateus

34

relutância. Todos já dormiam.

Comecei a sentir as minhas mãos, esfregando-as

contra a barba cerrada em crescente euforia. Depois seriam as

pernas e pés contra o gradeado. Friccionado-os em tudo. Não

dormi. Também, não precisava mais.

Page 35: Mateus göettees   1 - livro de mateus

35

3

“A realidade é eterna, a realidade não

adoece, a realidade não envelhece, a

realidade não morre; ao fato de conhecer

esta Verdade se diz conhecer o caminho”.

Sutra Chuva de Néctares da Verdade,

Seicho-no-ie. Masaharu Taniguchi.

Mateus 36:09-30

Abri os olhos.

Estava bastante sobressaltado para manter uma

conversação com Juroo-kun. Diante de mim um quarto modesto

me trazia segurança. Escrito nas paredes, um resumo das

conjugações verbais japonesas em kanjis e hiraganas que

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36

insistentemente aprenderia, apesar...

E em realce, uma reprodução da gravura A Grande

Onda de Hokusai sobre uma parede lilás que eu não pintei para

mim, contudo eu gostei assim mesmo.

E aquela voz que parecia ter mais conhecimento, do

que eu mesmo, havia se fundido com uma sombra ocasional de

minhas mentalizações – ou visualizações – terapêuticas. Um

mecanismo que estava usando para fortalecer a ideia de me

curar, ou de suplantar o hábito que criou a doença. A autocura

através da voz pujante e vibrante de Divaldo – Pereira Franco –

em gravação introspectiva e in fraudem legis.

O lago se misturou com o exercício de criar um lar

para a minha Luz Divina, o templo foi se construindo a cada

nova cirurgia espiritual e, as cidades foram sugestões

imaginárias minhas para interpretar o assalto dos famigerados

Linfócitos T contras as células neurogliais que incansavelmente

protegiam os axônios com uma coberta – não tão generosa – de

mielina.

Page 37: Mateus göettees   1 - livro de mateus

37

E assim os axônios eram aquedutos rompidos que não

chegavam às vilas mais remotas – pés, mãos – simuladas em

gênero e escala imprecisos. E os arruaceiros linfócitos não têm

culpa se confundem a mielina com algo indesejado para o

corpo, já que não deveriam estar no cérebro ou sistema

nervoso central.

Como um pseudoarquiteto comecei o saneamento das

cidades dando uma vontade incoercível às projeções do meu

subconsciente para que impedissem a destruição, lutando e

reconstruindo os canais. Se bem que elas – as projeções

imaginárias – nem façam ideia do porquê da súbita

manifestação de uma perseverança sem origem.

Estes eventos não foram minuciosamente aguardados

por mim e tampouco foram efeitos não-previstos de uma busca

intensa pelo autoconhecimento. Eu sou um doente de nenhum

recurso médico em vista.

Se eu sequer pudesse imaginar o que me aconteceria

em poucos meses, teria que rolar de rir. Jamais estive em busca

Page 38: Mateus göettees   1 - livro de mateus

38

da verdade. – me conformava com teorias de conspiração. E

nem esperava por algo maior. – até a cura me era inalcançável.

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39

4

“Não poucas vezes, por imaturidade, toma

decisões compulsivas e derrapa em estado

de perturbação; demarcando fronteiras e

evitando atravessá-las, assim perdendo

contato com as possibilidades existentes...

que poderiam definir os rumos”. Amor,

imbatível amor. Divaldo Franco.

Mateus 24:04-27

Um belo dia. Azul como jamais havia visto um.

Talvez fosse a ansiedade que me escoltava em minha

inspeção. Observei os encaixes das asas com os flaps e ailerons

com minucioso exagero, demandando um tempo muito acima

da média. Segui pela estrutura lonada da carlinga até os

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40

profundores e bequilha.

O aeroplano era de uma aparência sofrível e devia ser

o desgosto de todo aeronauta. Mas para mim era a liberdade

encarnada mais extraordinária de todo o mundo. Uma sensação

que só experimentei por igual quando era criança, quando

embolsava uma tolice qualquer que arquitetava como o maior

desejo de todos os tempos. – até aquele momento.

Estava tão radiante que aquela observação demorada

servia para amenizar a minha impaciência. Sentia-me estranho.

Como se a saudade estivesse com os minutos contados.

Quando me inscrevi para o curso, buscava atropelar o

meu medo de dirigir – carros. Se eu pudesse executar um voo, o

quê mais me impediria. O que não mata, cura. O céu seria o

limite. E não era só isso.

O avião, em si, não parecia ser uma simples

coincidência. Sentia como se o destino estivesse me socorrendo.

Após averiguar o combustível, o instrutor sentou-se

atrás, sem visão dos instrumentos que seriam narrados por mim

por meio de aparelhagem de comunicação. Estava

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41

experimentando os freios enquanto taxiava para uma das

cabeceiras. Executava curvas que me atordoavam e num giro

completo encabecei a pista livre.

Tagarelei para um controle de torre faltante e acelerei.

Os instrumentos, vários, tomavam a minha atenção quando

puxei delicadamente o manche para que o avião se alinhasse

imprimindo maior velocidade.

Quando percebi estava voando e vigiando

intermináveis instrumentos e ouvindo conselhos – exortações

cuspidas – para estabelecer voo de cruzeiro. A bússola girava

tão devagar que nem percebia estar me deslocando. O barulho

do motor era reconfortante.

De todas as reações possíveis que eu esperava sentir,

eu fui tomado de febril e incompreensível saudade. Sentia-me

muito além de minhas recordações. Uma sensação de percorrer

raides subsaarianos, mergulhar através dos contrafortes de

cordilheiras austrais e deliciar-me com lugares jamais

explorados.

Page 42: Mateus göettees   1 - livro de mateus

42

Fiz manobras de aprendiz e retornei para o aeródromo

para um pouso por entre duas colinas. Parecia o buraco de uma

agulha.

A aproximação corria dentro dos parâmetros do

instrutor e eu não estava nem um pouco apreensivo. Estava

dentro do meu jogo. Quando estava para tocar no solo senti-me

tão seguro que, mesmo que o instrutor usasse o manche

auxiliar – e eu não o saberia –, deslizei suavemente. Eu havia

feito um pouso perfeito.

Não foi somente uma conquista mecânica, havia uma

sensação, uma emoção que jamais voltaria a provar. Eu sabia

que poderia voar sempre que eu quisesse. Transcendia o

tempo.

Contudo, ainda não conseguia dirigir.

E com o tempo encontrei um grande inimigo aos

pilotos ávidos, não conseguia entender as comunicações via

rádio. Nem o tempo melhoraria os chiados e ruídos. Mas o

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43

problema era outro.

A providência se encarregou de me ajudar e o

aeroporto foi fechado para reformas eternas. Aproveitei para

desistir do impossível. Conhecia os meus limites e, quando eles

não se dilatavam me dando mais sobrevida, perseverar

representaria uma tolice.

Os céus já não eram livres. Tudo que havia para ser

descoberto já estava desvelado. Regras e mais leis que me

impediam de sonhar. Não precisava me apegar às recordações

que também doíam.

Amuado, somei esta frustração às que se seguiam.

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44

Page 45: Mateus göettees   1 - livro de mateus

45

5

“O mundo é como uma casa em chamas que

está sendo sempre destruída e reconstruída.

Os homens embaçados pelas trevas da

ignorância, desperdiçam as suas mentes na

ira, descontentamento, ciúmes,

preconceitos e paixões mundanas. Eles são

como crianças precisando de uma mãe...”. A

Doutrina de Buda.

Mateus 06:07-21 Narrado por Tiago.

Ele choramingava copiosamente.

E abraçado por uma noite festiva, cheia de doces e

crianças incansáveis, ele se afastou sem levantar a menor

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46

suspeita. A dor quase o enlouqueceu.

Estava sozinho, – supunha – sentado sobre uma

mureta oculta na escuridão afastada de um bosque de

eucaliptos murmurantes. A alameda de seixos estava vazia e o

brilho opaco de alguns postes mortiços dava contornos mortos

às sombras.

― Não se angustie, ficarei por perto. ― Estava

ajoelhado com o braço sobre o seu ombro, consolando-o. E que

não percebia a minha presença.

Ao longe, a celebração de grandes letras acartonadas

chegava ao ápice com o exagero de palmas e assopros. Mateus

estava transtornado e em suas presunções de uma mente de

criança tentava assimilar o que estava acontecendo.

Levantei-me no aguardo de alguém que se

apresentaria como um anjo. Destes anjos que nos acompanham

por toda uma vida e além.

― Como foi o despertar dele? ― Não precisava

discorrer, Mateus deixava o conflito transparecer em seu rosto.

Page 47: Mateus göettees   1 - livro de mateus

47

Era o fim de sua liberdade pueril.

Daquele dia em diante ele seria perseguido pelos

medos de outrora. Um esboço de quem era. Premido pelos

traumas, assim como pelas virtudes.

― Ele suportará esta decisão?

― Sim. Se os obstáculos forem bem implantados ele

será encaminhado... ― O anjo calou-se.

Aos seis anos, o garoto enfrentava o despertar de sua

consciência que, nesta idade, poderia ser bastante adaptável.

Porém, em alguns casos, se houver necessidade, ríspida e

atordoante.

De um dia ao outro se tornou tímido e desconfiado.

Receoso das intenções dos outros, incapaz e amedrontado

diante dos problemas diários. A graça que toda criança parece

possuir, se desfez em artifícios que moldariam o seu novo ego.

Havia um desígnio por trás de tudo.

Estes escopos morais cerceadores o abraçariam,

restringindo um suposto livre-arbítrio com a finalidade de

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48

atingir o seu alvo. O livre-arbítrio do espírito, que está acima das

vontades do corpo e da mente. Porque Deus é perfeito.

Tão esquematizado e aguardado que nenhum

obstáculos chega a gerar frustração. Ou que ela seja dosada e

dominada para os fins do espírito.

― A sua singular vantagem é que está ciente de suas

falhas. Assim como de suas conquistas. E as está aplicando a seu

favor. ― o anjo se dirigia a mim. ― Mateus só não deseja

reproduzir os mesmos erros.

― Tenho receios. ― disse.

― Por isso que ele vai dominar-se, através de inserções

que reprisarão os fatos mais obscuros do seu passado de forma

a fortalecer o seu espírito obliterado neste estado ilusório. ―

Precisamente quando estava encarnado.

Ponderei que em minha ignorância havia concordado

com Mateus antes de seu renascimento. Havia tanto o que

fazer, entretanto, desta vez, ele estaria a par das suas

obrigações espirituais. Menos daquelas que nem um anjo

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49

poderia calcular.

Observei Mateus por mais alguns instantes, seria

nosso primeiro afastamento em seis anos. Ele parecia não

entender os sentimentos que o assolavam. E com sua pouca

ideia do que se passava, medo da tolice falaz e do orgulho

delirante, pensou que sentia raiva ou angústia ou

incompetência. Ele olhou para a balbúrdia e projetou-as. Ele

não conseguia definir este algo que o engolia vorazmente. E

recolheu-se em sua ignorância infantil pensando que estava

com ciúmes.

Lá no fundo ele sabia que não era isso.

Só não sabia explicar o quê.

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50

Page 51: Mateus göettees   1 - livro de mateus

51

6

“Se conhecerdes que todos os seres vivos

são entre si irmãos, que todas as vidas são

entre si irmãs, que, sendo indivisíveis, as

vidas todas são um só corpo, que Deus é pai

de todas as vidas, nascerá

espontaneamente em vós o coração que

ama e exulta”. Sutra Chuva de Néctares da

Verdade. Seicho-no-ie. Masaharu Taniguchi.

Inari 36:10-01

Não queria uma meditação.

Bastaria fechar os meus olhos e me encontraria no

templo. Olhei por toda a volta e admirei o promontório que se

entrecruzava numa das passagens do bosque. Se eu seguisse

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52

pela trilha acabaria regressando ao lago. O meu destino era

outro, ascender à escadaria dos torii e descortinar os jardins de

areia com suas linhas paralelas e precisas enquanto um monge

meditava às sombras de grandes cerejeiras em flores.

Para o meu espanto, o templo não estava ali.

Uma grande soma de toras de madeira, pedras e

artífices bailavam dando os esboços de um lar inexistente. E

para o meu espanto, o monge meditava distraído do ambiente

caótico. Só se manifestou por pressentir a minha chegada e,

com acenos insistentes, chamou-me para junto.

O velho tinha a mais comprida barba que eu jamais

vira. E sua cabeça enrugada estava pontilhada de manchas de

decrepitude adiantada. Assim como os olhos – que eram

naturalmente semicerrados – que quase não deixavam se ver

através das pálpebras serenas. Ele se ajeitou em sua túnica azul

ensanguentada chacoalhando suas contas de um marfim

amarelado pelo passar dos anos.

Mantinha estas impressões enclausuradas em mim

com medo do cajado a tiracolo.

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53

Ele sorriu e eu pude distinguir a singularidade daquele

reconhecimento anacrônico. Retornei os olhos para a criação do

templo e supus que presenciava o princípio. Quando na verdade

era o seu extremo oposto.

― Juroo-kun, é você? ― Não sabia se devia lhe dirigir

um título de respeito ou menção ou curvar-me diante. Isto

também não me agradou.

Ele acenou cerimonioso e eu caí aos seus pés.

― Mas o quê aconteceu ao templo?

Suspirou e vacilante prosseguiu. ― Foi destruído e sua

construção segue conforme a sua vontade.

― Por quê? ― Ele balançou os ombros me achando

divertido. Eu estava encabulado e, àquela altura, não adiantava

me entender. Se eu queria respostas teria que as encontrar

dentro de mim. E como já estava lá...

― Parece que se passou toda uma vida.

― Obrigado pela oportunidade de toda uma vida. ―

senti os meus olhos se encherem de lágrimas. ― Por se fazer

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visível todos os dias de minha vida.

Mal sabia ele que este era o segundo advento ao

nosso mundo. ― Por que você – ainda o consideraria um filho –

diz que estou presente a cada segundo de sua vida?

― É o ar, as árvores e as águas. Os animais dos três

elementos, os homens e o conhecimento. É o nosso deus. ―

Juroo-sama deve ter percebido o meu espanto e não parecia

decepcionado. ― Recorde-se, tudo é parte de quem você é.

Este mundo é uma imagem de mim?! O tudo e o nada

que constitui o meu ser, pensei rápido.

― Este vilarejo, assim como tudo que nós apreciamos

pelos nossos sentidos, é sua mente despedaçada em frações

inacessíveis às criaturas de seu mundo. As pessoas são

expressões únicas de seus traços basilares e suas interações

formam um todo que você chama de personalidade. ― Tossiu

sem que eu me manifestasse. ― Se você nos observar e

entender como somos, compreenderá a si.

Se eu compreendesse aquelas sombras, estaria me

conhecendo melhor, mas como? Passei um tempo observando

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55

os vários personagens daquela terra e percebi que elas

apresentavam certas peculiaridades que eu não considerava

minhas. Eu já as tinha visto em outras pessoas da minha

realidade, contudo as pequenas criaturas atarefadas em

trabalhos cooperativos de erguer as imensas traves eram

frações, partes, parcelas de mim. Devia tomar consciência desta

realidade.

― Eles não se parecem em nada comigo.

― Eles são você. Existem fragmentos em nós que não

queremos admitir e isto faz toda a diferença. ― e ele sabia que

eu agora tinha a resposta, pois ele acabava de desvelar a sua. ―

Existe dentro de si o bondoso, o socorrista e o caridoso.

― Assim como o malvado, o rabugento e o egoísta. ―

tinha que o admitir. ― O carrasco, o ladrão e o assassino. O

adúltero, o infame e o covarde.

Juroo-sama arrematou com bastante ênfase ao último

vocábulo. ― E o sublime, o corajoso e o iluminado.

Nada havia me preparado para o que concluí com o

auxílio do meu monge, ou de mim mesmo, do meu melhor

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56

fragmento da minha personalidade.

― Creio que, como projeções que somos de sua

mente, não somos tão perfeitos como me sugere a sua reação,

mas para mim a perfeição é expressa pela oportunidade de

compreender que, mesmo sendo um sopro, eu consiga divisar

a sua realidade, a realidade de Deus e de tudo. A verdade não

está escrita em palavras. Os meios para se alcançá-la, sim.

Se eu podia apreciar as partes de mim, as suas

conexões e relacionamentos, e ainda me espantar com o fato

de elas criarem um mundo similar ao que julgava caótico. Em

que nós, a expressão do egoísmo e do orgulho, sequer tínhamos

consciência de que somos partes de Deus, assim como as

sombras, o que aconteceria se alguém rompesse esta barreira.

Eu percebi o que Juroo-sama queria me dizer. Tudo

ganhava um novo senso. Eu sabia, só não sabia. Um livreto, que

eu considerava um dos meus muitos oráculos de cabeceira,

contou-me e somente agora eu ouvi.

“A verdade para a qual deveis vós despertar

primeiramente é o fato de que a essência do eu é unicamente

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57

Deus. Sabeis vós que a infinidade de almas humanas são todas

reflexos do Espírito Divino Único. [...] Deus é a fonte luminosa

do homem e o homem é Luz emanada de Deus.” E eu que

justamente não entendia estes escritos religiosos carregados de

sutilezas, para descobrir que sempre foram claríssimos.

Faltavam-lhes, aos seus escritores, palavras para descrever

impressões indescritíveis.

Somos partes de Deus.

Estamos unidos a Ele, sem que nós precisemos de

subterfúgios ou orações extrínsecas. Ele está em nós. Bem

dentro de nós. Só nos basta experimentar.

E todos nós estaríamos unidos aos outros fragmentos

Dele. Eu estava conectado a todos. Éramos mais do que irmãos.

Por falta de vocabulário, irmão seria o que mais se aproximaria

de nossa ideia de comunhão ou relacionamento entre as partes.

Deus era como uma vela em chama e nós, o reflexo de

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58

infinitos espelhos, não seríamos desiguais, no entanto, ainda

assim, reflexos. E como luz emanada, onde terminaria a minha e

onde começaria as dos outros? Será que estávamos realmente

separados.

Ergui pensativo e andei a esmo.

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59

7

“O sentimento é a linguagem da alma. Se

quiser saber o que é verdade para você em

relação a alguma coisa, veja como se sente

em relação a ela. [...] O pensamento mais

elevado é sempre o mais alegre. A palavra

mais clara é sempre aquela que é

verdadeira. O sentimento mais nobre é

sempre aquele que chamam de amor”.

Conversando com Deus I, Neale D. Walsch.

Mateus 36:10-04

Eu acredito que as boas recordações são como

programas que corrigem e reescrevem a nossa programação

original que se constitui do emaranhado de funções sinápticas

de nossos cérebros, das conexões extrassensoriais entre corpo e

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60

alma, das implicações psicológicas do(s) ego(s) e dos problemas

que consideramos insolúveis – pelo menos para nós.

E uma dessas recordações se perde num passado tão

distante que é constituído de fragmentos nebulosos. Um

devaneio renovado por objetos que sobreviveram por um

tempo suficientemente propício para que resistissem em minha

memória de recordações mais firmes. E é possível que estas

lembranças tenham criado novos contornos, sobretudo a

sensação primordial e instintiva que sobrevive e se soma à

personalidade. Nada é por acaso.

E é esta memória que tenho de Cosme e Damião e

outros santos.

Mateus 05:10-04

Anoitecia bem rápido.

Para chegar lá eu tinha que atravessar um túnel

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61

enorme e escuro. Era molhado e manchado. Cheirava roupa

velha. Quando terminava, sempre correndo para que ficasse o

menos possível, via uma escada que não terminava nunca.

Tinha dificuldade de respirar porque os degraus eram

enormes. Molhados e manchados. Eu pegava na mão dos meus

pais para não me encostar à parede enorme, molhada e

manchada também.

Antes de entrar, a porta já estava aberta e muitas

pessoas se espremiam. Olhei em volta e lá estavam os vasos de

plantas assustadas e outras fedidas num canto feito de cacos de

azulejo vermelho. Não era enorme, nem tão molhado.

Havia música. Esquisita e interessante.

Mas eu não enxergava direito o quê estava

acontecendo dentro. As pessoas estavam de pé e eu só queria

ver um pouquinho. Apertei-me e empurrei pernas e bundas até

chegar lá.

E era maravilhoso.

Um homem tocava um atabaque. Tinha aquelas

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62

plantas assustadas e flores espalhadas. Duas estátuas grudadas

com meninos de capas vermelhas e coroas ficavam num

aparador cheios de pacotinhos que eu sabia que eram de doces.

Nem dei importância para os meus avôs. Deixei que

eles continuassem engatinhando de roupas brancas. Só quando

começaram a falar como criança é que eu percebi que a vovó

estava de chupeta.

Estava tudo tão maravilhoso que eu queria bater

palmas, mas estavam todos sérios e carrancudos. Na verdade

estava ansioso para que tudo terminasse logo e pudesse ganhar

o saquinho de doces.

Aborrecido, e como toda a pressa é castigada, ainda

tropecei num taco solto quando tentava receber o meu pacote.

O chão machucava e olhei para uma bunda enorme...

Talvez tenha sido uma das últimas vezes em que os vi

assim, depois eles passariam a ser iguais aos outros avôs. E as

recordações estranhas, que se tornaram tão prosaicas para

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63

mim, também tinham origem na segunda avó.

Vovó estava apressada. Trocava-se com pressa sem se

descuidar dos pós e batons. Eu tinha medo daquele quarto que

escondia um monstro dentro do armário. Ela o chamava de

peruca e ficava numa cabeça de isopor sem olhos, nariz ou boca.

E mesmo assim ela nos encarava.

Corri para o outro quarto para pegar a camiseta,

olhando demoradamente os santos e as velas postas sobre uma

cômoda com tampo de mármore. Aqueles badulaques não

deviam existir quando o quarto pertencia ao meu pai. Gostava

da cama de molas e do cheiro do ramo seco de arruda na

fronha.

Ela me ajudava a vestir a camisa que tinha gola

apertada e que quase me arrancou as orelhas. Partimos de

carro. Eu lia as placas com o nariz colado no porta-luvas

achando que ela não enxergava bem. Também era noite e eu

estava ansioso porque sabia aonde íamos.

Estava cheio de gente, sentados em bancos de

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64

madeira. Como sempre nos sentamos onde eu não conseguia

ver nada. O tempo era interminável.

Vez ou outra eu me levantava e sentava, pois deitava

no banco querendo dormir quando acontecia algo diferente.

Uma mão flutuava no ar segurando uma rosa sobre as nossas

cabeças. Cansei-me ansioso com o fim.

Por fim houve palmas e música e então, o momento

mais aguardado. Pipocas eram arremessadas sobre nós e caia

ao chão. E eu tentava catar todas e enfiar na boca, inclusive as

do chão.

Com o tempo percebi que estas coisas não eram nada

normais. Porém são exatamente estas – e muitas outras –

lembranças que permitem que eu entenda o planejamento

espiritual e o aceite com bastante passividade e amor.

Lamentavelmente, como efeito colateral, tenho pavor dos

rituais católicos, de gente com togas e túnicas e chapéus

esdrúxulos.

E até pouquíssimo tempo guardava as minhas roupas

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65

no mesmo guarda-roupa em que a peruca ficava me

afrontando. Não acho que a minha infância tenha sido

preenchida de fatos bizarros e incongruentes, é uma questão de

hábito. Quando crescemos, temos a tendência de julgar nossos

atos de criança, e fico feliz em não achar falhas. – se bem que

ainda não entendo a razão pelo qual derramei carrinhos de

plástico para brincar em um açude na praia de pedra.

E são estas memórias infantis que me suscitam a

confiança de que todos nós passamos quase toda uma vida

buscando esta sensação de liberdade, de ingenuidade e de uma

profunda felicidade pelas coisas mais simples.

Na simplicidade de perguntar e ter respostas claras.

Amizades com disposição tola. Sem maldade e cheio de

vitalidade. E Jesus ainda declamava para que lhe deixassem vir

às criancinhas.

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66

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67

8

“Neste mundo há três errôneos pontos de

vista: Diz-se que toda a experiência humana

baseia-se no DESTINO; afirma-se que tudo é

criado por DEUS e controlado por sua

vontade e; que tudo acontece ao ACASO,

sem ter uma causa ou condição.” A

Doutrina de Buda.

Mateus 36:10-07

Um sopro talhante dilatava os ruídos de artefatos

sempre emudecidos, que são sempre suprimidos pelo turbilhão

de almas acéfalas. Apreciava o skyline com impassibilidade

mórbida, estava me escondendo dentro de mim.

― Hum! Lugar bastante interessante. ― ouvi-o por

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68

detrás e muito mais perto do que sonharia, arregalei os olhos,

surpreso. Girei a cabeça com cautelosa lentidão para

demonstrar a minha indignação com a intromissão, e assim

disfarçaria o medo de olhar quem era. O aspecto era

indisfarçavelmente óbvio, ou seria outra projeção de minha

mente fértil ou um anjo...

―... Da guarda. ― ele concluiu para o meu azar, e por

este mesmo azar, também lia pensamentos.

Agachou-se ao meu lado no largo dissimulado pelas

sombras geométricas projetadas pelas pernas da torre Eiffel. ―

Pensei que, pelo menos aqui, eu poderia ficar só.

― Muito interessante. Paris assim tão deserta, você

aumenta a percepção de isolamento e solidão. ― E era

primavera em Paris.

― Então, esse era o meu desejo até você aparecer. ―

nem o conhecia e já estava despachando. Quem era ele?

― Sou só um amigo. Esperei trinta anos para que

pudéssemos ter este bate-papo. E por que você escolheu este

Page 69: Mateus göettees   1 - livro de mateus

69

lugar para se esconder?

― Deite-se! ― fui ríspido e direto. Não estava com

ânimo para uma conversa franca. Precisava descansar a minha

cabeça que queimava – literalmente – com as inflexíveis e

infatigáveis impressões colhidas no Templo da Montanha e que

suscitavam ininterruptas novas perguntas nos breves instantes

que eu poderia chamar de tranquilos.

Observando a torre por ângulo jamais cogitado, de

pernas dobradas e mãos à nuca dei-lhe a solução. ― Nos

mapas, um X sempre marca o local do tesouro. ― e eu

acreditava que este seria só meu.

― Até mesmo deprimido, as suas ideias são

inusitadas. Mas eu também estou vendo um pouco da sua

arrogância e soberba. Precisava de um local para meditar que

fosse do tamanho de uma cidade? E ainda assim fez questão de

evacuá-la?

Estava tão desanimado que aquela advertência não

estava totalmente errada. Olhei mais uma vez para os edifícios

mortos e aceitei a minha altivez. ― E por que você está aqui?

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70

O rapaz, vestido como um anjo pós-moderno, com

jeans alvíssimo e os tênis mais gastos da eternidade, sorriu com

a deixa. ― Promessas devem ser cumpridas. E vou aproveitar

para confirmar algumas de suas suspeitas e esclarecer outras

questões já em ebulição.

Ainda estava deprimido.

― E como vou saber que não estou em outra

discussão acalorada com uma das minhas personalidades

autônomas, correndo atrás de meu rabo? ― comparação

horrível.

― Em duas ocasiões eu me mostrei de forma

incontestável. Após a cirurgia eu afirmei, conforme as suas

dúvidas sobre a abrangência de Deus, que toda a ação do mal

passa pelo crivo da bondade dEle.

― Levei um tempo para entendê-la. ― e era bem a

verdade.

― Após um tempo, eu te chamei de autocrata. ― ele

queria gargalhar. Aborreci-me por causa do sentido em que a

palavra foi articulada, em tom bastante espirituoso. E eu nem

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71

sabia o que ela significava.

No dicionário eu sou o governante cujo poder é

absoluto e independente; que exerce seu poder sem partilhá-lo

com outros, impondo-o de forma arbitrária e tiranicamente. E

de uso pejorativo. Resumindo, pior que um presunçoso

arrogante vivendo em seu mundo de fantasia.

― Foi só uma expressão de linguagem para reforçar

os seus desejos.

Decididamente ele tentava me confortar com

respostas vazias. O que ele poderia me dizer que eu já não

desconfiava? Assim eu acabei descobrindo o seu nome, um

deles. ― Tiago, mesmo entendendo em parte o processo,

aceitando as novas diretivas, eu não consigo repetir o evento. ―

Me referindo ao Evento Pós-Cirúrgico que praticamente apagou

os meus, já consolidados, modelos do meu ego sobre as

interações que governavam a minha vida, uma nova matriz que

ia contra as que eu tentava domar.

Ele pôs a mão ao queixo. ― Aquelas respostas,

sugeridas pelos textos que você elegeu, não foram

Page 72: Mateus göettees   1 - livro de mateus

72

coincidências. Nada é por acaso. E o caminho não poderia ser

direto, você ainda precisava amadurecer alguns conceitos...

― Foi o que pensei quando comecei a receber

respostas absurdamente claras às dúvidas. ― e como elas

provinham de várias fontes estranhas. ― E sempre serviam de

ponte para questões mais complexas.

―... Completas. ― Tiago pediu que continuasse.

― E o quê tinha acontecido? ― Por onde começar?

― Se a vida fosse uma autoestrada de cinco pistas, –

como todo bom mestre faria, uma parábola, uma fábula

mecânica a La Fontaine – quais seriam as suas escolhas? Carros

nas pistas da direita teriam vários desvios e paradas e sua

viagem pela vida, compartimentada. Carros à esquerda teriam

viagem mais veloz, com o risco de acessar um retorno. A viagem

mais rápida, tranquila e eficiente seria o...

― Caminho do meio! ― Nem Buda teria imaginado

que as suas lições se transformassem em tábuas asfálticas. ― E

o que você quer me dizer com...?!

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73

― A vida é como esta estrada.

Supus. ― Pré-definida?! Destino.

― “Se assim fosse, todos os planos e esforços para a

melhora ou progresso seriam em vão e à humanidade não

restariam esperanças. Tudo acontece ou se manifesta tendo por

fonte uma série de causas e condições”. A vida não é o carro e

nem o roteiro. Mesmo que siga pelo caminho do meio, o carro

precisará de combustível – e até substituições. Seguir o caminho

do meio exige muita disciplina para que os reabastecimentos

sejam os menos prejudiciais para a viagem. E também implica

que você conheça a estrada e seus desvios, retornos e paradas.

― Com qual objetivo? ― As árvores da esplanada

farfalharam ensurdecedoras.

― Evitar acidentes é um deles. ― Tiago estava

esquentando os motores. ― O caminho do meio não é como

uma ideia do trajeto, descrita pelos que se consideram sábios.

Nem Buda se atreveu a tanto, ele acreditava que somente

conseguiria a Libertação após a morte, o Nirvana.

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74

― E quem sabe o caminho, pode me dizer?

― Aqueles que têm consciência de todas as suas

qualidades e defeitos. Que conhecem cada pedaço da estrada e

conseguem criar o caminho do meio, isto é, o melhor traçado

considerando as ferramentas à sua disposição.

Pedi tempo com as mãos em frenesi. ― Então não é a

pista central? E de que ferramentas você está falando?

― Hum. Pensam que alcançar o melhor traçado

depende de evitar todos os problemas e isto é impossível. Mas

minimizar já é outra história. Centrar-se em evitar os defeitos e

deficiências em prol das virtudes e qualidades, os tornam

incompletos. O que lhe aconteceria se o sofrimento, o ódio, a

cobiça e demais tolices jamais fossem experimentadas? Como

saber se é salgado se nunca experimentou o doce? ― Precisava

ser mais específico. ― O desejo do sábio é conhecer e

experimentar tudo para que domine os excessos.

― E as ferramentas? ― Ainda estava pensando no

controle dos excessos.

― Existem várias, lembre-se nada é por acaso. Nem o

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75

tipo de asfalto, o pedágio, as placas. Estas últimas são as mais

claras indicações de caminho. Quero dizer, nós as conhecemos

por sonhos – e em casos extremos de presságio, premonição,

cognição, vidência e etc. – e como eles não nos parecem tão

óbvios como as placas de trânsito, costumamos ignorá-los. As

sinalizações indicam as condições da estrada adiante. Preveem

o futuro.

― Entretanto existem outras ferramentas...

Tiago percebeu aonde eu queria chegar. ― Quando

desejamos seguir o melhor traçado, muito planejamento reduz

os riscos e prevê possíveis problemas de viagem. Este

planejamento pode ser descrito pelo controle dos excessos, não

é preciso correr para chegar a tempo no destino. Nesta viagem é

certo que todos chegaremos ao final. Eu gosto de exemplificar

que o planejamento é como um estudo do caminho que chega a

ponto de antecipar as sinalizações. São sentimentos mais fortes

do que um sonho poderia sugerir. É a matriz da mente

inconsciente. O planejamento, quando bem executado, poderia

fazer um cego dirigir.

― E como eu percebo isto? ― Sabia a resposta, porém

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precisava saber como ela se encaixaria naquela fábula.

― Se já decorou o traçado e não quer sofrer

interferências que lhe prejudique o raciocínio, que não lhe tire a

concentração, – porque homem não pergunta mesmo – você

deve resolver os problemas assim que eles apareçam.

E como fica o destino? Pensei alto.

― Não há destino, o livre-arbítrio pode indicar os

caminhos, mas o destino sempre será um. Portanto ele é

irrelevante. Quanto mais excessos são subjugados pela sua

vontade, maior será o seu esclarecimento.

― Hã.― acho que não entendi.― Existe ou não existe

destino?

― Sim e não. Bem sabe que a ideia comum é que nos

unamos a Deus, portanto este destino é imutável. Contudo

temos objetivos, ou etapas, que são como um planejamento e se

parecem muito com um destino. ― Tiago parou por uns

instantes, e penso que ele percebeu que eu estava tentando dar

outra designação à palavra destino. ― O destino que você

compreende e aceita seria mais bem compreendido se fosse

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nomeado de desígnios. E eles variam conforme as mudanças de

trajeto... É impossível manter um plano original, por isso é

impossível produzir um destino.

― Por quê?

― Causas e condições que dependem de muitas e

muitas variáveis. Não está sozinho na estrada, os outros carros

podem e interferem nos seus desígnios, obrigando-o a tomar

outros caminhos.

― Como? ― como uma criança.

― Tudo afeta os seus desígnios. Seu planejamento

depende de suas respostas aos eventos não previstos – que é

uma ilusão – e quanto mais experiências, melhor será o seu

retorno ao plano original. Você está desconsiderando o mais

importante.

― O quê?

― A estrada, o planejamento, o carro, as placas, a sua

interação com os outros usuários desta estrada, – e até os

atalhos que eu ainda não mencionei – não são importantes

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78

quando percebemos que eles são mecanismos que geram as

experiências.

― Quer dizer, conhecimento? ― generalizando como

o certo.

― Não, experiências. O conhecimento é intrínseco a

todos os espíritos – ou almas.

Oportunamente começaram a surgir pessoas na

cidade das sombras. Nós precisamos nos levantar para não

sermos pisoteados. A minha imaginação estava se esfacelando

e eu já não conseguia impedir as suas tentativas de me afastar

daquele diálogo.

Tiago me olhou com compreensão. ― Teremos outras

oportunidades. ― Sabendo que eu não queria permanecer no

assunto por causa da minha intervenção subconscienciosa com

a vinda de milhares de parisienses.

Cheiros invadiam o ar com sabores de vendedores

ambulantes e já não era possível ouvir os pássaros encobertos

pelos ruídos dos carros nervosos.

Page 79: Mateus göettees   1 - livro de mateus

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― E ainda tem mais, não é possível que em uma só

vida você consiga percorrer toda a estrada.

Porém eu estava curioso. ― E os atalhos?!

Page 80: Mateus göettees   1 - livro de mateus

80

9

“A realidade é eterna, a realidade não

adoece, a realidade não envelhece, a

realidade não morre; ao fato de conhecer

esta Verdade se diz conhecer o caminho”.

Sutra chuva de Néctares da Verdade ,

Seicho-no-ie. Masaharu Taniguchi.

Mateus 36:10-10

Joguei-me na cama com olhar inexpressivo nas

imperfeições do quarto. A brisa de um inverno alongado de

primaveras sufocantes dava a impressão que as meias-estações

não existiam mais.

Creio que descobri um bom local onde eu poderia

estar completamente só – sobretudo com a porta às sete

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chaves.

Por vezes inda ouvia alguém tentando me levar à

alienação. E como as conversas difíceis sempre me tiravam do

ar, estagnei a mente em futilidades. As conversas, e ainda mais

aquelas que me fazem pensar, dando nova formulação aos

meus mais básicos, perfeitos e indiscutíveis conhecimentos,

surpreendiam-me. Surpreendiam-me porque tudo muda sem

que nada mude.

É o mesmo que um copo meio vazio ser um copo

meio cheio. Um ponto preto ser menos – ou mais – formidável

que a folha de papel que o criou. Deus ser o Tudo e

especialmente o Nada.

É dificílimo não reagir aos acontecimentos. Quem eu

estou enganando além de mim mesmo.

E é quando eu penso que estou atingindo novas

metas, e anjos ou projeções começam a me dar sermões na

montanha, que desisto destas divagações. Por onde eu me

desvencilho deste drama psicológico.

― Não tem mais volta.― uma voz na cabeça teimava

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82

em continuar o diálogo.

Por que eu não podia ficar só? Esta era a minha

realidade e se Tiago for outra sombra, que se cale no meu

subconsciente superativo.

― Eu nunca desisto. Não importa se você não

consegue superar as intervenções do seu ego. A sua

personalidade deve reagir, é a sua natureza.

― E como eu fico? Saltando de um estado emocional

para outro? Exercendo a compaixão incondicional para, em

seguida, reclamar, espernear e esbravejar? ― e já estava

conversando com ele.

― Ninguém está pedindo que você aja diferente.

Quem está se enganando é você. ― cheiro de baixa autoestima.

― Só tem que controlar os excessos e pensar e experimentar.

Pois não existe um só dia de sua existência que não tenha sido

admirável, ou ainda acredita que somos intenções da

casualidade?! Eu afirmo que estou aqui.

Suspirei aliviado, há ocasiões em que queremos estar

sozinhos. Outras em que seria bom ter um ombro amigo. E eu

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confiava nele. ― Assim mesmo eu suponho que você não passa

de uma ilusão e estas conversas sem sentido. Acho que estou

correndo em círculos, já te disse.

― Nem vou perder tempo discutindo! ― Tiago estava

exasperado.

― E anjos têm raiva?

― Muita. Somos estúpidos e idiotas quando temos que

guiar pessoas que não chegam a se decidir. Em outras situações

somos obrigados a admitir que sempre seremos assim. ―

respirou fundo, pelo que pude supor. ― Qual é a sua versão de

mim?

― Que anjos têm raiva. E não gostam de quem não

persiste.

― Mateus, você realmente está com medo?

― Sim.

O silêncio perdurou por mais alguns minutos. Tinha

que admitir, mesmo que ele fosse uma projeção, – uma fantasia

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– possuía uma confiança que eu não tinha.

Nuvens negras me assolavam. Uma tempestade de

granizo começou a despencar.

― A satisfação pessoal deve começar pela superação,

mediante rigorosa autoanálise das realidades reais com as

aparentes. Não é possível extinguir o ego se quiser permanecer

consciente diante das provas.

― Por que não confio em mim?

Tiago complementou.― A preocupação é a porta de

entrada para os medos...

E mesmo ciente de tudo, deixava-me levar pelos

acontecimentos prosaicos que sempre preencheriam e

ocupariam tudo o que fosse presumível. Cada brecha de uma

mentalidade entulhada por pensamentos ilusórios que seriam

como combustível para o fogo das paixões humanas. Eu até

conseguia ver além das aparências, mas mesmo assim, nada

conseguia fazer para recriar o Evento.

E eu sabia a fórmula para recriá-lo e dependia tão

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85

somente de disciplina. Todas as religiões, seitas, filosofias,

doutrinas e ciências também a conheciam, apesar de

empregarem linguagens diferentes e não divergentes. De

quantas maneiras diferentes é possível contar a mesma estória?

Tantas quantas quisermos.

E elas se adaptarão ao gosto do leitor.

Tinha que recomeçar o mantra. Para cada vez que eu

fosse atingido por uma perturbação, recorreria ao bordão.

Advinha algo repentino ou perturbativo e eu estava pronto para

esclarecer – a mim – que Deus era o princípio de tudo e a causa

primária de todas as coisas.

Com o tempo esta frase se sintetizaria em que Deus é

perfeito.

Um amálgama de julgamentos que dariam a entender

que eu estaria desesperado ou, insanamente se agarrando a

todos os santos, seitas, ervas, milagres e patuás.

A verdade é muito mais pura, o caminho nem sempre

seria revelado por fórmulas, métodos, evangelhos, ou tábuas da

salvação, medicina experimental, rezas brabas, mantras, ou

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benzedeiras, neurocientistas e outros enfermos incessantes em

falar sem parar.

O mais atraente é que todos estão certos, quando se

conhece a verdade percebe-se que ela pode ter vários nomes e

ser dita conforme a circunstância, contudo teimo em achar isso

ou aquilo, estabelecer interpretações e empurrar a

responsabilidade para alguém.

E pensar que o Cristo confirmou que nós somos deuses

e tudo que ele havia feito, nós poderíamos fazer e até mais. –

não exatamente com estas palavras. E é por isso que eu

acredito que vivo em profunda ilusão.

Acho que não tenho preconceitos e, quando a

essência do Tudo se torna a mais clara palavra unida ao mais

alegre pensamento, eu apreendo que o caos, o sofrimento,

provas e expiações não passam das partes mais formidáveis da

minha aspiração. A essência de tudo sempre será a

simplicidade.

Friso que, são desejos d’alma.

E tenho conhecimento do que a alma deseja? Para

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qualquer das duas respostas teria que saber porque eu ajo

supondo. Supondo que eu saiba ou não, quando o maior trunfo

da alma é me esconder a verdade.

Firmei os pés e tentei me levantar da cama. Foram

apenas duas tentativas e já ziguezagueava como Frankenstein

rumo ao armário, dois passos só. Um mal-estar provocado pela

hebdomadária betainterferona interferia com o meu humor de

opiniões trancadas a sete chaves, isso se eu não queria falar o

que não devia. Com o tempo percebi que não passavam de

admoestações provocadas pela sensibilidade ao som, à luz e aos

cheiros.

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10

“Ideias demoradamente recalcadas, que se

negam a externar-se – tristezas, incertezas,

medos, ciúmes, ansiedades – contribuem

para estados nostálgicos e depressão, que

somente podem ser resolvidos, à medida

que sejam liberados, deixando a área

psicológica em que se refugiam e

libertando-as da carga emocional

perturbadora”. Amor, Imbatível Amor.

Divaldo Franco.

Mateus 27:05-01

Eu estaria mentindo se eu dissesse que nunca quis me

matar. E provavelmente me contradiria ao afirmar que jamais

me suicidaria. Não estava procurando por métodos que

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usassem cordas, facas, raticidas, trens ou pontes. Tão somente

a boa e velha inexistência.

Que Deus jamais tivesse me criado, e para Ele seria tão

simples como um estalar de dedos – e Deus tem dedos? Enfim,

por que eu teria que me arrastar por uma existência fracassada,

ou pior, existências que se perdiam no passado e teriam que ser

rastejadas no futuro?

Acabava de abandonar o meu último resquício de

perseverança e com isso afundava a esperança e a confiança em

mim – e nos outros. Agir com compaixão e humildade já não

seria possível, pois estava entregue às mãos do destino que me

arrastava sem que eu me abstivesse.

Uma morbidade se apossou de mim como um

obsessor invisível que resgatasse os seus direitos de cativeiro.

Não sabia a gravidade, no entanto possuía dois minúsculos

atributos que me impediam de atingir o fundo do poço. O medo

de morrer – não da morte – e ter plena convicção de que todos

me amavam.

Por que eu não conseguia alcançar os meus desejos

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tão bem calculados? E as incoerências só me causavam mais

estranheza e rancor. Parecia um plano bem executado para me

manter sempre com a estima baixa. E quem era o meu carrasco!

E com o fim de mim. Em um ato de ajuizado desespero

me ofereci às circunstâncias antes que elas se complicassem.

Deliberadamente abandonei o emprego que me daria

autonomia, sentindo tanta raiva de mim, de minha ineptidão.

De não entender de onde ela provinha. De não conseguir me

conhecer. Que aceitei a minha derrota ao reconhecer a minha

ignorância e inabilidade em tudo o que eu pretendesse.

Um choque que atingiu o meu orgulho em cheio.

Nos últimos anos eu era pressionado a pensar que

nunca conseguiria ser proveitoso, enquanto todos me julgavam

extraordinário. Todas as tentativas, mesmas a somente

pensadas, se transformaram em tormentos. E também atingiam

a todos que me cercavam, realimentando o medo, a

preocupação sem justificativa.

Por um tempo eu ainda me saía bem com a

fascinação de estar no domínio de mim. Na faculdade o

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processo se desmoronava a cada período. E eu começava a

rever o que era realmente imutável em uma mente jovem e

amadurecida.

Não compreendia por que um projeto que era

reprovado servia para uma exposição? Sugestões inconcebíveis

estagnavam-me sem solução? Ideias contraditórias que me

impediam de seguir. Um empate?

Estágio repetitivo e rotineiro que era um desafio?

Estava me desconstruindo e as antigas atribuições pareciam

eternamente novas. Assomava-se o medo de não atingir as

expectativas – as minhas. O medo de ter que realizar duas ações

ao mesmo tempo, de esquecer algo. Estar sobrecarregado por

nada.

Ser repreendido.

As desculpas pareciam outras. E enquanto pensava

que era por causa do stress, das recriminações que nunca

aprendi a descartar, por nunca dizer não e, aquelas incertezas

que eu administrava tão bem por estar em meu território,

foram esfaceladas quando fui exposto ao incontrolável. Não tive

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outra escolha senão me expor.

O ambiente foi cuidadosamente preparado para que

eu não conseguisse superá-lo em segredo. Todas as opções

foram vetadas e eu cedi. Aniquilado, fiz o que mais me doía,

antes que eu machucasse alguém, reconheci a minha estupidez

perante todos.

E a crença de que era o bom, se mostrou como

soberba. O elogio terminou em desprezo.

A raiva se dissipou e só me restou o choro cruciante.

Continuava perdido nas minhas divagações, mas eu não estava

sozinho.

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11

“A Dificuldade Inicial. O começo pode ser

difícil, mas, depois de superada a

dificuldade inicial, as perspectivas são

favoráveis. Procure a ajuda ou o conselho

de um amigo”. I Ching.

Mateus 36:10-12

Caminhava a pé pela estrada sinuosa e estreita

quando as brumas se afastaram orquestralmente, desvelando-

me um lago azul profundo. Amanhecer aprazível de pulôver e

ares frescos de pinheiros me propiciava uma caminhada em

meio ao arvoredo inquiridor enquanto admirava os barcos e

veleiros em suas manobras brandas de um vento moroso. O

lago estava dentro de uma cratera dormente e assim, o

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caminho, que cingia as águas e o sopé de montanhas sagradas,

era a linha de equilibro entre os reinos.

Por todo o caminho, não descuidava do trânsito dos

pequenos compactos em mão inglesa e dos acessos rústicos

para as casas de barcos e demais marinas com dezenas de

embarcações de velas seladas.

A Tōkaidō atravessava a cidade muito próxima das

margens e, então, parei para admirar a circulação de

passageiros de um terminal fluvial. Passei um lenço na testa

suada e retirei a mochila para pegar alguns ienes que seriam

engolidos por uma máquina de refrigerantes. O sol já

despontava por entre os montes e encostei-me à amurada do

estacionamento do terminal tomando avidamente a bebida

gelada.

O burburinho de turistas já se encaminhava às portas

de meus ouvidos, tentando agrupar-se, quando ouvi um turista

de minha terra se pronunciar em sussurros.

Ele subiu no guarda-corpo para poder me encarar com

lábios arqueados e risonhos. Fiz uma contração voluntária e não

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escondi a minha decepção com um muxoxo e olhos virados. Os

turistas já haviam entrado no ônibus que os levariam ao templo

no topo do Monte Myoboku e seus cincos sapos sagrados. Havia

um salutar odor lacustre que se somava aos fortes cheiros de

comida de um restaurante de lámen. Que os excursionistas se

aglomeravam entre as vitrines de um e da loja de omiyagi –

souvenires – logo abaixo do monstruoso Torii.

Cruzei os braços na amurada e bati com a testa

diretamente sobre eles. Fechei os olhos por um instante e achei

tudo muito estranho. Como um sonho dentro de um sonho.

Girei para o meu observador, que estava sentado em uma das

duas inusitadas poltronas marrom-avermelhadas estacionadas

em uma vaga para kanjis incompreensíveis, e puxei os fones do

player que tocava música de Motohiro. Tiago estava de óculos

escuros e mãos entrelaçadas com os cotovelos apoiados nos

braços da poltrona.

― Não preciso tomar a pílula azul ou vermelha, já me

contento com as vacinas semanais. ― reconheci a cena.

― Só não queria me sentar no chão. ― ele ainda se

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lembrava de Paris.

Busquei sentar e nem me preocupei com os olhares

enviesados dos residentes e nem se eu estava sentado num

barril de pólvora como suponho que seja o vulcão abaixo do

lago. Fiz menção para que ele desembuchasse.

― Eu queria saber por que tudo tem que ser

perfeitamente idêntico à sua realidade física? Os cenários, as

pessoas, as possibilidades...

Iniciei. ― Não acho que seja assim. É somente uma

experiência para recriar alguns elementos que reconheço. Nem

imagino como seja um susuki no outono, mas eles estão por

todos os cantos. ― estava contente com o resultado final.

― Os personagens, eles dão um toque especial. Preste

atenção nas interações entre eles.

― O quê você está sugerindo? ― Achava que estes

eram cenográficos.

Tiago esperou que eu observasse alguns. ― Eles

continuam sendo fragmentos de sua personalidade, os tais

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99

subegos ou subpersonalidades ou projeções de seu

subconsciente, e não estão isentos de criar algo totalmente

novo neste mundo.

― Como eles podem ter uma vida completa se são

frações? E o que você quer dizer com criar algo novo? ― Acabei

com o refrigerante sem o oferecer.

― Todo o seu conhecimento é oferecido a eles, as suas

frações psicológicas tomam-no para si como um computador

que precisa de um sistema operacional. Estas frações podem se

apropriar de outras estruturas psicológicas suas para, digamos

assim, reconfigurar as suas disposições naturais. As

combinações podem ser infinitas e mesmo assim você pode

reconhecê-las.

― E reconhecendo estas individualizações minhas e

suas personalidades, eu me conheceria? ― frisei com dúvidas.

― Não é só isso. ― aguardou teatralmente. ―

Também somos parte de algo muito Maior, que criou um

universo. Reconheça os seus subegos e se conhecerá na

totalidade de si. E por que Deus não pode fazer o mesmo, em

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escalas universais? Somos seus subegos, micropersonalidades

autônomas que se relacionam das mais variadas formas. O

nosso diálogo é uma destas criações.

― Hã.

― As suas personalidades fragmentadas podem e

devem interagir e, este mundo subjetivo pode e deve se recriar

sem a sua interferência. Colha as experiências.

Um ônibus estacionava ao nosso lado, inteiramente

lotado de dezenas de câmeras em flashes apontados para nós.

Eles estavam agindo além das minhas expectativas, eu havia

criado um monstro. Tiago percebeu.

― Espere um pouco. Você ainda não tem a capacidade

de gerenciar tais criações, e este é só o primeiro passo. ― as

luzes faiscantes o incomodava. ― Além destas montanhas não

existe nada e as suas projeções não devem possuir uma alma. E

tudo está subordinado à sua vontade e limites...

― E as pessoas que criam jogos, filmes?

― Elas determinam todas as variáveis. Sabem o

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começo, os meios e os fins. É um pacote impermeável e

imutável. Embora a sua origem provenha da realidade que

conhecem, de fatos pré-definidos, o produto final tem como

resultado aquilo pelo qual foi criado. Não há brechas, senão

aquelas implantadas e que acabam não sendo.

Gritei alarmado. ― Então eles – sobre as minhas

projeções inconscientes – podem me superar, me surpreender

com atitudes inimagináveis?

― Como dizem, você é peixe pequeno. As suas

projeções ainda não podem reagir aos estímulos, como supõe.

Elas estão atreladas ao seu conhecimento e as suas relações

devem respondem ao que você já experimentou. Mas eu não

vim para destruir os seus sonhos...

Levantei-me e desta vez comprei duas latas. Acalmei o

meu espírito que estava ansioso para seguir em frente. O ônibus

partia com nova tripulação que acabava de sair do terminal em

escandalosa conversação de balançar interminável de cabeças

agradecidas. Concentrei-me nas sutilezas e ações que eu não

precisava pensar. Eles se constituíam de autonomia e

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102

imprevisibilidade.

― Livre-arbítrio. ― E pensar que ele existia. Dentro de

um mundo tão contido e organizado. Reflexo das Leis Naturais

que eu determinaria para eles.

Estava absorto quando depositei o refrigerante junto à

poltrona e estiquei a mão para entregar o outro. Rapidamente,

sem pensar, dei um tapa na mão de Tiago que recuou rindo e

reclamando da dor.

― Se estiver imaginando que anjos não devem tomar

refrigerantes, eu te asseguro que isto não fará mal às asas. ―

Agarrando a lata. ― No entanto essa não é a sua preocupação,

não é?

― O quê acontece se eu mudar as regras deste

mundo? ― com remorso de ter batido em um anjo.

― Diga-me você. Se, por exemplo, os barcos

começassem a afundar neste lago.

― Ou poderiam achar tudo normal, porque eu assim

determinei. Ou poderiam correr de um lado para o outro,

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103

desesperados, achando que é magia. ― Tinha certeza que seria

o outro ou...

― Ou eles mandariam os melhores cientistas para

verificar alguma mudança na densidade da água ou de sua

resistência hidrodinâmica. Enfim, descobririam uma resposta

que seria fundamentada por suas Leis ou desvendariam novas

que gerariam uma gama de novas interpretações.

― Mas é o que nós – da minha realidade – faríamos!

― Foi um susto tão grande que eu percebi o óbvio. ― Tudo é

um infindável fractal.

Queria acertar Tiago com um taco de beisebol, mas

não seria prudente castigar um anjo. ― Por que você não me

explicou desde o começo?

Ele deu de ombros, achando graça do meu

aborrecimento. Eu tinha que dar o troco. Pus a mochila e

acenei, íamos subir até o Templo por um caminho íngreme e

sufocante.

Sem ônibus.

Page 104: Mateus göettees   1 - livro de mateus

104

Suas ideias eram outras. Saltou no lago.

― Eu admito conhecer as premissas do mundo que

criei. ― e Tiago andava sobre as águas. Pus-me a alcançá-lo.

Nunca cogitei que fosse complicado andar sobre um

lago que escorregava como gelo e balançava como gelatina. O

desequilíbrio me forçou a mergulhar de cabeça.

― Existem coisas que só funcionam na teoria...

― Ou nos cartoons. ― e como ele conseguiu?

Page 105: Mateus göettees   1 - livro de mateus

105

12

“O autoamor não pode se confundir com

egoísmo, que é o orgulho de ter e ser mais

do que é. De suplantar o outro pela

submissão. O autoamor impõe o seu caráter

humanitário à um estado superior de si. O

ser ideal é aquele que caminha no meio, em

equilíbrio entre o orgulho e a submissão, a

arrogância e a humildade que nada mais é

do que a sublimação”.

Mateus 36:10-13

Após as chuvas de cinzas custeadas por um vulcão,

entre espirros e alergias. Da suspensão de minhas intenções

xintoístas em uma luta travada contra centenas de incansáveis

formigas envenenadas que não queriam ser aspiradas ou

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106

varridas. Teria o meu prêmio com as agradáveis agulhas do

acupuntor.

Com o tempo você acaba se acostumando. Essa

expressão, tão condicionada pela consternação, nunca reflete a

realidade das intenções mais nobres. Nós não nos

acostumamos.

Com o tempo tudo se transforma, as dores podem ser

maximizadas ou superadas. Eu acreditava que pertencia ao

bando de reclamadores e lamentadores que aceitavam que o

mundo estava se acabando em enxofre e caldeirões de água

queimante. No entanto fui pego me afeiçoando aos reclamantes

com suas moléstias inquietas.

Nunca armei ser um bom par de ouvidos, e o desfile

de reclamações justificáveis – por causa de doenças terríveis –

me acalmaria os ânimos. E assim eu quase me sentia saudável

em meio aos flagelos pessoais, dos outros.

As minhas incurabilidades não se mostravam tão

imutáveis. Estava animado com as sessões de acupuntura que

me devolviam as sensações desaparecidas de mãos e pernas.

Page 107: Mateus göettees   1 - livro de mateus

107

Por mais que eu queira escolher aquilo que me trouxe avanços,

tenho que admitir, sem provas materiais, que nada acontece

por acaso. Existe uma perfeita simbiose entre todas as

pseudocoincidências.

A acupuntura é o caminho para consolidar os

benefícios alcançados com as cirurgias espirituais. Sem se

conhecerem, elas trabalham em sintonia tão magistral que colhi

algumas surpresas. Acabei descobrindo, através destas

pseudocoincidências, que um dos sintomas não era o que eu

supunha. Obtinha uma nova doença autoimune para o meu

currículo de incuráveis. Entretanto esta era, pelo menos,

controlável desde que não me aproximasse de glúten. E eu

achava que tinha descoberto tudo sozinho, me rejubilando pela

minha sagacidade de ver as informações sendo esfregadas no

meu nariz.

Contudo, a maior conquista seria me afeiçoar aos

outros pacientes lamentadores que aguardavam

impacientemente as agulhas de um médico com pretensões

sádicas. As pautas do dia sempre seriam as calúnias políticas, a

indignação médica e, no meu caso, o clima.

Page 108: Mateus göettees   1 - livro de mateus

108

Adorava notar as pequenas – ou grandes –

manifestações destas personalidades com as suas

particularidades que, às vezes, me cansava. E em alguns casos,

bastava o relógio parar de funcionar, e o caos de suposições

preenchia um ambiente heterogêneo, como aquela antessala

de espera, com angustiosa e divertida exasperação.

E o universo ainda brincava comigo.

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109

13

“Não afeteis orar muito em vossas preces,

como fazem os gentios, que pensam ser

pela multidão de palavras que serão

atendidos. Não vos torneis, pois,

semelhantes a eles, porque vosso Pai sabe

do que necessitais antes de o pedirdes”. São

Mateus 5:5-8

Mateus 32:06-20

Sou suspeito para julgar. Sentado no posto de saúde

onde seria interrogado pelo médico, escutava as narrativas dos

outros pacientes que pareciam se deliciar com os trágicos e

intrigantes enredos de suas doenças escabrosas. Em lamúrias

perpétuas que não queriam soluções e sim um par de ouvidos.

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110

Se eu tentasse embarcar na mesma repetição monótona e

tediosa de queixas, – pois tinha conteúdo para o assunto – seria

sumariamente interrompido.

Eu não era senil o suficiente para reclamar e nem

parecia estar tão adoentado assim. Eles até paravam por um

instante, me avaliavam com olhares nada discretos e se davam

por satisfeitos. Recomeçavam as reclamações.

Logo estava me acostumando com a pouco ou

nenhuma seriedade que uma doença sem feridas, pústulas,

cirurgias agonizantes ou erros médicos poderia provocar. Tudo

bem que era incurável e degenerativa.

Daria novo sentido à palavra paciência.

Estiquei as pernas e atravessei os braços para me

aquecer enquanto o ambiente hospitalar se esvaziava e me

perdia nas imagens de uma televisão muda. Não gostava de

esperar por algo cujo resultado eu sabia. As lâmpadas

fluorescentes falhavam.

Estava escuro quando fui convocado. Bem sabia que a

consulta seria mais uma interminável rotina para verificar o

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111

meu quadro de saúde – ou de piora.

Para ser sincero, ainda não me sentia enfermo.

Entretanto havia recebido um título que poderia mudar a vida

de um homem, para sempre. Ainda me lembro do diagnóstico

depois de ressonâncias e exames de sangue, para o meu pavor

de agulhas. Nestes episódios eu me aproveitava da falsa

impressão de que tudo estava bem e me confiava ao medo com

o subterfúgio de uma personalidade que eu só usava em casos

extremos.

Fechava bem fortes os olhos, dominava a minha

admoestação e terminava com expressão de bon-vivant. Pois

era esta que ainda me mantinha confortável perante as

circunstâncias que eu mais detestava. Médicos, hospitais,

doentes e impotência.

Um dia desses, eu percebi um comentário que me

abalou. Ninguém quer ficar doente. Nada mais lógico. Contudo,

assim que eu soube que estava incuravelmente diagnosticado,

experimentei um alívio. Muito alívio.

Tanto alívio que o médico, que esperava alguma

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112

reação nefasta ou confusa, ficou me encarando absorto. Tenho

quase certeza que ele pensou que eu não havia entendido, ou

estava em choque, ou mais doente do que cogitava. E daí se me

sentia bem?

Um doente só é feito de seus exames.

E seus medicamentos, que no meu caso se

compunham de vacinas dia sim e não. Se era para ser uma

catarse com agulhas, eu teria que aplicá-las sozinho. E com o

tempo se tornaria mais um hábito – doloroso.

Porém a doença é no cérebro, e eu desconfio que

afeta algumas das áreas mais inconvenientes para mim. Pois eu

ainda tremo só de pensar em agulhas, mesmo as finas e

pequenas subcutâneas de aplicadores violentos – que eu jamais

pensei em usar.

A doença pode ser um carma, um sofrimento sem fim,

a doença deprime e corrói os sentimentos, destrói as fundações

familiares, sociais e profissionais. A doença redefine atitudes e

ações e atrai aqueles que te amam e afastam os falsos. Ou o

contrário, afasta aqueles que diziam te amar e atrai o amor de

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113

incógnitos.

Conforme suas crenças, a doença pode ser uma prova

ou expiação, um castigo, a punição de Deus. Dívidas contraídas

de um passado, missão ou a bondade de Deus. Porque todo o

mal passa inexoravelmente pelo crivo da bondade de Deus.

Por convenção eu me enquadraria naqueles cuja

enfermidade é a prova para aperfeiçoamento de algum débito

nascido em vidas antigas o suficiente para não me recordar.

Ou seja, fiz e agora tenho que pagar. Por sorte ainda consigo

aceitar a resignação e possivelmente consiga me adaptar às

dificuldades que venham a surgir.

Menos para as mais óbvias. Porque tenho a

incapacidade de perceber os meus erros, assim como a maioria

das pessoas que apontam julgamentos de dedos firmes e não

percebem que possuem as mesmíssimas qualidades ao qual se

apressam em denegrir.

As minhas aptidões neste campo incluem que todos

sempre são mais admiráveis do que eu. E acabo passando a

impressão errada de que eu estou melhor do que eu mesmo

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114

suponho.

Na primeira chance em que eu me confrontasse com o

espelho, veria um idiota que não conseguia disfarçar a sua

azucrinante arrogância adubada por tolice.

Valendo-se de uma doença como pretexto para uma

situação que chegava à sua fronteira. Por isso senti alívio

quando algo justificou a minha fraqueza. Eu não era acusado

pelas derrotas. Embora também o seja.

Alguém assumia as minhas culpas – uma doença

degenerativa incurável – enquanto eu ganhava tempo para

respirar aliviado.

Estava aborrecido.

E doente.

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115

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116

14

“Se isso for ser esperto... Prefiro passar

minha vida inteira como um idiota!”.

Masashi Kishimoto.

Mateus 36:10-15

Aonde quer que eu olhe, as árvores contraiam uma

tonalidade ocre que prenunciava o outono tardio. As

montanhas precipitavam estas nuanças na limpidez do lago

azul. Estava a passos lentos, quando enlacei firme o lenço rubro

como uma badana e sorvi toda uma garrafa de água em um só

gole, observava Tiago logo atrás.

Ele estava mudo, não se deixando levar pelo meu

intuito de caminhar com sofrimento e molhado. E ele carregava

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117

um rolo de pergaminho preso às suas costas, com bastante

destreza, considerando as dimensões e considerações.

Atravessamos a enseada e, após os primeiros lances, eu

desmoronei aos pés de uma arvoreta como um bonsai titânico.

Tiago se sentou nos degraus de um humilde templo,

abaixo das grossas cordas que estavam repletas de guizos e

ornamentos bizarros, deixando o pergaminho escorado. O

templo ostentava um altar com oferendas de arroz e muito

incenso com suas colunas ondulantes de fumaça aromática. Não

havia inscrições, nem estátuas.

E as lacunas na sombra teimavam em me cegar.

Quando me acomodei, flexionei os braços sob a cabeça,

descansando-a na ramificação, e dobrei as pernas com descaso.

― Quero me desculpar por tratá-lo com desrespeito,

não foi a minha intenção. ― Tiago somente sorriu. Eu me

envergonhei.

― Nós somos amigos. Eu te compreendo. Suponho que

esteja aborrecido pelo meu atraso em... ― acenei arrependido.

Era o meu melhor amigo e eu nem me recordava. Talvez ele me

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118

respondesse.

― As pessoas costumam idolatrar os seus anjos,

sabia? ― Dignou-se a confirmar se eu estava pronto. Frisei com

um aceno duvidoso. ― O que você pensa de estar doente?

Poderia falar tudo sobre a moléstia, inclusive das

minhas teorias bastante sugestivas. Mas de como eu me

sentia?! ― Tenso.

― Posso complementar? ― continuou sério. ― É por

causa das divergências criadas entre ser o doente, atender a sua

versão das expectativas de todos, as suas próprias e reescrever

as impressões que davam corpo ao seu ego. Porque você ainda

não consegue extingui-lo.

― E por que me mostraram como é ser sem ego?

― Quem lhe garante que não foi você mesmo?

Pressente que tudo possui uma razão, desmerece as

coincidências e, mesmo assim, precisa de uma autorização?

Quem melhor para o trabalho do que você?! ― E qual seria o

papel dos anjos da guarda, guias e outros arcanjos? Pensava

enquanto eu era açoitado por mais perguntas. ― Eu não estou

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119

com você em tempo absoluto.

― Eu quero acreditar que toda a minha vida tem

algum sentido... ― ele interrompeu-me com voracidade.

― Cada segundo é meticulosamente calculado. Tudo

que lhe soa errado pode ser precisamente o contrário. O plano

sempre tem cumprido todos os passos.

― Os traumas, as incertezas, as inseguranças, os

medos e os obstáculos são alguns destes planejamentos com

gosto amargos?

― No seu caso, quase todos são amargos, azedos ou

intragáveis. Mas nunca foram difíceis de engolir. ― abrindo o

pergaminho abruptamente no ar que caiu suave sobre o

gramado. ― Eram barreiras criadas para impedir que os

acontecimentos do passado fossem recriados e você repetisse os

mesmos erros.

Fiquei surpreso porque estava inconscientemente

ciente dos fatos que me levaram ao suicídio. ― Que em cada

episódio detestável havia um fim? Pode imaginar os transtornos

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120

pelo qual eu passei?

― E pode imaginar o trabalho que me foi assegurar a

sua infalibilidade? ― escondendo-me que os fatos jamais saiam

dos trilhos. Havia outros personagens no traçado.

Fez-se um silêncio abrasador.

Tiago apontou para o pergaminho que tinha algumas

partes rasuradas para o meu constrangimento. Eram alguns

registros desta minha biografia.

― Mas antes vamos rever alguns fatos. ― ele

percebeu que eu estava nervoso com o que fosse dizer sobre

mim. ― Como anda as coincidências?

― Agora elas são absurdamente recorrentes. Qual é o

objetivo destes sinais?

― São reforços. Ou você ainda acredita que a sua vida

é repleta de escolhas e oportunidades infinitas? Há um ciclo de

eventos repetitivos que, se você perceber os sinais, o persegue

infatigável. ― estava bem atento. ― No início parecem simples

coincidências, porém se aceitar o fato de que elas são mais do

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121

que parecem...

Hum. ― o que eu poderia dizer?!

― Esta certeza pode aprimorar as suas convicções, e

as coincidências passam a ser... ― ele não parecia saber o que

dizer.

Adiantei-me. ―... palavras-chaves?!

― Melhor, a matriz básica do plano desta vida. E que

contem um projeto mais abrangente por detrás. ― Ele se

iluminou com um pensamento oportuno. ― Tem um texto

afixado ao seu armário que diz mais ou menos assim. “O seu

potencial é ilimitado em tudo o que escolhe fazer. Não presuma

que a alma que escolhe renascer em um corpo que você

considera limitado não realiza todo o seu potencial, porque você

não sabe o que a alma está tentando fazer”.

Tive que concordar, entretanto a citação só me

deixava mais abatido, não saber o que estamos fazendo e

mesmo assim se entregar a desígnios imperceptíveis?!

― O universo conspira a seu favor. ― foi a minha vez

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de ficar sem saber o que falar. ― Sabe o que significa a frase?

― Sim.

― Comecemos pelo início. O plano. O seu objetivo é

extrair ou enfraquecer alguns excessos. Eu posso citar alguns:

orgulho excessivo, intolerância e arrogância, egoísmo,

desrespeito, medos sociais e mais algumas falhas. ― engoli em

seco. ― As palavras são duras, mas nem todas são extremas.

Todos precisam de uma dose de covardia para que a coragem

não se torne temeridade.

Não amenizou o impacto. ― Eu vou usar as suas

palavras escritas no diário, com o cabeçalho horrível de

Impositivos da Lei Divina. ― e só piorou.

“Não sei ouvir as pessoas, trato-as com certo

distanciamento. Procuro aconselhar evitando compreendê-las. O

trato social é minimamente inclusivo. E por que todos gostam de

mim?”.

“Não sei lidar com os sentimentos, principalmente se

forem ilógicos. A autopreservação gera frustração. Esperar que

todos ajam logicamente implica que eu pouco conheço do ser

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123

humano e suas fragilidades. A doença me obriga a enfrentar

este dilema. Será que conseguirei ouvir?”.

Chorava diante da verdade. ― E foi por causa desta

autoafirmação que a semente da transformação nasceu. É difícil

reconhecer as falhas de caráter, apesar disso é muito mais difícil

assumi-las. Dominar-se a si próprio é uma vitória maior do que

vencer a milhares em uma batalha.

― Não entendo a razão de tanto sofrimento. ― o

efeito indesejado.

― O sofrimento não existe, a sua ideia de que é difícil

abrir mão de seu ego – e suas distorções – lhe impõe este

obstáculo irreal. Se ele parece intransponível é exclusivamente

por sua causa. É a reação natural daquele que não quer se

submeter.

― Submeter-me a quem? ― com medo da resposta.

― Às suas pseudocoincidências, os desígnios. Se

submeter a este fatídico destino – desígnios – é colaborar

consigo. Agir como se as pseudocoincidências fossem

imposturas ou obstáculos indica que você ainda não quer abrir

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124

mão de seu personagem ricamente titubeante com as

pequeninas facetas que definem a sua realidade.― Ele me disse

que precisava buscar outro termo, um mais adequado, para

pseudocoincidência. Porque coincidências não existem. ― E

assim, em cada obstáculo há mais de uma ação.

― What? Como assim?

― Quando muito novo você sofreu um breve acidente,

certo? ― concordei levando as mãos para o acidente no meio

das pernas. ― E pensou que ele serviria para conter alguns

excessos futuros?

― E não era? ― Para que mais ele serviria.

― Esta era somente a ação perceptível, porém o

motivo principal lhe escapou inteiramente à sua astúcia. ― Ele

teatralmente esperou. ― Te livrar do seu inflexível fascínio por...

Eu não estava entendendo, o que poderia me causar

tamanho deslumbramento a ponto de ser impetuosamente

arrancado dos meus hábitos de criança? ― O seu fascínio

deveria se conter, seria apenas uma incursão, uma inserção de

ideias e valores que deveriam brotar depois que estivesse

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125

maduro. As fortes impressões colhidas neste novo mundo

poderiam enlouquecê-lo se não fossem obliteradas a tempo.

― A que você se refere? ― o que me aconteceu

quando garoto?

― A sua implicação com a cultura, outros olhares,

outros costumes e que começava com os seus amigos. As

crenças orientais que tanto o maravilhavam, não encontrariam

terra fértil e avassaladoramente o engoliriam em repercussões

não digeríveis. Precisávamos arrancá-lo de seus amigos e suas

famílias.

Não imaginava. ― Então é por isso que nunca mais

tive contato com eles? Do acidente se seguiu a transferência de

colégios e, logo mais, de cidade.

― E muitas outras coisas surgiram desde então. Que

não seriam possíveis sem esta interrupção. ― Tiago estava sério

e mantinha um olhar de perseverança e aquiescência. ― Como

as ações que te levaram a tomar consciência das suas

experiências da vida passada. Sem os deslumbramentos que nos

causariam maiores atrasos.

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126

― Tenho que aquiescer que a trama é conveniente.

Mas por que não evitaram tal deslumbramento?

― Quem lhe disse que isto não tem outros objetivos. A

semente só deveria nascer agora. ― Como eu poderia ser

guiado sem que percebesse a magnitude dos desígnios. ― E

quem te controla é você mesmo. Ou ainda acredita que este

plano não é executado por você!

― Parece um paradoxo, um círculo eterno.

― A roda das transmigrações não considera as

conquistas intelectuais e sim as experiências. E por causa de

tudo, eu posso falar que te conheço muito bem. Por seu orgulho

excessivo, sua intolerância e arrogância, o egoísmo, o

desrespeito, seus medos sociais e mais algumas falhas. E não há

nenhum mal nisto. Todos se acham tão espertos, moldando

personalidades tão deturpadas quanto às idiossincrasias

grotescas que as criaram. Você é um esperto...

― Se isso for ser esperto... Prefiro passar minha vida

inteira como um idiota! ― não pude evitar o plagiato, precisava

perseverar se queria mudar.

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128

15

“Pode-se afastar a cobiça, nutrindo-se a

compaixão. Pode-se afastar a ira com a

ternura e pode-se remover o sofrimento

com a alegria e o hábito da discriminação

entre inimigos e amigos, nutrindo-se uma

mente equitativa”. A Doutrina de Buda.

Mateus 12:07-12

Subia com ansiedade em ondas.

Ochiai-bāsan se agitava com seu leque.

Parecia absorvida pela televisão que mostrava um

regravado festival de canções enka, com seus icônicos cantores

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129

caricatos a saírem de um videocassete betamax. Cumprimentei-

a irreprochável, usando de minha timidez que ali se adequava

corretamente.

Fiz outra mensura e retirei-me para a sala de jantar

onde estava o trabalho para fazer. A grande mesa de madeira

negra estava brilhando quando pus a máquina de escrever

seguido de três volumes sobre o assunto. Os meus

pensamentos em pratos saborosos com tentáculos de polvo

garoando shoyu de hashi desastrosos. Olhares divertidos para

quem se deliciava com arroz monobloco enrolado em algas.

Desanuviava-me destas delícias.

Comecei a datilografar enquanto os outros não

chegavam. Não pude disfarçar o fascínio de olhar para o nicho

que ocupava toda a extensão da sala. Um grande altar de laca

escura parecia um verdadeiro templo familiar. Os patamares

levavam até Buda e oferendas de comida e incensos que riscava

a parede verde com a sua fumaça serpenteante.

As fotografias antigas, em tons acinzentados, dos

antepassados em roupas de outra época, me encaravam

levantando camadas de nostalgia desconcertante. Desviei o

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olhar para outra direção, onde a luz do sol invadia sem

empecilho. Os janelões percorriam toda a galeria permitindo

ver os corredores que circulavam a casa.

Voltei-me para o altar com a forte sensação de que

não devia estar ali. Recuei a máquina e andei a esmo. Pude

ouvir uma conversação distante e ininteligível assim que me

afastei. Desconfiei que eles estivessem no quarto e me dirigi

com cautela respeitosa. A porta estava aberta.

Fascinado com as pequenas coisas que podem mudar

a forma como vemos o mundo, vi vários livros com os seus

rabiscos intermináveis que surpreendentemente não me

despertavam do estupor. Entretanto, a vestimenta erguida

como um quadro, deixou-me de queixo caído. Olhava-me com

desconfiança por trás das grades, pois ela possuía um elmo e

portava uma ameaçadora espada de bambu.

A armadura ostentava um quimono escuro, protetores

de couro, tiras de bambu e placas de algodão tão duras e

inflexíveis quanto às das faixas. As duas espadas estavam em

riste.

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Passei os dedos pelas fendas do bambu e pensei no

estrago que elas poderiam fazer. Recordando dos braços roxos

e esverdeados do meu amigo. Nunca o vi usando os trajes, no

entanto eles estavam gastos e sujos como se fossem ganhar

vida a algum instante. Por uma prática marcial que era

conhecida como Kendō e transformava homens em samurais.

Podia pressentir o seu olhar espiritual sobre mim.

Saí assustado.

Ficar ali me angustiava.

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132

16

“O primeiro passo para se livrar dos vínculos

e grilhões dos desejos mundanos é controlar

a própria mente, é cessar as conversas

vazias e meditar”. A Doutrina de Buda.

Inari 36:10-15

Não enxergava nada.

Como se eu coordenasse o seu aniquilamento, uma

nevasca de flocos astuciosos se dissipava. Caminhar sobre a

neve era como deslizar comicamente.

A espessa capa, de um branco encardido, abraçava

firmemente o meu pescoço enquanto eu retirava a neve

acumulada do capuz que puxei impaciente. O ar estava limpo e

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133

o céu mais claro e azul do que costumava ver. Do promontório

monocromático, com árvores encobertas pelo gelo branco, eu

percebia cidadela em colunas de fogo e fumaça.

Se não fosse pelos trabalhadores cabisbaixos que

trafegavam pelas alamedas do casario cinzelado, tudo não

passaria de um ukiyo-e em uma de suas cinquenta e três

estações. O vento ainda me obrigava a proteger os olhos.

Depois de alguns passos tropecei num ishidōrō, caindo

espalhafatosamente de boca e recurvado como um rezador.

Esforcei-me para atingir o templo que parecia estático.

Um grande largo, agora camuflado pela tempestade, estava

sendo vigiado por um monge.

Gritos de crianças me alcançaram e, antes que eu

pudesse reagir, eles espancavam e xingavam um garoto que

evitava revidar.

Inadvertidamente cheguei aos baderneiros. Não sabia

como enfrentar as minhas sombras sem que fosse atingido pela

agressividade que era minha. Recolhi o garoto ferido em meus

braços, com seus cinco anos de idade. Ele simbolizava o meu

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desejo pela proteção e por isso o abracei feroz e combativo.

As sombras negras se afastaram ao reflexo

inconsciente de meus desígnios. Não antes de me

repreenderem em resposta aos seus – meus – medos.

Busquei o auxílio ou a aprovação do monge que se

afastou em desprezo. A sombra do descaso e da arrogância

dissimulada, mas que eu o compreendia. E como pai destas

criaturas, senti-me impotente e rancoroso com aquelas atitudes

– minhas.

Apoderei do meu templo e achei um aposento

caloroso que me pareceu deserto. Aos poucos, o menino

acordava do pesadelo com ranhuras por todo o rosto. Ele

reclamava e gemia a todas as tentativas como se eu fosse o

perseguidor.

Ele se levantou rápido.

― Como se chama? ― tentando prender a sua

atenção em mim.

― Todos me chamam de Juroo. E quem é você? ― Já

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135

havia passado pela mesma situação invertida. Não seria eu

quem negaria as suas crenças.

Suspirei e disse o que não queria, com medo destes

paradoxos temporais. ― Eu sou Inari. ― Soou como uma

verdade imutável.

Estava começando a me afeiçoar a Juroo-kun. Como

era possível que eu crie toda uma existência. Sem as suas

colaborativas explicações parti da ideia de que, se ele sabe e é

um fragmento de minha personalidade, talvez eu já tenha todas

as respostas.

Olhei pela abertura da porta e delineei o jardineto de

areia sob a cerejeira desnuda. As pedras balizavam a minha

imaginação abrigada de neve e branco. Suspirei com ternura e

sentamo-nos junto da infusão verde. Ele estava muito silencioso

e me olhava com bastante curiosidade.

― Quem é você?!

Supus que ele queria a versão longa e pouco

compreensível sobre mim. ― Eu sou tudo. Sou as árvores, os

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rios e os animais.

― Tudo mesmo?! ― E ele acreditou.

― As pessoas, o ar e o sol. ― como me senti idiota. E

este não era o meu objetivo?!

― Até a mamãe? ― mais idiota.

― E você!

Agora ele fechava a boca, não sabia o que falar.

Muitas vezes o menino tentou abri-la, porém em vão. Curti cada

expressão de dúvida. Por fim não aguentei.

― E também os garotos que te bateram.― já

arrependido.

Ele franziu a testa em desacordo. Acho que ele não

estava conseguindo mesclar estes dois estados da minha

personalidade doentia. Fiz menção de elucidar, porém acabei

por desistir quando percebi a caixa.

Dentro havia um cubo – de Rubik – mágico em

madeira. Girei-o no ar para o aturdimento do garoto que

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desconfiava que o brinquedo fosse mágico. Por isso não suprimi

o termo que dava ao objeto qualidades sobrenaturais. Uma

corrente de ar frio balançou as tabuinhas penduradas nas traves

do templo. E, por um instante, as lanternas laranja quase se

apagaram.

Baguncei o puzzle e o entreguei aos olhos mais pidões

que jamais vi.

Pude deixar que ele se entretivesse enquanto

admirava o horizonte em névoas andantes. O lago deveria estar

congelado e o silêncio era deleitável. Por um breve momento

ele imperou na paisagem que se dispersou com a aproximação

de alguém que se arrastava. Nada consegui ver por baixo das

grandes abas de palha.

Juroo-kun acabou caindo no sono, abraçado ao

brinquedo, assim que o homem removeu o casaco. Era Tiago

que se debatia com a acumulação em seus ombros e

vestimentas.

Não gostei da intromissão, contudo eu já me afeiçoava

ao anjo, também. Em cautelosa curiosidade ele se acercou do

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garoto em sono profundo. Os seus cabelos ruivos pareciam se

destacar naquele panorama invernal, assim como as unhas

pretas.

De cócoras ele sorriu para mim.

― Acabou de plantar a semente que dará a Juroo-kun

o esclarecimento. Sugiro que não interfira até que ele desperte.

― Não pretendia acordá-lo! ― Tiago me olhou feio.

― Seu raciocínio me surpreende. Estou pedindo que

espere uns seis longos anos antes que se reencontrem. ― ainda

não tinha entendido.

― Não será possível, este diálogo já é o terceiro. ―

compreendi a gafe. O nosso primeiro contato foi – ou será

dentro de sete anos. ― Por que está aqui?

― Quis ver com os meus olhos o que você está

experimentando. Não é incrível o que a mente pode construir –

criar?

― E é um grande acontecimento? Demorei a acertar e

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diferenciar o que é minha imaginação e o que é...

― Eu? ― ele estava sarcástico. ― Eu precisei dar um

empurrão firme para que você cessasse com toda a

autocomiseração e autoflagelamentos de uma dúvida irritante.

Pode ficar tranquilo, não sou sua consciência, só um amigo.

Preferi ficar em silêncio. Assim eu aceitava melhor a

repreensão. Sempre precisei de um tempo pra digerir os

assuntos. E a doença transformou tudo em um intricado

labirinto sem saída. Tiago não pensava assim.

― Mateus, você está se remoendo em ilusões. As

coisas acontecem e devem acontecer como desejado por cada

um. Ou já estão caindo folhas sem que Deus saiba? Use sempre

o axioma de que Deus é perfeito e encontrará a razão de tudo.

― concordei mais íntegro. ― E esta criação – que também é

ilusão – é a sua maior expressão. Não a menospreze porque

todos possuem uma boa imaginação, cheia de ideias e

pensamentos capazes.

Concordei que era uma ferramenta de fácil uso e

pouca divulgação. ― E você nem conseguiria expô-la sem passar

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pelo ridículo. Consegue precisar as aptidões da mente – não esta

de carne – de criar e suportar mundos?

― Não parece tão incrível assim.

― Com apenas seis blocos de Lego – 2x4 – podemos

rearranjar até 915.103.756 combinações possíveis, sem

considerar as cores disponíveis e, um computador pode gerar

mais de um milhão de possibilidades por segundo para cada

lance de xadrez. ― pausa que precisei, pois não geraria tantas

respostas em poucos segundos. ― Acredita que o seu

pensamento produza menos?

Tiago estava me obrigando a pensar além das ilusões.

― Um gênio da matemática potencializará as suas capacidades

e os homens acreditarão que ele é um líder. Um monge em

meditação será só um iluminado.

― Ou um burro próspero. ― não estava

transmigrando o assunto. ― Então a inteligência não precede a

sabedoria?

― A sabedoria é a verdadeira inteligência. De que

adianta conhecer tudo?! Você estará sendo sábio quando

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considerar todos os julgamento e aceitar todos os defeitos.

Contudo só alcançará a Iluminação quando os julgamentos e os

defeitos forem desfeitos e as ilusões suplantadas pela

verdadeira realidade.

― E vou me chafurdar na meditação. ― afirmando

que nunca estive atrás de uma Iluminação.

― E não foi precisamente isto que você fez?

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“A natureza búdica existe em todos os

homens não importando quão

profundamente eles a ocultem com a

cobiça, a ira, a tolice ou a soterrem com

seus atos ou retribuições. A natureza de

Buda não se perde nem é destruída, tão

logo toda a corrupção seja removida, ele sai

de sua latência e reaparece”. A Doutrina de

Buda.

Inari 36:10-29

Olhei para o céu finito entre os telhados.

Uma fragrância de barro era superada pelo pólen da

primavera que sublevava pelas ruelas apertadas e cheia de

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alucinados aldeões.

Os casebres de madeira encanecida com suas

matronas em mutismo de afazeres, quase religiosos,

perscrutavam, zelosas, os comerciantes em parlatório ardoroso.

Um povaréu se preparava para o ocaso se acomodando ao

afetuoso campo das encostas da montanha do templo. Eu

continuava pela trilha corcoveante amparado pelos ventos

ascendentes. As pipas coloridas já começavam a riscar o céu.

O templo estava perto o bastante para que eu

percebesse a movimentação de vultos reconhecíveis.

Posicionei-me a poucos metros, camuflado pela capa cinza e

resguardado por algumas árvores em sua desconfiança

presumida.

Um sopro chegou aos meus ouvidos surpresos. Somos

aqueles que se conectam com que está acima e... Abaixo.

Pude me ouvir impecavelmente antes que o outro eu

desaparecesse, deixando Juroo-kun envolto em seus

pensamentos de um raciocínio extraordinário para mim.

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Será que seria bom se eu me aproximasse tão logo...?

Para Juroo-kun seria mais um jogo de presunções

difíceis de atinar, porém a sua fisionomia contava que ele me

entendia muito melhor do que eu mesmo supunha me

conhecer?!

Fazia um mês e para ele apenas um segundo.

― E quando foi que nos encontramos depois de todos

esses anos? ― tive que fingir que acabávamos de conversar.

― Quase um ano... não se recorda? ― ele parecia

desconfiar de algo. Embora nem eu pudesse imaginar o quê. ―

Com encontros quase todos os dias...

Não sei se revelava admiração, mas prossegui assim.

― Apesar de não captar como você conseguiu me superar.

― Mas isto é impossível.

― Do meu ponto de vista não é o que parece.

― As aparências não são ilusões? ― ele me pegou. ―

Somos todos fragmentos de você. Não existe a probabilidade de

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sermos mais. Quando estudamos as partes fragmentadas de um

problema, alcançamos maior compreensão sobre o todo. Eu sou

uma dessas partes.

― Portanto é como se eu estivesse me debruçando

sobre algum aspecto peculiar deste problema. Não se ofenda.

Juroo-kun parecia acérrimo. ― E não é assim que você

se sente com seu Deus? Que é através de você que Ele se

experimenta? Ele não lhe deu a liberdade para agir além de

qualquer aspiração que não fosse a sua?

― Eu já te disse que...

―... não sou Deus! ― Eu devia repetir muito este

bordão. ― E como eu chamaria o Todo? Partes de mim?

― Partes de-eus! ― E ele estava sendo sarcástico. ―

Através de mim conseguirá conter em si as soluções para as

suas dúvidas. Eu sou só um instrumento.

Ele se levantou e gritou para a criança que continuava

saltando por entre as gramíneas. Anoitecia e as lanternas de

papel eram acesas. Muitos se encaminhavam para o templo. ―

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Teremos Kabuki, quer assistir?

Acenei convicto de que devia ficar.

As lanternas clareavam o pátio do templo com luzes

suaves e faiscantes. Todos se acomodavam em almofadas em

conversas desconexas e eufóricas. As primeiras estrelas surgiam

tímidas. Sentamo-nos longe.

Pratos de metal e barulho instrumental calou as vozes

que passaram a se concentrar nos vários atores exagerados em

suas maquiagens e aparências extravagantes. De um palco que

nos abraçava, os personagens, travestidos de raposa, ou

samurai ou bela dama, recitavam em cânticos ritmados o

sofrimento do jovem que perdia a sua amada raposa.

Cabisbaixo, via as máscaras refletirem o meu desespero.

― Eu sou um deus muito doente.

― A ilusão é só o desconhecimento da realidade, A

doença, o pecado e a morte não existem. O que os seus sentidos

captam é tão somente a ilusão, que é a projeção de sua mente.

Senão teremos de admitir que Deus não é a perfeição. ― Juroo-

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kun sussurrou pausadamente. Eu concordava plenamente.

― Quando percebeu que eu existia?

― Detive-me por alguns bons anos tentando aceitar

que me dizia a verdade, que era eu e todos os outros. Contudo a

chave para este enigma foi me colocar no seu lugar. Sendo

todos. Os bons e os maus. ― supunha que ele se referia aos

garotos briguentos. ― E um dia alcancei o meu eu, que é você.

E quando descobri o meu eu, escutei-o me

repreendendo. ― Um evento antecedente me levou a refletir no

alcance de minha imaginação. E nas confianças que nos guiam.

Que o mundo transcende os sentidos.

Basta remover as impurezas de nossas almas...

Sempre que eu o escutava discorrendo sobre temas

iluminados, me surpreendia com a possibilidade de que estas

observações eram as minhas. Ele só as estava esfregando no

meu nariz. ― Então eu estava certo?!

Todos os atores pararam suas confabulações e

fixaram seus olhares severos em mim. Os espectadores giraram

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suas cabeças em busca da razão.

Compreendi o impacto da asseveração.

Retirei-me lentamente, em fingimento de pedras

chutadas a esmo e assovio não pertinente. Embora Juroo-kun

me lembrasse que bastava eu querer e este mundo se

desconstruiria. Eu acreditava que isto acontecia todas as vezes

que eu desaparecia. Contudo esta não era a realidade.

O mundo continuava vivo.

Além da minha vontade.

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“Luz súbita do espírito, a comunicação da

luz divina à alma, pelo que a inteligência se

torna capaz de atingir um conhecimento

verdadeiro”. Iluminação.

Mateus 36:10-29

Em pouco tempo me espaçava dos olhares

transtornados para me refugiar às margens do lago de pedras

soltas e galhos debruçados sobre suas águas pacíficas. Pude ver

fragmentos dos aldeões em entusiasmado regresso às vilas de

um caminho obscuro pela floresta de bambus infindável. O

trajeto mergulhava por uma bifurcação ao fim da escadaria de

torii vigilantes.

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Com o silêncio, a noite se pronunciou e o campo

festivo se desvaneceu. A areia da orla cedia aos meus pés.

O pequeno lago infinitamente azul refletia o céu

sobre ele. E a minha mente estava tão aberta e poucas vezes eu

fruí de oportunidade como esta. Cedi ao deslumbramento e

sentei-me em reflexão. Quase deitado ouvi os passos do meu

convocado.

Tiago se acercou com o braço erguido, repetindo a

sequência tão esperada por mim em tom de escárnio. ― O

imenso céu vai deixando que o seu crepe tome conta da

natureza. Olhe a escumilha da noite que se vai bordando de

estrelas. ― aceitava o meu desafio.

― Prometo não te inimizar.

― Eu nem me atreveria a lhe perdoar. ― ele sorriu

em atrevimento. ― Pousou o seu olhar para o chão indignado

com a descortesia da falta de assentos. Usava uma longa capa

negra. ― Está preocupado com o alcance da sua imaginação?

― Bastante. ― suspirei inconfortável. ― Estas

pessoas parecem desvendar fragmentos de minha

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personalidade que jamais pensei haver. E tenho medo que não

as consiga assimilar...

― Está deixando o seu ego pensar por você.

― Eu quem? ― Tiago conseguia me confundir.

― O mesmo que percebe as nuances de suas

personalidades e dos egos dos outros. Que compreende o que

significa perfeição. E tenta agir como se todos fossem um só.

Não é porque não tem todo o conhecimento que as coisas

devem estagnar-se. As lacunas são preenchidas com forças que

vão além do nosso saber. Assim como os nossos corpos.

― Os corpos não são governados pelo nosso

conhecimento sobre eles?

― Quem sabe, talvez pela ascendência moral. ―

Então não tínhamos ciência sobre os corpos? ― O seu corpo é

um mecanismo autônomo formado por quase 100 trilhões de

células individuais. Destes, somente 10 trilhões são organismos

constituintes de órgãos e tecidos, os demais são bactérias

simbióticas que são essenciais para o nosso funcionamento.

Estas individualizações são seres vivos e obedecem às suas

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funções interagindo e cooperando entre si.

― Seres vivos?

― Consegue imaginar o alcance desta explicação! O

seu corpo é um universo que você não tem ciência de suas

interações e maquinismos, no entanto, mesmo assim, ele produz

equilíbrio e se sustenta além das suas preocupações fúteis para

com ele.

Precisava urgentemente de uma parábola.

― Se fosse um carro... ― outra fábula encanada.―

Eles possuem características que podemos usar para comparar

com o corpo físico. A inteligência destes corpos é uma

inteligência intrínseca, construída por cada experiência

acumulada com os contínuos testes de peças e materiais –

células e tecidos. Estes formarão mecanismos – órgãos – que

serão aprimorados e agrupados em engenhos maiores – corpos

ou carros. Não sabe como seu corpo se sustenta, porém tem

ciência das experiências que lhe dão corpo.

― Certo. Nós criamos universos que se expandem

além de nossa pretensão em compreendê-lo. Eles se baseiam

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em qual prerrogativa? ― O que preenchia os seus vazios?

― A vida se recria. Ela delineia a sua realidade logo

que necessite de preencher e compreender seu universo. E esta

inspiração provê de Deus. Inspiração para completarmos os

espaços vazios conforme o nosso livre-arbítrio.

― Por isso que o meu universo cresce sozinho?

― Assim como o seu corpo, a sua alma possui

atributos tão sutis que a sua mente egotista não é capaz de

deslumbrar. Ela sustenta mundos que você só percebe através

de suas personalidades. É como se Deus resolvesse te mandar

uma carta, quando sabemos que os meios que ele dispõe são

infinitamente mais eficazes.

Abaixei a cabeça, convicto de que a realidade poderia

ser extraordinária demais para mim. ― Sempre confiei que o

meu mundo fosse um espelho deturpado da vida superior,

mundos mais perfeitos...

― Sim e não. ― Tiago ponderou. ― Deve estar

pensando que vivo em uma versão futurista e harmoniosa. Está

projetando a sua realidade dentro do que seria possível. Embora

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eu tenha que discordar, vivo em um mundo tão utópico que é

inconcebível qualquer esclarecimento da minha parte. Não

estou preso aos seus conceitos morais, políticos, sociais e, muito

menos, educacionais. Ou você acha que eu sou assim?

― E não é? ― já desconfiava.

― Sou como você consegue me compreender. ―

partiu para nova abordagem. ― Como já sabe, a inteligência

não é medida só pela nossa capacidade de processamento das

informações pela mente limitada dos nossos corpos, mas sim

pelas capacidades experimentadas – subjetivas e objetivas – de

todas as partículas de vida deste universo. Nossas

potencialidades são infinitas, no entanto estão dentro de

desígnios bem específicos.

― Portanto o livre-arbítrio tem pouca liberdade?!

― Sim e não. ― levava a mão ao rosto. ― O seu

potencial é infinito e, dentro de certas conveniências, domado

por barreiras tênues, pode potencializar os resultados. Você é o

fragmento de Deus, experimentando a soma de resultados

que...

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Isto valia para baixo?! ― Se Juroo-kun está em mim e

sua existência está reprimida em poucos instantes sagrados

meus, porque ele é apenas uma expressão de um aspecto meu,

ele pode conter a resposta sem que eu a saiba?

― Nunca. As suas conclusões são concomitantes. Ele

só a destrincha de modo que isto faça sentido em sua longa

vida. Assim sendo, quando vocês chegam a certas ideias é

porque as respostas se complementaram.― precisava aprimorar

a resposta. ― Você lhe dá subsídios para que alcance a resposta

de toda uma vida enquanto ele lhe reforça suas impressões.

Mateus, a discrepância de tempo permite que Juroo se debruce

intensivamente nas mínimas particularidades do problema que

serão acrescentadas à sua alma subjetivamente. Porque vocês

são a mesma pessoa, um só.

Levantei a sobrancelha. ― Eu já li isto...

― Chegou-lhe através de uma carta. “Se você

consegue compreender o caminho, então deveria entender e

saber para onde ele nos levaria. A iluminação no leva ao estado

de saber tudo sem ter que entender nada...”.

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― Porém estas palavras me colocam em uma

situação muito difícil. Só porque... ― fui sumariamente

interrompido.

― Não pode aceitar que o evento tenha um nome?

Olhei-o assustado com a possibilidade de ser

exatamente isto. Percebi que todos os caminhos me levavam a

este término. Descartei as outras, embora elas estejam

entrelaçadas. ― Será?

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“... recebemos convites para revermos

atitudes, reformularmos procedimentos,

reeducarmos hábitos e tendências,

redirecionarmos nossas emoções e anseios.

[...] Mas se não houver um trabalho real nas

estruturas profundas do ser, o risco de

recidiva ou do problema irromper em outro

lugar ou de outra forma é muito grande,

quase inevitável. Por ai já da para deduzir

que os verdadeiros potenciais de cura estão

sempre em estado latente, muito dentro de

nós...”. Cure-se e cure pelos passes. Jacob

Melo.

Mateus 36:03-30

A tudo me concentrei de olhos bem fechados.

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Embalado por música suave e palestras edificantes era açoitado

por voluntários de saúde do invisível mundo que nos rodeava. A

minha respiração pacífica era abalada pelas emoções que

irrompiam dos outros pacientes que já não suportavam as

revisões comportamentais que explodiam em choros e

lamentações.

Um clamor percorria os quartos nos inquirindo. “Eu te

compreendo, e te compreendo mesmo. E apesar de

compreender-te totalmente, quero dizer-te algo muito

importante. Escuta agora com o coração o que te vou dizer: Eu

Te Compreendo, mas não te apóio! Tu és o único responsável

por todos estes sentimentos. A vida te foi dada de graça e

existem em ti remédios para todos os teus males. Se, no

entanto, preferes a autocomiseração ao invés de mobilizares as

tuas energias interiores, então nada posso te oferecer. Se

preferes sonhar com um mundo perfeito, ao invés de te

defrontares com os limites de um mundo falho e humano, nada

posso te oferecer. Se preferes lamentar o teu passado e

encontrar nele desculpas para a tua falta de vontade de crescer;

se optastes por tentar controlar o futuro, o que jamais

controlarás com todas as suas incertezas; se resolveste

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responsabilizar as pessoas que te rodeiam pela tua

incompetência em tratar com os aspectos negativos delas, em

nada posso te ajudar. Se trocaste o auto-apoio pelo apoio e

reconhecimento do teu ambiente, então nada posso te oferecer.

Se queres ter razão em tudo que pensas; se queres obter

piedade pelo que sentes; se queres a aprovação integral em

tudo que fazes; se escolhestes abrir mão de tua própria vida, em

nome do falso amor, para comprares o reconhecimento dos

outros, através de renúncias e sacrifícios, nada posso te

oferecer. Se entendeste mal a regra máxima Amar ao próximo

como a ti mesmo, esquecendo-te de amar a ti mesmo, em nada

posso te ajudar”. Era como um nó permanente na garganta.

Não precisávamos falar, para aqueles que percebiam

as sutilezas nas circunstâncias em que haviam se metido,

desconfiavam que as coincidências não deviam existir.

As terapêuticas alternativas agradavam aos

desesperados que eram iludidos pelo verdadeiro tratamento, o

da alma. As histórias sempre seriam similares e eu percebi que a

porção essencial delas estava nas sublinhas não ditas.

Justamente porque não queremos admitir que a nossa

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personalidade necessita de reparos urgentes.

Quanto mais grave a enfermidade for, mais doloroso

será o processo de aceitação de nossas falhas morais. E muito

mais intricado os métodos sutis de inserção deste novo

paradigma tão aspirado. Toda cura se processa da alma rumo ao

corpo debilitado, sendo entremeada por uma mente bastante

temperamental.

Com um tato subliminar para não ferir a nossa

dignidade cega. Para nos enganar com métodos que aceitamos

e acreditamos, que apesar de serem espirituais nos deixam

fascinados. A verdadeira transformação se opera de dentro para

fora.

E eu não estava pronto para isso.

Todos chegavam abatidos, como se o combate

dependesse dessa beneficência. Encarávamos os nossos

salvadores, que sorriam, com a dor de nossas fraquezas.

Pensava que eles emitiam uma magnificência que me causava

abatimento e desprezo por minha insignificância. Não podia

suportar aqueles olhares de compaixão infinita. Muitos se

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ofereciam ao choro convulsivo sem se darem conta. Como era

intolerável olhar para aqueles olhos compassivos, que nada

desejavam.

Eu estava disposto a romper com esta ilusão. A

palavra-chave era confiança. E eu confiava, tinha fé em Deus. E

isto bastava?

Os procedimentos de imersão incluíam massagens,

terapias e reuniões entre os internos. E as mais simples

costumavam ter resultados insonháveis. Para mim, submeter

aos cuidados de incógnitos, causou-me uma reação forte e

inesperada. O quadro mental me abalou com a simplicidade de

suas imagens. Uma humilde massagem nos pés exprimia a mais

sublime das abnegações que eu poderia conceber. Talvez a

imagem de uma Maria Madalena lavando os pés de nosso

Senhor tenha contribuído para o impacto.

E os demais reagiam segundo as suas ilusões

permitiam. E se uma palestra falava do futuro e suas conquistas

diante dos sonhos perdidos, logo mais eu ouvia alguém abalado,

revendo a importância da doença que lhe tirou as

oportunidades de toda uma vida. O futuro promissor teria que

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ser revisto.

Ou seria a chance de construir um novo amanhã?

“Embora ninguém possa voltar atrás e fazer um novo

começo, qualquer um pode começar agora e fazer um novo

fim”.

Eu tinha que estar pronto para.

A chance se aproximava e eu teria que desembuchar.

O meu maior obstáculo era não conseguir pedir ajuda. Sempre

considerei que poderia fazê-lo pelas minhas próprias forças,

porém existiam intricadas considerações do meu ego arrogante

que me impediam. Uma barreira que só percebi quando tentei

atravessá-la. Uma barreira intransponível criada por mim.

Gaguejei para tentar falar. Supus que seria mais fácil

se eu pedisse algo mais simples.

Mas não era.

Rodei em círculos para alcançar o meu desejo.

Quando a chance despencou, após passar por vários

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voluntários, – para a minha aflição – estava face a face com

aquele que me daria a resposta final. Eu poderia fazer uma

massagem nos pés de um amigo? Um amigo que reclamava o

atraso do benefício e parecia dar a mesma importância que eu

para a terapêutica.

― Eu poderia fazer uma massagem nos pés de um

amigo?

Óbvio que não. Pois não tinha a mínima importância o

resultado que surgiria desta indagação, eu havia superado algo

instransponível para o meu ego. Assim que a adrenalina cedeu,

tremia com satisfação. Estava livre de uma perturbação que não

me deixava ver que a confiança não era por ações externas, e

sim em mim mesmo.

Estava aprendendo a confiar em mim.

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20

“É tolice e desnecessário a uma pessoa continuar sofrendo simplesmente

porque não alcançou a Iluminação quando esperava alcançá-la. Não há insucesso na

iluminação, a falha reside nas pessoas que, durante muito tempo, procuraram a

iluminação em suas mentes discriminadoras não compreendendo que estas não são as

verdadeiras mentes, e sim, falsas e corrompidas, causadas pelo acúmulo de avidez e

ilusões, toldando e ocultando suas verdadeiras mentes. Se este acúmulo de falsas

divagações for eliminado, a iluminação aparecerá. Mas, fato estranho, quando os

homens atingirem a iluminação, verificarão que, sem as falsas divagações, não poderá

haver iluminação”. A Doutrina de Buda.

Mateus 36:04-18

A tudo observei inabalável.

Contemplava o mar chocando-se contras as pedras e

se desmanchando em uma névoa que gotejava das folhas das

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árvores. O caminho entre praias margeava o penedo que se

diluía em brancas espumas. Gaivotas mergulhavam sobre as

ondas para desaparecerem em uma ilhota longínqua. A grande

pedra se elevava inflexível aos embates da água.

Estava, sim, consciente da grandeza da minha

transformação. O reino que me envolvia em suas lutas

incansáveis de uma discussão interminável nascia como um

paraíso de oportunidades. Sonhamos pelos momentos difíceis e

a chance de superá-los, ou simplesmente por uma experiência

diferente. Ansiamos pelas dores e alegrias, somos movidos por

incumbências que geram todas as experiências da vida.

E o mundo surge perfeito, mecanismo de chances sem

fim, experiências ilimitadas proporcionadas pelo caos. O espírito

anseia por descobrir a sua verdade. Como saber tudo sem ter

que entender nada.

Porque algo formidável deflagrou em mim.

Quando eu principiava a ponderar as minhas falhas. As

tais lamentações que me prendiam em um passado de: se

tivesse feito ou desfeito isso ou aquilo. Os caminhos obstruídos

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por minha inépcia em lidar com as soberanias de um destino já

escrito, ainda ecoava em mim, o mal não merece a minha

consideração. A ação do mal passa pelo crivo da bondade de

Deus e que tudo caminha para o meu bem.

E o passado faz parte de mim, porém não pode

dominar toda uma vida que se perpetua além desta existência.

O passado não determina o que sou, embora molde quem sou.

As provas e expiações devem cumprir o seu papel.

Eu deixo que elas se cumpram?

Respirei fundo diante do dilema. O ego se esfacelava

dando origem a novas reflexões sobre a vida. Não havia falha,

tudo estava perfeitamente posto. Eu estivera errado, criando e

recriando as minhas sensações sobre relacionamentos que

julgava saber e analisar antes de ser tragado pela minha

personalidade, fugidia e dissimulada que ainda ditava as regras.

Humores que flutuavam logo que eu supusesse saber

algo dos meus interlocutores. Reagia às impressões colhidas,

agia ao que considerava compreender e criava a máscara.

Subegos doentios e tensos que se apoiavam em ideias

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168

erroneamente sugeridas por uma mente discriminadora.

E quando todas as preocupações e medos

desapareceram tão abruptamente, me perdi em reações que

não encontravam sustentáculo em meu acérvulo de

experiências humanas.

Ainda não me adaptei ao evento. As ações que

comprometiam o meu equilíbrio foram substituídas por uma

clareza incomensurável.

Estou pasmo.

Page 169: Mateus göettees   1 - livro de mateus

169

21

“O primeiro passo é saber e aceitar que

você escolheu que ela fosse o que é. No

sentido mais amplo, todos os eventos ruins

que acontecem são de sua escolha. Porque

ao fazer isso você chama o seu eu de ruim,

já que os criou. [...] Entretanto bendiga

tudo, porque tudo é criação de Deus,

através da vida que é a sua mais importante

criação. A oportunidade de fazer o que

quiserem e experimentar o resultado disso.

Transformar o conceito em experiência”.

Conversando com Deus. Neale D. Walsch.

Inari 36:11-01

Ares de um inverno infindável.

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170

O frio abafou os meus pulmões como mil agulhas. O

panorama branco cobria os galhos com neve densa, estava

acocorado em um desses galhos quando percebi não estar só.

Juroo-kun pedia silêncio de olhar significativo e

indagador. Ambos estávamos a vários metros de uma trilha

cerrada. Segurei-me com força à arvore com a trovoada de

cavalos que desciam o caminho estreito e tortuoso em

perseguição de um fugitivo incorpóreo.

Antes que os soldados passassem por aquele campo,

Juroo-kun deslizaria pelo tronco para se projetar contra o

paladino que foi sequestrado de seu cavalo que continuou

trotando impassível. O impacto no ventre precipitou o homem

contra o plano branco, ajudando Juroo-kun a se lançar de pés

deslizantes em respiração arfante.

O soldado desembainhou a espada que foi extraída

por um tolo e preciso gesto de seu oponente que o deixou

inconscientemente à orla do bosque. Juroo-kun acenou-me para

que descesse. Mas como?!

A prerrogativa para este mundo de alucinações, as

Page 171: Mateus göettees   1 - livro de mateus

171

suas leis naturais se sustentavam nos meus desejos e eles eram

um pouco mais flexíveis do que aquelas que regiam a minha

realidade. Saltei sem medo de morrer.

Quando cheguei ao solo estava intacto. Visualizei os

mais de quinze metros do qual caí. Quase desmaiei de euforia

com a inundação de adrenalina. Juroo-kun me observava calado

e expressão ofendida. Ele detinha um ar circunspeto em seus

dezessete anos, ultrapassando a minha aparente adolescência

em quase três anos.

― Não é uma boa ocasião!

E não esperava um mundo de conflitos e batalhas

sangrentas em minha imaginação. ― Mas eu estou aqui por

algum motivo... O quê está se passando?

― Os daimyo de algumas províncias se reuniram para

apoiar a volta dos poderes políticos do Xogum para o Imperador

e para um conselho feito somente de daimyo. Estão cortando os

suprimentos com a ocupação das rotas de mantimentos, pois a

região é a ligação entre o oeste e o leste do país. ― atento aos

soldados remanescentes.

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172

Descemos a encosta até chegar a um posto de

vigilância danificado. ― E você está defendendo...

― A vila, os meus amigos e a família. Nesta guerra

somos intrusos para as frentes de batalha. ― percebi a sua

fragilidade e tristeza como se fossem as minhas. ― Preciso

defender aqueles que amo e, sobretudo as que me amam.

Por que eu estava criando este conflito? Nenhum

pensamento meu poderia ser paradisíaco e imutável? Ou eu

estava me deslembrando de algo? ― Pensei que fosse um

monge!

― Sou um artesão, quem sabe até seja um bom

combatente, contudo ainda não penso em meditar. Por que

pergunta, Inari-san?

Ele o será, eu sabia. ― Onde aprendeu a lutar?

― Meu pai servia à Guarda Imperial em Edo e me

ensinou algumas técnicas de defesa. Elas estão sendo muito

vantajosas.

― Um samurai?

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173

― Ninja. Os homens do xogunato são samurais. Como

aquele que facilmente derrubei. Era de uma patrulha de

fronteira que tem um posto de checagem nesta província.

Se aquilo foi simples, o que ele podia fazer? ― Eu

estou causando toda esta agonia e sofrimento? ― ele ficou

assustado.

― Acredito que os eventos estejam unidos. A sua

perturbação e a nossa liberdade para recriar este mundo. Os

conflitos nos possibilitam crescer.

― Com dor?

― Isto só depende de cada um. O sofrimento é uma

ilusão e, portanto, para aqueles que entendem a verdade, ela

inexiste.

― E para você? ― estava preocupado com ele.

― Aproveito para fortalecer o meu espírito, embora

seja complicado. ― Observei que o caminho até o casebre já

havia sido percorrido por quatro pés. ― Inari-san, eu tenho

companhia...

Page 174: Mateus göettees   1 - livro de mateus

174

O homem retirava o seu casaco rústico, sacudindo-se

vigorosamente em gritos de júbilo. ― Eis o Kikuchyo.

Para mim, aquela pessoa ostentosa e burlesca, tinha

outro nome de guerra. ― Tiago?! ― e escorava a sua espada

junto a um rifle rudimentar.

― Só de passagem. Os altos impostos me obrigam a

ficar... ― Ele estava me dizendo que era um observador, ou o

que quer que seja. ― Juroo-san, os homens ficaram com medo.

Estão sussurrando que o bosque é assombrado.

Juroo-san sorriu. ― Com os demais aldeões nas

cavernas do Monte Kami, posso descansar um pouco. ― e

deitou-se de olhos fechados e ouvidos bem abertos.

― O que está fazendo aqui? ― tentei cochichar aos

berros.

Tiago ou Kikuchyo parecia distraído com as suas armas

quando por fim se pronunciou. ― Quero ver tudo com os meus

próprios olhos. Esta batalha provê de você e suas dúvidas. Para

manter o estado de iluminação é necessário fortalecer

firmemente o seu espírito para não se entregar às ilusões da

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175

mente, Mateus.

― E quando começou este tumulto?

― Da vontade de suplantar os seus medos em

preocupações infatigáveis. E supérfluas. ― Tiago olhou pela

abertura um ruído suspeito. ― É só um dos meios de equilíbrio

da sua alma.

― Eu estou destruindo tudo com a minha tola

insegurança. ― pus-me a sentar depois de tanto tempo em pé,

chocado com a visão de Tiago neste mundo de caos.

― Sim e não. A destruição é inevitável, independe de

seu livre-arbítrio. É gerada pelo preenchimento dos vazios com

as experiências criadas pelas suas sombras. Em imaginações

mais poderosas, estes vazios tendem a ser supervisionados pela

mente superior de seu criador. No seu caso, basta colher os

frutos caídos...

― É um mundo autônomo e mesmo assim eu sou o

criador? ― até planetóide com um vulcão, uma rosa e o medo

diário das sementes de baobás carecia de um guardião.

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176

― Não importa o seu entendimento, as experiências

são colhidas, a sua consciência e subconsciência moldam os

parâmetros que são absorvidos pelas sombras. E elas lhe

repassam estes novos conhecimentos de formas não

compreensíveis, porém válidas.

― Hã. ― Juroo-san deixou escapar um sonho.

― Por serem você, as sombras compartilham o

mesmo conhecimento e os dois interagem em ciclo contínuo e

ininterrupto. Pois você constitui o universo deles. ― se Tiago

estava tentando alimentar o meu ego, com sensações de poder,

fama e grandeza, ele estava conseguindo me irritar. ― Com

quantos se relaciona em seu planetóide?

― Só com ele! ― apontando Juroo-san que não sabia

fingir dormir.

― Para Deus, isso não passa de um esboço primitivo.

Ele está consciente em cada ser vivo do universo. E conversa

com eles. De seu jeito... ― Tiago se aprontava para partir. E me

convidou. Não antes de chutar Juroo-san. ― Me acompanhem!

Afastamos-nos do refúgio após comer algum peixe

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177

defumado e tomar vinho de arroz. Partimos além das trilhas,

abrindo caminho pela floresta ao sopé das colinas. Ao longe, a

montanha com seu frio interminável, vigiava o vale em brumas

silenciosas. As embarcações estavam hibernando em um cais

abandonado de uma cidade fantasma. Os soldados circulavam

invadindo os lares vazios. Percebi o olhar magoado de Juroo-san

para com o seu vilarejo sitiado por homens de guerra.

Perguntei para Tiago. ― Como eu devo esclarecer a

sua presença para ele?

― Juroo-kun, diga para ele quem eu sou. ― Juroo-san

parecia acabrunhado e desarmado. Olhava-me tentando achar

palavras para me contar quem era Tiago. Não era para ser o

contrário?

― Ele – Tiago ou Kikuchyo – é o espírito que me guia...

― Mas ele é o meu também?! ― automaticamente

nós dois encaramos Tiago. Ele sempre sorria.

― Qual é a surpresa, vocês não são praticamente a

mesma pessoa? Se um é parte do outro, eu não deveria estar

em ambos? Além do mais, eu sou a ponte entre os seus mundos

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178

e outros dos quais nem desconfiam. ― Tiago se acercou de mim

e rispidamente me puxou pelo tórax, agarrando-se com

brutalidade ao casaco. As suas feições se fecharam em rancor

explosivo. ― As suas opiniões firmes devem ser enfrentadas e

aniquiladas. Elas são a razão de seus conflitos. A verdade não

suporta falsas convicções de uma personalidade persuasiva e

subjugada pelas ilusões soberanas e opressivas.

― O quê! ― estava indignado.

Ele me lançou para trás com ferocidade, derrubando-

me comicamente de costas. ― Defenda-se de si! ― Gritou com

tanto ênfase que me ergui sobressaltado diante de um impulso

não esperado.

Juroo-san se afastou ao sinal de Tiago. Ele parecia tão

absorto quanto eu. Apesar disso a perturbação se transformou

em medo quando ouvimos o trotar de um cavalo irromper em

minha direção.

― Defenda-se...

Percorri alguns passos e saltei sobre o animal com as

minhas pernas recolhidas quando catapultei o soldado, que

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179

voou para trás sem reação. Caí sobre a sua armadura e com um

impulso dinâmico me afastei tão ofegante e nervosíssimo que

quase desfaleci. O espadachim me assaltava de espada em arco

enquanto o cavalo sumia. Juroo-san e Tiago observavam

incólumes e indiferentes. Precisava pensar mais rápido.

A ofensiva custou-me um rasgo no meu flanco

sangrando. Desvencilhei-me com maestria jamais cogitada por

mim.

Este mundo é meu.

Com ação, bati a palma da mão na neve que se

convulsionou em uma grande onda branca que derrubou o

homem. Ele estava soterrado, eu pude ver os seus olhos

apavorados. Recuei com o reconhecimento.

Aquele jovem samurai exalava os mesmos medos que

eu encerrava nas profundezas da minha alma. O medo de ser

exprobrado e ser julgado pelas fraquezas. O medo de enfrentar

o incógnito com uma personalidade frágil e submetida aos

olhares inquisidores. Reconheci-me em sua acuada fragilidade,

seu ego o impulsionava a se enquadrar nesta batalha que ele

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180

não queria lutar. Este pavor se transmutaria em uma rebeldia

satânica se eu não fizesse nada.

― Este é um dos fragmentos que mais o assola. ―

Tiago se dirigia a Juroo-san. ― O medo que ganha vida a partir

de suas preocupações.

― E ele não as suprimiu?

Encarei o combatente com parcimônia. O samurai

estava pálido e curioso comigo. ― Toda preocupação é a porta

de entrada para os medos e é este estado que destrói a... ―

tinha que terminar a frase.

― Se não eliminar as suas tolas inquietações... ―

frisou Juroo-san.

― Nunca seriam inteiramente extraídas, né?

Tiago se aproximou olhando diretamente para o

soldado abatido. ― E quem disse que esta é a resposta? Mude a

sua ideia sobre os problemas. Não somos todos irmãos? E não

tenha medo de admitir que a sua experiência tenha nome.

― Todos cumprem as suas provas, mesmo que

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181

inconscientes. ― Soltei o jovem e fiz uma dilatada reverência

com o intento de desculpar-me. Depois de algum tempo ele me

respondeu com honra e montou o cavalo espantado. ― Estes

são os nossos desígnios, não cabe a nós decidirmos os valores

pelo qual julgamos ou somos valorizados. Nenhuma

preocupação merece a minha consideração.

― Tornará-te arrogante. ― Juroo-san parecia perder

uma guerra. ― E esta arrogância te tornará apático diante dos

homens.

― Mas veja os seus olhos. Inari jamais esteve mais

sereno. ― Tiago estava contente com o resultado. ― É o preço

pela conquista da paz.

― É a iluminação. ― percebi como recriar o evento. O

vislumbre indizível que parecia desaparecer diante dos medos

sedutores.

As dores e os sofrimentos alheios não passavam de

vestígios exprimidos pela ignorância. O que podia ser certo para

um, podia ser errado para o outro. As preocupações

avassaladoras provêm dos anos de subordinação de nossas

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182

mentes ao statu quo. Reagimos como reagiriam os nossos

antepassados. Somos aqueles com sentimentos represados que

repetem sempre as mesmas reações. Não há raciocínio. Não há

experiência. Nem a busca pela verdade.

O mundo mudou.

― O seu oponente será mais um amigo neste universo

de personalidades. Assim como Juroo-san, vocês logo estarão

juntos. No momento ele precisa de tempo para compreender...

― apontava Tiago para o cavalariço mais adiante. ― Ele se

nomeia Shinji.

― Compreendi que para controlarmos os excessos

devemos nos submeter aos sentimentos. Tudo pode mudar sem

que nada nunca mude... ― Juroo-san não se conteve.

― Como eu faço para controlar os cinco elementos?

Ele não fazia ideia das premissas de seu mundo?

Eu sorri como nunca.

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184

22

“Ó mente! Por que pairas incansavelmente

assim sobre as cambiantes circunstâncias

da vida? Por que me deixas tão confuso e

inquieto? Por que me incitas a coligir tantas

coisas? És como o arado que se quebra em

pedaços antes de começar a arar; és como o

leme que se desmantela, no momento em

que te aventuravas neste mar da vida e da

morte. Para que servem os muitos

renascimentos se não fazemos bom uso

desta vida?”. A doutrina de Buda.

Tarō 06:02-20

Um dia de céu de oceano em que os ventos

desenhavam barcos em nuvens vagarosas. Rodopiando os

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185

pássaros e acariciando a vegetação que rompia na esperança de

uma primavera precoce.

Perdia-me em pensamentos vagos em que o meu pai

precisava me acordar. — Vamos, Tarō-kun! Cuidado por onde

anda. — O caminho estava movimentado desde Hamamatsu e,

o vale com as suas montanhas, ainda apresentava perigos

naturais ou ladrões escondidos na floresta.

Os comerciantes de Edo e os aldeões das províncias

próximas vinham até a pacata vila, nas margens do lago, para

consultar o sábio do templo da montanha. Esta seria a

oportunidade de conhecê-lo e descobrir porque papai o amava

tanto. Estávamos indo para Edo onde eu poderia ser aprendiz

de um artífice que me ensinaria a gravar belas pinturas sobre os

homens e a natureza. Mamãe dizia que eu tinha muito talento.

Eu estava aprendendo a escrever e em breve poderia

ler, adorava entender os avisos dispostos pela estrada desde

que saímos de Kyoto. — Talvez o meu avô possa te ensinar a

não ficar no mundo de fantasia. Estamos pertos! — O sábio era

o avô de meu pai.

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Havia muitas pessoas esperando para serem

chamadas pelos monges do templo, muitos doentes e

sofredores buscavam alívio. Mal chegamos ao topo e ele me

chamou, como se nos esperasse.

Seus olhos perscrutadores e a longa barba me

causaram um reconhecimento perturbador. Enquanto papai o

abraçava, para o constrangimento de muitos, vi um quadrado

colorido disposto estrategicamente para ser visto assim que

chegássemos. Ele percebeu que eu não tirava os olhos dele.

Catou-o e pôs bem perto dos meus olhos. Sorriu

sarcasticamente e embaralhou as cores em frações menores e

desarranjadas.

― Como começou o seu despertar, este será o meu

presente para você. — peguei o quadrado com admiração. —

Estou lhe restaurando o brinquedo. — e falava para algum

fantasma acima de mim.

― Não entendi, ojii-san!

― Ainda nos veremos, em outras formas e ocasiões

adoráveis. Mas eu queria muito te ver para contar que a mente

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187

disciplinada alcança mundos impensáveis e a vida sempre nos

levará a ocultá-los nas ilusões. — Papai parecia assustado. —

Veja a todos com novos olhos. Que em sua vida encontre a paz

que tanto busca. E que a serenidade de Buda o acompanhe. —

passou as suas mãos vacilantes pelos meus cabelos.

Encaminhamo-nos para a estalagem e papai parecia

confidenciar algo na penumbra. — Juroo-jiisan encontrou o seu

mestre!

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188

23

“Há quatro estados mentais ilimitáveis que

devem ser nutridos por todo aquele que

busca a iluminação: a compaixão, a ternura,

a alegria e a equanimidade. Pode-se afastar

a cobiça nutrindo-se a compaixão. Pode-se

afastar a ira com a ternura; pode-se

remover o sofrimento com a alegria e pode-

se remover o hábito da discriminação entre

amigos e inimigos, nutrindo-se uma mente

equitativa”. A Doutrina de Buda.

Mateus 11:11-11

Acordei com o coração na boca, realmente eu não

dormi.

A felicidade não é uma conquista do homem, é o

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189

exercício constante do amor. E ele pode acontecer em manhãs

tenebrosas que antecedem longas viagens de uma ansiedade

insuperável. Quando o carro tomava fôlego e entrava em

velocidade de cruzeiro, quando o sol sobrepujava a madrugada,

parávamos para a refeição mais importante dos campistas.

Depois de trinta longos minutos, estávamos comendo

ovos cozidos com uma pitada de sal, muito leite achocolatado e

sanduíches de papel alumínio salvos de uma bolsa térmica.

Durante o trajeto, eles seriam devorados até a sua extinção.

Subíamos a serra, puxando um trailer minúsculo. A

velocidade registrada pelo radiador fervendo não passava de

uns poucos quilômetros por hora. A caravan regurgitava

cansada e quatros crianças pulavam alegres com a expectativa

de verem o mar. Ainda faltavam vários e intermináveis

quilômetros.

Porém era a mesmíssima sensação de verões quentes

na piscina do clube, aonde corríamos tirando as camisetas

apertadas para aquele oásis só nosso. Esbanjávamos água até o

almoço mais saboroso de nossas vidas. Nervosos pela fome. O

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inigualável macarrão com atum. E talvez salada.

A expectativa antecedia as férias com propostas de

viagens que nos faziam estudar com afinco. Antes que o ano

letivo terminasse, fechávamos as notas máximas necessárias

para escapar de provas e recuperação. A vontade de viajar fazia

com que ansiássemos pelas férias, obedecendo – às vezes – as

regras de casa e cumprindo as nossas obrigações – que

pareciam muitas.

Tudo isso para acabar num camping mal-acabado,

cheio de gente debatendo calorosamente as suas vidas

enquanto lavavam roupas nos tanques coletivos. Com crianças

sonolentas e cheias de areia da praia em choro malcriado.

Gritos, muita música barulhenta, fumaça de churrasqueiras

improvisadas e noites apertadas em camas duras de barracas ou

de embutidas como prateleiras.

Enfim, era a melhor coisa do mundo.

Mesa se transformava em cama de casal e torneira em

chuveiro. Um fogão para cozinhar macarrão, com atum. Uma

geladeira com um litro de leite da vaca marrom. Uma maleta

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191

seria uma mesa com prateleiras de lona e nós ainda limpávamos

os olhos remelentos querendo correr para as águas

encantadoras do mar.

A felicidade rompia de nossas carapaças com tanta

facilidade que não poderíamos pensar que fosse o contrário.

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192

24

“Vou vos revelar a infelicidade sob uma

nova forma, sob a forma bela e florida que

acolheis e desejais com todas as forças de

suas almas equivocadas. A infelicidade é a

alegria, o prazer, é a fama, é a agitação, é a

louca satisfação da vaidade, que fazem

calar a consciência, que comprimem a ação

do pensamento, que atordoam o homem

sobre o seu futuro. A infelicidade é o ópio do

esquecimento que reclamais

ardentemente”. Evangelho segundo o

Espiritismo V.24. Allan Kardec

Mateus 36:11-05

Qual é o fundamento da minha felicidade?

Page 193: Mateus göettees   1 - livro de mateus

193

Por mais que eu aceite uma experiência que me

aproxima de um Buda, nego o meu domínio sobre um singelo e

conciso instante sublime.

Buscar respostas verdadeiras para problemas ilusórios

nasce da vontade de me reconstruir, de aceitar este vestígio

luminar. Uma brecha no espírito quase indetectável que contém

percepções, sensações e sentimentos indescritíveis. Mas,

mesmo assim, muito pouco para fazer a diferença.

Porque aqueles que arregaçam as mangas trabalhando

e ajudando os sofredores e fascinados pelas ilusões prazerosas,

mesmo sem a compreensão do seu mundo, agem movidos pelo

amor.

Que sentimento é este?

Só conheço o apego disfarçado de um amor

perpetuado por décadas de sugestões malbaratadas. “E os meus

medos? Medo de perder o que possuo, medo de não ser bom

para aqueles que me cercam, medo de não agradar

devidamente às pessoas, medo de não dar conta, medo de que

descubram o meu íntimo, medo de que alguém descubra as

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194

minhas verdades e as minhas mentiras, medo de não conseguir

realizar o que planejo, medo de expressar os meus sentimentos,

medo de que me interpretem mal”. Estes não são os dramas de

todos nós?

O que leva uma pessoa a fazer acontecer o seu

destino, de aceitar o seu lugar no mundo como lhe é ofertado.

De se submeter aos seus medos e buscar a sua cura. Porque a

vida lhe foi dada de graça e existem em si remédios para todos

os seus males.

O que nos leva a construir os nossos caminhos,

lutando e encarando todas as angústias e dores do percalço. De

enfrentar a monotonia e a depressão em que nos acomodamos.

De vislumbrar a felicidade?

A doença sempre me obrigará a enfrentar este dilema,

será que conseguirei ouvir? Afianço que eu sou tão frágil quanto

os outros.

Se na base de todos os medos se encontra a

incapacidade de se prever os acontecimentos; tenho dentro

deste controle duas respostas: a frustração por não conseguir

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195

alcançar os desejos e, a euforia ou êxtase por tê-los alcançado e

deste modo surge a aflição e a angústia ante a incerteza de

manter este estado ou, a apreensão em conseguir

continuamente este estado de felicidade fugaz...

“Onde, então, está a fonte de toda tristeza, da

lamentação, do sofrimento e da agonia? Não deve ela ser

encontrada na ignorância e na obstinação? Os homens se

apegam obstinadamente à vida de riqueza e fama, de conforto

e prazer, de excitamento e egoísmo, sem saber que estes

desejos são a fonte do sofrimento humano. Levados por sua

ignorância, os homens estão sempre formulando pensamento

errados, estão sempre emitindo falsas opiniões e, apegando-se

ao seu ego, agem erradamente. Consequentemente, eles se

entranham cada vez mais no mar de desilusões”. Conselho

absurdamente relevante depois de 2.500 anos?

E o autoamor não pode ser confundido com egoísmo,

que é o orgulho de ter e ser mais do que é. De suplantar o outro

pela submissão. O autoamor impõe o seu caráter humanitário

às convicções de um estado superior de si, é o despertar da

inteligência para eleger o melhor para si. O ser ideal é aquele

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196

que caminha no meio, em equilíbrio, entre o orgulho e a

submissão, a arrogância e a humildade, que nada mais é que a

sublimação.

O comedimento dos excessos físicos e, além do mais,

os emocionais, assim como controlar estes impulsos do corpo

que tentam governar a mente desesperançada, são o primeiro

passo para se alcançar a iluminação.

Para muitos, esta atitude não passa de uma confiança

inabalável em Deus. Como eu os invejo. Conseguem as mesmas

respostas por saber tudo, sem entender nada.

A felicidade está e sempre esteve dentro de nós,

soterrada e subjugada por nossas preocupações tolas. Ela é o

estado descrito por Buda que não se perde nem é destruído, tão

logo toda a corrupção seja removida, ele sai de sua latência e

reaparece.

Deus assim nos diria: ― “Todos os pensamentos e atos

humanos se baseiam no amor e no medo. Tendo assim criado

todo um sistema de pensamento sobre Deus baseado na

experiência humana, em vez de nas verdades espirituais, vocês

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197

imaginam toda uma realidade a respeito do amor. O medo é a

energia que paralisa, leva-os a fugir e fere. O amor expande,

partilha e cura. O medo os fez segurar tudo, o amor dá tudo aos

outros. O medo sufoca, o amor mostra afeição. O medo oprime

e o amor liberta. O medo critica e o amor regenera”.

O amor é indescritível.

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198

25

“Marcha avante, falange imponente pela tua fé! E os grandes batalhões

dos incrédulos se desvanecerão diante de ti como as brumas da manhã aos primeiros

raios do sol nascente. A fé é a virtude que ergue as montanhas, vos disse Jesus; todavia,

mais pesado do que as mais pesadas montanhas, jazem nos corações dos homens as

impurezas e todos os vícios da impureza. Parti, pois, com CORAGEM para erguer esta

montanha de iniquidades que as gerações futuras não devem conhecer senão no estado

de lendas, como não conheceis, vós mesmos, senão muito imperfeitamente, o período de

tempo anterior à civilização pagã”. Evangelho segundo o Espiritismo V20. Allan Kardec

Mateus 36:11-12

O vento revolucionava erguendo as farpas e

impedindo-me de ver adiante com o braço protegendo-me. O

céu cinza parecia esmagar os meus impulsos de uma

obscurecida ingratidão.

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199

A chave para o meu sucesso é a compreensão absoluta

de que o universo conspira a meu favor, sempre.

Pode até ser uma frase clichê, porém estou falando de

uma verdade pouco observada – e amplamente difundida. Basta

me conhecer melhor e o quê este eu realmente precisa. Eu

pensava que sabia.

Depois de nove meses de diálogos fictícios nascidos de

eventos supremos – pelo menos para mim – esperava que o

universo estivesse cantando para mim. No entanto esta seria

mais uma chance para desvendar que, mesmo passando por

estas experiências impensáveis, estava deixando passar algo.

Não me sentia sintonizado. Eu não estava de acordo

com os meus mais perfeitos desejos? Pois as circunstâncias

advertiam que, o que eu queria não estava em concordância

com o que estava me acontecendo. Começando pelos meus

sentimentos.

Estava prestes a passar por uma quarta intervenção

espiritual, bastante abalado porque eu não sentia as mesmas

sensações de angústia e esperança, como se esta ação

Page 200: Mateus göettees   1 - livro de mateus

200

impactante não passasse de um hábito.

Quase um autômato sem emoções que só tinha uma

suspeita, será que eu ainda tinha fé na cura? Não estou

negando a minha confiança em Deus ou nos procedimentos,

pois eu estou melhorando, mas, até onde eu devo ir para não

ser absorvido pelo medo do amanhã? Será que isto me

estagnará, mesmo diante de milagres?

Seja blasfêmia ou não, são as minhas verdades.

No entanto esta foi a mais dolorida de todas, como se

quisessem me dizer para rever os meus conceitos. Quais

conceitos? Não posso negar todas as respostas alcançadas, nem

me sujeitar a dúvidas. Eu conheço a verdade, mas ela ainda não

me libertou?!

Se não me livrar do meu personagem doente, ele se

livrará de mim. Uma frase que me causou bastante impacto,

considerando que eu imaginava já tudo saber.

Por um breve instante o vento cessou, acalmando a

balbúrdia de carros em despedidas longas e felizes. Não percebi

Page 201: Mateus göettees   1 - livro de mateus

201

a armadilha que me alcançava na voz de um desconhecido.

― Eu acredito que você vai se curar. Mas a sua fé

ainda é pouca!

Nada poderia ser tão desorientador e provocar, em

mim, lampejos de cólera mascarada, do que questionar a minha

fé. Nestes últimos meses acreditei seguramente que havia

compreendido os diálogos comigo, com Tiago, e reforçado a

minha confiança em...

Confiança em quem?

Este sentimento colérico que brotou com tanta

ferocidade que mal me contive. Tive que usar da razão para

ocultar os meus pensamentos pusilânimes. Por que todos

insistiam em me apontar os dedos, criticar a minha fé e supor

que eu não me exaltaria? E por que eu me exaltei?!

Pela primeira vez me via encurralado dentro de mim.

Tinha que admitir a minha mais hermética e soberba

ignorância. Fui levado pelas minhas fraquezas ocultas, aquelas

que, desesperadas e perspicazes, me carregaram em louros de

Page 202: Mateus göettees   1 - livro de mateus

202

um passado indigno que é o fundamento daquilo que sou.

Pus-me em defesa dos meus sentimentos ardilosos e,

antes que pudesse ser levado por uma onda de depressão e

amargura, invoquei a máscara da soberba com toques de uma

tolice travessa.

Respirei com parcimônia e repeti o que sentia

conquistar, a serenidade de Buda passa pelo comedimento dos

excessos e pela disciplina da mente. Como o primeiro passo

para se livrar dos vínculos e grilhões dos desejos mundanos é

controlar a própria mente, é cessar as conversas vazias e

meditar. Eu só não imaginava que as tais conversas vazias

seriam produzidas dentro de mim, pelo meu ego.

Nós atraímos aquilo que tememos. E semelhante

sempre atrai semelhante.

Então devo concordar?

Concordar que sou exatamente igual àqueles que

julgo? Pois se reconheço estes sentimentos em outros é porque

sou capaz de...

Page 203: Mateus göettees   1 - livro de mateus

203

Page 204: Mateus göettees   1 - livro de mateus

204

26

“Há coisas que seria impossível realizar

contando apenas com seus recursos e

esforços particulares. Porém, essas mesmas

coisas se realizariam com facilidade e

alegria conjugando esforços com as pessoas

próximas”. Quiroga,

Mateus 36:11-15

Um grande dicionário de folhas translúcidas se

aconchegava em minhas pernas enquanto dedilhava os seus

vocábulos arr. Tentava achar a palavra arrogância para fazer

uma comparação com soberba, prepotência e orgulho.

Inadvertidamente pus um dedo enxerido sobre outra

Page 205: Mateus göettees   1 - livro de mateus

205

palavra não-coincidente.

Arrière-pensèe (arriér-pansê). [Fr.] S.f. pensamento em

que se oculta enquanto se exprime outro.

Essa tinha tudo haver comigo. Como alguém pode

pensar uma coisa e expressar outra sem se passar por um

dissimulado, com segundas intenções, ou seria um erro me

enquadrar nesta ideia de que há pensamentos dissimulados

que, apesar de sua existência, não afetam o pensamento

emitido? Mesmo que eu o rejeite com todas as forças?

― Estamos começando a falar a mesma língua. ―

depois destes dias de agonia e rancor, Tiago retornava.

― Bom dia! ― ainda com raiva por me deixar em uma

situação embaraçosa. ― Por que desapareceu?

― O nosso objetivo era este!

― Como nosso? ― cogitava que iria acabar dando

com a cara no chão.

― Não acha que estes obstáculos eram lances

aleatórios ou promovidos sem qualquer objetivo mais apurado

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206

que... ― interrompi-o.

― Nosso?

― Nós planejamos tudo há muito tempo com o

objetivo de atacar os seus mais profundos e primitivos

sentimentos que alicerçam a sua personalidade. Como se sente

quando os seus pensamentos e suas ideias são frontalmente

interpelados pelos seus sentimentos discordantes?

Como eu me sentia? Eu tentava ignorar aquilo que

parecia doentio e incoerente, contudo estava percebendo o

artifício de Tiago. ― Como se uma mão me segurasse o ombro e

me impedisse de tomar alguma atitude. O pensamento lógico e

até desejável é suprimido por um desagradável e inapropriado,

que eu até identifico como irrevogavelmente inimaginável.

Como se estes pensamentos e sentimentos não fossem meus.

― Em alguns casos podem até ser de espíritos mal

intencionados. ― Tiago estava prestes a receber um grande

impacto. ― No seu, em particular, é o ego primitivo e soberano.

Antes que ele concluísse comecei a rir

espalhafatosamente. ― Você me iludiu maravilhosamente bem.

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207

― percebi a sua surpresa. ― Auxiliou-me a remover as

impurezas superficiais da alma para que as mais indigestas e

dominadoras personalidades – ou subegos – emergissem. E as

alimentou com as suas fraquezas. Como fui um idiota!

Tiago estava radiante. ― Precisava jogar com a sua

personalidade se eu quisesse suplantá-la. Neste jogo eu duelaria

com a sua arrogância e prepotência, e que eram mantidas por

um orgulho irremovível.

― De onde eles vieram?

― De você, mais precisamente da última vida.

― E o esquecimento do passado?!

― As recordações são apagadas, o que gera os

sentimentos de medo e amor também. Entretanto as impressões

adquiridas passam pela alma que, perturbada, as reintegram ao

corpo. Elas poderiam ficar adormecidas esperando uma

oportunidade melhor para serem enfrentadas.

Sorri em resposta. ― O quê não é o meu caso!

― Queríamos lutar contra estas deficiências.

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208

Alimentei o seu orgulho e a sua arrogância com doses

exageradas e possíveis de um desejo pela notoriedade em

consonância com a ideia de que a sua sagacidade poderia ser

maior e melhor que a dos outros.

Assenti com vergonha. ― E estas sensações e desejos

provêm de um passado de glórias e bajulações?

Tiago não precisava dizer nada.

― Que loucura! ― gritei. ― Se somos todos um só,

devo aceitar que não há ninguém que me seja superior ou

inferior. Todo o conhecimento – de Deus – já está em mim, nós.

O que resta é a ilusão e o ego.

― Quando você passou a esmiuçar aquilo que

chamam de coincidências e adotar uma postura de respeito

para com todos, de acolher que semelhante atrai semelhante e

assim calar o seu psiquismo basilar, conseguiu sentir compaixão.

E não estou falando de um pesar fugaz de sintonia com as dores

e os sofrimentos alheios, a piedade, vai mais além.

― Percebi que a minha conexão com os meus

espelhos, com as suas imperfeições de certo orgulho em doses

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209

de arrogância, propunham a me abalizar descaradamente os

mesmos defeitos que estavam mascarados por um domínio que

não existia. Domínio sobre todos, sobre mim e das ocasiões

fortuitas.

― Se não tivéssemos nutrido estes estados mórbidos,

eles não passariam de uma voz interior suficientemente forte

para cessar a sua evolução. Manipulando as suas vontades

emergentes. ― Ele não poderia estar mais certo. ― Enquanto

você continuar dialogando com a sua própria alma, as certezas

se tornariam cada vez mais firmes, porém rígidas. Neste

momento precisava dialogar com outras pessoas, e você

percebeu que tais certezas não eram tão firmes assim.

― Sussurram dúvidas, com medo de que eu me

aproxime dos outros. Como uma defesa emocional a...

― A um golpe emocional muito forte. Fazendo com

que você se fechasse em si. ― e tinha mais. ― Mateus, o seu

enrijecimento de coração, o rigor para com os outros, esta

desilusão aparentemente infinita é a sua defesa. E a sua doença.

― Nada acontece por acaso.

Page 210: Mateus göettees   1 - livro de mateus

210

Tiago desconfiava das minhas ideias e propôs um jogo.

― O seu ego estava jogando xadrez. Não importa quem é o

oponente dele. ― antecipando-me. ― Nesta competição você, a

alma suplicante por uma trégua, é só um observador.

― Estou me vendo jogar?!

― No passado fez coisas mais absurdas, por que não

isto?! ― concordei. ― Embora as regras deste jogo sejam

diferentes, o rei pode ser qualquer peça, inclusive o rei.

― E como eu posso saber quem é o rei?

― Diga-me você! ― Ele estava me testando, e como

eu saquei quais eram os meus defeitos de personalidade antes

que ele me contasse, mesmo que fosse nos últimos dez metros

de uma maratona, teria uma nova oportunidade.

― Pelo comportamento das demais peças em jogo.

― E foi o que fizemos quando engordamos os obtusos

e dissimulados sentimentos de orgulho. Ele precisava jogar, já

que as suas subrotinas – subegos ou personalidades transitórias

– estavam se desmantelando.

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211

Saquei. ― Ele estava tentando sobreviver enquanto

nós o observávamos agir. Sinalizando os seus passos e

comprovando quem é o rei.

― Exatamente. Ele não podia ser descoberto, por isso

não interferiu nas suas novas convicções.

― Quais? ― estava confuso.

― De que era imaginável sentir algo além da

compaixão. Sem medo. O orgulho estava enfraquecido. E nascia

a certeza de que não há aquele que seja melhor.

― Nem eu!

Assim eu me igualava aos homens, sem ver as suas

máscaras de poder, subjugação e submissão. E percebia as

minhas próprias falhas emocionais como ferramentas de

sublimação. Começava a disciplinar a minha mente, só

necessitava de um empurrão. ― As suas convicções foram as

suas maiores inimigas. Precisava admitir que todas as suas

observações sobre os outros acabariam sendo as de si. Pois

semelhante sempre atrai semelhante e atraímos o que mais

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212

tememos.

― Então... ― estava com vários nós na garganta que

me dificultavam a fala. ―... tudo que está além das minhas

crenças, da minha incapacidade de aceitar fatos e certos

acontecimentos que não sejam só os meus, cria um

comportamento autoritário. Que sou radical em minhas

posições e imponho as minhas opiniões sem me envolver em

ideias adversas. Sou inflexível?

― Talvez não mais. ― Porque Tiago era o único que

conseguia me contradizer sem me irritar. ― Deixe de se

preocupar com os problemas dos outros, que não lhe dizem

respeito. Para não ficar remoendo ou deduzindo as

consequências de fatos que jamais consegue solucionar.

Lembre-se de confiar nas pessoas. Dê a elas o mesmo apreço

que gostaria que lhe dessem.

― Eu já estava estreando os primeiros passos. “Amar

a Deus acima de todas as coisas e fazer ao próximo o quê

gostaria que fizessem a si”. E como termina o jogo de xadrez!

Tiago gesticulava a cabeça, inconformado. ― A sua

Page 213: Mateus göettees   1 - livro de mateus

213

personalidade mudou as regras do jogo para ganhar sempre.

Este é o objetivo, a defesa das máscaras que veste. Não importa

quem seja o seu adversário, quer vencer a batalha a qualquer

custo, inclusive o de fortalecer o orgulho e a arrogância que te

dirige.

― Algo mudou... ― eu lhe disse convicto.

― Sim. Agora consegue ver os subterfúgios do jogo

que o seu ego perpetra. E pode adotar uma nova máxima, às

vezes para se ganhar é preciso perder.

― Às vezes para se ganhar é preciso perder?!

― Não estamos mais interessados nos resultados...

Page 214: Mateus göettees   1 - livro de mateus

214

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215

27

“...a crença de que Deus é só amor”.

Masaharu Taniguchi.

“Imagina que a alma humana enfrenta os

desafios da vida por acaso? – Quer dizer

que a alma escolhe que tipo de vida terá? –

Não. Mas pode escolher as pessoas, os

lugares e os eventos, as condições e

circunstâncias, os desafios e os obstáculos,

as oportunidades e opções para criar a sua

experiência”. Conversando com Deus. Neale

D. Walsch.

Inari 36:11-17

A névoa formada pela manhã acobertava o vale e se

esgueirava entre os picos mais altos quando os primeiros raios

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216

de sol a dissipou completamente, expondo as águas tranquilas

com seus navios aportados na baia solitária.

Um sopro obstinado escalava pela encosta me

atingindo com ânimos combalidos. Estava abraçado às pernas

com parte do rosto velado pelos joelhos, pensativo ao extremo

de transformar a meditação em uma solidão bem vinda. Salvo

por ideias saudosas de devaneios nas noites frias dos desertos

solitários, sob uma fogueira luminar e o coruscar das estrelas

setentrionais. As nuvens abandonavam os tons arroxeados e

laranjas com a ascensão do sol em nascente.

Os sons dos madrugadores aqueciam as vidas da

cidade despertada em atuações ritmadas e firmes de

embarcações que começavam a partir. As velas inclinadas se

enchiam com os sopros desta brisa imutável.

Um grito mortiço e enfraquecido despertou-me do

meu ostracismo egocêntrico. Levantei-me para descobrir uma

mulher caída no meio do orvalho. Estava em parto. Agachei e

com coragem a abracei em meus braços.

Um jardineiro fiel gesticulou-me.

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217

Levou-nos até um dos quartos baixos do templo da

montanha e enviou seu aprendiz para a vila em busca das

parteiras e mulheres. Com um gesto decidido deitei-a sem

cerimônias. O dia seria longo.

Os monges pasmados não agiam, senão por suas

cantilenas de orações monocromáticas. Uma velha dama, de

lábios raiados e olhar cerradíssimo, parecia saber o que fazer e

encostou os painéis com inata sabedoria. Aos poucos, as

mulheres da vila, enfaixadas em quimonos, traziam panos e

outras proficuidades.

Os gemidos e gritos alcançaram o seu ápice com o

estouro de um choro ingênuo. Um alívio que me acalmou por

alguns instantes, antes que vozes apreensivas irrompessem com

a dispersão das agitadas mulheres em seus rostos patibulares e

o recém-nascido fosse deixado em meus braços.

A mãe cansada pelo esforço ficara só.

Ela olhava-me com amor, compaixão. Retribui com o

meu melhor sorriso quando senti a criança se agarrar ao meu

dedo e aquietar-se. Apertei-a contra mim.

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218

A mulher fechou os olhos para poder descansar e

percebi o fluxo de sangue. Pisei trôpego até me postar a poucos

passos de sua face serena e feliz quando compreendi que esta

pequenina criança também era uma parte de mim. Acariciei-a

com paixão, depositando um beijo em sua testa tépida. Era mais

que um filho. Era eu.

Aquele gesto franco despertou na mulher uma

sensação de empatia fraternal. ― Como se chama, senhor?

― Inari. ― assim como me conheciam.

Ela arregalou os olhos diante do inconcebível. Não

percebi a grandiosidade do evento, pelo menos para ela. Supus

que um certo constrangimento nascia e logo cessei a sua

submissão. ― Como será o nome? ― referindo-me ao bebê.

― Assim que fosse propício, Deus me diria. ― Não

desconfiei dos olhares. ― Como deveria chamar o meu filho,

Inari-san?

Nem da sua insinuação. Embora eu só tivesse um

nome em mente. ― Juroo?! ― Ela concordou e pousou as suas

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219

mãos sobre nós.

As mulheres retornavam com um senhor de aparência

sisuda e hábitos médicos aparentes. Fui retirado com pressa

quando comecei a chorar. Por um tempo estava preocupado

com as minhas dúvidas e em dúvida sobre as minhas

preocupações tolas, contudo ainda consegui ver a verdade.

Aquele bebê, em meu colo, era o mesmo Juroo-kun

que me encontraria em meio às impurezas da minha alma e que

nos separariam por muitos anos. Estava emocionado e pude

sentir um profundo e eterno sentimento de amor que une as

nossas almas, se eles são porções da imaginação, não importa

mais. Todos farão de mim, mais perfeito.

Como nada podia fazer, pedi para Deus que

intercedesse na saúde da mamãe em sofrimento. E Ele me

ouviu, pois sou uma pequeníssima fração de sua aspiração,

assim como a criança que dormia preso ao meu dedo. As

mulheres saiam, uma a uma, contentes por terem vencido o

destino sombrio.

Ajoelhei e agradeci pela vida em mim.

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220

A criança despertara com fome, obrigando-me a

entrar no pavilhão onde estava guardada a minha Luz Interior

guarnecida de estátuas em bronze que tremeluziam com o

movimento das chamas das velas votivas. Encontrei uma das

senhoras que sorriu e me guiou pelo labirinto de escadas e

corredores até o refeitório dos monges que me ofereceram um

chá.

Misturei-o com água fresca e apliquei o líquido morno

através do pano embebido para que o bebê pudesse sorvê-lo.

Enquanto ele se acalmava a serva prestimosa retornava para

nos levar ao alimento primordial.

Fiquei deslumbrado quando entrei no quarto e todos

estavam ajoelhados com os rostos abaixados em respeito. Por

um instante cogitei ter interrompido um rito de agradecimento,

todavia eu não me enganaria, estavam rendendo homenagens a

mim.

Em lágrimas entreguei o bebê que avidamente foi

recebido com carinho por sua mãe. E se alimentava alheio à

grandiosidade do acontecimento. Como resistir perante aqueles

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221

que aprendia a amar por eu amar quem sou?

Um dos monges mais velhos fitou-me e proferiu

solene. ― Assim como as pedras preciosas são tiradas da terra,

a virtude surge dos bons atos e a sabedoria nasce da mente

pura e tranquila. Para se andar com segurança, nos labirintos da

vida humana, é necessário que se tenham como guias a luz da

sabedoria e a virtude.

Estava recitando aquele sutra para a nova vida que

faiscava acariciada por sua mãe. Que alcançaria a virtude de

superar o mundo de ilusões.

Desci os meus joelhos e abaixei a cabeça em adoração

a todos os meus irmãos.

Estava prestando um tributo a mim.

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28

“Nada jamais substituirá o companheiro

perdido. Velhos camaradas não se criam.

Estas amizades não se refazem: ao plantar

um carvalho, é vã a esperança de poder

gozar livremente de sua sombra”. Antoine

de Saint-Exupéry.

Mateus 36:11-17

Como permanecia de olhos bem fechados, pressenti

os sons de coches e cavalos em seus cascos compassados atingir

o pavimento de pedras. Ao tato de meu paletó tenro abri os

olhos cuidadosamente para ver o reflexo de Tiago se

aproximando de mim. Estava me admirando com as roupas

rotas através da vitrine resplandecente de uma boulangèrie.

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224

Ao longe, locomotivas se moviam em um pátio de

manobras de uma grande estação. Os cheiros dos pães, das

urbanidades de uma grande cidade e de...

― Bosta. Assim cheirava Paris no outono. ― poluição

pré-industrial em que Tiago antecipou-me de novo, enquanto os

cavalos conspurcavam.

― Por que estamos aqui? ― pensando se poderia

comer um pão. Será que nos sonhos eu tinha intolerância ao

glúten?

― Para te explicar as implicações de sua vida anterior

nas conquistas do presente. ― Porém, antes que me

congratulasse em orgulho desmesurado. ― E ainda temos

muito mais o que decidir.

Ele pediu que o acompanhasse. As pessoas

caminhavam prevenidas com o relógio e suas mulheres quase

se arrastavam morosas. Em seus vestidos armados como sinos

decorados de um glacê rendado, ajustavam os chapéus

decorativos segurando displicentemente as sombrinhas

improfícuas. O casario de lamparinas a óleo exalava outras

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suspeitas nada agradáveis. Seguíamos para o sul, para o rio.

― Como você está? ― Tiago puxava conversa.

― Não sei ao certo. Muitas coisas me aconteceram

em um espaço muito curto de tempo.

― Culpa sua, quando esquematizamos estes fatos

deixou-se levar por sua altivez de achar que tudo sabe. Ainda

me lembro das suas certezas e convicções para o triunfo destes

obstáculos.

Quis dar uma de convencido. ― No fim eu venci.

― Não, nós não vencemos. Mas superamos a

vinculação absoluta aos sentimentos que o controlavam.

Reduzimos os medos, as dores e sofrimentos com o controle das

suas máscaras. Tem mais conhecimento de si e das doenças

humanas. E tem o dever de sustentar este estado de compaixão.

― Agora que tais sentimentos mórbidos...

― Eles continuam ai. Precisa muito deles. ― Tiago

estava consultando um bloco de anotações. ― “Aqueles que [...]

entendem que tudo é caracterizado pela não-substancialidade,

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226

não tratam levianamente as coisas que entram na vida de um

homem, mas as aceitam como e para que elas são e, então,

tentam fazê-las digna de esclarecimento. Não devem pensar

que este mundo não tem significado e que está cheio de

confusão, enquanto o mundo de iluminação é cheio de

significado e de paz. Devem antes, experimentar o caminho da

iluminação em todas as coisas deste mundo. Se um homem

olhar o mundo com olhos corrompidos e ofuscados pela

ignorância, ele o verá cheio de erros; mas se o olhar com a clara

sabedoria, vê-lo há como o próprio mundo de iluminação”.

― Não gosto desta palavra, iluminação! ― redargui

com indubitável descaso.

― Então fique bem quieto!

Fomos deslizando por entre as carruagens que

teimavam em avançar pelas ruas repletas de homens em

atividade forçada de escavação. Uma trincheira feria a larga

avenida e carroças deixavam longas vigas de aço que eram

rebitadas com fortes marretadas. Uma estrutura subterrânea

surgia em meio à lama fétida que escorria de improvisados

tapumes de contenção. Uma frente rasgava o canteiro que

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227

andava para oeste assim como outros operários reparavam a

rua com novos paralelepípedos acima do arcabouço de uma

estação do metropolitano.

Passamos por mais algumas ruelas antigas e

desembocamos as margens do Sena e de uma ponte que

contornava a igreja de Notre-Dame. Os seus arcobotantes nos

acompanhavam quando atingimos a praça de sua rosácea. O

canto dos fiéis encobria as vozes dos carroceiros em suas

charretes de aluguel esperando o fim da missa matinal.

Sentamo-nos silenciosos.

Por fim os cristãos se calaram e os sinos dobraram em

comemoração. Por todos os lados, as árvores emitiam cores

avermelhadas de folhas em chuva que desenhavam verdadeiras

tapeçarias mortas.

― Te trouxe aqui para recordamos o passado. ―

Tiago estava seriíssimo.

― Então esta é uma memória minha?

― Não. É só uma projeção do meu subconsciente.

Além disso, ainda não tinha nascido. ― com qual intenção? ―

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228

Este lugar é significativo para nós como já deve ter percebido.

Aqui você alcançou a liberdade de ideias e a impassibilidade

dos homens. Falou dos potenciais humanos e jamais os

compreendeu. Ignorou as ideias antagônicas com a sua

prepotência subjugante e devolveu aos homens os seus

julgamentos irremovíveis. Duro de coração exprimia a

impressão de tudo saber e fazer.

Em amargura respondi com um choro consciente dos

meus erros.

― Mas seria tudo em vão. ― ele foi enfático.

― Como assim?!

― Não aguentou quando as suas forças foram

negligenciadas e a sua autoridade dizimada pela apatia dos

homens que o lisonjeavam. E o falso juízo de quem era, de seu

domínio e fama, de nada serviu quando precisou. ― por

suposição, aceitava estas verdades como os traumas que me

modelariam. ― Estas nuvens de pensamentos depressivos te

venceram, entregando-se ao ato máximo do egoísmo, o suicídio.

― A queda foi intensamente cruel para mim. Saber

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229

que eu não era o que eu supunha me destruiu a razão. ― falava

de coração.

― E esta angústia que não digeria as fraquezas,

redemoinhado por pensamentos e sentimentos vis, de derrota e

ódio equívoco, provocou a sua desilusão. ― Mas como eu deixei

me destruir? ― O trauma da morte a transferiu para esta vida

como uma doença. A doença daqueles que se fecham ao

mundo, que não aceitam opiniões e fazem de tudo para se

enganar em suas fantasias.

Fui até a balaustrada, admirando displicentemente o

rio que corria moroso rumo ao mar. Nem o cenário conseguia

me demover daqueles sentimentos de ruína.

― Esses sentimentos estão errados, muito foi

conquistado com a percepção de seus erros. Só quando os

acolheu é que o processo de renovação se desencadeou. Ou não

se recorda do seu extravasamento redigido em um diário com o

inconveniente cabeçalho de impositivos da Lei Divina?!

― E por que estas conquistas me causam temor? ―

estava sendo sincero quando não me identificava com estas

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230

presunções potencialmente arrogantes que me lembravam das

minhas fraquezas.

― Porque elas não são conquistas aos quais possa se

vangloriar aos outros, são sentimentos e pensamentos difíceis

de serem explicados, e só dizem respeito a você. São emoções

carregadas de amor e libertação, portanto, diferentes daquelas

que não alcançaram um patamar que as legitima, traçando um

caminho em que se utiliza do prazer, da companhia aprazível,

do interesse pessoal egoístico, dos desejos expressos pelo

comportamento sensual: alimento, dinheiro, libido, vaidade,

mágoas, pois que ainda se encontram na fase de nascimento.

― E os julgamentos que nos apregoam?

Tiago parecia se divertir. ― Não existe. São os nossos

próprios julgamentos que nos condenam.

― Hã. ― precisava de mais subsídios.

― Eles são nossos reflexos mais francos, de nossos

autojulgamentos, que são projetados nos outros e regressam

como se fossem deles...

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231

― Hum!

― Por outro lado, compreendemos os julgamentos

conforme a nossa necessidade de sermos confrontados e

experimentados. Quero dizer, que nós somente nos

identificamos com eles porque os aceitamos como verdade.

Uma verdade imperceptível, porém intrínseca.

Precisei alinhar as minhas ideias. ― Então, enquanto

eu agir errado eles serão apenas justificativas, tanto para me

convencer quanto aos outros.

― Calma aí! Passe a analisar os seus pensamentos e

transformará estas justificativas em perseverantes verdades. E

quando extinguir os desejos destas emoções em ascensão por

um amor irretorquível, entenderá que já não são mais

justificativas e sim o caminho. ― como eu poderia perceber

este caminho! ― É o equilíbrio dos excessos mundanos e a

disciplina dos seus pensamentos. Vós sois deuses, só não sabem

disso.

― Muito bem, e pode me dizer quem eu era? ―

tentando convencê-lo de confirmar as minhas suspeitas.

Page 232: Mateus göettees   1 - livro de mateus

232

― Mateus, se depois de todas estas coincidências

ainda não confiar na sua intuição... ― ele me olhou com o braço

sobre as minhas costas. ― Te colocamos em um dos poucos

lugares com algum significado no seu novo país e que ainda faz

alguma referência ao seu passado. Encaminhamos-te para

acontecimentos análogos que serviriam de ponte entre as vidas.

Colocamos em tuas mãos uma fragmentada biografia que só

faria sentido para você. E demonstrou a sua assimilação

respondendo avidamente a estes estímulos. Ainda te demos

quem era.

― E mesmo assim acho tudo extraordinário. Como

dizem, quando é bom demais para ser verdade...

― Em alguns casos, é verdade. Se não quiser

acreditar, não negue a seriedade que tais fatos têm para você e

o quanto eles estão te auxiliando. Se não quiser acreditar, aceite

apenas que os fatos têm muita relevância e que encontram

ressonância em ti. Enfim, não negue quem você é, os nomes não

importam.

Queria mais. ― Mas não pode me dizer nada?!

Page 233: Mateus göettees   1 - livro de mateus

233

― Por que parou de voar?

― Se eu esquecer todas as justificativas, acho que eu

lhe responderia que me bastou, estava satisfeito em voar...

Tiago complementou. ― mais uma vez. ― Puxou-me

para seguir rumo ao Campo de Marte. E então percebi que Paris

ainda não estava finalizada. A torre Eiffel não passava de duas

pernas em construção em um canteiro de obras esplêndido.

Este estado de abstração quase me custou a vida quando um

omnibus a cavalo me jogou contra um valo enlameado.

Tiago se divertia. ― Me assegurei de que não sentaria

no chão novamente.

Page 234: Mateus göettees   1 - livro de mateus

234

Page 235: Mateus göettees   1 - livro de mateus

235

29

“Paixão pela discriminação e discussão, pelo

qual os homens se confundem nos

julgamentos. Paixão pela experiência

emocional, pelo qual os méritos das pessoas

se tornam confusos. As delusões do

raciocínio se baseiam na ignorância e as

delusões da prática apóiam-se no desejo”. A

Doutrina de Buda.

Mateus 36:11-08

Gargalhava ridiculamente afetado pelas minhas

impossibilidades degenerativas. De pernas bambas me

contorcia em risos de uma lembrança que vinha a calhar. E a

qualquer minuto eu seria confundido com um bêbado, ainda

Page 236: Mateus göettees   1 - livro de mateus

236

mais eu que nunca bebi, fumei ou...

Aconteceu ontem, um impulso audacioso que não

pensei nas consequências. Aventurar-me por quase dois

quilômetros poderiam me causar problemas indigestos, estava

em outra cidade, sozinho e sem o socorro de alguns. Como eu

disse, passado.

Gesticulava o pulso tentando precisar o ato de retirar

o melhor pensamento para aquela semana. Ele viria na forma

de um sorteio de placas com palavras-chave. O centro de apoio

aos pacientes iniciava os tratamentos com aquela singela

operação que mexeria com os nossos subconscientes. Nas idas

anteriores eu pressentira tais palavras sopradas por sonhos,

insinuações ou sopradas ao vento.

Eu sabia qual seria a minha proposta, no entanto a

palavra parecia obscura ou confusa. Na primeira vez retirei o

vocábulo coragem que eu apliquei com o firme propósito de

superar os medos que se agigantavam com o fortalecimento de

uma doença silenciosa e incurável. Ela subiria à categoria de

Page 237: Mateus göettees   1 - livro de mateus

237

perseverança.

Posteriormente seria premiado com a fé. Palavra que

me angustia e precisei substituí-la por confiança, em mim.

Porque eu não tinha dúvidas do que Deus poderia me

presentear.

A terceira eu classificaria como bizarra, não a palavra,

mas sim a experiência. Estava sendo guiado pela cura e com ela

eu somei a benevolência, a compaixão e a humildade

necessárias para a cura. Comecei a ponderar o quanto precisava

me conhecer através da boca dos outros pacientes. Até aqui eu

me concentrara em mim. Sem egoísmo, porém necessário.

Propus-me a ver a todos como reflexos de meu

espírito. E assim, a palavra-chave para a quarta semana de

terapias seria coragem. E não entendi.

Deitei-me pensativo. Nem pude me concentrar na

terapia do espelho onde um Mateus aturdido me encarava com

ânsias de vômito. Onde estava a sensação de deslumbramento

ante a expectativa de uma cirurgia espiritual? Quem era eu...

Um pensamento bastante fugaz atravessou-me

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238

involuntariamente, causando uma surpresa bem vinda. Depois

eu saberia que alguém chamado Sigmund Freud tinha tido a

mesma ideia. De que quando nos irritamos profundamente com

alguém a ponto de comentar e apontar os seus defeitos,

estamos dando um forte indício de que projetamos e nos

identificamos com esta pessoa.

Ou seja, somos aqueles que odiamos. E esta verdade é

culpada pelos temperamentos impetuosos e inflexíveis que

negam veementemente serem assim.

Eu sei, porque admito as minhas covardias. Julgar e

assim me condenar. Condenar-me à arrogância, aos medos

opressores e outros sentimentos doentios, pois eu sou assim.

Bem lá no fundo.

Tiago tentava me dizer que as máscaras existem em

todos os homens. E o medo pode gerar personalidades tão

complexas que o único sentimento que poderíamos exprimir

seria a compaixão. O medo torna as pessoas detestáveis ou

irrepreensíveis, no entanto não passam de máscaras.

E qual seria a minha? Um esboço de bufão solidário

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239

com requintes de crueldade presunçosa? Suponho que esta

máscara de alegria me auxiliou a mediar os conflitos de

submissão e arrogância. Como alguém pode ser submisso e

arrogante ao mesmo tempo?

Talvez o tempo tenha reforçado este personagem e se

tornado a minha tábua da salvação. Evitando me submeter ao

desânimo causado pela subordinação a fatos que saem fora do

meu alcance ou à alienação provocada pela arrogância e

orgulho exagerado. No meu caso, acredito que aspectos

diferentes são controlados ora pela arrogância, ora pela

submissão. Mas há casos em que me submeto às opiniões dos

outros, provocando um ato de revolta – ódio, raiva ou seus

congêneres – que se torna soberba e afiança irrevogavelmente

que só eu possuo a verdade. E assim eu negligencio as verdades

que vem de fora.

Não confiava nos livros que me assopravam as

verdades? Por que não confiar nas pessoas que cruzam o meu

caminho?! Tomaria coragem para analisar todos aqueles que

estivessem comigo. Sem julgamentos e sem dogmas. Pois eu

poderia me ver em seus olhos.

Page 240: Mateus göettees   1 - livro de mateus

240

E é este fechar-se em si, que me protegia dos meus

medos, o que é incompreensível. Porque a resposta que ansiava

se encontra dentro de mim, contudo podem ser maiores e

melhores quando expressadas pelo Deus que está dentro de

cada um. Seria um erro considerar palavras soltas mais eficazes

que os sentimentos dados. Nada acontece por acaso.

Page 241: Mateus göettees   1 - livro de mateus

241

30

“Passamos a vida criando expectativas que

se transformam em frustrações e

sofrimentos quando o que realmente

deveríamos estar procurando para a nossa

felicidade sempre esteve conosco”. Brahma

Kumaris.

Mateus 36:11-22

O diálogo precisava prosseguir quando me dei conta

de onde estava. Deitado placidamente no gramado, vislumbrei

o contorno de Tiago que contemplava o horizonte com o seu

lago amistoso.

O templo, com seus incensos astrais, parecia

exatamente como eu o havia deixado quando ainda nos

Page 242: Mateus göettees   1 - livro de mateus

242

encaminhávamos para o cume da montanha sagrada.

O pergaminho desdobrado me insinuava para

sigilosamente lê-lo. E ardilosamente não me contive. Pelo pouco

que consegui ver pude confirmar as minhas suposições antes

que Tiago me puxasse pela gola.

Estava aborrecido e voltei para o pé da árvore onde

me espreguicei inconformado, contudo eu já tinha descoberto o

que queria. Fingi a minha exultação.

Ele se pôs diante de mim em respeitosa atitude de

contemplação, como se me visse pela primeira vez. ― De hoje

em diante não nos separaremos mais. Muitas perguntas

poderão ser respondidas, porém para que isso aconteça você

precisa se esforçar.

― Em que direção? ― sentei-me comovido.

― Não quero impor barreiras, aprecie todas as que te

forem possíveis. Para que o seu raciocínio tenha lógica é

necessário ter ciência. Este novo raciocínio se apóia no amor e

considera tudo perfeição. Eu sei das tuas dúvidas e limitações!

Page 243: Mateus göettees   1 - livro de mateus

243

― De todas as dúvidas uma sempre me aborrece, se

Deus criou todos os Espíritos simples e ignorantes, isto é, sem o

conhecimento. E a cada um deu determinada missão, com o fim

de esclarecê-los e de os fazer chegar progressivamente à

perfeição e pelo conhecimento da verdade aproximá-los de si.

Como os Espíritos não podem ter conhecimento, então? ― me

referindo ao fato de que todos somos criações perfeitas de

Deus, e nada menos.

― O erro está na tradução do original em francês,

escute bem. “Dieu a créé tous les Esprits simples et ignorants,

c'est-à-dire sans science. Il leur a donné à chacun une mission

dans le but de les éclairer et de les faire arriver progressivement

à la perfection par la connaissance de la vérité et pour les

rapprocher de lui”.

― E existe diferença? ― Ele deu ênfase a algumas

palavras que me soaram bem diferentes das mesmas em

português.

As palavras conhecimento e ciência são bem distintas,

apesar de as aplicarmos com quase o mesmo sentido. ― Tiago

conferia um dicionário mental. ― Se a ciência é o conhecimento

Page 244: Mateus göettees   1 - livro de mateus

244

amplo adquirido via reflexão ou experiência, o conhecimento

por si só deveria ser menos. Porém sem o conhecimento, ou

seja, que é adquirido pela reflexão das experiências, o Espírito

seria um acéfalo. Mas sem ciência ele estaria somente sem as

experiências, contudo ele ainda teria o conhecimento. O que

procede quando entendemos que Deus nunca criaria seres

imperfeitos.

Não me contive. ― Com qual finalidade nós

manteríamos o conhecimento inativo ou pelo menos

negligenciado?

― Eu diria que precisamos crer que o conhecimento

está inativo com o fim de esclarecer e de nos fazer chegar

progressivamente à perfeição e pelo conhecimento da verdade –

ou experiências – nos aproximar de Deus.

Estava começando a entender. ― Quer dizer que eu

tenho que fazer um caminho contrário se quiser entender a

perfeição?

Tiago estava buscando simplificar como Deus podia

ser o Tudo e o Nada ao mesmo tempo. ― Os julgamentos que

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245

fazemos deste mundo aparecem das nossas compreensões

fragmentadas e aglutinadas com o objetivo de esclarecer certos

conceitos. A falha reside em dois aspectos: as nossas

imprecisões quanto o que sabemos sobre determinados

fragmentos da realidade e, por mais que tenhamos a aptidão de

reunir tais dados para formar uma compreensão mais apurada,

ela ainda não é o todo.

― A ideia é fazer o oposto, partir do pressuposto de

que o fim de todas as coisas é a perfeição. ― sugeri.

― E por que não fazemos os dois?

― Não entendi. Como seguir por dois caminhos?

― Deus está em Tudo. Todo o universo é Deus porque

está dentro, e assim somos parte de Deus. Não há como negar

que estamos conectados com Ele e, deste modo, que nós

estamos interconectados ― esta é a realidade de que somos

mais do que irmãos.

E como ficavam as religiões? ― A aspiração da alma

não é a de se unir a Deus? Perderemos a nossa individualização?

Page 246: Mateus göettees   1 - livro de mateus

246

― E se eu dissesse que seremos ambos!

― Estou formulando novos paradigmas.

― Proponha-se a fantasiar Deus como se fosse um

relógio de bolso. ― uma parábola mecânica de um livro técnico

com pitadas de anomalias espaço-temporais. ― A abertura

atrás do relógio nos mostra seu mecanismo em ação. O que

você vê?

― Tantas engrenagens que os seus movimentos

caóticos parecem-me confusos, aleatórios.

― Esta me dizendo que Deus é caos?

― Não. ― eu menti porque ainda sou um pouco

arrogante, só um pouco. ― Deus é perfeição.

― Observe o mecanismo com novos olhos, proponha-

se a ver o seu funcionamento sob a perspectiva de que o caos

aparente é a essência da perfeição, sem estas engrenagens e

molas que giram e se estendem em muitas direções, o relógio

não funcionaria.

― Já havia percebido que o caos no mundo não passa

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247

de um mecanismo bastante exato. Para se alcançar os desígnios

desejados pelas almas, elas se submetem a experiências que nos

parecem incompreensíveis e até mesmo contrárias.

Tiago olhava detidamente para o relógio. ― Sabemos

que o resultado final sempre será a perfeição, mesmo assim, os

meios podem sugerir que enfrentamos situações de despreparo,

sofrimento e caos quando, na verdade, é exatamente o

contrário.

― Estava pensando no despreparo e no sofrimento

que este caos podia causar. Pois esta era a minha referência de

mundo que se esfacelava em ávidos segundos. Tiago depositou

o relógio em minhas mãos.

Puxou-me para terminarmos a caminhada sinuosa até

o topo aonde se encontrava o templo.

Detive-me surpreso diante do lugar.

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248

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249

31

“Na verdade, não existe nada mais

aterrorizador do que a dúvida. A dúvida

separa os homens, é o veneno que

desintegra amizades e rompe as agradáveis

relações. É um espinho que irrita e fere, é

uma espada que mata”. A Doutrina de

Buda.

Inari 36:11-25

Detive-me a poucos passos da borda do lago das

minhas meditações e onde se espraiavam os galhos que quase

tocavam as ondulações de suas águas. Sentado em

contemplação, Juroo-san me aguardava. Aparentava ser mais

velho, uns dez anos a mais do que eu mesmo sucessivamente

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250

me apresentava. A sua face revelava-me a gravidade daquele

diálogo.

― Nunca pensei que eu pudesse ser convocado por

alguém que precisasse do meu perdão! ― e ele precisava?

― Boa tarde, Inari-san. Precisamos esclarecer algumas

ideias que estamos tentando absorver. Pois os seus equívocos

são os meus... ― mantinha-se calmo quando me lançou um

sorriso que me tranquilizou. A tarde estava verdadeiramente

aprazível com os seus ventos frescos e penetrantes que

fremiam o lago.

― Estava pensando o mesmo. ― é evidente que sim.

― Qual é a nossa verdadeira relação, isto é, você é realmente

uma fração de mim?

― Por mais que eu raciocine sobre a questão, só chego

a uma conclusão. Ou melhor, duas. ― ele esperou a minha

reação. ― Sim e não.

― E quanto mais eu penso, concluo o mesmo. E isto é

difícil de assimilar. Como podemos ter duas respostas?

Page 251: Mateus göettees   1 - livro de mateus

251

― Talvez eu possa tentar esclarecer. Tudo que

conhecemos precisa ter títulos, classificações e um lugar bem

claro neste mundo. E se estas opiniões estão nos impedindo de

ver que o universo é maior do que as nossas supostas ideias de

uma mente falha? Tudo não deveria ser possível já que Deus

tudo permite? ― eu estava cogitando se estas observações de

Juroo-san não passavam das minhas elucubrações da última

conversa com Tiago.

― Onde quer chegar?

― Será que importa se acreditamos ser o que somos?

― seria ótimo se eu não fosse um deus.

― Estou te compreendendo. O fato de eu achar que

você é uma criação da minha imaginação não implica que esta

suposição – quase ridícula – possa ser algo bastante

extraordinário para nós. Como se...

― Estes universos existissem e as nossas relações

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252

fossem pontes que servem a um fim!

― Ou um amálgama destas nossas percepções, ou

nenhuma dessas cogitações. ― estava pensativo quando me

sentei ao pé dos rochedos. ― Esta informação muda como você

vê o mundo, Juroo-san?

― Não deveria, porém muda. ― ele parecia muito

perturbado. ― Porque eu ainda me sinto como uma parte de

você, que os seus pensamentos são os meus e...

― E ainda assim consegue me superar.

― É só impressão sua. Nós já discorremos sobre isso.

Como um fragmento, eu consigo concluir ações aos quais

constituem uma ínfima partícula dos seus pensamentos, suas

ideias e preocupações. ― estas não eram tão insignificantes

assim. ― E eu te respondo com as minhas conclusões. Assim nós

chegamos aos resultados instantaneamente porque somos um

só.

Ou poderia ser o contrário. ― Então vamos falar sobre

o tempo. Eu aprendi que ele não existe, não há passado ou

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253

futuro. Concorda, Juroo-san?!

― Suponho que a nossa história seja como um livro.

Nós estamos, agora, em uma página no meio. As folhas

anteriores indicam o passado. Todas as nossas histórias podem

ser reunidas em um tomo com o título de Espírito. E é este

espírito que nos anima que necessita das nossas experiências

como homens. Para ele não passamos de alguns personagens.

― Personagens que podem escolher experiências tão

peculiares quanto for a necessidade do espírito?

Ele estava com a mão no queixo em clara atividade de

pensar. ― Por que não? O que devíamos temer já que o espírito

tem uma consciência mais dilatada e cuja proposta é alcançar a

sua Ascensão. Eu penso em você todos os dias, por que também

não posso me unir a você?

― Unir-se a mim? Não receia perder quem você é?

― Me unir a você não é ser engolido ou absorvido,

pois já estou dentro de você. Unir-me a você é... ― ele não

conseguia terminar a frase porque precisava da minha língua.

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254

― Trazê-lo até mim. Tomar consciência de mim. ―

estava igualmente surpreso com a proposta da união. ― Te

conhecer resgatou quem eu sou.

O ar parou subitamente, cessando os naturais e

aleatórios movimentos. Nenhum canto de pássaros era ouvido,

como se o mundo tivesse parado.

― Por isso, importa o que somos quando sabemos

quem somos? ― Juroo-san acabava de fazer a sua grande

descoberta. ― Eu sou você!

Eu não sabia como reagir, ele desconfiava do meu

mutismo e saltou velozmente pelas pedras até ficar perto o

suficiente para que eu pudesse ver o seu rosto iluminado. Em

seu pescoço algo me chamou a atenção e ele percebeu o meu

olhar nada discreto.

Puxou o adorno para perto e eu pude ver o pequeno

cubo de uma das arestas do brinquedo com as suas três cores

básicas já desbotadas. ― Sabia que não ia resistir e acabaria

tentando desmontar o cubo mágico!

Ele sacou uma cópia menor e melhor acabada que

Page 255: Mateus göettees   1 - livro de mateus

255

acabou esculpindo com base no original. ― Toda aquela

ansiedade estava me esgotando, precisava tentar, de alguma

forma, restaurá-lo ao seu estado anterior. E como disse, não

resisti. ― mal sabia ele que para mim bastava remover os

adesivos e recolocá-los em seus planos.

― Contudo este novo cubo está finalizado porque...

― Eu consegui entender como. E mais, com ele

comecei a compreender como este universo poderia ser

constituído de partes de Deus e, mesmo partido e disposto de

forma ocasional, as partes pertenciam à perfeição. ― tudo por

causa deste jogo? ― Quando as peças se esparramaram eu

descobri que não importam as suas posições, elas continuarão

sendo quem são e, mesmo não contidas em sua forma

primordial, elas continuavam se relacionando com as partes,

que constituem o todo. Porque elas são elos e possuem

significados dados pelo outros e, como são dispostas podem nos

parecer o caos, mas elas têm um papel.

― Como se, por mais que quiséssemos romper com os

nossos comprometimentos, estivéssemos interligados à coesão

do Todo, Deus. ― A forma que desejamos para chamar este

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256

universo de perfeito é uma ilusão criada pelas nossas

necessidades de conter e classificar a perfeição com base nas

nossas ideias. E se o caos for a expressão de um perfeição em

várias direções e em muitos universos e além das dimensões

que possamos imaginar, quem poderia supor que a nossa falta

de conhecimento poderia criar a imagem de um universo que

não atende às nossas ideias de perfeição. Quanta presunção!

― Para mim, o cubo é o mesmo. Com os seus seis

lados acabados, embaralhados ou espalhados sobre um tampo,

ele continuará sendo o que é, um cubo. ― só não me contou

que foi neste instante que eu lhe apareci.

Tirei o relógio de Tiago do bolso e entreguei-o para

Juroo-san. ― Um presente para o tempo que passaremos juntos

a partir de agora.

Ele já havia visto um relógio. ― Tenho um novo

truque. ― Apertou o relógio e ele se fragmentou no ar. Todos

os seus mecanismos flutuavam mantendo os movimentos

originais sem que as engrenagens estivessem conectadas. ―

Isto é o tempo.

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257

Pedi que concluísse a afirmativa com um aceno.

― Deus é o relógio. ― já sabia disto. ― Estas peças

são nós. Fragmentar Deus é só um experimento Dele para poder

perceber as interações entre as suas partes, que chamamos de

Espíritos. E o meio como estes espíritos se experimentam

chamamos de tempo. Apreciar como os espíritos assimilam as

suas ações particulares ou coletivas, fragmentando o

movimento do relógio, nós chamamos de tempo. ― isto eu não

sabia.

Complementei. ― Para Deus, portanto, é um meio

para que Ele possa se conscientizar minuciosamente.

Fragmentando-se e permitindo que estes fragmentos se inter-

relacionem, dando-lhes a oportunidade de contemplar esta ação

através de sua dilatação ou nova fragmentação, o tempo.

― Talvez o milagre esteja no fato de que os seus filhos

possam tomar conhecimento deste ato, de seu Deus, e conseguir

perceber que tudo já possui um fim.

E respondi um pouco assustado. ― E os meios se

justificam!

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258

Fomos surpreendidos por alguém que descia a trilha

em silencioso objetivo de nos ajudar. Tiago surgia como um

mediador que talvez pudesse nos indicar o caminho.

― O caminho é a verdade! ― tinha me esquecido de

suas habilidades telepáticas. ― As suas divagações implicam

que entendem uma parte do conceito. Mas ambos admitem que

todas as suas observações só servem quando dois observadores

possuem as mesmas opiniões sobre. Além do mais, existem

eventos que ainda fogem à sua compreensão. O tempo não

existe, embora ele exista para vocês.

― Como nos unimos? ― Juroo-san se referia ao fato

de como se relacionavam os três universos.

― Não há separação, só temos a impressão de que

tempo e espaço existem. Os nossos encontros obedecem a

afinidades mentais e não convergências físicas entre os

universos. Precisamos acreditar que o pensamento prevalece

sobre a matéria que é uma ilusão da mente.

― E como podemos entender o ciclo? ― perguntei a

fim de que eu não precisasse explicar o que realmente se

Page 259: Mateus göettees   1 - livro de mateus

259

passava em minha cabeça.

― O ciclo é o meio mais eficaz de explicar o que

chamam de tempo linear. A roda das transmigrações é limitada,

contudo o seu uso é ilimitado. Como todos os recursos deste

universo, quando necessário, ele é revisto. Supor que as

encarnações são inesgotáveis é o mesmo que consumir todos os

recursos do seu planeta. ― estávamos aquém de saber como as

coisas funcionam. ― E certas verdades eu só posso fazer me

compreender por Inari-san.

― E eu sou... ― Juroo-san estava abatido.

― Observe bem a engrenagem do relógio, ele é Inari-

san. Você pensa que é algo menor e imperceptível quase uma

partícula elementar que o constitui e não é relevante. ― e então

frisou com bastante relevância. ― Eu afirmo, é um dos dentes

desta engrenagem. Sem você ele perderia uma de suas virtudes

e a roda não giraria em perfeita sincronia com todos os seres

deste universo.

― Apesar de nossas percepções serem falhas, já que

os nossos sentidos só captam a ilusão, todos podem ter uma

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260

importância anônima. ― agora eu percebi. ― Deve obedecer a

algum desígnio que a afluência de nossos mundos se desdobrou

como uma relação no qual eu sou o criador de um outro mundo.

― E é assim! ― Tiago foi categórico.

Ambos me puxaram pelos braços para seguirmos até o

templo da montanha.

Não perdi a chance de abraçá-los.

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261

32

“Essa é a grande ilusão de vocês, que Deus

se importa com o que fazem. Eis a segunda

grande ilusão do homem, de que o

resultado da vida é incerto e cria o medo. E

sentem medo porque decidiram duvidar de

Deus. E se tomassem uma nova direção?

Viveriam como Buda, ou Jesus. E quando

você tentasse explicar a sua sensação de

paz, a sua alegria de viver, o seu êxtase

interior, distorceriam as suas palavras”.

Conversando com Deus. Neale D. Walsch.

Inari 36:11-26

O labirinto contornava os limites da floresta com os

seus infinitos bambus que submergiam no horizonte. Juroo-san

Page 262: Mateus göettees   1 - livro de mateus

262

desapareceu em uma das curvas, acelerado com as festividades

do dia do cavalo.

O meu ânimo estava suspenso em doses de uma

ansiedade sem razão ou causa. ― Os seus anseios e

expectativas atingiram um novo estado, assim sendo, precisará

de novos olhares. Veja a todos com novos olhos, Mateus.

― Nem bem assimilei as antigas ideias.

Chegamos à escadaria de pedras rústicas que era

adornada com velhas lamparinas e lanternas decorativas por

um bando de garotos baderneiros que começaram a cutucar

Tiago com obstinação irritante.

― O que Juroo-san não podia saber? ― perguntei

assim que nos desvencilhamos dos garotos.

― Por mais que o universo seja infinito, e ele o é,

também é finito porque há redundância e eficiência em um grau

inimaginável. ― o que Tiago estava dizendo? ― A razão de você

pensar que está inventando este mundo – pelo menos até onde

a vista alcançava – não implica que ele tenha acabado de

Page 263: Mateus göettees   1 - livro de mateus

263

nascer.

Supunha, com ressalvas. ― Ele já existia?

― Para você não. Mas para Juroo-san havia muito

mais. Do mesmo modo que ele te convinha para uma finalidade

que eu considero surpreendentemente surreal, ele se apropriou

de você para atingir os propósitos dele. Houve uma

sincronicidade, ainda que não a tenham compreendido, embora

os resultados sejam bastante válidos.

Sentamo-nos em um recanto próximo de umas toras

que seriam usadas para a construção de um lugar digno de

respeito, num descanso para os peregrinos que se dirigiam para

o templo da montanha. Uma árvore jovem tentava tolher o sol

com dificuldade.

Eu já havia desconfiado que estes ensaios de moldar

um mundo de imaginação não eram proezas das minhas

aptidões intelectivas e insolentes. Talvez eu só acreditasse que

os tais ensaios fossem verdadeiros com base no meu orgulho

incomensurável e na arrogância de tudo poder. Senão eu não

teria continuado com a...

Page 264: Mateus göettees   1 - livro de mateus

264

Tiago pressentiu os meus argumentos. ― Eu contava

com este orgulho e esta arrogância para criar estes obstáculos.

Como todos, você também crê que as dificuldades insolúveis

consomem as suas forças e suas esperanças. Uma represália por

seus pecados? Talvez, porém todos os eventos possuem muitas

respostas, não pense que, por tentar controlar os resultados,

criar e definir métodos e etapas, você esteja livre dos

imprevistos. A sua alma, como a de todos, anseia pelas pedras

no caminho.

― Parece um contrassenso. ― desconfiava que não

era bem assim.

― Se for, então tudo será somente desordem. ― Tiago

parecia bastante certo do contrário. ― Não duvide do que te

aconteceu, o evento que teima em não aceitar foi um grande

passo para a compreensão de si. O meio como você se

fragmentou obedece somente às suas aspirações e por isso se

mostra como um formidável novo mundo. Eu escolheria outros

meios...

― Portanto eu estava certo quando não aprovei que o

tal evento fosse o que me sugeria?! ― estava entendendo o real

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objetivo por trás.

― Precisávamos saber a dimensão do seu ego. ― por

dentro, ele estava chorando de tanto rir. ― Entretanto o “tal

evento” tem a sua magnificência. Você estava no lugar

apropriado, na hora certa, fazendo o que era perfeito;

controlando os excessos.

― Sabia que não podia ser algo tão grande quanto

uma Iluminação espiritual. ― respirei aliviado.

― Está redondamente enganado, a fimbria de luz que

conseguiu enxergar representa o que realmente é, a Iluminação.

No entanto, a conjunção de vários fatores permitiu que este

evento emergisse com o intento de tão somente azucrinar o seu

espírito. Desde então tem buscado recriar esta sensação de

liberdade.

― Quer dizer que é impossível recriá-lo? ― pelo

menos me parecia assim.

Tiago parecia absorto com a minha pergunta. ― Não

percebeu?! Uma vez atingido a Iluminação, se revela o caminho.

Todavia é quase impossível de ocultá-la outra vez com as

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impurezas humanas, já que as percebe com maior lucidez e

autoridade.

― Eu?!

― Todos possuem o estado de iluminação inerte, uma

vez que o tenha desvendado jamais conseguirá ver o mundo

com os mesmos olhos. No princípio, uma onda de serenidade te

fere as velhas convicções e paradoxos seculares. E um

sentimento te obriga a criar novos padrões. Uma percepção que

poderia ser de compaixão, no entanto é muito mais. Que você

passa a entender tudo sem nada saber.

― E então, como dizer que o evento não foi grandioso

se eu alcancei a Iluminação? – com outras muitas ressalvas.

― Porque precisa estar sempre vigiando os seus

julgamentos para que eles sejam somente discernimentos. A

ganância, a arrogância e a intolerância parecem ditar a sua

realidade e basta uma preocupação para que os medos

soterrem as certezas com a ânsia de quem precisa se submeter

às ilusões do mundo. ― ele estava repetindo o que acontece

todos os dias, enfrentando as calúnias e ouvindo as reclamações

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que não deveriam ser minhas. Preocupações com o amanhã que

podem nunca se concretizar.

Os ventos de um inverno que se despede me

acordaram dos pensamentos profundos que me devoravam.

Tudo parecia ter mais de um desígnio. Tiago se calou olhando

para a comitiva de homens e mulheres que se aprontavam em

planejar o festival que antecipava o plantio de primavera.

― Por que eu tenho a impressão de que não era

exatamente sobre isto que conversaríamos?

― O que Juroo-san não compreenderia era como a

roda das transmigrações podia se comportar sem as barreiras

do tempo. Se bem que nem você seja capaz. ― Tiago estava

esperando que eu me manifestasse ― Se recorda da finalidade

dada à criação dos Espíritos, conforme o espiritismo apregoa?

― Suponho que com o fim de esclarecer e de fazer

chegar progressivamente à perfeição!

― Agora considere que todas as experiências estão

acima do conhecimento, já que este é inseparável do espírito. O

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que temos? ― Era para adivinhar?

― Como se chega progressivamente à perfeição se as

experiências não estão basicamente vinculadas a uma escala

evolutiva? Hum. ― onde Tiago estava me levando? ― Quero

dizer, o conhecimento é soma dos aprendizados que se agrega a

cada existência, sendo assim a experiência não se subordina ao

conhecimento?!

― Exatamente. Bem, sim e não. Pois sabemos que o

conhecimento é integrado ao Espírito que o detém como uma

matriz fornecida por Deus. Conhecer, portanto é recordar.

Neste estado de fragmentação em que nos encontramos,

espalhados por um espaço e um tempo, os eventos passam a ser

analisados pelas complexidades de suas relações entre as suas

partes, confirmando-nos sempre novas experiências. O

conhecimento é exato, as experiências são mutáveis. E o modo

como percebemos estas experiências, nos possibilita novas

conexões.

― Onde você quer chegar! ― estava confuso o

bastante para conseguir criar uma suposição.

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― O salto entre as existências da alma encarnada não

depende de uma evolução do conhecimento do espírito, tenha

isso em mente... ― Atingi o meu limite de compreensão e Tiago

percebeu. ― Vamos retornar ao conceito de universo que

estávamos alcançando melhores resultados.

― Tiago, você disse que o universo é redundante e

eficiente, como?

― Cogite que a proposta quântica poderia ser

chamada de virtual, é só uma simplificação das reais

potencialidades do universo e de Deus. ― sem parábolas ou

fábulas, ele só falava em linguagem binária. ― Está a par das

extensões de compactação de imagens digitais?

― Acho que sim, por quê?

― O universo se comporta mais ou menos assim.

Parece-nos tão infinito e vasto quanto uma imagem de altíssima

resolução – aqui só uma analogia –, embora ele seja só um

pacote de dados. Assim como a imagem pode ser digitalizada e

decomposta em dados virtuais que ocupam eficientemente um

espaço de armazenamento menor, gerando a possibilidade de

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compactações e ampliando a capacidade de um disco rígido; o

universo realiza o mesmo em uma escala que ultrapassa o poder

da imaginação, como a eficiência dos processadores de um

computador.

― Hã! ― eu entendi, porém não havia a menor

possibilidade de imaginar como.

Depois destes dois últimos brainstorms eu só poderia

ficar quieto admirando o vale, o mar e as embarcações que

retornavam para o Festival. As lanternas eram acesas assim que

o ocaso desvelasse as estrelas faiscantes e solitárias que

surgiam antes mesmo do poente. Juroo-san nos encontrou em

estado de contemplação ou de um processamento de dados em

atividade frenética e incansável de meu cérebro.

― Desejo que, os dois, participem dos festejos do

templo a Inari. Eu não acredito que estou convidando o

anfitrião! ― uma festa para mim, como seria se um deus

chegasse e passasse mal de tanto comer? Tinha uma ideia de...

― Melhor não... ― respondeu-lhe Tiago.

― Sempre quis saber como sabia que eu poderia existir

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e aparecer para você? ― perguntei para Juroo-san, mas eu

mesmo respondi. ― A sua mãe lhe contou! ― e ele sorriu.

Suspeitei que Tiago pensava em algo. ― Inari-san –

não gostava quando ele me chamava de Inari –, pergunte para

Juroo quando foi a última vez que ele navegou para outras

terras, ou ilhas! ― eu não ia repetir o que todos já escutáramos.

― Acho que quando estive em Kanagawa... ― como?

― E este mar? ― apontava para o vilarejo com seus

cais repletos de barcos.

― É um lago.

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33

“No mundo passais por aflições; mas tende

bom ânimo, eu venci o mundo”. João 16:33

Juroo 111:05-30

O tempestuoso rumor de vozes provocou-me uma

profunda perturbação dos meus sentidos. E tal burburinho de

comerciantes e carroceiros era deflagrado por soldados em

exortações impronunciáveis. O grande movimento de pessoas e

cargas deviam passar pelo controle alfandegário onde homens

bem armados impediam o livre trânsito entre as províncias de

leste e oeste.

Os casebres se acotovelavam sobre a estrada

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rusticamente pavimentada. Em seus pisos baixos, havia

comércios de estação para os negociantes e estalagens para os

peregrinos.

Fui salvo pela mão de Tiago que me abduziu do caos

em que aquela cidade se transformara. Com as suas carroças e

cavalos, guardas e mikoshi, gueixas e casas de chá.

Bem sabia onde estava, embora não pudesse

acreditar. Caminhei sob o olhar de Tiago e me deparei com o

mar. Ajoelhei-me em uma rampa para embarcações e sorvi a

água doce que o compunha. Passei a ver tudo com novos olhos.

Homens tentavam erguer um esqueleto submerso na outra

margem do lago.

Era um torii. Girei e apreciei todas as montanhas e

tentei descobrir algum perfil atemporal. Eles estavam diante do

meu nariz. ― Como eu não percebi que eram iguais?

― E não são. ― Tiago estava sentado no cais,

ligeiramente acima de mim.

― Inventei um mundo a partir das imagens da minha

realidade. É tudo sombra. Uma mera cópia, uma sugestão

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inconsciente, que foi alimentada pelas minhas aspirações.

― Ou será o oposto? As suas impressões, das

aspirações do seu inconsciente, te levaram a reencontrar este

lugar! ― seria possível? ― Como ficou sabendo desta enseada?

― Aleatoriamente, apontei o dedo em um mapa e

pressenti que aqui, às margens de um lago, podia ser

interessante para se conhecer. ― seria mesmo possível que

estavam me direcionando? ― O que me manteve mais intrigado

foi a coincidência de, no mesmo dia, rever esta cidade em um

seriado que tratava de um drama do período Tokugawa. Posso

afiançar que não é um local em evidência, nem no passado, nem

hoje.

― E por que acha que estas impressões te guiaram até

aqui? ― pude ver que Tiago me responderia. ― As duas ideias

estão corretas, um ciclo de relacionamento une estes dois

pontos.

― No tempo?

― Como ele não existe, esta relação atende a outros

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desígnios. Por exemplo, quem te disse que se chamava Inari?

― Ouvi-o de Juroo-san. ― pensei um pouco. ― Mas

fui eu quem lhe falou primeiro. Os nossos encontros não

obedeceram a um tempo linear, por isso eu repeti o que ele

mesmo me contou.

Tiago saltou para a areia e desenhou um circulo

perfeito. ― Este é o símbolo Yin e Yang, de equilíbrio e é um

ciclo eterno. Somente isto pode explicar o seu paradoxo. Como

não há tempo, não existem paradoxos, simplesmente é.

― Não precisamos de um começo e um fim?

― Tudo já foi determinado, as nossas vidas são como

personagens definidos...

― Eu chamo isto de destino implacável. ― como não

ser.

― Se fosse destino, o espírito não teria esperanças e

nem pretextos para experimentar. Tudo é determinado

antecipadamente, no entanto o espírito escolhe como usufruir

desta liberdade, pois os grilhões e os obstáculos são criados por

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nós mesmos. Somente nós acreditamos que o tempo é linear,

quando seria mais eficiente que ele se comportasse como

neurônios ou redes virtuais com links de interesse e não pela

correnteza irreprimível de eventos. Como poderá aceitar que as

influências, cuja origem é imperceptível, provêm de todos os

tempos e todos os lugares? O que te impede de ir aonde quiser,

passado ou mundos da fantasia...

― Quer dizer que as mesmas impressões sentidas por

existências anteriores, podem vir do futuro? ― não ia me

estender, estava ficando apreensivo.

― Sim e não. As coincidências – que não são bem

coincidências – estão te encaminhando para um futuro,

reunindo as ferramentas que serão úteis para melhor se

adequar. Tem consciência deste processo porque não está mais

preso ao passado e o presente te constitui um mecanismo de

transição. Os novos objetivos te alavancaram para outros

desígnios que estão sendo apresentados como informações para

vencer os excessos e disciplinar a mente!

Tive que me estender. ― No futuro eu poderei

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encontrar paz?! ― duvidando do panorama mundial.

Tiago sorriu e piscou sem falar nada.

Observei o lago e os servos que caíram de seus barcos,

se debatendo quando as toras escorregaram. Muitas pessoas

caminhavam sonambúlicas rumo ao templo da montanha,

algumas barracas estavam cerradas e havia pesar em todos os

semblantes.

― Por que estamos aqui?

― Viemos nos despedir de um sábio, todos vieram

para um adeus. ― Tiago estava sério.

Quando chegamos ao descanso, em uma curva com o

pequeno templo já terminado, lembrei-me dos diálogos com

Tiago, sentado sob os galhos de uma árvore frondosa que ainda

não passava de um arbusto. Admirei o horizonte reconhecendo

os contornos que jamais suspeitei serem os mesmos. O que este

homem sábio poderia nos aconselhar?

― Quando nos encontraremos com Juroo-san? ―

estava me afeiçoando demais por uma inspiração da minha

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imaginação!

― Ele é o sábio...

Pego de surpresa eu não agi, reagi. Corri colina acima

como nunca precisei e vislumbrei o novo templo terminado. Eu

já o tinha visto em outro tempo. A multidão me impedia de

chegar até Juroo-sama. Empurrei-os ferozmente enquanto

sentia os meus olhos arderem.

Parei com medo do que veria, estava perto o bastante

para ouvir a sua respiração dificultosa. Podia jurar que estava

em um quarto situado no mesmo lugar em que ele nasceu. Dei

um passo e fui abatido por um jovem que chorava e

desapareceu seguido por gritos desesperados de seus pais. ―

Tarō-kun! Espere!

Uma clareira se abriu e vi Juroo-sama. Os seus olhos

miúdos se esforçavam para abrir. Quando eles se encontraram

com os meus não contive as lágrimas. Avancei vagaroso para

sucumbir diante do sábio.

― Aguardava você, Inari-san! ― um cochicho audível

se espalhou entre os milhares de peregrinos. ― Que bom que

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conheceu o meu bisneto, Tarō-kun. Quando crescer ele será um

grande pintor. Sempre conversamos sobre a vida e...

Ele tossiu com grande dor. ― Não quero que você

morra! Talvez eu possa fazer algo...

― A sua compaixão me inspira, mas eu preciso partir.

Os nossos encontros não terminam agora. Eu sei o seu

segredo... ― Juroo-sama descobriu que esta minha eterna

aparência de quinze anos encobria as visitas descontinuadas

que eu tentava disfarçar. ― Sou grato por todos os

ensinamentos e agora eu te compreendo.

Eu me abaixei e o agradeci. ― Através de você eu me

compreendi. Se há alguém que merece ser um Deus, este é você.

― Ele não redarguiu.

― Somos todos deuses. Por muito tempo persegui a

flor perfeita. ― às minhas costas todos se abaixavam em

veneração. ― Olhe, Inari-san! Estão te reverenciando.

Todos os presentes se calaram em oração, com os

seus rostos abaixados. Juroo-sama admirava o poder do amor

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se manifestar nos homens.

― Não. Eles estão reverenciando a vida que está

dentro de você. ― Já não conseguia controlar o choro. Tiago

estava longe, contudo o seu coração estava junto de mim.

― Obrigado a todos. Pois todos são flores perfeitas.

E fechou os seus olhos.

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Bibliografia.

A doutrina de Buda. Bukkyo Dendo Kyokai. 1981

Conversando com Deus I. Neale D. Walsch. Agir. 1999

Evangelho segundo o Espiritismo. Allan Kardec. FEB. 1944

Amor, Imbatível Amor. Divaldo Pereira Franco. FEAL. 2011

Eu Te Compreendo. Antônio Roberto Soares.