13
O FUTURO DO HOMEM E O DOMÍNIO DA NATUREZA: UMA REFLEXÃO HISTÓRICA SOBRE O PENSAMENTO HUMANO E SUA RELAÇÃO COM O MEIO AMBIENTE. Carlo Romani * Antes de tudo, comecemos pelo nome que faz uma referência direta ao trabalho desenvolvido por Laymert Garcia dos Santos sobre o futuro do humano. Laymert vem dedicando sua pesquisa dos últimos anos no acompanhamento das transformações ocorridas na matriz dominante do pensamento humano, em suas dimensões científicas e éticas (novos padrões morais de conduta). Citemos como exemplo, a teoria do capital humano desenvolvida pela Escola de Chicago, segundo a qual o homo oeconomicus do capitalismo contemporâneo vale pelo capital humano de que dispõe. Esse capital reúne o conjunto de habilidades e competências inatas e adquiridas durante sua vida, diretamente relacionadas com as demandas jogadas pelo mercado, e serve para que seu proprietário possa se mover dentro desse jogo e transformá-lo em riqueza material. Do ponto de vista histórico podemos situar essa última clivagem na forma dominante do pensamento humano a partir da segunda metade do século passado, anos 1950, domínio resultante da expansão e afirmação da dinâmica econômica do capitalismo por todo o planeta, hoje conhecida como globalização. A aceleração das transformações no campo produtivo, com a apropriação mais intensiva dos recursos existentes no globo terrestre, trouxe um tipo de produtividade humana que é resultado direto da ampliação da capacidade de processamento e armazenamento do que genericamente chamamos de informação (inclusive aquelas de ordem genética). Um fenômeno que se constitui em decorrência de uma forma de se pensar a vida humana no mundo que, no tocante à produção do conhecimento, torna quase indistinguível o limite onde acaba o campo da ciência e onde se inicia aquele da tecnologia. Essa associação entre ciência e tecnologia, que se faz evidente nas grandes universidades produtoras de pesquisa e nos laboratórios geridos pelas grandes corporações privadas, coloca um fim no paradigma racionalista clássico do nascimento das ciências modernas, herdeiro de Descartes e Bacon, paradigma constituído pela busca de autonomia de pensamento e ação – naquele momento em relação ao poder Este artigo é a versão escrita da conferência proferida na XXI Semana de Biologia do Departamento de Biologia da Universidade Federal do Ceará, em março de 2009.

Futuro do homem e dominio da natureza

Embed Size (px)

DESCRIPTION

Uma reflexao historica sobre o pensamento humano e sua relacao com a natureza

Citation preview

Page 1: Futuro do homem e dominio da natureza

O FUTURO DO HOMEM E O DOMÍNIO DA NATUREZA:

UMA REFLEXÃO HISTÓRICA SOBRE O PENSAMENTO

HUMANO E SUA RELAÇÃO COM O MEIO AMBIENTE.

Carlo Romani∗

Antes de tudo, comecemos pelo nome que faz uma referência direta ao trabalho

desenvolvido por Laymert Garcia dos Santos sobre o futuro do humano. Laymert vem

dedicando sua pesquisa dos últimos anos no acompanhamento das transformações

ocorridas na matriz dominante do pensamento humano, em suas dimensões científicas e

éticas (novos padrões morais de conduta). Citemos como exemplo, a teoria do capital

humano desenvolvida pela Escola de Chicago, segundo a qual o homo oeconomicus do

capitalismo contemporâneo vale pelo capital humano de que dispõe. Esse capital reúne

o conjunto de habilidades e competências inatas e adquiridas durante sua vida,

diretamente relacionadas com as demandas jogadas pelo mercado, e serve para que seu

proprietário possa se mover dentro desse jogo e transformá-lo em riqueza material.

Do ponto de vista histórico podemos situar essa última clivagem na forma

dominante do pensamento humano a partir da segunda metade do século passado, anos

1950, domínio resultante da expansão e afirmação da dinâmica econômica do

capitalismo por todo o planeta, hoje conhecida como globalização. A aceleração das

transformações no campo produtivo, com a apropriação mais intensiva dos recursos

existentes no globo terrestre, trouxe um tipo de produtividade humana que é resultado

direto da ampliação da capacidade de processamento e armazenamento do que

genericamente chamamos de informação (inclusive aquelas de ordem genética). Um

fenômeno que se constitui em decorrência de uma forma de se pensar a vida humana no

mundo que, no tocante à produção do conhecimento, torna quase indistinguível o limite

onde acaba o campo da ciência e onde se inicia aquele da tecnologia.

Essa associação entre ciência e tecnologia, que se faz evidente nas grandes

universidades produtoras de pesquisa e nos laboratórios geridos pelas grandes

corporações privadas, coloca um fim no paradigma racionalista clássico do nascimento

das ciências modernas, herdeiro de Descartes e Bacon, paradigma constituído pela

busca de autonomia de pensamento e ação – naquele momento em relação ao poder

Este artigo é a versão escrita da conferência proferida na XXI Semana de Biologia do Departamento de Biologia da Universidade Federal do Ceará, em março de 2009.

Page 2: Futuro do homem e dominio da natureza

dominante da Igreja – e nos lança numa nova era de produção de conhecimento que

podemos chamar de era tecnocientífica. Os centros atuais de desenvolvimento científico

seguem uma lógica que subordina a produção do conhecimento ao imperativo das

demandas de novas tecnologias por parte do mercado.

Por outro lado, nos níveis mais elementares do senso comum e do envolvimento

dos homens na rotina diária da sobrevivência (isso vale tanto para os mais ricos quanto

para os mais pobres), salvo algumas exceções motivadas por questões ainda de ordem

religiosa ou pessoal, propaga-se a idéia, uma idéia bem que se diga difundida através

dos recursos da propaganda midiática, de que o progresso científico e tecnológico

encontra-se a serviço da melhoria da qualidade de vida do homem e da humanidade. Em

geral, não há contrapartida crítica disponível à pergunta: a quem serve a ciência? – nem

nas universidades muito menos fora dos castelos do saber. Pelo contrário, a população é

bombardeada e invadida diariamente por inúmeras demandas de consumo municiadas

por uma propaganda intensa dessas inovações tecnológicas.

Podemos listar alguns exemplos da ação da propaganda na mudança de hábitos

de vida na família brasileira. No caso da saúde alimentar, durante a década de 1970 a

mídia foi tomada por propagandas favoráveis ao consumo de gorduras vegetais em

substituição às velhas gorduras animais. As imagens mostravam famílias saudáveis,

esbeltas e sorridentes, vestidas de branco no café da manhã se deliciando com uma

marca de margarina. Hoje em dia, a esmagadora maioria da população brasileira

abandonou o consumo tradicional de manteiga passando ao consumo de margarinas e

óleo de soja. Neste último caso, a soja substituiu os tradicionais óleos de milho e de

algodão. Resultado disso: a historiografia econômica brasileira herdeira de Caio Prado e

Celso Furtado, terá de incorporar aos já consagrados ciclos da cana-de-açúcar, do ouro e

do café, o mais recente ciclo da soja. Mais de um terço do território brasileiro arável

está imerso no ciclo da monocultura da soja. A maior parte das terras aráveis da região

sul, da região centro-oeste, de Rondônia e partes da Bahia, do Pará e do Maranhão, se

tornaram imensos “sojerais”. Fazendas produzindo para um oligopólio de corporações

transnacionais que controla a industrialização, circulação, distribuição e exportação dos

alimentos. Se escrevesse sua obra em nossa época, a casa grande de Gilberto Freyre não

guardaria mais os doces sabores de José Lins do Rego, o menino do engenho, do

melado, da rapadura e da cachaça. Pergunta-se: a margarina faz menos mal ao

indivíduo, à economia do país, e à sobrevivência do planeta do que fazia a manteiga?

Tenho lá enormes dúvidas.

Page 3: Futuro do homem e dominio da natureza

Até porque, para a indústria da alimentação, a mudança de hábitos alimentares

não foi motivada por uma questão relacionada à saúde pública, mas por um rearranjo

produtivo da agricultura extensiva voltada para o mercado externo. A produção de

derivados de leite é pouco rentável e as usinas de beneficiamento continuam sendo em

sua maioria, de dimensão local ou regional, geridas por cooperativas, logo o gado

leiteiro brasileiro não se faz atrativo para o grande comércio internacional. Já, a criação

de animais para consumo alimentar é a segunda fonte de renda do agro-negócio. A

maior parte da produção, por ora, ainda está sob domínio das grandes corporações

sediadas no sul do país, algumas delas já se associando com corporações transnacionais

ainda maiores para ampliar a logística de distribuição no mercado internacional. O

resultado desse rearranjo na boca do consumo popular trouxe, por exemplo, o famoso

frango congelado ao preço de um real o quilo (propaganda que promovia o governo de

Fernando Henrique Cardoso), mas em detrimento da qualidade da proteína ingerida. E a

custo, também, de uma diminuição da cobertura vegetal do solo brasileiro proporcional

ao aumento das áreas de pastagem que migraram ainda mais para o norte do país,

avançando significativamente sobre os domínios do bioma amazônico.

Vamos deixar de lado a exposição de exemplos do rearranjo produtivo do agro-

negócio trazido pelas novas tecnologias de produção de alimentos para avaliarmos um

exemplo do avanço científico incontestável ocorrido na área da genética. O

desenvolvimento do projeto Genoma trouxe inúmeras possibilidades, ainda abertas, para

a reprodução assistida e para a cura de doenças hereditárias, entre outras demandas

envolvidas. Mas, no limite de suas aplicações futuras, a engenharia genética associada à

biotecnologia, enseja a real possibilidade da invenção de uma nova tipologia de

humanos que seria dotada de uma herança genética mutante. Em outras palavras, além

da transmissão hereditária poder vir a ser fornecida por um blend de genes dos mais

variados tipos humanos, ela poderá, também, provir de genes transmutados de outros

seres vivos. A fantasia científica da criação do Dr. Frankestein no início do século XX,

poderá finalmente ser realizada com base em modelos mais ou menos apolíneos, mas

também poderá descambar na criação de novos ciclopes e centauros, ou, ainda,

lobisomens. Os seres imaginários, meio homens meio bichos, que povoaram as mentes

de gregos e troianos e imortalizaram as páginas soberbas de um Borges, podem deixar

de serem imaginários e tornarem-se invenções reais.

E como então distinguiremos o real do irreal, ou haverá um real mais real do que

o outro? Isso parece estar muito além de nossa imaginação; é evidente que estou aqui

Page 4: Futuro do homem e dominio da natureza

provocando vocês. Mas, o fato de parecer algo absurdo não invalida a hipótese de que

estejamos no limiar da possibilidade tecnológica real da criação de seres viventes. Ora,

se entendermos a concepção de homem que temos a partir de Lamarck/Darwin, como

herdeiro de uma longínqua evolução biológica que resultou nos primatas até se afirmar

a forma atual classificada como homo sapiens, a possibilidade de geração de uma nova

classe de humanos, cuja ascendência genética se produz sob controle absoluto da

própria espécie, levaria a um corte biológico de ordem não somente epistemológico

como traria uma inevitável reordenação de toda nossa compreensão ética da existência.

A compreensão histórica da vida humana na Terra desde tempos antigos delimita

seus inícios para um tempo mítico, impreciso cronologicamente, seja, por exemplo,

quando nos referimos à tradição grega com seus deuses titânicos evocando as forças da

natureza e outros deuses assemelhando-se a caracteres humanos, ou seja, numa outra

tradição, a das culturas dos orixás surgidas na África Equatorial, em que ambos,

fenômenos da natureza e características humanas, se inter-relacionam. De qualquer

modo, ao fazermos a leitura das gêneses de civilizações num tempo histórico mais

remoto, não se percebe uma clara individuação do homem em relação à natureza. Pelo

contrário, o homem de tal modo pertencia à natureza que as formas utilizadas para

classificá-lo eram ligadas a arquétipos cuja origem situavam-se no mundo natural. Essa

cosmogonia antiga gerou como legado, por exemplo, a Astrologia, que estabelece

intrínseca relação entre as posições de astros no Universo com as características de

elementos da natureza, herdadas pelo homem no momento de seu nascimento. Mesmo

nas expressões comuns da fala popular, ainda percebe-se essa relação. Quando dizemos

“é da natureza de Fulano”, ou, “Sicrano tem cabeça de vento”, encontra-se presente o

mesmo vínculo ancestral das características do homem com relação a algum fenômeno

de ordem física ou natural.

O exemplo das culturas de origem Tupi é ainda mais esclarecedor. A concepção

ameríndia de mundo, em linhas gerais, pressupõe uma unidade de espírito e uma

diversidade de corpos. O que o pensamento ocidental compreende como cultura,

civilização, homem ou sujeito, os índios americanos entenderam como espírito, forma

universal e as coisas da natureza e os objetos materiais constituem a forma particular

que toma esse espírito. Não existiu nas culturas indígenas da América uma separação

nítida entre natureza e cultura, coisas relativas à natureza e coisas criadas pela cultura,

ou humanas. Há uma diferenciação, como nos mostra Eduardo Viveiros de Castro, mas

ela não é estreita, rígida, como se constituiu no pensamento ocidental, particularmente

Page 5: Futuro do homem e dominio da natureza

no moderno, ela implica numa perspectiva da ação em curso. Por exemplo, um índio em

atividade de caça se colocaria como um ser caçador, o que seria também a percepção

tida pelo animal caçado. O índio, em outra situação, fugindo de uma onça, estaria na

condição de caça e perceberia a si mesmo como tal e à onça como caçadora. Daí a

origem da lenda de Curupira que circunscreve a cultura indígena numa reciprocidade de

relações com a natureza, nesse caso com a mata, e entre a caça e o caçador. Trata-se de

uma cosmogonia bastante particular, pois implica em um mundo habitado por diferentes

espécies de sujeitos ou pessoas, humanas e não humanas, as quais o apreendem segundo

pontos de vista distintos. Não se pode estabelecer nessas culturas uma diferenciação

essencial, de substância inata, que separe claramente o homem de um lado e a natureza

do outro.

Vamos transpor o oceano e o tempo em direção ao mundo europeu antigo. No

apogeu da civilização grega houve o estabelecimento de uma diferenciação entre vida

natural e vida política, entre o que os gregos chamavam de zoe e de bios. O homem

enquanto animal vivente, em sua relação com as coisas do mundo natural, ou no espaço

privado da existência junto aos de sua família, compunha o universo animal do zoe.

Esse mesmo homem, porém, comprometia-se com o espaço público da existência, ou

seja, com a gestão coletiva da vida na comunidade da polis, e quanto mais

comprometido ele fosse, mais alta reputação dispunha. Essa vida vivida pelo homem

grego no espaço público era denominada de bios, a vida ativa da existência conquanto

administração, não de sua relação com a natureza (o que hoje seria tido como o espaço

privado da existência), mas da gestão política (entendida como a participação do

indivíduo em sociedade).

Contudo, mesmo nessas experiências antigas mais autônomas empreendidas pelo

homem, seja na polis grega como na res pública romana, não se caracterizava um

entendimento ontológico do ser humano como fenômeno ausente, separado ou,

digamos, elevado acima do mundo natural. Até porque, havia uma naturalização da

existência no âmbito da sociedade que implicava no entendimento de que as diferenças

sociais existentes entre os humanos dentro de um mesmo grupo, não eram fruto de uma

divisão social incrustada na cultura que hierarquizava homens e mulheres, velhos e

jovens, senhores e escravos, nobres e plebeus. A posição de gênero, de etnia, de

condição econômica, de distinção social, já era dada desde o nascimento, por sorte ou

azar de nascença, ou qualquer coisa parecida, mas sempre inserida numa hierarquia de

Page 6: Futuro do homem e dominio da natureza

valores que fazia parte da ordem natural das coisas, por isso de castas ou estamentos,

praticamente impossível de ser modificada.

A passagem desse tempo mítico para um tempo histórico, cronologicamente

mensurável, deu-se na medida em que as diversas civilizações, à semelhança de seus

deuses, desenvolveram um legado material e imaterial que se perpetuou através das

formas e dos lugares da memória, dentre as quais a documentação escrita logrou ocupar

espaço privilegiado no mundo ocidental da tradição judaico-cristã, ou seja, aquela que

viria a se tornar a civilização protagonista do advento da futura ciência moderna a partir

do século XVII. Foi somente com o fim da antiguidade clássica e a difusão e

massificação do cristianismo no mundo ocidental, herdeiro direto do testamento mítico

judaico, que o ser humano ascendeu por desrespeito à obra do Criador (o pecado

original) ao topo da hierarquia na Terra, cabendo ao homem, mas não ainda à mulher, o

domínio sobre todas as coisas da natureza. Deus criou o mundo natural em seis dias e o

homem por último, Adão, à sua imagem e semelhança, como nos mostra a obra de

Michelangelo na Capela Sistina. No zoológico mitológico do Jardim do Éden não havia

diferenciação qualitativa entre os seres viventes. Porém, com a queda na terra os

homens tornaram-se senhores da natureza por serem os únicos cônscios da obra do Pai.

Depois, por ocasião do dilúvio, Noé, o salvador da pátria indicado por Deus, se

incumbiu da missão de primeiro biólogo, ao coletar todas as espécies da criação para a

sobrevivência do mesmo universo natural em outro lugar.

Ao contrário da Grécia antiga, na qual o homem exercia seu controle sobre a

natureza a partir de sua vida política, a bios, portanto, um domínio em função do

interesse comum da cidade-estado, no mundo judaico cristão o homem deve exercer seu

domínio sobre o mundo natural, não como resultado de uma atividade política

(humana), mas como destino de comando inscrito numa ordem transcendente. E esse

comando, na concepção cristã de mundo, poderia ser executado segundo os princípios

de Deus e do bem, como pregava São Francisco de Assis, ou do mal, do Diabo, como o

atribuíram aos hunos de Átila, saqueadores dos campos e das recém convertidas cidades

cristãs. Evidentemente que tudo isto trata de uma tese idealizada propagada como

pensamento dominante sobre um conjunto de pessoas que se disseminou com o passar

dos séculos. Na prática de vida mundana, a vida realmente vivida, a coisa se tornava

muito diferente.

A ação do homem sobre a natureza, durante todo o período medieval europeu,

deu-se de forma a atender as necessidades de uma civilização que se desenvolveu

Page 7: Futuro do homem e dominio da natureza

basicamente no campo, portanto, fora da organização daquela vida política grega, de

gestão dos recursos para a cidade, de que falávamos antes. Somente a partir do fim do

século XIV com o ressurgimento de uma vida urbana intensa nas cidades marítimas e

comerciais da Itália e do norte da Europa, que o problema da exploração dos recursos

naturais passa a ser pensado em termos de uma demanda de suprimento para a vida nas

cidades. É por volta dessa época e nos dois séculos seguintes que se iniciou a ocupação

extensiva de terras no leste europeu e no mundo mediterrâneo, com a produção de

cereais para abastecer os mercados urbanos da Europa ocidental. No caso da França, da

Itália e da Espanha, como nos mostrou Fernand Braudel, houve uma profunda

transformação na paisagem terrestre com a eliminação da maior parte da cobertura

florestal nas cotas baixas mediterrâneas, particularmente sobre aqueles bosques que já

haviam se regenerado dos estragos causados pela ocupação anterior das mesmas terras

durante a antiguidade.

No campo das idéias, as formas de apreensão da vida humana no mundo e de

construção dos saberes também estavam inseridas numa ordem hierárquica temporal.

Se, por um lado dava ao homem, por direito divino, lugar privilegiado no mundo

natural, por outro subordinava suas ações a uma relação espiritual cuja mediação, a

transmissão da palavra de Deus desde os tempos históricos da Tábua dos Mandamentos

de Moisés, ainda se fazia por meio de um seleto grupo de iniciados. No caso da religião

católica, a partir da palavra dos apóstolos sacramentada nos evangelhos, a Igreja

construiu uma hierarquia de transmissão do conhecimento passando pelo sacerdócio de

padres, bispos, cardeais até sua eminência, o Papa. Essa organização das atribuições

humanas impediu, ou retardou, o desenvolvimento de uma ciência sobre a natureza

resultante de uma ação humana secular, independente daquela hierarquia temporal.

De certa forma, o salto para a concepção de uma ciência feita pelos homens pode

ser atribuído à libertação da relação de dependência mantida pelos leigos junto aos

sacerdotes da Igreja. A reforma protestante, essencialmente, liberou o ser humano,

enquanto indivíduo, para fazer contato direto com Deus, através da palavra do Senhor,

sem a necessidade da existência de um mediador na Terra. Por outro lado, como nos

mostrou Max Weber, a prática de vida da sociedade protestante permitiu o surgimento

de uma nova concepção da ação política e econômica, o liberalismo. Para Locke,

escrevendo em fins do século XVII, o homem tem o direito, inscrito na lei divina, de

acumular tantas propriedades quantas lhe for possível conseguir com o fruto de seu

trabalho. E assim, o progresso individual, tornou-se resultado da correta administração

Page 8: Futuro do homem e dominio da natureza

dos bens privados, ou seja, da economia, pois é ela que traz a riqueza individual. A

soma das economias dos indivíduos de uma mesma nação leva ao progresso também do

Estado.

Portanto, no decorrer do século XVIII afirma-se um tipo de compreensão da

relação humana com os recursos naturais, denominado economia política, no qual, a

vida privada e a vida pública se fundem no início da fase adulta da aventura da

acumulação capitalista. A riqueza das nações de que falava Adam Smith se fará através

da exploração racional dos recursos naturais existentes na superfície da Terra. A idéia

de razão que se expressa aqui não é a de uma racionalidade aplicada ao

desenvolvimento do corpo social como um todo. A racionalidade moderna é a do

individualismo possessivo, na qual é a soma das riquezas individuais que cria a riqueza

coletiva. As reformas de Estado posteriores, decorrentes dessa visão seminal do

indivíduo moderno, buscaram, tão somente, dotar a nação de uma maior capacidade

institucional para o desenvolvimento das habilidades individuais da população através

de políticas públicas dirigidas para a saúde, educação, segurança, assistência social, etc.

Mas, sempre seguindo a lógica de que a riqueza geral se dá pela soma das riquezas

particulares.

Essas novas concepções filosóficas permitiram, simultaneamente, o

desenvolvimento da ciência moderna, uma vez que a ciência, entendida como ter o

saber sobre, separou-se da tutela que a mantinha sob dependência da religião. A

produção do conhecimento passou a ser conduzida dentro de uma concepção de razão

cartesiana, ou seja, a da separação entre o homem, o sujeito que estuda, e os objetos a

serem estudados, a ser provada através de métodos empíricos (Bacon). No decorrer do

século XVIII as pesquisas científicas desenvolvidas nas Ciências Físicas ou Naturais,

permitiram inovações tecnológicas diretamente aplicadas pelo nascente mundo

capitalista através da invenção de máquinas, industrializando métodos e mecanizando

técnicas produtivas que modificaram radicalmente as relações de trabalho e

intensificaram a demanda e a exploração dos recursos naturais existentes em todo o

planeta.

As então denominadas Ciências Naturais, da Botânica até a História Natural,

desde os tempos de Lineu e Buffon, tiveram papel importante na transformação das

técnicas, contribuindo para a seleção e introdução de novas variedades dedicadas à

produção agrícola, ampliada com os métodos de classificação dos espécimes, seja no

Velho Mundo, como no Novo Mundo, através das viagens dos naturalistas, tão

Page 9: Futuro do homem e dominio da natureza

freqüentes aqui no Brasil, de Martius a Saint-Hilaire. Em seguida, os estudos no campo

da Genética permitiram auxiliar a agricultura no aumento da produtividade no campo,

fator que praticamente erradicou a fome crônica que assolava a população européia até

meados do século XIX. O início efetivo de uma associação entre a ciência econômica,

entendida como a administração dos recursos disponíveis, e a recém-nascida ciência da

biologia, responsável pelo estudo das espécies vivas, tem como exemplo paradigmático

o trabalho desenvolvido por Malthus. O estudo da economia da população humana, ou

seja, a relação entre a disponibilidade e a produção de recursos para manter e sustentar a

população humana, que já começava a apresentar sérios desequilíbrios ecossistêmicos

em relação à sua reprodução, marcou o início científico da atividade de gestão

populacional, tema mais recente do trabalho sobre a biopolítica de Foucault. Daí para o

conceito de Ecologia, usado primeiramente por Haeckel em 1863, como sendo a ciência

sobre as relações estabelecidas entre as espécies, ou entre os recursos vivos disponíveis

no planeta, foi mera decorrência do caminho empreendido pela civilização moderna.

O que diferencia radicalmente o pensamento humano no mundo moderno em

relação a todas as outras formas de pensamento é justamente a separação posta por ele

entre o sujeito pensante e os objetos estudados. Uma separação que resulta de um

entendimento filosófico da existência, do homem, como um ser destacado do resto da

natureza. Nem mesmo as descobertas evolucionistas protagonizadas por Darwin e

Lamarck que, contrariando o mito da criação, na prática re-inseriram o homem na

natureza e no topo da longa cadeia evolutiva da vida na Terra, foram suficientes para

uma transformação na ação do homem sobre o meio em que se vive. Pois, se no

paradigma religioso o homem tinha o direito moral de dominar a natureza, no

paradigma científico pós-evolucionista o homem o faz como resultado da competição

existente entre as espécies e também da competição que se instala dentro de sua própria

espécie pela sobrevivência (a tese do darwinismo social de Spencer).

No decorrer do século XX, a última fase do desenvolvimento da economia

política levou o planeta a uma intensa urbanização da vida que retirou o homem de sua

ligação histórica com o campo. A histórica ação antrópica pautada pelo domínio sobre a

natureza e que significou a depredação dos recursos naturais existentes para o exercício

de atividades produtivas deixou, nesse último século, de manter os vínculos que

tradicionalmente ligavam o homem à sua terra. Em seu lugar, para sustentar a

manutenção da vida de uma população planetária que triplicou no decorrer desse século,

a lógica de mercado que perpassa o globo terrestre transformou grande parte de sua

Page 10: Futuro do homem e dominio da natureza

superfície em enormes indústrias de produção de suprimentos, que geraram o conceito

de agro-negócio.

E a relação entre os estudos científicos aplicados ao desenvolvimento de

tecnologias direcionadas ao biológico também se aprofundou. No campo da produção

de alimentos de origem vegetal assistimos a uma verdadeira guerra travada pela

indústria no combate a pragas e parasitas, organismos que, na maior parte das vezes, se

proliferaram como resultado do desequilíbrio ecossistêmico causado pela funesta ação

antrópica sobre o meio. A engenharia estabelecida entre Biologia e Química na

produção de fertilizantes e agrotóxicos controlada por grandes corporações como a

Dow, Monsanto e Rodhia, foi saudada no campo como sendo a salvação da lavoura e do

aumento da produtividade agrícola. Em contrapartida, a reação da natureza a essa

agressão causou um fortalecimento daquelas mesmas pragas combatidas, demandando

doses ainda mais cavalares de venenos para o controle delas.

A ineficiência prolongada dos agrotóxicos no combate às pragas foi causa direta

para os investimentos feitos pela Monsanto, durante a década de 1970, nos laboratórios

de pesquisa das universidades anglo-americanas no campo da biotecnologia e que

levaram à descoberta das técnicas de clonagem e à produção de sementes híbridas

inoculadas com genes animais de alta resistência à toxidade. Os organismos vivos

modificados, vulgarmente denominados transgênicos, por extensão, trouxeram outro

problema para a agricultura. Os vegetais, grãos, legumes e frutas, desenvolvidas a partir

dos OGMs geram poucas sementes e sementes que são demasiado fracas para

produzirem outra safra. Resultado da inovação tecnológica, o produtor rural tornou-se

refém da compra de sementes modificadas produzidas por grandes corporações que

detêm o monopólio da fabricação e da venda, e, portanto, encontram-se no topo da

cadeia produtiva e controlam o agro-negócio global. No caso da reprodução de animais,

a inoculação de ovelhas e bezerros, durante a década de 1990 na Inglaterra, está

diretamente relacionada à doença da vaca louca que dizimou rebanhos inteiros de gado

na Europa, e o mesmo pode-se dizer em relação aos frangos e à gripe aviária surgida na

Ásia oriental no início deste milênio e, muito provavelmente, em relação à atual gripe

suína.

A evolução da pesquisa científica durante o século XX, particularmente a partir

da década de 1950, somente foi possível graças aos investimentos trazidos pelas grandes

corporações da indústria para as universidades ou através da criação de laboratórios de

pesquisa próprios. Isso acarretou uma subordinação dos cérebros saídos das

Page 11: Futuro do homem e dominio da natureza

universidades do mundo inteiro à concepção de progresso regulada pela lógica do

mercado, que é basicamente aquela de expandir e manter o próprio negócio. Poderíamos

argumentar que os cientistas são independentes para recusarem pesquisas em objetos

que não lhes interessam do ponto de vista ético. Contudo, as formas de pensamento

dominantes, de produção econômica, e de subjetivação da vida não são processos

estanques. Encontram-se interligadas e é evidente que, se grande parte da humanidade

está sob o domínio de uma lógica de pensamento fundada no acúmulo de capitais,

inclusive o de capital humano, como já vimos, então o sistema de competição dentro da

própria espécie impele o cientista, como qualquer outro ser humano, a participar

ativamente desse processo sob pena de se ver marginalizado e fadado a abandonar sua

pesquisa ou lecionar em escolas periféricas da produção do saber. Mas, acima de tudo

com a idéia difundida de acúmulo de capital humano, portanto da necessidade de se

fazer investimento continuado em si mesmo, o homem, sob domínio das relações de

mercado, é impelido a legar também para sua prole um conjunto de capitais, inclusive

genéticos, para permitir a ela sobreviver na competição entre os indivíduos, que será

cada vez mais acirrada no mercado futuro.

O modo de organização do pensamento no mundo moderno herdeiro de uma

visão filosófica e religiosa de separação do homem em relação à natureza produziu uma

ciência na qual o homem se empenha em racionalizar sua vida em função do domínio

sobre o meio natural. Na atualidade estamos vendo os últimos passos dados por essa

visão de mundo que, financiados por um acúmulo imenso de capitais, interliga e

subordina a produção do conhecimento à lógica do mercado. E o mercado é o resultado

da soma de todas as individualidades possessivas que compartilham a vida sobre a

Terra. A ciência aplicada à tecnologia dispõe hoje de conhecimento suficiente para

estabelecer, num futuro próximo, o domínio absoluto sobre as formas de vida, inclusive

sobre a da própria espécie humana. Portanto, nos colocamos de fronte a uma fase

inusitada do evolucionismo, na qual o homem, além de ser a resultante privilegiada do

processo evolutivo participa, também, pela primeira vez na história, de uma civilização

que dispõem de conhecimento suficiente para criar seus próprios homens e também

criar outras formas de vida, até então inusitadas.

Por isso estamos no limiar do surgimento de uma nova revolução científica, se já

não estamos dentro dela, que implicará na completa re-elaboração da compreensão ética

da existência humana. E isso não se dará de forma pacífica, pois as forças de diferentes

civilizações em disputa, apesar de hegemonicamente dominadas pela economia de

Page 12: Futuro do homem e dominio da natureza

mercado, e a repartição desigual do acesso à produção e manutenção de capitais na

Terra, estão ainda muito longe de terem sido homogeneizadas. Quando falamos em

homem, esse homo sapiens universal a que a ciência se refere, esse homem é resultado

de determinações culturais que variam no planeta e estão dispersas em modos de

compreender o mundo que são bastante heterogêneos. E particularmente num assunto

tão delicado aos povos como o do poder da criação, ou do sujeito criado querer se

transformar no sujeito criador, então uma nova guerra pela concepção que se faz sobre a

vida poderá surgir. Bom, eu vou parar por aqui, pois acho que a partir de agora

entramos em outro terreno, o das forças políticas em luta no planeta, e isso é pauta para

outra conversa.

SUGESTÕES PARA LEITURA

BAHRO, Rudolf. The alternative: towards a critique of real, existing socialism.

Londres: New Left, 1979.

BECK, Ulrich. Risk society. Towards a new modernity. Londres:. SAGE. 1992.

BOOKCHIN, Murray. Historia, civilización y progreso. Madrid: Nossa y Jara, 1997.

BRANCO, Samuel M. Ecossistêmica. São Paulo: Edgard Blücher, 1989.

BRAUDEL, Fernand. O Mediterrâneo e o mundo mediterrâneo na época de Felipe II.

São Paulo: Cia. das Letras, 2004

CARVALHO, Marivaldo A. de. Introdução à práxis indígena: “gente humana” ou

“gente natureza”. São Paulo: Imprensa Oficial, 2002.

CLASTRES, Pierre. A Sociedade contra o Estado. Ensaios de antropologia política.

Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1990.

CROSBY, Alfred. Imperialismo ecológico. São Paulo: Companhia. das Letras, 1993.

DEAN, Warren. A ferro e fogo. A história e a devastação da Mata Atlântica brasileira.

São Paulo: Cia. das Letras, 2004.

ENGELS, Fredrich. A dialética da natureza. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991.

FOUCAULT, Michel. As palavras e as coisas. Uma arqueologia das Ciências

Humanas. São Paulo: Martins Fontes, 1987.

____________ Naissance de la biopolitique. Cours au Collège de France (1978-1979).

Paris: Gallimard/Seuil, 2004.

LAZZARATO, Maurizio. Del biopoder a la biopolitica. (2000) in

http://multitudes.samizdat.net/article.ph3?id_article=298 (acesso em 22/05/2005)

Page 13: Futuro do homem e dominio da natureza

MARTINEZ-ALIER, Joan. De la economia ecológica al ecologismo popular.

Montevideo: Nordan, 1995.

NOBRE, Marcos e AMAZONAS, Maurício de C. Desenvolvimento sustentável: a

institucionalização de um conceito. Brasília: IBAMA, 2002.

PÁDUA, José A. de. (org.). Ecologia e política no Brasil. Rio de Janeiro: Espaço e

Tempo, 1987.

ROMANI, Carlo. “O mar não ta pra peixe”. Conflitos sócio-ambientais na Baixada

Santista in Reflexões em Ciências Humanas, n º. 8, FAG, Faculdade do Guarujá, 2006.

__________ “Uma análise do zoneamento ecológico-econômico da Baixada Santista”:

in Fauna, Políticas Públicas e instrumentos legais. Anais do 8º. Congresso

Internacional de Direito Ambiental. Instituto o Direito por um Planeta Verde. São

Paulo, 2004.

SANTOS, Laymert G. dos. Politizar as novas tecnologias. O impacto sócio-tecnológico

da informação digital e genética. São Paulo: Ed. 34, 2007.

THOMAS, Keith. O Homem e o mundo natural. São Paulo: Cia. das Letras, 1996.